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Trabalho Final de Graduação Faculdade de Arquitetura e Urbanismo Universidade de São Paulo

Arquitetura da Cena

Vendaval nas Caldeiras

Carolina Catelan Gonzalez Orientador Prof. Dr. Sérgio Régis Moreira Martins Novembro / 2010


Projeto realizado em residência na Casa das Caldeiras programa Obras em Construção


“A flor está sempre na semente.” In BACHELARD, A Poética do Espaço.

“Seu desespero vinha de que não sabia sequer por onde e pelo que começar. Só sabia que já começara uma coisa nova e nunca mais poderia voltar à sua dimensão antiga. E sabia também que devia começar modestamente, para não se desencorajar. E sabia que devia abandonar para sempre a estrada principal. E entrar pelo seu verdadeiro caminho que eram os atalhos estreitos. “ Clarice Lispector, in O Livro dos Prazeres ou Uma Aprendizagem


Agradecimentos


Agradeço aos meus amados pai e mãe pelo apoio, pela dedicação, pela compreensão, pela ajuda, pelos risos e pelas lágrimas, por isso que se chama amor. Ao meu irmão Diego, às minhas avós Arcília e Domitila, aos meus tios e padrinhos Maria Aparecida e João Carlos e à minha prima Tatiana, querida família que sempre esteve presente do meu lado. Agradeço à Sandra Flores, amiga e parceira, porque mesmo com todas as pedras no caminho é sempre bom poder saber que é a sua mão que eu vou segurar, que é seu brilho que ilumina o caminho. À Liliane Henriques, que com seu amor me ajudou a escolher o caminho que eu realmente queria seguir. Ao José Manuel Lázaro e à Mara Helleno por tudo o que aprendi nos nossos anos juntos. À Andrea Antunes, minha grande amiga e médica, por sempre atender minhas emergências. Também quero agradecer muito aos meus colegas de faculdade, Carolina Leme, Fellipe Carvalho, Mariana Damião, Mariana Pessoa, Talitha Nascimento e Tatiana Tobara, com os quais desde o início aprendi tanto e consegui chegar até aqui. A toda equipe da Casa das Caldeiras (Júnior, Joel, Karina, João, Ricardo, Davi Tatiana, Mariano, Kátia, Cláudia, Elizabeth, Laudicéia, Marquinhos, Luís, Aldemar) que tanto apóiam os artistas nas suas criações pelos espaços mágicos da Casa das Caldeiras A Fernando Frahia , Livia Lazaneo, Lívia Lisbôa,, Marco Aurélio Campos, Renata Veloso, Rita Wu e Equipe do Audiovisual da FAU (Diógenes e Maurício) pela contribuição na produção e registros da performance. Ao professor Sílvio Dworecki por ter aceitado fazer parte da banca deste trabalho. Por fim, agradeço a meu orientador, Sérgio Régis Martins, por ter acolhido esse projeto e ter me ajudado a ter tranquilidade para levá-lo adiante.


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Introdução

10 10 O Processo 14 14 Elementos do Processo

15 15 Ator- Criador e Processo Colaborativo 17 17 O Espaço 19 19 Criação Dramatúrgica 19 19 O Corpo 21 21 Tempo, Memória e Narrativa Enviesada 21 21 O Mundo Feminino 22 22 Participação e interatividade do público 24 24 Para além da visão e da audição

Índice

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Elementos da Performance 27 27 27 27 28 28 29 29 29 29 30 30 31 31 32 32

Estrutura Dramatúrgica Personagens Em um tempo passado O público na cena Figurino Cenário Trilha sonora Sobre a exploração dos sentidos


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48 48 Análise e Avaliação 49 49 49 49 50 50 57 57 59 59 59 59 60 60 60 60 60 60 60 60

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Considerações Finais

66 66 Referências bibliográficas 68 68 Créditos

Tema Espaço Símbolos A presença do espectador Nomes Sobre o tempo Linguagem Experiências sensoriais Solução musical Parcerias


Introdução 8| Vendaval


Esse trabalho surge da necessidade de conciliar a minha carreira de atriz com a de arquiteta, buscando relacionar o teatro e a arquitetura. Com a Cia 3x4, da qual eu participei desde a sua fundação em 2001 e que existiu por sete anos, já havia uma pesquisa que relacionava o ator, a dramaturgia e um espaço nãoconvencional. No desenvolvimento de nossas duas peças, Cacos de Vidro no Jardim Molhado e Crisálidas, o espaço era uma questão primordial. Ambas aconteceram em casas tombadas pelo DPH, estabelecendo um diálogo essencial e construtivo com a arquitetura. Como diz Miriam Rinaldi, atriz do Teatro da Vertigem que dirigiu nossa primeira peça, “o ator apropria-se da arquitetura do espaço, sua materialidade, suas dimensões, sua atmosfera”1. Assim, o que eu desejava quando optei por encaminhar meu TFG para a área da performance foi dar continuidade ao meu trabalho de atriz, aprofundando-o na questão da relação espacial, agora com um olhar de arquiteta, capaz de ver outras relações entre as formas e enxergar um edifício de uma outra maneira. Perguntando-me que espaço eu desejava investigar nessa próxima criação, encontrei a Casa das Caldeiras, um lugar que sobreviveu à destruição gananciosa das Indústrias Matarazzo. A relação desse espaço tombado com a linha de trem, que passou por um 1 RINALDI. O Que Fazemos em Sala de Ensaio – Os Atores do Teatro da Vertigem. In Teatro da Vertigem –Trilogia Bíblica. p.48

período de grande decadência, e também as questões de patrimônio, memória, conectividade e transformação moveram-me a pensar nesse local como tema, fonte e suporte do trabalho. Quando uso o termo performance, estou considerado-o de maneira ampla, “como um agrupamento interdisciplinar de diferentes manifestações artísticas, como dança, teatro, literatura, poesia, arquitetura e artes visuais”2. No entanto, pela minha formação, a tendência do trabalho foi de se aproximar da linguagem teatral. Não quero, porém, chamar de peça, pois não considero a apresentação algo que foi devidamente finalizado para ser uma peça. É o resultado de um projeto investigativo, de experimentos, mas ainda não tem o desenvolvimento necessário para se tornar uma peça de teatro. Acredito que a essência desse Trabalho Final de Graduação é o processo de criação cênica através de uma pesquisa teórica sobre a Casa das Caldeiras, as Indústrias Matarazzo e a linha férrea, influenciado pelo espaço físico da Casa e pela corporeidade e bagagem das atrizes do projeto. E neste caderno busco mostrar os elementos usados no processo e na performance, e o resultado deste trabalho. Faço também uma análise sobre as decisões e encaminhamentos tomados neste percurso.

2 MELIM. Performance nas Artes Visuais. p. 71 Vendaval|9


O Processo 10| Vendaval


É muito difícil, na cidade de São Paulo, encontrar espaços que se disponham a abrir as portas para artistas que estão em fase de pesquisa e que não sabem ainda qual a forma que seu trabalho vai tomar. Portanto, quando soube do edital “Obras em Construção”, onde a Casa das Caldeiras abre suas instalações para artistas residirem e criarem ali dentro seus trabalhos, convidei a atriz e bailarina Sandra Flores, parceira por sete anos na minha antiga companhia de teatro, para escrevermos um projeto. Propusemos a criação de uma peça teatral cuja dramaturgia seria feita de forma colaborativa, tendo como material de base a história da Casa, a sua materialidade e o trem que passava ao lado. O projeto foi escolhido e, desde Julho de 2010, tivemos o espaço à disposição para experimentações cênicas. Nesse mês, optamos por não iniciar os ensaios no local, preferindo fazer uma pesquisa teórica sobre a Casa das Caldeiras, as Indústrias Matarazzo e as ferrovias São Paulo Railway e Sorocabana, cujos trilhos passam ao lado do lugar. Mais detalhes dessas pesquisas se encontram nos cadernos “Casa das Caldeiras” e “São Paulo Railway & Sorocabana”. Iniciamos o trabalho na Casa em Agosto. Tínhamos nesse momento uma grande liberdade de criação, já que podíamos explorar os espaços e as temáticas livremente, pois não era o momento de nos preocuparmos com o resultado. Cenas foram criadas e relações começaram a surgir.

Em Setembro, estávamos mais localizadas na Casa. Trabalhávamos na maior parte do tempo no Salão dos Tanques. Havia angústias quanto ao encaminhamento, já que não conseguíramos parceiros (diretor e dramaturgo) e, como atrizes, não sabíamos bem por onde ir. Fizemos visitas temáticas à cidade de Mairinque, às Estações São Roque, Luz e Júlio Prestes, todas ligadas ao trem, o assunto que ficou mais forte no trabalho até então. E foi no final desse mês que apareceu o segredo e nele concentraríamos a nossa investigação a partir de então. Assim, Outubro foi um mês em que estávamos preocupadas em dar forma aos assuntos, às cenas e às imagens que nos apareciam. Havíamos desistido de fazer pequenas cenas curtas em diferentes espaços da Casa e optado por trabalhar principalmente nos túneis, criando uma apresentação com começo, meio e fim. As personagens das irmãs, que desde Agosto apareciam nos nossos ensaios, se fixaram e o conflito entre elas surgiu. Ficamos trabalhando no desenvolvimento desse conflito pelo espaço e na criação do texto. Embora possuíssemos imagens das personagens, não existia ainda nenhum texto. Foi só com improvisações no final do mês que ele começou a brotar. Vendaval|11


E em Novembro, finalmente, o texto foi para o papel. Tudo foi muito urgente e corrido nesse mês, pois a apresentação estava marcada para o dia 15. Deste modo, toda a produção, bem como a finalização do texto, teve que ser feita nesses poucos dias. Lembro que o trabalho nas Caldeiras vai continuar até abril de 2011, quando as questões que já se apresentam aqui devem ganhar desenvolvimento e profundidade e teremos então uma peça de teatro. O que julgo mais interessante nesse trabalho não é o resultado em si, mas o processo, o caminho, muitas vezes tortuoso, que percorremos na criação de um projeto artístico. Assim, apresento no caderno “Processo de Trabalho”, as etapas e as mudanças com maior detalhamento.

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Elementos do Processo


Como já foi falado, o desenvolvimento da apresentação na Casa das Caldeiras esteve intimamente relacionado com as explorações da interação corpo-espaço misturadas às pesquisas teóricas. O que falarei agora é sobre os elementos que guiaram o processo de investigação artística. ATOR- CRIADOR E PROCESSO COLABORATIVO Foi em 2001 que tive contato com o método de trabalho do Teatro da Vertigem em duas oficinas organizadas pelos seus atores. Eles mostravam principalmente o trabalho de criação do espetáculo Apocalipse 1,11. Dessas oficinas, surgiu meu grupo de teatro, Cia 3x4, então sob direção de Miriam Rinaldi, uma das atrizes do Vertigem. Desde então tenho trabalhado com a questão do ator-criador e o processo colaborativo. E esse processo foi mantido no projeto desenvolvido na Casa das Caldeiras. O ator não é apenas alguém subordinado às decisões do diretor. Ele também é um criador da cena, da dramaturgia, do espetáculo, da iluminação, da trilha sonora. Ele pode participar dessas diversas instâncias e ter um diálogo intenso com a construção dramatúrgica e cênica. Mostrar a sua visão, concebendo cenas, iluminação, cenários. Ele é um ator/autor. Miriam Rinaldi explica esse atorcriador: “Cada ator é simultaneamente autor e performer. Há também a liberdade de

participar em outras áreas de criação, como dramaturgia, figurino, som, iluminação, cenografia, assim como no material já criado anteriormente por um companheiro em sala de ensaio, somando soluções em infinitas possibilidades.”1 O processo de criação do espetáculo não é inteiramente definido pelo diretor. Ele passa a ser colaborativo. Não se trata de uma criação coletiva, como nos anos 70, onde “todo mundo faz tudo”. As funções ainda existem, porém a hierarquia rígida do teatro tradicional se perde. Sílvia Fernandes fala sobre o trabalho do Vertigem: “Diferindo dessa prática [criação coletiva], o processo colaborativo do Teatro da Vertigem mantém a criação conjunta, mas preserva as diferenças, como se cada criador - ator, dramaturgo ou diretor – não precisasse abdicar de uma leitura própria do material experimentado em conjunto. O que se nota, nesse caso, é que a participação ativa de atores, dramaturgo e diretor na concepção do texto e do espetáculo não impede que os envolvidos construam dramaturgias específicas da atuação, da palavra e da encenação, que às vezes podem não estar em completa sintonia. As fricções e as dissonâncias são bem recebidas pelo grupo, pois abrem espaço para leituras insuspeitadas.”2 1 RINALDI. O Que Fazemos na Sala de Ensaio. In Trilogia Bíblica – Teatro da Vertigem. p. 45 2 FERNANDES. O Lugar da Vertigem. In Trilogia Bíblica – Teatro da Vertigem. p. 38 Vendaval|15


E para poder criar é preciso que o grupo se permita experimentar, modificar, errar. É preciso que haja generosidade de todos os envolvidos, tanto podendo ceder seu material para o trabalho de outros, quanto na criação de um olhar que não julgue o companheiro, abrindo o campo experimental para a pesquisa de todos os envolvidos. “O processo colaborativo é a expressão do diálogo artístico, num jogo de complementaridade. Durante o processo de criação, estamos livres de proibições. Não há nenhuma restrição quanto à forma ou conteúdo daquilo que se quer trazer para a cena.” Miriam Rinaldi3 “Do ponto de vista dos atores, o processo colaborativo nos dá a possibilidade de exercer a função de artista. O ator se torna criador da obra.” Vanderlei Bernardino4 Outro grupo que trabalha com a figura do atorcriador e com processo colaborativo é o Grupo XIX de Teatro, coletivo surgido no Centro de Artes Cênicas da ECA-USP em 2001. Sobre isso, escrevem em seu site: “Criação Colaborativa: O que entendemos por ‘processo colaborativo’, ou melhor, o que vivenciamos é uma dinâmica de trabalho na qual o conflito está posto não apenas na cena e sim no meio de produção. Atores, dramaturgo, diretor de arte, diretor e público trazem seus 3 In RINALDI. O Que Fazemos na Sala de e Ensaio. In Trilogia Bíblica- Teatro da Vertigem. p. 45 4 Idem p. 46 16| Vendaval


pontos-de-vista, à luz do objeto de pesquisa em questão, para a construção da obra artística. E este processo naturalmente embaralha os limiares das sempre propagadas funções do ator, dramaturgo, cenógrafo/ figurinista, diretor e público e cria searas da direção, da dramaturgia, da direção de arte, da interpretação e da recepção. Durante os meses de ensaio, os agentes envolvidos neste jogo transitam por todas estas áreas e, ao fim, quando retornam para suas ‘funções determinadas’, estão completamente contaminados por essa experiência.”5 E assim, nosso trabalho foi permeado por essas influências. O ESPAÇO É clara a importância essencial e construtiva do espaço em que estivemos trabalhando. Assim como na construção de uma edificação, o terreno de projeto é importante para a escolha do partido, no trabalho desse TFG, o espaço da Casa das Caldeiras foi fundamental para a criação cênica. A performance foi feita não apenas para o espaço da Casa das Caldeiras, mas a partir desse lugar. Foi um site specific, ou seja, uma intervenção com um lugar específico, criada exatamente para o túnel direito da Casa das Caldeiras, não subordinada ao lugar, mas conjugada com ele e com sua arquitetura peculiar. O espaço incorpora a obra, transformando-a e viceversa. O túnel é ressignificado pela atuação das atrizes que 5 Grupo XIX de Teatro, em www.grupoxixdeteatro. ato.br Vendaval|17


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relacionam os seus espaços internos e espaço externo do lugar.

tornou-se peça essencial e não um lugar neutro para a representação.

Novamente as peças do Teatro da Vertigem foram altamente inspiradoras. Na sua trilogia bíblica, eles escolheram uma igreja para falar sobre o Paraíso Perdido, um hospital para a dolorida trajetória de Jó e um presídio para retratar o Apocalipse. Sobre a forma como os artistas entram no espaço para ocupálo e transformá-lo para a realização da peça, Miriam Rinaldi escreveu:

O que mais nos motivava nas Caldeiras era a sua própria fisicalidade. E assim, a criação artística se deu a partir do enfrentamento dessa espacialidade, usando a história e a pesquisa como ferramentas para a investigação.

“Ao entrarmos num espaço abandonado, entramos em um novo corpo. Conhecemos a sua história como quem abre um livro de memórias, um diário. Ficamos suspensos como um grupo de arqueólogos, reconhecendo os vestígios, investigando rastros”.6 Outra referência que tivemos de relação com o espaço é a montagem de Cibele Forjaz para o romance O Idiota, de Dostoiévski. Seu espetáculo de 7 horas estava dividido em três partes que foram apresentadas em dias diferentes no Galpão do Sesc Pompéia. Muito embora o galpão esteja habituado a receber peças de teatro, a forma como Cibele utilizou o espaço, foi diferenciada. Como nas montagens do Vertigem, o público acompanhava os atores pelo espaço que era todo ocupado.

CRIAÇÃO DRAMATÚRGICA Como já foi dito, a criação da dramaturgia da performance foi feita a partir do próprio espaço da Casa das Caldeiras e da pesquisa histórica com todo o material que o próprio espaço sugeria. Embora já tivéssemos tido experiência de trabalhar em locais que eram patrimônio histórico, sempre a peça fora adaptada para o espaço. Nunca havíamos tido a oportunidade de começar o trabalho a partir do espaço. E é inegável a influência que o espaço exerceu na criação das idéias, mesmo porque ele era inspiração e suporte do trabalho ao mesmo tempo. Suas características arquitetônicas impregnaram as experimentações espaciais. O texto, assim, não veio antes que o lugar, mas surgiu com ele e para ele. E o segredo acabou buscando o túnel. O CORPO

Na Casa das Caldeiras, foi só depois do reconhecimento do espaço, da investigação por seus cantos, da experimentação espacial, que a intervenção foi construída; Houve esse diálogo de mão dupla, explorando as possibilidades sugeridas pela espacialidade tão peculiar da Casa. O espaço 6 RINALDI. O Que Fazemos na Sala de Ensaio. In Trilogia Bíblica – Teatro da Vertigem. p. 48

O trabalho do corpo é de grande importância no teatro, já que ele é um elemento essencial do discurso cênico e poético. Quando desenvolvemos um novo trabalho, pensamos no treinamento mais adequado, normalmente relacionado à peça que iremos fazer. Por exemplo, Vendaval|19


os atores do Teatro da Vertigem sempre buscam técnicas diferentes para a preparação corporal de cada espetáculo. Em O Paraíso Perdido, fizeram treinamento do método Laban e estudaram a transposição de conceitos da física clássica para o trabalho do corpo do ator. Já em O Livro do Jó, usaram técnicas aprendidas por uma das atrizes com Luís Otávio Burnier, do Lume e também treinamentos de Butoh e do método Suzuki (trazidos ao Brasil por Antunes Filho). E em Apocalipse 1,11 passaram pelo kempô, pela capoeira e pela meditação dinâmica. Neste trabalho, não sabíamos ainda qual seria o discurso. Tínhamos, porém, limitações técnicas, já que estávamos trabalhando em duas e nenhuma poderia ficar de fora coordenando o aquecimento. Também não havia dinheiro para a contratação de algum profissional para esta função. O que fizemos foi investigar o nosso repertório e ver quais exercícios poderiam ser feitos, onde as duas pudessem participar. Foi por essas razões que escolhemos a Meditação Ativa de Kundalini do Osho. Esse aquecimento é guiado pelas músicas que estão gravadas em seqüência e dispensam uma pessoa coordenando, permitindo que tanto eu quanto a Sandra fizéssemos ao mesmo tempo. Além disso, ela trabalha principalmente na ativação do primeiro chakra, que é o chakra da raiz, da base, responsável pela conexão do ser com o solo e com o mundo. Busca o fortalecimento da base, a criação de raiz permitindo desenvolver o domínio do corpo, aumentar a energia física e preparar-nos para tomar as decisões cênicas. Também trabalha com e liberação de instintos e tensões na coluna. Mas como acreditamos que a entrega ao trabalho não 20| Vendaval


é apenas do corpo, mas da alma, esse aquecimento também trazia um estado de concentração necessário à pesquisa. TEMPO, MEMÓRIA E NARRATIVA ENVIESADA Uma das questões mais presentes no trabalho era a questão da memória. A Casa das Caldeiras por se tratar de um exemplar da memória da cidade, símbolo da era fabril, tem a função de trazer para as pessoas uma história, uma época, um tempo. Esse trem que trabalhamos também atua como uma resiliência de um passado cujas marcas estão se apagando. Ele toca a nossa memória, levando-nos a fazer esse passeio pelo tempo. Porém, desejávamos poder fazer saltos temporais, criar um diálogo inexistente entre uma personagem já apagada, pertencente ao passado, e uma personagem da atualidade. Essa narrativa enviesada, onde a história não é contada de maneira linear, mas pela fragmentação, pela repetição, pela sobreposição, pela simultaneidade, pelo deslocamento, já havia sido trabalhado pelo grupo do qual fizemos parte nas nossas peças anteriores. Isso exige do espectador uma postura ativa na construção da narrativa. Além do mais, a narrativa pode não ter uma única leitura, deixando ao espectador a possibilidade de completar a história do seu jeito. Assim a obra perde a linearidade e o sentido fechado em si. Na primeira peça da Cia 3x4, Cacos de Vidro no Jardim Molhado, o procedimento que trabalhamos na construção do texto foi mais próximo de uma colagem de elementos diferentes, onde cada um dos elementos selecionados tinha importância em si, mas também a ordem em que foram colocados na peça era importante. Já na segunda peça, Crisálidas,

trabalhamos com três histórias que fragmentamos e entrelaçamos para fazer a versão final da peça, buscando justamente quebrar a linearidade com que se conta a história, sem, no entanto, misturar presente passado e futuro. Aqui gostaríamos de experimentar resgatar a memória de um tempo e colocar ao lado da contemporaneidade, podendo criar uma relação nãolinear entre os diferentes tempos. O MUNDO FEMININO O mundo feminino aparece, obviamente, porque somos duas atrizes trabalhando juntas. Mas não é apenas isso. Desde 2001, sentíamos vontade de abordar esse assunto. Porém nosso projeto acabou engavetado. Agora, teríamos a oportunidade de retomar essa temática. Penso que depois dos trinta anos, temos mais consciência e maturidade para trabalhar com esse assunto em cena. E não falo do feminino como gênero apenas, muito embora isso também esteja presente. Falo do seu aspecto simbólico, que trata de receptividade, intuição, sensibilidade, suavidade, espera. Acreditamos ser importante o resgate e a aceitação desse feminino, desse yin, em um mundo onde o domínio é o masculino, caracterizado pela força, poder, racionalidade, lógica, ação. O yang. Ressalto em homens e mulheres existem ambas as energias e não pretendo valorizar uma em detrimento da outra, mas sim pensar no equilíbrio dos pólos. A nossa grande influência é o Grupo XIX de Teatro, que na sua primeira peça, Hysteria, pesquisou a condição da mulher no final do século XIX e foi capaz Vendaval|21


de fazer uma obra delicada e tocante sobre esse universo, que vem percorrendo o país desde 2001. Na peça, homens e mulheres ocupam lugares distintos. Enquanto eles estão sentados em uma arquibancada, elas estão em bancos espalhados pelo espaço de encenação e participam da cena. Assim, junto das atrizes, as mulheres do público se transformam em internas do hospício. O feminino não foi, como em Hysteria, o ponto de partida da nossa pesquisa. Mas desejávamos encontrar as mulheres que estavam no meio dessas histórias de fábricas e trens.

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PARTICIPAÇÃO E INTERATIVIDADE DO PÚBLICO Sendo o espaço de trabalho um espaço nãoconvencional para a representação teatral, a relação que acabamos estabelecendo é de proximidade com o público. Com isso, o público essencialmente participa da cena. Essa participação pode se dar de diversas maneiras: desde a simples presença na composição da cena, passando pela participação controlada, podendo chegar a efetiva interatividade. Pelo fato da obra se construir nessa relação com o outro, o público torna-se peça essencial. A cada dia


tem-se um novo espetáculo, pois é um novo público. E ele não fica escondido na penumbra, acomodado confortavelmente em sua cadeira, assistindo com neutralidade a cena. Ele se insere na ação, pois ele vê e é visto. Ele participa. Como o ator direciona o seu olhar ou seu gesto a uma pessoa em particular, não se trata de uma massa de espectadores, mas de uma individualidade. Joelson Medeiros, que era ator do Teatro da Vertigem, fala sobre essa proximidade: “Estar muito próximo ao público não nos permite mentir, temos que estar presentes, inteiros, usando os estímulos momentâneos a favor da cena. Essa proximidade nos permite realmente dialogar com o espectador, olhar nos olhos, na alma deles, e, com isso, conseguir um espelho daquilo que somos, ou de como sentimos as coisas.”7 Nas duas peças do meu antigo grupo, já havíamos trabalhado com essa proximidade que exige esse olhar verdadeiro do ator, essa presença. Queríamos continuar trabalhando com isso nessa performance. Sabíamos que não teríamos treinamento para fazer uma obra aberta, sujeita à efetiva participação do público. Com certeza, pelas características do espaço, trabalharíamos no mínimo com a presença dos espectadores na composição da cena. Mas desejávamos um contato um pouco maior, quem sabe buscando uma participação controlada do público. Ressalto que a maneira como pretendíamos fazer o contato com o público era sempre por meio de delicadeza e sutileza, convidando-o a participar da cena. 7 MEDEIROS. In RINALDI, Miriam. O Que Fazemos na Sala de Ensaio. In Trilogia Bíblica – Teatro da Vertigem. p. 51 Vendaval|23


PARA ALÉM DA VISÃO E DA AUDIÇÃO As peças de teatro normalmente privilegiam a visão e a audição. Mas a proximidade com o público nos leva a pensar que outros sentidos poderiam ser também usados. Em O Idiota, Cibele Forjaz aguça o paladar, oferecendo frutas para as pessoas. Em outro momento, brinda-se com champagne junto com os atores. Em Apocalipse 1,11, os espectadores são

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convidados a jogar ovos na Talidomida do Brasil. É possível sentir os cheiros que permeiam os espaços do presídio, as texturas de suas paredes, os fantasmas que o assombram. Ouve-se o ranger de uma porta, a batida de uma grade, sons pertencentes de fato ao espaço que transportam as pessoas para realidade do lugar. Todas essas amplificações dos sentidos mergulham o espectador em uma atmosfera, tocando-o, não apenas pela compreensão racional, mas pela sensibilidade. Trazer essas experiências sensoriais para o público também era uma vontade nesse trabalho.


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Elementos da Performance


Depois de quatro meses e meio de trabalho, apresentamos a performance Vendaval, no dia 15 de Novembro. Sobre as características desse resultado de pesquisa, falarei a seguir. ESTRUTURA DRAMATÚRGICA A dramaturgia teve sua estrutura dividida em 5 partes: prólogo, partes 1, 2, 3 e epílogo, sendo que cada uma acontece em um espaço específico, o que acabou gerando um trajeto para a ação cênica. Prólogo O prólogo começa com o público no térreo, do lado de fora, vendo a Mulher 1 que vem de longe e se aproxima dele. Ela os conduz a entrar pelo salão do térreo dos pilares, chegando no Salão Vermelho, onde se vê a Mulher 2, vestida de noiva, celebrando seu casamento. Depois a ação avança até a porta de ferro dos túneis. A idéia desse momento é introduzir as personagens, sem revelar muitas informações, apresentando pequenos flashes de assuntos que serão abordados posteriormente. Parte 1 - Crianças Trata-se de penetrar junto com a Mulher 1 nessa história que ela carrega. Avançase pela porta de ferro e se entra no mundo de brincadeiras dela com a Mulher 2, que agora não estava mais vestida de noiva. Essa parte se passa exatamente embaixo da maior das três chaminés da Casa das Caldeiras. A preocupação é instaurar a relação afetuosa que as duas mulheres tinham entre si.

Parte 2 – O embate É na primeira parte do túnel, antes da porta de ferro interna, que o conflito se instaura e acontece o embate entre as duas mulheres. Aqui é o ápice do conflito dramático, que termina com a expulsão da Mulher 2 pela Mulher 1. No entanto, esta fica sozinha e tenta continuar seu percurso, tendo que abandonar a sua mala para poder atravessar a porta de ferro. Parte 3 - Julgamento Depois da primeira porta de ferro interna e antes da segunda, em um nicho que existe nesse local, é que a Mulher 1 reencontra a Mulher 2. Esse espaço foi escolhido, pois está no meio do túnel, em um lugar onde já se perdeu o contato visual com o ponto em que entraram no túnel. As mulheres se reencontram e se entendem e esperam pelo julgamento do público. Epílogos O epílogo é o desenrolar do julgamento e dependerá da decisão do público, que pode condenar ou perdoar as mulheres. Se elas forem condenadas, elas acabam presas nesse nicho, cobertas por folhas secas. Mas, se forem perdoadas, elas saem do nicho, dão as mãos e somem correndo para o final do túnel. PERSONAGENS As personagens criadas são a Mulher 1(Maria Cândida) e Mulher 2 (Ana Elisa). Elas são irmãs, mas não é desde o início que esta relação é revelada. A Mulher 1 casou-se com o homem por quem a Mulher 2 era também Vendaval|27


apaixonada. No entanto, a Mulher 1 foi embora, abandonando-o e ele se casa com a Mulher 2. Quando a Mulher 1 volta, a relação entre elas fica tensa. Não há uma construção corpórea determinante das personagens. O que mais interessa é criar o estado em que elas se encontram: mistura de raiva, alegria, dor, amor, ódio, remorso, culpa. Por isso, o aquecimento e a concentração são fundamentais. Dada a proximidade da ação com os espectadores, os “truques” que funcionam no palco não têm o mesmo efeito. É importante que a Mulher 1 mostre também seu lado sarcástico para que as personagens e o conflito não fiquem maniqueístas. Esse lado estava na origem da personagem na improvisação. EM UM TEMPO PASSADO Como a base do nosso trabalho estava ligada a elementos históricos, acabamos remetidas para o passado. Desde o início do trabalho, sentíamos que estávamos no início do século XX. Não desejávamos nesse momento definir o tempo tão fortemente. Queríamos apenas que o público sentisse que essas personagens não eram desse tempo contemporâneo, mas tiradas de um passado. Outra questão é sobre o tempo na própria performance. No início, a Mulher 1 está em um tempo presente, caminhando de volta ao encontro de seu passado. Quando eu falo “tempo presente”, refiro-me ao presente da personagem. Quando ela entra no Salão Vermelho é como se ela voltasse no tempo, mas é um passado que ela não presenciou, 28| Vendaval


o casamento de sua irmã. Depois avança ainda mais no passado, mas um passado que existiu, a juventude com a irmã. Passa pelo momento de seu casamento e então volta para o presente, para o embate com a irmã. E depois disso, a idéia é que a ação saia do tempo de realidade. A parte 3 é fora do tempo, é um tempo simbólico. Principalmente nessa terceira parte, queríamos sair do tempo cotidiano, entrando em um tempo diferente, o tempo da arte, o tempo do sensível, pois, como diz Sandra Cinto “percepção requer envolvimento” e abrindo esse espaço para o sensível que poderia vir o envolvimento. Desejávamos fazer experimentações com o tempo dilatado. O PÚBLICO NA CENA O que buscamos foi uma participação controlada do público, que podia responder as perguntas que a Mulher 1 lhe fazia, assim como escolher o final da ação cênica. Não trabalhamos com um verdadeiro improviso, mas com uma abertura para uma conexão. Outra preocupação que tivemos foi na condução dos espectadores, pois teríamos que deixar claro os momentos em que eles deveriam nos seguir e os que não deveriam. Assim, colocamos algumas falas ou ações esperando deixar clara a condução, sempre com delicadeza, verdadeiramente convidando o espectador à cena. FIGURINO O figurino das personagens remete ao passado. As cores estão entre o bege e o marrom. Elas usam saias longas e blusas com rendas e babados, sendo as

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roupas da Mulher 1 mais escuras e menos rebuscadas que as da Mulher 2. Quando a Mulher 2 está de noiva, no início, seu vestido é recatado e sem bordados. Possui apenas um arranjo na cabeça. A Mulher 1 quando passa de noiva, usa apenas um véu de tule na cabeça, já que a cena é apenas uma passagem e basta dar a referência que ela estava de noiva. No entanto, quando vemos as fotos da Mulher 1 vestida de noiva, percebemos que seu vestido era mais decotado e mais rebuscado. Ambas as personagens estão descalças o tempo inteiro. CENÁRIO Os tons de bege e marrom também acabaram impregnando outros objetos, como as fotografias antigas do cenário, a mala da Mulher 1, os envelopes no túnel, as folhas e galhos secos no nicho da parte 3. Sobre o cenário, o mais importante é que o verdadeiro cenário é a Casa. Nós trabalhamos apenas tentando criar ambientações. Nos lugares em que se passa o prólogo, não fizemos nada senão retirar mesas e sofás que ficavam no ambiente, fechar as entradas de luz e banhar o salão vermelho com luz vermelha. Também fechamos a entrada do túnel que dava para ver logo que o público entrava no salão. Na parte 1, o único elemento era uma espécie de carretel grande, em um tom de bege. Queríamos que quando a Mulher 1 abrisse a porta, ela visse a Mulher 2 no alto. Como não conseguimos que a

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Mulher 2 subisse nos degraus da chaminé, optamos por colocá-la sobre esse carretel. Além disso, foi o formato circular e o desnível que existe embaixo da chaminé que fez com que o lago surgisse na cena. Pensamos se colocaríamos água ou não, mas a luz azulada que entrava pela chaminé já trazia a imagem dessa água, sem que ela realmente precisasse existir. Foi no começo do túnel, onde acontecia a parte 2, que tivemos uma intervenção maior. Penduramos em fio de nylon envelopes vermelhos e beges envelhecidos no fogo. Também decidimos colocar fotos das duas vestidas de noiva, fotos antigas. Fotografamos, passamos a imagem para o sépia, tentamos fazer um formato quadrado, que nos pareceu mais antigo e cortamos com tesourinha de desenho para dar a sensação de foto antiga. Nesse espaço, também desejávamos fechar o fundo com um espelho, que refletisse a cena e não desse a sensação de fim ao túnel. Eu tinha um amigo que possuía um acrílico revestido com um laminado espelhado de diâmetro 2,00m. Porém, não consegui transportar a peça para a Casa das Caldeiras. Diante da impossibilidade de trabalhar com esse espelhamento, nossa única opção foi fechar o fundo com uma lycra preta. A parte 3 se passa dentro do nicho que enchemos com folhas e galhos secos. TRILHA SONORA Quanto à música, como não tínhamos operador, a solução foi gravar um cd com uma seqüência musical,

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baseando-nos nos climas da peça e especulando a duração de cada parte da ação.

ambientação e que era exatamente o que mais queríamos para a performance.

Com relação às músicas escolhidas, usamos as que mais gostávamos e que tínhamos trabalhado nos ensaios, que eram de Händel1 , Satie2 e Glass3 . Não houve tampouco uma pesquisa sobre músicas de uma certa época ou algo assim. Escolhemos as que nos inspiraram em ensaios, com as quais já tínhamos criado muitas cenas e que, a nosso ver, traduziam o clima de cada uma das partes da intervenção.

Já a música cantada pela Mulher 1 é de Antônio Nóbrega4 e veio em uma improvisação. Era conhecida pela Sandra através da montagem de Romeu e Julieta do Grupo Galpão, mas antes disso fez parte da minha infância no LP Brincadeiras de roda, Estórias e Canções de Ninar.

A música de Handel aparece apenas na parte da noiva, pois é mais rebuscada e acreditamos ter uma boa relação com o casamento. Já Satie a Glass têm músicas com as quais facilmente sentimos criar uma

Embora desejássemos trabalhar com os sentidos dos espectadores, poucas coisas foram usadas. No Salão Vermelho, no momento do casamento, havia docinhos servidos ao público, trazendo-os como convidados da festa.

1 Gerg Friedrich Händel (1685-1759) Compositor alemão, naturalizado cidadão britânico. Mestre do barroco musical europeu. 2 Erik Satie (1866-1925) Compositor e pianista francês. Precursor do minimalismo. 3 Philip Glass (1937-) Compositor norte americano. Sua música é conhecida como minimalista.

SOBRE A EXPLORAÇÃO DOS SENTIDOS

Durante a ação cênica, os espectadores precisavam se apoiar nas paredes da Casa e isso fazia com que eles tocassem e sentissem a textura dos tijolos do túnel. Como visão e audição são elementos dominantes no teatro, faltou-nos a exploração do olfato.

4 Antônio Carlos Nóbrega (1952-) Artista e músico pernambucano. Desenvolve um intenso trabalho ligado à cultura popular nordestina. 32| Vendaval


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PRÓLOGO MULHER 1 vem de longe carregando a mala pesada. Às vezes pára, olha longe. Seu olhar é vago. Ela está pálida. Busca o caminho, mas esquece que, mesmo não querendo, o caminho já a escolheu. Anda encostando na parede de tijolos. Ela faz algumas paradas porque o caminho é bonito, o caminho é feio, o caminho é perigoso,o caminho dá fome de continuar andando. Quando ela pára, o peso da carga faz com que ela se lembre do que não pode esquecer. Ela pára e se senta no meio fio. Ela se aproxima do público e pousa a mala no chão. O vento balança seus cabelos e sua saia. Olha para o fundo do caminho de onde veio. Ela olha para cada um dos espectadores sem se mover. Olha longe novamente e então pega a sua saia e balança. Dança com o vento. E sobe a saia mostrando seus pés descalços e sua perna. A mulher pega então sua mala de novo, passa no meio do público sussurrando algo que não se compreende bem. MULHER 1: Quantas pedras você carrega em sua mala? Você tem um agasalho caso o frio arranque a sua pele? Quando seus pés sangrarem alguém te carregará ou você vai ter que caminhar mesmo assim?

Ela pega uma bandeja com camafeus e entrega para as pessoas do público. MULHER 2: Aceita um docinho? Então ela puxa as pessoas para dentro do salão vermelho. MULHER 2: Venha dançar, você está convidado! Quando a MULHER 2 vê a MULHER 1 elas ficam um momento se olhando. A MULHER 2 parece assustada com a presença da MULHER 1 e, depois de um tempo, vai embora. É nesse momento que a MULHER 1 entra no Salão Vermelho. Ela faz perguntas ao público. MULHER 1: Vocês estão gostando dessa festa? Ela então atravessa o salão e encontra uma porta de ferro. Pára na frente da porta. Olha para a porta e para o público. Então ela entra pela porta de ferro levando o público com ela.

O vento leva-a até a porta e ela entra e traz o público com ela. Então ela encontra um salão vermelho. Nele, a MULHER 2 está vestida de noiva e age como se celebrasse seu casamento. A MULHER 1 fica olhando. MULHER 2: É uma linda festa, não? Que bom que vocês vieram! Vendaval|35


Silêncio MULHER 2: Quatro!!! A MULHER 2 segura a MULHER 1 pela cintura para que ela tente ver estrelas mais longe. Elas tomam cuidado para não cair no lago que é o círculo da chaminé no chão. MULHER 1: Cinco! Seis!! Sete!!!!!

PARTE 1 – Crianças

MULHER 2: Oito!!!

Quando a MULHER 1 entra, ela está embaixo da chaminé e vê a MULHER 2 de costas em pé em cima de um banco. A MULHER 2 não está mais vestida de noiva. A MULHER 1 acomoda o público perto das paredes, pousa a mala perto do banco, se aproxima, fica aos pés da MULHER 2 e os abraça. A cena fica parada assim um momento. Então a MULHER 2 se vira e começa a fazer carinho nos cabelos da MULHER 1. Aos poucos a MULHER 2 vai fazendo uma trança nos cabelos da MULHER 1.

Então elas puxam as saias e encostam os pés e as mãos no lago, como se vissem a temperatura da água. Está muito gelada. Elas riem.

MULHER 2 (trançando os cabelos): Um, dois, três... um dois, três... um dois, três...

MULHER 1: Você tem coragem?

A MULHER 1 adora e ri de vez em quando. Aos poucos elas passam da trança para uma contagem de estrelas. Elas saem do banco e vão até a borda do círculo da chaminé e começam a contar estrelas pelas paredes da chaminé. MULHER 2: Um, dois... MULHER 1: Três!

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MULHER 1: Nossa! Que frio! MULHER 2: Gelado!! Silêncio. MULHER 2: Queria tanto entrar...

MULHER 2 (depois de um breve instante, meio


em dúvida): Claro! A MULHER 1 fica olhando para a MULHER 2. Então a MULHER 2 segura bem a saia, toma coragem e entra no lago. Ri, grita e pula de frio andando pelo lago. As duas riem muito. A MULHER 2 sai do lago e abraça a MULHER 1. A MULHER 2 senta na beira do lago e olha longe. A MULHER 1 começa a cantar. MULHER 1: Flor, minha flor, flor vem cá... MULHER 2: Eu nunca vou esquecer aquele dia... MULHER 1: Flor, minha flor, laralaralara... MULHER 2: Quando eu o vi pela primeira vez... MULHER 1: Flor, minha flor, flor vem cá...

MULHER 2: Aqueles olhos castanhos me olhando... MULHER 1: Flor, minha flor, laralaralara... MULHER 2: Eu já sabia que minha vida se arruinaria... MULHER 1: O anel que tu me deste, flor vem cá... MULHER 2: Eu tentei evitar... MULHER 1: Era vidro e se quebrou, flor vem cá... MULHER 2 (retira do seu pescoço um camafeu e o olha): Mas eu já o amava... MULHER 1 (pega a mala): O amor que tu me tinhas, flor vem cá... Vendaval|37


A MULHER 2 abre o camafeu e beija a foto. MULHER 1 (tomando o camafeu dela): Era pouco e se acabou, laralaralara... A MULHER 1 coloca o camafeu no pescoço, pega a mala e vai para dentro do túnel. A MULHER 2 entra então no círculo atônita. Olha para o público. MULHER 2: Esse lugar cheira mofo... A MULHER 1 passa atrás devagar, com o camafeu no peito e um buquê de flores nas mãos, como uma noiva. A MULHER 2 se vira e vê, e aos poucos seu corpo vai tombando no meio do círculo. Depois ela se levanta e vai caminhando então em direção ao túnel, levando o público com ela.

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PARTE 2 – O Embate Quando a MULHER 2 chega no túnel vê a MULHER 1 parada com o camafeu no peito olhando para ela. O túnel está repleto de cartas em envelopes brancos e vermelhos e fotos antigas com as duas vestidas de noiva pendurados por suas paredes. Longo silêncio. As duas se olham fixamente. Tensão no ar. A MULHER 1 vem andando em direção a MULHER 2, passando a mão por todas as cartas. Ela tira

uma carta. A MULHER 2 se apóia na parede. A MULHER 1 abre a carta e a MULHER 2 cai no chão. Então a MULHER 1 começa a ler a carta, enquanto a MULHER 2 chora. MULHER 1(lendo): Depois daquele dia, o cheiro de seus cabelos ficou em mim, impregnado como perfume barato. E agora não consigo pensar em outra coisa, só em você. No seu cheiro, na sua pele, na sua voz. Quando vou te ver de novo? Quando? A MULHER 1 deixa a MULHER 2 no chão e volta a sua posição inicial, como uma vencedora. MULHER 2 se levanta e vai por trás da MULHER 1, toma-lhe o camafeu, coloca no seu pescoço e se afasta. MULHER 1: Você não podia ter feito isso. MULHER 2: Ele é meu marido. MULHER 1: Ele não te ama. MULHER 2: Ele está comigo. MULHER 1: Olha essas cartas! (mostra as cartas ao redor) Vê se ele já escreveu alguma coisa assim para você. MULHER 2: Ele queimou suas cartas na minha frente. MULHER 1: Ele queimou porque não consegue me esquecer! MULHER 2: Ele não quer mais te ver. MULHER 1: Ele nunca vai te escrever isso. Vendaval|39


MULHER 2: Ele falou que você é o diabo. As duas começam uma briga corporal. Quando elas se separam, a MULHER 1 corre pelo espaço, arranca um monte de cartas das paredes e mostra para a MULHER 2. MULHER 1: Olha. (Silêncio) Ele não te ama. Vai, lê! Lê o que você nunca vai ter. A MULHER 2 rasga então todas as cartas. MULHER 2: Você não sabe amar. MULHER 1: Eu te amo. A MULHER 2 se afasta e pega a atadura, enrola nos olhos. Segura sua saia e começa a caminhar. A MULHER 1 vai cochichando para o público MULHER 2: Desde criança ela roubava meus namorados. A MULHER 1 tenta atrapalhar a caminhada da MULHER 2. Então ela pára na frente da MULHER 2 e arranca-lhe as ataduras dos olhos. A MULHER 2 vai tirando a atadura do rosto e enrolando-a na mão. Elas se olham fixamente. A MULHER 2 vai se aproximando da MULHER 1. Primeiro elas dançam, como em um embate, sem se encostar. Então a MULHER 2 passa a atadura em volta da MULHER 1 e tenta apertá-la, enforcá-lá. Mas a MULHER 1 se desvencilha e começa a puxar a atadura da MULHER 2. Elas fazem um cabo de guerra com a atadura. Depois de um tempo a MULHER 1 vai ganhando, e quanto mais ela consegue puxar a atadura, mais a MULHER 2 vai 40| Vendaval


e ele sempre será meu. E isso você vai ter que engolir. MULHER 2: Por que você voltou? Você só sabe arruinar a vida das pessoas. MULHER 1 (sarcástica): Pode ficar com ele, com os restos dele. Agora que ele está velho, que você está velha. Fica com o que eu deixei sobrar pra você.

caindo, deitando-se no chão, quase na posição de morta. A MULHER 2 está na posição de morta e falta só um pouquinho da atadura para a MULHER 1 puxar e vencer, mas ela desiste e joga toda a atadura em cima da MULHER 2 e sai. Esta, devagar, pega toda a atadura, une na forma de um bebê e coloca a atadura-bebê como que mamando no peito. Silêncio. MULHER 2: Sabe quem perguntou de você? O barão. Quem sabe você ainda possa se casar. A MULHER 1 cospe na saia da MULHER 2. Silêncio. MULHER 1: Ele não ama você. Ele me ama. Sempre me amou. MULHER 2: Foi uma bobagem, naquela época ele era um menino. Mas hoje ele é um homem. E foi comigo que ele se tornou um homem. MULHER 1: Você pode ficar com ele, mas ele é meu

MULHER 2: É verdade, ele te amava mesmo. E você podia ter ficado com ele e o feito feliz. Mas você é egoísta. Foi pra mim que ele veio quando estava partido. E eu superei minha dor para cuidar dele. Por que você faz isso? Ele faria tudo por você. Mas você foi incapaz de fazê-lo feliz. Você destruiu a vida dele. MULHER 1: Você não sabe de nada. Eu tenho pena de você, porque ninguém cuida de você. Porque sempre fui eu quem cuidou de você. E você vem me falar de amor? Ninguém olha para você. Você é fraca. Tudo bem ser fraca. MULHER 2 dá um tapa na cara da MULHER 1. MULHER 2: Ele teria ficado com você, mas você o abandonou. Desde pequena você é assim. O papai quase enlouqueceu quando você sumiu aqueles três dias. E você pensou em alguém quando você foi embora? Minha irmã, você acabou com todo mundo que te amava. MULHER 1: Sai! MULHER 2: Você só pensa em você. Você não sabe o que é o amor. Você não é capaz de amar ninguém. MULHER 1: Vai embora! Vai embora!

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A MULHER 2 sai e a MULHER 1 fica sozinha no chão. Percebendo-se sozinha, ela chora. A MULHER 1 começa a recolher as fotos e cartas e levar até a mala. Quando abre a mala, ela está cheia de folhas secas. Ela continua guardando as coisas na mala. Pega então a mala, meio desajeitada, sem conseguir fechá-la e caminha assim, com a mala aberta em direção à porta de ferro. A mala cai aberta, espalhando as coisas dela pelo chão. Ela olha para as coisas, pega uma das cartas e começa andar de costas em direção à porta. Mas decide não ficar com a carta e joga-a no chão. Fala com o público. MULHER 1: Você também tentou guardar alguma coisa que te escapou? (Público responde. Interação.) MULHER 1: Você já teve que deixar alguém que você amava muito? (Público responde. Interação.) MULHER 1: Você já teve que mandar alguém embora mesmo querendo que ele ficasse? (Público responde. Interação.) Ela então segura a mão de alguém, como quem se agarra nas paredes e passa pela porta de ferro, a intenção é de levar as pessoas para o outro local. Depois de passar, vai soltando a mão dessa pessoa.

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PARTE 3 – O julgamento A MULHER 1 vê em um nicho cheio de folhas e galhos secos a MULHER 2, que pega folhas no chão e tenta colocá-las de volta nas árvores. Cada vez que ela pega as folhas, suas mãos se enchem de sangue. MULHER 1: Pensei que você já estivesse longe... Silêncio. A MULHER 1 entra no nicho da MULHER 2. O diálogo entre elas é pausado. MULHER 2: O amor perfeito que eu plantei nunca floresceu. A MULHER 1 começa a fazer o mesmo gesto da MULHER 2. MULHER 2: Como é viajar de trem? Silêncio. MULHER 1: Da janela do trem, os campos de lavanda não têm cheiro. Silêncio. Elas continuam pendurando as folhas e aos poucos elas estão muito ensangüentadas. Elas se olham e se vêem. Elas se aproximam e se beijam. Então elas viram para o público e começam a falar. MULHER 1: Essa menina, Maria Cândida, ela morria de medo do lago. MULHER 2: Era tanto medo que tinha pesadelo que Vendaval|43


morria afogada.

MULHER 1: Então um dia, ela resolveu.

MULHER 1 pega uma bacia e coloca sobre o pedaço elevado do chão, transição entre o nicho e o túnel.

MULHER 2: “Maria Cândida, você pode vir aqui um pouquinho?”

MULHER 1: Já a Ana Elisa esperava pelos dias de sol para mergulhar no lago. Ela adorava.

A MULHER 2 começa a jogar a água na bacia da MULHER 1 que mexe vigorosamente e faz lama. Elas fazem as ações com muita energia.

MULHER 2: E não se conformava quando todo mundo entrava no lago e Maria Cândida só ficava olhando.

MULHER 2: Maria Cândida não morreu

MULHER 2 pega uma jarra de água enquanto a MULHER 1 despeja terra na sua bacia.

MULHER 2: E elas nunca mais contaram estrelas juntas.

AS DUAS: Ela tinha certeza que se a Maria Cândida entrasse, ela ia gostar.

MULHER 1: Maria Cândida.

MULHER 1: Mas ela engoliu muita água.

MULHER 2: Ana Elisa.

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Elas se olham calmamente. MULHER 1: A gente precisa se limpar. MULHER 2: Com qual das águas? Elas pegam um caneco e entregam para o público, enquanto cada uma estende o seu jarro para eles. AS DUAS: Com qual das águas? Um por um dos espectadores devem escolher qual água colocar no jarro de cada uma das mulheres. Quando todos tiverem feito suas escolhas, cada uma delas vira o seu jarro em cima de sua cabeça.

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EPÍLOGO – PERDÃO Se elas as duas forem banhadas com água limpa, elas se olham, se abraçam, saem do nicho, se afastam das pessoas, olham para as pessoas com um sorriso de agradecimento e saem correndo de mãos dadas e rindo para o fundo do túnel.

EPÍLOGO – CONDENAÇÃO Se as duas forem banhadas com água de lama, elas se olham, e então deitam no nicho, se cobrem com as folhas secas e ficam imóveis.

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EPÍLOGO – PERDÃO E CONDENAÇÃO Se uma delas estiver com lama e a outra não, a que estiver limpa vai embora, desprendendo-se desse passado e a que está suja, fica, olha a outra ir embora e se senta.


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Análise e Avaliação


Tendo fechado o trabalho e o apresentado, posso enfim fazer uma análise. Vou falar sobre a simbologia dos elementos usados e avaliar as escolhas de acordo com o resultado cênico. TEMA Embora tenhamos começado todo o trabalho com a pesquisa da linha férrea e da história da Casa, pouco disso se vê no que foi apresentado. O segredo, que surgiu depois, tornou-se protagonista da história e se tratava da paixão de uma mulher pelo marido da outra. De início, apenas uma seria casada com este homem, que trairia (ou não) a esposa para ficar com a irmã. Porém, nas improvisações, essa questão tomou outro rumo quando decidimos que as duas se casariam com o homem. Isso revelou o segredo. Deste modo, os objetos e as trajetórias, que surgiram por causa do segredo, tiveram que ganhar novos significados para permanecerem em cena. O que aconteceu não é essencialmente ruim. A mudança em si não é ruim, mas as mudanças podem gerar angústias, já que o resultado se distanciou da idéia inicial. Porém, acredito – e desejo - que alguns elementos dessa memória industrial e da linha férrea possam ser recuperados para a peça no ano que vem. ESPAÇO Mesmo com as mudanças, o espaço continuou a inspirar as cenas. A mulher que vem caminhando de longe só surgiu porque havia aquela rua comprida dentro da Casa das Caldeiras. A mesma coisa aconteceu com a

noiva no salão vermelho ou com o lago onde as meninas brincam: o espaço criou a ação. Além disso, o local principal da performance foi o túnel direito da Casa, que nos intrigou desde o primeiro dia. Ele foi escolhido depois de experiências por outros espaços, não só por ser um lugar muito expressivo, mas também porque se relacionava diretamente com o tema, já que remete a um subsolo, a um esconderijo, e é nesse tipo de lugar, escondido em nosso ser, que guardamos os mais importantes segredos. Também as pesadas portas de ferro representam as portas que protegem e aprisionam o segredo, e marcam transições de cenas significativas para nós. No texto de Clarissa Pinkola Estés , que serviu de referência para a criação da intervenção, fala-se: “Portanto, o que faz a mulher quando descobre que o segredo está vazando? Ela corre atrás dele com enorme dispêndio de energia. Ela o alcança, o embrulha e o enfurna de novo na zona morta. Ela chama seus humunculi – os guardiões internos e defensores do ego – para que construam mais portas, mais paredes.”1 Embora o segredo tenha perdido a sua força, a trajetória criada por ele foi ressignificada pelas improvisações que trabalharam as temáticas definidas para cada espaço do percurso. Havia uma grande vontade de explorar o 1 ESTÉS. Mulheres que correm com os lobos. Capítulo 13 – Marcas de Combate: A participação no clã das cicatrizes. p.467 Vendaval|49


contraponto da horizontalidade do túnel em relação à verticalidade da chaminé. Queríamos que quando a Mulher 1 entrasse pela porta de ferro, ela visse a Mulher 2 no alto da chaminé. Isso, porém, não foi possível, pois os degraus de ferro não eram confiáveis. Haveria também a necessidade de usar um cinto, sem contar a dificuldade de subir e descer e a impossibilidade de fazer a cena de noiva antes. Deste modo, optamos por colocá-la no alto de um banco.

era na vida da personagem. Com a diminuição da importância do segredo, essa mala passa a representar o passado dessa mulher, que embora dele tenha fugido, não o consegue abandonar. Quando tenta colocar as fotos de volta na mala é como se ela quisesse voltar no tempo, guardar o passado. Mas na sua pressa ao fechar a mala e sair, deixa-a cair, revelando seu conteúdo. Então para passar pela porta, a Mulher 1 abandona a sua mala.

SÍMBOLOS Prólogo Um dos primeiros elementos que temos é a mala imensa que a Mulher 1 carrega. Ela veio para representar o peso do segredo e o fardo que isso

A mala escolhida tinha uma trava que impedia a sua abertura total. Não queríamos remover essa trava, pois em um momento que se precise abrir a mala sem revelar todo seu conteúdo para o público, ela pode ser necessária, mas isso fez com que fosse mais difícil

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deixá-la cair aberta. E no dia da apresentação, a mala acabou se fechando. Os pés descalços trazem o signo da fragilidade, mostram um despreparo. É uma parte sensível que facilmente pode ser machucada e representa o calcanhar de Aquiles dessas mulheres. As cores das roupas em matizes do bege ao marrom relacionam-se com a idéia de sépia, de antigo, além de combinarem com os tijolos e portas de ferro do espaço. Como queríamos o clima que remetesse ao passado antigo, fomos a um brechó. Não tivemos tempo de fazer uma pesquisa de época e descobrir qual o figurino indicado, mesmo porque não chegamos a fechar absolutamente qual era a época em que a ação se passava. Nesse momento, bastavanos saber que era em um tempo passado, num tempo em que o trem transportava passageiros para um futuro novo na capital do Estado. Além disso, a roupa da Mulher 1 é menos ornamentada que a da Mulher 2, pois enquanto esta vive em sua casa com seu marido, àquela partiu sozinha pelo mundo e certamente abandonou qualquer luxo que pudesse ter. A noiva era uma imagem que existia há tempos em nossas mentes e estava até mesmo na origem do tema do segredo, que perdeu força no meio do processo. Porém, ao final, reapareceu em uma improvisação no meio do Salão Vermelho, criando uma imagem impactante. Remeteu-nos ao filme “Gritos e Sussurros” de Bergman, onde mulheres todas de branco andam pelos espaços completamente vermelhos da sua casa gerando uma imagem simbólica muito potente. A noiva branca nesse espaço vermelho representa a ruptura entre as mulheres, o Vendaval|51


sangue, a ira, que esse casamento traz para a vida da Mulher 1. Usamos também uma espécie de camafeu, que continha a foto do homem amado pelas duas. Esse objeto já apareceu nas improvisações e mantivemos na intervenção, representando o casamento ou o homem que elas amavam e acabaram disputando. Então, quando pensamos em servir um docinho de casamento para os espectadores, escolhemos exatamente o camafeu. Além da coincidência do nome e de ser muito usado em casamentos, ele tem a sua cor externa branca, mas quando é mordido, se revela de outra cor. Parte 1 Na parte 1, o carretel sobre o qual a Mulher 2 estava quando a Mulher 1 entra pela porta de ferro era um objeto da casa das Caldeiras, que escolhemos para trabalhar. Achamos que sua altura era perfeita, deixando a Mulher 2 no alto, e ainda servia de assento para a cena. Além disso, seu formato é elegante, e traz certa instabilidade que é interessante para a cena, como se a personagem subisse em uma mesa, em um lugar que não foi feito para subir. E também tinha uma cor bonita e remetia a uma imagem que a Sandra havia pensado: as duas mulheres conectadas por um monte de fios. O buquê de flores secas apareceu para compor a imagem da Mulher 1 como noiva. Ele é seco não só porque essa noiva é do passado, mas porque tendo a Mulher 1 abandonado seu marido, ela destruiu a relação. Então, esse amor entre eles não estava florescido, estava seco, velho, duro.

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Parte 2 Na parte 2, o cenário tem envelopes beges envelhecidos e vermelhos, além de fotos, pendurados em fios de nylon. Os envelopes são as cartas que há muito tempo apareceram nos nossos ensaios e que foram transformadas em cartas de amor entre a Mulher 1 e o Homem. O vermelho traz a paixão dos amantes, mas também a cólera entre as irmãs. Além disso, o fato de estarem pendurados em fio de nylon deixava-os sujeitos a ação do vento, ganhando movimento e trazendo uma sonoridade para a cena. As fotos serviam para reforçar o clima de antigo, já que tentamos fazer com que elas parecessem antigas e também para mostrar ao público que as duas se casaram. A faixa de ataduras usada em cena também veio de improvisos. Acredito que seja o elemento menos realista que temos. Está presente no momento da discussão onde a Mulher 2 ainda nega que o seu marido ame a Mulher 1. E a atadura vem como o símbolo dessa cegueira desejada, pois ela não quer ver o que a desagrada, já que para poder viver com ele, ela precisou superar isso. Nesse espaço, lamentei não ter conseguido instalar o acrílico reflexivo, pois além de deixar o túnel sem fim, duplicaria as personagens e possibilitaria ao público ver-se refletido e perceber melhor a sua participação na composição da cena. Também remetia a Dan Graham, artista que eu havia estudado como referência e que muito me interessara. Eu imaginava que com a luz, poderia fazer a Mulher 2 aparecer do outro lado do acrílico, possível de ser vista, mas não de ser tocada pela Mulher 1, coisa que acontece na obra de Graham.

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Parte 3 Para a parte 3, o espaço escolhido, no nicho entre as duas portas de ferro, coloca personagens e público no meio do túnel. É um ponto onde não se tem mais contato visual com a porta pela qual se entrou e ainda não se vê a saída, trazendo a possibilidade de ficar preso entre as duas portas. O elemento de partida aqui foi o sangue. Ele vinha ainda do texto de Clarissa quando ela falava das cicatrizes que o segredo trazia: “o seu resgate [do

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segredo] cura uma ferida que esteve aberta, mas mesmo assim ficará uma cicatriz. Com mudanças no tempo, a cicatriz pode doer e voltará a fazêlo.” 2 Precisávamos dessa ferida, dessa cicatriz e por isso queríamos o sangue. Porém precisávamos pensar em um jeito poético para fazê-lo aparecer. Havíamos visto, na própria Casa, umas árvores secas, provavelmente de algum evento, jogadas no lixo. No 2 ESTÉS. Mulheres que correm com os lobos. p. 474


mesmo momento, sentimos que elas deveriam estar dentro do nicho. Árvores secas, galhos secos, folhas secas. Secos pelo tempo que passou, secos pelo amor ressecado. E se tivéssemos galhos secos nas paredes e folhas secas no chão, era uma morte e tinha um significado interessante nesse momento: poderia haver o renascimento (da árvore, das mulheres) ou poderia ficar sempre seco. Isso dialogava com o julgamento. E então, optando por essa ambientação do nicho, decidimos que o sangue estaria no meio das próprias folhas. Lembramos de uma bonita cena que aconteceu no workshop do Teatro da Vertigem e que nunca saíra das nossas almas: o Manuel enfiava as mãos em um monte de algodão branco e quando tirava, elas estavam manchadas de sangue e maculavam o branco algodão. Outros objetos são as bacias de alumínio e as jarras e canecas de louça. Precisávamos das peças para contar a história. Não tivemos muito tempo para resolver essa parte. Estávamos em dúvida entre o alumínio e a louça. Compramos algumas peças em alumínio, mas não gostamos de todas. E compramos em louça, mas as bacias eram pequenas para fazermos a lama e ainda sobrar lama e água para o julgamento do público. Vimos como seria misturar as duas e acreditamos que não era ruim. O brilho do alumínio remetia ao brilho do lago. Parecia um luar. Já as jarras brancas, como jarras de escalda-pés, eram referência a outro tempo e suas formas mais rebuscadas se ligavam às rendas e aos babados do figurino. O fato do veredito ser dado pelos espectadores está diretamente ligado ao julgamento que a sociedade faz das decisões que as pessoas tomam em suas vidas. Idealmente queríamos que no julgamento, o público Vendaval|55


ficasse em dúvida se condenaria ou perdoaria as personagens. Não acredito que tenhamos conseguido esse meio termo. A verdadeira tendência é que as personagens sejam perdoadas. Os elementos escolhidos foram a água para representar o perdão e a lama para a condenação. A água se relaciona com a limpeza, mas também com o batismo, o início de uma nova vida. Já a lama é claramente a maculação dessa água límpida. Apesar de gostar dos elementos escolhidos para representar o perdão e a condenação, o fato é que basta um pouco de lama para estragar a água limpa, ou seja, basta que uma pessoa do público condeneas para que elas sejam realmente condenadas, o que não mostra ser uma decisão democrática, como queríamos. Pensamos que, mesmo se o público escolhesse o perdão, as personagens não sairiam limpas. As pessoas superam seus traumas, suas dores, mas sempre fica uma cicatriz, que às vezes pode doer com a mudança do tempo. Ela é a memória do que foi vivido. A bonita imagem das duas mulheres sumindo no túnel, escapando para fora como a fumaça escapava, nos pareceu um símbolo de liberdade e perdão. Gostaria de ter usado fumaça na cena, mas não consegui o equipamento. Optamos pelas duas saírem correndo para que com isso o público não as seguisse. Poderíamos ter falado com o público também, mas gostamos da idéia delas correndo e rindo. Já para pensar em uma imagem de condenação, a imagem recorrente era a prisão. Muito embora elas ficassem presas no nicho, não se pretendia fazer 56| Vendaval


alusão a uma prisão real. Trata-se de uma prisão metafórica. Elas ficariam presas com o segredo, presas nesse passado, nessa briga, sem conseguir desatar esses nós. Quando pensávamos que apenas uma das mulheres seria condenada, por muito tempo ficou a imagem de que ela acabaria presa dentro da mala. Esta deveria, porém, ser muito grande, o que poderia atrapalhar as cenas anteriores. E, além disso, depois decidimos que as duas seriam julgadas, o que inviabilizou a imagem. Optamos então por deitarem no chão e se cobrirem com as folhas secas, como se elas também ficassem secas e sem vida. Como se este fosse o fim e não um recomeço. Pensamos, ainda, que talvez o público pudesse condenar uma e perdoar a outra. Se isso acontecesse, elas fariam as ações acima, mas cada uma seguiria o destino que lhe fora escolhido. Seria importante para aquela que fosse perdoada, ser capaz de abandonar o passado, a culpa e a irmã. A PRESENÇA DO ESPECTADOR Como ensaiamos sem a presença dos espectadores, não sabíamos se o sinal de condução seria compreendido. Por vezes, indicamos com palavras ou gestos o caminho a ser seguido. Outras, conduzimos através do toque. Esperamos também que quando o código estivesse estabelecido, o simples andar do ator já pudesse fazer com que o público decidisse acompanhá-lo. O problema é que isso precisaria ser testado com pessoas que não conhecessem a intervenção, o que não nos foi possível. Acredito que a condução funcionou na apresentação, mas é bom lembrar que não se tratava de um público comum. As pessoas que registravam a apresentação já conheciam a trajetória. Meu pai seguiria a minha mãe Vendaval|57


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que já conhecia a trajetória. Já os dois professores da banca eram os que não sabiam de nada. Porém são pessoas já acostumadas com essa condução e não nos permite ter a real percepção do que aconteceriam na cena. A participação do público foi menor do que gostaríamos. Desejávamos que eles fossem mais envolvidos na criação da cena. Mas não houve tempo para o desenvolvimento dessa interatividade. Apenas fizemos algumas perguntas aos espectadores e pedimos que escolhessem uma das águas do julgamento. Mesmo assim, o rumo da cena claramente influenciava o público a escolher a água limpa. NOMES Uma das maiores dificuldades que sentimos foi na escolha do nome do trabalho. Isso não nos era inédito. Em Crisálidas, estávamos na oitava versão do texto e o nome ainda não existia. Decidimos o nome no dia em que a performance foi apresentada e não ficamos plenamente satisfeitas. Escolhemos Vendaval principalmente porque traz um prenúncio da tempestade. Além disso, o vento sempre esteve presente nos nossos ensaios. Venta muito naquela rua interna da Casa onde a performance começa. E também venta nos túneis, afinal era por causa dessa corrente que a fumaça produzida pelas caldeiras era conduzida pelas chaminés para fora da edificação. Além disso, podemos pensar que o vento tanto pode trazer nuvens negras e tormentosas de tempestade, como pode levá-las embora, abrindo o céu. Como se o vento levasse a personagem de volta para seu

passado e, dependendo do final, pudesse levá-la, leve como fumaça, para outro momento de sua existência. Sobre a importância do nome das personagens, já trabalhávamos esse tema desde Crisálidas. O nome como elemento que marca uma individualidade, fixa a existência de uma pessoa, carateriza-a. A partir da exposição do nome, as personagens deixam de ser mulheres quaisquer para assumirem as suas individualidades, as suas histórias. Embora nomes de personagens tivessem surgido no processo, quando estávamos fazendo o texto da performance, eles foram abandonados e nós trabalhávamos apenas com Mulher 1 e Mulher 2. E foi só 5 dias antes da apresentação, que fechamos o texto e os nomes acabaram voltando. Ana Elisa havia surgido em uma carta que escrevi após um ensaio quando eu procurava um nome com cara de antigo. Já Maria Cândida é o nome da Secretária de Cultura de Mairinque, que descobrimos em nossa visita à cidade, e decidimos levar para a cena. No entanto, no texto, optamos por manter as personagens descritas como Mulher 1 e Mulher 2 para não antecipar o momento de revelação. SOBRE O TEMPO Com relação ao tempo na cena, embora desejássemos no início do processo poder trabalhar com uma transtemporalidade (personagens do presente podendo se relacionar com personagens do passado) ou usar saltos temporais, isso não apareceu na performance. Acabamos trabalhando praticamente com um tempo único. A dramaturgia teve uma certa linearidade temporal. Mesmo que não fosse verdadeiramente linear (pois Vendaval|59


a Mulher 1 vai do seu presente para seu passado, volta para o presente e então passa para um tempo simbólico), a apresentação não exigiu que o espectador construísse a história, pois possuía uma única versão do conflito. Isso não é ruim, é apenas uma característica diferente daquilo que imaginamos no início do trabalho. A ação acontece em algum tempo no começo do século XX, provavelmente pelo fato de termos pesquisado a história da Casa e do trem. Não nos preocupamos em escolher exatamente um tempo definido. Nesse momento, bastava-nos que o público entendesse que as personagens pertenciam ao passado.

pesquisa e também a definição de que época em que se passa a cena. Talvez para a peça, essa pesquisa possa ser feita. EXPERIÊNCIA SENSORIAL O nosso desejo de explorar o lado sensorial do público também não conseguiu espaço nesse trabalho. Embora saibamos que o tato é trabalhado quando eles precisam se encostar em uma parede de tijolos para assistir a cena e o paladar quando ganham docinhos de nozes, pensamos que esse é apenas o início dessa exploração, que ainda tem muito campo para se expandir. SOLUÇÕES MUSICAIS

Na parte 1, as mulheres vão para a época em que eram jovens e sonhadoras. Já a parte 3 trata de um tempo simbólico, onde queríamos trabalhar a dilatação deste tempo. Porém não ensaiamos o suficiente e a correria do dia da apresentação fez com que entrássemos muito nervosas em cena, atropelando pausas e tempos internos, o que acabou deixando tudo com um ritmo parecido. Acredito que com mais tempo e com o trabalho de um dramaturgo, conseguiríamos explorar variações e misturar tempos na mesma cena. LINGUAGEM A ação se desenrolava em um tempo passado, portanto a maneira de falar deveria ser diferente. Porém, para pensarmos na construção dessa linguagem, seria necessário muito mais tempo de

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O fato de não termos um operador de som realmente foi complicado. A nossa solução de gravar um cd com músicas na ordem e mais ou menos no tempo de cada cena não deu certo. No dia, estávamos nervosas e acabamos acelerando toda a ação, o que criou um descompasso entre a trilha e a cena. Porém, isso não prejudicou o desenvolvimento da apresentação, já que a música tinha a função principal de criar um clima e não de ditar a ação das personagens. Inclusive, os espectadores com que pude conversar não notaram uma oposição entre a cena apresentada e o clima da música. PARCERIAS No processo colaborativo, a idéia é que as funções continuem a existir, embora aceitem colaboração dos outros artistas envolvidos. Nesse nosso trabalho, por falta de parceiros, nós, as atrizes, tivemos que assumir todas as funções.


Acredito que isso gerou prejuízo na construção cênica. Não só tínhamos limitações de luz e som, por ausência de criadores e operadores, como também problemas na direção da performance e, principalmente, na dramaturgia. Faltou profundidade às personagens e ao conflito (em parte decorrente da ausência do dramaturgo, mas também pelo pouco tempo que tivemos para escrever o texto). Muitos elementos que já havíamos trabalhado antes se perderam e a discussão ficou um pouco rasa. O acúmulo de funções gerou uma correria no dia de apresentação, fazendo com que não sobrasse tempo adequado para o aquecimento e a concentração. Acabamos errando as marcas de cena, o texto e apressamos as ações, não conseguindo trabalhar os diferentes ritmos de cada uma das partes. Além disso, muitas vezes estávamos mal posicionadas ou falávamos muito baixo, prejudicando a percepção do público. A presença de um diretor resolveria esse tipo de situação, pois ele traz esse olhar externo, essa visão de conjunto, preocupando-se com a realização de cada parte, mas também da obra como um todo. Deste modo, podemos concluir que, para a continuação do trabalho na Casa das Caldeiras, tornase imperativo o estabelecimento de parcerias com outros artistas de modo a criar uma verdadeira peça, com a relevância e a profundidade que esta deve ter.

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Consideraçþes Finais


Jamais esquecerei o dia em que entramos pela primeira vez na Casa das Caldeiras como artistas residentes. O espaço era tão grande e nós apenas duas mulheres pequenas. Com aquela imensidão toda nos rodeando, assombradas, não sabíamos sequer por onde começar. Pés descalços no chão e, em um instante, estávamos correndo, rindo e criando pelos diferentes lugares da Casa, que nos acolhia com generosidade. Tenho aqui que falar da importância de se ter um lugar onde seja possível experimentar, onde o processo de trabalho seja valorizado. Assim é o espaço das Caldeiras. Ele acolhe os artistas e os deixa livres para fazer suas pesquisas, sabendo que as transformações são parte intrínseca do caminho. As mudanças entre o desejo inicial e a forma tomada pelo trabalho são o verdadeiro aprendizado, pois a obra se dá na sua materialização. E isso nós vivenciamos. Poder experimentar a criação a partir do espaço foi uma experiência realmente inédita. A Casa nos inspirava a cada dia. Os ensaios de manhã com o sol na janela eram completamente diferentes dos noturnos. E nesse diálogo entre a arquitetura e o teatro surgiam cenas, inquietudes e vontades de investigar algo novo. Também surgiam angústias, ansiedades, dúvidas e problemas que aprendemos a acolher e entender que as crises são parte do processo.

já trabalhamos anteriormente. Além disso, é nítido que não conseguimos guardar em nossa memória tudo o que vivenciamos. Sem o registro, muitos elementos se perdem. Por isso, grupos como o Teatro da Vertigem e o Théâtre du Soleil, que trabalham com improvisação, filmam seus ensaios, registrando o material espontâneo que é de grande valor. O trabalho em equipe é sempre muito rico e complexo. Porém, torna-se necessário aprender a lidar com os parceiros, sabendo quando respeitar seus tempos e quando exigir seu envolvimento. Queríamos também ter trabalhado com outros criadores. Mas a solidão nos serviu para que nos apropriássemos completamente do projeto, celebrando nossas descobertas e aceitando nossas falhas. Espero que esse trabalho possa, mesmo que de leve, tocar as pessoas. Que ele abra uma fresta para que façam uma viagem no tempo e olhem para esse patrimônio de outra maneira. Não são apenas tijolos, mas memórias guardadas em suas paredes. E que essas pessoas possam também ser acolhidas por essa Casa, possam ser como um flanêur, vagando pelos seus espaços, e quem sabe estender esse flanar para além dos muros, sendo capazes de ter um olhar amoroso para a cidade.

Percebemos a importância da memória do projeto, pois o caminho não é uma linha reta. Podemos um dia precisar de algo que Vendaval|63


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“Os problemas que envolvem a metrópole não podem ser articulados pela criação de obras plásticas; a densidade de suas questões sociais não pode ser resolvida na criação artística. O espaço ocupado por uma escultura pode substituir o espaço de uma barraca de camelô, mas essa troca não dialoga com o excesso populacional, com a pobreza, com o sucateamento das vias públicas, com a poluição ambiental, visual, sonora, com a violência. Só o afeto é capaz de criar um canal de comunicação verdadeiro com as pessoas que habitam esse panorama.” Kátia Canton, in Espaço e Lugar. Vendaval|65


Referências Bibliográficas

BIBLIOGRAFIA BÁSICA

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CANTON, Katia. Temas da Arte Contemporânea. São Paulo: Martins Fontes, 2009. ESTÉS, Clarissa Pinkola. Mulheres que correm com os lobos. Mitos e histórias do arquétipo da mulher selvagem. Rio de Janeiro: Rocco, 1994. PEIXOTO, Nelson Brissac & FARIAS, Agnaldo. Arte/ Cidade – Cidade sem Janelas. São Paulo: Editora Marca D’Água , 1994. PEIXOTO, Nelson Brissac. Arte/ Cidade – A Cidade e seus Fluxos. São Paulo: Editora Marca D’Água , 1994. ___________________. Arte/ Cidade – A Cidade e suas Histórias. São Paulo: Editora Marca D’Água , 1997. SOUKEF JUNIOR, Antonio. Cem Anos Luz (Apresentação Maria Inês Dias Mazzoco. Fotos Eduardo Albarello Filho). São Paulo: Latin American Documentary, 2000. ________________________. Sorocabana. Uma saga ferroviária. (Fotos Eduardo Albarello e Vito D’Alessio). São Paulo: Latin American Documentary, 2001. TCHEKHOV, Anton. As Três Irmãs (Tradução Maria Jacintha). São Paulo: Editora Nova Cultural, 2002. Trilogia Bíblica – Teatro da Vertigem / apresentação Arthur Nestrovski. São Paulo: Publifolha, 2002.

BIBLIOGRAFIA COMPLEMENTAR BACHELARD, Gaston. A Poética do espaço (Tradução Antonio de Pádua Danesi). São Paulo: Martins Fontes, 2005. FERNANDES, Sílvia. Teatralidades Contemporâneas. São Paulo: Perspectiva:FAPESP, 2010. Livro do Grupo XIX de Teatro com os processos de criação e os textos dos espetáculos Hysteria e Hygiene LOSNAK, Célio José. Nos trilhos da Memória: Trabalho e Sentimento. História de Vida de Ferroviários da Companhia Paulista e Fepasa. Bauru, SP: Prefeitura Municipal de Bauru / Secretaria de Cultura, 2003. MELIM, Regina. Performance nas Artes Visuais. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 2008. MEYER, Regina Maria Prosperi. GROSTEIN, Marta Dora. BIDERMAN, Ciro. São Paulo Metrópole. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2004. TOLEDO, Benedito Lima de. São Paulo. Três cidades em um século. São Paulo: Cosac Naify, Duas Cidades, 2007.


PEÇAS DE TEATRO O Livro de Jó Dramaturgia: Luís Alberto de Abreu Concepção e Direção Geral: Antônio Araújo Ambientação Cenográfica: Marcos Pedroso Criação: Teatro da Vertigem Estréia: 1995 Apocalipse 1,11 Dramaturgia: Fernando Bonassi Concepção e Direção Geral: Antônio Araújo Cenografia: Marcos Pedroso Criação: Teatro da Vertigem Estréia: 2000 Hysteria Criação e Pesquisa: Grupo XIX de teatro Direção: Luiz Fernando Marques Estréia: 2001 O Idiota – partes 1, 2 e 3. De: Fiódor Dostoiévski Roteiro Adaptado: Aury Porto Colaboração Dramaturgica: Vadim Nikitin e Luah Guimarães Direção: Cibele Forjaz Cenografia: Laura Vinci Sesc Pompéia. De 30 de março a 9 de Maio de 2010. Cacos de Vidro no Jardim Molhado Criação: Cia 3x4 Direção: Miriam Rinaldi Dramaturgia: José Manuel Lázaro Casa N°1 De 15 de Agosto a 23 de Novembro de 2003 De 24 de Janeiro a 15 de Fevereiro de 2004

Crisálidas Criação: Cia 3x4 Direção: Mara Helleno Dramaturgia Geral: José Manuel Lázaro Autores: Carolina Catelan, Clarissa Drebtchinsky, José Manuel Lázaro, Mara Helleno e Sandra Flores Casarão do Belvedere De 03 de Outubro a 09 de Novembro de 2008

SITES www.casadascaldeiras.com.br www.grupoxixdeteatro.ato.br www.pucsp.br/artecidade www.teatrodavertigem.com.br

PALESTRAS E DEBATES “Globalização e Conflitos” e “Tendências da Arte Contemporânea”. Palestras em DVD com Agnaldo Farias. DVD “As Artes no Século XX – Balanços do Século XX/ Paradigmas do Século XXI”

FILMOGRAFIA BERGMAN, Ingmar. Gritos e Sussurros. 1973.

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Fotografias Carolina Catelan p. 4, p. 8, p.10, p.12, p. 13 (exceto foto antiga e foto das camisas), p. 16, p.17, p.24, p. 53 (acima) e p. 58 (acima à esquerda e abaixo à direita) Sandra Flores p. 53 (abaixo) e p. 58 (acima à direita e abaixo à esquerda) Fornecida pela Casa das Caldeiras p. 13 (foto antiga) e p. 14 Livia Lazaneo Contracapas, p. 6, p. 13 (foto das camisas), p. 18 (acima à esquerda) e p. 26 Renata Veloso Capa, p. 18 (embaixo), p. 20, p. 23, p. 25 (esquerda), p. 28, p. 29 (embaixo), p. 33 (direita e esquerda), p. 34, p. 37, p. 40, p.41, p. 42, p. 43 (primeira e terceira), p. 45 (abaixo) e p. 55 Rita Wu p. 18 (acima à direita), p. 22, p. 25 (direita), p. 29 (acima e meio), pp. 30/31, p. 32, p. 33 (embaixo), p. 35, p. 36, pp. 38/39, p. 43 (segunda, quarta e quinta), p. 44, p. 45 (acima), p. 46, p. 47, p. 48, p. 50, p.51, p. 52, p. 53 (meio), p. 54 e pp. 56/57

Créditos

Imagens de textos

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p. 13 Texto no papel amassado é do livro Mulheres que correm com os lobos, de Estés, e no desenho da mulher é do texto As Três Irmãs, de Tchekhov

p. 38 Texto escrito do poema II de O Guardador de Rebanhos, de Alberto Caeiro / Fernando Pessoa Os outros textos foram escritos pelas atrizes.

Programação Visual Tatiana Crema Tobara


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O texto Frutiger. Georgia. Impresso Paulo, 70| Vendaval

deste caderno foi composto em Os títulos foram compostos em São Paulo, Novembro de 2010. na Gráfica Agiliga, São em Novembro de 2010.


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