Revista Pantagruélica
número dois
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Editorial |
Acontece que estamos de volta. Este é, provavelmente, o melhor número dois da já aclamada revista Pantagruélica. Voltamos com mais arrojo gráfico e mais descaramento literário. A mesa está a crescer e a Gândara também. Neste número voltamos a entranhar-nos no poético mundo rural gandarês, mas fomos mais longe. Numa alma peregrina não há cidadania. Viajámos pelo país e ultrapassámos a fronteira geográfica e a alfândega mental.
Ficha técnica
Venham, sentem-se à mesa e expressem-se livremente. Enviem um texto para dzqdisse@gmail.com. Escrevam uma ode, um ensaio ou uma novela, o que bem entenderem. No fim do décimo segundo número o diz que disse será inteiramente feito das vossas palavras e completar-se-á o ciclo desta aventura.
direcção e edição Tiago Cação design e paginação Pedro Marques revisão Fernando Gonçalves e-mail: dzqdisse@gmail.com
A todos os que colaboraram comigo neste número, fica o recado: voltaremos a sentar-nos à mesa! E repito: esta é uma revista de se ler! Tão boa ou melhor do que o que se faz lá fora (Lisboa). Até breve, Tiago Cação, o pequeno pantagruel
| Tábua 04.
Manuel João Vieira | Textículo
06.
Maria
na base da linguagem escrita vietnamita
29.
07. João Belo | Jagunço, o José Xavier | Antárctida: Qual a relação entre esta burro fujão (continuação) 08. Luísa Barragon | Às região gelada e a Praia da Tocha? 30. Maria vezes acontece o que não devia 09. Pedro Barroso João Sérgio | Felizes para sempre - Uma história | Carta a Carlos Pinto Coelho 11. Fernando Alvim gandaresa 31. Tiago Salazar | Uns gins, uns blinds | Judas! 12. Tiago Mesquita | Ana e o quintal e um tónico (ou a arte do póquer sem strip) 32. da solidão 14. A. Castelo Branco | Por via das João Nora | A lactação de S. Bernardo de Claraval vergonhas descobertas 16. Dora Dinis | História 33. Manuel da Silva Ramos | A virgem nacional pecanina 18. Manuel da Costa | ObriGADO, BOVI 34. Nuno Ávila | É português, não gosto! 35. 24. Djannos Féroe | Só Léria 25. Júlio Henriques Manuela Matos Monteiro e João Lafuente | Hüzun. | Aparição 26. Tiago Cação | Adeus Coimbra, até Roteiro da melancolia em Istambul. 36. João Lisboa | Pimenta Rosa
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já Lisboa, bom dia Amesterdão, boa tarde Nova
Pedro Lagarelhos | Impressões de um lugar (des)
Iorque
conhecido
28.
Pedro Sebastião | Jesuíta português
38. Pedro Eça | portugaleaks.pt
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s i ó r e Os H falto do As
ão Vieira o J l e u n a M r o p textículo
N
as estradas em perpétuos melhoramentos, onde a dúvida se instala a cada sinal, giram os portugueses, ases do volante, espanto do asfalto. Como monstros fantásticos dos “manga”, irrompem pelas novas vias de comunicação pressionados por irrefreáveis desígnios, em que os deuses da impaciência, da guerra e da morte jogam um poker alucinante. Uma sede enorme de liberdade, de competitividade, de libertação dos espartilhos do código da estrada, assiste a estes intrépidos seres praticantes de um ritual que escarnece da morte e das mais elementares regras do senso comum, em direcção ao Walala dos mortos nos sangrentos combates da estrada.
Alguns não morrem, ficam terrivelmente diminuídos física ou mentalmente. Alguns também perecem sem qualquer culpa. Não sabiam que iam ser apanhados na teia dos mortíferos fangios que, zangados com a morosidade do mundo, aspiram vertigem e velocidade. Aspiram também de vez em quando os aparelhos medidores de alcoolemia e é grande a sua glória, heróis de espantosos índices alcoólicos, dignos do Guinness, que tentam a cada dia que passa melhorar, através de sucessivas vitórias da vontade. Claro que há mortos, claro que há estropiados, mas não se podem fazer omeletas sem quebrar ovos, e nesta guerra não há um português que não tenhas um familiar ou amigo atingido por um acidente. Porque de uma guerra se trata, e as guerras são assim, aliás esta guerra é mais mortífera do que a guerra colonial ou do que a guerra do Iraque.
O automóvel é a nossa espada, a nossa metralhadora, o nosso panzer, o nosso cavalo de torneio, e é simultaneamente a nossa casa e o nosso útero materno, onde podemos sonhar e que podemos “personalizar” numa das variantes escolhidas pelo fabricante para que sejamos mais “nós próprios”. O culto do individualismo consumista é bom para toda a gente: construtores de automóveis, construtores de estradas e infraestruturas, gasolineiras, políticos. Esta liberdade que nos dá o automóvel é sumamente sagrada e das poucas que restam aos herdeiros dos grandes piratas. Nas estradas em perpétuos melhoramentos, onde a dúvida se instala a cada sinal, giram os portugueses, ases do volante, espanto do asfalto.
"Esta liberdade que nos dá o automóvel é sumamente sagrada e das poucas que restam aos herdeiros dos grandes piratas." dqd 2 .04
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Arco da Velha | João Belo
Pimenta Rosa
Jagunço, o burro fujão
| Maria Lisboa Podemos comer flores, podemos comer amores, em perfeitos pratinhos design.
(continuação) Beber generosos e datados líquidos, em flutes vermelhas ou não ... Podemos fazer brindes absurdos, repetir sobremesas, e os brindes também. Rir, é essencial.
Decotes e gravatas conversam, with gin & vermute ... Martini, the real one. Vapores de vinho e malinhas escarlate, sapatinhos delicados e altos, souflés vintage. Teremos alvas toalhas, e reluzentes talheres com o peso certo. Em caso de pinças rebeldes, e embaraços com escargots revolucionários, manter a calma, sorrir e comentar sobre pessoas que não se conhece, por exemplo.
Exageremos em ementas queirosianas, canapés e delgadas garrafas de Colares; prazeres e pecados conventuais. Gula - Belzebu E o frapé, que pode levar à Luxúria. Pequemos então, mas com elegância.
Na sala .... Os perfumes, alguns frou-frous de sedas escondidas, senhoras de pérolas e homens sem chapéu ... olhares e requintes, cumplicidades e estares. Cachimbos apagados, fatos engomados... E perucas, fadistas, cineastas, fotógrafos, jornalistas, escritores, escultores, actrizes e poetas, bailarinas e arquitectos. Faltarão charutos e sofisticadas nuvens de fumo intelectualizado. Rumores, as tosses, empregados flutuantes e delicados flambés. O aroma de um suavemente aquecido cognac ... e algumas considerações sobre Napoleão, o Império e o Rio di Janeiro. A propósito, o ritual do café, forte, intenso, lento. Conclusões, velhas amizades e fervorosos reencontros. Há música, e ambiente para falar de música, da arte e da vida. Velas que suavizam rostos, e aquecem convidados de um jantar do Diz que Disse, e de que se pode dizer muito mais.
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O júbilo da libertação havia sido, no entanto, fugaz. As pardacentas jornadas, que vivera com Otília, rapidamente deram lugar a frenéticas andanças, sob o jugo de Noronha. Da ocasional verdascada, que mais não servia que de enxota-moscas na mão da viúva, estalavam-lhe agora, nas carnes traseiras, as sempre vigorosas chibatadas do cigano. - Tch… tch… burroooooo. Zás! Zás! Tch… tch… mulaaaaaa. Zás! Zás! Armando intervalava os incitamentos pelo compasso da lancinante batuta. Houvera mesmo uma vez que sacara da fusca, sempre religiosamente guardada entre trussa e calças, e o ultimara a não fincar pé; hábito esse que a um burro é coisa tão natural como a um homem coçar-se por baixo, ou a uma mulher maldizer tudo e todos. - Qué’s ver que te mato, cabrão! Qué’s veeeer? Sabendo-o de maus sopros e piores feitios, Jagunço obedecia incondicionalmente ao compasso da chibata e do tch tch; quer alombasse com duzentos auto-rádios, quer tentasse manter o equilíbrio sob os fardos infinitos de gangas Leve’s, que a ele, obviamente, não lhe pareciam tanto assim. Acontecia também que, por vezes, nem de noite descansava, pois o gitano, vulto esquivo e dissimulado, aproveitava as luas novas para aliviar os povoados dos seus pertences mundanos. E verga Jagunço! Mas, por essas ocasiões, de mansinho e em sepulcral silêncio, algodoava cada trote, acofinhava cada bafo, como se uma lubrificada lesma movendo-se, fosse. Em tais incursões não cantava a chibata, mas a companhia da fusca no coldre sexual do opressor sobrava-lhe para não ousasse quebrar o rigor espartano que lhe era imposto. Foi numa dessas noites de larápia que Noronha tombou. Há tempos que cismava em assaltar um armazém de faianças que ficava oportunamente perto de um bosque. Essa localização facilitar-lhe-ia a fuga e já havia até encontrado uma fraga sob a qual poderia ocultar, por uns tempos, o produto da empresa. Nessa noite dirigiram-se ao local. Armando aproximou‑se furtivamente, deslizou janela acima, janela abaixo para dentro, soltou o lingote que trancava o portão e correu-o suficientemente. Uma vez aberto o depósito, puxou com desvelo a montada para o interior e, pilha sobre palha sobre pilha, começou a carregar os alforges do burrico que, na inversa proporção
da ganância do dono, sentia a precariedade da carga diminuir-lhe a serenidade. Armando continuava, ligeiro. Jarro a jarro, bule a bule, devagar e com cuidado, aumentava o frágil pecúlio que desgraçaria o cigano e libertaria o burro. Mais uma terrina e outra, mais uma molheira e um jogo de canecas, quatro travessas. Jagunço desacalmava‑se; não ousava sequer mexer os olhos, não fosse o movimento desestabilizar a carga. E mais um jogo de chávenas e canecas e respectivos pires. E pratos, claro… Um imperceptível tremor genufletório foi quanto bastou. Ainda as réplicas de Sèvres se precipitavam dos alforges atulhados, percorrendo o curto abismo que as separava do chão, já cinco achadiços enraivecidos irrompiam pelo portão. Como não se lembrara disto! Noronha leva a mão à fusca, o dedo enrosca-se no gatilho e… pum!
pros o s s u de ma agunço o o d Saben res feitios, J e lment a n o e pio i c condi a chibata e n i a i c obede ompasso d ombasse ao c er al u q ; dios, h á c t r h o c t t au do entos e manter o z u d com tass n e t ardos r f e s o qu b , rio so b í l i Leve’s u s q a e g n de ga e, não lhe s o t i n ent infi m a i v ssim. b a o o , t e l n e a am t que a pareci
Fruto do alarme, um coice assustado do burro atinge-o em cheio, precipitando-lhe o tiro que lhe desintegra as partes. As feras escarnificam o moribundo. Lá fora, fugindo do clamor da matança, zurrando e bramindo desbragadamente, uma sementeira de cacos serpenteia em direção ao bosque.
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Que poderei dizer sobre o Carlos Pinto Coelho que outros o não tenham dito já? Ao longo de uma vida plena de sucessos e alguns desaires, muito se disse e se escreveu sobre ele e o seu trabalho. Uns com ternura (muitos), outros com amizade (bastantes), alguns com inveja (vários) e outros a maldizer (poucos).
1944-2010
Carlos Pinto Coelho
Às vezes Acontece o que não devia
Ele é assim, ninguém lhe fica indiferente!
Caro Carlos,
Eu só poderei falar sobre o excelente profissional com quem trabalhei durante 30 anos e com quem muito aprendi.
Fui surpreendido com a tua partida, tal como tu próprio, e todos nós, que apostávamos ainda numa actividade estuante e diligente, sabedora e apaixonada, como sempre era de esperar de ti e dos teus mil projectos e ideias e como tudo faria prever.
Foram muitos anos bons, alguns dias menos bons, mas todos serviram para fazer crescer uma amizade que hoje me faz falta e sobre a qual não consigo falar sem este nó que tenho na garganta, que não se nota na escrita. Não consigo referir-me a ele no passado, por isso só digo que É o meu Amigo, o meu Companheiro de trabalho de toda uma vida e o meu Irmão. Que tenho uma saudade imensa que espero que o tempo atenue ou a transforme noutro sentimento que não magoe tanto. Às vezes Acontece o que não devia. Mas se quero falar dele como ele quer, com alegria e boa disposição, poderei contar do tempo que passámos em estúdio a gravar, mas também a rir e a brincar, num sem número de horas de trabalho e disparates, muitos destes últimos guardados num CD, que voltarei a ouvir quando tiver coragem. Das exposições que montámos por esse mundo fora com enorme prazer e recheadas de inúmeras peripécias. Dos vários nomes pelos quais fui chamada ao longo da vida, “bruxa” para uns, “mãe leoa” e “tecedeira de soluções” quando no final de cada ano lhe dizia que ainda havia uns trocos para mais uns tempos de programa, “Barragona”, nome com que sou, agora, mimada por uma das filhas e outros tantos de que já não me recordo. Pela primeira vez estou a passar para o papel um pouco do que sinto e também isso a ele o devo, pois sempre me encorajou a perder a timidez e a “ir em frente”. Desculpa querido Amigo, este texto não está à tua altura, mas tem uma qualidade: é sincero. Até já! Luísa Barragon, Oeiras, 12 de Janeiro de 2011
Na impossibilidade de saber o endereço onde te encontras de momento, envio esta carta para onde sempre tratei das coisas contigo, ao cuidado da nossa inefável e cuidadosa Luísa Barragon, minha prima para todos os efeitos, portanto, gente séria. Ela se encarregará de entregar-ta, providenciando a melhor forma de o fazer. É uma mulher inteligente e cheia de recursos, há-de arranjar um processo qualquer de leres isto. Decidiu o grande Mestre de todas as coisas que partisses assim, sem dizer adeus a ninguém, e doeu-me que não fossemos capazes de ter esta última conversa. Acontece que eu acho que deveria existir uma memória de ti, enquanto estás de fresco na cultura deste povo e no apreço geral pelo teu trabalho. Nós, os que gostamos do que tu fazes, exigimos-te isso. O pessoal neste país, como sabes, é demasiado esquecedor, e desta nomenclatura sórdida e sem valores da elevação e do conhecimento nada se pode esperar nesse sentido.Creio que a tua mulher e alguns amigos plenos e incondicionais, cujos soubeste criar numa vida cheia de entusiasmo e ideias, deveriam ter uma palavra nesse “continuar de ti”, agora que já não te é tão fácil encabeçar iniciativas. Que achas? A melhor memória que eu vejo, neste caso, seria uma Biblioteca com o teu nome, penso eu. Poderia haver também um prémio anual de jornalismo, a atribuir por um júri que tu designasses. Uma coisa simbólica, somente de prestigio, sem dinheiros especiais – talvez apenas um troféu bonito. Tenho várias ideias nesse sentido e um dia destes falamos. Espero que te encontres bem onde estiveres e repouses sossegado, pois das últimas vezes que estivemos juntos achei-te muito agitado e essas coisas pagam-se, tem cuidado. Recebe o meu grande abraço, como sempre Teu amigo, Pedro Barroso , 10 de Janeiro de 2011
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09. 2 dqd
Fernando Alvim |
! s a d u J
dos anteriores, como se não os conhecessem. Os dias novos são assim, cheios de John Travolta e brilhantina, dançando em cima do balcão, de dedo ao alto, sem que em nenhum momento se tenham lembrado do seu antecessor, do velho ano, de pé no autocarro. É este o problema, o autocarro ir cheio de dias novos em algazarra enquanto os velhos, sossegados e quietos, já nem sequer dizem em tom ácido “esta juventude!”.
O ano de 2010 já acabou e eu tenho pena. Um ano que acaba é sempre alguma coisa que desaparece e eu lamento que me desapareçam os anos por mais que me digam o contrário. Um ano quando chega ao final, morreu. É esta a verdade ponto. Faz-se a extrema-unção, chora-se quando este já estrebucha e agita as pernitas em agonia, mas não há muito mais a fazer.
Tel. 231 441 442 | Carreiros, Tocha | Cantanhede dqd 2 .10
Quando um ano parte é como se alguém que nos é chegado fosse viver para a Nova Zelândia. E na despedida, por mais que digamos que tudo se manterá igual não vai ser igual, que falaremos tanto ou mais vezes não vamos falar, que a distância não será de todo um factor de inibição mas vai ser sim, que, pelo contrário, a distância e as saudades que já ali sentimos um do outro se encarregarão de nos manter juntos não vão manter nada juntos. E sendo assim, é o que se sabe, os dias encarregam-se de fazer o resto e à medida que aumentam, parecem distanciar-se propositadamente
A culpa nem sequer é do ano novo. É nossa. Nós é que somos os dias novos, nós é que somos o ano novo, nós é que somos os primeiros a não darmos o lugar ao ano velho e aos dias velhos, quando estes estão em pé, ao nosso lado, no autocarro, tratando o ano que passou como roupa velha, como restos de comida de ontem em tupperwares no frigorífico. As pessoas pensam que se lembram, mas ninguém se lembra dos anos. De vez em quando acredito possa haver um ou outro, normalmente porque o associamos a uma tragédia ou a um acontecimento que de algum modo possa ter marcado a nossa vida, mas todos os outros que serão obviamente em maior número - nunca serão recordados. Eu choro por cada ano que passa e gostava que não acabassem nunca. Por mim, ficava muito bem neste para sempre mesmo que as outras pessoas quisessem seguir com outros. Sem um travo de culpa, sem o mínimo de ressentimento. Judas!
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bater no cego até ele ver
Ana e o quintal da solidão
Os seus dias têm horas a mais para tão pouco afecto. Pouco ou nenhum amor dividido pelos dolorosos minutos que horas lhe parecem, e horas que se transformam penosamente em longos e amargos dias. Dias iguais. Anos inúteis.
| Tiago Mesquita
A
photo | Belovodchenko Anton | www.sxc.hu
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na está magra e aparenta ter o dobro da idade que o bilhete de identidade conta. É um rosto vazio de vida. Espremido pelo tempo e tomado pela tristeza que lhe resgatou a alma, aprisionando-a de forma irrecuperável numa masmorra de memórias. Para se movimentar precisa de duas pessoas que a apoiem, mas nem sempre estas duas pessoas aparecem ou se mostram disponíveis para a ajudar. Arrastase lentamente pelos corredores de linóleo. Atravessa-os centenas de vezes ao dia. Já não vagueia alegremente pelos passeios do bairro, olhando as flores, acenando aos vizinhos. Quando o faz, segue de cabeça baixa, enfaixada entre duas caras enfadadas. Foi perdendo a agilidade, alegria e destreza que causavam admiração em todos os que com ela se cruzavam. Sentase sozinha. A cadeira de madeira escura de um quarto de cave numa instituição que há alguns anos a acolheu é agora a sua companheira mais fiel. Não fala. Permanece em silêncio a menos que a abordem. Nesses momentos arregala os olhos como que a interrogar-se. Como se fosse estranho alguém querer ouvir a sua voz. Vegeta entre quatro paredes dentro de outras quatro paredes. Perdeu-se num labirinto que a encerrou ainda mais dentro de quem começou a odiar. Ana odeia-se profundamente. Desaprendeu gestos simples como andar, conversar, sorrir, pentear os
longos cabelos, dedilhar as cordas da viola ou dobrar uma peça de roupa, sem que nenhuma doença a tenha impedido. Ana simplesmente deixou de o saber fazer. Desistiu. Ana não tem horas porque as horas na sua vida deixaram de fazer sentido. Os seus dias têm horas a mais para tão pouco afecto. Pouco ou nenhum amor dividido pelos dolorosos minutos que horas lhe parecem, e horas que se transformam penosamente em longos e amargos dias. Dias iguais. Anos inúteis. Vive congelada numa viagem interminável que a afasta, a cada paragem deserta e apeadeiro sombrio, das pessoas que amava. Ana partiu, deixando um corpo preguiçoso para trás. Gostava de voltar à casa onde foi feliz. Ali perto, a poucas dezenas de metros da sua cave escura e segura. Sabe que não pode fazê-lo e isso consome-a. Ana costumava trocar as voltas à vida, mas desta feita parece ter sido a vida a trocar-lhe as voltas de forma cruel, quase sádica, como um castigo por ter conseguido iludir durante tanto tempo a tristeza, afastando-a em voz alta e com acordes de catequese na viola.
como quem embalava os filhos que nunca teve. Falava com elas e dizia responderem-lhe. Era mais uma flor entre tantas outras, pequenas, grandes, amarelas, vermelhas, azuis e rosa. Naquele pequeno quintal era rainha de alguma coisa. Uma rosa branca de quem sobraram os espinhos. Uma flor que murchou e a quem as pétalas foram caindo. Ana secou de dentro para fora. Ninguém acredita que esta mulher sentada num quarto vazio de vida seja a Ana. Pelo menos a Ana que falava a sorrir mesmo se chorando por dentro. Eu não acredito. Ana amou a vida até a vida a começar a odiar. E ela, ingénua, deixou-se odiar até começar também ela a odiar a vida com a mesma força. Na viola, encostada num canto do quarto, restam duas cordas. Os olhos esbugalhados e esvaziados pela medicação passaram a ser a imagem assustadora de uma mente perturbada e profundamente amargurada. Ana perdeu a Ana e o mundo perdeu uma flor. Ana está sentada na sua cadeira. Descansa Ana. Puta de solidão.
Ana foi uma mulher feliz. Amava a vida como poucas pessoas que conheci. Acordava a sorrir e adormecia a cantar. Tocava nas plantas do seu pequeno, cheio e desordenadamente belo quintal,
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| A. Castelo Branco
Por via das vergonhas descobertas
Mas as coisas não ficaram por aí, pois como é sabido, Satanás, que não perde uma oportunidade de chamar a si quantos mais adeptos melhor, começou aos poucos a desinquietar uns tantos, que agora já são muitos, com acenos e promessas de prazeres e deleites.
O
trinta de Setembro de 2003 é uma data que devia ficar registada nos anais da História da Gândara como uma das muitas que, por esse Mundo fora, assinalam a defesa dos bons e santos costumes. Evocamos o acto público, que gloriosamente disse não à criação de um espaço para nudistas na Praia do Palheirão, onde grande parte da Assembleia Municipal da época fez um arreda-te Satanás para os quatro que tiveram o arrojo de votarem a favor. Fontes da época recordam a vigília que decorreu na urbe durante a sessão nos Paços do Concelho, onde, de círios acesos, os defensores das partes tapadas erguiam os braços em cruz, suplicando uns que fossem perdoados os pecados àqueles debochados, enquanto outros mais dogmáticos achavam que não devia haver clemência e pediam a sua imediata condenação eterna, nas profundezas do Inferno. E, ao que tudo indica, tanto rezaram, tanto se flagelaram e tantos louvores deram, que a votação deu o que deu: proibição às mulheres de andarem com a rata de fora e aos homens com o Zeca Sarapantão de igual jeito. E de tal forma o júbilo foi grande, quando se soube que lá dentro tinha imperado o bom senso na defesa dos santos princípios, que logo ali se organizou uma
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procissão, a que os agnósticos chamaram manifestação reaccionária, em apoio aos dignos representantes da única moral que leva ao reino dos Céus. Mas as coisas não ficaram por aí, pois como é sabido, Satanás, que não perde uma oportunidade de chamar a si quantos mais adeptos melhor, começou aos poucos a desinquietar uns tantos, que agora já são muitos, com acenos e promessas de prazeres e deleites. E vai daí, sem a autoridade por perto, eis que começam a surgir pelos areais do Palheirão fora, uns tantos e umas tantas, que com despudor começam por ali a mostrar as partes. E, não querendo saber de desgraças, passeiam‑se livremente de um lado para o outro, com aquilo que Deus lhes deu, não implicando com ninguém, tomando os seus banhos de sol e de mar tal qual as mães os pariram e deixando que cada um olhe, se quiser olhar. E tem sido por via do olhar que se diz que o assunto vai de novo voltar ao plenário municipal. Porquê, perguntarão. Porventura por revanchismo. Imagine-se o que é desejar estar ali junto daqueles à pai Adão e à mãe Eva, e não ter coragem de o fazer por falta de capacidade, de idade, de à-vontade, de cultura, de elegância, de desportivismo e de encaixe. Então a raiva invade as pessoas, que prometem vingar-se ao serem invadidas pela inveja e pela suspeição, ao serem confrontadas frente ao espelho do guarda-vestidos, com as suas rugas e peles já pendentes (?), ou encolhidas (?) por tudo quanto é sítio, mais pelas mamas descaídas, pelo cu flácido e pelas banhas soltas, num trajecto que a Providência se esqueceu de salvaguardar aos seus imaculados fiéis. Não terá sido esse o problema dos que ontem e dos que ainda hoje tentam impedir que tal aconteça? A ser assim, não restará senão a essa gente cobrir as suas vergonhas , provavelmente por se encontrarem já fora de uso. Quanto aos nossos representantes, que arranjem um arauto e que mandem espalhar pelas nossas terras e terras vizinhas o volta-atrás daquela deliberação, apregoando que face a uma nova investigação, chegaram à conclusão que todos nascemos com as vergonhas1 descobertas.
Quando os Portugueses chegaram a Goa, encontraram os indígenas com escassez de vestes, trazendo algumas crianças indianas uns paninhos de linho com as vergonhas cobertas.(In Itinerário,viagem ou navegação de Jan Huygen van Linschoten) 1
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S
empre adorei viajar em sítios altos! Sinto-me um pássaro, coisa que nunca serei por me faltar asas e bico. É onde viajo agora, num sítio alto, o meu sítio preferido, aconchegante, fofo, verde. Daqui vejo o mundo - aquele que me interessa - vejo árvores, relva, crianças, cães, gatos, liberdade … e a Cidália, que viaja mesmo à minha frente. Sempre amei a Cidália! Sinto-me um rei ao seu lado, coisa que nunca serei por me faltar coroa e reino. É a Cidália que agora observo: a vida tratou-te mal, Cidália, estás velha, arrumada, vestes negro e lenço na cabeça por obrigação e medo dos juízos alheios, mas quando sorris para mim, és jovem e bela, apesar da tua pele enrugada e dos teus olhos baços. Uma vida de sofrimento e respeito a Deus, atitude que nunca percebi. Será uma vida sofrida mais digna do que uma vida divertida? Será o choro mais decoroso do que o riso? Mas esta é a minha modesta opinião, quem sou eu? No entanto, não páro de pensar - o que fez Deus por ti, Cidália? Qual a razão de tanto agradecimento todos os domingos, em que te levantas à mesma hora matutina de todos os outros dias, vestes a tua melhor roupa, colocas o terço no meio do livro de cânticos e deslocas-te até ao centro da vila e, juntamente com outras Cidálias, rezas, agradeces a vida que tens… e eu fico ao portão, à tua espera, ansioso, sentindo a tua falta. Adoro-te, venero-te como um servo, ser-te-ei eternamente fiel, estarei sempre de guarda, para que nada te aconteça, far-te-ei companhia até que um de nós sucumba. Ainda me lembro quando nos conhecemos – foi amor à primeira vista, embora não saiba bem o que viste em mim – parecia um chamiço, um errante de vida danada e rafeira. Nunca conheci a minha família, pois cedo me puseram fora de casa, na valeta, sem rumo, vivendo da generosidade anónima, até que me acareaste e me deste um lar. Porquê? Talvez pelo implorar dos meus olhos escuros e lânguidos, sedentos de amor. O céu está a escurecer, dando as boas vindas à chuva deste Inverno tão molhado e frio; mas, aqui em cima, vou quentinho, enroscadinho, como aquando dos serões com a Cidália ao borralho, onde o silêncio cúmplice se traduz na nossa conversa intimista. Basta a troca de olhares e cada um sabe o que outro pensa de momento – é assim uma relação tão sincera. Estamos a chegar ao destino. A Cidália já se apressa, pois a chuva engrossa. Terei de sair do meu lugar alto de viagem. Sei que será esse o desejo da Cidália. E eis que ela, de olhos ternos, me diz: “Piruças, bôcinho, bá, sai lá da carroça que a dona tem de ir dar comer às vacas! Ai, este cãozito, sempre perdido para andar em cima das carradas de pasto!” Esta história é dedicada a todos os cãezitos de casal, pela sua nobre missão de acompanhar e zelar pelas donas nas lides agrícolas por essas terras gandaresas adentro.
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História Pecanina 17. 2 dqd
ObriGADO, BOVI Areias Movediças | Manuel da Costa
“Ninguém consegue fazer duas betoneiras de massa com o mesmo carro-de-mão de areia.” Ti Abílio Gaspar, Mestre-de-obras gandarês.
Entre os animais domésticos não encontramos nenhum outro com a polivalência utilitária do bovino. Segundo o evangelho de Ricardo Reis, até mesmo nós lhe ficamos bastante aquém, “[m]eros cadáveres adiados que procriam”. O bendito animal foi um dos grandes pilares da economia das famílias camponesas. Imagine-se um tractor agrícola, também motor de rega (quando aplicado aos engenhos de tirar água dos poços), fertilizador, reprodutor, leiteiro, fonte de alimentação e fornecedor de matéria-prima para vestuário e calçado! Nesta breve homenagem, detemo-nos no caso gandarês e, em particular, na vaca turina, tendo em conta os seguintes aspectos: reprodução, produção de leite e de estrume e força de trabalho. Quando a agricultura tomava ainda conta da vida rural, a fundação de um agregado familiar não prescindia duma vaca e uma carroça. O animal podia fazer parte do dote de casamento ou ser comprado pelo próprio casal que, nalguns casos, tinha de empenhar, por exemplo, o valioso cordão de ouro da mulher. Não existindo estas possibilidades, sobrava o recurso à vaca de meias, prática comum aos mais carenciados, que consistia no fornecimento da rês por um lavrador abastado. O
montante da sua posterior venda seria repartido pelas duas partes. No caso das marinhoas, o produto da transacção das crias era também dividido pelos dois. Quanto às turinas, o dinheiro do leite revertia inteiramente para os primeiros, tal como inteiramente lucrava o segundo com a venda dos bezerros. Os encargos pesavam inteiramente sobre quem recorria ao método. Enfim, o mal necessário para pôr um novo lar em andamento. O comércio de gado era uma das importantes fontes do rendimento familiar. Assim, logo que estivesse apta, a novilha teria de ser fecundada. Antes da inseminação artificial ser prática corrente, a tarefa cabia inteiramente ao macho reprodutor. Ao contrário da tradição suinícola, em que o varrasco é prestador de serviços de cobrição ao domicílio, aqui era a vaca que ia ao boi. Ele «estava no bom»: comia, cobria e descansava no curral. Sendo «inteiro», era muito difícil fazê-lo deslocar-se ou condicioná-lo para os diversos trabalhos agrícolas. Era, portanto, especializado apenas em montagem. Enquanto a vaca era agarrada pela soga, o boi era dominado com uma argola colocada nas narinas
Ele «estava no bom»: comia, cobria e descansava no curral. Sendo «inteiro», era muito difícil fazê-lo deslocar-se ou condicioná-lo para os diversos trabalhos agrícolas. Era, portanto, especializado apenas em montagem. dqd 2 .18
e orientado para a cópula com o auxílio de vara. No decorrer da aplicação, emergia nos presentes o enorme tabu que esta matéria ainda constituía. Assistir, pois, a tal espectáculo, sem ponta de pudor, podia provocar alguma ruborescência facial, particularmente feminina. No entanto, o deboche animalesco em nada ofendia a moral cristã: sexo apenas para procriação. A gestação estendia-se por nove meses. Um mês depois da parição, a fêmea estaria em condições de, novamente, tomar o boi. Podia, portanto, criar duas vezes no espaço de um ano.5 Antes da introdução do gado turino, durante a primeira metade do século passado, predominava na Gândara a raça marinhoa, autóctone do litoral e possante força de trabalho. Os vitelos marinhões eram levados para venda na feira aos quatro meses. Para avançarem na caminhada, eram presos às mães e rebocados. Já as crias turinas eram vendidas com apenas um mês. Neste caso, a deslocação era feita em carroça, na qual se ligavam uns taipais mais altos, evitando que a imberbe criatura saltasse do carro abaixo. Ainda no caminho, o agricultor era abordado por um olheiro, ao serviço da “corporação” de negociantes de gado, que avaliava a qualidade e avançava determinada quantia para cada peça, bem abaixo das expectativas. Julgando conseguir melhor resultado mais adiante, o vendedor não aceitava a primeira oferta. Mas os negociantes estavam combinados. O olheiro transmitia aos demais o valor que tinha proposto e nenhum ia além dessa quantia. O lavrador, por seu turno, firme nas convicções e não querendo
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dar de barato o fruto de árduo trabalho, não estava disposto a ceder. Pior ainda. À medida que a feira se aproximava do final, o valor da oferta ia diminuindo, tendo de vender o animal por qualquer preço, para não o trazer de volta. Arrependido, lá ia lamentando que «não há dinheiro como o primeiro». O grande ganho sempre no bolso do frio e habilidoso intermediário. Por outro lado, a compra de uma novilha era feita «à fiança». Era dada uma entrada ao negociante e só depois de comprovada a sua qualidade é que se pagava o restante. Havia que verificar primeiro se a domesticação estava feita como devia ser (se puxava bem a carroça, não marrava, não escoicinhava, não fugia, não tinha medo dos veículos na estrada, etc.). Aqui, não havia maneira de enganar o agricultor. Se a vaca fosse ruim, o negociante tinha de lhe for ne c er
outra e vender aquela para abate. Qual David Brown, qual Massey Ferguson, o bovino foi também tractor agrícola. A sua potência deveria, pois, ser medida, não em cavalos, mas, claro está, em bois. Ainda podemos ver na Gândara tractores de um boi (normalmente, vaca), os mais comuns em tempos recentes. Os de junta eram já grandes máquinas. Mas, a litoral, apoiando a arte xávega na pesada tarefa de puxar barcos e redes de pesca, o rebocador podia chegar à incrível potência de doze bois! Quando pretendia avançar mais rápido, o tractorista recorria ao acelerador manual: bardasca ou vara comprida com aguilhão na ponta1, peças que serviam também para guiar a composição, batendo ou espicaçando ora mais de um lado, ora mais do outro. Em simultâneo, a vocalização imperativa: «eiche, vaca», «anda, estrela», «vá lá ver, preta» ou «chega ao rego,
amarela». O aumento do desempenho nem por isso se reflectia no consumo de combustível, nem este estava sujeito às actuais especulações do mercado. Puxava o arado, a charrua, a grade e as enormes carradas de estrume, erva, agulhas, lenha e o que mais houvesse, por sinuosos caminhos de areia solta ou por atoleiros onde as rodas, de orla em ferro, podiam enterrar-se até ao eixo. Para não ser autuado, quando transitava na via pública, o proprietário tinha de se fazer acompanhar do livrete do veículo, guardado numa bolsa de pano, dependurada num dos fogueiros frontais da carroça. Os mais habilidosos na arte de empilhar, procuravam rentabilizar ao máximo cada viagem, conseguindo juntar na relativa exiguidade da carroçaria uma impressionante quantidade de material2. Na extrema dificuldade de um percurso, o animal podia «negar‑se à carrada». Não querendo aliviar-lhe o peso, condutor e ajudantes teriam de ir lá atrás empurrar com toda a força. O pobre animal não era poupado ao esforço agrícola nem mesmo nos últimos momentos de gravidez. Mas nem tudo era exploração intensiva. Havia alguns mimos a ter em conta, como água tépida no Inverno ou manta velha e capa de plástico pelo dorso, contra o frio e a chuva. Mas a principal recompensa estava mesmo na alimentação, essencialmente pastos e palhas e, em tempos recuados, complementada pela ração a que se chamava rolão ou mastura, comprada em avulso nas feiras e nos grémios da lavoura e composta por diferentes cereais moídos (cevada, aveia e trigo, incluindo sementes e palhas)3 . A mastura diluía-se em água, formando uma espécie de papa. «O gadinho delembia aquilo que era uma beleza
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“enquanto ela procurava reforçar a economia doméstica, ele tendia debilitá-la, alienando capital em mata-bichos, vinhos e petiscos, investimentos sem aparente retorno financeiro, coisa mal tolerada pela poupada esposa, que dizia: «vais lá gastá-lo e ainda ficam a rir-se de ti, malvado, coirão negro!»” e ficava com umas “barbas” de roda da boca». Na selha, acrescentava-se alguns desperdícios de alimentação humana (cascas de batata, de nabo, talos de couve, etc.), para haver também qualquer coisita para roer. Ora, o que entrava teria de sair mais tarde, devidamente transformado. Daí se obtinha a fertilização agrícola, ao misturar-se com a cama do gado, feita de agulhas, matos e canoilas do milho. As sucessivas camadas iam sendo transportadas para a terra e acumuladas no lastro, um monte grande e quadrado onde se interpunha outras secções de agulhas para fazer render. O lastro ficava em estágio até à Primavera, altura em que era «cavado para trás» com enxada ou engaço para se obter uma mistura uniforme. Juntava-se ainda o tremoço bravo que iria melhorar o composto. De seguida, o estrume era novamente transportado na carroça e deixado em montes regulares por toda a terra. Por fim, com gestão rigorosa, era metido em cestos e distribuído ao punhado pelos regos. Estavam iniciados os trabalhos de cultivo. Já vimos, no primeiro número, que a pobreza do solo gandarês, a par com a quantidade de terra a cultivar, necessitavam de esforço adicional na obtenção de adubos orgânicos.
Comparativamente com o turino, o gado marinhão, anteriormente predominante, era parcamente alimentado, logo, defecava menos. Neste contexto, o estrume era deficitário, não havendo lugar para qualquer desperdício. Surgiu, assim, uma actividade inédita: ir à merda com um cesto, prática a que, mormente, se dedicava quem ainda, ou já, não estava directamente implicado nos pesados trabalhos agrícolas (crianças e idosos). Consistia em ir pelos caminhos, seguindo o trilho dos animais, e recolher toda a bosta por eles deixada. Com a generalização da raça turina, o panorama mudou. A sua vocação leiteira exigia uma alimentação melhorada, factor que incrementa o poder de evacuação. Relação directa entre input e output. Juntando isto ao surgimento de novas formas de fertilização, o estrume passou a chegar para as encomendas. Ao ser desnecessário recolhê-lo com cesto, passou a jazer em caminhos e estradas de macadame, paralelos e alcatrão, tendo como novas missões sarapintar a chaparia lateral inferior dos automóveis (pintura bostalizada) e provocar a derrapagem de bicicletas e motorizadas. Finalmente, o leite. Da ordenha ambulante, à porta do cliente vilão
ou citadino, até à extrema exploração industrial da actualidade, por muitas políticas passou o circuito do leite4 . Recordemos a Gândara dos postos de recepção e das ordenhas colectivas, épocas em que o grosso da produção saía das pequenas explorações familiares. De início, o leite tirava-se à mão, em casa, para depois ser levado, a pé, bem cedo, ao posto de recepção mais próximo5. Nem todos os lugares possuíam estas unidades de recolha, pelo que, nalguns casos, seria necessário percorrer diariamente penosos quilómetros. Quem tinha mais de um animal carregava dois latos (um à cabeça, mediado pela rodilha, e outro na mão), recipientes metálicos com tampa, duas pegas laterais (vertical e diametralmente opostas) e uma quina barriguda, semelhantes ao almude do vinho. Em tempos de toda a escassez, comum era não abundarem relógios, nem torres de igreja a debitar horas. E a máquina cerebral nem sempre funcionava no tempo correcto. Quando o sonolento temporizador se desfasava um pouco, acordava-se em sobressalto, julgando estar-se já atrasado para toda a tarefa. Então, tudo era a correr. Chegava-se ao posto, por vezes, horas antes da abertura e ali se (des)esperava sem a noção de quanto tempo faltaria para fazer a entrega. Nos lares mais abastados trabalhavam as moças de servir, que eram quem, normalmente, se levantava para tirar e transportar o produto. Meio ensonadas, no escuro percurso por meio dos pinhais, encepavam em qualquer saliência enraizada e entornavam tudo. Tornavam a casa, dormiam ainda um sono e, depois da repreensão matinal, metiam-se de novo ao caminho com um machado às costas, a fim de deceparem todo o obstáculo pedonal. Velhos tempos. No final da década de sessenta,
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começaram a surgir as primeiras salas colectivas de ordenha mecânica, instaladas por pequenos e médios agricultores, com o apoio das instituições corporativas ou cooperativas e do próprio Estado. Vulgarmente uma ou duas por cada aldeia, acolhiam os restantes produtores, munidos de uma caderneta onde, meticulosamente, se apontava a quantidade de leite tirada em cada uma das duas sessões diárias. A ordenha não era apenas local de trabalho, sobretudo feminino. Representava para a mulher o que a taberna significava para o homem: ponto de encontro e sociabilidade quotidiana, local de crítica e julgamento, onde se punha a conversa em dia (duas vezes por dia!),
espaço de afirmação pessoal, de manutenção ou reforço de estatuto, quer pela aparência do animal, quer pela quantidade de leite facturada. Com uma diferença importante: enquanto ela procurava reforçar a economia doméstica, ele tendia debilitá-la, alienando capital em mata-bichos, vinhos e petiscos, investimentos sem aparente retorno financeiro, coisa mal tolerada pela poupada esposa, que dizia: «vais lá gastá-lo e ainda ficam a rir-se de ti, malvado, coirão negro!»
cerca de metade. Magro, suado e sagrado provento, religiosamente amealhado. A pequena economia local funcionava na perfeição. Em muitos casos, o proprietário da ordenha, aproveitando o dinheiro do leite, expandia o negócio para outros sectores, nomeadamente das rações e mercearias. A circulação de moeda assumia, assim, a forma de bumerangue: da cooperativa para o mediador, deste para o produtor, retornando àquele, agora no papel de retalhista.
O pagamento era feito quinzenalmente, a mesma cadência das compras para o lar. Na «força do leite», o dinheiro chegava para comprar mantimentos, calçado e vestuário para a prole e ainda sobrava
As terras eram cultivadas e as matas bem zeladas. O camponês trabalhava com ânimo, ganhava anos de saúde e arranjava o seu pé-de-meia. O mundo rural cantava e assobiava. Era próspero e feliz!
1 Daí a expressão “picar o boi”, que significa dia de muito trabalho. Cação, Idalécio (2002). Glossário de Termos Gandareses, p. 307. S/l, edição patrocinada pela Associação de Municípios da Gândara. 2 Experimente o experiente leitor beber até “apanhar uma carroça” e logo fará uma ideia aproximada. 3 O rolão misturava-se até na massa da broa, tornando-a «mais docinha». 4 Leitão, Bruno (2004). A Decisão de Abandono da Produção de Leite nas Explorações Familiares do Noroeste de Portugal, pp. 4-23. Lisboa, U.T.L., Instituto Superior de Agronomia. (Disponível em http://www.pluridoc.com). 5 Pequenos edifícios de armazenamento primário criados para o efeito, ainda possíveis de observar nalgumas aldeias, embora já em ruínas. *A todos os informantes, obrigado!
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Morada: Rua Cidade de Viseu, nº 28 3070-801 Praia de Mira Portugal Telefone: 231 471 018 Telemóvel: 91 930 92 43
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Q
uem vem lá! Somos nós, Fugidos da chuva. Trazemos fome e sal.
A PARIÇÃO
Quem vem lá, Cheira-me a esturro. São Trasgos que me abordam Ou é o danado do burro?
Júlio Henriques |
... ao cabo de alguns instantes, quiçá extensos, o meu cérebro, ou o que dele restava em tais circunstâncias nataleiras, não pôde deixar de revelar-me a familiaridade das feições, a perfeição incomparável do sorriso, a peculiar matreirice do olhar que ali surgiam para meu incrédulo espanto...
Não, não é um sonho e Não vieram sós. Procuram farra, Lume e tacho. Entrem lá malvados Que a chuva ensopa. Enquanto o diabo esfrega um olho, Apresento-vos uma sopa.
E
stava eu sentado à lareira, uma lareira destas onde cabe um rancho de gente, uma família antiga até à quinta geração ou um clube de alpinistas com todo o material - onde se pode cear e dormir e que parece um mundo -, naquele torpor encantado que convida ao devaneio, fitando as chamas que faziam correr no chamusco da parede figuras desvairadas, procissões de duendes, anjos desbocados, montanhas e rios, quando às tantas, naquela demorada correria de figuras, cenas e acontecimentos sucessivos, vejo aparecer distintamente, bem defronte de mim, acima do rubor das chamas e da aleatória espessura da fumaça, uma cara conhecida que não reconheci logo por causa das frieiras que nesse comenos me acometeram nem identifiquei de imediato por força do calor que sucessórias taças de tinto, recémtragadas, me produziram nas zonas estomacais mais profundas - nem quis outrossim admitir devido ao inusitado da aparição.
As horas, à noite não se contam. A coragem esconde-se como breu e a lua do alto avisa: Isto dantes foi o céu. Mas creio em vós, sem trunfos na manga, sem serapilheiras, sem nó cego. Diria que são pedaços de soalho com um ou outro prego. Mas entrem, entrem, abozeirem-se aí ao borralho. Vejam lá não se queimem. Não mexam no braseiro que à noite dá mau resultado. Amanhã também é dia. 9 e meia tudo a pé! Depois decidiremos aonde ir, Talvez ao… Ou quem sabe ao retiro do… Malhar um traçado, Morfar uma patanisca, Dissimular segredos e esquecer todos os cagaços. Tenho planos. Tendes instinto. Mas deixem-se de lérias e abram lá mais uma. Está de chuva lá fora e Aqui dentro nem pinga. ...Em breve tudo será como de costume… Passa a estação e o portão do quintal continuará escancarado ao sabor do vento.
Só léria Djannos Féroe
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Mas enfim, ao cabo de alguns instantes, quiçá extensos, o meu cérebro, ou o que dele restava em tais circunstâncias nataleiras, não pôde deixar de revelar-me a familiaridade das feições, a perfeição
incomparável do sorriso, a peculiar matreirice do olhar que ali surgiam para meu incrédulo espanto -- e me inclinaram para trás na cadeira num tão súbito gesto que me estatelei de costas sobre uma ninhada de gatos estabelecidos na periferia do borralho, os quais, ipso facto, reagiram com tanta garridice sonora e empenhados movimentos de salve-se quem puder que me deixaram no chão todo arranhado nos braços (estava em camisa, de mangas arregaçadas) e me impeliram a soltar uma sequência de bradados impropérios, bem puxados e lustrosos, ao mesmo tempo que com os pés em desatino, nuns sacões involuntários, dei alavancadamente um piparote em alguns dos tições que se destacavam na fogueira e foram aterrar, por trás de mim, uns em cima das cadelas que dormiam a sono solto e os outros sobre o velhíssimo tapete do século XVIII, grosso como o enchumaço de um leito de Morfeu, causando automaticamente o ladrado alarido dos canídeos e a célere propagação do fogo ao pano ressequido por séculos de usura, infligida por incontáveis pés amiúde calçados com sapatorras de respeito.
retirados aposentos, debalde gritei por auxílio ao debater-me sobre os gatos enquanto atendia aos pânicos movimentos das cadelas. Porém, ao soerguer-me, rijamente fixado sobre o cóccix, vi que a cara enxergada sobre o lume lá permanecia, agora francamente jocosa e radiante, coisa que me revoltou as entranhas, visto ela se rir tão desbragadamente da queda que me acometera e do subsequente infortúnio - de grande monta, pois não só me via arranhado dos pulsos aos cotovelos como jazia encharcado pelo leite da gataria e as fundas sopas das cadelas, cujo uníssono fastio de fim do ano levara a bicharada a nem sequer lhes tocar.
Não havendo, ademais, nenhuma outra alma humana naqueles
E, já agora, o abraço afectuoso do escriba desta papelada.
Ora aquela cara, que eu de supetão não conhecera, era de um velho amigo amante da caldeirada e em cuja bizarria já não punha os olhos havia uma porção de tempo, porção essa avolumada pelos meses colados a uma catrefa de dias. Mesmo assim, ao soerguer-me, proferi, na voz gutural de quem se vê ante um milagre: Bem aparecido sejas, amigo Fernando! E bons votos de navegação no proceloso mar que se anuncia!
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Chego vivo a terras do tio Sam e, a propósito do fenómeno migratório, desloco‑me ao American Immigration Museum. A minha curiosidade é, claro, encontrar vestígios da minha árvore genealógica.
E Gandarês Vadio | Tiago Cação
Adeus Coimbra, até já Lisboa, bom dia Amesterdão, boa tarde Nova Iorque.
stou sentado no melhor bar de Coimbra e sou alertado para partir. Confesso que há conversas de que valem mais que mil viagens. Amargura-me partir sem levar o meu melhor amigo. Mas há certas coisas que temos de ser nós a fazê-las sozinhos. Sento-me no banco da frente do autocarro, e com alguma ironia pergunto-me como vou passar estas duas horas sentado. Entretenho-me a mandar umas mensagens e à procura das minhas 80 músicas no mp3 enquanto chego a Lisboa. Quanto faço o check-in, sou abafado por um grupo de asiáticos. Pergunto de onde são - China -, foi a resposta. Não deixo de reparar nas suas malas Luis Vuittton (comunistas, pois então!?). Já em Amesterdão, enfrento a minha primeira grande concentração de etnias. Atrás de mim é o check-in para o voo KL 4103 com destino a Kuala Lumpur. Entretanto, mais chineses a contrastarem com a bela paisagem oferecida por um grupo de escandinavas. Deixo Amesterdão para aterrar em Nova Iorque e, enquanto isso não acontece, leio no livro que me acompanha o seguinte parágrafo: “Curiosa a clarividência dos nossos inquisidores quinhentistas: expulsam de Lisboa, na altura, a capital comercial do mundo, a comunidade judia. Que se muda para Amesterdão. Poucas décadas depois, a cidade holandesa torna-se, às custas de Lisboa, o principal empório comercial do mundo. Ainda algumas décadas mais tarde, essa mesma comunidade judia abandona Amesterdão para se estabelecer em Nova Amesterdão, hoje conhecida como Nova Iorque, a capital financeira do mundo…”
Chego vivo a terras do tio Sam e, a propósito do fenómeno migratório, desloco-me ao American Immigration Museum. A minha curiosidade é, claro, encontrar vestígios da minha árvore genealógica. Durante a visita encontro vários objectos pertencentes a portugueses. Passaportes, notas de dois escudos e cinquenta centavos (circulação de 22-12-1920 a 24‑06‑1929), roupa, e por aí fora. À Maria Luísa dos Açores (1985, ano de chegada) pertencia um missal típico do catolicismo português da época. À Idalina de Jesus Silva (1918) cabia um forro para a almofada. Entre o legado português, deixado na Ellis Island, encontram-se também uns livros pertencentes a Francisco de Albuquerque Silva (1919). O Drama da Escravatura, Educação Cívica e O Meu Tio Benjamim, são alguns dos títulos que consegui descortinar. Este Albuquerque bem que podia ser um aristocrata insolvível pós-república instaurada. Voltando ao que interessa, encontro o registo de José da Rosa Cação: 36 anos de idade, casado, tendo chegado aos E.U.A a bordo no navio Pátria, em 1916. Ironia do destino ou não, o José Cação é nativo da Figueira da Foz. Será um ramo partido, e lançado às correntes do Atlântico, da minha árvore genealógica?
O Tiago viaja com o apoio de
Euroviagens - Avanca geralavanca@euroviagens.com
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Cenários da Indochina | Pedro Sebastião
Jesuíta português na base da linguagem escrita vietnamita
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uito me apraz ter tomado conhecimento de mais um cunho lusitano no contributo de um feito maior como é o da construção de uma linguagem escrita, romanizada, sendo essa relativa a um país tradicionalmente reconhecido por uma cultura tão díspar como é o Vietname. Centremo-nos na figura do Padre Jesuíta Francisco de Pina. Natural da cidade da Guarda (1585/86?), terá chegado à Cochinchina por volta do ano de 1618, onde terá desenvolvido a sua actividade até à sua morte, em 1625, na cidade vietnamita de Da Nang. Entrou para a Companhia de Jesus aos 19 anos e desenvolveu os seus estudos em Letras e Teologia no Colégio Jesuíta de Macau. Esta instituição, que foi estabelecida segundo o modelo da Universidade de Coimbra, já conferia, desde os finais do séc. XVI, os graus académicos de Mestre em Letras e de Doutorado em Teologia. Como disciplinas complementares, eram ministradas outras matérias como a língua japonesa, as religiões orientais, a pintura e a música. Por outro lado, não poderemos esquecer que a Residência dos Jesuítas nesta região do Mar do Sul da China, permanecia na cidade do centro litoral vietnamita, denominada de Hoi An, e não em Macau, como logicamente se poderia entender. Saiba-se que a sede dos jesuítas na Ásia seria no Japão e que estes mantinham, por razões histórico-comerciais, a sua influência nessa zona costeira do Vietname.
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Acabados os seus estudos, Pina muda-se então para a missão de Hoi An. E é aí, no contacto com os falantes nativos, que se apaixona pela língua vietnamita e se autopropõe a realizar uma tarefa de todo exigente e pioneira: romanizar a língua escrita do Vietname, que até então era apresentada sob o antigo registo baseado em ideogramas de feição chinesa. Para quem não sabe, a língua vietnamita actual não se escreve por ideogramas como o chinês, o japonês ou outros idiomas asiáticos. Embora manifeste acentuação e sintaxe particulares, apresenta-se-nos através dos mesmos caracteres por nós utilizados, organizados em torno de um alfabeto. Pina terá sido então o iniciador do processo, no que viria a concretizar‑se no «Quoc Ngu» ou “Língua Nacional” e no desenvolvimento e adopção oficial de um registo romanizado e distinto do chinês.
Antárctida: qual a relação entre esta região gelada e a praia da Tocha?
Sabia que a Antárctida pode afectar directamente a Praia da Tocha? Não, não tem a ver com o frio. A Antárctida é uma das regiões mais frias do planeta e é do tamanho da Europa. Os animais que lá vivem estão bem habituados a águas geladas e a seis meses de dia e a seis meses de noite. Pinguins, focas e albatrozes são alguns dos seus habitantes que se deliciam nesta parte do planeta e o frio é tratado por “tu”. Como biológo marinho, mas principalmente como Português, trabalhar na Antárctida não é fácil. Planear uma expedição científica à Antárctida demora dois a três anos. No meu caso, a duração de trabalho de campo na Antárctida oscila entre dois e nove meses. O último decorreu em 2009, envolvendo um cruzeiro científico e trabalho numa ilha antárctica.
No entanto, o trabalho revelou‑se muito mais complexo e por isso mesmo, demasiado moroso. À medida que iam chegando novos missionários, Pina concentrava-se agora, e, em simultâneo, a formar estes seus discípulos na língua vietnamita. Isto é: precisava de ajuda! E, terá sido no meio daqueles sacerdotes, oriundos não só de Portugal, mas também de Itália e de França, que se distinguiu um jovem padre jesuíta francês, de nome Alexandre de Rhodes, que terá sido o precursor de Pina no trabalho a realizar, e, julga-se, o finalizador do projecto, já que Pina teria falecido entretanto.
Aquando da minha visita ao restaurante Mestre Zé a convite do Tiago Cação, expliquei em pormenor que o cruzeiro tinha como objectivo perceber como o Oceano Antárctico funciona, no sentido de identificar se os animais marinhos (os peixes, as lulas, o camarão) se encontram distribuídos “ao calhas” ou concentrados em determinadas áreas. Na ilha antárctica, estive com albatrozes, focas e pinguins, colocando aparelhos GPS nos primeiros, para perceber como eles exploram o meio marinho. Queria identificar se as áreas onde o peixe se concentra são aquelas que os albatrozes exploram para se alimentar.
Este facto ter-lhe-á conferido os “louros” da obra, assumindo praticamente o papel de criador do projecto, «o pai do Quoc Ngu », secundarizando-se, durante séculos, a figura primordial do jesuíta português que esteve na base de todo este primoroso trabalho linguístico.
Com as alterações climáticas, partes do Oceano Antárctico apresentavam as águas um pouco mais quentes do que o normal, o que afectou a distribuição do peixe. Alguns pinguins tiveram bastantes dificuldades em se reproduzir, o que nos leva a crer que, possivelmente, algumas espécies podem vir a sofrer bastante com as alterações climáticas. As alterações climáticas estão muito interligadas com a quantidade de gelo. Com o planeta a aquecer, o gelo tem tendência para ser cada vez menos na Antárctida. De momento, a maioria das provas desse degelo vem da Península Antárctica, que se situa na parte Oeste da Antárctida. Se toda a parte Oeste da Antárctida derreter, o nível médio da água do mar pode aumentar até mais seis metros. No pior cenário, caso a parte Este da Antárctida, que possui a maioria da neve e do gelo, derretesse totalmente, o nível médio da água do mar poderia aumentar mais de sessenta metros.
(Vide Roland, Jacques, Pionniers Portugais De La Linguistique Vietnamienne, Orchid Press, 2002, Bangkok, Thailand.)
| José Xavier Instituto do Mar da Universidade de Coimbra (jccx@cantab.net)
Estando a Praia da Tocha junto à costa, este degelo da Antárctida poderá afectar directamente essa vossa linda localidade. Mas para isso acontecer, o nosso planeta teria de aquecer bastante. Por isso, descontraia-se e bom apetite!
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io | Maria João Sérg
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outros te mpos, os homens ia per iodica m mente faz er a inve procura d a Mar ia p r nada à o sustento rometido arenosos q que vir ia ue os terr bater das da região embora a e n d não lhes os oze bada ntes do davam. las. – Eu não me acard O Zé das ito! – exc Há que v Couves e lamou a M enisses n ra um de terras, du ar ia. – ão vou a les. A cas as entead u a m , as a festa! as e a sua ao cuidad fi lha ficava Em bem o de Mar m que cheg ia Cabeta bela e be ou ao pa , mulher m apesso c o m m vilhão, u m a neiras de uito ada, mas trabalha m rapaz p e p s or jeitos s o to deira, ao a d e a s s timada, as rapar ig pouco contrár io gandaresa c o a biçado po s casadoira da mulhe a dançar. que toma r s da terra r A Mar ia va o gove seu home , convidou não lhe d rno da ca g m da ma r a n a d e o enten eu cabaç sa até vir lta. dimento o e foi o chegou a d o s d ois, mas d hora com Às tantas epressa binada. N Mar ia vir , bateu um um alanc ou costas carretilh Couves e o ,a e foi-se e o no Zé para trás apagou-s mbora, d d as uma peq e no mes Cabeta lo e ix u a e m ndo n o a go deixou dia. Mar ia chinela d e verniz. todas as t da sua en arefas ao Perdido d teada, M cuidado ar ia. e amores , e sem sa rapar iga, ber part o rapaz aga A Mar ia e da rrou em dia foi à todos os si e ao ve procura d dias anin e trabalha r-dohava a vid a gandare casar com va as terr sa, matin a de casa as, enqua ela. A pro suas duas a n d n o to a madr cura não já esmar filhas se a surdia e asta e as ria, quan boseirav ao tram o d r a o am à jan paz a elo, tesg p o equena c longe avis ela a dar anhando asa. Mar ia to u u m dos outro a Cabeta ab e, adivinh s. r iu a port and A fizada a indromin o o intento do rap pelas irm ãs e apre az, tentou á-lo com a Mar ia s m uma das ada pela assim co ó matina suas filha madrasta m’assim va no dia Tomé. O s, m as , o da festa d s e pés nem seu maio n tr a v a m o S. a muque na peque r desvel todo enfe na chinela era ver o itado com pavilhão . mosque papel, e d iros e ca A ançar ao M a r ia d eados de preparava toque vib rante dos uma pala na cozinh ja dosa cald z a. Pelo lo o s . Esse dia c eirada r, o rapaz num ímp hegou, m foi ter co ado, ped as a madr Delegoume iu-lhe pa asta não lh chinela. A lhe tanto ra exprim la e, e deu lã. s afazeres ssentou-lh tempo de entar a que ela ja e que nem a gandare se alama mais ter ia sa que lhe uma luva rar para a ! Era roubara o festa. festa do S coração n . Tomé e Foi um e a q c uela om ela qu ncalho a er ia casar visita de madr inh ! Mar ia Fa a da Mar E mbora à dinha, ia, por aq mament do suced uela ocas e, a madr ido, deito c a samento iã o asta lá ace . A u -se a faze e, claro, v o saber à festa. A itou o r algo par iv judou-a a e r a m fe a a levar lizes para concluir trapiu-a sempre! a s tarefas d muito be e casa, m trapid de águaa, pôs-lh de-cheir e um nad o e levou ita -a à festa, tendo-lh e
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Tiago Salazar |
Uns gins, uns blinds e um tónico
(ou a arte do póquer sem strip)
sidonie laneque | sid.lane@me.com
Os jogadores estudam-se por esta altura, camuflados nos seus Ray-Ban, uma maneira legal de olhar sem ser olhado e adivinhar as intenções dos adversários. Numa das mesas todos envergam óculos escuros e a única maneira de se estudarem será porventura olhar para os sobressaltos das bochechas, os polegares a dar e dar como batutas, as barrigas suadas das corcundas a zarparem-lhes pelas costas. Nos passos em volta, fichas ao despique. Baralhares de cartas como disparos de setas. Música de apelo ao transe. O bruá da assistência. Um cocktail de sons ecoa pelas duas salas do torneio monegasco e leva a perguntar como pode um jogador manter-se concentrado naquela algaraviada belicosa. [A crise não mora aqui, diz ao seu botão o cão peregrino…]
A maioria parece imperturbável e focada somente nos stacks, nails, folds, flushes, under guns, blinds e por aí fora de expedito glossário marcial. Minutos depois caem os primeiros patos e desertam para a varanda onde varrerão as melancolias com um gin (on the rocks) e o recapitular arengado dos malogros na mesa. Na pausa do jogo recordam as mãos de fio a pavio, exaltados, derrotados ou apenas possuídos pelo elixir do vício. Espumam, fumegam (fumam cigarros uns nos outros, ainda os Gitanes opiáceos), empertigam-se e voltam então à sala como pugilistas para uma última dança.
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diz que disse que é arte Ando à procura da virgem nacional. Como o assunto é sério, muni-me de todos os apetrechos necessários. Telescópios, canas de pesca, tacómetros, pluviómetros, bússolas, topómetros, sensores de ventos, crestadeiras, niveladores , telémetros e até de um aparelho muito simples e objectivo, o termómetro. Partindo do pressuposto de que a minha tarefa me ia levar a longes terras meti um burro dentro de uma carrinha Hanomag e uma bicicleta de montanha no tejadilho. E sem temor de qualquer ordem fui-me à aventura. A aventura em Portugal é sempre sinónimo de arrelias e contratempos e esta não fugiu
num oito, toda espatifada. Chamaram o INEM e à médica simpática confessei o meu fito. «Procuro uma virgem para casar». Ela fez logo uma cara de doente e eu percebi que tinha batido à porta de uma má província. «Aqui nem as formigas são virgens!» disse ela. Já estava desesperado desta situação, quando recebi um telefonema de um carpinteiro de Alpiarça. Tinha feito uma Pinóquia que falava, virgem como poucas. Gosto de bizarrias, mas quando fui vê-la já tinha sido arrematada por um antigo emigrante que vivia sozinho na serra da Ossa.
A VIRGEM NACIONAL uma agulha num palheiro | Manuel da Silva Ramos
Lactação de S.Bernardo de Claraval Lactation of Saint Bernard of Clairvaux | 2009 óleo s/ cartão oil on cardboard | 37,5 x 35 cm 14,76 x 13,7 8 in | www.joaonora.blogspot.com dqd 2 .32
à regra. Logo que estacionei na avenida dos Aliados no Porto caíram-me em cima um bando de católicos. Munidos de varapaus, bandeirinhas e cartazes agressivos queriam malhar no condutor ateu da carrinha que sem pudor afixava na carroçaria: «Procuro virgens divinas e até desmontadas». Resolvi rumar até Trás-os-Montes. Talvez aí encontrasse uma bela virgem em flor. Cheguei montado no meu burro a uma aldeola perto de Bragança onde só havia velhas. Falei com algumas, mas elas não se lembravam de nada. Se eram virgens ou não. Como eu não levara nenhum lembrómetro no alforge do Ingénuo (assim se chamava o meu burro), resolvi desistir e procurar uma terra onde as virgens andassem de bicicleta. Escolhi Tomar, mas quando lá cheguei havia festa e mandavam a última virgem para o Nabão, de maneiras que fiquei ali mesmo sem a promessa de ser feliz. Sem mais delongas, parti para o Sul do país onde sabia o clima mais ameno. Na serra de Monchique equipei-me à ciclista, mas derrapei numa curva e fiquei com a bicicleta
Regressei a casa insatisfeito e ia meter a chave na porta quando ouvi a voz melíflua da minha cadela: - Olha, ela regressou ! Abri a porta e via-a sentada no meu sofá a ver um filme de terror. Era a minha primeira namorada, que tinha casado sete vezes, divorciado cinco, mandado cinco viúvos para o inferno dos pardais, e que sabendo da minha procura tinha feito uma operação milagrosa no Brasil para colocar um hímen volumoso. Perdido por cinco, perdido por mil. Deitei‑me a ela e ali mesmo soube que tinha sessenta anos, um braço artificial, uma dentadura postiça e que a sua cabeça ainda andava ao relento no Camboja. Quando acabei de lhe enroscar o braço, levei-a a casa da mãe que acabava de falecer na sua ausência da doença do aborrecimento. Coriscava de novo na minha vida.
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Santos da Casa | Nuno Ávila
Falta tusa à alma lusa! Rima e é verdade! “É português, não gosto”, já dizia João Mascarenhas, o senhor que dava rosto aos Stealing Orchestra. Tiago Pereira, para comemorar quinze anos da Associação D’Orfeu de Águeda, realizou um documentário intitulado “Se a Musica Portuguesa Gostasse Dela Própria”. Isto, para reforçar a ideia de que, para muitos, o facto de ser português carrega sobre muitas obras de arte um conotação negativa. Seja na pintura, no cinema, no teatro, na escrita ou na música. No caso desta última, que é por isso que aqui estamos, acontece bastas vezes uma coisa ridícula e tonta. Quando mostramos a um amigo um grupo ou artista que ele não conhece, à primeira, depois de uns minutos de som, ele até elogia o produto. A música até pode enganar, por ser instrumental, ou por as palavras serem em inglês. E porque afinal até é mesmo boa, o raio da canção. No segundo seguinte, quando lhe dizemos, que o que acaba de ouvir é criado por alma lusitana, torce o nariz, franze o sobrolho, abrindo as goelas para soltar um monte de impropérios.
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oi o livro de Pamuk, Istambul – Memórias de uma Cidade, que nos guiou pelas ruas e pelas histórias de Istambul. Os relatos do Nobel da Literatura sobre as suas vivências na infância e na adolescência desenharam um mapa sentimental da cidade que tentámos explorar. Procurámos as manifestações do hüzun, termo muito próximo de “melancolia”, e que Pamuk define desta maneira: “ é um sentimento interiorizado com orgulho e ao mesmo tempo partilhado por toda uma comunidade”. Não é, portanto, um sentimento individual, não é a melancolia experimentada por uma pessoa, é do hüzun, da melancolia da cidade que se trata. Em Istambul procurámos os locais, as personagens, as situações identificadas por Pamuk em que o sentimento de melancolia se manifesta: os homens que pescam na ponte Gálata, os barbeiros e os alfarrabistas que se queixam da crise, as crianças que jogam à bola na rua, as mulheres de lenço islâmico que esperam em silêncio o
autocarro, as multidões apressadas para apanhar os vapur, os cemitérios no centro da cidade… Sentimos a melancolia em lugares habitados por pessoas: na estação Sirkeci, de onde o Expresso do Oriente tantas vezes partiu e aonde tantas vezes chegou, nos barcos que atravessam o Bósforo e ligam o lado europeu ao lado asiático da cidade, nas ruas íngremes que nos levam à Torre Gálata, e também nos vendedores do Grande Bazar que aguardam clientes. Percebemos a cor da melancolia nos mármores gastos das fontes e nos chãos de acesso às mesquitas, nas casas apalaçadas da era otomana … Todo este ambiente tinha para nós um profundo sentido poético que procurámos registar em fotografias a preto e branco. Foi em Istambul que percebemos a razão que levou Pamuk a iniciar o seu livro com uma citação de Ahmet Rasim: “A beleza de uma paisagem reside na sua melancolia”. Istambul é uma cidade bela.
Manuela Matos Monteiro/João Lafuente
Hüzun Roteiro da melancolia em www.istambul5dias.net
“Pois, bem me parecia… o sotaque é péssimo, e o tipo da guitarra faz um solo que parece o coiso… o outro”.
Istambul
Mas por que raio tem o povo luso esta malfadada mania de deitar por terra tudo o que aqui criamos? Falta-nos auto-estima. Lembro-me de assistir a casos de bandas que por aqui suaram, comendo a terra das estradas que este país lhes dava, e que no fim de tão glorioso esforço recebiam um diminuto elogio, muito inferior à sua real qualidade. Mas, se o mesmo artista tem a felicidade de ir tocar uma ou duas vezes além fronteiras, quando volta a pisar este solo vem com um rótulo na mala a dizer: “o maior!” E tem a honra de aparecer no jornal das oito. Aconteceu com Paulo Furtado e o seu projecto solitário The Legendary Tigerman, depois de uma digressão em França.
Ele já tinha sentido este estigma na pele. O seu lendário grupo Tédio‑Boys só teve um olhar mais atento por parte dos média depois de terem andado a tocar alguns meses nos Estados Unidos. Se os outros gostam é porque é bom. E não há nada a fazer! Falta tusa à alma lusa! Rima e é verdade!
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| João Pedro Lagarelhos
Impressões de um lugar (des)percebido Tenho de enviar uma mensagem a alguém porque só para mim é que este momento não fica. Adoro chegar a um local e sentir que podia ali viver para sempre, fazer das ruas “novas” novos trajectos diários, e das pessoas que lá são “velhas” velhos amigos. Normalmente, apaixono-me primeiro pelas pessoas e depois pelos lugares. Lembro-me quando cheguei a Spoleto, cidade pequena no centro da “bota italiana”, onde a hospitalidade foi tão quente quanto os 40º graus normais de um mês de Julho na zona da Úmbria, e embora o meu paladar estivesse para a comida italiana como o Silvio Berlusconi estava para o surf, foram os sorrisos e as conversas com as pessoas que me alimentaram a alma e aconchegaram o estômago de sentimentos inquietos. Recordo Vigo e a recepcionista da Pensión Residencial Bouzas, que me chamava de “portuguesito” com tremendo carinho que baralhava entre as conversas sérias que mantinha com o filho
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Diego de 3 anos e as brincadeiras na linguagem de mãe para filho que tinha comigo, ou será que foi o contrário? Soube bem chegar a Braga e receber, numa pronúncia tão própria, palavras que só quem sabe bem receber as profere, em Bragança ouvir as histórias do que foi que já não é e que nunca irá ser, se é que alguma vez já foi, numa humildade verdadeira e onde a verdade é humilde. Adoro chegar a Oiã e sentir a irmandade aliada à compreensão, coisas de amigos formados em momentos ancorados no tempo. Por outro lado, detesto a viagem de regresso da Praia da Tocha, onde o adeus até ao meu regresso é sentido como um abraço ao pai e à mãe antes da partida para uma nova vida longe de casa. Mas hoje sou “inundado” pelo lugar. As pessoas devem estar nas filas de trânsito, nos centro comerciais, no seu trabalho, nas esplanadas ou a estender roupa. Aqui é que elas não estão. Ouço o vento a raspar nas
pedras gigantes e a fintar as árvores, o assobio da ave que passa e o infinito da paisagem que se funde num corpo‑a-corpo comigo. Fecho os olhos e penso como isto me faz sentir leve, a harmonia pela qual esperava quando imaginei estes lugares massificados pela natureza e comercializados pelas águas puras que correm ao seu redor. Deitado no gigante penedo de barriga para o céu infinito, tal como toda a decoração paisagística e mental em que me encontro, passeio em segundos por Spoleto, Vigo, Braga, Bragança, Oiã e pela Praia da Tocha, vendo pessoas sem face, ouvindo o barulho de conversas sem som, pisando ruas sem chão e andando sem pernas. Adoro chegar a um local e sentir que ali estava todo o dia. Aqui, apaixonei-me primeiro pelo lugar que parece não pertencer a ninguém, mas que é de toda a gente que se comprometa a respeitá-lo. Acabo de receber uma mensagem, abro os olhos e levanto-me. Carrego no botão e vejo a pergunta mais
comum numa mensagem escrita em telemóvel. “Onde andas?”, leio, esboço um sorriso e penso: “Não sei o que responder, estava mesmo agora em Itália, Espanha e Portugal. Se o corpo e a mente estão sempre ligados, como posso eu ter a resposta a tal questão? Para além de que, se digo onde estava há dois segundos, ninguém vai acreditar”. Páro mais uma vez, olho para trás como se quisesse tirar uma fotografia com o olhar e deixá-la fixada na mente, ao mesmo tempo que, penso com felicidade que este é provavelmente o último lugar mágico do meu país e muitos dos seus habitantes o conhecem. “O Gerês é o último paraíso de Portugal, não digas nada a ninguém, poucos sabem ou não se lembram que ele existe!”, escrevo. Mas, páro de repente. Decido que há momentos que não devo contar a ninguém porque devem ficar só para mim.
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Soltar de Língua | Pedro Eça
t p . s k a e l a g portu
Q
uando este segundo número da nossa querida “Diz Que Disse” for publicado, nós já teremos passado os dias mais esperados do ano. Para aqueles que têm trabalho e que andam a recibos verdes, foi o dia do fim do mês (deste e dos outros onze); para aqueles que têm emprego foi o dia de receber o décimo terceiro. Tivemos também o dia do nascimento do Menino Jesus, o dia da paz, do amor, da harmonia, da fraternidade, enfim, o dia da hipocrisia familiar e consumismo desenfreado a que chamamos Natal. E, por último, aquele dia em que fazemos de conta que celebramos um ano novo próspero e cheio de coisas boas quando, na verdade, afogamos mas é as mágoas em litros de espumante barato para esquecer a merda que foi o ano que passou. E cá estamos todos num novo ano com uma ressaca do caraças, umas prenditas “Made in China”, que foi o que a crise deixou comprar, sem esperança, mas a fazer a única coisa que se pode fazer, voltar ao trabalho, pois do jeito que as coisas andam ter trabalho já é bom, quanto mais emprego. A primeira notícia que vos trago este ano vem da “Portugaleaks.pt”, e as notícias são bombásticas. A Portugaleaks.pt diz ter em seu poder documentos secretos que foram descobertos em milhares de e-mails respondidos pelo Pólo Norte que provam irrefutavelmente que o Pai Natal
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não existe. Segundo a Portugaleaks. pt, estes e-mails em resposta aos milhares de pedidos feitos por crianças das mais variadas idades e nacionalidades ao presumível homem barbudo nunca chegaram aos seus destinatários, pois parece haver uma conspiração internacional que intercepta todas essas respostas com o intuito de manter nas crianças a ideia de que o gorducho fictício lhes dá tudo aquilo que pedem para que assim continuem com a mesma pedinchice todos os anos, fazendo‑nos gastar anualmente dez vezes mais dinheiro do que aquilo que seria necessário. Ao que parece, os habitantes do Pólo Norte já estão fartos de receber correspondência por engano. Numa dessas respostas pode ler-se o seguinte trecho: “…. mas então você acha que isto é a Santa Casa da Misericórdia? Vá mas é pedir pó $#&%”&!!!...”; noutra resposta lê‑se: “…volto a repetir que esse gajo não nunca morou aqui!”, e noutra ainda: “Pela ultima vez, eu já disse que o homem não existe…” Júlio Cara d’Anjo, editor da Portugaleaks.pt, está agora a ser acusado de masturbação mental, assédio transsexual e encornação ilegal por uma “ex-one night stand” feia à brava, que afirma ter provas de que, para além de ter sido violada e traída pelo mesmo com sua melhor amiga (tão feia ou mais do que ela), tem também provas de que a última
notícia sobre a inexistência do Pai Natal é uma mentira criada para o ilibar desta polémica acusação, uma vez que se o Pai Natal não existisse ele nunca teria ido para a cama com elas. A sua advogada espera poder preparar a sua defesa em Inglaterra, temendo que, caso o julgamento seja transferido para Portugal, ele acabe mas é a apanhar uma boleia involuntária num daqueles aviões da CIA que só o nosso governo parece não saber que por cá passaram. Responsáveis pela Portugaleaks.pt garantem que a sua detenção não afectará o funcionamento do site, e que o trabalho continuará desde que continue a haver vizinhas cuscas com disposição para ler correspondência alheia.
PLÁTANO BAR Tocha
Acrescentam ainda que até preferem que Júlio Cara d’Anjo continue preso. “Patrão fora dia santo na loja”.
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AMPT
Associação de Moradores da Praia da Tocha Rua dos Pescadores, da Nª Sra. da Tocha | Tel.: 231 44 34 51 Horário de funcionamento: 9:30 - 13:00 e 14:00 - 00:30
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