Marés - Movimentos da Arte e da Educação

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O “Projeto Marés - Movimentos da Arte e da Educação” propõe a valorização do ensino da arte para o desenvolvimento crítico e para a constituição do indivíduo consciente de sua história e de sua cultura e, sobretudo, sensível às artes, além de favorecer o espaço de ensino, a escola, como lugar de experiências e descobertas, um laboratório no qual busca na comunidade a participação e envolvimento em prol do espaço educativo.O projeto envolve a criação colaborativa e afetiva de uma rede de ações artísticas e educativas para crianças da educação infantil, através da arte e das manifestações tradicionais presente na Vila de Manguinhos, no Município de Serra, no Espírito Santo.

Organização

Carla Borba e Tatiana Rosa Editora PROEX - UFES


Ficha Técnica Agradecemos a equipe do Centro Municipal de Educação Infantil “Vovó

Organização: Carla Borba e Tatiana Rosa

Ritinha”, a comunidade de Manguinhos pelo acolhimento e generosidade

Textos:

em contribuir para com o desenvolvimento do Projeto Marés, especialmente,

Aissa Afonso Guimarães

Marlene Lima de Azevedo, Marcelo Lima de Azevedo, Josely Lima de Azevedo dos Santos, Maria da Penha de Gois Azevedo, Gilberto Loyola dos Santos, Lúcia Maria Duarte Zóia, Rhullyt Azevedo, Morena Joffily, Claudia Bernardo, Ana Paula Ribeiro Reco, Cristina Passarelo, Cristina Felício da Cruz Silva, Danielle Rodrigues, Maria Élia Miguel, Débora de Oliveira M. Costa da Silva, Elza da Silva Tesch, Fátima Souza Almeida Silva, Fernanda Vieira Sofiatti Davila,

Carla Borba Claudia Bernardo Danielle Rodrigues Fernanda Sofiatti Tatiana Rosa

Josiany de Carvalho Siqueira, Lorena Mara Pereira Grasselli, Maria Aparecida Rodrigues Igreja, Noélia Cardoso Santos Barros, Rosana Maria Poltronieri,

Projeto Gráfico e Editoração: Directa Design (Higor Ferraço)

Rogério Ribeiro, Sibele Barros Dias Nascimento, Sirlene do Carmo Santana,

Revisão: Fabrina Camilotti

Tamiris Souza de Oliveira, Vilma Rodrigues Calixto, Aldeci Ramos Schineider,

Impressão: Grafitusa

Léa Marcia Bastos Pereira, Eliane Vieira Lóss, Marilza Dinah Nunes Ribeiro,

Tiragem: 500 unidades

Paulo Vitor Teixeira, Sr. Pedrinho, José Santos, Vânia Aguiar da Penha Onofre, Daniel Barreto, Aldeci Ramos Schineider, Lea Márcia Bastos, Vera Lima de Souza, Mateus Felipe Rosa Soares, Lucineia Maria Diná, Elza da Silva Tesch. P962 Projeto Marés : movimento da arte e da educação, Manguinhos – ES / organização : Carla Borba e Tatiana Rosa. – Vitória: Editora PROEX/UFES, 2016. 20p. : il. col.; 21,6 x 15 + 7 lâminas. Projeto Marés - Movimentos da Arte e da Educação Coordenação Geral: Carla Borba e Tatiana Rosa Produção: Geovanni Lima Imprensa e comunicação: Daniele Ocleys

Marés - Movimentos da Arte e-mail: maresmovimentosdaarte@gmail.com

ISBN : 978-85-65276-27-6 1.

Ensino de arte. 2. Arte-educação. 3. Arte

infantil. 4. Arte ambiental. 5. Manguinhos/ES – Patrimônio cultural. I. Guimarães, Aissa Afonso. II. Borba, Carla. III. Rosa, Tatiana. IV. Sofiatti, Fernanda. V. Bernardo, Cláudia. VI. Rodrigues, Danielle. CDD 707.4 CDU 37.01


Projeto

MaReS

Movimentos da Arte e da Educação Manguinhos - ES

Organização Carla Borba e Tatiana Rosa

Editora PROEX - UFES

Vitória, 2016


Sumario 3

Os saberes das Marés Aissa Afonso Guimarães

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Marés - Movimentos da Arte e da Educação Carla Borba e Tatiana Rosa

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Roda de Ciranda, Roda de Vida Fernanda Sofiatti

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José Manuel Dias Capoeira Claudia Bernardo

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Corpo e movimento: o congo, a capoeira e o mar como elementos de um aprendizado criativo Danielle Rodrigues


Os saberes das Marés

Profª Drª Aissa Afonso Guimarães (PPGA/CAR/NEAB/UFES)

M

aré cheia de satisfação em participar desta etapa do Projeto Marés - movimentos da Arte e da Educação na Comunidade de Manguinhos. Pensar o fluxo das marés, o ciclo de renovação e intervenção no meio ambiente e relacioná-los aos

movimentos dos processos educativos é refletir sobre as interações entre educador e educando, entre conhecimentos e saberes, entre aprendizado e vida. Propor novas práticas metodológicas e experimentar suas vivências pedagógicas na educação infantil é construir as bases da educação para as relações étnico-raciais e da educação patrimonial fundamentadas na diversidade; efetivando a aplicação das Leis 10.639/2003 e 11.645/2008, e abrindo os caminhos para desconstruir e confrontar o racismo em suas variantes pessoal, institucional e ambiental. Marés é um exemplo desse movimento, que traz nas suas ondas as práticas educacionais junto às culturas tradicionais da região de Manguinhos, construindo afetivamente um elo de consciência ambiental, valorização do trabalho e reconhecimento da comunidade e da cultura do lugar. O Projeto proposto pelas educadoras Tatiana Rosa e Carla Borba, na disciplina Artes, no Centro Municipal Educacional Infantil (CMEI) Vovó Ritinha, propõe atividades pedagógicas que fortalecem a identidade da comunidade, através do reconhecimento de seu patrimônio cultural, isto é, dos modos de vida, de trabalho, da memória das personalidades do lugar, da narrativa dos “antigos” ou “mestres” dos saberes populares, ao mesmo tempo em que inclui temas da educação para as relações étnico-raciais. A sensibilidade da escuta e o comprometimento com o reconhecimento dos valores de pertencimento à comunidade, ao se trabalhar com a educação infantil, estão exemplificados nas atividades do projeto Marés, apresentadas em formato de fichas nesta publicação, com as temáticas diretamente relacionadas à vida e à memória da comunidade de Manguinhos, como: o barco pintado pelas crianças; o “banho de bacia à fantasia”; o “pescador”; o “congo”; a “capoeira”; a “casa da Dona Herondina”; as “histórias de princesas”; os “peixes por panela de barro”. 3


É importante salientar que muitos são os desafios para a inclusão da educação patrimonial e da educação para as relações étnico-raciais em todos os níveis de ensino (infantil; fundamental; médio; superior – graduação e pós-graduação); tanto no que diz respeito às questões teóricas e acadêmicas, institucionais e políticas, como em relação às práticas pedagógicas que incluam efetivamente em seus conteúdos o patrimônio material e imaterial e as questões étnico-raciais no processo de formação para cidadania. Para alcançarmos essa perspectiva, não podemos relacionar o patrimônio cultural exclusivamente ao conteúdo convencional da História e Crítica da Arte, em que se qualifica pelo valor histórico e artístico ou pela adequação às novas linguagens tecnológicas ou às linguagens contemporâneas do campo da arte. Também não se pode reafirmar o imaterial como folclore, no sentido da desqualificação dos saberes tradicionais em detrimento de uma cultura erudita, e do distanciamento em que as práticas são colocadas de suas origens culturais e coletivas. O “folclore” é um termo em desuso, não pelo importante estudo dos folcloristas, mas pelo uso que foi e é feito das “culturas tradicionais” como folclore, por diversos setores da sociedade brasileira. Desse modo, podemos destacar a apropriação de ícones estratégicos das culturas tradicionais pelo estado brasileiro, muitas vezes desvinculados de suas comunidades de origem para afirmação de uma identidade nacional a partir do “popular”; a classificação das práticas culturais pelos intelectuais, de um ponto de vista externo às mesmas, em detrimento da autodenominação dos grupos, e os discursos das elites e da grande mídia que, comumente, usam o termo folclore para desqualificar as culturas populares como um “conhecimento menor”. Demarcadas algumas diferenças, optamos pela acepção contemporânea de patrimônio cultural como uma categoria de pensamento , a qual permite refletir sobre o patrimônio a partir de um entendimento mais amplo, integrando os aspectos material, físico (arquitetura; obras de arte; etc.) e imaterial, intangível (saberes; modos de fazer; festas; ritos; etc.). Dessa maneira, é possível construir o campo da educação patrimonial na dinâmica escolar, integrando os modos de vida e as tradições culturais locais, por meio de uma abordagem lúdica de conteúdos ligados ao cotidiano dos alunos de uma determinada comunidade. Além disso, essa construção acaba fortalecendo as relações entre escola e

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comunidade, uma tarefa contínua dos educadores que buscam abordar as diretrizes da educação patrimonial. Navegando por estas marés, a arte rompe fronteiras oceânicas, nas cheias e vazantes em Manguinhos. No CMEI Vovó Ritinha é possível trabalhar com patrimônio cultural e com educação para as relações étnico-raciais no conteúdo escolar desde a base, na educação infantil, através da afirmação da identidade local e do território cultural, num dedicado e delicado projeto educacional comprometido com a formação para cidadania.

Aissa Afonso Guimarães: Doutora em Comunicação e Cultura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro - ECO/UFRJ, mestre em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro - IFCS/UFRJ e graduada em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro - IFCS/UFRJ; atualmente é professora associada da Universidade Federal do Espírito Santo/ UFES, docente permanente do Programa de Pós-Graduação em Artes - PPGA/UFES; atua no campo do patrimônio cultural

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MARÉS - Movimentos da Arte e da Educação Carla Borba Tatiana Rosa

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uscar subsídios que estruturem, estimulem e valorizem a prática de ensino da arte na educação infantil em espaços de ensino formal é ao que o “Projeto Marés - Movimentos da Arte e da Educação” se propõe a experienciar em suas ações na Vila

de Manguinhos. O projeto se propôs a valorizar o ensino da arte para o desenvolvimento crítico e para a constituição do indivíduo consciente de sua história e de sua cultura e, sobretudo, sensível às artes, além de favorecer o espaço de ensino, a escola, como lugar de experiências e descobertas, um laboratório no qual busca na comunidade a participação e envolvimento em prol do espaço educativo. A vila de Manguinhos se configura como um lugar de caráter praiano e bucólico, no qual a relação com a natureza possibilita formas distintas de vivências do cotidiano. Desde sua origem até os dias de hoje, a relação com o mar e com a praia define a história da comunidade, que começou como um vilarejo de pescadores e se transformou em rota de veraneio dos capixabas. Por ter como espaço de trabalho uma instituição formal de ensino, o projeto propiciou um avanço na problematização das propostas pedagógicas em arte desenvolvidas no âmbito da educação infantil. Além disso, contou efetivamente com a participação da comunidade, a qual se interessou pela aproximação da escola com a diversidade cultural de Manguinhos. O Projeto Marés - Movimentos da Arte e da Educação está inscrito como projeto de extensão universitária, coordenado pela professora Ms. Carla Dias de Borba, no Departamento de Artes Visuais do Centro de Artes da Universidade Federal do Espírito (UFES). O projeto envolve a criação colaborativa e afetiva de uma rede de ações artísticas e educativas para crianças da educação infantil, através da arte e das manifestações tradicionais presente na Vila de Manguinhos, no Município de Serra, no Espírito Santo. A partir do processo de reflexão sobre arte e educação, mais precisamente sobre arte contemporânea na escola, o presente projeto tem como objetivo estabelecer uma relação de escuta e de intercâmbio de saberes com a comunidade, influenciada pela cultura pesqueira, pelas ma-

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nifestações tradicionais do congo, da capoeira e, sobretudo, pela valorização da oralidade perpetuada por seus moradores mais antigos, os quais tiveram e ainda têm influência e representação no Centro Municipal de Ensino Infantil “Vovó Ritinha”, localizado na Vila de Manguinhos. Através do olhar da criança e do propósito para com a interação com as práticas culturais locais e com a natureza, estabeleceu-se como método de trabalho o processo criativo e colaborativo na elaboração de atividades para a sala de aula, assim como nos encontros com a comunidade, a fim de promover o protagonismo da criança em relação à diversidade cultural da comunidade. Dessa forma, o processo de criação das atividades é entendido como uma experiência de arte colaborativa estruturada conforme as situações e os desejos que foram apresentados, fazendo com que as crianças passassem a atuar como agentes no acesso e na apropriação de um saber local inserido, que poderíamos definir como Patrimônio Cultural de Manguinhos. O contexto da Vila tem em sua trama social e cultural a presença forte e constante de uma comunidade que deseja manter a característica de um lugar que respeita suas tradições e o meio ambiente. Dentre as inúmeras histórias contadas pelos moradores mais antigos, está a que trata da construção do CMEI, que foi uma conquista para a comunidade. O Projeto Marés surgiu da constatação da necessidade de pensar e propor a valorização do ensino da arte na educação infantil, de modo a envolver a comunidade e, sobretudo, contextualizar a prática de ensino ao seu público. Além disso, compreender o papel da educação para a sensibilização do indivíduo através da arte e das práticas culturais é um dos grandes alicerces dessa proposta. Professores, responsáveis técnicos, aqueles que zelam pela manutenção do espaço, além de pais e muitos outros que contribuem com o propósito de difundir as diferentes manifestações artísticas e culturais participaram do “Marés”, no espaço de mediação, a fim de proporcionar o intercâmbio, o aperfeiçoamento e a troca de experiências. Portanto, o projeto propõe o fortalecimento e o apoio às manifestações culturais locais, tendo em vista o pluralismo e a diversidade de expressão, bem como a realização de ações de promoção, manutenção, ampliação e difusão do patrimônio cultural. Cabe citar também o objetivo de promover a integração de linguagens artísticas no espaço de 7


ensino, sensibilizando educandos e educandas, além de educadores, os quais, posteriormente, serão multiplicadores da experimentação vivida. Em 2014, a introdução da proposta se deu a partir da apresentação do projeto experimental às professoras do espaço educativo, seguido pelo convite e pela participação via preenchimento da então criada plataforma de desejos e ideias. Em formato de carta, foi entregue um questionário desenvolvido após a reunião de apresentação do projeto, visto que se percebeu que as possibilidades de conexões entre a escola e a comunidade eram e são profundas, assim como a diversidade de ideias para a construção das atividades. Dessa forma, pensamos em ativar uma plataforma de desejos e ideias, na qual foi apresentado um panorama das possíveis conexões e ações que respaldaram o desenvolvimento das atividades na escola. Essa concepção segue as premissas presentes nas reflexões levantadas pelo escritor argentino Reinaldo Laddaga, em seu livro “Estética da emergência” , o qual nos mostra diferentes projetos artísticos que se articulam por meio de redes de colaboração entre pessoas de diversas origens e formações, artistas e não-artistas. Ou seja, propostas que assumem a produção colaborativa complexa e hibridizada de caráter transdisciplinar em ‘comunidades experimentais’. As novas ecologias culturais presentes na fundamentação desses projetos predispõem outras regras, as quais geram modos representacionais em formas de socialização experimental. Assim, quando é assumida a ideia de arte colaborativa como eixo de criação e alteridade no Projeto Marés, a instância da experimentação e criação coletiva acabou por nortear as ações desenvolvidas. Os espaços da comunidade, as formas de representação das práticas culturais presentes na Vila de Manguinhos, os hábitos e as histórias passaram a ser o material do laboratório ao ar livre que se estabeleceu entre a comunidade escolar e a comunidade da Vila, buscando gerar outras formas de pensar a coletividade e a arte. As práticas educacionais, corporais e artísticas foram propostas de modo a estimular o afloramento de ideias, percepções e curiosidades sobre diversidade. O encontro entre aspectos da arte contemporânea, como o corpo, as diferentes linguagens artísticas e a interdisciplinaridade com a pluralidade dos saberes referentes às praticas culturais da

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comunidade foi a plataforma de discussão e criação de ações junto às crianças da educação infantil. O mar foi o elemento central para a criação das propostas artísticas, tanto pelas simbologias que carrega quanto por seu papel crucial no processo social, econômico e cultural da comunidade em questão. Esse elemento agrega as relações entre a cultura pesqueira, a oralidade, a devoção a São Sebastião e ao congo e, a devoção à Sant’Anna, padroeira da vila. Todas as manifestações tradicionais da região têm o mar como o delineador de histórias e mistérios e são esses elementos os eixos de trabalho do Projeto Marés. Assim, o mar e suas marés representam o caráter dinâmico do projeto que, além de estabelecer diálogos extramuros da escola, pretende estender suas águas a outras margens, dialogando, interagindo e experimentando. Se a pessoa acumula na sua memória as referências positivas do seu povo, é natural que venha à tona o sentimento de pertencimento como reforço à sua identidade racial. O contrário é fácil de acontecer, se se alimenta uma memória pouco construtiva para sua humanidade (Andrade, 2005, p. 120). A publicação História e cultura africana e afro-brasileira na educação infantil (Brasil/ SECADI, 2014) e as “Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil” ressaltam, como eixo norteador das práticas pegógicas, a importância da garantia de experiências que “possibilitem vivências éticas e estéticas com outras crianças e grupos culturais, que alarguem seus padrões de referência e de identidades no diálogo e reconhecimento da diversidade” (Resolução CNE/CEB n. 5/2009). Nesse sentido, destaca ainda que: o reconhecimento da diversidade não é uma tarefa simples, pois requer a valorização das diferentes culturas, ou seja, a compreensão dos meandros da construção cultural situados na dinâmica das relações sociais e políticas que constituem nossa sociedade (Brasil/SECADI, 2014, p. 16).

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A obrigatoriedade do ensino da história e cultura africana e afro-brasileira como conteúdo dos currículos, do ensino básico ao superior, é uma ferramenta estratégica para a promoção da diversidade no cotidiano escolar e tem respaldo na legislação máxima que regula a educação no país, a Lei de n. 9.394, de dezembro de 1996, Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB). Após promulgada a Lei n. 10.639, em 2003, o Conselho Nacional de Educação deliberou as “Diretrizes Curriculares para a Educação das Relações Étnico-Raciais para o Ensino de História e Cultura Africanas e Afro-Brasileiras”, como mecanismo formal para fazer valer a Lei do ano anterior. Ana Lúcia Silva Souza, na coletânea Orientações e Ações para a Educação das Relações Étnico-Raciais, publicação do Ministério da Educação, por meio da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (SECAD), propõe “a escola como espaço de socialização”. Orienta ainda que essa deve se constituir como “um espaço em que as relações interpessoais, os conteúdos e materiais constituam o diálogo entre culturas, que tragam não apenas as histórias e contribuições do ponto de vista europeu, mas também as histórias e contribuições africanas e afro-brasileiras” para o currículo. A autora ressalta, como oportuno para as práticas de ensino, a compreensão de que o educador-mediador deve atender aos estudantes e às suas diversidades. Para Souza, é necessário pensar o processo de construção do conhecimento sob a perspectiva do respeito à singularidade dessa etapa de vida, sua inter-relação com a construção de identidade, a autonomia, a interação cultural com a comunidade em que mora ou atua, produzindo saberes sociais e subjetivamente significativos (SOUZA, 2006, p. 8687). Reconhecer a criança como portadora de direitos não tem como consequência apenas o reconhecimento dos direitos de cada criança, mas sobretudo a criação de um estado de acolhimento no contexto mais complexo onde a criança vive e continuará vivendo. A consequência dessa teoria é, de um lado, a capacidade de acolher a subjetividade, a unicidade e a originalidade de cada criança e, do outro, a necessidade de abrir novos espaços onde cada criança possa ser construtora de novos direitos. Uma teoria que nos permite fazer uma afirmação que não é apenas pedagógica, mas também política e cultural: a importância de respeitar a subjetividade de quem aprende. (La Rocca; Reis (org.), 2008, p.18). No desenvolvimento cotidiano do projeto, as atividades semanais previstas aconteceram durante o horário dedicado às aulas de artes. Após o primeiro momento de conversa 10


com as crianças, foram realizadas atividades de experimentação e criação com diferentes materialidades em desenho, escultura, pintura, colagem, fotografia, projeção de imagens, etc. As ações passavam a ser o desdobramento das conversas e discussões. As atividades foram todas realizadas no espaço externo da escola, no pátio e na praia, e relacionavam, fundamentalmente, a realização de rodas de conversa, contação de histórias vinculadas à matriz africana e sua relação com a natureza, assim como histórias da comunidade. O projeto gerou um arquivo de entrevistas e fotografias, o qual representa a metodologia do trabalho, pautado na valorização da memória da comunidade, assim como na percepção poética e despretensiosa das crianças do CMEI Vovó Ritinha frente às manifestações culturais da comunidade.

Carla Borba - Mestre em Poéticas Visuais pelo PPGAV/UFRGS (2012), com pesquisa financiada pela CAPES. Especialista em Economia da Cultura pelo PPGE/UFRGS; e bacharel em Artes Plásticas pelo IA/UFRGS (2003). Atualmente é professora substituta da Universidade Federal do Espírito Santo - UFES, no departamento de Artes Visuais. Em 2013, coordenou o Projeto Conversas de Campo da 9ª Bienal do Mercosul | Porto Alegre e atualmente coordena o Projeto de Extensão Marés - Movimentos da Arte e da Educação.

Tatiana Rosa - Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Relações Étnicorraciais (PPRER), pelo Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca (CEFET-RJ). Especialista em “Política de Promoção da Igualdade Racial na Escola”, pela Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) e licenciada em Artes Visuais (2012), pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Atua como educadora na Prefeitura Municipal de Serra - ES e colaboradora do Coletivo Raiz Forte. Tem interesse pelas áreas de Artes Visuais, Educação e Práticas Tradicionais.

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Roda de Ciranda, Roda de Vida Fernanda Sofiatti

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Ciranda, cantiga de roda infantil mais conhecida pelas crianças como Cirandinha, é uma deliciosa brincadeira que mexe com o imaginário infantil, trabalha o movimento e, com ele, a coordenação motora e a voz.

A cantiga “Ciranda do Anel” foi escolhida para trabalhar uma das propostas do Pro-

jeto MARÉS, que é a de intermediar o movimento de aproximação entre a escola e a comunidade de Manguinhos, no município de Serra, tanto através do contato com a cultura advinda do mar - na comunidade de pescadores, que trazem de gerações passadas seu ofício e sua cultura -, quanto por meio de toda diversidade de fauna e flora que essa região apresenta. O trabalho foi realizado com dois grupos de alunos da educação infantil, em 2015 com o grupo cinco, (5 anos) e em 2016 com o grupo três (3 anos). As duas atividades culminaram em duas apresentações para a comunidade local. As crianças de cinco anos se apresentaram na escola, em um evento em que os pais estavam presentes, e as de três anos estão participando de uma atividade que fará parte de uma apresentação envolvendo todos os alunos do CMEI, que acontecerá na Vila de Pescadores, em Manguinhos. O trabalho proporcionou às crianças uma caminhada até a praia. Pelo caminho, o grupo foi sensibilizado a identificar os diversos elementos pelos quais passava, como as ruas, as árvores, os animais, a areia, a água do mar, os barcos, as conchas, as nuvens e o sol, entre muitos outros. Ao chegarmos à praia, fizemos uma roda. Em um primeiro momento aconteceu um gostoso bate-papo sobre tudo o que foi visto pelo caminho e o que estávamos observando naquele cenário. Logo após, a cantiga foi apresentada e os alunos a ouviram com bastante atenção, pois a letra contava com muitos dos elementos que nos rodeavam naquele ambiente praiano. Dessa forma, a proposta propiciou aos alunos que todos os seus sentidos fossem sensibilizados. Percebi que a música e o contexto os envolveram, gerando uma experiência integral para todos. Depois disso, começou a dança de roda. De forma muito natural, a coreografia, que falava de tantos elementos do mar, surgiu. Uma experiência única construída através de tudo o que era ouvido, visto e sentido. Não era apenas o mar da cantiga, mas sim o mar 12


que estava diante deles. Não era só o barco da música, mas o barco que estava no mar e que eles observavam ao longe. O ambiente proporcionou trabalhar de forma bastante experimental e prática os elementos da música, visto que a cantiga discorre sobre eles, tanto os visíveis, possíveis de experimentação, como o mar, a concha, o sol, o barco, o pescador, quanto os que rondam o imaginário das crianças, como a baleia e sereia. Ao retornar à escola, as aulas foram planejadas visando dar continuidade a tudo o que foi experimentado. Nos dias subsequentes, mesclava-se o ensaio da Ciranda com atividades de criação de desenhos, dobraduras, pintura, colagens, estórias e confecção de peixes e elementos do mar. Todo o trabalho do projeto MARÉS foi realizado de forma interdisciplinar, com apoio das professoras de Artes e Educação Física. Ao longo de toda a sua realização, que se deu em diversos momentos e com diversas crianças, inclusive com idades diferentes, nota-se uma similaridade: nos dois grupos as vivências e as trocas de experiências, únicas em cada um, possibilitaram o apoderamento dos elementos culturais e visuais da circunvizinhança, e com eles a construção de conhecimentos e laços que acompanharam as crianças dentro e fora da sala de aula. Isso ficou claro em suas atividades posteriores, em suas conversas e brincadeiras cotidianas, e até no retorno dado por suas famílias. Dias únicos foram vividos nessa roda de Ciranda que, assim como a vida, tem o intuito de fazer girar, de lançar o olhar para outras perspectivas, de experimentar novas sensações, de aprender, de ensinar, de dar as mãos, de depender do outro, de ajudar os outros, de colaborar, de incluir e estar incluído. Sim, uma roda de Ciranda, assim como a vida, está cheia de conhecimento, cheia de vida.

Foto 1 - Registro dos trabalhos de alunos do Cmei - Vovó Ritinha Foto 2 - Atividade na praia com os alunos Cmei - Vovó Ritinha 13


Ciranda do Anel Bia Bedran - (letra da música) Perdi meu anel no mar

É a ciranda do anel que eu

não pude mais encontar

vou dançar,

E o mar, me trouxe a concha,

até o dia clarear.

de presente prá me dar. Uma vez chorei na praia, Perdi meu anel no mar...

prá um anel que se perdeu

Olha a ciranda!

Meu anel que virou concha,

É debaixo do sol...

nunca mais apareceu.

É debaixo da lua... Bem no meio da praia,

Parou na goela da baleia,

bem no meio da rua.

ou foi pro dedo da sereia,

Pé esquerdo prá frente,

ou quem sabe um pescador

pé esquerdo prá trás

encontrou o anel, e deu pro seu amor

Olha a onda do mar na minha mão, eu vou fazer uma onda do mar. É o peixinho que pula sem parar, mergulhando no azul da onda do mar.

Fernanda Sofiatti: Publicitária, professora de Educação Infantil, mãe, filha e amiga, que aprende a cada dia com seus alunos a como deixar a vida mais leve. 14

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José Manuel Dias Capoeira Claudia Bernardo

J

osé Manoel Dias, mais conhecido como Nego Zema, era um homem negro, alto e forte. Por onde passava, quem não o conhecia fazia questão de atravessar a rua, pois sua aparência transmitia medo, insegurança... na Vila de Manguinhos, ficou

logo conhecido por sua força física, diz a lenda que remou da África até chegar ao Brasil, diretamente para Manguinhos... ele era um nativo não por natureza e sim por escolha. Nos idos de 1976, quando começou a frequentar Manguinhos nas batucadas das sextas-feiras e sábados à noite, passou a gostar do clima do bairro. Nessa época, teve oportunidade de conhecer a orla e sentir a brisa do mar como nunca havia sentido em outro lugar, e imediatamente decidiu que ali seria o lugar escolhido para a sua moradia. Pesquisou até que encontrou o melhor lugar para construir seu mocambo, pois a sua primeira casa era sim de bambu e barro amassado, igualzinho aprendera com o seu pai em sua terra de origem Iúna. Primeiro desbravou uma mata densa, que hoje é conhecido como Recanto dos Profetas, “terra da biriba” que quer dizer terra da madeira do Berimbau. Lá havia muitas árvores de biriba, camará, baúna, parte da vegetação nativa da região, então teve certeza de que ali era o seu lugar, pois a sua primeira paixão foi a capoeira. Naquela época na Vila havia pouco mais de 200 habitantes, e lá ocorriam pescarias com os arrastões, com toneladas de diversos tipos de peixes. Observando essa fartura, viu na pesca uma fonte de renda, uma forma de sobrevivência, e tornou-se pescador. Rapidamente, usou os movimentos da pesca como forma de preparação física para a prática da capoeira. Nego Zema chegava a remar quatro horas diárias mar adentro e, quando usava barco a motor, era o puxador oficial da garateia (âncora que prende o barco no fundo do mar). Em uma das noites de batucada em Manguinhos, em frente à casa de dona Herondina, encontrou Mestre Santana e oito colegas que conheceu na saudosa Cidade de Salvador, no Estado da Bahia. Nesse momento aconteceu a primeira roda de capoeira em Manguinhos, pois ao invés de oferecer os cumprimentos, eles foram logo saudando-se com golpes de capoeira. Como mestre da arte, entre tantos outros mestres de capoeira, a roda chamou a atenção de vários moradores e, por um momento, naquela tarde de domingo de 1976, a movimentação tornou-se a atração do evento. No dia seguinte, ao descer até a vila para mais uma pescaria, só se ouvia os comentários “−olha! É ele que estava na 15


roda!” e muitos moradores e amigos pescadores solicitaram ao conhecido Nego Zema que lhes ensinasse a arte da capoeira. Foi uma boa época, em que a comunidade desligou a televisão e foi praticar a capoeira no Centro Comunitário, em uma quadra de chão batido. Assim, a comunidade foi crescendo e os adeptos da capoeira também, chegando a treinar cento e vinte participantes em aulas voluntárias, pois seu meio de sobrevivência era a pesca. Anos depois, alguns moradores do bairro perceberam a proporção do envolvimento de todos na comunidade e coseguiram a cedência de uma quadra cimentada em uma área particular. Isso facilitou a prática de alguns movimentos que fazem parte do treinamento da capoeira, e a capoeira ficou ainda mais divulgada no bairro. No ano de 2000, as aulas de capoeira passaram a ser ministradas na praça de Manguinhos, época em que vários professores de outros estados e municípios vinham prestigiar o grupo de capoeira de Manguinhos. Ainda nessa época, nasce a banda de Congo Mirim, sob a coordenação de dona Nelci, “meus alunos de capoeira que recebiam todo um treinamento de ritmo, chulas (cantos de pequenas estrofes) e percussão passaram também a participar das aulas de congo, nas quais pude contribuir com a Dona Nelci nesse trabalho de formação dos ritmistas da banda, para uma rápida formação da banda de congo mirim de Manguinhos. No trabalho relacionado à capoeira, tive o Mestre Capixaba, Mestre Carioca, Guaraci, BH, Lamparina e Gustavo, entre tantos outros, ajudando a fortalecer o trabalho na Vila. ” “A minha casa era ponto de encontro dos mestres de capoeira que chegavam de todo o lado do país e também do exterior para participar dos eventos em Vitória, onde se deu, por muitos anos, o treinamento de toques de berimbau e outros instrumentos musicais. Até hoje sou agraciado em todos os eventos de capoeira e batizados da localidade.” “Nas palavras do meu Mestre Capixaba, eu trouxe a capoeira para Manguinhos.” Em 2005, Mestre Zema deixa a capoeira de Manguinhos por conta de seus ex-alunos, pois teve a oportunidade de realizar mais um sonho, concluir a faculdade de Direito. Hoje formado em Direito, tem em sua memória todos os contos e encantos de ser homem livre, de ser pescador, de ser capoeira e hoje doutor. Ouvir a história de um lugar é sempre muito interessante e ouvi-la de um morador que sempre realizou um trabalho voluntário perante a comunidade é melhor ainda. Através da entrevista, percebo a inocência de fatos que hoje, com os devidos registros, fariam 16


parte de um arquivo importantíssimo para a cultura local. O sentimento é de gratidão por participar de tal ação que me emociona em virtude de tanta riqueza de detalhes e de pessoas ricas em histórias, ricas em memórias. Enquanto gestora do CMEI “Vovó Ritinha”, sinto-me honrada em poder viver e contribuir com um projeto em que a inclusão da comunidade, da família e da equipe escolar realmente acontece.

Foto 1 - Roda de capoeira com a presença de Zema na orla de Manguinhos, 2003 Foto 2 - Aula de capoeira ministrada por Zema em Manguinhos, 2003.

Claudia Bernardo Professora

alfabetizadora,

pedagoga

e

pós-graduada

psicopedagogia.

Atua

Municipal

da

Serra

Atualmente

diretora

é

na

rede do

CMEI

Vovó

Ritinha

em

desde

em 1996.

Manguinhos.

Fotos: Acervo pessoal

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Corpo e movimento: o congo, a capoeira e o mar como elementos de um aprendizado criativo Danielle Rodrigues

T

rabalhar com os conteúdos Dança, Movimento e Cultura foi uma grande oportunidade de ampliar os horizontes no sentido de tornar o olhar sensível ao novo e a repensar o que conhecemos, além de ter contribuído com a minha prática pedagógica na Edu-

cação Física. A proposta de conhecer e trazer aspectos da cultura local do bairro de Manguinhos, feita pelo Projeto Marés e no qual estamos inseridos, para dentro do espaço do CMEI, articulando com as especificidades da Educação Física, possibilitou uma experimentação mais ampla do conceito de cultura, movimento e beleza e, ao mesmo tempo, trouxe à tona questões sobre a estética na dança, o dançar livre e suas possibilidades criativas. Nesse sentido, a dança, quando inspirada em situações cotidianas e em manifestações de cunho popular, torna-se rica e agrega valor ao sujeito dançante, pela interpretação e capacidade de leitura e ressignificação do real através dos movimentos criativos, improvisação e composição coreográfica. Dessa forma, a criança tem a possibilidade de libertar-se dos movimentos estereotipados, oportunizando a vivência de dançar a sua própria dança, de acordo com suas possibilidades, deixando aflorar as particularidades/singularidades de cada um e, ao mesmo tempo, tornando relevante o dançar coletivo. No início do projeto, pensei em qual seria minha estratégia para a elaboração das propostas que apresentaria às crianças. Como eu poderia envolvê-las no processo de ensino-aprendizagem visando torná-las sujeitos de seu aprender? Dessa forma, fomos em busca de elementos da cultura local característicos da dança, como os movimentos corporais e a musicalidade. Chegamos assim ao Congo e à Capoeira. Para alguns alunos, essas manifestações culturais já eram familiares, tendo em vista que participavam de grupos de congo e rodas de capoeira promovidas pela comunidade. Para outros, se tratava de algo novo, mas não totalmente estranho, porque já haviam visto ou ouvido em algum momento com suas famílias. Começamos a conversar sobre essas manifestações, e perguntei aos alunos quem já tinha alguma intimidade e quem nunca havia experimentado antes. Posteriormente, buscamos conhecer um pouco mais sobre o tema, através de pesquisas que eu levava aos alunos e de relatos

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de funcionários da escola que moram no bairro e, que de alguma forma, conhecem e/ou participam dessas atividades culturais. Posteriormente, experimentamos instrumentos de percussão e outros mais específicos do congo e da capoeira, como a casaca (instrumento muito utilizado pelas bandas de congo, feito de madeira e de origem indígena, conhecida como reco-reco de cabeça e pescoço) e tambores, utilizados nas rodas de capoeira e em bandas de congo. Nesse momento, as crianças divertiram-se ao descobrir os diferentes tipos de sons produzidos por esses instrumentos. Em alguns momentos, eles ressignificavam os objetos, criando novos sons e maneiras de tocar, diferentes daquelas propostas inicialmente. A partir desse momento, passamos para o processo de conhecer os movimentos corporais que abrangiam tais manifestações culturais. Mas antes disso, os alunos puderam pensar e inventar “suas danças”, ou seja, antes de conhecer os “modos tradicionais” de se dançar o congo ou de se jogar a capoeira, eles inventaram sua própria forma de se movimentar ao som dos instrumentos que haviam conhecido. Dessa forma, foi possível trazer à tona o espaço escolar como lugar de aprendizagem, com momentos de trocas e produtor de significados do corpo − que é um e é múltiplo ao mesmo tempo −, a partir da abordagem da dança popular e coletiva, possibilitando-os se expressar criativamente por meio do movimento. Na educação, a dança tem por objetivo ajudar o ser humano a achar uma relação corporal com a totalidade da existência. Por isso, na escola, não se deve procurar a perfeição ou a execução de danças sensacionais, mas a possibilidade de conhecimento que a criatividade da dança traz ao aluno, segundo Rudolf Laban (1990). Sobre o prazer e a alegria que contagiava a todos durante as aulas, posso citar Kunz, que destaca: “A caracterização mais típica para a dança e os seus movimentos, é sem dúvida a constante busca da alegria e do prazer proporcionados por movimentos ritmados e compassados, desenvolvendo de forma criativa, diferentes funções mímicas e pantomímicas” (KUNZ, 2006, p.91). O mais incrível nesse processo foi que as crianças sempre sugeriam novas formas de movimentos para os temas propostos, seja as ondas do mar, o vento soprando as folhas das ár19


vores, o movimento dos animais ou mesmo canções populares, como cantigas de roda ou congos, e isso nos enriquecia enquanto coletivo dançante. A elaboração coreográfica foi a culminância de um processo interessante de descobertas e aprendizagens pelo qual passamos durante um semestre de trabalho. Digo isso porque todos nós, envolvidos no projeto, fomos tocados de alguma maneira, seja tendo a oportunidade de conhecer e entender melhor a cultura local, na descoberta de novos movimentos e na possibilidade de fazê-los cada um à sua maneira, dentro de suas limitações e especificidades, seja por levar para dentro do espaço escolar elementos próprios da comunidade e, assim, aproximar esses dois espaços. Uma música que aprendemos foi “A Baleia”, de composição desconhecida, mas já incorporada pelos grupos de congo de Manguinhos e cantada cotidianamente pelas crianças do CMEI Vovó Ritinha. “a baleia” aonde está a baleia a baleia do fundo do mar a baleia deu o fora e o mar estremeceu valei-me nossa senhora aonde está a baleia Referências: KUNZ, Elenor. Transformação didático-pedagógica do esporte. Ijuí: Ed. Unijuí, 2006. LABAN, R. Domínio do movimento. São Paulo: Summus, 1978.

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Danielle Rodrigues Formada em Educação Física pela Universidade Federal do Espírito Santo, pósgraduada em Educação Física Escolar e professora de Educação Física no município da Serra. Moradora, apaixonada pelas belezas naturais, pela cultura, a tradição, o povo, suas ruas de terra e todas as particularidades que fazem de Manguinhos um lugar único. Fotos: Danielle Rodrigues


OS SABERES DAS MARÉS Profª Drª Aissa Afonso Guimarães (PPGA/CAR/NEAB/UFES)

Maré cheia de satisfação em participar nesta etapa do Projeto Marés - movimentos da Arte e da Educação na Comunidade de Manguinhos . Pensar o fluxo das marés, o ciclo de renovação e intervenção no meio ambiente e relacioná-los aos movimentos dos processos educativos, é refletir

sobre

as

interações

entre

educador

e

educando,

entre

conhecimentos e saberes, entre aprendizado e vida. Propor novas práticas metodológicas e experimentar suas vivências pedagógicas na educação infantil é construir as bases da educação para as relações étnico-raciais e da educação patrimonial fundamentadas na diversidade; efetivando a aplicação das Leis 10.639/2003 e 11.645/2008, e abrindo os caminhos para desconstruir e confrontar o racismo em suas variantes pessoal, institucional e ambiental. Marés é um exemplo deste movimento, que traz nas suas ondas as práticas educacionais

junto às culturas tradicionais da região de

Manguinhos, construindo afetivamente um elo de consciência ambiental, valorização do trabalho e reconhecimento da comunidade e da cultura do lugar. O Projeto proposto pelas educadoras, na disciplina Artes, Tatiana Rosa e Carla Borba, no Centro Municipal Educacional Infantil (CMEI) Vovó Ritinha, propõe atividades pedagógicas que fortalecem a identidade da comunidade, através do reconhecimento do seu patrimônio cultural, isto é, dos modos de vida, de trabalho, da memória das personalidades do lugar, da narrativa dos “antigos” ou “mestres” dos saberes populares, ao mesmo tempo em que inclui temas da educação para as relações étnico-raciais.


A

sensibilidade

da

escuta

e

o comprometimento

com

o

reconhecimento dos valores de pertencimento à comunidade ao se trabalhar com a educação infantil, se exemplificam nas atividades do projeto Marés, conforme apresentados em formato de fichas nesta publicação, com as temáticas diretamente relacionadas à vida e à memória da comunidade de Manguinhos, como: o barco pintado pelas crianças;

o

“banho

de

bacia

a

fantasia”;

o “pescador”; o “congo”; a “capoeira”; a “casa da Dona Herondina”; as “histórias de princesas”; os “peixes por panela de barro”. É importante salientar que muitos são os desafios colocados para a inclusão da educação patrimonial e da educação para as relações étnicoraciais em todos os níveis de ensino (infantil; fundamental; médio; superior – graduação e pós-graduação); tanto no que diz respeito às questões teóricas e acadêmicas, institucionais e políticas, como em relação às práticas pedagógicas que incluam efetivamente em seus conteúdos, o patrimônio material e imaterial e as questões étnico-raciais no processo de formação para cidadania. Para alcançarmos esta perspectiva não podemos relacionar o patrimônio cultural exclusivamente ao conteúdo convencional da História e Crítica da Arte, em que se qualifica pelo valor histórico e artístico ou pela adequação

às

novas

linguagens

tecnológias

ou

às

linguagens

contemporâneas do campo da arte. Também não se pode reafirmar o imaterial como folclore, no sentido da desqualificação dos saberes tradicionais em detrimento de uma cultura erudita, e do distanciamento em que as práticas são colocadas de suas origens culturais e coletivas. O “folclore” é um termo em desuso, não pelo importante estudo dos folcloristas, mas pelo uso que foi e é feito das “culturas tradicionais” como folclore, por diversos setores da sociedade brasileira. Desse modo, podemos destacar a apropriação de ícones estratégicos das culturas tradicionais pelo estado brasileiro, muitas vezes, desvinculados de suas


comunidades de origem para afirmação de uma identidade nacional a partir do “popular”; a classificação das práticas culturais pelos intelectuais, de um ponto

de vista externo

às mesmas,

em detrimento

da

autodenominação dos grupos, e os discursos das elites e da grande mídia que comumente usam o termo folclore, para desqualificar as culturas populares como um “conhecimento menor”. Demarcada contemporânea

algumas de

diferenças

patrimônio

cultural,

optamos como

pela

uma

acepção

categoria

de

pensamento1

que permite pensar

entendimento

mais amplo, integrando os aspectos material, físico

o patrimônio,

a partir de um

(arquitetura; obras de arte; etc.) e imaterial, intangível (saberes; modos de fazer; festas; ritos; etc.), para se construir o campo da educação patrimonial na dinâmica escolar, integrando os modos de vida e as tradições culturais locais, por meio de uma abordagem conteúdos

lúdica de

ligados ao cotidiano dos alunos de uma determinada

comunidade. Fortalecendo as relações entre escola e comunidade, que é tarefa contínua dos educadores que buscam abordar as diretrizes da educação patrimonial. Navegando por estas marés a arte rompe fronteiras oceânicas, nas cheias e vazantes em Manguinhos, no CMEI Vovó Ritinha é possível trabalhar com patrimônio cultural e com educação para as relações étnicoraciais no conteúdo escolar desde a base, na educação infantil, através da afirmação da identidade local e do território cultural, num dedicado e delicado projeto educacional

comprometido

com a formação para

cidadania.

1 Gonçalves, José R. S. O patrimônio como categoria do pensamento. In: MEMÓRIA E PATRIMÔNIO –

ensaios contemporâneos. 2 ed. Rio de Janeiro: Lamparina, 2009.


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