MOSTRA D E CI N EM A ESCO L A: CIDAD E ABER T A
3 - - - 16 /// agosto // 2017
AR
TSO M ED AM ENIC :A LOCSE EDADIC A TRE BA
Desde 1861, a CAIXA está presente na história de cada brasileiro, seja na concessão de crédito
É com essa conjuntura que a CAIXA patrocina a mostra Escola: Cidade Aberta, que apresenta um
acessível, no financiamento habitacional, no
conjunto de longas, médias e curtas de vários países
desenvolvimento das cidades - por meio de
e épocas diferentes que trazem a instituição escolar
investimento em projetos para infraestrutura e saneamento básico - seja na execução e administração de programas sociais do Governo Federal.
como foco central de representação, com o intuito de fomentar reflexões em torno do sistema educacional - demarcado, nos últimos anos, por processos de contestação. Por meio de exibições, palestra, mesaredonda e debates, serão oferecidas atualizações
Como instituição financeira, agente de políticas
conceituais e históricas acerca das obras, permitindo
públicas e parceira estratégica do Estado brasileiro,
a convergência e o enfrentamento de ideias
sua missão é atuar na promoção da cidadania e do
relacionadas à compreensão do espaço escolar
desenvolvimento sustentável do país. A CAIXA
enquanto um ambiente de opressão e resistência.
vislumbra em sua atribuição a motivação para estar presente em todos os momentos da vida do brasileiro, aproximando-se das suas necessidades e anseios e participando das suas realizações.
Com este projeto, a CAIXA ratifica a sua política cultural, a sua vocação social e o seu propósito de democratização do acesso aos seus espaços e à sua programação artística. Desta forma, ela cumpre seu
Nesse contexto, nada mais natural que a CAIXA se
papel institucional de estímulo à difusão e ao
aproxime da cultura nacional, propiciando acesso às
intercâmbio do conhecimento, contribuindo para a
mais variadas manifestações artísticas e intelectuais
valorização da identidade brasileira bem como para o
e contribuindo para a preservação do patrimônio
fortalecimento, a renovação e ampliação das artes no
histórico brasileiro. Por meio de sua programação nos
Brasil e da cultura do nosso povo.
espaços da CAIXA Cultural, presentes em sete capitais do país, a instituição vem, ao longo das últimas décadas, viabilizando projetos que promovem a formação intelectual e cultural da população. O Museu e o Programa Educativo Caixa Gente Arteira complementam esse esforço na formação de público e na difusão de saberes e práticas artísticas e culturais.
Caixa Econômica Federal ///////
ÍN DIC E
APRESENTAÇÃO - - - - - 09 ENSAIOS // Roberto Cotta - - - - - - - - - A Repressão e seus Túmulos - - 22 Leonardo Amaral - - - - A Subversão da Ordem - - - - - 26 Affonso Uchôa - - - - - - - - - - - - Cinema Inocente, Fábulas da Culpa - - - - - - 32 Victor Guimarães - - - - - - - Uma Insurreição Sensível contra a Monotonia - - - - 40 Luiz Carlos Oliveira Jr. - - - - - - - - A Arte de Gazetear - - - 46 Dalila Martins - - - - - - - Desajustes - - - - - - 54 Calac Nogueira - - - - - Vontade e Impotência - - - - - - 58 Maria Chiaretti - - - - - - - - - - - Notas sobre Passe Ton Bac D’abord - - - - 62 Ruy Gardnier - - - - - - - - - - - - O que a Escola Ensina - - - - 68 Hannah Serrat - - - - - Reinventar Abismos - - - - - 74 Francis Vogner dos Reis - - - - - - Smells Like Teen Spirit - - - - - 80 Ursula Röselle - - - - - - - Elefante, ou os Mistérios que o Céu Abriga - - 86
FILMES /// Abbas Kiarostami - - - - - - - - - - - Duas Soluções para um Problema - - - 96 João Nicolau - - - - - - - Gambozinos - - - - 98 Marcelo Lordello - - - - - - - - - - Nº 27 - - - - - - 100 Danièle Huillet e Jean-Marie Straub - - - - - - - - Rachachando - - - 102 Terence Davies - - - - - - - - Crianças - - - - - - 104 Jean Vigo - - - - - - - - Zero de Conduta - - - 106 Maurice Pialat - - - - - - - - - - Antes Passe no Vestibular - - - - - - 108 Yasujiro Ozu - - - - - Bom Dia - - - - 110 Leonardo Favio - - - - - - - - - Crônica de um Menino Solitário - - 112 Ana Carolina - - - - - - - - - - - - Das Tripas Coração - - - - - - 114 Gus Van Sant - - - - - - - - Elefante - - - - - - 116 Frederick Wiseman - - - - - - - - Ensino Médio - - 118 Xavier de Oliveira - - - - - - - - - Marcelo Zona Sul - - - - - - 120 Abbas Kiarostami - - - - - - - - Onde Fica a Casa do Meu Amigo? - - - - - 122 François Truffaut - - - - - Os Incompreendidos - - - - - 124 Allan Moyle - - - - - - - - - Um Som Diferente - - - - 126 Laurent Cantet - - - - - - - - Entre os Muros da Escola - - - - 128
PROGRAMAÇÃO - - - - - 130 ATIVIDADES - - - - 134 CRÉDITOS - - - - - 142 AGRADECIMENTOS - - - - - 144
por Leonardo Amaral e Roberto Cotta
Os dispositivos disciplinares estabelecem, de acordo com Michel Foucault, as relações de vigilância e controle social em algumas das instâncias sistemáticas e discursivas da sociedade. Em Vigiar e Punir, o filósofo desenvolve um pensamento que reverbera um modelo de controle configurado pelo filósofo e jurista britânico Jeremy Bentham, ao final do século XVIII, que recebia o nome de “panóptico”1. O modelo em questão possibilita que um único vigilante observe todos os prisioneiros, sem que eles possam vê-lo. Desse modo, a sensação dos prisioneiros (ou pacientes de um manicômio, ou alunos de uma escola) é de estarem sob uma constante vigilância e controle. Para Foucault, portanto, o panóptico seria um elemento fundamental na construção das relações de poder também dentro da escola. O sistema
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 2009.
1
educacional cumpriria uma função de controle e
localidade que abandona seus esforços de defesa
de reafirmação de relações hierárquicas impostas
e se rende ao inimigo, quando atacada ou invadida.
por um diagrama e uma linguagem discursiva.
Assim, a mostra “Escola: Cidade Aberta” remete
Segundo o filósofo, em A ordem do discurso, “todo
diretamente a esse clássico incontornável do
sistema de educação é uma maneira política de
cinema mundial (que trata de questões políticas
manter ou modificar a apropriação dos discursos,
a partir de atos revolucionários pulsantes), na
com os saberes e os poderes que eles trazem
medida em que traz filmes que apresentam a
consigo.”2 Desse modo, o ambiente escolar e o
instituição escolar sendo questionada ou vista
sistema de ensino podem representar tanto um
como um local possível para transformações
lugar de opressão de uma subjetividade, em favor
individuais e coletivas. A escola representada
de um modelo pré-estabelecido, como também
pelos filmes escolhidos é um lugar propício para
um local de reconfiguração do discurso que dá a
o confronto de ações, instituição na qual as
ver novos módulos de resistência e subversão da
relações de dominação e resistência se encontram
ordem.
impulsionadas por distintas instâncias de poder e luta.
A escola é uma instituição que tem como princípio
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básico proferir o conhecimento. Por conseguinte,
As contraposições ao modelo hegemônico de
o professor seria a figura responsável por
rigidez da escola estão orientadas, muitas vezes,
transmitir esse saber, ao passo que os alunos
em jogos de brincadeira que subvertem um tipo
representariam aqueles que ainda não possuem
de ordem. As travessuras e diabruras feitas pelos
a luz, de acordo com a própria etimologia da
estudantes em Zero de Conduta (Zéro de Conduite,
palavra. Assim, existe de antemão uma relação
1933), de Jean Vigo, e em Aniki Bobó3 (1942),
de poder imposta dentro dessa instituição. Não é
de Manoel de Oliveira, são expressões de uma
à toa que Foucault traça um paralelo entre quatro
anarquia que se volta contra castigos e punições
lugares cujo funcionamento é permeado pelo
impostas pela escola. O mundo adulto representa
panóptico: a escola, a fábrica, o manicômio e a
uma ameaça à liberdade, algo que também se
prisão. Nos quatro, impera um sistema severo de
confirma em Gambozinos (2013), de João Nicolau,
vigília e punição, e a verticalização das relações é
que mostra como as fantasias do universo infantil
contraposta por formas horizontais de resistência.
são potências diante das impossibilidades do universo dos mais velhos. A candura da infância
Em Roma, Cidade Aberta (Roma, Città
também pode funcionar como metáfora para
Aperta, 1945), de Roberto Rossellini, comunistas
a resolução de um problema que se mostra
e católicos italianos se unem para combater as
praticamente impossível de ser solucionado (os
tropas nazistas e fascistas que haviam ocupado a
conflitos no Oriente Médio), como ocorre em Duas
capital do país. O termo “cidade aberta” consiste
Soluções para um Problema (Do Rahehal Barayeh
numa denominação bélica atribuída a uma Embora fizesse parte da lista original de filmes desta mostra, a obra em questão não poderá ser exibida por causa de uma inviabilidade na obtenção de seus direitos. Mesmo assim, o texto dedicado a ela foi mantido no catálogo.
3
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso: aula inaugural no Collège de France, pronunciada em 2 de dezembro de 1970. São Paulo: Edições Loyola, 2006, p. 44.
2
13
yek Massaleh, 1975), de Abbas Kiarostami, ou
ensaiado por Marcelo, no filme de Xavier de
como uma fortíssima e contundente crítica às
Oliveira, Marcelo Zona Sul (1970). Assim como
limitações de um ensino que cerceia expressões
Doinel, Marcelo parece não acatar as regras e as
criativas, tal qual acontece em Rachachando (En
imposições que apresentam apenas um caminho
Rachâchant, 1982), de Danièle Huillet e Jean-Marie
possível para a vida adulta.
Straub. Em outro filme presente na mostra, Bom Dia
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A perspectiva da infância e seu confronto com um
(Ohayô, 1959), Yasujiro Ozu radicaliza no trato
mundo de regras e constrangimentos encontram
com a solidez e doutrina do sistema educacional
ressonância forte em Crianças (Children,
japonês. Dois garotos estabelecem uma pequena
1976), de Terence Davies. A repressão sexual
crise na vizinhança ao se recusarem a fazer as
e a violência cotidiana de uma escola rígida e
lições de casa para assistirem televisão. Tal qual
doutrinadora acompanham e acanham o caráter
Ernesto, personagem de Rachachando, os dois
do personagem do filme, que se mostra impotente
alunos se lançam em uma via de contestação
em relação ao que se observa ao redor. Algo
inocente das mais fortes em relação a certo tipo
parecido com o que ocorre em Nº 27 (2008),
de cultura arraigada em uma sociedade bastante
de Marcelo Lordello, no qual o personagem
tradicional. A repressão e a rebeldia também
principal (um garoto secundarista) passa por uma
atravessam Crônica de um Menino Solitário4
situação constrangedora e é forçado, por colegas
(Crónica de un niño solo, 1965), de Leonardo
e pela escola, a um enfrentamento radical que
Favio. Ao dar um soco no rosto de um professor, o
o oprime ainda mais. Em Onde Fica a Casa do
garoto Polín tenta revidar uma extenuante rotina de
Meu Amigo? (Khane-ye Doust Kodjast?, 1987),
humilhações sofridas num orfanato. Longe de lá, o
Abbas Kiarostami mostra, através da simplicidade
protagonista percebe que os desafios encontrados
objetiva que é peculiar de seu cinema, o modo
talvez possam ser tão opressores quanto à
como as imposições sociais e culturais vistas
clausura imposta pela instituição. A criança se
nas instituições reconfiguram as relações entre
liberta das grades do orfanato, mas é impossível
as pessoas. Ao buscar a casa do amigo para lhe
fugir das prisões experimentadas nas ruas.
devolver o caderno, o jovem estudante é movido por uma única coisa: o medo da repressão.
A escola se mostra, muitas vezes, como esse território minado que determina lugares no mundo
Situações de opressão e doutrinação se repetem
que funcionam segundo uma dicotomia entre
inúmeras vezes em Os Incompreendidos
o caminho do cidadão “de bem” e o marginal.
(Les Quatre Cents Coups, 1959), de François
Em Antes Passe no Vestibular (Passe Ton
Truffaut. Todavia, ao contrário dos outros três
Bac D’abord, 1978), há uma definição muito
filmes supracitados, Antoine Doinel, personagem
clara: passe no vestibular, siga uma profissão
principal, percorre a outra via que não a do recalque. Através de uma rebeldia latente, ele busca a fuga como modo de insurgir contra um sistema de limitação do sujeito. Algo também
Como os diretos de exibição deste filme foram obtidos somente após a conclusão dos textos que compõem este catálogo, não houve tempo hábil para a inclusão de um ensaio dedicado a esta obra.
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socialmente respeitada e tenha sucesso na vida.
e em um conservadorismo na política e na cultura.
A cartilha, todavia, é falha. Não há oportunidade
Isso pode ser visto em Um Som Diferente (Pump
para todos e é um ledo engano achar que essa
Up the Volume, 1990), de Allan Moyle.
hermenêutica do futuro profissional seja correta. Os desejos e anseios dos personagens do filme de
Por fim, anos 2000. O atentado ao World Trade
Maurice Pialat se mostram bem mais complexos e
Center, em 2001, faz com que os Estados Unidos
verdadeiros do que esse tipo de imposição, ainda
iniciem um programa de caça ao terror que mais
que ela determine uma estratificação social e
uma vez guia o país a intervenções no Oriente
arraste para a marginalidade os sonhos juvenis.
Médio. O inimigo é o outro, de acordo com essa política de contra-ataque. Porém, o terror pode
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Sonhos esfacelados como os de uma geração
estar em casa, em uma sociedade que não olha e
inteira de jovens estadunidenses. Década de
não dá lugar para que seus jovens sejam livres. O
1960, Guerra Fria, Estados Unidos envolvidos
bullying e a negação do outro provocam uma forma
em diversos conflitos em países asiáticos. Há
de rebatimento, como no caso dos estudantes
um discurso nacionalista que permeia a aura da
que decidem levar armas para a escola e atirar
sociedade da nação na época, e que deságua
em seus colegas como modo de lidar com uma
também na educação. Hierarquia e ordem são
sociedade marcada pela intolerância. Gus Van Sant
palavras fortes e podem ser percebidas em Ensino
acompanha, em Elefante (Elephant, 2003), um
Médio (High School, 1968), de Frederick Wiseman.
dia numa escola secundária de Portland prestes a
O célebre documentarista acompanha os vieses
encarar uma tragédia devastadora. Reflexos dessa
desse discurso totalizador em apenas mais um dia
mesma estrutura contextual podem ser percebidos
de aula numa escola de secundarista da Filadélfia.
em Entre os Muros da Escola5 (Entre les Murs, 2008), de Laurent Cantet. Numa escola francesa,
Anos 1990: fim da Guerra Fria, no entanto, período
alunos e professores de uma instituição pública
ainda fortemente marcado pelo intervencionismo
vivenciam uma rotina demarcada por diversas
dos Estados Unidos em países do Oriente
práticas discriminatórias. Num ambiente composto
Médio, sob a justificativa esdrúxula de impedir
por pessoas de diferentes etnias, bem como
o surgimento ou manutenção de ditaduras
distintos processos de formação, a convivência
sanguinárias. Os interesses econômicos resvalam
entre todas as instâncias escolares se apresenta à
em um tipo de doutrinação que vem desde a
beira de um colapso.
escola. É preciso ser forte, é preciso ser vencedor, assim é a imposição nas instituições educacionais.
Jogos de poder estão presentes o tempo todo na
Quem está fora disso é o loser, ou seja, um pária
sociedade e tem um de seus lugares de disputa a
social. Poucos encontram formas de contestação.
instituição escolar. Em um internato feminino, as
A resistência pode estar na criação de uma rádio
coisas parecem estar fora do lugar. Ana Carolina,
pirata que inflama os estudantes no combate contra as perseguições e doutrinas de um modo escolar que está totalmente orientado por um contexto histórico de um neoliberalismo radical na economia
Este filme será exibido numa sessão especial promovida pela Caixa Cultural de São Paulo, voltada para estudantes do ensino médio de escolas públicas paulistanas. Uma vez que a obra não faz parte da curadoria oficial de filmes da mostra, não haverá um texto específico direcionado à sua análise.
5
17
em Das Tripas Coração (1982), mostra como a subversão da ordem é uma fórmula eficaz de brigar dentro desses jogos de poder. As violências físicas e simbólicas presentes no filme revelam como a escola é um lugar de embates. A ordem está estabelecida, a doutrina se encontra muito bem encastelada, a vigilância permanece e a punição é uma maneira de se manter toda essa estrutura. Mas é possível resistir e é preciso bradar por seu lugar. Resistir como uma rocha, com a fluidez de uma gota d’água.
referências FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso: aula inaugural no Collège de France, pronunciada em 2 de dezembro de 1970. São Paulo: Edições Loyola, 2006. 18
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 2009.
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A REPRESSÃO E SEUS
TÚMULOS por Roberto Cotta
Crianças
A grande felicidade é que as crianças quando
///// Terence Davies /// 1976 /// Reino Unido
crescem esqueçam a instrução, sem o quê os próprios adultos não se poderiam mais entender. Aí tens: é ela, a instrução, que provoca o maior mal
Nº 27 // Marcelo Lordello // 2008 ////// Brasil
no homem... Maksim Gorki, O Pastor
Na calada da noite, quando o menino Robert Tucker amedronta-se diante do caixão que abriga o corpo do pai, a repressão atinge o grau máximo Roberto Cotta ///// Professor na Escola Livre de Cinema (ELC/
de evidência em Crianças (Children, 1976), de Terence Davies. A noção estabelecida pela cena
BH), crítico pela revista Rocinante e um dos
não poderia ser mais precisa: será impossível
coordenadores do cineclube Cine Sorpasso.
livrar-se da opressora figura paterna mesmo
Doutor em Artes pela UFMG, na linha de pesquisa Cinema, onde defendeu tese sobre a estilística do pós-guerra em Rainer Werner
após sua morte. A reação ao cadáver também deixa claro que o regime repressivo vivido na infância decorrerá numa herança inevitável. Os
Fassbinder. Mestre pela mesma instituição, com
traumas perdurarão e, agindo de modo indiferente
dissertação sobre a encenação cinematográfica
às adversidades que encara, o adulto Robert
em filmes brasileiros contemporâneos. Integrou
sobreviverá aprisionado em caixotes, tal como
as equipes de curadoria do Festival Internacional
acontecia quando criança. Os flashforwards que
de Curtas de Belo Horizonte (2014) e do
atravessam o filme comprovam esse fato ao nos
Forumdoc.bh – Festival do Filme Documentário e
permitirem acompanhá-lo anos depois, fragilizado
Etnográfico (2016). Realizou três curtas-
por todas as imposições que lhes foram legadas a
metragens e, atualmente, desenvolve o roteiro do
vida inteira. O menino Tucker consegue se libertar
longa-metragem Escombros, contemplado na 7ª
de uma instância de poder que o apavora (seu
edição do edital Filme em Minas.
pai), mas é aterrorizado pela responsabilidade precoce que tão logo carregará, assumindo o
lugar do patriarca e tornando-se arrimo de família.
possa reprimi-lo, invertendo a percepção em
É nesse momento que temos a certeza de que o
torno da ideia de cerceamento. O jovem Luís, um
protagonista sempre habitará um túmulo.
adolescente que suja acidentalmente a camisa após uma dor de barriga, transforma o banheiro
A primeira sepultura mostrada por Crianças é a
num jazigo para si mesmo, de modo que possa
escola. O primeiro plano do filme apresenta a
funcionar como campo de proteção e isolamento
estrutura solene do colégio onde Tucker estuda.
em relação a qualquer tipo de zombaria. O
A instituição é vista de fora, grandiosa, antiga,
cômodo, então, torna-se um mundo à parte dentro
repleta de cômodos, cercada por muros. Depois
da escola, onde a idolatria à ordem pode encontrar
disso, o personagem passará tempo substancial
alguma forma de resistência.
nesse lugar, acuado pelos alunos mais velhos
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ou mais robustos, que zombam de seu porte
Mas a instrução logo derruba seu muro.
franzino e especulam sobre sua sexualidade. A
Pressionado pelos colegas, que querem entrar
violência muitas vezes estoura, atuando como
a todo custo, o personagem conversa com o
mecanismo de correção. Robert é agredido pelos
coordenador do colégio, explicando-lhe o ocorrido.
colegas, castigado pelos professores e violentado
O diálogo é mostrado por entre obstáculos/
pelo discurso de ordem que transborda em cada
abismos. Vemos apenas Luís e a parede, enquanto
espaço físico da escola. Dentro do colégio, as
ouvimos o coordenador tentar convencê-lo a sair.
práticas corretivas são entendidas como forma
A porta trancada os separa, mas a persuasão da
de instrução. Fora dele, seu mundo parece ainda
didática escolar, enfim, consegue proporcionar
mais aprisionador. O protagonista quase sempre
sua abertura/ruptura. O rapaz sai desamparado e
está prostrado em ambientes internos: casa,
acaba massacrado pelos olhares e chistes durante
quarto, clube, vestiário, sauna, ônibus, sala de
o trajeto pelo corredor. Por sua vez, o coordenador
espera, consultório médico. Sem fôlego, Tucker
o acompanha como se fosse um verdugo,
se entrega em apatia às regras e hierarquias que
conduzindo o adolescente para a sentença de
esses limites espaciais impõem. Por esse motivo,
morte. Definitivamente, não há mais qualquer modo
sua expressividade parece ter sido enterrada no
de proteção (ou talvez sequer tenha existido), mas,
mesmo caixão onde fora despejado o corpo do pai
de fato, agora percebemos que o frágil túmulo
e, lá, talvez para sempre permaneça trancafiada.
outrora forjado dá lugar à reputação sepultada de
Como um morto-vivo, o lamento de Tucker se
Luís. Aos leões, o personagem é arremessado sem
traduz num solitário grito abafado.
dó nem piedade, e a escola o devora antes que alguma nova jaula possa ser construída. A sala
Já no curta-metragem Nº 27 (2008), de Marcelo
de aula se transforma em covil, a cacofonia dos
Lordello, a narrativa se concentra numa situação
colegas dilacera o horizonte e somente a imagem
supostamente insólita, na qual o protagonista se
de seu rosto espinhento guardará os resquícios
vê obrigado a trancar-se no banheiro do próprio
da inocência perdida. A morte, de fato, está
colégio. Nesse sentido, ao menos num primeiro
consumada.
momento, a tranca é vista como forma de refúgio. É preciso dela para se cercar de tudo aquilo que
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A SUBVERSÃO Zero de Conduta //// Jean Vigo /// 1933 // França
DA ORDEM por Leonardo Amaral
Duas Soluções para um Problema // Abbas Kiarostami /// 1975 // Irã
Rachachando // Danièle Huillet e Jean-Marie Straub ///// 1982 // França
Gambozinos ///// João Nicolau ////// 2013 /// Portugal
No colégio interno de Zero de Conduta (Zéro de Conduite, 1933), de Jean Vigo, a disposição das camas é orientada segundo uma fila que apresenta clausura vigilante, sendo a representação fiel do célebre dispositivo analisado por Michel Foucault em Vigiar e Punir. Os alunos podem, no máximo,
Leonardo Amaral /// Doutorando em Comunicação Social pela
ver a sombra daquele que os vigia. Esse, ao contrário, pode reconhecer suas vozes e deferir
UFMG, onde também fez mestrado (2013-2015)
punições exemplares. É o que acontece com um
e graduação (2007-2010). Curador das mostras
dos internos, que irrompe contra o sistema de
"Tempos de Kuchar" e "Escola: Cidade Aberta" e
forças que ali impera e acaba por ser punido. Mas
membro da comissão de seleção do Festival de
eis que a chegada de um novo professor provoca
Curtas de BH (2010-2013), forumdoc.bh (2015) e Semana dos Realizadores (2016). Crítico e ensaísta pela Revista Filmes Polvo (2007-2013), com colaboração para outras revistas e
ações libertárias na escola. O professor rompe com uma série de normas de conduta e instaura uma comunhão de brincadeiras ao ensino por ele empreendido. Ele não se furta em imitar o Carlitos,
catálogos. Roteirista, diretor e montador de
de Charles Chaplin, no pátio da escola ou de se
curtas e longas exibidos em festivais do Brasil e
colocar de ponta-cabeça para iniciar o conteúdo
do exterior. Professor do Curso de Cinema da Casa Viva de Educação e Cultura (2014-2015).
da aula. Na forma fílmica de Zero de Conduta, impera um colapso da realidade e se perpetra um surrealismo de situações, tais como o esqueleto,
usado nas aulas de ciência, ganhar vida e se colidir
não muito divertidas. Um menino de dez anos
com o professor em frente à classe ou mesmo na
não se mostra necessariamente interessado nas
caracterização do diretor do educandário, que se
brincadeiras dos instrutores e não consegue
mostra uma criança que porta uma barba longa e
atrair a atenção de Antónia Josefina, uma das
preta.
meninas pela qual nutre um sentimento nobre. Na diagramação das cenas, o garoto é visto, muitas
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Ridicularizar a instituição e propiciar a ação
vezes, isolado dos demais, enquanto a garota
subversiva dos alunos é o método do qual Vigo
de seus sonhos está quase sempre rodeada
se mostra mais admirador. A montagem do filme
pelas amigas ou por alguns dos colegas mais
carrega, mais uma vez, um espírito de rompimento
galhofeiros que prometem alcançar aquilo que
com normas e estigmas. Os cortes são inventivos
o personagem apenas anseia, mas que jamais
e rompem com um estatuto de um cinema mais
consolida. Este, então, se lança na floresta em
clássico. Ao se aproximar da magia orientada
busca de seres imaginários conhecidos no universo
por Georges Méliès, objetos e pessoas somem
lúdico lusitano como gambozinos. Os gambozinos
e aparecem em cena, câmeras lentas funcionam
são uma espécie de peixe ou pássaros invisíveis
como suspensão da realidade e reafirmam um
que precisam ser pegos nos bosques da região.
espírito revolucionário que logra êxito no momento
O convite à caça dessas pequenas criaturas
em que a escola é tomada pelos alunos. Eles
é um modo de ludibriar crianças ingênuas. O
libertam o colega que estava de castigo e não
investimento de João Nicolau nos aspectos naïves
se furtam de marcar um novo território e novos
da infância conjugam um modo bastante libertário
tempos ao fixar, no teto do colégio, uma bandeira
de lidar com as agruras de uma das fases da vida
pirata.
marcada, muitas vezes, por dificuldades de lidar com o outro.
Esses pequenos corsários funcionam como referências auspiciosas para diversos outros
Assim como é característico do cinema de Nicolau,
autores, como, por exemplo, François Truffaut, em
a mise en scène minimalista da forma e da atuação
Os Incompreendidos (Les Quatre Cents Coups,
conveniada com as canções cantadas pelos atores
1959), ou Maurice Pialat, em A infância Nua
transmitem de maneira sutil aquilo que transpassa
(L’enfance Nue, 1968). As reverberações do filme
os sentimentos internos dos personagens. Em
seminal de Vigo alcançam, inclusive, o cinema
um dos momentos de maior libertação, o menino,
contemporâneo mundial, com aproximações de um
com microfone na mão, canta um rap de amor
curta-metragem português, que carrega em seu
para a sua musa idealizada. O cinema, aos seus
cerne o espírito libertário dos pequenos diabinhos
modos de construção, consegue lidar com as
(assim os define o próprio Vigo) de Zero de
ilusões e inocências da infância. Algo que está
Conduta.
bastante presente no filme Duas Soluções para um Problema (Dow Rahehal Baraye yek Massaleh,
Em Gambozinos (2013), de João Nicolau, crianças participam de uma colônia escolar de férias e seus dias são marcados por regras e brincadeiras
1975), de Abbas Kiarostami.
29
O estratagema criado por Kiarostami é bastante
François Mitterrand, ex-presidente francês, tem
didático e brilhantemente simples: dois meninos
como resposta de Ernesto uma aproximação deste
iranianos se desentendem na escola e iniciam
com uma pequena esperança na esquerda política
um movimento de retaliações. Um rasga uma
do país; uma imagem de uma borboleta empalhada
página de um livro do colega, o outro destrói a
é tida como um crime; um globo terrestre é visto
alça da bolsa do companheiro. Um desfigura o
como uma bola de futebol, uma batata e o próprio
boné do amigo, o outro danifica a echarpe do
planeta Terra (nada mais prosaico do que esse
camarada. Ao final, em uma cartela com alguns
traço comparativo). Ernesto impõe seu gesto
desenhos dos objetos danificados, há a exposição
de resistência a cada resposta dada ao diretor
do inventário do conflito: não há grandes espólios
do colégio. As preocupações dos pais, que o
dessa pequena guerra. A metáfora escolar de
acompanham na inquisição, dão lugar a uma
Kiarostami é a de um país marcado por grandes
espécie de apoio resignado ao ato de transgressão
conflitos no decorrer de sua história. A resolução
do filho.
e o apaziguamento são possíveis, como pode ser
30
visto no abraço dos amigos ao final. Uma solução
Nos questionamentos do diretor, uma ordem de
aparentemente simples e fácil, mas que demanda
imposições sociais pré-estabelecidas são a tônica
uma série de diplomacias. Outra vez, a inocência
de um modelo de escola por vezes opressor e
se contrapõe a um cenário impeditivo. Traços
anulador da subjetividade: “E agora, o que faremos
de uma inocência que é alicerce político de uma
com ele? Será que um dia ele saberá ler alguma
resistência que podem ser percebidos também em
coisa? Conduzir ou não conduzir? Beber e comer?
Rachachando (En Rachâchant, 1982), de Danièle
Trabalhar, trabalhar? Enganar-se e não se enganar,
Huillet e Jean-Marie Straub.
e tudo o mais?” Infelizmente sim, é a resposta do pai e da mãe. O breve silêncio que se segue e a
No cerne do filme francês está a negação de
ausência de Ernesto no enquadramento dão a ver
um ensino tradicional e impositivo. Ernesto, um
um determinismo das coisas que vez ou outra é
jovem garoto, se recusa a continuar a frequentar
colocado em xeque. Todavia, gestos de resistência
a escola. Os pais o levam até o diretor, que inicia
dão um nó na linearidade do pensamento
uma sabatina com o menino. Ele demanda o
recorrente e conservador. Subverte-se uma ordem
porquê de Ernesto não querer se instruir mais, e
escolar em nome de novos modos de vida. Rompe-
o ex-estudante responde que não quer continuar
se para que se possa seguir, de cabeça erguida.
seus estudos porque eles duram muito tempo e também porque não valem a pena. Na resposta da criança, uma busca por novos métodos. O roteiro do filme é uma adaptação da obra de Marguerite Duras. A iconoclastia do texto se mantém no formalismo estético e político tão característico de Straub e Huillet. Nos quadros fixos e na montagem rígida, surgem imagens que são iluminadas pelas palavras do pequeno subversivo: um quadro de
31
CINEMA
INOCENTE,
FÁBULAS DA CULPA
Aniki Bóbó
por Affonso Uchôa
/// Manoel de Oliveira //// 1942 /// Portugal
Affonso Uchôa ///
É bacharel em Comunicação Social pela
UFMG. Atua como cineasta e curador cinematográfico. Em 2010 foi programador do
À primeira vista, causa certo estranhamento o
Cine Humberto Mauro, e entre 2009 e 2106 fez a
nome estampado na cartela de créditos como
curadoria do programa “Curta Circuito”. Realizou
diretor de Aniki Bobó (1942): Manoel de Oliveira.
os longas-metragens A Vizinhança do Tigre
A temática infantil, o tom de comédia ligeira e o
(2014), vencedor de diversos prêmios, dentre
realismo do filme não combinam com a verborragia
eles o Prêmio de Melhor Longa-Metragem na 17a
literária, a encenação teatral e as temáticas
Mostra de Tiradentes e o Prêmio da Crítica
filosóficas, com toda a solenidade, enfim, do
ABRACINE no 2o Olhar de Cinema, em Curitiba/
cinema que consagrou Oliveira. Se é verdade que
PR, além de ser exibido internacionalmente no
alguns adultos não se parecem em nada com as
festival de Hamburgo (Alemanha); e Arábia
suas feições de criança, o cinema consagrado de
(2017), exibido internacionalmente em diversos
Manoel de Oliveira não levou muito das investidas
festivais como o Festival Internacional de Roterdã
de Aniki Bobó. Olhar o filme é como ver uma
(Holanda), BAFICI (Argentina), Indielisboa
fotografia em preto e branco de um tempo há muito
(Portugal) e New Directors/ New Films (Estados
passado e ver um mundo, um cinema e uma obra
Unidos).
de Manoel Oliveira que os anos posteriores se encarregaram de mudar. Aniki Bobó acompanha uma turma de crianças pobres da cidade do Porto. Três “miúdos”, Terezinha, Eduardo e Carlitos, vivem um precoce triângulo amoroso. A paixão pela menina leva os
garotos a uma disputa crescente, com algumas
canção tocada por um grupo de músicos de rua,
trocas de sopapos, e que tem seu ápice com um
acompanhados em coral pela turma de Eduardo
acidente sofrido por Eduardo, pelo qual Carlitos
e Carlitos. A rua é o espaço da liberdade, onde,
é injustamente culpado. Primeira incursão de
fora da escola (e também da casa), a infância
Manoel Oliveira no longa-metragem, o filme foi
pode ser de fato aproveitada. Sem a vigilância
um estrondoso fracasso comercial na época do
dos pais, os pardaizinhos se jogam: nadam no
seu lançamento. Esse insucesso repercutiu na
rio, pulam de guindastes para grandes mergulhos
carreira de Oliveira, que, depois de Aniki Bobó,
e correm pela noite afora brincando de “polícia e
experimentou um hiato cinematográfico de alguns
ladrão”. Acima de tudo, a rua é o palco onde se
anos. Seu longa seguinte, Acto de Primavera, foi
vive as amizades e os primeiros amores. Aniki
lançado somente em 1963.
Bobó documenta uma infância e um modo de viver na cidade que simplesmente não cabem mais no
Antes de Aniki Bobó, Manoel de Oliveira
mundo contemporâneo, permeado pela cidade
começa sua carreira fazendo curtas-metragens
ameaçadora e o turismo febril.
documentais. Se é impreciso dizer que essa
34
experiência tenha deixado alguma influência em
Trata-se de um filme de rara adesão ao universo
Aniki Bobó, há de se notar que o filme retira boa
das crianças. O mundo dos adultos é representado
parte de sua força da relação direta e lírica com
como se olhado pelos miúdos: eles são chatos e
a realidade das crianças da cidade do Porto.
mandões. A mãe de Carlitos é só xingos e ordens,
Protagonizado por atores não profissionais, o filme
o vendedor da loja alterna entre os sopapos no
tem grande quantidade de cenas externas, filmadas
seu jovem ajudante e as perguntas enxeridas para
na rua, e uma agilidade na maneira de registrar
os garotos, o professor é uma ameaça constante.
as brincadeiras da molecada que já fizeram o
O mundo dos adultos é o das obrigações e
filme ser considerado um dos precursores do
constrangimentos e a escola é o seu símile para
neorrealismo. Tal atribuição é cercada de mistérios
as crianças. Acordar para aula é um tormento.
(há certa lenda sobre André Bazin ter visto o filme
Na sala, o professor carrancudo pune o aluno
ou não, mas é sobre Georges Sadoul que recai
atrasado com as orelhas de burro feitas com papel.
essa relação com os italianos) e também de certa
Batatinhas, o trapalhão amigo de Carlitos, delira
imprecisão: a crítica social, fundamental para os
com o impossível: se fosse rico, desejaria comprar
neorrealistas, é apenas um pano de fundo no filme
a escola. “Pra quê?”, lhe pergunta Carlitos. “Para
de Oliveira. Mesmo filmado e lançado em plena
mandar fechar”.
Segunda Guerra Mundial, Aniki Bobó é um filme doce, no qual mesmo a pobreza e a proximidade
Mas Aniki Bobó não é apenas um documento dos
iminente do terrível não roubam o sorriso das
costumes e infância de outros tempos. O filme é
crianças.
um conto moral que registra os primeiros dilemas éticos de Carlitos. Já em sua abertura, através
Proto-neorrealista ou não, Aniki Bobó é um filme
de um flashforward, vemos a cena do acidente
contaminado pela alma das ruas. “Abre-se a
na linha do trem (que nessa primeira aparição é
porta da escola, sai o pardal da gaiola” entoa a
montada de modo misterioso, sem dar a entender
35
muito do que acontece). O filme promove então
de ladrão não pode mais ser abandonado quando
a reconstrução desse momento de grande
acaba o jogo.
intensidade dramática e vamos acompanhando os fatos que conduzem àquela fantasmática cena que
A “inocência” é um adjetivo comumente associado
assombra todo o filme.
à infância. De claro fundo cristão, essa relação se baseia na ideia de que o mundo é necessariamente
36
E o que os fatos anteriores ao acidente revelam
ruim e as crianças, há menos tempo nele, ainda
é uma espécie de “fábula da culpa” vivida por
não tiveram tempo de serem contaminadas. São
Carlitos. Já no começo do filme, ele diz “não tive
justamente os elásticos limites entre a inocência
culpa”, ao derrubar um brinquedo de louça da
e a culpa que Manoel de Oliveira investiga em
mesa. A frase soa como uma sentença da história
Aniki Bobó. Como bom filme de rito de iniciação,
futura do jovem protagonista. Na vitrine de uma
a obra deixa a Carlitos uma aprendizagem de
loja simbolicamente nomeada como “Loja das
como funcionam as coisas: Carlitos vai descobrir
tentações”, Carlitos perde a sua inocência: rouba
que culpa e inocência são, acima de tudo, noções
uma boneca exposta para dar de presente a
socialmente compartilhadas. Em outras palavras:
Terezinha. Numa cena de uma precisão sintética,
se ninguém te acha culpado, torna-te inocente.
que deixa antever o grande cineasta que é Oliveira,
E vice-versa. E Carlitos aprende isso vendo os
Carlitos sorrateiramente esconde a boneca na
dois lados dessa moeda. Se na primeira vez, se
sua bolsa, que traz escrito em letras imensas a
dá bem, escondendo de todos a sua culpa pelo
frase “segue sempre por bom caminho”. De noite,
roubo da boneca, na segunda, se dá muito mal,
Carlitos completa a sua aventura clandestina:
descobrindo na pele o peso assustador que um
andando pelos telhados, Carlitos vai entregar a
agrupamento de pessoas em acordo produz.
boneca a Terezinha. A cena é filmada com planos belíssimos e uma série de ângulos de câmera
Matando aula à beira do Rio, Carlitos percebe o
que deixam claro o perigo que o garoto está
dono da loja observando a turma. Tomado por um
driblando para entregar o presente. O dono da loja,
duplo medo: de ser apanhado por quem ele tinha
quando dá conta do roubo, vaticina “aqui há gato”.
roubado e por estar matando aula, Carlitos incita
Carlitos, se esgueirando pelos telhados, rastejando
uma fuga coletiva e é seguido por toda a turma.
felinamente, é ele próprio o gatuno.
A fuga da molecada segue em disparada até um barranco, de onde Eduardo escorrega em direção
O passatempo favorito dos amigos de Carlitos
à linha do trem. Por coincidência, Carlitos estava
é brincar de polícia e ladrão, de noite, pelas
justo atrás de Eduardo antes dele cair. Diante
escuras ruas do Porto. Na divisão dos papéis,
das desavenças amorosas dos dois, os colegas
coube a Carlitos ser ladrão. Brincadeira e verdade
não têm dúvida e declaram Carlitos culpado pelo
se misturam e o rapaz pede pra não ser ladrão.
acidente. À noite, Carlitos é consumido por um
Eduardo, o líder do bando, vaticina: “és ladrão” e
terrível pesadelo em que se misturam às suas
Carlitos aceita o papel imposto. Brincando, ao fugir
duas culpas: a verdadeira, do roubo, e a que lhe foi
dos “polícias”, o menino se assusta com a própria
imputada, de empurrar o colega ribanceira abaixo.
sombra. A brincadeira infantil se adensa e o papel
37
No sonho, como figura assustadora, o professor repete “roubar é pecado mortal”. Devastado pelo desprezo dos amigos, Carlitos é salvo pelo testemunho improvável do lojista: “Carlitos pode ter as suas culpas, mas nisto está inocente”. Inocência perdida, inocência resgatada: Carlitos recebe o abraço caloroso de Batatinhas como o sinal da confiança dos amigos restabelecida. Aniki Bobó é um filme de final feliz, no qual a lição vem da recompensa: o vendedor deixa Terezinha ficar com a boneca e o verdadeiro legado das aventuras é a improvável amizade entre adultos e crianças. E o maior sinal do laço entre adultos e crianças, miúdos e crescidos, inocentes e pecadores é o próprio filme. Poucas vezes um filme, na história 38
do cinema, conseguiu ser tão devotado às crianças quanto Aniki Bobó. Mais que um tema, a infância é a matéria e o olhar do filme. Numa sequência de beleza ímpar, na noite do acidente com Eduardo, os amigos se reúnem novamente na mesma rua em que brincam toda noite para lembrar o amigo ferido. Melancólicos, os meninos olham pro céu e um deles conta que ouviu dizer que, quando uma pessoa morre, nasce uma estrela. Os amigos iniciam uma discussão sobre a morte, a vida, Deus e o diabo, e vemos então um raro momento em que as verdades mais fundamentais são discutidas e pensadas por crianças. Aniki Bobó mostra o mundo e a vida vivenciados e fabulados pelas crianças. Deveria ser essa a definição de filme infantil.
UMA
INSURREIÇÃO
SENSÍVEL
CONTRA A
MONOTONIA Bom Dia
por Victor Guimarães ///// Yasujiro Ozu /// 1959 ////// Japão
Numa paisagem saturada por linhas retas –
Victor Guimarães //// Crítico na revista Cinética desde 2012. Foi
portas, janelas, soleiras, telhados, antenas, fios
professor no Centro Universitário UNA e na
e, claro, cercas –, as figuras humanas mal se
Universidade Positivo, um dos coordenadores do
divisam no horizonte. Apequenados diante da
FestCurtasBH (2014) e programador de mostras
profusão geométrica que os envolve, um grupo
como “Sabotadores da Indústria” (SESC
de meninos caminha em direção à escola. Na
Palladium/BH) e “Argentina Rebelde” (Caixa
sequência seguinte, é a presença assimétrica
Cultural/RJ). Tem ensaios publicados em revistas
das crianças que se agiganta no quadro: na
como Senses of Cinema, Desistfilm e La Furia
divertida competição de flatulência, o ruído agudo
Umana. É autor de O hip hop e a intermitência
dos peidos perturba o silêncio da paisagem. Os
política do documentário (PPGCOM/UFMG,
planos iniciais não deixam dúvida disso. Bom Dia
2015). Doutorando em Comunicação Social pela
(Ohayô, 1959), de Yasujiro Ozu, é um filme sobre o
UFMG.
embate entre dois vetores sensíveis: de um lado, a continuidade, o cálculo, a normalidade que constitui a pacata vida de um subúrbio japonês; de outro, a fratura, o desvio, a força de disrupção dos anseios daqueles que já não podem compactuar com os padrões restritivos que, para os olhos novos, limitam a potência dessa mesma vida.
Se o conflito entre regra e subversão é a base
insurreição gestual coletiva. Os filhos pequenos de
dramatúrgica dos melhores filmes sobre a
uma das famílias da vizinhança, mais interessados
instituição escolar – de Zero de Conduta (Zéro
em acompanhar o campeonato de sumô do que
de Conduite, 1930), de Jean Vigo, a Um Som
em estudar inglês, se revoltam contra a ausência
Diferente (Pump Up the Volume, 1990), de Allan
de televisão em casa e operam uma passagem ao
Moyle, de Crônica de um Menino Solitário (Crónica
ato. Se no início era o ruído gracioso e artificial do
de um Niño Solo, 1964), de Leonardo Favio, a
peido que rompia com a calmaria do alto da colina,
Rachachando (En Rachâchant, 1982), de Danièle
a partir do conflito em torno da compra da televisão
Huillet e Jean-Marie Straub –, no Japão o motivo
a ruptura se inverte: agora é o voto de silêncio das
é definidor de toda a tradição cinematográfica
crianças insurretas que vem rachar a sonoridade
nacional. O enfrentamento da rigidez da sociedade
dominante do falatório entre os vizinhos.
japonesa ressoa nos cotidianos fraturados de Mikio
42
Naruse, traduz-se nas composições dialéticas
O levante dos meninos se dá em franca
do tratado sobre o país que é O Enforcamento
contraposição ao vazio das palavras — eles não
(Kôshikei, 1968), de Nagisa Oshima, encontra
entendem porque os adultos insistem em dizer
seu espelhamento crítico mais radical no filme
ohayô (“bom dia”) o tempo inteiro quando na
estrutural que é A.K.A Serial Killer (Ryakushô
verdade não têm nada a dizer, e por isso calam —,
Renzoku Shasatsuma, 1969), de Masao Adachi,
à repetição da comida (“peixe frito e missohiro de
espatifa-se na anarquia libidinal dos pinku eiga e
novo?!”), à higiene impecável da casa, em suma,
penetra a harmonia deteriorada das coreografias
contra a ritualidade inexorável da rotina, essa que
mortais de Takashi Miike. Em Ozu, menos do
é uma das constantes mais duradouras em todo
que uma guerra declarada — como nas células
o cinema de Ozu. Embora essa família ocupe
terroristas de Kōji Wakamatsu —, o embate é
um lugar privilegiado na narrativa, Bom Dia é um
quase sempre uma luta subterrânea, que acontece
relato coral, um afresco sobre uma vizinhança
no terreno da gestualidade cotidiana, em plena
ao mesmo tempo absurdamente uniforme (a
superfície da vida ordinária. Seu campo de batalha
arquitetura do bairro é o palco para uma das
é a epiderme tensa dos corpos, a violência
melhores gags chaplinianas do filme, quando
quase sempre contida, mas que explode nos
um pai chega bêbado à noite e dorme na casa
gestos raivosos das mulheres dos filmes finais,
errada) e subterraneamente plena de diferenças:
magistralmente analisados por Shigehiko Hasumi1.
o emaranhado de casas que favorece a coesão da comunidade e amplifica o poder de vigilância sobre
A diferença de Ohayô é que o confronto não se
os filhos é o mesmo que se transforma em labirinto
concentra em um singular gesto pregnante — como
ideal para a fuga das crianças de uma casa à
o momento emblemático em que Shima Iwashita
outra. Como sintetiza Jonathan Rosenbaum,
atira a toalha em frente ao pai em A Rotina Tem
“em Ozu, como em Jacques Tati, as expressões
seu Encanto (Sanma No Aji, 1962), o filme póstumo
das formas sociais e as expressões das formas
de Ozu —, mas participa de uma verdadeira
1
HASUMI, Shigehiko. Ozu’s angry women. Rouge, 4, 2004.
43
cinematográficas são dois lados da mesma
componentes de um embate que se alastra por
moeda” .
toda a matéria fílmica.
Bom Dia é considerado um remake de Meninos
Como escreveu recentemente David Bordwell,
de Tóquio (Otona no Miru Ehon - Umarete wa
Ozu tinha “uma mente de engenheiro, um olho de
Mita Keredo, 1932), uma das obras-primas da era
pintor e uma empatia humana de romancista”3.
silenciosa de Ozu. O dia a dia do subúrbio, o hiato
Em Bom Dia, as três qualidades indissociáveis
entre gerações, a relação de estranhamento com
se materializam a cada plano, nesse conto
o mundo escolar, vários dos motores dramáticos
sobre uma série de atentados rebeldes contra
que atravessam o filme de 1933 retornam
a monotonia visual e sonora do cotidiano. Com
transformados no de 1959. À primeira vista, seria
sua incomparável arte das composições, Yasujiro
possível cogitar que esse retorno se dá numa
Ozu nos lembra que o mundo – seja ele um
forma mais leve, como uma versão soft do filme
bairro suburbano no Japão ou uma escola em
anterior: a greve de fome contra a debilidade do
qualquer lugar – é sempre uma questão de forma.
pai em face do patrão, filmada em sóbrio preto e
E que para transformá-lo é preciso começar,
branco, se torna o protesto pela compra de uma
inevitavelmente, por uma rebelião contra seus mais
televisão retratado em apetitosas cores Agfa.
arraigados pressupostos sensíveis.
2
Outra maneira de pensar esse retorno, no entanto, 44
é perceber como a dramaturgia de Bom Dia se
45
espalha por toda a superfície sensível do filme, em
referências
operações que integram à ficção popular alguns
BORDWELL, David. Good morning from Ozuland.
dos procedimentos comumente vinculados ao
Observations on Film Art, May 10, 2017. Disponível
cinema de vanguarda. O quadriculado onipresente
em: http://www.davidbordwell.net/blog/2017/05/10/
das roupas, dos papéis de parede, das toalhas de
good-morning-from-ozuland/
mesa, não é apenas um indício de uma direção
HASUMI, Shigehiko. Ozu’s angry women. Rouge,
de arte pronunciada, mas um dos componentes
4, 2004.
essenciais do implacável mundo sensível contra
ROSENBAUM, Jonathan. Good Morning: structures
o qual os personagens vão se insurgir; quando o
and strictures in suburbia. The Criterion Collection,
jovem casal decide usar pijamas o dia todo, uma
May 15, 2017. Disponível em: https://www.criterion.
simples escolha de vestuário se torna um atentado
com/current/posts/4543-good-morning-structures-
contra a normalidade; as incontáveis rimas visuais,
and-strictures-in-suburbia.
os inúmeros sobreenquadramentos, a simetria cerrada das composições, o vermelho que salta de um plano a outro sem razão aparente não são apenas elementos de um estilo inconfundível, mas
ROSENBAUM, Jonathan. Good Morning: structures and strictures in Suburbia. The Criterion Collection, May 15, 2017. Disponível em: https://www.criterion.com/current/posts/4543good-morning-structures-and-strictures-in-suburbia
2
3 BORDWELL, David. Good morning from Ozuland. Observations on film art, May 10, 2017. Disponível em: http:// www.davidbordwell.net/blog/2017/05/10/good-morning-fromozuland/
A ARTE DE GAZETEAR
por Luiz Carlos Oliveira Jr. Os Incompreendidos // François Truffaut // 1959 //// França
Luiz Carlos Oliveira Jr. // Doutor em Meios e Processos Audiovisuais pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP), sob orientação do Prof. Dr. Ismail Xavier, com período
Na primeira cena de Os Incompreendidos, já
sanduíche na Université Sorbonne Nouvelle -
entendemos tudo que precisamos entender sobre
Paris 3 (orientador: Prof. Dr. Philippe Dubois).
a visão de François Truffaut a respeito da escola:
Autor do livro A mise en scène no cinema: do
a sala de aula, tal como representada por ele, é
clássico ao cinema de fluxo (Papirus, 2013).
um campo de batalha onde se repõem as relações
Atuou como crítico de cinema na revista
de força que marcam as experiências de vida
eletrônica Contracampo no período 2002-2011,
nas sociedades disciplinares. As desavenças do
participando do corpo editorial de 2004 em
adolescente Antoine Doinel (Jean-Pierre Léaud)
diante. Curador das mostras de cinema “Vincente
com seu professor fazem aflorar um espírito de
Minelli - Cinema de Música e Drama” (CCBB-RJ e
controvérsia, uma vocação para o atrito, que foi a
SP, 2011) e “Jacques Rivette - Já Não Somos
marca registrada da vida do próprio diretor do filme.
Inocentes” (CCBB-RJ e SP, 2013). Já colaborou para as revistas Bravo!, Cult, Interlúdio, Paisà e
Se a escola se revela esse lugar de puro embate,
Foco e para o Guia Folha - Livros, Discos e
em casa, junto à família, Antoine tampouco
Filmes. Ministrou cursos e oficinas em espaços
aprende muita coisa: sua relação com o pai é de
como Centro Cultural Banco do Brasil,
um afeto superficial e efêmero, ao passo que,
CineSESC, Cine Humberto Mauro e Fundação
com a mãe, tem constantes querelas fundadas
Getúlio Vargas.
no excesso de cobrança e na falta de carinho que ela demonstra. O único aprendizado positivo de Antoine se dá com a literatura de Balzac (para quem ele faz uma espécie de santuário, acendendo
uma vela ao lado da foto do escritor), na amizade
– ainda que cômicas em muitos aspectos –
com René, seu melhor amigo e companheiro de
lembranças de infância e adolescência que Truffaut
aventuras extracurriculares, e, sobretudo, nas salas
evoca.
de cinema. A origem do filme foi um roteiro intitulado La Fugue
48
As cenas em que Antoine mata aula para ir ao
D’Antoine, que narrava um episódio específico da
cinema são, ao mesmo tempo, uma confissão
adolescência de Truffaut, “quando fizera gazeta
autobiográfica e uma declaração de princípios
certo dia na escola da Rua Milton por ter esquecido
do jovem Truffaut, então realizando seu primeiro
de fazer um trabalho de casa imposto como
longa-metragem: a verdadeira escola, para ele,
castigo. No dia seguinte, a desculpa que apresenta
foi a cinefilia, as salas de cinema que frequentou
(‘Minha mãe morreu’) chama naturalmente a
assídua e obsessivamente, e seu verdadeiro
atenção, e seu pai vai a seu encontro em plena
mestre foi o grande crítico André Bazin, que, tal
aula para aplicar-lhe uma monumental bofetada”1.
qual um pai adotivo, colocou-o sob a asa e o
A cena, assim como muitas outras de igual teor
introduziu na redação dos Cahiers du Cinéma no
biográfico, é reproduzida em Os Incompreendidos,
começo dos anos 1950. Lá, trabalhando na célebre
num dos muitos momentos do filme que levariam
revista, Truffaut encontraria Godard, Chabrol,
Truffaut a enfrentar o profundo descontentamento
Rohmer, Rivette, em suma, a turma com quem
de sua família. Obviamente, seus pais não
formaria, no final da década, a linha de frente da
apreciaram a forma como o filho retratou a relação
Nouvelle Vague, movimento de renovação do
com eles (o cineasta, depois de o filme ser
cinema francês que teria enorme impacto sobre
lançado, trocou cartas ressentidas com o pai, nas
a história do cinema como um todo. Nas páginas
quais o acusa de negligência e afirma até mesmo
dos Cahiers, por meio de textos perspicazes,
desprezá-lo).
enérgicos e, não raro, ferozes, a Nouvelle Vague começaria a ganhar forma, antes mesmo de os
Embora a narrativa seja autobiográfica, Truffaut
jovens críticos passarem à realização de filmes. Na
transmuta todas as suas memórias em ficção e em
ponta de lança do processo, achava-se François
nenhum momento tenta usar o tom confessional ou
Truffaut. Por mais que tenha tentado negar essa
semidocumental como muleta estética. Tampouco
função, ele foi rapidamente considerado o líder
se tem aqui um exagero sentimentalista ou uma
do novo cinema, sobretudo depois da força e da
chantagem emocional: a abordagem dramática
celebridade que ganhou com a repercussão de Os
é quase plana, sem sobressaltos, objetiva.
Incompreendidos.
Recheado de pequenos eventos, de passagens quaisquer da vida de Antoine, o filme se apresenta
Por uma ironia do destino, Bazin havia falecido
como um elogio do tempo morto – não o tempo
um dia após o início das filmagens (não à toa, o
desperdiçado, jogado no vazio, e sim esse tempo
filme é dedicado à sua memória, como informa
que ganhamos quando nos dispensamos de certas
uma cartela inicial). Eis por que um ar de luto perpassa Os Incompreendidos e se soma à tristeza já presente por conta das duras e melancólicas
BAECQUE, Antoine de; TOUBIANA, Serge. François Truffaut – uma biografia. Rio de Janeiro: Record, 1998, p. 176.
1
49
tarefas para nos dedicarmos a outras, a exemplo
temporal e espacial da cena. Truffaut convida a
da fruição de um bom filme.
cena a se impor por si mesma, as ações devendo adquirir consistência material na tela por um
Há, por um lado, uma crueza, quiçá uma crueldade
processo imanente de familiarização dos atores
na maneira como Truffaut reduz sua mise en scène
com o espaço. Ele pode ter sido mau aluno na
à descrição fenomenológica da adolescência,
escola, mas, de tanto trocar a sala de aula pela
lidando de maneira quase indiferente (e não era
sala escura, acabou aprendendo bem a lição de
a indiferença a marca da modernidade de Manet,
Murnau, Renoir, Orson Welles, Buster Keaton,
segundo Bataille?) diante dos eventos que filma.
Fritz Lang, ou seja, o domínio do espaço fílmico
Jacques Rivette qualifica Os Incompreendidos
e a capacidade de torná-lo o receptáculo de um
como “o triunfo da simplicidade”, num texto em que
drama que, por mais interior que possa vir a ser, só
compara os pequenos gestos desencadeadores
consegue se expressar pelas relações exteriores,
de vertigens de memória no filme de Truffaut às
pelos corpos, pelas mudanças verificadas nas
invocações proustianas do “tempo perdido” da
realidades aparentes das coisas.
infância.2 Por outro lado, essa simplicidade resulta,
50
na verdade, de uma depuração do olhar, de uma
Rodado em preto e branco e Cinemascope, Os
arguciosa consciência dos meios cinematográficos
Incompreendidos contou com um dos melhores
de organização de um espaço – o que não pode se
diretores de fotografia então em atividade na
dar senão em função das limitações estruturais da
França, Henri Decaë, que antes trabalhara
câmera e da dialética entre campo e fora de campo
com Jean-Pierre Melville (um dos poucos
daí derivada – e de apreensão dos movimentos
cineastas franceses da “velha guarda” admirados
e gestos que os corpos filmados realizam nesse
pelos nouvelle-vaguianos) e Claude Chabrol
espaço.
(companheiro de Truffaut nos Cahiers). Com o amparo da experiência profissional de Decaë,
A sensação de assistirmos a um registro direto
Truffaut pôde se atirar com mais segurança a
e não elaborado é só falsa impressão. Basta ver
algumas ousadias técnicas e utilizar alguns dos
as cenas no apartamento em que Antoine mora
procedimentos que se tornariam recorrentes no
com os pais, onde a exiguidade do espaço não
cinema moderno dos anos 1960: filmagens rápidas,
constringe a potencialidade cênica de Truffaut,
atores amadores ou iniciantes, predominância de
pelo contrário: nessa situação desconfortável
tomadas externas em locações reais (mais do que
(como relataram os que trabalharam no filme, não
em estúdio), opção pela luz natural, equipamentos
foram fáceis as intermináveis diárias com a equipe
mais ágeis, recursos técnicos mais econômicos.
espremida naquele apartamento), ele se prova um encenador de talento, utilizando os planos de
Interessante observar como Truffaut já anunciara
longa duração e os enquadramentos em formato
– numa pequena nota publicada em julho de
Cinemascope como estratégias de alargamento
1953, isto é, logo que começaram a existir filmes em Cinemascope – parte do programa estético
RIVETTE, Jacques. Du côté de chez Antoine. Cahiers du Cinéma, n. 95, maio de 1959, p. 38.
2
que colocaria em prática anos depois com Os Incompreendidos:
51
Toda obra é mais ou menos a história de um
uma extensa documentação sobre a psicologia
homem que anda, e se andará bastante com o
dos adolescentes e a delinquência juvenil, além
Cinemascope. [...] Se concordarmos que todo
de ter consultado membros dos juizados de
aperfeiçoamento se dá no sentido da eficácia pelo
menores e do ministério da educação. Não por
acréscimo de realismo, devemos concluir que
acaso, paralelamente ao sucesso de público e
o Cinemascope é um aperfeiçoamento, o mais
bilheteria, o filme se transformou num fenômeno,
importante desde a invenção do cinema sonoro.3
funcionando como mote na imprensa para um debate sobre educação dos adolescentes, infância
Os Incompreendidos, pode-se dizer, é a história
problemática, desajuste social. Estava aberto o
de um adolescente que anda (não custa lembrar
caminho para um legado imenso de obras que têm
que os três últimos planos do filme consistem em
Os Incompreendidos como referência principal,
Antoine correndo e depois andando, acompanhado
incluindo excelentes filmes como Infância Nua
por travellings). E seu acréscimo de realismo
(L’enfance Nue, 1968), de Maurice Pialat, cujo
reside num senso da duração e da observação,
protagonista se chama François em homenagem
numa atenção aos detalhes sem precisar isolá-
a Truffaut (que é ainda o produtor do filme), e O
los do contexto geral da cena, como naquele
Jovem Assassino (Le Petit Criminel, 1990), de
momento em que Antoine (como seus pais sempre
Jacques Doillon.
lhe pedem) leva o lixo até a lixeira do prédio e, 52
após esvaziar o recipiente, retira o jornal que
53
o forrava, sujando a mão com o chorume que
referências
dali escorre: há uma fisicalidade na sensação
BAECQUE, Antoine de; TOUBIANA, Serge.
que essa cena desperta, uma visão concreta da
François Truffaut – uma biografia. Rio de Janeiro:
realidade corpórea do mundo, que nos aproxima da
Record, 1998.
experiência vivida pelo protagonista do filme.
RIVETTE, Jacques. Du côté de chez Antoine. Cahiers du Cinéma, n. 95, maio de 1959.
Oscilando entre a ternura e a crueldade, o olhar de
TRUFFAUT, François. En avoir plein la vue. Cahiers
Truffaut capta uma série de pequenas situações
du Cinéma, n. 25, julho de 1953.
como essa, de simples interações do personagem com os objetos à sua volta, configurando, no final, um sólido retrato de um dos períodos mais difíceis da existência, que envolve muitas vezes a dificuldade do adolescente de encontrar seu lugar no mundo e de se adaptar a quadros institucionais cerceados por instâncias de autoridade que amiúde se provam hostis. Para atingir a justeza de olhar e a carga realista que desejava, Truffaut reuniu
3 TRUFFAUT, François. En avoir plein la vue. Cahiers du Cinéma, n. 25, julho de 1953, p. 23.
DESAJUSTES por Dalila Martins
Ensino Médio // Frederick Wiseman ///// 1968 // Estados Unidos
Looks like nothing’s gonna change Everything still remains the same
Dalila Martins
I can’t do what ten people tell me to do
////// É pesquisadora e crítica de cinema.
So I guess I’ll remain the same, listen. Otis Redding, (Sittin’ On) The Dock of the Bay1
Bacharel em Audiovisual e Mestre em Meios e Processos Audiovisuais pela ECA-USP, onde atualmente desenvolve doutorado sobre a obra de Danièle Huillet e Jean-Marie Straub. É editora da Revista Zagaia, redatora da Revista Cinética e eventual colaboradora do periódico La Furia Umana. Integra o grupo de pesquisa História da Experimentação no Cinema e na Crítica (CNPq). Possui também alguns trabalhos em vídeo, dentre eles NU (2011), em coautoria com Carlos Fajardo.
Ensino Médio (High School, 1968) integra a longa série de documentários em que Frederick Wiseman perscruta a lógica social do funcionamento de instituições num notável paralelo com as análises do micropoder em proliferação naqueles anos — seguramente um indício da necessidade premente de se aprender a ver. Os exemplos são múltiplos e se estendem até hoje: hospício, delegacia de polícia, escola, hospital, campo de treinamento do exército, monastério, vara de infância e juventude, núcleo de pesquisas científicas, estado de bemestar, indústria frigorífica, mercado da moda, loja de departamento, hipódromo, educação especial, centro de capacitação para deficientes, base da aeronáutica, parque, estação de esqui, zoológico, academia de dança, companhia de teatro,
Parece que nada vai mudar / Tudo ainda continua igual / Eu não posso fazer o que dez pessoas me mandam fazer / Então, eu acho que continuarei o mesmo, ouça. Trecho de uma música de Otis Redding, (Sentado na) Doca da Baía.
1
projeto de habitação, arena, legislativo, cabaré,
Com efeito, o modelo de vida tradicional que o
universidade, museu, bairro, biblioteca etc.
estabelecimento de ensino reproduz é atingido apenas tangencialmente pelas transformações
Na superfície do filme, através de um registro de
radicais da década de 1960. Há, porém, dois
simulada neutralidade que tanto reputa o cinema
momentos em que a contingência se torna
direto — gênero convencionalmente definido por
distúrbio: quando o jovem de óculos escuros
aquilo em que nele se ausenta: sem cartelas,
declara desprezo pelos colegas alienados e sugere
sem entrevistas, sem voz over, sem intervenção
a existência da equipe de filmagem numa ligeira
—, observa-se o desenvolvimento progressivo
asserção — rara quebra de transparência — e na
do cotidiano da Northeast High School da
emocionada leitura da carta de um ex-estudante
Filadélfia, com ênfase na hierarquia inexorável
que presta serviço militar no Vietnã com ingênuo
entre seus professores, funcionários, pais e
orgulho — imagem derradeira.
alunos. Não obstante, a economia do dispositivo
56
— uma câmera diligente e um gravador portátil
Em High School, Wiseman opera uma aglutinação
a acompanhar episódios cuja ocorrência deles
de acontecimentos avulsos, ao mesmo tempo em
independe —, manifesta um teor crítico. Decerto, a
que os dispõe de modo a ralentar o presente de
mera presença do aparato não deixou de perturbar
um período letivo — estruturação que designa o
as situações da rotina colegial, ainda que em
domínio contínuo da entidade em questão. Assim,
grau mínimo. Portanto, chega-se ao limiar de
numa engenhosa contra-intuição da arte engajada,
uma reflexividade anunciada. Todavia, é mediante
transfere-se a incumbência de deslocamento para
a montagem que esta tendência do dispositivo
o gesto da câmera e do gravador que procuram
adquire sentido, até o ponto de singularização
por recônditos sinais de indisciplina nos rostos
da obra enquanto abdicação incitatória. Tudo
e nas mãos. Ora, tomar distância da vigência do
transcorre como se a rebeldia paulatina tematizada
dado não pressuporia uma atitude assertiva — no
em High School denunciasse o próprio método
extremo, uma tese audiovisual? Inversamente, são
wisemaniano. A canção de Otis Redding inserida
as captações que assumem o risco de interromper
na abertura extradiegeticamente denota a força
a atualidade coesa organizada na ilha de edição.
de resistência implícita na realização do cineasta
E esta alteração sistêmica complexifica o conteúdo
em larga escala: diante da irredutibilidade do
da objetividade factográfica.
status quo, nada a fazer senão insistir na própria hesitação. Tal exercício de contumácia se torna evidente nos instantes em que o zoom titubeia ao concentrar a atenção em determinado detalhe. Estes desvios mecânicos se intensificam junto às sequências de modesta contestação das normas por parte de alguns poucos, como no caso do garoto que acata a detenção imposta sob tímido protesto.
57
VONTADE E Marcelo Zona Sul // Xavier de Oliveira ////// 1970 // Brasil
IMPOTÊNCIA
por Calac Nogueira
Calac Nogueira //// Crítico de cinema, pesquisador e cineasta. Escreveu para a revista Contracampo e publicou ensaios em diversos catálogos de mostras e festivais de cinema. Atualmente escreve para a Revista Interlúdio. É graduado em Cinema pela UFF e mestrando em Meios e Processos Audiovisuais pela ECA/USP. Foi curador,
Marcelo tem 16 anos e não se contém em si. Acorda aos trancos, distribuindo pontapés, atrasado, o caos. Vai à escola. Ele namora Renata, sua colega, com quem passeia pelas ruas de
produtor e organizador do catálogo da
Copacabana: as calçadas, as vitrines das lojas, as
retrospectiva “Fritz Lang — O horror está no
lanchonetes, a praia. Essa Copacabana dos anos
horizonte” (CCBB DF, RJ e SP). Dirigiu os curtas Os Invasores (2013) e Cinefilia (2016).
1970 não mudou tanto, na verdade ela continua igual. Enfim, Marcelo é essa pura energia caótica da adolescência, esta vontade de ser, esta pura vontade. Stepan Nercessian, então com 15 anos, está contagiante. Seu Marcelo é a carioquice em pessoa: malandro, insubordinado, zomba de tudo e de todos. Copacabana. Primeiro filme de Xavier de Oliveira, Marcelo Zona Sul (1970) é uma tentativa comercial. É um filme “para as matinês”, um dos primeiros esforços de que se tem lembrança para explorar o potencial do público adolescente. Teve trilha sonora composta especialmente para o filme. O cartaz quem assina é Ziraldo. É um filme de classe média, uma espécie de versão adolescente, bem comportada, censura livre de Copacabana me Engana (1968), de Antônio Carlos da Fontoura, feito dois anos antes. É um
filme saudável: Marcelo não é um “delinquente”
A abertura que Xavier de Oliveira dá às cenas da
(mesmo que a escola e o pai o tratem como tal), é
recepção em casa e do final na Avenida Brasil é o
um adolescente absolutamente comum. O grande
que confere a Marcelo Zona Sul um ponto de vista
drama? Matar aula para um passeio nas Paineiras,
maduro, não deslumbrado sobre a adolescência. A
chegar um pouco mais tarde em casa, infernizar
adolescência não é um universo fechado na própria
a escola, não ter medido as consequências. Não
ludicidade, ao contrário: ela é confrontada com um
ter reprimido essa vontade e essa energia da
mundo maior e mais amplo que a ultrapassa. Fica
adolescência dentro de si.
patente aqui a impotência do personagem, o que carrega o filme de um ar um tanto melancólico.
O tom pop do filme é contrastado com um olhar
No final tudo dá errado, todos os planos são
firme sobre a adolescência, que é pensada
abortados, até mesmo Renata o troca por um
aqui como drama da impotência. Marcelo é um
rapaz mais velho. Mas tudo também é provisório, a
personagem que extravasa energia, que é pura
adolescência é este lugar onde as coisas, apesar
vontade de poder. Quer fazer o que der na telha.
da dor, não precisam ser definitivas.
Mas a essa energia o filme irá contrapor justamente
60
cenas que estabelecem limites, que fixam seu lugar
Como projeto comercial, Marcelo Zona Sul deu
no mundo. Não apenas por meio da repressão
certo: o filme saiu-se bem nas bilheterias, e Xavier
direta da escola e da família, mas num sentido
de Oliveira emendaria na sequência com André,
existencial mais amplo: a vontade confrontada com
a Cara e a Coragem (1971), filme de tom muito
a própria impotência.
diferente, de uma simplicidade cortante, sem o apelo pop de Marcelo Zona Sul. Mais tarde faria
Começa pela cena do jipe enguiçado, o primeiro
O Vampiro de Copacabana (1976), seu filme mais
fracasso: apesar da imaginação em improvisar
conhecido, testemunho de uma classe média
a capota, Marcelo não sabe o que fazer para
oprimida na própria mediocridade. Já Marcelo
tirar os amigos da roubada em que os colocou.
Zona Sul ficaria um tanto esquecido, muito por
Em seguida, numa das melhores cenas do filme,
conta do perfil mais comercial e adolescente. Não
a recepção em casa, pelo pai, dos colegas de
é que a história tenha sido injusta (ela sempre é),
trabalho em comemoração à sua promoção “pelos
que seja preciso recuperar tesouros, obras-primas
28 anos de serviços prestados”. Um patético show
enterradas e desconhecidas do cinema nacional.
de horrores do mundo adulto que se insinua sobre
O que é preciso questionar é a própria ideia de
Marcelo: o pai, no melhor estilo puxa-saco, tenta
tesouro. Recompor outras histórias do cinema
arranjar um emprego para Marcelo junto ao chefe,
brasileiro, em particular aquelas voltadas para o
que nem lhe dá trela — depois todos se retiram
cinema popular. Há gente, pouca mas empenhada,
para assistir à novela. Termina, por fim, na cena
trabalhando nisso atualmente. Esperamos que dê
da Avenida Brasil, a desolação de ir aos limites
frutos.
da cidade para se dar conta dos próprios limites. Marcelo é pura energia, mas não pode tudo: não vai para São Paulo, precisa esperar crescer, precisa esperar o tempo passar.
61
NOTAS SOBRE PASSE TON
BAC D’ABORD
Antes Passe no Vestibular // Maurice Pialat //// 1978 /// França
por Maria Chiaretti
Maria Chiaretti /// Pesquisadora e programadora de cinema, é mestre em Teoria e História do Cinema pela
Não saímos de um plano de Pialat
Université Paris 8 Vincennes / Saint-Denis e
no estado em que entramos.
doutoranda em Meios e Processos Audiovisuais
O mal está feito. Jean Narboni, Le mal est fait1
na ECA-USP onde desenvolve, sob orientação de Ismail Xavier, pesquisa sobre cineastas improvisadores dos anos 1960-1970.
Após abandonar sua carreira de pintor, com pouco mais de quarenta anos, Maurice Pialat realiza seu primeiro longa-metragem: Infância Nua (L’enfance Nue, 1968). Dez anos mais tarde, nasce Antes Passe no Vestibular (Passe Ton Bac D’abord, 1978). Em entrevista concedida aos Cahiers du Cinéma na estreia do filme, o cineasta diz ter a impressão de estar condenado a refazer a cada vez seu primeiro filme. Passe Ton Bac D’abord seria o produto deste sentimento2. O que nos faz pensar na frase de Rivette, “é sempre o método com o qual filmamos que cria o verdadeiro assunto”: se o filme é a metáfora da sua própria fabricação, a ficção reflete as condições de realização. Com um orçamento bastante reduzido, entre janeiro e maio de 1978, Pialat elege um universo desencantado de adolescentes que cursam o fim do ensino médio de uma cidade
1
In: Cahiers du Cinéma, nº 304, setembro de 1979, p. 6.
2
In: Cahiers du Cinéma, nº 304, setembro de 1979, p. 7.
francesa de Nord-Pas-de-Calais. Desde o fim dos
circulam temas, situações e atmosferas que,
anos 1960, Lens atravessava uma crise econômica
somadas, resultam num retrato pungente daquele
causada pelo declínio da mineração de carvão. De
momento. Apesar da indicação do vestibular do
certa forma, o desencanto da geração de Passe
título, são raras as cenas que ocorrem no ambiente
Ton Bac D’abord é partilhado pelo próprio cineasta,
escolar, que aparece, por metonímia, no tampo
tingindo as relações entre as personagens de
pichado da carteira que abre o filme e que volta
uma crueza raramente vista no cinema. Menos
quase no fim. A fisicalidade da superfície riscada,
do que o olhar de Pialat, muitas vezes acusado
com desenhos, palavras e frases sobrepostas ecoa
de pessimista, desencantada é a própria vida,
na fisicalidade turbulenta dos corpos, acentuada
que uma câmera sóbria parece se contentar em
pela câmera.
registrar. Assim como o de Jacques Rozier e de Jean
64
Pialat retorna à cidade em que filmou Infância Nua
Eustache, o cinema de Pialat se inscreve numa
para se deter ao pequeno mundo de jovens que
certa linhagem tributária do cinema direto, que
transitam num circuito fechado que vai da casa
tem Jean Rouch como o seu patrono. A vida deixa
de seus pais ao café-hotel Caron. Essa dialética
de ser representada pelo cinema (à maneira de
entre um mal-estar junto à família biológica e a
um modelo) para ser nele apresentada em estado
procura de uma família substitutiva (o grupo de
bruto, por assim dizer. Como sugeria Jean-Louis
amigos) é outro aspecto que aproxima Passe
Comolli, o surgimento do direto forçou o cinema
Ton Bac D’abord do seu primeiro longa, e que
inteiro a se redefinir, atuando como um revelador.
continua a marcar seu cinema. A família não é um
Essa relação com o presente das filmagens implica
lugar de felicidade, e isto está claro no discurso
em temporalidades singulares que as transformam
de Agnès, que usa o casamento com Rocky para
numa aventura coletiva. Pialat conjuga a
sair da casa dos pais, na fuga momentânea de
disponibilidade física dos seus colaboradores com
Elisabeth e Philippe ou na partida de Bernard
uma precisão de posicionamento da câmera, que
e Patrick para Paris. O filme se constrói a partir
acaba por potencializar o plano único. Lembremos
de uma constelação de personagens entre os
a sequência na sala de estar na casa de Elisabeth,
quais a câmera e a narrativa distribuem sua
na qual, postada ao fundo, a câmera acompanha
atenção. Trata-se de um filme não apenas sobre
quase imóvel a crise histérica de sua mãe; ou o
a adolescência, como queria Pialat, mas também
plano belíssimo na praia, no qual Bernard revela
sobre os sentimentos e os gestos precisos daquele
para a garota que acabara de conhecer que se
ambiente.
sente culpado pela péssima relação que possui com o pai doente.
O cineasta não dá mais razão a uma geração do que à outra, seu cinema é regido pelo coração
Grande parte do filme se passa à noite ou em
e pelo feixe de sentimentos que ele é capaz
lugares fechados, como as casas de família, o
de experimentar. Cheio de arestas, Passe Ton
café Caron, um salão de festas, um quarto de
Bac D’abord agencia blocos de sequências
hotel, um supermercado. O raro momento solar,
relativamente autônomas, por entre as quais
na viagem dos amigos ao balneário de Bray-
65
Dunes (a 100 Km de Lens), parece reforçar, por
um cinema no Sábado se tiver alguém para ficar
contraste, o futuro sombrio que paira sobre a
com as crianças.
agitação desencantada daqueles jovens. No café,
Mãe: O que mais você quer? É a vida.
vemos amores que nascem, disputas provocadas
Patrick: Sim, é a vida. Não, não é a vida.
por ciúmes, conversas sobre desejos de mudança, e nestas cenas de grupo constatamos a força
Apesar de Patrick e Bernard seguirem para Paris, o
dos jovens atores não profissionais (com exceção
filme se fecha com o mesmo discurso do professor
de Elisabeth, interpretada pela atriz Sabine
de filosofia que o abrira, seguido de um plano
Haudepin, todos os outros garotos guardam seus
de Elisabeth grávida dentro de casa. O círculo
nomes próprios), que parecem não se curvar aos
se completa, voltamos ao começo, não há fuga
imperativos da ficção. Apesar de Pialat afirmar que
possível. Como diria a canção de Belchior, “ainda
80% do roteiro havia sido escrito previamente, os
somos os mesmos e vivemos como nossos pais”.
diálogos e os gestos guardam uma autenticidade e um frescor impensáveis sem uma cumplicidade mútua entre cineasta e atores.
referências NARBONI, Jean. Le mal est fait. In: Cahiers du
A sequência do casamento de Agnès é exemplar
Cinéma, nº 304, setembro de 1979.
deste cinema baseado na libertação dos corpos 66
dos atores, cujos gestos revelam subjetividades não explicitadas na narrativa. Durante quase 10 minutos, acompanhamos os atores vivendo plenamente aquela comunhão, o que é reforçado pela fisicalidade dos longos momentos de dança em que todas as gerações se misturam e partilham pontualmente uma joie de vivre. Por contraste, Pialat encadeará a sequência à cena da briga entre mãe e filha na sala de estar, onde não por acaso, ambas estarão fazendo os preparativos do casamento de Elisabeth na cena final. Talvez a crueza abissal dos modos de ver o mundo esteja nas breves conversas que se passam nas cozinhas das famílias, onde os pais cobram respostas imediatas dos seus filhos sobre o que planejam para o seu futuro. Nesse sentido, a última conversa entre Patrick e a mãe é exemplar: Patrick: Eu não quero acabar como Annick, casado aos 19 anos, com dois filhos, acordando cedo para trabalhar, comer e dormir. Talvez pegar
67
O QUE A
Das Tripas Coração
ESCOLA ENSINA
por Ruy Gardnier
// Ana Carolina /// 1987 // Brasil
Ruy Gardnier // É jornalista, pesquisador e crítico de cinema e música. É fundador e editor da revista eletrônica de cinema Contracampo e do blog Camarilha dos Quatro, dedicado à música. Trabalha como pesquisador do Acervo Audiovisual do Circo Voador. Trabalhou anteriormente como pesquisador no Tempo Glauber e na Cinemateca
A escola, nos dizem, serve para ensinar, para
do MAM. Foi curador de retrospectivas dos
formar. Isso ela não faz necessariamente,
cineastas Julio Bressane e Rogério Sganzerla, e
mas pode fazer. No entanto, e mesmo
da mostra “Cinema Brasileiro: Anos 90, 9
independentemente dos conteúdos a serem
Questões”, entre outras. Editou os catálogos das
ensinados para ensejar uma formação, há um
mostras retrospectivas dos cineastas John Ford,
pressuposto inerente ao processo que é aquilo
Samuel Fuller e Abel Ferrara. É professor da
que é “ensinado” antes de tudo: a disciplina,
Escola de Cinema Darcy Ribeiro e crítico de
a ordenação, a compostura. Estar na escola é
cinema para o jornal O Globo.
ter que obedecer a uma série de protocolos de comportamento, aprender a reprimir necessidades básicas (ir ao banheiro, por exemplo) e adaptarse a um ambiente hierárquico e desigual de falas, em que o chefe do saber (o professor, o diretor, o bedel) domina o fluxo do discurso e da ordem. Em segundo lugar está a própria ideia do que seja formação, e hegemonicamente acaba vencendo a concepção de que formar é preparar o lugar (preexistente) na sociedade adulta para aqueles que em breve chegarão nela. Assim, formar é conformar.
Em todos os delírios, extravazamentos e
(além do ensaio da cerimônia e de uma missa,
devassidões que compõem a continuidade
só há duas breves situações de sala de aula
narrativa de Das Tripas Coração (1982), as
envolvendo professores ensinando, ou tentando
questões da disciplina e da conformação estão
ensinar, algo a suas alunas), mas de cenas de
presentes — só que mostradas em seu avesso.
momentos recreativos em que o desvario — a
Ambientado num colégio de moças de família,
libido indiscriminada, o sentimento desgarrado
o filme utiliza-se de uma narrativa onírica — o
de culpa, o instinto de rebeldia — toma conta dos
sonho é do interventor recém-chegado à escola
comportamentos.
para uma reunião — para encenar toda uma gama de desejos proibidos e recalcados de alunas,
Um dos eixos marcantes do filme é o das alunas
professoras, faxineiras e demais funcionárias,
quando estão entre si. Muito distantes dos anjinhos
incluindo aí o próprio interventor que se transmuta
dóceis que o imperativo social tenta determinar,
em professor desejado por todas as mulheres que
elas são seres imaginativos, libidinais e cruéis,
frequentam aquele espaço.
devaneando o entrelace amoroso com o professor garanhão, tocando-se umas às outras, fumando
70
Das Tripas Coração começa com a chegada de
no banheiro, cantando musiquinhas de baixo calão
um piano à escola. Independentemente do que
ou exercitando a agressividade maltratando as
ele é como instrumento musical, numa escola de
colegas mais castas (como nas cenas em que
moças ele é acima de tudo um operador simbólico
cortam os cabelos de Maria Padilha ou forçam a
de virtude — uma mulher virtuosa é aquela que
colega mais bobinha a fugir para o telhado). Um
aprendeu piano. O instrumento, porém, nunca
tanto próximo ao estilo de Buñuel (pensemos
exercerá sua função real, e passará o filme a
nos aristocratas de O Anjo Exterminador (El
ser transportado, com dificuldade, de corredor
Ángel Exterminador, 1962) transformando-se
em corredor do suntuoso prédio. Outro piano,
em selvagens à medida que a penúria brota), o
sim, será tocado, numa espécie de ensaio para
inconformismo de Ana Carolina se exerce pela
uma cerimônia de cunho patriótico (as diretoras
encenação patente de todos os desejos que se
discutem se será tocado o “Hino à Bandeira” ou
mantêm latentes por contra da repressão social
o “Hino da Independência”). Nesse ensaio, a
e da necessidade da construção de uma imagem
aura solene de nobreza — envolvendo o piano,
pública. Das Tripas Coração se refestela em
o bel canto, o patriotismo, a institucionalidade da
quebrar essa imagem e rir diante dos cacos.
cerimônia — será vilipendiada pela ironia grotesca e exagerada da encenação. Em uma rara cena de
Em sua segunda metade, o filme passa a assumir
funcionamento normal (“normal”) de uma escola,
um tom progressivamente mais exagerado e
Ana Carolina deixa claro o recado: ela está ali
irrealista. Entra em ação outro dos eixos principais,
para denunciar, através de seu humor muito
envolvendo o triângulo amoroso entre o professor
particular, o regime de disciplinação dos corpos
Guido (Antônio Fagundes) e duas professoras, a
operado pelas instituições de ensino. A verve da
liberada Renata (Dina Sfat) e a culpada Miriam
cineasta, no entanto, não funcionará a partir da
(Xuxa Lopes). As cenas são vividas em meio
paródia de situações protocolares de uma escola
a declamações poéticas, desentendimentos,
71
rivalidades e agarramento entre os três, até um momento de clímax dramático e histérico em que eros e thanatos literalmente fazem a escola (bom, ao menos um aposento dela) pegar fogo. Em paralelo, as faxineiras, um faxineiro, um padre e um sindicalista também se esfregam entre si o tempo todo, tentando a todo momento chegar às vias de fato. O sonho devasso do interventor é como uma situação em que o princípio de realidade freudiano fosse dissolvido e todos os conflitos subconscientes fossem levados ao primeiro plano. Só são resguardadas ‒ e mesmo assim parcialmente ‒ as duas diretoras mais velhas, instâncias assépticas da ordem e dos bons costumes. O bom tom, a “elegância”, é algo que Ana Carolina abomina — com justeza, porque é o equivalente 72
artístico da conformação. Estilisticamente o filme procede por acumulação de situações hiperbólicas, de intencional “mau gosto” (conversas de duplo sentido, palavrões, metáforas sexuais evidentes), produzindo situações hilariantes a partir do confrontamento com os tabus que a sociedade “de bem” detesta ver expostos tão frontalmente. Das Tripas Coração opera o gesto de jogar para fora todos esses tabus, jogá-los para a tela com toda a violência que eles são frequentemente, na sociedade, recalcados para dentro. Não à toa, o filme termina com o piano se espatifando no pátio, ao som do “Hino Acadêmico”. O verdadeiro ensino, nos diz Ana Carolina, é o contra-ensino.
REINVENTAR ABISMOS
por Hannah Serrat
A imagem de uma porta fechada, que balança suavemente enquanto os créditos iniciais de Onde Onde Fica a Casa do Meu Amigo? ///// Abbas Kiarostami //// 1987 // Irã
Fica a Casa do Meu Amigo? (Abbas Kiarostami, 1987) são apresentados, parece prenunciar certo transbordamento da infância contida pelas restrições que a cercam. Ao som de muitas vozes e gritos infantis, típicos dos intervalos no ambiente escolar, por alguns instantes, a porta parece que
Hannah Serrat
será aberta e volta a se fechar continuamente
/// É pesquisadora, crítica e realizadora de
até que o professor chegue para abri-la de uma
cinema. Concluiu seu mestrado em Comunicação
vez e colocar ordem na sala. Ele irrita-se com a
Social pela UFMG, interessada pelos modos de
bagunça, lembra que as crianças prometeram ficar
aparição e de enunciação dos povos periféricos
quietas até que ele voltasse e, aos poucos, a sala
no cinema. É crítica colaboradora da revista
se silencia e cada uma delas vai para o seu lugar
Rocinante e, em 2014, foi curadora do Festival
sentar-se em silêncio. O professor indaga sobre
Internacional de Curtas-Metragens de Belo
quem as mandou sentar e elas levantam-se. Em
Horizonte. Em 2015, realizou Retalho, seu
seguida, ele pede que elas sentem-se de novo e
primeiro filme.
é obedecido prontamente. É apenas ele, portanto, que deve ordenar os corpos e as vozes de seus alunos. “Não falem a não ser que eu pergunte!”, ele sentencia. Antes disso, pouco depois de chegar,
o professor vai até a janela e a fecha. O plano
informações atravessadas, o filme acaba por
aberto, que registra a sala em diagonal, mostra-nos
construir um tipo de espaço labiríntico, que faz
de um lado, as crianças sentadas em silêncio em
a criança andar em círculos, encontrar pessoas
seus lugares e, do outro, o jardim, com o sol e as
homônimas ao seu colega, descobrir que em uma
plantas, separados pelas janelas de vidro. Aqui, a
única região escondem-se uma multiplicidade
sala de aula; lá, o mundo.
de lugares. O trajeto inventado por Kiarostami entre um povoado e outro trata, assim, de alargar
76
Terminada a aula, as crianças correm enérgicas
os espaços, que não poderiam ser contidos
para fora da escola, sobem em cima de um carro
nem mesmo pelos enquadramentos do cinema
de boi, brincam com as rodas, adulam os burros
(privilegiando pequenos movimentos de câmera
perto dali, tropeçam, levantam e seguem a vida
panorâmicos alternados com a composição de
de volta para casa e para os deveres junto a seus
planos mais abertos). Como bem observa Jean-
pais. Pouco depois, um deles, o pequeno Ahmad,
Claude Bernardet1, o cinema de Kiarostami dedica-
descobre ter levado para casa por engano o
se a filmar, em grande medida, espaços externos,
caderno de Nematzadeh, um colega da sua classe
com raro interesse pelos interiores, preferindo
que o professor ameaçara expulsar da turma, caso
as janelas móveis dos carros à estabilidade e ao
ele chegasse no dia seguinte novamente com o
recolhimento das casas que pouco se associam
dever escrito em uma folha de papel avulsa. Aflito,
com o que o crítico identifica em seus filmes como
Ahmad tenta explicar à sua mãe o engano e a
uma “poética do deslocamento”, de certo modo,
grave consequência que o amigo sofreria, mas ela
intimamente ligada à sensibilidade do realizador
não lhe dá ouvidos, ordenando a ele uma série
pela própria poética do mundo.
de tarefas domésticas. Sem ser compreendido e preocupado com o amigo, o menino decide
Quase ao fim do filme, sem conseguir adentrar
fugir em direção ao povoado vizinho de Poshteh,
a casa de seu amigo, a fazer o dever de casa
onde Nematzadeh morava, sem saber, no
abaixado sobre o chão de seu quarto, Ahmad é
entanto, qualquer referência sobre a localização
surpreendido pelo vento forte que repentinamente
da casa onde o colega vivia. O filme dedica-se
abre a janela, sacode os lençóis sobre o varal e
a acompanhar as andanças dessa criança, que
balança as folhas de seu caderno no chão, como
percorre os dois povoados, encontrando entre eles
se a força do mundo fosse capaz de perturbar,
homens e mulheres pouco dispostos a
ali também, o acolhimento e a tranquilidade do
escutá-lo e crianças atarefadas. Em meio ao
menino já no interior de casa. Vemos, por alguns
mundo de obrigações e cerceamentos impostos
instantes, o vento a agitar os lençóis enquanto
pelos adultos, é preciso insistir nas buscas,
a mãe do garoto esforça-se por recolhê-los. No
nas descobertas e nas linhas de fuga entre os
plano seguinte, em oposição a esse, o interior da
caminhos.
sala de aula dá lugar ao silêncio e a quietude dos alunos sentados à espera do professor. Ele chega
Ao nos apresentar a procura do menino pelas ruas da cidade, cada vez mais perdido e a encontrar moradores capazes de oferecer apenas
Cf. BERNARDET, Jean-Claude. Caminhos de Kiarostami. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, p. 45.
1
77
e, desta vez, abre as janelas antes de começar a
inventividade e da liberdade das crianças. Resta
aula. Apesar da sequência que dá início ao filme
ao filme de Kiarostami nos oferecer a imagem
aparentemente se repetir, há, de imediato, uma
de uma árvore solitária no alto de um morro (tão
reconfiguração da experiência escolar, que ganha
presente em suas fotografias anteriores) e traçar
relevo com a última cena do filme, na qual algo
até ela um longo caminho em ziguezague para que
da vida vem se insinuar em meio ao caderno do
seja possível, ali, reinventar abismos e reconstruir
garoto.
passagens. Como comenta Kiarostami:
Há um trecho de uma entrevista concedida, em
Nessa aldeia, antes da nossa chegada, não havia
certa feita, por João Guimarães Rosa que parece
quase nada. (...) Não havia nem bazar, nem casas,
nos lançar diretamente à construção da infância
nem colina para o mato crescer. Reconstruímos
pelo filme de Kiarostami. Ele dizia:
tudo. Fomos nós que traçamos o caminho em ziguezague. Aparentemente, ele não leva a lugar nenhum, mas na realidade chega a toda parte! 3.
Não gosto de falar de infância. É um tempo de coisas boas, mas sempre com pessoas grandes incomodando a gente, intervindo, comentando,
78
perguntando, mandando, comandando,
referências
estragando os prazeres. Recordando o tempo
BERNARDET, Jean-Claude. Caminhos de
de criança, vejo por lá um excesso de adultos,
Kiarostami. São Paulo: Companhia das Letras,
todos eles, mesmo os mais queridos, ao modo
2004.
de soldados e policiais do invasor, em pátria
KIAROSTAMI, Abbas. Duas ou três coisas que
ocupada2.
eu sei de mim. São Paulo: Cosaq Naify; Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, 2004.
Em Onde Fica a Casa do Meu Amigo?, as ruas, os
LIMA apud FERRAZ, Luciana Marques. A Infância
quintais das casas, as sacadas, a escola são todos
e a velhice: percursos em Manuelzão e Miguilim.
espaços habitados por um excesso de adultos,
2010. 185 f. Tese (Doutorado). Universidade de
com seus desmandos e sua apatia aos desvios
São Paulo, São Paulo, 2010.
infantis, com exceção do velho marceneiro que o menino encontra pelo caminho e que se dispõe a acompanhá-lo (um belíssimo retrato desse encontro entre a urgência da infância e os pesares da velhice). Ahmad, aos seus oito anos, assim como Miguilim, personagem de um dos contos de Rosa, também parecia estranhar o mundo dos adultos, tão conflituoso e duro, longe da leveza, da
João Guimarães Rosa em entrevista a Ascendino Lima. In: LIMA apud FERRAZ, Luciana Marques. A Infância e a velhice: percursos em Manuelzão e Miguilim. 2010. 185 f. Tese (Doutorado). Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010, p. 44.
2
KIAROSTAMI, Abbas. Duas ou três coisas que eu sei de mim. São Paulo: Cosaq Naify; Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, 2004, p. 224.
3
79
SMELLS LIKE TEEN SPIRIT por Francis Vogner dos Reis
Um Som Diferente (Pump Up the Volume, 1990),
Um Som Diferente //// Pump Up the Volume ////// Allan Moyle ///// Estados Unidos
de Allan Moyle, é uma dessas pérolas do cinema norte-americano que tem sua economia política aliada, com graça, à sua audácia narrativa e ao despojamento estilístico, sem marca, sem grafismo autoral. O que isso quer dizer? O filme é menos uma expressão do senhor diretor-autor, e mais
Francis Vogner dos Reis ///// É mestre em Meios e Processos Audiovisuais na ECA-USP, crítico de cinema, foi colaborador de diversas revistas brasileiras e estrangeiras, entre elas a Revista Cinética. É curador da Mostra de Cinema de Tiradentes e outras mostras da Universo Produção como Cine Ouro Preto e Cine BH. Pelo CCBB fez a curadoria das mostras Jacques
uma manifestação própria e de exceção da cultura nas suas regras fabulares, sua linguagem, seu modo de aproximação e empatia. E é justamente aí, nessa simplificação de meios, que reside a sua grandeza e eficiência. A palavra “eficiência”, que pode ser maldita em outros casos, aqui (e em boa parte do grande cinema dos EUA) assume seu caráter de precisão porque sugere que se “acertou o seu alvo”. Não temos dúvidas do que o filme trata
Rivette e Jerry Lewis. É roteirista do filme O Jogo
na sua aventura, construindo um jogo de forças
das Decapitações, de Sergio Bianchi, co-roteirista
no microcosmo de uma comunidade no meio-este
de O Último Trago, de Pedro Diógenes, Luiz
americano. O filme tem lado, tem um ponto de
Pretti e Ricardo Pretti, e Os Sonâmbulos, de
vista e sabemos qual é e nos engaja com uma
Tiago Mata Machado.
persuasão irresistível.
O filme de Allan Moyle é um teen movie,
norte-americana, critica o automatismo das escolas
tendência popular na década de 80 que somava
e sugere que seus ouvintes “não esqueçam de
a fascinação do contemporâneo à idealização
comer cereais com garfo e fazer o dever de casa
dos tipos adolescentes. Esse cinema tem um
no escuro”. Corta para os créditos que aparecem
mito na cinematografia americana, tendo como
sobre a movimentação matinal no ônibus escolar
principal emblema os filmes de John Hughes.
amarelo e nos corredores da high school. A
Já em Um Som Diferente, realizado em 1990, o
princesa é levada de carro pelo pai, o punk
tom e o gesto são outros. São mais obscuros.
debocha, os rapazes com jaqueta de esportistas
Se nos melhores exemplares de filmes de high
se destacam na multidão, os freaks confabulam
school dos anos 80 o desvio possível era burlar
pelos cantos, e as autoridades – pais, inspetores e
as regras dentro do sistema, aqui o que vai se
diretora - mantém a ordem e o controle. Por mais
impor é a desestabilização do próprio sistema.
que as cenas do cotidiano matinal sejam comuns a
Doce terrorismo. O colorido oitentista do gênero é
quem viu os filmes teen oitentistas, a atmosfera é
substituído por uma paleta de cores mais escura, o
outra, ainda divertida, mas ocre, sem inocência.
subúrbio solar desaparece e dá lugar à penumbra
82
de interiores noturnos e solitários; não há mais
O prólogo determinou uma perspectiva política
o pop festivo e emerge Richard Hell (do punk
mais dura e menos frugal do que filmes de
setentista), Leonard Cohen e as notas pesadas
rebeldes carismáticos como Curtindo a Vida
e melancólicas do proto-grunge; a ansiedade
Adoidado (Ferris Bueller’s Day Off, 1986) e
pela primeira transa não é assunto, mas sim a
Picardias Estudantis (Fast Times at Ridgemont
masturbação; a festa se faz como um complô na
High, 1982) e, por isso, quando chegamos às
calada da noite contra o mundo opressor (o mundo
cenas do cotidiano na escola, algo está fora do
dos adultos). São os anos 90 anti-yuppie, anti-
lugar. A ordem parece suspeita. Um rapaz de
elogio do primeiro emprego. O loser não lamenta
nome latino, Luis Chavez e uma garota, Cheryl,
a dificuldade de inserção social, mas se vinga da
são chamados pelo inspetor e levados à diretora, e
cultura que exalta o winner. O quarto, a misantropia
desaparecerão sem que possamos saber o motivo
e a música obscura se tornam um laboratório
até o fim do filme, quando é revelado que foram
de rebeldia. É esse ambiente e esse momento
expulsos arbitrariamente por não se adequarem às
histórico que daria à luz em pouco tempo ao álbum
exigências da diretora.
Nevermind (Nirvana, 1991) e à canção Creep (Radiohead, 1993).
A identidade secreta do radialista maldoso Happy Harry Hard-on é Mark Hunter (Christian Slater),
O prólogo não deixa dúvidas: não é mais possível
rapaz tímido e isolado. Escondido dos pais
um acordo com a ordem. Há de se fazer feio
transmite do seu quarto um programa diário às 22
e errado. Vemos os telhados de casas de um
horas que faz crítica aos modos do subúrbio, ao
subúrbio no Arizona à noite e a voz um pouco
país, à escola. Mark Hunter e Happy Harry Hard-on
distorcida de um radialista provocador. A câmera
são análogos ao doutor Jeckyll e ao senhor Hyde
ansiosa explora a paisagem. A voz se apresenta
(o médico e o monstro). A verborragia provocativa
como Happy Harry Hard-on e ironiza a afasia
de Happy Harry Hard-on é um desrecalcamento
83
da frustação e do ódio juvenil de subúrbio. É
Mais do que uma fábula sobre a rebelião juvenil,
inspiração e espelho ao mesmo tempo. É uma
o filme trabalha o paradoxo libidinal da rebelião. O
pane na máquina ideológica da high school. Na
arco do personagem Happy Harry e de sua recém-
pele (na voz) de Happy Harry, o tímido Mark simula
namorada Nora (Samantha Mathis) é o da tomada
masturbação ao vivo, tira uma chinfra da hipocrisia
de consciência. Uma consciência que não é só a
de figuras conservadoras e provincianas, toca seu
tomada do conhecimento, mas um conhecimento
tema Everyboy Knows, de Leonard Cohen. Excita
que gera responsabilidades. Ou seja: a rebelião
os adolescentes e revolta pais e mestres.Seus
é um processo ativo de conhecimento e revolta.
interlocutores-ouvintes estão longe do olhar dos
É a liberação de energias vitais e perigosas. A
pais, sozinhos ou em dupla, carros estacionados
rebelião é bela, mas também é destruidora (e
em locais ermos ou na solidão dos seus quartos
auto-destruidora). É como se Happy Harry/Mark,
(o bunker adolescente por excelência). Ele recebe
ao liberar toda a carga libidinal sua e de seus pares
cartas e ligações, todos com pseudônimos.
via transmissão de rádio pirata, liberasse eros e tanathos. Ao colocar a rádio pirata sobre um jipe
84
As transmissões de Happy Harry Hard-on rendem
em movimento para despistar a polícia, ele entende
alguns dos momentos mais bonitos do filme porque
que não há mais volta. Não há conciliação. A
se estabelece uma relação dinâmica de fala e
rebelião é também contrair uma responsabilidade
escuta em uma sociedade que perdeu (ou nunca
pelas vicissitudes do desmonte das intricadas
teve) essa capacidade. Essas sequências se fazem
tramas do poder. Um Som Diferente não se
como uma espécie de inventário de retratos dos
resolve em um happy endind, mas é uma aventura
personagens que, em silêncio, se desestabilizam:
que termina em andamento. A rebelião só está
a princesa que queima seus dotes e seu rosto,
começando.
o solitário que declara seu suicídio ao vivo, o garoto homossexual que relata um bullying, e o próprio herói, que sente as sérias implicações – e responsabilidades - de sua influência junto aos seus pares. A poética dos primeiros planos nesses retratos dialógicos é de uma beleza discreta e desconcertante porque tensiona os sentimentos mais radicais do filme. A provocação aos pais e mestres rende perseguição política com expulsão de alunos e demissão de professora que toma partido dos rebeldes. Happy Harry Hard-on deixa de ser um ente e passa a ser uma espécie de evento coletivo. A promoção do caos é incontornável, e aí Happy Harry/Mark sai de sua célula (de seu casulo virtual) e ganha a rua.
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ELEFANTE, OU
OS MISTÉRIOS QUE O CÉU
Elefante // Gus Van Sant // 2003 //// Estados Unidos
ABRIGA
por Ursula Rösele
Ursula Rösele // É Mestre em Comunicação pela FAFICHUFMG e Doutoranda em Cinema pela Escola de Belas Artes-UFMG. Foi crítica de cinema pela Filmes Polvo (www.filmespolvo.com.br). Foi
Em A Sombra de uma Dúvida (Shadow of a Doubt,
membro da comissão de seleção da Competitiva
1943), de Alfred Hitchcock, Charlie visita sua
Brasileira do Forumdoc.bh em 2010, membro do
família. Quando de sua chegada à estação, o trem
Júri da Competitiva Brasileira do FestcurtasBH
que o traz produz uma espessa nuvem negra que
em 2011, e das Competitivas Brasileira e
por instantes toma todo o céu de Santa Rosa. A
Internacional em 2012, 2013 e 2014. Trabalhou
trilha, em consonância com a satisfação de sua
como assessora da Gerência de Cinema da
sobrinha em recebê-lo, não alerta o espectador
Fundação Clóvis Salgado (2011-2013). Atua
acerca do que o céu parecia prever. Em Cabo do
como docente no Centro Universitário UNA
Medo (Cape Fear, 1991), de Martin Scorsese, Max
(Graduação e Pós-Graduação).
Cady, após ter passado 14 anos preso por estupro, é libertado e sai em busca de vingança. A câmera o registra de frente e, ao sair da prisão, vemos o céu todo tomado pela iminência de uma terrível tempestade que anuncia o terror que está por vir. Elefante (Elephant, 2003) inicia com um contraplongée do céu. Enquanto ouvimos a voz de jovens no extracampo, as nuvens passam aceleradas e o azul vai escurecendo aos poucos até ser tomado por um breu total. Após um corte, ainda em contra-plongée, a câmera em movimento registra,
lentamente, árvores na calçada até acompanhar
ou se apenas a rotina estudantil pode ser a
um carro desgovernado pela rua.
propulsora desse tipo de atitude destrutiva). Ele também não abandona de todo algumas sutilezas
Gus Van Sant faz uma espécie de releitura da
(nem tão sutis assim) que demarcam uma
última hora que antecedeu os tiroteios na escola
diferença entre os dois rapazes e o restante dos
Columbine, em Colorado, Estados Unidos, onde
personagens ao revelar o quarto de um deles e sua
dois alunos mataram 13 pessoas e se suicidaram
rotina (documentário sobre o nazismo que passa
em seguida em 1999. O fato, esgotado pela mídia,
na TV, videogame violento etc).
ganhou contornos diversos. De uma investigação incessante pela mente dos dois assassinos até
Van Sant escolhe uma escola americana e
se tornar uma das bases da reflexão acerca do
seleciona alunos para o processo seletivo de seu
bullying nas escolas, este acontecimento foi
filme. Interessa a ele, talvez, demonstrar o caráter
retratado no cinema por Van Sant e também pelo
universal de um espaço escolar e desse período
documentarista Michael Moore. Este último optou
complexo. Essa intercessão entre infância e idade
por ampliar a discussão desse fato para o mal-uso
adulta, onde a vida, de fato, parece estar em
das armas de fogo nos EUA, em comparação com
constante estado de suspensão. Para tal, recorre a
o Canadá.
alguns clichês (a jovem nerd, o casal “rei e rainha do baile”, as patricinhas, o artista, o jovem com
88
Já Van Sant recria a última hora em torno da
pai alcoólatra) e a uma liberdade processual: os
escola no dia do tiroteio não para esclarecer fatos
personagens mantêm seus nomes reais, escolhem
ou oferecer subterfúgios para a compreensão
suas roupas e não seguem um roteiro pré-
da motivação dos dois rapazes. Seu movimento
determinado.
guarda algo de etéreo, abstrato. Somos levados a uma espécie de estado de suspensão no qual esse
Em 2007, a cineasta brasileira Maria Augusta
acontecimento sofrerá alguns loopings na narrativa
Ramos, diante da impossibilidade legal de revelar
e a nós serão apresentadas as várias perspectivas
o rosto e os nomes dos menores infratores, cujo
de ações aleatórias ao fato em si.
julgamento era revisitado pelo dispositivo de seu filme Juízo (2008), recorre a jovens da mesma
Considerando que a mídia concedeu diversas
comunidade, que recebem a incumbência de
tonalidades a este acontecimento, disseminando,
interpretar o papel do garoto ausente. Em uma
inclusive, uma série de fatos inverídicos (de acordo
cartela inicial, o documentário avisa: “Neste
com o desdobramento das investigações) —,
filme, eles foram substituídos por jovens de três
Van Sant parece partir do desconhecimento da
comunidades do Rio de Janeiro habituados às
situação. A (re)leitura de uma experiência, vista de
mesmas circunstâncias de risco social”. Tudo ali
fora, sempre guardará algo de uma objetividade
‘parece’ com o “real”, exceto pela presença desses
distanciada ou da perspectiva subjetiva de quem
rapazes, que trazem consigo uma espécie de aura
a narra. Ao diretor não parecem interessar fatos
dos corpos ausentes e, talvez justamente por este
específicos (tais como uma possível família
fato, contribuam para a carga mais realista dessa
disfuncional que justifique a revolta dos assassinos
reconstituição.
89
Ao responder em entrevistas acerca do título
Ao escolher uma janela de exibição que foge
de seu filme, Van Sant, ao invés de recorrer à
aos padrões contemporâneos (1,37:1) do cinema
referência homônima e evidente dirigida por Allan
Hollywoodiano (Cinemascope), Van Sant parece
Clarke (1989), cita uma parábola budista na qual
nos dizer que decidiu tomar emprestado esse
um grupo de homens cegos é convidado pelo
evento para tentar nos inserir em uma experiência
príncipe a apalpar um elefante e descrevê-lo. A
quase onírica de revisita apartada da lógica
cada um é reservada uma parte de seu corpo e no
espetacular. Não é sobre ninguém em especial,
momento em que é solicitado que o descrevam,
mas acerca de todos. Não é o elefante, mas um.
eles se atêm ao pedaço que tocaram, reduzindo o
Em cada parte, vemos sob uma perspectiva, no
todo (elefante) em suas partes.
entanto, aos personagens é concedido um tempo e importância muito próximos.
Van Sant tinha em mãos um acontecimento real já
90
remontado à exaustão pela mídia e reconfigurado
Ao não unificar, centralizar, especificar
pelo olhar parcial de Michael Moore. Decide
(principalmente no conteúdo), Van Sant realiza
transformá-lo em obra cinematográfica e opta não
um movimento centrífugo que eleva seu filme a
por afastar-se de todo do que é da ordem factual,
uma condição muito mais justa. Tal como esboça
mas de buscar, assumindo um desconhecimento
Oliveira Jr.: “Já não se trata de encenar o evento,
elementar de figura não participante da experiência
mas de explorar os efeitos de estrutura derivados
original, uma espécie de ambiência, o que havia
do dispositivo arquitetado pelo diretor. O filme
ali de universal e acessível e, assim como Maria
promove uma experimentação de ambiências,
Augusta Ramos, recorre à semelhança para buscar
um transporte fluido do olhar, que tem por tarefa
uma essência fidedigna possível.
permitir um reconhecimento sensorial do espaço”3.
Procedimento comum aos documentários, antes
Finalizo esta breve reflexão remontando a duas
de cada trecho no qual o filme acompanha seus
cenas envolvendo o fotógrafo da escola (Elias).
personagens, vemos seu nome na tela preta em
No início do filme, ele pergunta a um casal se
cada excerto de Elefante. Não vemos Rachel,
pode fotografá-los para seu portfólio e um deles
Richard, Daniel, Sean ou Lance1, mas Elias, Carrie,
questiona se seu trabalho envolve “pessoas
Benny, Jordan, Nicole2. Na impossibilidade de
nuas”, ao passo que ele nega. Ao final, quando
vermos o massacre em Columbine, vemos um
os assassinos o encontram na biblioteca, ao
massacre construído ficticiamente num espaço
vê-los portando armas, Elias aponta a câmera e
real, por alunos reais, que se relacionam a partir
“atira”4 primeiro. A câmera de Van Sant o filma
da elaboração de circunstâncias típicas ao seu
frontalmente enquanto tira a foto dos dois.
universo rotineiro.
OLIVEIRA, Jr., Luiz Carlos. A mise en scène no cinema: do clássico ao cinema de fluxo. Campinas: Papirus, 2013, p.10.
3
1
Nomes reais de algumas vítimas do massacre.
2
Nomes reais de alguns personagens do filme Elefante (2003).
Referência ao termo americano shot, que serve tanto para “tiro” quanto para “tirar uma foto”.
4
91
Não é sobre desnudar-se diante da câmera, mas olhá-la, ser visto por ela, transitar por entre os limites que ela abarca através de uma mise en scène que, impossibilitada de dar conta do todo, potencializa suas partes. Na última cena do filme, a câmera torna a fitar o céu, em contra-plongée. As nuvens espessas dão lugar a um céu azul e o sol, discretamente, anuncia seu renascer. E tudo continua, dentro e para fora dali.
referências OLIVEIRA, Jr., Luiz Carlos. A mise en scène no cinema: do clássico ao cinema de fluxo. Campinas: Papirus, 2013.
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catálogo desenvolvido em PythonTM composto na tipologia Helvetica impresso em papel offset 90g/m2 na gráfica O Lutador em Belo Horizonte, 2017 — tiragem 1000 cópias