O Sapo
Eduardo Perri
Quem jรก nรฃo engoliu um?
O Sapo
Eduardo Perri é publicitário e escritor. Mora em Aldeia da Serra há 15 anos. Participou do último evento cultural de Aldeia, expondo alguns de seus poemas. Publicou Rosa em Campo de Concentração, poemas e contracontos e o romance O Ascensorista. Tem 65 anos e já engoliu muitos sapos na vida.
Na lagoa, Diz-me um sapo: Na vida, Engoliste algum? Digo não Meu caro sapo, Eu nunca Engoli nenhum! Nunca engoliu Nenhum sapo? Todos então Se entreolham, Coaxando Em tom de esculacho: é papo...é papo... é papo...
Nem sei bem que ano era, mas pelo que via e se passava no entorno, parecia algo assim como idade média. Muito verde, vistas longínquas, estradas de terra com muitos cavaleiros indo e vindo, carruagens, algumas pomposas, parecia realmente estar em uma outra época que não era a minha. Percebi cavaleiros andantes parados ali à beira do pequeno lago para dar de beber a seus cavalos, a maioria deles imponentes, crinas bem aparadas, pelos vivos e brilhantes. Ali ficaram por um bom tempo, no centro de uma clareira frente a gravetos e pequenas toras queimando, de onde emanava um adorável cheiro de carne grelhada, pelo cheiro me lembrava perdiz, frango sei que não era, porque conheço de longe cheiro de frango, talvez carne de rã, não sei, estava perdido e recém-chegado ao lago e à era. Não conseguia concatenar idéias, estava tudo muito confuso, pegajoso, até que percebi um deles com a calça dobrada entrando pela margem, tinha em mãos uma caçapa, pelo jeito o que estavam grelhando era mesmo rãs e, com certeza, à caça de outras, que uma rã não dá para nada, imagine para encher a pança de vários cavaleiros famintos que deveriam ter chegado após léguas e léguas, dias e noites de viagem.
Ao vê-lo entrando no lago com a caçapa em mãos e ao pensar em rãs, desviei-me de sopetão, coração quase pulando pela boca, para um brejo ao lado. Se querem rãs podem querem seus parentes ,sabe-se lá, a carne deve ser parecida, na verdade nunca em toda a minha vida comi rã, e no momento endiabrado que estava vivendo, nem poderia comê-la, a não ser sexualmente, porque sapos, tirante alguns mais afoitos da espécie, não se alimentam de rãs. Sim, estava ali na pele de um sapo, não me perguntem desde quando e nem por que, mas havia virado um anfíbio, assim de repente, num estalar de raio que quase me explodiu os tímpanos. Sentia-me ainda aturdido, à beira de um lago situado não sei onde, apenas sabendo estar na pele de um sapo , com tudo os que eles têm por dentro e por fora. Dedos,cinco dedos, pulmões ,fígado, rins, intestino, uma língua fina, muito fina, longa, muito longa, pegajosa e doida para sair da boca em lampejos à cata de insetos. Minha pele era lisa, também pegajosa, parecia respirar por ela, lembreime de quando estudei anatomia dos anfíbios no colégio, cheguei a ver até um deles boiando em clorofórmio, outros dissecados, sim, eles respiram pela pele e se respiram, devia também estar respirando porque era um sapo. Ou melhor, virara um, porque nunca havia sido qualquer outro animal que não fosse homem, ser humano, desses que estudam sapos, que os abrem e os dissecam.
O pior de tudo é que eu estava ali me sentindo meio homem e meio sapo, porque embora minha aparência física fosse a de um sapo, minha mente era a de um homem. Claro, como poderia um sapo saber de anatomia anfíbia? Como poderia distinguir cheiros, se de perdizes ou frangos? Pelo que sei sapos não pensam, apenas coaxam e respiram, mesmo de boca fechada, pelas coanas. E isso com certeza é verdade porque eu estava respirando e com a boca bem fechada, tentando não emitir qualquer som que pudesse me fazer localizado e alvo de uma caçapa, com a perpectiva demoníaca de uma brasa à frente. Fiquei ali calado e usei da inteligência para não coaxar. As centenas de rãs e sapos ao meu lado, todos isentos de inteligência, não paravam de coaxar e ao sentir o movimento da água, pulavam de um lado pra outro, olhando de longe parecia um balé sobre o brejo, uns coaxando grosso, outros fino, uma ópera de anfíbios que pelo jeito iria terminar em tragédia. E quanto mais barulho faziam, mais chamavam a atenção do cavaleiro, agora já com mais da metade das pernas submersas e com uma tocha nas mãos. Pelo jeito deveria estar mesmo vivenciando a idade média porque lembrei-me de que caçadores de sapos e rãs da minha época, época em que fui ser humano, utilizavam lanternas, daquelas potentes e de facho intimidador para os pobres bichinhos. Deixei-os coaxando e pulando, e procurei um atalho para sair do perigo iminente de ser caçado e de nem poder defender-me alegando ser um ser humano que virou sapo, como dizê-lo se não conseguia falar, e sim apenas coaxar como os demais?
Ouvia os cavaleiros cantando e gargalhando ao longe, pelo jeito felizes, aposto que com muitas rãs à sua frente girando nos espetos sobre o braseiro. O cheiro era bom, parecia o de uma carne deliciosa e daí agachei-me sobre uma folha e fiquei pensando no por que nunca ter comido rãs ou sapos em toda a minha vida humana, se de suas carnes emana um cheiro tão apetitoso, eu que sempre fora chegado aos grelhados...mas daí me veio à mente uma conotação terrível com o pensamento gastronômico em foco e lembrei-me, sim lembrei-me nitidamente, que embora nunca tenha apreciado as suas carnes, passei a vida toda engolindo-as. Sim,passei a vida toda engolindo sapos, não importa se por impotência ou conveniência, mas engolindo-os todos. Talvez tenha engolido tantos que me empanturrei e como não consegui vomitá-los, por serem sapos no sentido literal, acabei virando um deles; sim engoli tantos sapos que acabei me tornando um. E agora,o que fazer? como retornar à minha era, ao meu corpo original, como sair desta pele pegajosa, cuspir fora esta língua fina e comprida, livrar-me deste maldito modo de me expressar através de coaxos?...santo Pai, se não morri ainda, se ainda tenho vida pela frente, se me transferistes para cá, por que o fizestes mantendo viva minha inteligência num corpo de anfíbio? não seria mais justo transferir-me para cá como animal irracional, como sapo por inteiro?...daí não teria pensamentos...apenas me lamuriaria coaxando até o fim de meus dias...não, não quero viver o que me resta nos brejos e muito menos voltar no tempo como um caranguejo, digo sapo, será que também ndam para trás?... por que metamorfosear-me em outra espécie e em
outra era?....por que não ser um sapo atual, do meu tempo?...bem,até que nesse ponto fostes delicado comigo Senhor, não sei como me sentiria sapo à beira de rios e lagos poluídos, saltitando entre pets e plásticos boiando, nadando em águas turvas cheias de coliformes...bem fostes delicado nesse ponto, mas nunca hei de agradecer-lhe por delicadeza nenhuma depois de ter virado esse bicho horroroso, parente de cobras e lagartos...ai santo Pai, como sair dessa?, fiquei pensando e tanto alonguei as aflições e pensamentos que acabei adormecendo sobre a folha.
Assim como os sapos possivelmente devam adormecer.
Cinco e quinze e lá estava eu ainda frente ao computador, depois de quase dez horas sentado, a bunda já quadrada e formigando, tentando localizar o erro de cálculo que fizera a minha companhia ver sair pelo ralo uma soma vultuosa de dinheiro, alguns milhões, se bem que milhões pareçam centavos para uma companhia farmacêutica, que os ganham às pencas, produzindo remédios até para o que não tem remédio...só faltam criar um para controlar a morte, porque enquanto a estariam controlando, teriam bilhões de pacientes terminais dependentes do fármaco, desembolsando tudo para mantê-la sob controle e assim, manterem-se vivos até o fim...de seus dinheiros. Não acreditam? Pois saibam que até a cura da artrite reumatóide já foi descoberta, mas daí concluiram que mantê-la ativa com a dores sob controle, não importa se continuando a retorcer e inutilizar mãos e pés, representa muito mais milhões em caixa do que uma simples caixa eliminar de vez a doença, quer dizer, a demanda. De repente o telefone toca e do outro lado é meu chefe, já dizendo olha nem pense em sair antes de achar o erro, isso pode custar o meu emprego e lógico, muito antes do meu, o seu...ele, que na verdade, havia selado o negócio com o hospital baseado em cálculos que fez apressadamente em cima do joelho, agora passara toda a papelada para minhas mãos, dando a entender que minhas mãos é que fizeram os cálculos errados, filho-daputa, gordo miserável e corno, todo mundo sabe, sua mulher não é flor que se cheire, e além do mais é flor vagabunda, que se desabrocha frente a qualquer caule duro encantado pelas suas pétalas...gordo filho-daputa....deveria dizer isso a ele,assim de sopetão na sua cara, se perdesse o emprego dane-se, o dinheiro que receberia pela dispensa acrescido de
fundos e férias daria para viver um bom tempo sem por a família em desespero, até conseguir uma nova colocação...deveria, mas nunca tive a coragem de fazê-lo...saco!...saco não, sapo!...olha eu aí engolindo um, mas que um que nada!, vários em vários anos, na vida pessoal e no emprego...gordo filho-da-puta...
De repente, ouvi um tiro, um tiro seco de pólvora, acordei agitado, quase caindo da folha. Incrível, num cochilo, acabara de sonhar como homem e acordar
como
sapo! O tiro havia ecoado à partir do mesmo lugar onde os cavaleiros ainda estavam, agora mais quietos, quem sabe bêbados, e a saparia ao meu lado coaxando e pulando sem parar. Mas por que tiro, pensei, se estavam nos caçando com redes, não se usa arma de fogo para matar sapos e se a usassem os estraçalhariam , como comê-lo depois? Vi então a cavalaria agitada sendo montada rapidamente, por dentre a poeira consegui vê-los já se distanciando, todos em grupo saindo a galope. No chão, um corpo, ali jogado à beira do lago. Fui saltitando com cuidado para aproximar-me dele e consegui chegar à sua frente. Ainda respirava, senti de longe um bafo quente com cheiro de rã e de vinho, fui chegando mais perto e, entre um saltitar e outro, ouvi um leve movimento atrás de mim, talvez um deles me acompanhando. Parei, olhei e dei de cara com uma rã, olhos esbugalhados, parecia isolada, assim como eu, tentando distanciar-se de toda aquela saparia. Uma rã,acreditem ou não, diferente das demais, para dizer a verdade uma rãnzinha linda.
Postou-se ao meu lado e ficamos ambos olhando para o cavaleiro desfalecendo. Este começou a gemer, a estrebuchar e de repente a vomitar pedaços macerados de carne misturados a ossos minúsculos, uma gosma de rãs que foram trituradas pelos seus dentes, tudo isso em meio a um líquido vermelho, parecia uma mistura de vinho tinto e de sangue. Daí fechou os olhos e apagou de vez. Ainda bem que não trituraram você, pensei, olhando-a ali, agachada ao meu lado. Como conseguiu escapar? continuei pensando com o olhar fixo nela enquanto a saparia toda começou a se aproximar e a lamber aquela gosma vomitada com suas línguas longas e pegajosas. Deixei-os naquele banquete nojento e saí saltitando com pressa para afastar-me da cena e do cheiro e percebi que a rãnzinha me acompanhava. Ora, ora, se ela é rã, deveria gostar dessa meleca assim como as outras...Ora, que rã será essa que se parece com o anfíbio que sou, uma rã inteligente? Continuei me distanciando, num trocar espichado de pernas à procura de um esconderijo ,até que achei um, num buraco de tronco, onde me enfiei, sentindo o baque dela se enfiando atrás de mim. Que queres rãzinha, não sou chegado a mulheres de pernas finas e olhos esbugalhados, tentei lhe dizer ensaindo um coaxo ,mas percebi que ela não coaxava. Uma rã que não tem nada de rã....não lambe meleca e não coaxa.
Ficamos ali por um tempo nos sapeando, o que na linguagem dos humanos significa ficar observando algo sem chegar perto e esse algo era ela, uma sapinha sapeca, muito mais que uma simples rã, dizia com os olhos. Nem precisava mostrar as perninhas finas e ossudas que, a essa altura, já começaram me parecer carnudas e interessantes.
A baderna da saparia parecia ter chegado fim, acho que conseguiram acalmar-se com as panças cheias da gosma expelida pelo cavaleiro ali estendido roxo e inerte, banquete agora para as formigas, aranhas e outros bichinhos famintos, sem citar os maiores, como onças, hienas e leopardos que já o espreitavam de longe e que, certamente, o removeriam dalí, depois de lutas sangrentas entre si, para saciar seus apetites. Olhos nos olhos, ambos esbugalhados, esse era o nosso momento dentro do tronco, eu pensando e ela talvez também, já que para mim não estava ali uma rã e sim um outro ser humano, uma mulher, que possivelmente havia sofrido a mesma metamorfose que sofri, se transformando em anfíbio. Percebendo o silêncio à volta, pegou-me a pata com as suas e levou-me pela mata até o lago. Dalí fomos nadando, ora à tona, ora submersos, eu acompanhando seu corpo elástico esticando-se em largas braçadas com destino a não sei onde, mas um destino que me pareceu certo e alcançável, percebi desenvoltura e firmeza em seu guiar-me.
Até que chegamos à margem,não sei quanto tempo depois, que o tempo para os anfíbios deve ser absolutamente diferente do tempo para os humanos, de repente o que é dias, meses ou anos para eles para nós pode parecer algumas horas, ou vice-versa. Saltamos à mata, virgem e viçosa como todas as que devem ter adornado as margens dos lagos da idade média, e continuamos em frente, algumas vezes nos desviando do ataque de algumas cobras no caminho, parentes venenosos da espécie anfíbia, traiçoeiros que dão a impressão de arrastar-se com humildade até darem o bote final. Não é à toa que humanos com essa postura são lá chamados exatamente de cobras. E então chegamos a uma arena de pedras, parecia coisa romana, situada numa clareira no meio da mata. Ela segurou minha pata e pediu silêncio com os olhos. Dentro em pouco vi aproximar-se um sapo gigante, parecia velho e sábio, que acomodou-se na pedra maior, coaxando ao som de pigarro. Parecia gente, gente assim como nós, como eu e a rãzinha, gente que foi gente e que um dia, sabe-se lá por que, virou sapo. Parecia até um sapo-rei, frente a dois sapos-jururús, tristes por serem humanos e estarem ali na pele de anfíbios. De papo inchado e esverdeado, parou de pigarrear e foi logo dizendo: “A missão dos metamorfoseados em sapos é longa; para saírem do pesadelo e voltarem à sua espécie , terão de vomitar todos os sapos que engoliram em vida na esfera humana”.
-Porque mesmo que tenham sido sapos, no sentido literal, eles saltitam dentro de nós durante toda a nossa existência, coaxam em nosso interior à espera de alguma atitude que devamos tomar para libertá-los, vomitando-os. -Ficam dentro de nós, todos os engolidos, coaxando unidos em coro, como naquela ópera de anfíbios que você acabou de assistir, e como aquela, com obscura perspectiva de também terminar em tragédia. -Se não os vomitamos, os digerimos e não nos livramos deles , tornam nossa vida indigesta, e quando apodrecem dentro de nós acabam se metamorfoseando em outras espécies, causadoras de úlceras, infartos, cânceres e morte. -A propósito, meu caro, fizemos você assistir há pouco sapos e rãs macerados saindo da boca de um cavaleiro...tudo proposital, para você já começar a se preparar: o que saiu de dentro dele, está dentro de você. -Então prepare-se para duas ânsias: a de vômito, que você já sentiu vendo toda aquela nojeira e, depois, a ânsia de querer a todo custo vomitá-la. -Faço aqui um papel tipo embaixador dos humanos no reino dos sapos. Já fui um de vocês e ocupei cargos de tamanha importância que, muitas vezes, tive de engolir sapos do tamanho da importância que tive, ou seja, sapos grandes. -Não é à toa que tenho este tamanho, disse pigarreando de novo. Você deve estar ansioso por perguntar-me como vomitá-los, mas o processo é longo e doloroso, meu caro. -É assim como cumprir uma penitência numa outra esfera.
-Não dizem que os humanos que foram maus e injustos em uma de suas vidas, acabam se reencarnando em seres aleijados, para ficarem se arrastando em outra? -Outros, que em vida maltratram e mataram animais, não acabam se reencarnando exatamente em animais para sentirem em seus pelos a dor do maltrato? -Pois é, os que engoliram sapos, não importa se por impotência ou por interesse, acabam se reencarnando na pele do próprio sapo. Alguns poucos, não me perguntem sob que critérios, recebo d´Ele as indicações, são premiados e metamorfoseados ainda em vida, como vocês dois, escolhidos entre os bilhões que habitam a terra, que ganham oportunidades de voltar aos seus corpos originais para vomitar os sapos literais que lá engoliram. -Para que possam, depois ,viver o tempo que lhes resta em plenitude, sem carregar mais dentro de si a indigestão dos desaforos. -Mas, se não cumprem a tarefa nos prazos determinados, são então reencarnados na pele de sapos e viverão a eternidade como anfíbios. De repente, me dei conta de que seu coaxar chegava aos meus ouvidos em forma de palavras inteligíveis, como que traduzidas para a linguagem humana. Como poderia estar entendendo o seu coaxar se não consegui entender patavina dos coaxares dos sapos saltitantes da lagoa? Ele, como que entendendo a minha repentina percepção, explicou-me que há uma linguagem universal no reino de Deus, que as plantas entendem as nossas palavras, que murcham frente à nossa tristeza, que
que morrem frente à inveja dos que nos chegam trazendo maus fluidos...que os animais as entendem também, tanto as de carinho, como as de ódio e de raiva e que só os homens mesmo procuram não entenderse uns aos outros, o que os levou a criar inúmeros idiomas para dizerem de forma diferente as mesmas coisas. Por que os animais não? já viu algum cão latindo em latim ou russo? O amor, ah! o amor, é dito por gestos, pelo coração e não pelas palavras... nunca há de ser verdadeiramente love, nem liebe, nem amore, sem que um gesto de afeto lhe dê sentido, e o gesto é universal, dispensa dicionários...se já leu Shakespeare, lembre-se: “palavras são palavras, pelo ouvido jamais o coração será atingido”. -Talvez por isso, meu caro, continuou coaxando inteligivelmente para os meus ouvidos, estou aqui como sapo já há alguns séculos e nunca mais fiz qualquer esforço ou prece para reencarnar-me como ser humano. -E como aqui, que também há séculos reside o departamento onde dão entrada os homens metamorfaseados em sapos, aqui eles chegam como anfíbios já alocados no habitat da era em que estamos ou seja,da idade média, agora já respondendo a uma pergunta que sei que me faria mais tarde. Olhei para a rãzinha ao meu lado e ela, em sua mudez, era só ouvidos às palavras que o sapo-rei proferia. -Você ficará sabendo de tudo e de todos os detalhes para se livrar dessa metamorfose, continuou falando como um velho professor que passa uma vida inteira repetindo as mesmas lições com o mesmo prazer que as passou no primeiro dia de aula.
-Romilda, por exemplo, aí ao seu lado, está numa fase adiantada...acredito que já na próxima lua cheia estará de volta à esfera humana, ao corpo original em que foi concebida. -Teve de vomitar muitos sapos para isso, já foi e voltou algumas vezes, mas lhe resta ainda um sapinho final para ganhar a liberdade, não é querida?
disse, alisando a cabeçinha da rã, quer dizer, Romilda.
Romilda? ousei cochichar-lhe num coaxo assim de bate-pronto, o que ela confirmou encolhendo os ombrinhos ossudos e baixando a cabeça. Tentei ,num canto de boca, reclamar do fato de termos atravessado lagos e lagos, matas e matas até chegar alí, sem termos coaxado nada um ao outro, mas ela, pela primeira vez que a ouvi se expressando desde que a conheci, respondeu-me que queria primeiro que eu escutasse as palavras do Sapo-Rei. Disse-me assim meio sem jeito, agachando e cruzando as finas e longas perninhas. -Você percebeu que mal chegou e num rápido cochilo já foi transportado à esfera humana,não foi? interrompeu o sapo. -É verdade,respondi, mas pensei que estivesse sonhando ou coisa parecida, foi muito rápido, de repente me vi no escritório aos cálculos e ouvindo desaforos do meu chefe. -Desaforos, não, sapos meu caro, sapos que você continua engolindo, mas voltará lá outras vezes e prepare-se: terá tarefas a cumprir consigo e em prol de si mesmo.
-Os humanos têm muito a aprender com os sapos,sabia? Sapos não engolem sapos como os humanos, conseguem vomitar
o próprio
estômago, tiram de dentro dele tudo o que lhes é indigesto e depois, com as próprias patas, voltam a colocar o órgão para dentro de si. -Seria bom os humanos aprenderem a fazer isso, não? disse já se despedindo e caminhando lentamente em direção às pedras, deixando no ar baforadas de um longo charuto de folhas secas que acabara de acender.
Voltamos numa coaxação danada, eu e Romilda, a sapinha sapeca, que no caminho me disse não ter sido nada sapeca durante o tempo em que viveu como mulher, que só fez ouvir desaforos dos que a rodeavam, por sempre ter se empenhado em poupá-los, por nunca ter se expressado como deveria. Contou-me dos inúmeros sapos que engoliu e dos que já havia conseguido vomitar. Entre uma mata e outra, felizes por estarmos agora com as línguas soltas, embora sempre pegajosamente finas e longas, nos descontraímos, chegamos até a disputar saltos em distância, sentimos leveza por estarmos em corpos de animaizinhos tão ágeis e inofensivos, com a vantagem do poder sentir isso e comparar, porque mantínhamos a racionalidade de nossas espécies originais. A única coisa da qual não gostávamos, mas que nos alimentava, era dos insetos rasteiros e voadores que nossas tresloucadas línguas em rápidos
flashes se esticavam para alcançar e trazer à boca. Ela, que me disse ter passado a vida toda se protegendo dessas pragas e matando-as com redinhas de mão e aerosóis, estava lá agora à cata deles para se alimentar. Nunca diga desta mosca não comerei, disse-lhe debochadamente, já ouvindo em seguida seu coaxar gargalhado. Assim caminhamos, por um tempo que não sabia medir, na verdade nem queria, tão gostoso estava aquele passeio de volta. Até que numa das paradas, já com nossos coraçõezinhos saltando pelas bocas de tanto correr e pular, encontramos um brejo agradável para descansar , e quando penso nele minha pele enrugada se arrepia. Romilda mal acabara de esticar-se e fechar os olhos,quando percebi que estava sendo monitorada por uma cobra-d´água, daquelas com hábitos aquáticos e que adoram rãs. Romilda de olhos fechados e ela se deslizando traiçoeira e silenciosamente em sua direção, já preparando as afiadas e venenosas presas para perfurá-la e engoli-la. Fiquei atônito ao vê-la, sem saber o que fazer, teria de descobrir em segundos, e graças a Deus
minha inteligência venceu a astúcia da
maldita. Agarrei-me num cipó, verguei-me todo esticando as longas pernas até elastificá-lo e lancei-me como um projétil, uma mão firme no fio e a outra já pronta para levantar Romilda pelas perninhas, o que acabou dando certo. Vi-a no ar sobressaltada de ponta cabeça e caímos numa relva ao lado, quan do larguei o cipó. Dalí, pernas pra que te quero, saímos numa vula, intercalando saltitos e saltitões, alguns, acreditem, de até cinco metros .
Devo-lhe essa, disse ela depois, só faltava sentir o amargor do fim num prolongado percurso triturador e digestivo de uma cobra.
Pelo reflexo da lua na lagoa percebi que já estava entrando em fase minguante. Fase parecida com a minha, que ali minguava de tristeza ante a perspectiva da chegada da lua cheia e da partida definitiva de Romilda. Que iria fazer um sapo racional em meio a tantos outros irracionais? como suportar dias e noites sem Romilda ao lado, sem as conversas e desabafos feitos em coaxar inteligível ? como atravessar fase tão angustiante, até que me dessem a oportunidade de me re-metamorfosear na pele de um ser humano? quando surgiria essa oportunidade? dentro de quantas luas? fui acumulando tantas dúvidas que senti o peso do corpo aumentando e afundando junto com a folha onde me encontrava agachado. Romilda,ao meu lado, sentindo no corpo a leveza da liberdade próxima, usava a sua folha como se fosse uma esteira de praia e esticava-se sonhadora. Sentia já saudade antecipada de seu corpinho magro e ossudo, de seus olhinhos esbugalhados, de seu coaxar confidente e, por que não dizer, dos carinhos que trocamos dentro do tronco onde habitávamos. Estávamos realmente apaixonados, já havíamos nos acasalado várias vezes, trocamos longos beijos, até ríamos deles porque nossas linguas
finas e longas se emaranhavam dentro das bocas como minhocas num ninho...antes de atingirmos o clímax ela apertava-me fortemente cravando em minhas costas as ventosas adesivas da ponta de seus dedos. Era cheia de cuidados , chegava até a limpar as glândulas venenosas atrás de seus olhos antes de beijar-me. Dessas glândulas, dizia, sai um veneno tão poderoso, que é usado em pontas de flexas pelos humanos, tornando-as mortais para o alvo atingido. -Que ótimo, disse, lembrando-me do filho-da-puta do meu chefe e da possibilidade de levar comigo um pouco desse veneno para embeber a ponta da flexa que lhe desferiria na bunda,quando lá chegasse. Isso de nada vai adiantar, respondeu-me, você terá de vomitar sapos literais também de forma literal, não agachado numa privada, mas devolvendo-os aos que o fizeram engoli-los, com palavras, com argumentos e não com flexas. Essa era Romilda, a sapinha sapeca da minha vida anfíbia. Acabara, e sabia o porquê, esquecendo-me totalmente de minha exmulher, a humana, uma das quais com certeza estaria na minha lista de vômito, tantos os sapos e pererecas que me fez engolir. Mas nada tão indigesto, se comparado aos sapos que engoli no trabalho. Aquele gordo filho-da-puta e corno como eu, quantas vezes me desprestigiou frente aos colegas, quantas vezes me humilhou em público sabendo que eu engoliria o sapo todinho e na seca, sem refresco, porque sabia que eu dependia do emprego para não perder, como desempregado, a guarda de meu único filho.
Conseguira sua guarda depois de ter sido traído pela minha ex, ela fez o serviço ali mesmo, no motel da esquina da minha rua, todos a viram na saída, inclusive o zelador do nosso prédio, que depois testemunhou o fato em juízo. Sapos,sapos, por que engoli-los? foram tantos, meu Deus, que naquela época os sentia revirando-me as tripas por dentro e impotente para vomitá-los...nos últimos dias como humano, chegara a ter pesadelos terríveis, daqueles de suar e babar na fronha, muito deles protagonizados pelo filho-da-puta, chegara a passar mal, sentir tonturas, o coração fraquejando às vezes. Deixei até meu filho com meus pais, com medo de um piripaque que pudesse tirar-me do ar de repente...até o dia do raio, aquele ensurdecedor, que realmente me tirou do ar e me transportou a essa lagoa. Não há de ser nada, meu amor, disse Romilda, que ouvia tudo espichada na folha, quando voltar e sei que vai ser logo, prepare palavras para vomitar sapos!
E finalmente a lua cheia chegou. Cheia como nunca, brilhante como sempre. Romilda perdera aquela leveza de espírito, andava amuada, coaxando pelos cantos. Nem parecia a mesma, aquela toda animada com a perspectiva próxima da metamorfose de volta. Estivemos mais uma vez na presença do sapo-rei que lhe deu demoradas instruções para essa sua ida que seria talvez a definitiva. Agora é vomitar o último sapinho, quer dizer, o baita sapo que nós dois sabemos, ou ficar pela eternidade como a rãzinha de sempre, disse antes dela despedir-se. Não participei do encontro fechado entre ambos, ficara ali fora, já amargando a solidão que me esperava à frente, não sabia se iria resistir a um adeus, pensei em atitudes drásticas como enforcar-me nos cipós, entregar-me às cobras, estava me sentindo sem eira nem beira num mundo de lagoas e de sapos, com a inteligência odiosamente viva, a mente cada dia mais pensativa, tanto que na volta ao nosso tronco pouco falamos. Somente quando já estávamos nos aproximando, ao fim da travessia de um lago, ela não se contendo, atirou-se na relva em soluços. Seus olhos, que já eram esbugalhados, pareciam querer sair fora de órbita tantas foram as lágrimas vertidas.
Estou com muito medo, disse, não me sinto pronta para a volta, sinto insegurança e não sei se vou conseguir deixa-lo. Como terminar assim, como vê-lo depois de minha metamorfose, como reconhece-lo, nos conhecemos como anfíbios, como nos identificarmos no mundo humano? como será seu rosto ? como vou sabê-lo se nunca o vi, como será o meu para você, se também nunca o viste, que tipo de humanos somos, que caráter temos? Não sei, meu amor, continuou, não seria melhor assumirmos a espécie animal que nos está dando corpo, nos conformarmos em ser anfíbios para sempre? Melhor anfíbios felizes e saltitantes que humanos desolados e engolidores de sapos. Perigos aqui? lá temos muito mais, porque aqui conhecemos os animais, sabemos nos defender, sabemos que só nos atacam quando famintos, fazemos parte de uma cadeia alimentar equilibrada, comemos os pequenos como os grandes nos comem. E lá, não é muito pior? nos devoramos mesmo sem fome, somos obrigados a conviver com pançudos empanturrados e animaizinhos esquálidos vivendo num mesmo habitat, não temos chefes de estado como um sapo-rei, generoso, mais pai do que chefe. Comparando, o que temos lá são sapos barbudos e arrogantes, sem qualquer princípio ou ética, com línguas compridas e pegajosas também, trazendo para suas panças o alimento mais sujo que existe, o dinheiro, fétido e insosso, que não sacia a fome física porque não acaba no estômago e sim no bolso, saciam tão somente a fome de poder e ganância, não é alimento advindo de uma cadeia alimentar equilibrada como aqui, lá os grandes dividem tudo e os pequenos não comem nada, não é isso?
Mas, nem sei se optar será possível, não somos nós que vamos decidir, será um ser superior, para o qual basta detonar um raio para que tudo seja feito à sua vontade....olha, Romilda, disse
interrompendo, primeiro
palmas pelo seu discurso coaxado assim de forma tão desenvolta e inteligente....mas, voltando a nós, já pensei também até em suicídio para livrar-me da solidão antes mesmo que ela chegue, eu a amo muito, a amo verdadeiramente como nunca amei ninguém em todas as minhas vidas, tanto a humana quanto a anfíbia, e vou lhe contar um segredo, e que o sapo-rei nunca saiba: pensei também num jeito de partir com você. Mas como? foi ela logo tentando me interromper, mas continuei...olha para o meu corpo, nessa angustiante espera pela chegada da lua cheia quase não me alimentei, apenas uma mosquinha aqui outra ali, não busquei lesmas, nem besouros, nem animais que me substanciassem mais, veja como estou esquálido, magrinho como você e vou definhar ainda mais até chegar o dia. -Tenho sentido mesmo você mais leve quando se acasala comigo, disseme num jeitinho matreiro, nem tocou nas lesmas frescas que deixei para você encima do toco. -Pois é, Romilda, sabe como vamos fazer? vou virar um sapinho tão pequeno e tão insignificante, que você vai conseguir me engolir...engolílo? ficou louco, como iria engolir a quem amo?...só engolir, Romilda, não mastigar nem digerir...já engoliu tantos sapos em sua vida humana, que custa agora engolir um pequenino ? Será a única forma de eu saber onde vives, em que país, em que cidade , só assim, quando tiver minha metamorfose de volta, saberei como encontrá-la.
-Sei que está pensando no sapo-rei, eu também estou, sei que irá me castigar pela ousadia, mas valerá a pena qualquer castigo na volta pela alegria e esperança que estou tendo nessa ida. -Além do mais, meu amor, tenho lá um papelzinho a fazer como sapo, esse eu não vou deixar de fazer, pode até me redimir de todos os sapos que engoli literalmente em minha vida. -Aquele filho-da-puta, gordo,nojento e corno vai ver do que um sapo é capaz.
Enquanto aguardávamos o dia do raio que nos transportaria, e ele já estava por chegar, conseguimos nos livrar das angústias e das tristezas . Afinal estaríamos juntos, eu dentro dela, como um girino dentro de sua barriga, ela até se alimentara compulsivamente para ficar mais gorda, mais espaçosa por dentro, mal conseguia agora equilibrar o corpanzil sobre as perninhas finas. Passamos os dias nadando na lagoa, espichando-nos ao sol e coaxando como nunca, coisas leves e descontraídas. Contou-me várias de suas passagens antes de minha chegada àquele reino, algumas divertidas e outras que nos forçam a crer haver inteligência em outras esferas. O sapo-rei, claro, deu muitas dicas a ela. Dicas como lambuzar-se no líquido de folhas multicoloridas para tingir a pele de outra cor, quanto mais
colorida ficasse, mais medo causaria às cobras, que evitam dar o bote nas rãzinhas azuis, rosa e violetas que são as mais venenosas do planeta, basta engoli-las para morrer envenenada em seguida. Contou-me também que esse mesmo truque fazia com que os sapos do pedaço evitassem cortejá-la para se acasalar, pelo mesmo medo. Antes de conhecer esses truques, um deles, um sapão galante que vivia expondo suas grossas verrugas do peito, muitas vezes associou seus coaxos aos de outros sapos amigos, todos coaxando em coro, assim como numa seresta para encantá-la. -Dessa vez, tive de escapar, saltando como perereca, disse ela...o papudão não era meu tipo e imagine me acasalar e depois ter de cuidar de girinos, que nascem às pencas, e de me apaixonar por eles, até abrir mão da metamorfose de volta para não me separar, enfim para protegê-los até a morte. -Ele ficou tão louco, estava de tal forma desejando meu corpinho magro, que deixou os amigos lá coaxando ao vento, e saiu em direção às pedras, agarrado-as como se fossem fêmeas, chacoalhando-se todo, como querendo cruzar com elas, acho que uma forma de masturbação para eles. -Sim, é verdade, continuou, pois saiba que alguns deles tentam se acasalar com peixes, pensou? Vi seu desespero de cima, lá no topo da árvore que havia alcançado. Consegui, naquele momento, me tornar uma perereca mesmo, e como elas pulam! o sapo-rei até me disse que perereca em tupi-guarani significa ¨andar aos saltos¨, e olha que comi muito dessas diabinhas em
minha
vida
humana,
são deliciosas,
mas as mastiguei e
engoli
fisicamente, para saboreá-las e não literalmente, como os sapos que engoli. E olha que o papudão não desistiu de procurar-me, continuou ela com o riso solto, até que o sapo-rei deixou-me ficar uns dias ali com ele, em sua arena, e quando o taradão se aproximava, acho que depois de seguir minhas pegadas, o meu defensor coaxava forte em tom de advertência, olha não chegue perto, que vai se dar mal! -Os sapos coaxam em vários tons, não mentem em sua comunicação como os humanos, não dissimulam, coaxam só a verdade: num tom, advertem, num outro, divulgam a eminência de algum perigo, como cobras se aproximando, isso sem falar nos tons melódicos que se multiplicam, todos para expressar seus desejos às fêmeas. -Olha, acho que está ficando apaixonada pelos sapos, disse-lhe apalpando com as patas a barriguinha rotunda, vai acabar se rendendo a um deles. -Já me rendi, seu magrelinho danado, tanto me rendi que vou engolí-lo inteirinho- disse esticando-se e cobrindo-se com uma longa folha macia.
Dito e feito, o dia finalmente chegou, e sentia-me leve como uma folha de tão magro, até minhoquinhas já estavam me encarando de tão fracote que parecia. Tornei-me mesmo um girino para poder ser engolido e eis que Romilda me engoliu.
Abriu a boca como nunca havia feito, cravou-me as patinhas na bunda e foi empurrando meu corpo lentamente para dentro de sua goela. Fui sentindo a força de seus maxilares me pressionando para dentro, assim como a delicadeza no pressioná-los, para não ferir-me. Até que me acomodei em seu estômago como quem se acomoda numa almofada. Mal deitei e senti a explosão do raio, tremi lá dentro como deve tremer um corpo na partida de um foguete e zás! senti-me no ar, voando tresloucadamente em direção a centenas de anos e quilômetros à frente, uma viagem metamorfótica com destino de volta ao reino dos humanos.
-Olá, onde esteve minha cara? ouvi a voz humana depois de tanto tempo, olhei em volta, estava dentro de um corpo, só que muito maior, eu magrinho daquele jeito dentro de um estômago enorme, não conseguia nem equilibrar-me. Estava ali sentindo as patinhas escorregadias, tentando locomover-se sobre sucos gástricos. Era o estômago de Romilda, claro, viajei nele até aqui, saí de lá dentro de um estômago de rã, equivalente a uma classe econômica apertada, e cheguei aqui numa primeirona, cheia de conforto e espaço. -Fiquei fora uns dias, respondeu ela... já conto, já conto... percebi que apertou o passo em direção a algum lugar. Em seguida, bláh!...senti-me vomitado fortemente ao bater meus ossinhos na pia. Olhei para cima e vi Romilda pela primeira vez! Que rosto, meu Deus, que me desculpe a Madona, que rosto! uma mulher encantadora, jovem, olhos pretos, não parecia em nada com a rãzinha ..estava com os cabelos revoltos, sem qualquer maquilagem...claro, mal acabara de chegar de uma metamorfose. Abriu a torneira com cuidado, enxaguou a boca, fez bochechos e pegou-me com as mãos delicadamente, lavou-me o corpinho todo, enxugou-me num papel toalha com o mesmo cuidado, abriu uma carteira bojuda de couro macio e colocou-me lá dentro,fechando em seguida o zíper.
Lá estava eu de volta ao reino dos humanos na pele de um sapo. Lá estava eu, no escurinho de uma carteira, sendo transportado na bolsa de uma linda mulher, sentia-me como o verdadeiro sapo dos contos de fadas, aquele que também passaria por uma metamorfose de volta e se transformaria em seu príncipe encantado.
Tudo estava azul aqui por enquanto, mas o tempo fechara-se lá no reino dos sapos. O sapo-rei ficara sabendo de meu embuste e andava em círculos, com fumaça saindo pelas narinas. Não sei por que me veio à cabeça que devo ter sido delatado pelo papudão, depois de tudo o que Romilda havia me contado, ele com ciúme mortal de mim deveria ter me entregado. Mas, em seguida, afastei a hipótese, afinal o papudão era irracional, como ter ciúme, como ter ódio, se esses nossos sentimentos baixos não existem neles. Só sei que o sapo-rei não se conformava, sentia-se apunhalado por mim, depois de tantas palavras amigas que havia me dirigido. Nunca iria compreender o meu ato, nem que eu tentasse justificá-lo usando como argumento o sublime sentimento do amor ,sim, do amor, aquele a que tanto ele próprio se apegava e que tanto usava em seus discursos na recepção dos humanos metamorfoseados em sapos.
Abaixou-se e com mãos delicadas pegou-me em sua palma, apertou-me afetuosamente e beijou-me a testa. Fiquei pensando, quase fundindo a cuca, quando ouvi seus passos leves chegando até mim. Mas comigo, ali coçando as patas no zíper da carteira de Romilda, tudo andava às mil maravilhas. Senti o solavanco dos pneus nos paralelepípedos e um barulho infernal de motores e buzinas, com certeza estava em seu carro, finalmente iria conhecer o lugar onde morava e iria reter esse lugar na memória, custasse o que custasse. De repente, senti suas mãos pegando a carteira e abrindo um pouco do zíper, o que me permitiu encher os pulmões de ar, tinha até me esquecido de que respirava também pela pele. Senti então o carro parando e estacionando. Em seguida, a sensação leve de estar subindo por um elevador e logo após o zíper sendo aberto de vez, quando pulei para fora. A sensação é muito estranha e a relação entre corpo e espaço totalmente diversa daquela que vivenciava no tronco e na lagoa. Começei vendo uma perna longa e formosa, parecia para mim uma árvore, uma daquelas bem torneadas que existia na mata, depois uma imensidão à minha frente com objetos se sobrepondo frente ao meu raio de visão, sabia que eram móveis, depois ao saltitar para um dos cantos, consegui vê-la quase por inteiro, era realmente uma bela mulher.
Vi-a tirando os sapatos, depois as meias de seda, em seguida se locomovendo para algum lugar que deveria ser o banheiro por que ouvi um barulho de água corrente que parecia ser o de uma ducha. No chão, perto do vão da porta, um monte de papéis, pareciam cartas e contas que por ali foram jogados. Quanto tempo será que Romilda passou fora, fiquei pensando. Não deveria ter sido tão longo, bastou lembrar-me da forma corriqueira como se dirigiu a ela sua amiga ao vê-la de regresso, fiquei ali matutando, como um tempo tão curto se lá me pareceu tão longo, luas e luas? Incrível a relação temporal, quando analisada por espécies diferentes. Uma mariposa, para nós humanos, vive tão rápido quanto o seu bater de asas, mas vive uma vida inteira, que tempo será o dessa vida no reino dos insetos? Nós, aqui como humanos,chegamos a viver até cem anos, mas o que é cem anos para a eternidade? O que é cem anos para trilhões de anos-luz? Fiquei pensando, quase fundindo a cuca, quando ouvi seus passos leves chegando até mim. Abaixou-se e com mãos delicadas pegou-me em sua palma, apertou-me afetuosamente e beijou-me a testa. Percebi que não sentia nojo, a afeição era a mesma, em muito parecida com a da rãzinha. O mesmo jeito cuidadoso, presente de igual forma nas enormes e macias mãos de agora quanto naquelas magrinhas e ossudas patas de antes. Tinha razão o sapo-rei quando disse que o que vale é o gesto, que há doçura nas plantas independentemente de seus espinhos.
Colocou-me perto de sua boca, consegui ver seus lábios enormes à minha frente sem qualquer batom e sussurrou-me: agora estamos aqui, como foi a viagem? vamos agora cuidar de engordá-lo, meu sapinho, vamos ter de encorpá-lo para sobreviver! Tentei agradecer emitindo um tímido coaxo mas percebi que os coaxos na esfera humana não são inteligíveis; conseguia ouvir, mas não conseguia me fazer entender. -Terá agora de se alimentar bem, continuou, antes que o sapo-rei o arranque daqui de volta, sei que isso não vai demorar e nem sei se arrancará apenas você, afinal fui cúmplice da armadilha e logo nessa minha oportunidade definitiva de vestir-me na pele humana. -Mas, não importa, o sapo-rei há de entender- continuou numa voz suave para não ferir-me os pequenos tímpanos, afinal ele é sábio e só sábios sabem entender. -Sei que queres muito agora cometer uma vingançazinha, sei de tudo o que passou...corra para fazê-la, porque não haverá muito tempo, corra e volte depois levando o alívio de tê-la feito, e vou sim, vou espera-lo durante os dias que me restarem, quero conhecê-lo homem, quero amálo e dedicar-me a você para sempre. Colocou-me no chão, uma tina d´ água ao lado e acreditem se quiserem, meia dúzia de lesmas fresquinhas , iguais àquelas que havia levado para dentro do tronco, na minha fase do jejum que me levou à magreza e pequenez de um girino. -Amanhã não quero vê-lo, corra para vingar-se, aguarde o raio de retorno que será tão certo nesse momento de trovoada, cumpra lá as penitências que lhe forem impostas, desculpe-se e prepare-se para a sua metamorfose de volta. Beijou-me na testa e apagou a luz.
Como pode um sapo saltitante cruzar uma cidade maluca como esta? Basta um descuido para virar um estêncil grudado no asfalto, fui coaxando comigo mesmo, enquanto atravessava parques e jardins em direção ao local da vingança. Sabia que o filho-da-puta morava naquela direção, estava na pele de sapo mas com inteligência e senso de direção igual à dos humanos, afinal já fui um deles, não fui? Sabia perfeitamente que era no fim de uma rua sem saída, uma casa geminada, quantas vezes me obrigou a deslocar-me até lá de madrugada para lhe entregar documentos, quantas vezes, até sabendo que em algumas delas tive de levar meu filho em febre no banco de trás para não deixá-lo sozinho. Gordo, nojento, corno, filho-da puta! Sei que era uma travessa da avenida principal, sim tinha esse nome, principal, sabia que era perto do parque em que estava, lembreime da estátua, exatamente no momento em que uma ave gigante quase me pega pelo cucuruto. Passou num vôo curto razante, bico longo e afiado, quase me trespassa. Saltei num pulo digno de dar inveja às pererecas e cai dentro de uma cesta de lixo. Acalmei-me e aproveitei para sugar as formiguinhas ali em passeata e ganhar forças para continuar a caminhada. Sabia que a avenida principal deveria estar no próximo cruzamento, apressei-me em saltos curtos, sabia que o maldito raio iria eclodir a qualquer momento e cheguei à esquina.
Não consegui, ali do chão, ver o nome na placa, mas precisava vê-lo e não tive dúvida, saltei o mais alto que pude e consegui ler suas letras do final, pal, só podia ser ela, avenida principal. Bem, daqui até lá agora vai ser alguns saltinhos , pensei, continuando em marcha e rapidamente dei-me de cara com o portão preto, olhei por entre as grades e lá estava o carrão dele, tão sujo por fora quanto o gorducho sempre fora por dentro. Era o mesmo carrão que ganhara do laboratório como bonificação pela estupenda venda feita a um grande órgão público. Venda essa iniciada e trabalhada meses e meses por mim, mas concluída, como sempre, em segundos por ele. Entrei pelo vão das grades e arrastei-me pelo gramado sorrateiramente até o vitrô da janela do banheiro. Vi a tela que ele ali colocara, até me mostrara um dia dizendo que era para evitar a entrada de abelhas ou de sapinhos e rãs, que adoram entocar-se em lugares úmidos, mas sabia também o segredo para removê-la. Como era fixada num trilho de madeira, bastava forçá-la para baixo e tirala, o que fiz rapidamente com as patas magras, mas no momento enérgicas para cumprir minha vingança. O quadro de tela, foi tanta a força que apliquei, caiu no chão, deu para ouvir o barulho. Saltei de forma ágil para cima da tampa da privada, com as patas levantei-a e joguei-me la dentro. Não deu outra, em segundos sua mulher, aquela vagabunda flor que se desabrocha frente a qualquer caule duro, abriu a porta do lavabo e ficou olhando, tentando descobrir de onde teria vindo o barulho.
Viu o quadro no chão, recolocou-o no vitrô e aproveitou para fazer um xixi, que as mulheres não conseguem ver uma privada sem logo sentar-se. Abriu a tampa, agachou-se e desandou a urinar enquanto eu , para não ser atingido pelos jatos quentes e amarelos, comprimia o corpo grudado nas bordas da louça. Levantou-se, já chamando o gorducho para comunicar o fato da grade e quando olhou o vaso no momento de puxar a descarga, inflei-me todo, multipliquei meu tamanho por dez e fiquei olhando-a frontalmente com toda a minha cara de sapo. Foi um berro só, daqueles tão ensurdecedores quanto o do raio que aguardava, saiu trombando com o gorducho, que ficou também atônito ao ver-me. Bateu a tampa num estalo e puxou a descarga sem parar achando que eu escafederia pelo ralo. Puxou-a, puxou-a, e eu ali grudado na louça, usando e muito dos poderes de minhas patas adesivadas . Senti-o bufar, sabia que já estava suando, ao mesmo tempo em que querendo trucidarme, também com medo de um salto meu repentino em sua fuça. Boa idéia, pensei, e quando ele abriu a tampa para ver se eu já havia escorrido ralo afora, firmei o pé na louça e saltei em seus olhos, agarrando seu tufo frontal de cabelos com tanta força que ele foi andando para trás, desequilibrou-se, tropeçou numa falha do piso e caiu batendo forte a nuca no peitoril do vitrô. Um baque forte e silêncio em seguida. Ouvi sua mulher gritando para o vizinho, o gordo estava ali no chão, inerte como aquele cavaleiro do lago. Passei por cima dele e tive tempo ainda de lhe dar uma cuspidela na boca, cuspida de sapo, gosmenta e, queira Deus, venenosa.
Nem tive tempo depois de alcanรงar a avenida, fui logo sentindo um calor me corroendo as entranhas, seguido de uma explosรฃo... chegara o raio!...olรก, sapo-rei!... Agora, o raio que me parta!
Em questão de segundos, despenquei num brejo, tal qual uma cápsula de foguete ejetada após entrar na atmosfera. O brejo dessa vez era outro, exatamente de frente para a arena de pedra onde reinava o sapo-rei. Vi-o de longe, de costas, com as mãos cruzadas. Percebi que minha recepção não seria nada amável, como fora da primeira vez. Fui saltitando de mansinho, cabeça baixa, até chegar a ele. Continuou de costas e disse-me em tom reverberante:pelo jeito você gostou aqui do reino dos sapos, pelo jeito gostou tanto que parece querer ficar aqui para toda a eternidade, não é? -Desculpe-me,sapo-rei, tentei interrompê-lo, mas ele continuou:prefiro os sapos aqui do reino, os irracionais, são mais verdadeiros, não agem às costas, são frontais em suas intenções; vocês, sapos racionais, que de racionais não têm nada, usam da inteligência até para o que não é inteligente, enganar o próximo!- disse, agora virando-se para mim. -E o próximo, seu safardana, o próximo nesse caso fui eu! -Eu, o sapo que o recebeu de braços abertos ! -Que coisa feia, meu amigo! Que coisa feia! -Não vou agora nem ouvir suas explicações...e nem também as de Romilda!
-Vai ficar no brejo escuro pelo menos durante uma lua...uma lua inteira! Só assim poderá refletir sobre o que fez! -Daqui a uma lua conversamos de novo... e está decidido!
Uma força superior pareceu comandar minhas pernas, foi me arrastando para esse brejo que não conhecia, nunca Romilda me falara dele, foi me arrastando, me arrastando e para lá me levou. Era digno mesmo de um brejo escuro ! tenebroso, frio, úmido demais, nem a lua ousava refletir sua luz por ali. Sem essa luz, como saber de sua mudança de fase, eu que deveria cumprir uma pena equivalente ao tempo de uma lua? Como contar esse tempo sem ver a dita-cuja? O brejo era mesmo de dar medo a qualquer sapo, imagine então para um sapo pensante. Voltaram-me à mente pesamentos suicidas, dessa vez tão tenebrosos quanto o brejo, como chafurdar-me na lama e ficar de cabeça enterrada até perder os sentidos, arrancar os olhos para ficar cego...mas o que é uma lua diante de tudo o que teria pela frente? tentei acalmar os pensamentos...o que é uma lua de penar diante de luas e luas de sonho ao lado de Romilda?...não, matar-me não, tenho todo o resto de uma vida humana pela frente...fui me acalmando e controlando o meu penar ...clamei até por Bandeira, luz eterna do reino humano da poesia...poeta, aqui como humilde sapo, diga-me: como enfunar o papo e sair da penumbra?
Vencido o tempo de uma lua, a mesma força superior que me arrastou para o brejo escuro, empurrou-me para o sol da liberdade. Palavra é o que não faltava ao sapo-rei, uma lua é uma lua, não são duas nem três, como seriam para os humanos sem palavra, quando protelam para cumprir o prometido, mesmo sabendo de que dele dependemos. Lá estava eu de volta ao brejo ensolarado e ao meu tronco, o que foi cumprido. Aprendera a lidar com a solidão e constatar que ela própria é uma companheira, quando não temos outra na pele de outrem. Que ela própria se incumbe de trazer a nós ilustres companhias, como nós mesmos, que muitas vezes pouco nos conhecemos, como Deus, de quem quando não precisamos ,nos esquecemos. Aprendi também que a escuridão nos faz enxergar muito mais longe, conseguimos ver estrelas que nunca vimos e até a deslumbrar a paz que nunca deslumbramos.. -Valeu, não valeu?- disse o sapo-rei, assustando-me em meio aos pensamentos. Estava ali atrás de mim, na moita, ouvindo-os todos. -Não sabia continuou que na imensidão das profundezas abissais dos oceanos vivem as espécies mais fantásticas de plantas e seres? -Acha que as estrelas que salpicam a imensidão dos universos são solitárias? Acredita que a treva as assustam? -Não, meu caro ,elas têm luz própria, assim como todos temos, forças iluminadas que desconhecemos e que pouco usamos.
Residem em nós exatamente para serem acionadas frente ao desconhecido, são forças estepes, literalmente para quando nos descobrimos a pé na estrada da vida. -Desculpe, sapo-rei, não consegui ainda de fato desculpar-me, gostaria de ajoelhar-me a seus pés e fazê-lo agora. -Ajoelhe-se e desculpe-se diante de si mesmo, só assim irá crescer. -Romilda terá o pito dela também! Não passará impune, dessa vez será em forma de advertência....não é porque ficou apaixonada que pode trair confianças...e também para que fique atenta, pois pode voltar como foi, num estalar de raio.
Romilda, eu sabia, sentia-se também em solidão. Cada um de nós com o seu penar, em esferas diferentes. Ambos ansiando por um encontro final que unisse nossas vidas, angustiante por ser um encontro sem ano, dia ou hora prevista. -Sim, ela está em solidão- disse, confirmando o poder de ler pensamentos- a única coisa que a fará crescer em forças é a tarefa final que deverá cumprir na esfera humana, para que possa finalmente nela fincar-se até o fim de seus dias, sem mais qualquer ameaça de uma nova metamorfose anfíbia. -E essa tarefa, lhe disse em sua despedida, refere-se a um enorme sapo
entalado em sua garganta desde a primeira infância, que lhe causou perdas e danos irreparáveis e que, por ser ainda criança na época, amedrontou-se em vomita-lo, e teve ainda de conviver, em ânsia, com aquele que a fizera engoli-lo. -E o termo engolir , meu caro, aqui tem duplo e repugnante sentido. Romilda era apenas uma menina de 6 anos quando o pai, vivendo em alcoolismo e libertinagem camuflados, tentou na calada da noite, com a mulher ausente por hospitalização, aproveitar-se sexualmente da própria filha. -Em meio aos lençóis da cama de casal onde a menina o esperava aflita para saber da mãe,- disse, enxugando o canto dos grandes olhosescorregou a mão suja e sorrateira até atingir sua púbis, que ficou inerte ao sentir seus dedos. -Bulinou-a como quem bulina uma prostituta e não satisfeito ainda, puxou a mãozinha da menina para cima de seu pênis. Fê-la esfregá-lo, apalpá-lo e, que Deus o mate!, sugá-lo até chegar ao gozo. -Romilda contou o fato à mãe no dia seguinte- continuou - e essa, já doente, nesse mesmo dia faleceu. O crápula, dias depois do enterro da mulher, transtornado pelo que havia feito em bebedeira e pelo medo do que poderia resultar criminalmente de sua insanidade, colocou a menina num colégio interno fora do país e ameaçou-a quase de morte se alguma coisa viesse um dia a vazar. Seu medo mutiplicava-se dia a dia, uma vez que o safardana, acredite! presidia, como preside até hoje, mantendo ainda o prestígio e a alta remuneração, uma organização internacional de amparo à infância.
Mais um pedófilo como tantos outros que os humanos vêem através da TV e da internet e que alguns deles se seguram para não escarrar ou vomitar na tela. -Quando aqui chegou , e já não era sem tempo, ainda sentia, quase 30 anos depois, o repugnante sabor do esperma paterno lhe revirando as tripas. Nos primeiros dias, vomitou compulsivamente , assim como o cavaleiro da lagoa. -Ela nunca me disse, quer dizer, nunca me coaxou nada a esse respeito, disse-lhe absolutamente chocado pelo que ouvira. -E nem iria lhe dizer. Certas ânsias internas não encontram outras maneiras de serem expelidas que não sejam através de golfadas de vômito. -E só estou lhe contando esse fato- pigarreou forte - porque ela própria me pediu que o fizesse, antes de partir.
Passei a noite inteira acordado dentro do tronco pensando em Romilda. Como pôde um pai fazê-la engolir do próprio esperma que a gerou? Não se pode engolir sapo mais repugnante que este, ainda mais numa primeira infância. Nunca ouvira história de humilhação tão chocante. Eu, que lhe falara tanto dos meus sapos, estava agora diante da minha própria pequenez.
Que sapos, que nada! perto do que passou Romilda engoli girilos apenas, quanta pequenez a minha, quanto egoísmo ao tentar mostrar-me a ela como vítima, escudando-me em adversidades tão insignificantes. Que sapos podem representar um chefe prepotente e maldoso ou uma vaca vestida de esposa perto do drama vivido por Romilda? Se pensar, nada! Ainda mais levando-se em conta de que os meus foram sapos engolidos na fase adulta, tinha como fechar a boca, ou vomitá-los em seguida, não o fiz pela minha própria pequenez que agora assumo. Romilda, pobre criança!, teve de abrir a boca a força, engolir tudo sem saber o que engolia, e
depois, ainda, de fechá-la
em gosma para
sempre. Guardou o ranço dentro de si por uma infância e adolescência inteiras! Fiquei sabendo pelo sapo-rei que ela aos catorze anos fugiu do internato , encontrou um casal de velhinhos solitários que a adotou, continuou seus estudos até formar-se secretária e nunca mais soube nem quis saber do canalha que se dizia seu pai. Mas, sua missão de vomitar todo esse embrólio entalado , teria de ser cumprida de forma frontal e pública, em golfadas dirigidas à sua cara, para que depois a justiça cuidasse dele.
Era um domingo ensolarado e Romilda saiu logo cedo, passou por uma floricultura e dirigiu-se ao cemitério. Ali, debruçada ao túmulo da mãe, que pouco conhecera, intercalou orações e lágrimas que a fizeram sentir-se mais aliviada. Prometeu, a alma da mãe parecia ali presente numa ramagem florida debruçada ao lado, que iria vingar-se duplamente, tanto do canalha que uma tivera como marido, quanto do monstro que outra tivera como pai. -E será no próximo Domingo, mãe! Eu lhe prometo - disse em altos brados. Ao deixar as flores sobre o túmulo, surpreendeu-se ao ver ali ao lado encolhidinho um sapo que a olhava atentamente. Tentou chegar perto ,como que querendo pegá-lo, quando em rápidos pulos ele escapou pela mata. Mas conseguiu ouvir de longe, ecoando pelo labirinto de mármores paralelos, um coaxar que conhecia de longe pelo pigarro.
E o próximo domingo chegou!
Havia muita gente espalhada por um amplo jardim, todas impecavelmente bem vestidas, trajes e chapéus longos, garçons de blacktie, uma vasta mesa de mármore sobre o gramado ostentando acepipes diversos e champagne servida em taças que reluziam tanto quanto os anéis e colares que por ali desfilavam. Neste domingo, mantendo uma tradição de anos, haveria uma confraternização entre os executivos e executivas de todos os escalões, pelos trabalhos desenvolvidos e pelas altas arrecadações obtidas em prol das crianças desamparadas. Sim, o cabeça da festa era o pedófilo, aquele que se empoava ao dizer a todos que colocava mamadeiras em mãos de crianças famintas, claro que ocultando o fato de que também colocava outros tipos de mamadeira em bocas de crianças indefesas. Lá estava ele, encobrindo de charme a sua obscenidade, beirando os sessenta anos e sentindo-se livre como um pássaro, sem saber estar na mira de uma espingarda.
Romilda, que se preparava para chegar ao evento, já comunicara no dia anterior à polícia do atentado ao pudor infantil que sofrera, prestara ali mesmo frente ao delegado seu depoimento com detalhes de arrepiar o batalhão inteiro. Provas ? sim, tinha-as em mãos , numa pequena folha de papel, descrita em letras trêmulas,assinada pela mãe e depois reconhecida em cartório. Recebeu-a da enfermeira-chefe que acompanhou a coitada em seu leito até a morte e lhe prometeu que a entregaria um dia à filha.
Romilda vestiu-se num preto longo, enfiado pela cabeça direto sobre o corpo magro, sem nenhuma roupa íntima por baixo. Com o rosto sem qualquer maquiagem e os cabelos soltos e revoltos, olhou-se no espelho da porta já com a chave em mãos e nele conseguiu ver refletida a criança que fora, de cabelinhos soltos e revoltos, sem qualquer maquiagem. Pelos jardins, a falsidade, a maldade e a pedofilia desfilavam lado a lado, todas irmanadas pelo obscurante parentesco. Eis que chegou Romilda, exatamente no momento em que o pai preparava-se para o discurso de abertura do evento,quando postou-se como estátua fria à sua frente, causando um certo frisson aos presentes, ali frontalmente aglomerados. O pedófilo, ao vê-la e reconhece-la, emudeceu. Olhou de longe para os seguranças, mas ela postou-se firme e decidida frente ao microfone. Distribuiu um olhar fulminante a todos e tirou da bolsa uma boneca pelada, de cabelinhos soltos e revoltos como os seus. -Esta boneca fui eu, disse com a voz amplificada pelas potentes caixas de som, tem apenas seis anos, como eu já tive, e como eu, teve nessa inocente idade seu órgão sexual bulinado por um pedófilo. Enquanto falava, como num teatro de marionetes, suas mãos bulinavam a boneca. -Primeiro, ele bulinou-a...bulinou-a... -
continuou sem parar com os
dedos - e depois, acreditem!, fez sua boquinha sugar seu pênis nojento,
como quem suga uma mamadeira. Tirou da bolsa um pênis de borracha e enfiou na boca da boneca. -Daí, forçou-a a sugá-lo - prosseguiu propositadamente através de palavras chulas- até gozar e encher sua boquinha de esperma. A essa altura, o pedófilo em pane nem se mexia e a platéia, em absoluta mudez, aguardava o desfecho. -Depois disso- continuou, colocando a boneca e o pênis na bolsa, - a bonequinha cresceu, mas cresceu assim...- desceu as alças do vestido e largou-o ao chão, exibindo o corpo totalmente nu-... despida de sua infância,despida de sonhos, despida de amor, despida de tudo. -Cresci essa boneca enojada que aqui está à frente de todos vocês, inclusive do pedófilo que a enojou para sempre. - E esse pedófilo, senhores, está aqui, disse apontando-o com o dedo em riste, e é meu pai! Um murmúrio coletivo tomou conta do ambiente, mas ela finalizou em tom ainda mais alto. -Pai- disse olhando-o nos olhos- guardei anos o seu esperma em minha boca para vomitá-lo hoje na sua!- aproximou-se dele e disparou uma cusparada em sua boca. Enfiou o vestido pelas pernas e saiu vagarosamente, ao mesmo tempo em que o delegado já sinalizava com a cabeça, autorizando o policial armado a algemá-lo ali, à frente de todos. O sapo-rei, ao meu lado no gramado, mal se continha nas pernas tal a emoção que sentia.
Autorizara-me a lhe fazer companhia, e num estalar de raio, chegamos a tempo de assistir tudo. E assistimos de camarote. Ele, a tudo o que precisava assistir para ter prova de que não preparara a rãzinha em vão, e eu, a tudo o que queria ver, que para mim se resumia na própria Romilda. Ao vê-la de longe, quase chegando ao portão da mansão, tentei num salto alcançá-la, mas fui seguro pela patas do sapo-rei. -Calma, meu caro- disse cuspindo de lado- você hoje é só platéia, a protagonista foi a Romilda. -Tenha calma, esta rãzinha vai logo estar entre nós, pela última vez e durante um espaço de tempo muito curto, apenas para que possamos aplaudi-la de pé. -Vou até preparar- finalizou- um banquete repleto de lesmas, besouros e lagartas para a sua festa de despedida, todo decorado com bromélias gigantes. -Mas não vai convidar o papudão,vai? perguntei-lhe, ao que respondeu com uma careta enrugada de interrogação.
Romilda, depois de ter se desentalado e se livrado das ânsias, sentiu a vida correndo leve, nem quiz ler os noticiários sobre a prisão do pedófilo. Entrou rapidamente com uma ação contra o sacana, pelos danos físicos e morais sofridos, somados ao crime inafiançável de pedofilia, este ainda agravado ao máximo por ter sido pedofilia paterna, enfim, conseguiu uma indenização milionária.
Usou pequena parte do dinheiro para reformar o túmulo da mãe, até então abandonado, e para uma lápide de mármore que ali instalou frontalmente. AGORA PODE DORMIR EM PAZ MAMÃE! eram as palavras ali gravadas em baixo relevo.
No reino dos sapos, tudo continuava como dantes. Muitos papos enfunados, coaxares em vários tons, insetos mil oferecendo-se como prendas às línguas finas e pegajosas, e cobras às pencas entocadas à espera de dar seus botes, tudo num equilíbrio perfeito. O sapo-rei, anfíbio de palavra, já fazia suas preparações para recepcionar a rãzinha heroína. Bromélias aqui, samambaias ali, ambientes muito hidratados para transferir água às peles anfíbias, sabia que a comilança próxima iria causar muita sede. Convidou o papudão e sua trupe de seresteiros para animar a festa, prevenindo-o porém de que qualquer deslize em seu comportamento poderia transportá-lo ao brejo escuro, por um período de luas equivalente à gravidade do deslize. Chamou a todos do reino, fazendo divulgar coaxares de tons festivos, conseguiu até com as pererecas, que trabalharam unidas, uma tiara de flores para adornar a cabeça da ilustre visitante, mandou convidar sapos de outros reinos, como o sapo-golias, um africano gigante, o maior de toda a espécie anfíbia.
Tudo preparado, eu ali , patas à obra, me desbobrando mesmo sentindo o coração sufocado dentro do peito, tal a saudades de Romilda. Ela mal chegou, como sempre num estalar de raio, e num estalar de paixão, saltou ao meu lado. Dali ao tronco foi um pulo também. Matamos as saudades, nos acasalamos seguidamente, sem trocar palavras sobre os últimos acontecimentos que ela vivera , somente grudação, ossos apertando ossos, língua se enrolando em língua, tudo isso já ouvindo de longe o som da sapaiada toda em clima de festa. -Agora é com você- disse, esticado numa folha, quase sem fôlego. -Vamos lá, preciso muito agradecer ao sapo-rei por tudo o que fez . Não fosse por ele, e por você, logicamente- disse com uma lágrima escorrendo pelo canto dos olhinhos esbugalhados- eu não teria tido outra escolha que não fosse ficar por aqui, literalmente assistindo meus dias finais indo pro brejo. Mal entramos ,um coaxar coletivo ecoou na arena. O sapo-rei, em seu estilo sempre majestoso, chegou a ela, deu-lhe um forte abraço e colocou em sua cabeçinha a tiara de flores. -Bem-vinda!- disse- bem-vinda sempre, e especialmente hoje pela última vez! Mais um estalar de raio e você volta definitivamente ao corpo de Romilda! -E quero que parta feliz, levando a lembrança deste velho sapo-rei-disse, entregando a ela um presente embrulhado numa folha. A sapaiada, sem nada entender do coaxar dele em tom humano,ficou toda de olho estalado em Romilda abrindo o presente.
Era uma boneca-rã, uma boneca mesmo, feita de folhas secas e cipós. -Essa boneca representa você no reino dos sapos, uma boneca que aqui nunca sofreu as humilhações sofridas na esfera humana, diferente daquela que usou como marionete frente ao pedófilo. -Para lembrar sempre de que os animais irracionais se mostram quase sempre mais racionais que os humanos. -Como sabe dessa marionete, sapo-rei? Não me diga.... -Depois lhe digo, querida! Agora é festa! A pedra maior da arena parecia um palco e a luz da lua cheia convergia inteira para lá, como um holofote direcionado à festa. O sapo-rei não medira esforços para abrilhantar o evento, convidara anfíbios de todas as espécies, e olha que essas somam quase quatro mil!, disse-me depois, decorara a arena de ponta a ponta com bromélias multicoloridas, samambaias gigantes debruçando-se lá no alto, uma longa pedra de mármore repleta de cestas trançadas exibindo como entradas minhocas viçosas, lesmas fresquíssimas, isso sem falar dos bufês quentes ao lado, apresentados sobre tochas acesas circundadas por um bailar de mariposas e borboletas, enfim, criara um evento para ficar na memória de Romilda, infelizmente nunca na dos sapos que não as têm . Mas, se a vida vale pelo momento, o momento era de vida para todos, dos humanos aos anfíbios. Para a abertura foi convidado o sapo-cururú, o que tem o coaxar mais alto de todo o reino, um sapo baixinho, atarracado, foi logo saltando de uma pedra a outra e abriu o gogó lá em cima.
Parecia um tenor, com seu coaxar forte ampliado pela acústica da arena. Não sei dizer se sapos de verdade se arrepiam, mas eu me arrepiei. E seu coaxar grave era acompanhado por um agudo e fininho de uma rã, sem falar no coro de pererecas ao fundo. Não fosse linguajares tão diferentes, juraria alí estar ouvindo Barcelona na arena em que um dia ouvi como humano, que era também uma arena olímpica. O sapo-rei, com seu charuto em mãos, distribuía sorrisos. Volta e meia dirigia para nós um coaxar inteligível, no que a saparia toda ao lado ficava boiando, assim como nós humanos não-croatas ficamos quando estes soltam a língua ao lado da gente. Desentendimentos lingüísticos,- concluí- são comuns a ambos os reinos....se uns aqui coaxam, outros ali croatam....
Várias apresentações foram se sucedendo, pirâmides de pererecas, uma baita rãzona engolidora de cobras, um coral de girinos, até o papudão brilhou ao lado de seus amigos seresteiros. Em toda a volta da arena, sapos e rãs saltitavam, e através de suas peles finas, quase transparentes, dava para ver seus coraçõezinhos batendo forte de emoção. Parecia de longe um salão carnavalesco, com milhares de línguas finas e longas cruzando-se no ar como serpentinas. Um momento que impressionou, o sapo-rei até pediu silêncio, foi quando o gigantão africano, o sapo-golias, exibiu sua força para a galera toda levantando uma tora nos braços, acho que a bruta tinha o mesmo tamanho do tronco em que eu morava.
Foi ovacionado de pé, ainda com o tronco lá em cima das patas, mas os aplausos se alongaram tanto, que ele não suportou o peso e a tora veio abaixo, quase esmagando seu cucuruto. Ficou ali no chão meio zonzo, meio sem graça, com a saparia toda se contorcendo, como que gargalhando. Soube depois pelo sapo-rei que o fortão alegou ter um compromisso inadiável em seu reino africano e sumiu do pedaço para esquivar-se do vexame. Romilda era só alegria. Grudou-se em mim a festa toda, mal tocou nas lesmas e minhocas, disse-me ainda estar sentindo na boca o sabor do cappeletti carbonara que havia comido minutos antes do estalar do raio. Ficou ali apenas absorvendo a água das bromélias, hidratando-se para o dia seguinte, que deveria ser o dia de mais um estalar...só que esse, de partida, um adeus definitivo num rabo de foguete. De repente, levantou-se o sapo-rei e abanou a pata para todos. -Amanhã ainda nos vemos, não é querida? dirigiu-se a Romilda,agora não vejo a hora de cair numa folha, estou sentindo meus ossos e cartilagens em pandareco. -Não vai me falar da boneca marionete, sapo-rei? -O seu sapão aí vai lhe contar! Afinal, você me autorizou a divulgar a ele, não foi? , finalizou pigarreando. Romilda esbugalhou os olhos para mim como uma bexiga, mas murchouos em seguida, abraçando-me.
Era tanta coisa que tínhamos a dizer um ao outro, que varamos a noite acordados dentro do tronco. Não podíamos perder tempo, havia muito o que planejar, decidir, o dia não demoraria a raiar, embora ainda se ouvisse um zumzumzum de fim de festa ao longe. Contei a Romilda de minha ida, como convidado do sapo-rei, para assistila de camarote vomitando seu último sapo. Disse-lhe também do orgulho que sentira, ao mesmo tempo da comoção que me causara ter conhecido capítulo tão triste e longo de sua vida, bem como tão repugnante. Senti que ela, embora livre e desentalada de tudo aquilo, iria levar um longo tempo para serenizar-se internamente, afinal o vômito havia sido frontalmente dirigido ao próprio pai.
Disse-lhe seguidas vezes que pressionaria agora o sapo-rei para cumprir minha última tarefa, de forma a livrar-me também da pele de sapo para sempre, e em breve reencontrá-la na pele de humano, e juntos vivermos até o fim de nossos dias. Afinal- disse a ela- meu último sapo a vomitar refere-se à vaca de minha ex-mulher. -Gostaria até que naquele dia, antes que houvesse se consumado a traição, um estalar de raio nos tivesse transportado, eu e a vagabunda, a outro reino animal, o dos ruminantes. -Daí, nem teria me sentido corno, porque a minha vaca estaria se cruzando com outro touro, como fazem todas naturalmente, sem causar humilhação. -O que Deus nunca deveria ter feito é transportar certas vacas para o reino humano. -Aliás, sabia que a vagabunda é chegada em vacas, coincidência não? -Vive freqüentando leilões, não sei se à caça de novos touros ou se por sentir-se em seu correto habitat. -Vaca...vaca...,meu amor- disse Romilda animando-se- o sapo que você engoliu deve ter sido um sapo-vaca, não existe o sapo-boi? só sei que é dos grandes....não adianta ruminá-lo como vaca , vai ter de vomitá-lo fora pra deixar de ser sapo. -Sim, eu sei e não sei como, entende? Já disse tudo o que poderia ter dito na cara dela, já a ofendi de cima a baixo...
-Mas não é na cara dela interrompeu Romilda é na cara de todos. -Olha- continuou- o sapo-rei foi quem me preparou para aquilo que você assistiu, quando me viu pondo tudo pra fora. Ele me fez entender que alguns sapinhos corriqueiros do dia-a-dia a gente engole e digere, saem nas fezes. São sapinhos fáceis da gente se livrar, basta rebater com palavras de troco, um desaforo aqui, uma resposta desaforada ali. -Mas, sapões enormes que nos entalam, daquele que coaxam dentro de nós às vezes por uma vida inteira, esses têm de ser vomitados publicamente. São desaforos que foram além, nos humilharam perante os outros, e porisso devem ser expelidos na presença de todos. -Só assim nos livramos deles me disse o sapo-rei na época. -De nada adianta- continuou como se fosse o próprio sapo-rei falando- a gente os vomitar em casa ou apenas na cara do ofensor, isso é muito pouco, a ofensa pública continua impune. É preciso que o mesmo público que a a assistiu, justiça seja feita, assista o ofensor recebendo a humilhação de volta. -Mais ou menos como dente por dente, ofensa por ofensa- dá pra entender? -Claro, meu amor- respondi cabisbaixo- vou me concentrar , se preciso for me transfiro compulsoriamente para o brejo escuro, lá entre a paz, a treva e o medo, idéias macabras hão de surgir...e preciso delas logo, ter o enredo em mãos para poder representar a peça. -Só que este enredo já está aqui! disse ela apontando a testinha com as patas finas. -Já está aqui e preste muita atenção, porque vai agora conhecê-lo tim tim por tim tim- finalizou me abraçando.
Uma leve réstia de sol invadiu o tronco anunciando o amanhecer. Romilda contou-me o plano à exaustão, até usou um galhinho e uma folha para traçar detalhes da a idéia à minha frente. Se disse um dia para aquele gordo corno, filho-da-puta, do que um sapo seria capaz, e ele viu, agora posso dizer: prepare-se vagabunda, você vai ver do que um ex-touro chifrudo é capaz!
O sapo-rei, comandando ali a saparia em faxina pesada na arena, recebeu Romilda já lhe dizendo da saudade que iria sentir. -Não quer mesmo ficar aqui para sempre? Olha, pense bem, você está trocando diamante por vidro! Se quiser, fica que o brejo é seu, disse abraçando-a longamente. Eu, ali ao lado, só na expectativa do raio. -Até já, meu amor- disse ela num último beijo- até já, por que agora quem vai estar lá na platéia sou eu. Você me assitiu na pele de sapo, e eu vou aplaudi-lo na pele de mulher! Mal terminou de falar e num estalo desapareceu.
Fiquei de tal forma entusiasmado com o plano traçado por Romilda,de fato uma sapinha sapeca, que apressei-me em falar com o sapo-rei, conseguir sua autorização o mais rápido possível para embarcar no meu raio.
Logo no dia seguinte, lá fui eu tentar encontrá-lo, cruzando matas e lagos, era uma distância e tanto, mas graças à minha rãzinha-guia eu conhecia o caminho de cor e salteado. De tempo e tempo, dava uma parada para me hidratar e reabastecer o corpo, estava com a língua tão treinada que inseto nenhum me escapava, fosse qual fosse o ângulo. Vez ou outra descansava também, folhas macias é o que não faltava naquelas matas, de todos os tamanhos e formatos, umas mais ásperas, perfeitas para coçar as costas esfregando-se nelas, outras mais bojudas, que me faziam quase desmair no sono de tão confortáveis, enfim, não podia reclamar da vida de sapo, tudo ao alcance da minha língua e do meu corpo sem gastar nada, a não ser energia. Já devia estar a meio caminho andado, senti as pernas doloridas de tanto querer ganhar terreno em extensos saltos, que acabei decidindo dar uma parada mais longa, tentar realmente dormir. Acomodei-me numa folha de bananeira, de tão larga que era, me permitia cobrir-me com suas bordas. O frio naquelas matas é intenso, é tanta umidade, que parece até que a natureza toda chora de noite. Tentei pegar no sono, mas não conseguia deixar de pensar em Romilda, estava muito ansioso pela chegada do dia de partir, fiquei ali um olho fechado e outro aberto, até que fechei os dois. Acordei em
sobressalto com uma cascavel
com o olhar fixo em
mim,devolvi um olhar estatelado no dela, parecia estar hipnotizado, faltavam-me reações, senti pernas e braços inertes, até que fui engolido.
Entrei espremido em sua longa garganta, um túnel largo que ia se afinando, líquidos e líquidos pareciam amortecer-me, pressenti que o fim doloroso e prolongado que Romilda tanto temia seria exatamente o meu. Milhares de pensamentos foram se somando, a perda definitiva de Romilda, de meu resto de vida humana, tudo isso ali sendo triturado em questão de segundos. Deus,meu Deus, seja qual fores, o do reino humano ou o do reino anfíbio, tire-me desse sufoco!- desesperei-me a clamar em coaxos alucinados, já com a garganta por fechar. E acredito que o Deus dos humanos tenha me ouvido, talvez quem sabe por não ser aquele o meu momento, talvez por não aceitar que minha morte fosse consumada em outro reino que não o original no qual fui concebido, só sei que me ouviu. Senti lá de dentro a cobra sendo atacada por outro animal, deveria ser muito feroz, uma baque forte e de repente metade dela sendo arrancada e eu estava exatamente chegando nessa metade, senti até uma golfada de ar entrando... veio-me força não sei de onde para elastificar esse trecho final com as patas ríspidas e saltar de dentro dela. Mal bati no chão, saltei de novo, e de novo, e de novo. Vi o lago à minha frente e mergulhei de cabeça, procurando a maior profundidade que pudesse alcançar, desejando a qualquer preço sumir daquele pedaço. Na profundeza do lago, um ardor quase insurportável brotou em minha pele, uma dor lancinante latejou em minhas juntas, estava ali um mortovivo, meu lado sapo querendo morrer, meu lado homem precisando viver.
Cheguei arrastando-me à margem. Ali tentei espichar o corpo, tudo doía muito, para fazer meu coração deixar de pular tão descompassadamente dentro do peito. Consegui aos poucos me acalmar. Deitado ali, desliguei-me por instantes de todas as dores, olhei para o céu, salpicado de estrelas, e desandei a pensar. Como consegui me safar dessa? Que força me levou a isso? Seriam as forças estepes que temos dentro de nós, como me falara o sapo-rei? Que forças são essas, serão nossas, fazem parte de nosso DNA ou será Deus que as nos empresta em momentos como esse que passei? Se fora Deus, que Deus fora aquele? O nosso Deus do reino humano ou um Deus que desconhecemos e que agracia os anfíbios? Quanto mais pensava, mais conseguia me desligar das dores. Pude verme por fora, tudo estava no lugar, braços, pernas, a maldita nada me arrancara, apenas me esfolara com sua força maxilar e me embebera com seus líquidos digestivos internos que certamente estavam me causando tanto ardor. Tinha ainda quase meio caminho pela frente e não sabia se teria forças para continuar até chegar à arena de pedra. Estava me sentindo literalmente a pé na estrada da vida e daí lembrei-me novamente das forças estepes, venham elas de onde vierem, de nós mesmos ou de Deus, serão sempre forças abençoadas que nos permitem seguir em frente. E segui, acabei percebendo que estava ali à beira de um riacho e não de um lago como pensara. Senti que havia uma leve corrente, um suave murmurar de águas em movimento, consegui puxar um galho próximo e
nele me apoiei, e em seguida senti-me deslizando pela superfície da água, lentamente, mas em direção ao ponto que precisava alcançar, para dali seguir o restante a pé. Quando vi a arena à minha frente, acreditei piamente nas tais forças estepes, elas existem de fato e é bom nunca nos esquecermos disso. Entrei rastejando e deparei-me de cara com o sapo-rei. -Tiveste sorte, meu amigo. O que pensou que fosse uma cascavel, era uma cobra-cipó, uma das poucas desdentadas que habitam nossas matas. Elas engolem a presa e matam-na por sufocação. Fosse uma cascavel, não estaria mais entre os sapos vivos. A primeira coisa que teria feito seria perfurá-lo com as potentes presas já inoculando um terrível veneno. -Aliás, tiveste dupla sorte. Uma, de não ter sido cascavel, no que teria morrido em segundos. Outra, de não chegar a morrer por sufocação, lhe salvou um falcão peregrino que cortou-a com seu potente bico, que parece uma tesoura. Ele picotou a cobra antes de carregá-la para o ninho. E daí, tiveste a sorte de escapar. -Acho que tiveste ainda uma terceira sorte: a dele não ter picotado o corpo da cobra no ponto em que você estava...senão teria sido picotado junto. -É muita sorte para um dia só, não acha?- continuou, pigarreando de lado. -Se pensar bem, o sábio mecanismo da cadeia alimentar o salvou. -Mas vejo que está bem machucado, meu caro. Venha comigo, que tenho aqui umas ervas que vão apressar a sua recuperação- disse caminhando
em direção a uma das galerias da arena. Enquanto espalhava diversas folhas moídas pela minha pele, continuou de forma pausada. -Sabe a diferença das cobras de nosso reino das do reino humano? As cobras daqui são visíveis e identificáveis, estão em peles de cobras, cascavéis, gibóias, cobras-cipó e milhares de outras. Seus botes são previsíveis, e são botes com a intenção única de apanhar e engolir a presa, garantindo-lhes a refeição. Barrigas cheias, vão embora, e só voltam novamente a atacar quando a fome de novo as ataca. A presa nem tempo tem para sentir a dor, encontra imediatamente o alívio da morte. -As cobras do reino humano,meu caro- continuou- estas são invisíveis, estão na pele de sentimentos rasteiros, como maldade, inveja, ódio e outras dezenas deles. Seus botes não são previsíveis e sempre são dados de forma dissimulada, através de vários mecanismos, como palavras, pensamentos, olhares, rogações. -Não os dão visando se alimentar, fazem-no sempre para tirar vantagens ou para humilhar suas presas. Não as devoram fisicamente, as devoram emocionalmente, pouco a pouco, dia a dia, às vezes durante uma vida. Acabam, assim, por fazer com que a presa sinta a dor do início ao fim, dor que se prolonga sem encontrar o alívio da morte e, sim, o suplício de continuar vivendo.
-Prefiro as cascavéis!- finalizou- tanto que nunca mais quis metamorfosear-me de volta para aquele brejo de pedra. -Assim como o papudão disse, querendo engolir o que disse -...assim como outros...como tantos por aí tentou disfarçar. -Como o papudão,sapo-rei?....não vai me dizer que ele também... -Não vou dizer nada, você está aí todo esfolado...vai querer se meter em mais encrencas? -O papudão,sapo-rei...o papudão também é ser humano? -O papudão, o papudão...sei lá do papudão... -Por favor,sapo-rei, conte-me a verdade- insisti -O papudão...agora já disse...é, o papudão é como você, mas deixa ele de lado que está muito feliz entre os anfíbios... -Agora entendo- forcei continuar-
entendo aquela paixão dele pela
rãzinha, na verdade ele a compreendia. -Mas nunca se fez entender - interrompeu-me- e nunca deixou vazar o que eu acabei deixando vazar aqui. -Para a rãzinha ele era um sapo a mais entre os milhares....nunca tentou aproximar-se dela como humano porque nunca mais quis voltar a esse reino. -O sapo que engoliu há anos ficou engolido para sempre, já apodreceu com certeza. -Não fez nenhum esforço para vomitá-lo?
-Não, meu caro, não haveria tempo e não houve interesse dele...preferiu f icar por aqui... Permaneci na arena por alguns dias, até que me recuperei. Contei ao sapo-rei dos planos que traçara com Romilda para vomitar o meu último sapo na esfera humana. Ele concordou com Romilda de que eu deveria fazer tudo ao vivo e publicamente. -Não vejo aí maldade, vejo sim justiça!- disse-me firmemente. -Já está bem?- perguntou-me em tom de estar pronto para uma decisãotem absoluta certeza de que já pode partir? -Respondi que sim e vi no espelho de seus olhos o clarão do estalar de um raio.
Incorporei-me num grande parque da cidade, parecia ser domingo, a avenida em frente quase deserta, apenas algumas crianças ali correndo. Desta vez, cheguei já na pele de ser humano, sentindo-a não tão confortável em meu corpo, talvez um pouco folgada demais já que emagrecera muito em decorrência do que passara. Ao meu lado um orelhão, lembrei-me da minha criança, e liguei imediatamente para meus pais, explicando que estivera fora do país coordenando um demorado trabalho para a minha companhia e que estaria chegando dentro em pouco. Já na casas deles, ambos de idade, pude dormir com os dois olhos bem fechados, ali não era reino de cobra nenhuma, nem das humanas, nem das dos répteis. Fiquei longamente abraçando meu filho, não tinha explicações para tudo o que perguntava, mas o afeto e o carinho explicam silenciosamente quase tudo. Na manhã seguinte, na mesa do café , mal consegui tocar nos ovos que minha mãe preparara,tantos foram os ovos que vi no reinos dos sapos.
Caminhei longamente com meu filho pelo parque sentindo ainda certas dores no corpo, pareciam ter me acompanhado. Na volta, liguei para um amigo, também amigo de minha ex, como ela um apreciador de leilões, tentando checar quando seria o próximo, disse até que gostaria de encontrá-la, pedi-lhe que confirmasse a ida dela mas que não dissesse nada, iria fazer-lhe uma supresa, talvez até levasse o nosso filho que ela não via há tanto tempo. Fiquei sabendo que iriam no próximo domingo, já haviam até combinado, tratava-se de um leilão importante, vacas holandesas de porte, enfim passou-me todos os detalhes. Vacas holandesas, será que estas, não as dos pastos, as de Amsterdã e adjacências, também cruzam a torto e a direito com os touros louros que por ali abundam? pensei antes de desligar e agradecer. Despedi-me de todos, dizendo a meu filho que voltaríamos a ter um novo lar, uma nova família, prometi-lhe que teria uma surpresa muito agradável e em muito breve. No escritório disse a todos que havia me recuperado de uma crise renal demorada, que havia saído do ar por um bom tempo em busca de especialistas, que chegara a viajar para fora para encontrá-los, trazia comigo até um atestado médico que conseguira no caminho com um doutor da família. Disseram-me que o meu chefe, o gorducho corno e filho-da-puta, se ausentara também, havia caído dentro do banheiro de casa, batera a nuca fortemente, estava passando por radiografias e tomografias mil, com medo de coisa mais séria.
-Não há de ser nada- disse-lhes- isso é sapinho pequeno!, no que eles ficaram me olhando se entender patavina. No sábado que antecedia o domingo fatídico, passei o dia todo enrolado debaixo dos lençóis com Romilda, percebi mais de perto que tinha de fato olhos negros, levemente esbugalhados, lembrei-me da rãzinha, o que nos fez gargalhar à solta. Na minha chegada, ela ficara estatizada ao ver-me. Não me conhecia como homem, nem conseguia me adivinhar. Pensava, fazendo uma comparação impossível com meu corpo de sapo, que eu era alto, já que era sapo de pernas longas, que era magro, já que me conhecera tão definhado, que tinha cabelos fartos... -Como sabia, se sapos não têm cabelos? disse-lhe abraçando fortemente na entrada. -Mais uma coisa eu acertei!- disse ela como se estivesse frente a seu príncipe encantado - sabia que tinha bom caráter! -Isso para mim bastaria - continuou, com os olhos retendo lágrimas de alegria- mesmo se você fosse baixinho, gordinho e carequinha! -Não, esse é meu chefe! -Já sei, o gorducho corno, filho-da-....não conseguiu terminar, tantos os beijos que trocamos.
Domingo,logo cedo, lá fomos nós. No caminho ambos com o espírito livre, vezes andávamos, vezes saltitávamos, recordando gostosamente do reino onde nos conhecemos.
O local do evento era gigantesco e rico, gramados a perder de vista, árvores frondosas, várias barracas exibindo artigos para criadores e outras bugigangas, como isqueiros por onde a chama saia por um chifre, toalhas de praia malhadas em preto e branco como a pele de uma vaca leiteira, até comprei uma para enriquecer visualmente o discurso de alívio que faria em seguida. Romilda estava lindíssima, corpo esbelto vestindo um longo preto que combinava com um fino tamanco de salto alto, lenço vermelho esvoaçando pelo pescoço e um maravilhoso óculos de sol escondendo seus levemente esbugalhados olhinhos. Havia uma barraca vendendo um suave vinho branco em taça, tomamos algumas, eu em dobro, procurando relaxar para o que viria.
De repente, de longe, toda enchapelada de branco, calça jeans de marca e cinto de vaqueira, eis que surge a vagabunda, tendo a seu lado nosso amigo, com certeza um de seus inúmeros touros, entrou abanando as mãos e sorrindo para todos, afinal era uma vaca conhecida. Ficamos, eu e Romilda, meio de lado, meio que encobertos pelo toldo da barraca, vendo-a de longe. Algum tempo depois, ouvimos uma voz radiofônica comunicando a abertura do evento, exaltando o esforço que tiveram e o alto investimento feito para expor ali vacas ímpares, holandesas de porte, campeãs por natureza, vacas para ninguém botar defeito, sonho de criadores. Continuou depois, divulgando informações para mim sem nenhum interesse, como dimensão de tetas e ubes, descendências e semens, assunto realmente exclusivo para quem se interessa por vacas. Na seqüência, numa arena campestre , os animais foram entrando, um de cada vez, contei pelo menos seis, todos exibindo seus largos e generosos portes, sob o olhar de centenas de criadores, todos empunhando máquinas fotográficas e blocos de anotações. Entre eles, lógico, a vaca principal do evento, a que não comprava sêmens como os outros, recebia-os diretamente ao cruzar com seus touros. Exibia-se um, as especificações do animal eram transmitidas e em seguida, abria-se o leilão para todos. As ofertas iam se sobrepondo em valores, sempre sob o som do quem dá mais, quem dá mais?- incitando os presentes a aumentarem seus lances.
Numa dessas oportunidades, minha ex subiu ao palco para falar ao pé do ouvido de um dos organizadores. -É agora- disse Romilda- é agora ou nunca! -Merde- completou- palavra usada entre atores para dar sorte ao que vai entrar em cena. Segui em passos rápidos e cheguei ao palco. Acabado o cochicho que a tal fazia no ouvido do tal, virou-se e deparou-se frontalmente comigo. Senti de novo as forças estepes se apoderando de mim, peguei o microfone com a mão esquerda enquanto a direita travou seu rabo de cavalo deixando-a estática ao meu lado. Olhares atônitos de todos os lados, organizadores sem entender nada, continuei segurando-a firme de tal forma que a senti perdendo as reações, como que se entregando. -Senhoras e senhores - abri os peitos para a platéia- aproveitei este grande evento em que estão conhecendo e admirando vacas de várias espécies, para apresentar-lhes a minha, ou melhor, a que foi minha. -Esta, senhores, ao meu lado, é uma vaca do reino humano. -Diferente, como podem ver, das vacas do reino animal. -A diferença é que esta pula cercas para cruzar com touros vizinhos às escondidas, sem respeitar as regras sociais do pasto em que vivemos, expondo o touro enganado ao deboche dos outros, à humilhação. Senti ela afrouxando as reações e baixando a cabeça, momento em que larguei seu rabo de cavalo.
-Diferente das vacas animais que cruzam a torto e a direito sem humilhar seus touros, porque são irracionais e não têm regras sociais a cumprir. -Sim, meus amigos, neste pasto de preconceitos em que vivemos, passei ruminando boa parte da minha a vergonha como capim. Eu, meus pais e meu filho, de apenas seis anos, um bezerrinho quase desmamado e já envergonhado. -E nada pior que estar na pele de um touro impotente e manso, que não pode defender-se com seus chifres, são chifres no sentido literal, só são vistos sob a ótica humana, diria desumana, como adorno para a cabeça. -E hoje estou aqui, me perdoem, vomitando este chifre entalado dentro de mim, para esta vaca e para alguns de seus touros aqui presentes. Tirei do bolso a toalha malhada, abri-a e joguei-a sobre ela, estava cabisbaixa e com as mãos cobrindo o rosto pela vergonha. -E encerro a minha apresentação, abrindo um leilão ao inverso: ao invés do quem dá mais, que vale para estas vacas aqui de porte, começo perguntando quem dá menos, quem dá menos por esta vaca sem compostura? Senti o microfone sendo arrancado de minhas mãos e saltei do palco à grama com toda a experiência anfíbia que agregara. Ouvi de longe a voz radiofônica solicitando atenções, transmitindo desculpas e solicitando tempo para dar continuidade ao evento. Alcancei Romilda num rápido saltitar e abracei-a, sentindo as pernas e o coração quase pulando da boca.
Ela me estendeu uma generosa taça de vinho e levantou a dela num brinde. -Sabia que você era um sapinho danado - disse corada de orgulho - mas não sabia que conseguia expressar tão bem sentimentos verdadeiros, me pareceu estar vendo o Pacino no palco. Fomos saindo de mansinho, meu amigo tentou chegar perto mas desvieio com a mão e seguimos em direção ao palco, que a saída era por ali. Romilda olhou frontalmente a vaca ali sentada recuperando a pose e mostrou-lhe a língua. Não sei como conseguiu, mas pôs para fora a língua da rãzinha, aquela fina e comprida, fazendo esbugalhar os olhos de todos.
Chegamos ao portão principal e ali no gramado lateral pudemos ver um sapão gordo nos olhando, tão gordo e enfunado, que parecia um rei.
Como era domingo, tínhamos tempo de sobra, resolvemos seguir pela avenida a pé até chegar ao parque. No caminho pouco falamos, acho que cada um conversando consigo mesmo. Ao pé de uma frondosa mangueira, tiramos os sapatos e nos recostamos a seu tronco, frente a um lindo lago à frente. Continuamos por um tempo ainda calados, olhando o céu, que se tingira de um azul dominical. Me veio a impressão de que nosso longo silêncio resultava de percepções internas profundas, de pensamentos trabalhando em busca de conclusões e, por que não dizer, de uma certa angústia ou decepção por tudo o que, num momento protagonizamos, e num outro, assistimos. Ela, de um lado, tentando buscar explicações para tudo o que vivera em sua volta ao reino humano, lembrando-se dos rostos que vira frontalmente do palanque onde dirigiu palavras ao pai, rostos que pareciam de cera, todos exibindo meio-sorrisos malevolentes, como que sulcados pela mesma ferramenta do deboche.
Rostos que vira também, momentos antes do acontecimento, expondo risinhos, uns furtivos, outros fúteis e falsos, mostrando que a espécie humana os têm, os sorrisos, como peças de uma coleção de adesivos que pode se trocar e grudar na boca, conforme a situação. Eu, de outro lado, um pouco decepcionado com tudo, sentindo-me perdedor ao invés de vencedor, uma vez que a vitória não tem seu gosto original quando para derrotar é preciso humilhar. Enfim, estávamos ambos tentando purificar nosso sentimentos. Tirei do bolso um canivete, tentando quebrar o silêncio, e comecei a gravar no tronco dois nomes, já iniciando pelo R. -Saudades do tronco, não?- disse ela, deitando em minha pernas. -Estava pensando- continuou- que aqui nos alimentamos através de uma cadeia muito diferente daquela que rege o reino animal. Lá,existe uma cadeia alimentar de fato, criada para manter o equilíbrio entre as espécies, gerada exclusivamente para saciar a fome de todos, do grandão ao grande, do grande ao médio, do médio ao pequeno, do pequeno ao minúsculo. -Aqui, mesmo que saciados fisicamente, alguns têm almas que parecem precisar de alimentos vazios, como ranço, ódio, maldade...alimentos insossos, que por não terem qualquer recheio de racionalidade, nunca as fazem se sentir alimentadas. São alimentos que parecem não ter data de vencimento. -Dão embalagem aos ditos sapos literais que engolimos- continuou- que ficam entalados em nossas gargantas à espera do vômito.
-Desse saltitar cruzado de sapos literais entre nós, resulta uma cadeia de ânsias a serem vomitadas, de um para outro, alimentando uma disputa onde quem sempre sai vitorioso é o nojo. -Os sapos de lá, do reino anfíbio -finalizou- estes são engolidos inteirinho, saciam estômagos famintos, são alimentos reais e divinos, todos com prazo de validade. -Que saudades do tronco, não?- disse esticando-se para beijar meu queixo. Ao esticar-se, percebi um fino colar transparente lhe adornando o pescoço. -Parecem diamantes! disse, alisando as pedras. -O de diamantes, meu amor, deixei lá naquele lugar admirável....na troca de reino, como me alertou o sapo-rei, acabaria ficando com um de vidro.
? O final, meu caro leitor, peço que você decida.
Num deles, casei-me com Romilda numa linda festa, meus pais e meu filho exultando de alegria, mandei meu emprego às favas e viajamos em prolongada lua-de-mel, afinal Romilda ficara rica com o alto ressarcimento que recebera do pai encarcerado pelas ofensas que a fez vivenciar ainda criança. Tivemos outros filhos e vivemos felizes para sempre.
No outro, após dar algum tempo ainda vivendo como pessoas, sentimos que esse não era o reino e sim o inferno humano. Nos convencemos tanto disso, e tão enojados estávamos de tudo, que optamos por passar o resto de nossos dias na pele de anfíbios. Como conseguimos a metamorfose de volta? Fomos propositadamente engolindo mais sapos, dos grandes e dos pequenos, sapos e sapos sem parar, sem nunca vomitá-los, até que um dia partimos de novo, num estalar de raio.