O caminho possível: narrativas da educação superior

Page 1

JÉSSICA LIMA

O caminho

possível

NARRATIVAS DA EDUCAÇÃO SUPERIOR

1



FICHA TÉCNICA O CAMINHO POSSÍVEL: NARRATIVAS DA EDUCAÇÃO SUPERIOR Autora: Jéssica Lima Orientação: Prof. Dr. Felipe Quintino Ilustração: Luma Marconi Projeto gráfico: Jéssica Lima

Fundação Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS) JORNALISMO - TRABALHO DE CONCLUSÃO DE CURSO Copyright © 2020 Jéssica Lima - Todos os direitos reservados.


DEDICATÓRIA

Dedico este livro a minha mãe, que reuniu todos os seus esforços ao longo da vida para que eu tivesse os passos mais fortes para alcançar as melhores oportunidades de ensino. Ao meu pai, que se auto materializa em apoio incondicional para que eu nunca perca a habilidade de sonhar os sonhos mais amplos e brilhantes. Aos meus irmãos, a quem desejo com todo o meu coração que sejam e alcancem o que quiserem ser e estejam onde sonham em estar. Todos os meus caminhos são possíveis porque os tenho.



AGRADECIMENTOS

Agradeço por todas as pessoas que me permitem sonhar e me incentivaram a escrever este livroreportagem. Família, amigos e professores - em cada linha há um pedaço de mim assim como também há um fragmento de todos vocês. A Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), essencialmente na figura do curso de Jornalismo, agradeço por ter sido o meu melhor caminho possível nos últimos anos. Também ofereço o meu maior ato de gratidão aos quatro personagens aqui apresentados, que por meio de suas narrativas ofereceram o material mais valioso para todo jornalista: histórias reais que valem a pena de serem contadas. Por fim, agradeço a Deus, meu bom criador que me apresenta o que é esperança e que faz morar em mim todos os sonhos do mundo.


Matar o sonho é matarmonos. É mutilar a nossa alma. O sonho é o que temos de realmente nosso, de impenetravelmente e inexpugnavelmente nosso. Fernando Pessoa



SUMÁRIO

11

28

54

Thayná

Jairo

76

98 120

Gisele

Walkíria

Abismos

Posfácio


no milímetro que nos separa cabem todos os

abis - mos.

10


INTRODUÇÃO A história da educação superior brasileira é entrelaçada por decisões, mudanças e reconstruções que, se unidas, ultrapassam o espaço dimensionado para este livro-reportagem. As narrativas que constroem as linhas de pensamento acerca do acesso, qualidade e permanência nas instituições têm sido levantadas nas últimas décadas por pesquisadores em educação, professores e pelas próprias políticas públicas nacionais. Compreender o papel da educação superior e a função social desempenhada diretamente por ela, assim como vislumbrar seus entraves, e problemáticas públicas, estão entre as iniciativas que permeiam as discussões. Podemos pensar a história da educação superior brasileira remontando aos tempos da coroa, quando os primeiros indícios da formação de um raciocínio intelectual de forma sistematizada começavam a se originar entre as regiões do país.

Citação de Carlos Drummond de Andrade

Acontece que tal conhecimento se manifestava de forma muito distante para a maioria, pobre e com baixos índices de escolaridade. A verdade é que, apesar de consideravelmente recente em sua organização, mais parecida com a forma em que a compreendemos hoje, a educação superior brasileira percorre um longo caminho assumindo a posição de uma das mais importantes instituições do país. Aqui, neste livro-reportagem, iremos explorar uma de suas faces, a do impacto singular nas vidas dos alunos que a frequentam. Mudados e transformados pelas narrativas que ali foram construídas. 11


Introdução

Um caminho, tantas direções

O consenso geral assumido pelos pesquisadores é o de que, essencialmente em sua origem, estudar em universidades era para poucos. No país multifacetado e preenchido por pluralidade de vozes, culturas e carregado por rostos de diferentes etnias, a educação superior brasileira era para o extrato mais rico e essencialmente branco. A educação superior era construída de modo que seu enfoque era a formação de profissionais para o mercado de trabalho e que consequentemente posicionavam-se nos melhores postos de emprego, voltados para uma minoria. Assim, é formado o “perfil elitista”, termo conhecido entre os estudiosos da educação superior. Caminhos estreitos eram trilhados pelos solos do país exuberante em extensões e riquezas naturais mas essencialmente escasso em lugar para os sonhos dos mais pobres, moradores do interior e outros tantos.

A educação como direito aparece nos mais diversos e importantes documentos que integram a legislação brasileira como o Plano Nacional de Educação (PNE), Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e na própria Constituição Brasileira de 1988, a chamada “constituição cidadã”. Mais do que o acesso às instituições de ensino é assegurado como dever do Estado fornecer os aparatos necessários que garantam a todos, sem distinções, uma educação de qualidade e instrumentos que sejam capazes de considerar as desigualdades manifestadas e propor caminhos que permitam que os afetados possam assumir os mesmos espaços educacionais. As vulnerabilidades se expressam em múltiplas formas. Na pobreza que leva em muitos casos, a desigualdade e exclusão sociais. A deficiência, que imobiliza, trava acessos e desperta olhares que minimizam e questionam. A raça, que separa, marginaliza e entrava maiores possibilidades. Escolhas são minadas. Caminhos prolongados. A simples opção de escolha aparece como luxo. A potência da desigualdade e 12


O caminho possível

do discurso de invisibilidade parece soar mais alto do que as próprias garantias descritas em leis, no que é chamado de direito fundamental. Aqui, serão contadas histórias de sujeitos que em vários momentos de suas vivências se depararam com o largo espaço traçado pela desigualdade. Entretanto, o enfoque maior será dado a partir de suas próprias narrativas e, sobretudo, considerando a perspectiva de seus olhares. Como os alunos percebem as mudanças manifestadas nas estruturas da educação superior? Os espaços criados, adaptados e os sonhos abertos. O olhar quantitativo que analisa as mudanças do perfil do aluno é essencial para entendermos para quais caminhos o país se dirige no que tange ao universo do ensino superior. No entanto, aqui não serão os números a maior fonte de análise. As histórias e o impacto singular nos quatro personagens escolhidos serão a maior matéria prima para o conhecimento. Antes disso, cabe entendermos marcos importantes da trajetória da educação superior no país. Afinal, as mudanças ocorridas nas instâncias políticas e institucionais abriram em grande parte os lugares possíveis para o que depois seriam os responsáveis pela entrada dos quatro perfis que serão apresentados. As histórias contadas podem começar a ser compreendidas a partir dos números. Por isso, faz sentido termos acesso a algumas estatísticas. Sim, pessoas são advindas de realidades diferentes, com especificidades que dificilmente serão contempladas com a certeza de graus absolutos. Todavia, cabe às pesquisas o papel de fornecer representações da sociedade que é, em grande medida, responsável por orientar decisões políticas, mudanças estruturais e medidas que forneçam soluções ou amenizem as discrepâncias observadas. Trazendo para a temática aqui apresentada, quando nos deparamos, por exemplo, com dados que sistematizam o perfil dos alunos que adentram as universidades e faculdades, públicas ou particulares, nos últimos anos, temos acesso a um retrato mais amplo acerca do que já fora superado e diversificado, mas também das lacunas que ainda persistem. Projetando uma espécie de “linha do tempo” da educação superior brasileira é possível elencarmos algumas medidas que assumiram um papel mais significativo na mudança da estruturação desse nível de ensino. Ainda no período militar, aparecem os primeiros indícios de uma chamada “Reforma Universitária”. Décadas depois, começam a surgir movimentos que direcionam a educação superior pública para novos perfis. Um exemplo é o Programa de Apoio a Planos de Reestruturação 13


Introdução

e Expansão das Universidades Federais (Reuni), aprovado em 2007, no governo de Luíz Inácio Lula da Silva, responsável pelo aumento significativo de vagas nas instituições federais de ensino. Ou ainda, o Fundo de Financiamento Estudantil (Fies), surgido ainda no mandato de Fernando Henrique Cardoso, encarregado a partir de 1999 pelo financiamento de parte ou da totalidade de mensalidades em instituições particulares e, sem esquecer, do Programa Universidade para Todos (Prouni), implantado em 2003, que passou a fornecer incentivos para as faculdades que aderiram ao sistema de bolsas para alunos de baixa renda provenientes de escolas públicas ou bolsistas em redes particulares. Extensos em impactos, medidas e nas mudanças providenciadas, tais programas aparecem como exemplos de iniciativas sistematizadas que alteraram o chamado perfil das universidades e faculdades brasileiras. É possível verificar a permanência de inúmeras contradições que formam a realidade nacional e, pensando na origem dos personagens deste livro-reportagem, na realidade local do estado de Mato Grosso do Sul. Abrir espaço para os questionamentos acerca das problemáticas existentes não significa resistir ou deslegitimar os avanços já verificados. Mas, sim, perceber que é necessário manter um olhar atento para os desníveis que se solidificam como entraves para o avanço da democratização da educação superior. Um exemplo é a educação básica, que contempla os anos do ensino fundamental e médio. O segundo, requisito obrigatório para a tentativa de entrada no nível superior de ensino. Nesse contexto podemos direcionar os olhares ao fato de que já em 2019, de acordo com os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), 75% dos jovens entre 18 e 24 anos estavam atrasados ou haviam abandonado os estudos. Segundo a pesquisa, 21% não haviam concluído o ensino fundamental. Outros 27% não concluíram o ensino médio. Estamos falando de milhões, que ainda que quisessem, não poderiam ao menos concorrer a uma vaga na educação superior brasileira. Existe uma relação íntima entre a educação e a desigualdade que, diante de olhares mais rápidos, pode nem ao mesmo ser percebida. A maior parte desse contingente de jovens que não conclui a etapa básica da educação integra as camadas sociais com rendas familiares mais baixas. Um aspecto fundamental verificado pelos estudiosos da temática é o nível de escolaridade dos pais, que em grande parte afeta a extensão da educação à qual seus filhos terão acesso. É o ciclo intergeracional da pobreza, segundo Miguel Arroyo, sociólogo e educador espanhol. 14


O caminho possível

As melhores oportunidades continuam a ser restringidas, assim como espaços são ceifados e oportunidades minimizadas. Romper com esse processo não é uma ação que resida apenas no esforço individual. Não depende apenas do pobre fazer valer caminhos de maiores possibilidades. É papel do Estado e da própria sociedade repensar os empecilhos que tornam quaisquer caminhos mais esburacados e insalubres para uns do que para outros. Aqui, diante do apresentado, percebemos a relação íntima entre todos os níveis de ensino. A educação persiste sendo uma das ferramentas mais eficazes para pensarmos em mobilidade e inclusão sociais. Isto é, o mecanismo capaz de fornecer aos indivíduos instrumentos que permitem o embate com condições de renda, exclusão e invisibilidade sociais. A educação envolve conceitos de liberdade e emancipação. Escolas de ricos e escolas de pobres continuarão a existir. Entretanto, ambas possuem o dever de assegurar as mesmas possibilidades de entrada em níveis posteriores de ensino. Adentrar faculdades e universidades não é privilégio. É um direito de todos. Quer seja para alunos de zonas urbanas, quer seja para os dos espaços rurais. Para pobres e para ricos. Brancos, indígenas e pretos. Reduções e generalizações prejudicam não somente os próprios sujeitos excluídos, mas afeta de modo direto a sociedade como um todo. A exclusão não deve ser naturalizada. De acordo com estudo realizado em 2016 pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), para cada 1% de jovens entre 15 e 17 anos nas escolas se observa uma redução de 2% no número de assassinatos nos municípios brasileiros. Segundo pesquisa divulgada em 2020 pelo grupo Roberto Marinho em parceria com o instituto de pesquisas Insper, para cada ponto percentual reduzido nos índices de evasão escolar, isto é, de alunos que abandonam as escolas, é reduzido 550 homicídios por ano. Para a mesma pesquisa, cada jovem que não conclui o ensino básico expressa um custo avaliado em R$372 mil. Podemos ainda pensar nos empregos não gerados, nas respostas que a própria sociedade deixa de receber. Para cada passo da desigualdade, todo um país retrocede a passos largos.

15


Introdução

É no sentido de considerar as diferenças existentes, as desigualdades perpetuadas e os desníveis até então silenciados que a educação superior brasileira começou a projetar de forma mais sistematizada as chamadas ações afirmativas. Um passo significativo rumo às mudanças nas trajetórias observadas.

O olhar desigual que acelera a igualdade

Parece contraditória a adoção de mecanismos que aparentemente tratam com perspectivas de diferença. Afinal, qualquer diferenciação pode parecer injusta. Para alguns é lida como privilégio. Estão “roubando” as vagas de quem estuda, ouve-se dizer. Sem saberem que antes de qualquer política de cotas, as vagas foram anteriormente expandidas. Ou seja, não há roubo algum. Para outros, os esforços somados à “vontade de vencer na vida” já são ingredientes suficientes. Quem quer dá um jeito. Certo? Errado, ou no mínimo, equivocado. Exceções não podem ser tidas como exemplos aplicados para maiorias. Aspectos como infância em ambientes vulnerabilizados e em muitos casos de violência, deficiências que nos primeiros anos escolares não foram assistidas por professores especializados, a cor da pele que segrega, exclui e afasta de melhores oportunidades constituem barreiras demasiadamente densas e espessas para serem superadas apenas pelo “mérito”, esforço ou atitudes positivas de um único indivíduo. É um peso injusto.

As ações afirmativas, a exemplo dos programas de financiamento estudantil anteriormente citados, são estruturadas visando à materialização dos direitos assegurados constitucionalmente. São políticas públicas voltadas a neutralizar os impactos acima elencados, a con16


O caminho possível

siderar as distâncias simbólicas. As ações afirmativas caracterizam-se pelo intuito de atenuar os estragos feitos por tais desequilíbrios. Não estão isentas de aprimoramentos. Não precisam fugir dos espaços que as questionam. Mas podem ser caracterizadas como mecanismo essencial para nos aproximarmos de uma educação superior brasileira mais aberta aos diálogos que primam pela equidade, conceito capaz de compreender que para sujeitos tratados por estruturas desiguais faz-se necessário oferecer aparatos diferentes. No Plano Nacional de Educação (PNE), ficou estabelecido como objetivo “otimizar a capacidade instalada da estrutura física e de recursos humanos das instituições públicas de educação superior, mediante ações planejadas e coordenadas, de forma a ampliar e interiorizar o acesso à graduação”. Parte deste processo se dá pela manutenção do sistema de cotas, que se tornou obrigatório nas instituições públicas do país a partir de 2012. A adaptação completa se deu já em 2016. Antes disso, o sistema de cotas era optativo, as universidades decidiam se a adesão iria integrar as formas de ingresso dos graduandos. Historicamente, podemos observar o aparecimento pioneiro das ações afirmativas para negros no Brasil em 2002. Instituições como a Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), a Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS) e a Universidade de Brasília (UNB) estão entre as que integraram o sistema de cotas antes do período de 2012. Oito anos após a obrigatoriedade e sistematização da política de cotas nas universidades brasileiras, podemos contemplar por meio dos dados fornecidos ou até mesmo a partir de um simples olhar entre as salas das instituições, a mudança do perfil dos acadêmicos que ultrapassam os muros que, antes, pareciam ainda mais altos e distantes. As salas que antes eram formadas majoritariamente por alunos brancos, de classes mais privilegiadas e egressas de escolas particulares, começam a ser formadas por alunos de baixa renda, em grande parte negros, e que, ao fim das aulas, correm apressados para os pontos a espera do transporte coletivo. A Pesquisa Nacional de Perfil Socioeconômico e Cultural dos Graduandos das IFES (2018) elenca que, no ano de divulgação dos resultados, 41,9% dos graduandos brasileiros eram cotistas. Entre eles estão as maiores porcentagens de alunos que nunca pensaram em trocar de curso. Ou ainda os alunos que mais frequentam as bibliotecas das instituições em que estudam. Grande parte passou a ler mais obras lite17


Introdução

rárias após entrar nas universidades. Além dos 26,6% que vivem em famílias com renda per capta de até meio salário mínimo. No Centro-Oeste, 37,3% do ingresso foi feito por cotas em 2018. Esses são apenas alguns exemplos dos impactos verificados. Para pensarmos a respeito da realidade em que se encontram as universidades públicas brasileiras, as estatísticas podem ser prolongadas. Segundo o Anuário Brasileiro de Educação Básica (2019), três em cada dez brancos chegam às universidades, enquanto que 1,5 brasileiro de cor preta a cada dez alcança o nível superior. Dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) mostram que na população negra, entre 18 e 24 anos, 1,1% não tem nenhum nível de escolaridade, 70,7% estão fora da escola e apenas 1,4% tem o ensino superior completo. Indo mais além, enquanto que que 68,6% dos brancos ocupam cargos de gerencia no mercado de trabalho, apenas 29,9% são ocupados por negros. Mais uma vez é preciso reiterar. Não estamos apenas analisando dados. Números extensos que evidenciam a desigualdade que já se é esperada. São pessoas, jovens que no compasso em que crescem, enxergam as melhores oportunidades assumir distâncias maiores do que seus passos são capazes de alcançar. Até quais etapas escolares e acesso às vagas de emprego as mesmas crianças integrarão porcentagens dessa natureza? Quanto aos filhos e netos dessas mesmas crianças, poderão repetir os mesmos índices observados nas gerações que os antecederam? A educação sozinha não é a única ferramenta capaz de romper com o ciclo da pobreza e da desigualdade social. Sozinha, não resolve as discrepâncias manifestadas no mercado de trabalho. Mas é o elemento primordial capaz de multiplicar essas oportunidades. Aqui, será colocada como o caminho possível. As vagas reservadas pelas cotas, que se dividem em grupos e categorias a serem definidas no momento de cadastro no Sistema de Seleção Unificado (SISU), se dividem em características como raça, renda, perfil de escolaridade e para alunos com deficiência. Para o último grupo, o sistema de cotas se une a outras medidas como a Lei Brasileira de Inclusão (2015), a Lei de Acessibilidade (2000) e outras medidas que, com o passar dos anos, são alteradas por decretos que visam modificar os direitos assegurados às pessoas com deficiência em consonância com as adaptações necessárias nas mais variadas esferas da sociedade, que envolvem desde os primeiros anos escolares até a inserção no mer18


O caminho possível

cado de trabalho. Uma cidadania plena só pode ser oferecida a partir de um lugar onde são consideradas necessidades específicas que demandam intervenções particulares. Aqui é válido considerarmos o Censo da Educação Superior de 2019, ao constatar que 48.520 alunos com algum tipo de deficiência se matricularam em cursos de graduação, correspondendo a 0,56% do total de alunos. Em 2009, o número era 20.530. Quando pensamos em níveis posteriores de ensino, como a pós-graduação, que envolvem atividades como especializações, mestrados e doutorados, o debate acerca da política de cotas ainda se faz pertinente. Mais do que isso, envolve uma política pública capaz de oferecer incentivos que permitam que camadas mais populares acessem tais níveis de formação acadêmica. Quando ouvimos acerca dos efeitos de cortes de bolsas para alunos de pós-graduação, são esses os primeiros a serem afetados. Além disso, pesquisas são comprometidas. Assim, mais uma vez, toda uma sociedade é afetada. Na Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS), no campus da capital, de 2019 a 2020 foram selecionados 58 alunos cotistas para a pós-graduação, entre pretos, pardos, indígenas e pessoas com deficiência. Para Gregório Durlo, doutor em educação e em políticas públicas, a ampliação de vagas e de acesso das populações de uma região leva a longo prazo à qualificação dos próprios arranjos locais. Nesse sentido, os arranjos econômicos como um todo são diversificados. A formação de profissionais qualificados e de pesquisas acadêmicas solidificadas leva ao incremento da qualidade de vida da própria população. Não estamos falando de vantagens meramente individuais. Com espaços mais qualificados em educação, o coletivo como um todo é alcançado. Ademais, segundo o especialista, quando um membro da família entra em contato com discussões mais profundas que relacionam temáticas culturais e sociais, a tendência é que outros familiares tenham despertos os seus interesses acerca de temáticas ligadas ao consumo de outros tipos de conhecimento. Nas comunidades quando um dos seus possuem acesso a lugares antes inalcançáveis, é aberto o espaço para a ampliação de possibilidades e dos próprios sonhos que ali estão. “A universidade é um lugar de formação, capacitação e de vivência cultural”, completa. Reconhecer as particularidades do público que nos últimos anos adentra as instâncias das universidades caracteriza outro desafio. Perceber as caracterizações das diferentes vivências culturais, traços das rotinas desses estudantes, assim 19


Introdução

como dificultadores que não podem ser negligenciados. Gregório Durlo caracteriza o que chama de “cultura do reconhecimento” e afirma que tais aspectos não podem ser deixados para o “lado de fora” das universidades. A ação afirmativa não é finalizada na inclusão do aluno. Essa é a primeira etapa. O olhar diferenciado e atento às necessidades de tais públicos envolve novas didáticas de ensino, a integração em grupos que unem alunos semelhantes, como grupos que discutem pautas relacionadas às vivências raciais. É perceber que nem todos os alunos do curso de medicina terão os livros em casa, dos pais que já são médicos. Entender que nem todos acadêmicos possuem notebook e uma boa rede de Internet. Para o poeta Vinícius de Moraes, a maior solidão é a do homem encerrado em si mesmo, no absoluto de si mesmo. Talvez, as particularidades acima citadas não se insiram na realidade particular de quem as lê. No entanto, que vazio solitário é o daquele que prima por viver envolto apenas pelas suas próprias particularidades. Atento apenas àquilo que lhe afeta em termos diretos. Incapaz de solver injustiças. Com todos os sentidos embaçados pela escolha da ignorância em detrimento dos sentidos que reconhecem e acolhem. Podemos escolher viver menos sozinhos. A margem para a desigualdade abre espaço para o rompimento com os nossos próprios direitos. Expandiram-se as vagas. Alargaram- se as salas. Os discursos de enfrentamento da própria sociedade também podem partir rumo às ampliações.

O lugar para os sonhos

20

Um outro modo de contribuição para a entrada de jovens pobres e em sua maioria negra são os chamados cursinhos comunitários. Iniciativas que reúnem professores, que podem ser voluntários ou auxiliados por contribuições de colaboradores das instituições, e oferecem aulas preparatórias para a realização de vestibulares e, em grande parte, do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM). Com uma rápida pesquisa, podemos perceber iniciativas de cursinhos gratuitos nas duas universidades federais


O caminho possível

do estado. A entrada, sempre concorrida, garante ao aluno um direcionamento específico para as principais temáticas e intensificam a esperança daqueles que almejam o ingresso nos cursos de graduação. Fundado em 2003, o preparatório para vestibulares intitulado Instituto Luther King é a representação física do impulsionar de sonhos. As paredes e corredores situadas na região central da capital de Mato Grosso do Sul presenciaram, nos últimos anos, conhecimentos que ultrapassam os aspectos normativos colocados como classificatórios para a entrada em instituições de ensino superior. Já que passaram a entender, sobretudo, de gente. E de gente que sonha. Sonha ainda que não tenha sido ensinada a sonhar. Entre suas principais finalidades, presentes no estatuto documentado, está o oferecimento de “ações afirmativas ou medidas especiais compensatórias destinadas a pessoas reconhecidamente carentes e/ou pertencentes às minorias sociais”. Em suma, são apresentadas aulas com professores voluntários, que integram o curso que objetiva providenciar a entrada dos alunos no ensino superior, além de outros cursos como informática. As aulas acontecem no período noturno e ali são recebidos alunos, em sua maioria, jovens ou adolescentes, de variadas regiões da cidade. Ainda na página virtual da instituição, encontra-se a citação assinada por Aleixo Paraguassú, fundador da iniciativa, que define o Instituto Luther King como “uma entidade educacional que ministra curso pré-vestibular e de informática ao mesmo tempo que contribui para o aperfeiçoamento do conjunto de conhecimento das pessoas, preparando-as para a vida, porque sempre abordamos questões chamadas transversais ao currículo normal de cursos dessa natureza. Ou seja, aqui ensinamos valores universalmente aceitos, tais como a importância da democracia, respeito à diversidade e às diferenças, ética etc”. A citação se mostra verdadeira assim que se pergunta o impacto representado pelo Instituto na vida de qualquer aluno que já passou por ali. As respostas, sempre saudosistas, transparecem gratidão e o encantamento diante do espaço que é formado por pessoas que verdadeiramente se importam. Manter o Instituto em pleno funcionamento não é tarefa fácil. Vez ou outra, encontram-se publicações, sempre compartilhadas por 21


Introdução

um grande número de alunos e ex-alunos, que são necessárias doações. O lugar que ajudou em transpor sonhos da esfera do imaginário para o espaço do real não sai imune à realidade onde os números no final do mês não fecham e as despesas causam preocupações. O “cursinho”, como é chamado por muitos, carrega a profunda responsabilidade de ensinar e, mais do que isso, de fazer acender a luz da esperança dos que ali estão. Neste livro-reportagem, dois dos personagens apresentados estudaram pelas salas do Instituto. O Iugar que carrega no nome a personalidade histórica mundialmente conhecida pelas palavras “Eu tenho um sonho”, torna-se um dos personagens centrais deste livro. Entre as iniciativas que oferecem o preparatório de maneira gratuita, é a que mais se destaca entre as representantes regionais. Nesse mesmo discurso, datado de agosto de 1963, Luther King diz: “Não podemos caminhar sozinhos. À medida que caminhamos, devemos assumir o compromisso de marcharmos em frente. Não podemos retroceder”, e ali, se viu aplaudido pelos milhares que ouviam atentamente o seu grito pela igualdade racial. Em terras sul-mato-grossenses, distantes do solo original dessas palavras, enxerga-se, nos corredores do lugar de ensino e de sonhos, alunos que em passos nem sempre largos rumam a um estado por maior igualdade de direitos. E, para isso, estudam.

Olhares para a permanência

22

A partir das políticas públicas desenvolvidas nos últimos anos, a ampliação do acesso às instituições de ensino superior atingiu avanços consideráveis e significativos. Atualmente, é delineado outro desafio. O de garantir que esses alunos, que antes permaneciam distantes da entrada nas universidades, permaneçam matriculados até o final do curso. Grande parte das graduações, principalmente em instituições públicas, não são oferecidas em modalidade noturna, além da existência de cursos com grade integral, que contam com aulas em ambos períodos e com isso, impedem a possibilidade de que os estudantes trabalhem e estudem. Para aqueles que conseguem trabalhar, estão mais sujeitos


O caminho possível

ao mau aproveitamento do curso e mais suscetíveis a trancamentos ou desistências, em decorrência da exaustão vivenciadas pelas jornadas de trabalho e estudo intensos. O Decreto N°7.234, em 2010, definiu o Programa Nacional de Assistência Estudantil (PNAES) com o objetivo de ampliar as condições de permanência de alunos na educação superior pública. Entre os exemplos de ações de assistência estudantil, podem ser citados o restaurante universitário, auxílio alimentação, auxílio permanência, passe estudantil e atendimento psicoeducacional. De acordo com o Relatório de Gestão da UFMS, em 2019 foram oferecidas 1584 bolsas de auxílio permanência. Em 2009, uma década mais cedo, o número para o mesmo tipo de auxílio foi de 879 bolsas. Cada auxílio é oferecido após a comprovação de uma série de critérios por parte do estudante, e cancelado em casos de desempenho acadêmico insuficiente, abandono do curso ou trancamento da matrícula. Existem ainda outras modalidades de auxílios acadêmicos, como os oferecidos aos alunos envolvidos com atividades de pesquisa, as chamadas Iniciações Científicas, ou para participantes de projetos de pesquisa e de extensão. Nesses casos, os alunos em conjunto com professores orientadores desempenham um sistema de estudos, análises e de produções científicas, a bolsa é recebida após a comprovação das atividades desenvolvidas e do período semanal disponibilizado. De acordo com a Pesquisa Nacional de Perfil Socioeconômico e Cultural dos Graduandos das IFES (2018), entre os alunos que precisam trabalhar em ocupações externas ao ambiente universitário, 54,3% já pensaram em abandonar o curso. Entre o número total de trancamento de matrículas, o trabalho foi o principal fator motivador de cerca de 37% dos alunos entrevistados. No decreto que formaliza a política de assistência, é expresso que “as ações de assistência estudantil devem considerar a necessidade de viabilizar a igualdade de oportunidades, contribuir para a melhoria do desempenho acadêmico e agir, preventivamente, nas situações de retenção e evasão decorrentes da insuficiência de condições financeiras”. Segundo dados fornecidos pela Pró-Reitoria de Assuntos Estudantis, 4408 alunos da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS) estavam recebendo algum tipo de auxílio. O número de bolsistas em projetos de extensão na UFMS passou de 510 no ano de 2018 para 319 bolsistas em 2019. Na Universidade Federal da Grande Doura23


Introdução

dos (UFGD), 718 alunos eram beneficiários da bolsa para permanência, de acordo com o artigo científico intitulado “Programa Bolsa Permanência da UFGD: O Perfil Socioeconômico dos Alunos”. Mais uma vez são apresentados números que atuam na compreensão acerca da composição da realidade observada em duas das principais Universidades do estado. A permanência de um acadêmico deve ser pensada em termos de moradia, transporte, alimentação, cultura, inclusão digital e apoio pedagógico. Alguns dos elementos centrais para que possamos discutir uma dinâmica eficiente de inserção de alunos vulneráveis no nível da educação superior. Para Ana Carolina Pontes, especialista nas temáticas de educação, pobreza e desigualdades sociais, um discurso desatento às medidas de permanência corrobora para a “venda” de um sonho que é interrompido. Garantir o acesso não é sinônimo do fim da intervenção de políticas públicas. É preciso permanecer, sobretudo, com qualidade. “Como comparar alguém que nasceu tendo estimulação precoce desde o berço, a vida inteira pôde estudar nas melhores escolas, se dedicando exclusivamente para estudar e se preparar para o SISU e outros processos de avaliações e seleções, com uma pessoa que trabalha manhã, tarde e noite e por mais que se esforce tem o horário do almoço e da janta para estudar. Que tipo de mérito é esse? Como você não considera essas diferença? Assim não está se avaliando o mérito de ninguém. Quando falamos em políticas específicas, elas consideram essas especificidades, justamente as histórias de vida diferentes”, define a coordenadora do Grupo de Estudos e Pesquisas em Políticas de Educação Superior Mariluce Bittar. “Se eu tenho altas expectativas que ele vá aprender, que ele vai ter um futuro prolongado em relação aos estudos, eu tendo a me organizar enquanto professora para que ele atinja esses objetivos. Eu acredito que nutrir altas expectativas em relação ao que os alunos podem aprender a ser, é um grande incentivador de fato para onde eles podem chegar”, é o que acrescenta a professora que coordenou a especialização em educação e pobreza, destinada a professores das redes públicas do interior de Mato Grosso do Sul. “A dimensão do reconhecimento pressupõe essas ‘micromudanças’. Reconhecer na entrada mas modificar as estruturas da universidade também. Pesquisa, ensino e extensão. Para que elas passem a olhar e a tratar essas novas demandas. 24


O caminho possível

Esse novo público traz dimensões raciais, de gênero e renda. Há um conjunto muito amplo de coisas que não existiam na universidade como provocador. Agora existe. Isso é um desafio de séculos. O que temos de diferente é o público, agora o modo de fazer é uma construção”, completa Gregório Durlo. A realização de mudanças não é simples, sobretudo, porque envolve uma rede de mudanças que afeta não apenas as instâncias das políticas públicas, representadas pelos governantes, mas se relaciona com reitores, professores e alunos. A tendência diante de um público extenso é o de procurar generalizações e medidas que se apliquem a todos. Quando falamos de assistência ao permanecimento destes alunos somos cada vez mais convidados a pensar em termos individuais. A tarefa se torna mais árdua e necessariamente mais atenta. Métodos de ensino passam a ser repensados. A estrutura física da universidade é colocada sobre o prisma da inclusão e da acessibilidade. Começamos a construir diálogos que não terminam na inserção no mercado de trabalho, mas começam na construção de sujeitos mais críticos e atentos às suas próprias condições para ser e estar no mundo. A própria Universidade providencia os instrumentos que, em certo momento, podem servir como insumos para questioná-la. Mas é justamente esse o seu papel.

Para onde estamos indo?

“A universidade é um lugar, talvez o único lugar de confrontação crítica entre as gerações, um lugar de experiências múltiplas, afetivas, políticas, artísticas, por completo insubstituíveis; lugar de concorrência entre saberes, de seu colocar-se em questão, e portanto, forma insubstituível de espírito crítico e cívico, de espírito cívico crítico, lugar que viria a desaparecer atrofiando toda reflexão geral, aquela capaz de ultrapassar os limites das especializações disciplinares e das competências economicamente funcionais”, este foi o trecho escolhido pelo presidente da Associação Nacional dos Dirigentes de Institui25


Introdução

ções de Ensino Superior (Andifes), João Carlos Salles, em discurso sobre a chamada “crise nas universidades”, em 2019. A citação trazida no discurso é advinda de um grupo de pesquisas francês que, aqui, nos auxilia na construção de um pensamento mais amplo acerca do papel da educação superior. O desafio atual das universidades brasileiras é fazer-se reconhecidas e compreendidas pela sociedade. Ou seja, fazer com que os saberes produzidos sejam primeiramente conhecidos pelo público que, apesar de estar do “lado de fora”, é em grande parte, o alvo principal das pesquisas desenvolvidas. Ensino, Pesquisa e Extensão são considerados os pilares principais das universidades públicas brasileiras, e o último, é definido justamente pelos projetos que possuem como finalidade principal o contato com o público externo. Para citar apenas alguns exemplos, estão entre as iniciativas projetos que oferecem atendimento gratuito ou com valores abaixo do mercado tradicional em tratamentos odontológicos, atendimentos obstétricos, atendimentos psicoterapêuticos, cuidados veterinários e uma lista extensa que envolve todas as áreas do conhecimento. Esses e projetos ligados à própria execução de pesquisas científicas existem a partir das verbas públicas destinadas às universidades. A Constituição, no artigo 207, prevê que “as universidades gozam de autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial, e obedecerão ao princípio de indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão”. Manifestações por um discurso público que valorize a esfera da educação superior são necessárias à medida em que é por meio de políticas públicas que em grande parte o cerne da educação superior brasileira prevalece. As universidades públicas são responsáveis por cerca de 95% do total de pesquisas científicas desenvolvidas no país, segundo dados publicados pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). Grande parte dos pesquisadores envoltos nos estudos científicos dependem de bolsas para conseguirem se dedicar integralmente. A redução de bolsas impacta diretamente na qualidade das pesquisas desenvolvidas assim como no número de graduandos que decidem ingressar na pós-graduação. Quaisquer discursos que desvalorizem o conhecimento e a produção científica das universidades estão na contramão do próprio desenvolvimento social. É preciso, primeiramente, conhecer. Ir além das suposições acerca do que é produzido por dentro dos muros. A pesquisadora em educação superior Carina Maciel afirma que o acesso ao 26


O caminho possível

ambiente universitário assume dimensões que vão além da conquista do diploma e permite a construção do olhar crítico acerca do mundo. “O conhecimento como um elemento que possa ampliar a sua visão. Suas possibilidades de vida, que olhem o mundo de uma forma diferente, mais crítica. Mais participativa. O conhecimento possibilita que você olhe para a mesma condição sob diferentes perspectivas. Permite que se olhe através das aparências”. Aqui conheceremos as histórias de quatro personagens: Thayná, Jairo, Gisele e Walkíria. Narrativas de pessoas que tiveram suas condições de vida alteradas a partir do acesso ao cenário da educação superior. Em todas as nossas conversas, termos como “divisor de águas” apareceram nos relatos ora alegres e saudosistas, ora emocionados e agradecidos. Relatos diferentes unidos por um vínculo em comum - todos construíram narrativas a partir de um caminho possível. E assim vão se diluindo os abismos.

27


FOTO: AGECOM/UFMS

Thayná

28


caminho para sonhar seus próprios sonhos

1

“STF aprova sistema de cotas raciais nas universidades públicas do país - Decisão foi unânime no Supremo Tribunal Federal. 24 de abril de 2012”. Essa era a chamada da notícia divulgada em um dos mais populares portais de notícias em nível nacional. Dezoito são as palavras que podem passar de forma ligeira pelo um olhar mais despercebido. Duas linhas já falam tudo o que é preciso dizer, se olharmos para as regras do bom e velho jornalismo diário. Se enxergarmos mais de perto, veremos que nessa sentença cabem bem mais do que a oficialização de uma decisão jurídica, cabem sonhos. Muitos sonhos. Cabem um emaranhado de gente que por tanto tempo tentava escalar um caminho de direito sempre com uma parte faltando. A parte que garante o mínimo de recursos iguais e que diz muito também sobre quem somos como nação. Duas linhas que, quem diria, mudariam os rumos da educação superior brasileira. Assim, talvez você possa passar a prestar mais atenção nas linhas de chamada das notícias que vê por aí, elas podem dizer muito.

29


Thayná

Eu só quero ser eu

“Seja a sua própria referência” é o que diz o perfil em uma rede social de Thayná, estudante de Psicologia da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS). Estudante negra. Isso diz muito sobre ela. Revela a força de sua autenticidade e em um país marcado pelo racismo, ainda que com 56,10% da população autodeclarada negra de acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios do IBGE, divulgada em 2019. Nem sempre Thayná ocupou o espaço de referência para si mesma. Por muito tempo, referência era só o que estava distante. Em um lugar que parecia longínquo demais. Demasiadamente branco também. Difícil é encontrar referências em um país que até pouco tempo atrás delimitava lugares bem específicos para onde o negro deveria estar. Ser referência parece até atrevimento, querer demais, quando se vive escondido, condenado a ser menos, para que caiba no outro.

No mercado de trabalho, cabiam os empregos que pagam menos, e postos de menor exposição, preferencialmente. Nas artes, o papel coadjuvante, e no caso de algum protagonismo, deveriam se esforçar muito mais para estarem ali e um outro tanto para provar que mereciam. É arriscado colocar tais acontecimentos no passado. Quando para tantos, assume cara do mais latente presente. Na lista dos lugares feitos para os negros, o ensino superior não ocupava muito destaque, ficava restrito bem às últimas posições na lista dos sonhos que o negro se “atreve” a carregar. Goiânia, Goiás, de um lado. Campo Grande, Mato Grosso do Sul, do outro. Quase 840 quilômetros separavam entrevistadora e personagem naquele dia ensolarado, típico do agosto nas terras do cerrado. Em uma época em que estar perto tornou-se condição evitada ao máximo, devido ao estado de distanciamento decorrente da pandemia pelo novo coronavírus, esse foi o cenário da conversa entre a aspirante a jornalista e a menina dos cabelos azuis. O lugar da conversa? Uma estante improvisada que virou mesa do lado goiano, e uma lavanderia pelo lado campo-grandense. E no meio dessa distância, cabia a torcida pela 30


O caminho possível

colaboração da rede de internet, que aquela altura, tornou-se parte primordial para a conversa. Antes da primeira pergunta ser feita, lá estava ela, tópico de grande parte das conversas traçadas ao longo do ano, a dificuldade da vida em meio a mudança brusca da rotina e do que passou a ser possível em meio a uma pandemia. Thayná começa falando da dureza que é manter o ritmo de estudos na graduação, que agora, passa a ser feita à distância. Sem qualquer tipo de aviso ou tempo para preparação, a rotina virou do avesso. O estágio que estava sendo feito, ficou para depois. E naquele momento só pude concordar e fazer a expressão de quem sabe exatamente o que é se sentir do avesso. Era entrevistadora e um pouco de personagem também. Cabelos crespos curtos em um tom forte de azul, eram eles que apareceriam antes se não fosse pelo largo sorriso de Thayná. A simpatia aparece primeiro desde os primeiros segundos da vídeo chamada. Sorrindo também pede desculpas falando que não tinha se arrumado, ajeita o cabelo e dá uma endireitada nos piercings da orelha, com a mesma alegria brinca que pelo menos havia lavado os cabelos naquele dia. A virtualidade de certa forma deixa o diálogo com cara de conversa no meio da sala, depende do ponto de vista. Ela pausa a conversa para pedir que possa ir pegar os fones de ouvido, esquecidos em algum canto da casa que a tela do computador não me mostrava, e enquanto desliga a câmera do celular, surge na tela a foto de perfil que demonstra na paleta cromática um traço de sua personalidade. Na foto, os cabelos ainda estavam pretos e maiores, a blusa em uma amarelo de um tom vívido somado ao conjunto de argolas douradas. Ela volta com o fone, diz “pronto” e então, digo, pronta também, já soltando o pontapé inicial: Thayná, qual a sua história com a psicologia? Emprestando as palavras da jornalista e escritora Eliane Brum, digo que recordações são fragmentos de tempo. Talvez essa premissa explique o porquê da primeira pergunta já ter como enfoque o curso escolhido por Thayná. Lembrando o que a motivou a estar ali, entre as tantas milhares de cadeiras da universidade, se abre espaço para a memória mais vívida, aquela que significa o mundo e um mundo que diz só sobre a gente. Depois de ouvir a pergunta, ela volta ao espaço da época dos famosos três anos, o chamado ensino médio. “Quando eu estava no ensino médio eu queria alguma coisa na área da saúde e primeiro, como quase todo adolescente né, a maioria pelo menos, eu queria medicina. Só que depois eu fui vendo que eu não queria medicina 31


Thayná

e que eu gostava muito mas não era o que eu queria realmente. Depois eu pensei em algo como enfermagem ou algo tipo biomedicina. Eu a interrompo com um comentário sobre a relação já marcada com a área da saúde. Ela confirma o interesse genuíno pela área e começa a contar a saga pelo temido e inevitável vestibular. Não é difícil encontrar casos de jovens que primeiro colocam como objetivos os cursos considerados mais tradicionais, movidos pela estabilidade que de certa forma parece mais garantida ou, ainda, pela correspondência das expectativas vindas aos montes, sem discrição, pelos familiares. “É, eu sabia que era na área da saúde, e quando eu fui fazer o ENEM (Exame Nacional do Ensino Médio), a primeira vez né, porque eu fiz a prova desde o segundo ano, fiz para teste né, e depois eu fiz no terceiro ano, e aí fiz um ano depois também. Quando eu fiz no terceiro ano, como eu ainda tava muito focada em querer medicina, eu passei em outros cursos, por exemplo fisioterapia e química tecnológica na UFMS, e eu não quis entrar de jeito nenhum”. Poucas coisas conseguem parar ou desconvencer alguém que decide-se pela medicina. Descobrir que na realidade, se vê fazendo outra coisa, é uma delas. Thayná enxergava na medicina a possibilidade de agradar pessoas que, naquela altura da sua vida, poderiam oferecer a aprovação que tanto buscava. Queria provar que conseguiria, que poderia estar lá, na sala dos futuros médicos, de alunos que como ela, romperam o laço com o ensino médio e começam a colocar os pés no mundo profundo dos adultos. Jovens como ela, exceto, em sua maioria, pela diferença da cor. Thayná queria provar para o mundo, e no fundo, para ela também. “Na época, eu terminei o ensino médio com 16 ou 17 anos, terminei adiantada, e eu namorava um menino que era muito bem de vida daqui da cidade, o pai dele é um médico bem conhecido e a família todinha era de médicos, só o meu ex namorado que fazia engenharia e isso deu maior rolo dentro da família porque o menino não quis fazer medicina. E eu comecei a conviver muito com ele, só que eu tive um relacionamento bastante complicado porque a mãe dele era extremamente racista. Ela não gostava de mim e vivia mesmo que fazendo várias coisas para a gente terminar, inclusive a gente terminou por causa dela, porque mandou ele terminar comigo e falou que se ele não terminasse comigo, não ia deixar um real de herança pra ele se algum dia chegasse a casar comigo”.

32


O caminho possível

Ela termina a fala e de repente se junta à cena o som ao fundo dos latidos do cachorro de sua casa. Como que se para romper o silêncio diante da memória dolorida. O ensino médio por si só já é exaustivo, e ganha tons piores para quem vê na próxima etapa, o ensino superior, a chance quase única de mudar de vida. Thayná, aos poucos, começou a entender de onde vinha as raízes dos pensamentos que a levavam para o terreno da medicina e, a partir daí, começou a andar com os próprios pés rumo à jornada de “descobrir o que quer ser quando crescer”. Tal descoberta quase nunca é fácil, mas pode ser ainda mais penosa para quem se vê limitado diante do universo de possíveis escolhas. “Eu lembro até hoje de um dia que eu fui no shopping, acho que um final de semana antes de a gente terminar e ele estava reclamando pra mim porque eu não tinha passado em nenhuma faculdade ainda e tipo assim, eu já tinha passado mas fiquei tentando medicina por causa deles. E que se eu continuasse daquele jeito eu não ia ser nada, eu ia continuar pobre isso e aquilo, sabe? Aí eu peguei e falei pra ele ‘não, mas eu quero fazer faculdade. Eu quero muito entrar na Federal’. Aí a mãe dele olhou pra mim e falou bem assim, que Federal não era pra qualquer um”. Para marcar e deixar evidente a caracterização do diálogo virtual, a conexão cai e interrompe por alguns instantes o relato admirado de Thayná. Quando volta, nem preciso dizer nada, ela prossegue. “E aí...eu comecei a ver que medicina era uma coisa muito mais deles e influência deles pra mim. Eu queria fazer pra ser aceita pelas pessoas. Sendo que eu poderia fazer qualquer outra coisa, sabe?”. Ela diz ser bem ali. Bem neste ponto de sua história que decidiu escolher seus rumos profissionais seguindo nada além de seu próprio interesse. Entrou em contato com um primo morador do interior de São Paulo, um dos poucos da família que terminou o ensino superior, e que havia se formado psicólogo. Decidiu falar em voz alta e em claro som que estava pensando em fazer psicologia. O primo a apoiou, soltou logo um “Ah, por que você não faz?”. Nessa altura, o medo de entrar na graduação e não se identificar com o curso ainda pairava nos pensamentos da menina que havia acabado de decidir se comprometer com o que de fato queria. O vestibular que levou Thayná a entrar na universidade foi feito um ano após a finalização do ensino médio, cursado inteiramente em uma das principais escolas públicas da capital sul-mato-grossense. No 33


Thayná

terceiro ano, frequentava as aulas no período matutino e a tarde se dedicava às aulas do preparatório para vestibulares oferecidas no próprio local da escola. No ano seguinte, a necessidade do trabalho falou mais alto e passou a ser exigida pela família. Dessa forma, estudar já não era mais a única obrigação e parte integral do dia da estudante. Passou a trabalhar em um call center, a rotina era apertada e não deixava espaço para fôlego. Acordava mais cedo, às 7h para a empreitada dos estudos, três horas depois era hora de fechar os cadernos e tabelas periódicas porque o som do expediente do trabalho chamava. Entrava às 14h e saía às 20h. Fim de dia, era hora de voltar para casa, porque amanhã já será outro dia. Despertador toca, 7h. Mais uma vez.

A hora da lista

Thayná gosta mesmo é das palavras e tem apreço especial por aquelas escritas. Prova disso é o espaço ocupado como segunda opção pelo curso de Jornalismo, também na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS). No fim, foi a Psicologia que ganhou a “disputa”, passou na primeira opção escolhida. A primeira pessoa a receber a notícia foi a mãe, que nem pareceu acreditar, atônita diante da alegria pulsante de ver a filha aprovada em uma universidade pública. Ela havia conseguido, enfim. Mãe quer sempre o melhor para o filho, quer dar as chances que não teve e ainda mais. A entrada no ensino superior era esse mais que poderia levar Thayná a lugares inimagináveis, o lugar de escolha, para citar um.

A filha também piscou os olhos mais de uma vez diante da mensagem de selecionada para a vaga, a pupila provavelmente até se alargou junto com o sorriso que, agora, era natural estampar. “A primeira mulher que vai se formar em uma Federal na minha família vai ser eu. Que eu vou formar daqui há um ou dois anos. Depois, se Deus quiser, as minhas irmãs, que eu espero. Eu tenho uma irmã de 18 anos, uma de 15 e uma de 8”. Quando o mundo de Thayná se alargou ela logo quis que os de suas irmãs mais novas ganhasse novos contornos também. Pergunto como foi o dia da realização da matrícula, que deve ser feita de maneira presencial e que geralmente é o dia fatídico que deixa tudo mais “real” para o recém candidato a acadêmico. Pensando-se na UFMS, a universidade de Thayná, ao se chegar na Cidade Universitária, 34


O caminho possível

e que de fato é maior e mais populosa do que muitos municípios interioranos pelo país, é fácil se perder e sentir que ali, abre-se um universo grande demais, cheio de muros, unidades e secretarias. A imensidão do lugar somada à adrenalina e à ansiedade pela assinatura do tal papel parecem deixar as placas de instrução e corredores mais turvos para quem vê. No final, tem que torcer para esbarrar com uma alma simpática num dos corredores labirínticos. “Quando eu passei na universidade minha mãe tava trabalhando e não teve como ir comigo, eu pedi para o meu pai, mas teve um rolo e ele disse que estava muito atrasado, então meio que me levou só até o meio do caminho. E de tarde quem foi comigo foi um amigo que é meu amigo até hoje, chama-se Robson. Inclusive, na época a gente não tinha internet aqui e foi o Robson que arrumou todos os meus documentos”, ela conta sorrindo, lembrando do dia que a assinatura em um pedaço de papel tornou aquela cidade universitária o seu lugar. A sensação de ter de provar merecedora do espaço na universidade ainda é presente nos dias da futura psicóloga. No fim do dia, a impressão persistente é a de que deve trabalhar, estudar e se esforçar múltiplas vezes a mais para mostrar ao mundo que está em seu local por direito. Naquela vídeochamada do mês de agosto, pergunto se a sensação de ter que se mostrar merecedora já a tinha visitado outras vezes ao longo de sua vida. Ela não leva nem meio segundo para formular a afirmativa. “Nossa, demais. Várias vezes. Até dentro da minha família mesmo, minha mãe sempre me deu força pra estudar e meu pai também, mas o restante da família sempre foi aquela coisa assim que na verdade eu deveria ter arrumado um emprego. Tem muita gente que fala até hoje pra mim que eu não deveria nem estar na faculdade, eu deveria ter arrumado um emprego, entendeu?”. A necessidade de trabalhar enquanto se cursa uma graduação aparece em muitas moradas no país. Em Mato Grosso do Sul não é diferente. De acordo com pesquisa realizada pela Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes), a taxa de estudantes nessa condição que pensam em desistir do curso é de 54,3%. “Muita gente já falou coisas assim como se eu fosse preguiçosa, como se eu fosse vagabunda, como se eu não quisesse trabalhar, ou como se eu tivesse entrado na Federal que é integral para não ter que trabalhar. Então assim, sempre teve muito esse negócio de ‘Ah, mas você vai fazer faculdade? Não sei se você vai conseguir entrar na federal’ ou então, ‘ah mas você nunca vai conseguir ganhar dinheiro’ . 35


Thayná

‘Sempre tendo que provar que eu consigo fazer alguma coisa”, conclui. Diante disso, sobra pouco a se dizer. A família, principalmente representada pela figura dos pais, apoiava os sonhos de Thayná pelos estudos. Sabiam que era importante e a encorajava a persistir. Entretanto, a chamada pela necessidade de se trabalhar e ajudar nas despesas também existia. Thayná, preocupada em parecer ajudar de menos, ou pior, querer ajudar de menos, se esforçava para explicar a rotina do curso integral. Nos finais de semana, vê na oportunidade de oferecer ajuda extra na organização da casa, uma maneira de auxiliar em meio à rotina exaustiva da vida acadêmica. Grande parte dos cursos de graduação oferecidos pela Universidade se enquadra no regime integral, categoria que pouca gente entende. Funciona assim: alguns dias, aula o dia inteiro. Outros, só pela manhã. E ainda tem os que a aula é só à tarde. E a disposição muda de semestre para semestre, não dá para prever a organização da rotina para os seis meses seguintes. É assim nos quatro ou cinco anos que duram a graduação. Diante disso, além da dificuldade em conciliar os estudos com qualquer outra atividade extra, ainda que procure, vai ser difícil o aluno encontrar uma empresa que aceite efetuar a contratação nesses termos de incerteza. “Aos poucos, meu pai foi entendendo mais da minha situação. Foi quando ele começou a ir na hora do almoço às vezes na minha faculdade e ver que as vezes eu estava precisando de dinheiro pra almoçar, que às vezes eu estava com fome e que às vezes eu estava cansada”. Em dias de aula integral, o calor intenso de Campo Grande se soma às longas caminhadas pelo campus, entra em uma sala, aula acaba, cruza a universidade para ir almoçar, volta para mais uma aula. O sol vai embora, a noite chega, é hora de ir para o ponto de ônibus. Depois de duas horas, dependendo do trajeto feito pelo transporte coletivo, em casa se chega. Jantar rapidinho, relógio voa. Hora de dormir, despertador toca. É a chamada pra vida de universitário. A UFMS já deixa de ser labirinto e vira quase que uma segunda casa.

36


O caminho possível

Pelos trilhos da escola

“Sem a senhorita Morello, a gente tinha todo tipo de professor substituto imaginável. Tinha atores desempregados. A gente tinha dançarinos desempregados. E, às vezes, professores desempregados. A gente teve todo tipo de substituto que se pode imaginar, exceto um...um substituto negro”. Esse é um trecho da cena do seriado norte-americano Todo Mundo Odeia o Chris, ambientado na década de 80, mas inegavelmente atual no que se refere ao número escasso de professores negros no sistema de ensino escolar. Tão atual que foi a primeira referência citada por Thayná, quando relata o único professor negro que teve durante os primeiros anos escolares, professor de história. Thayná, que agora sonha em ser professora de universidade, nunca mais esqueceu. “Era maneiro ter outra pessoa negra no colégio que não carregasse uma vassoura”. É o que diz Chris, o personagem adolescente que sofre racismo e sobrevive na companhia de um único amigo, em uma escola formada apenas por professores e alunos brancos, na Nova York de 1985.

Voltando para terras sul-mato-grossenses, Thayná diz que foi entender melhor o peso de não ter professores negros quando começou a graduação acadêmica. A universidade é o espaço que abre as fronteiras do pensamento crítico e que, por meio das discussões teóricas construídas, permite ao aluno perceber as próprias amarras e desigualdades nas quais vive. É feito o contato com a explicação das origens das dores que tantas vezes se sente, mas que nem sempre se entende de onde vêm. Na universidade, Thayná possui apenas uma professora negra, e já diz com firmeza que será com ela que fará seu TCC (trabalho de conclusão de curso), oportunidade onde o aluno escolhe um professor para o orientá-lo durante a realização de pesquisas baseadas em um tema de seu próprio interesse. “Quando você não tem nenhum professor ou professora negra eu acho que afeta muito na representatividade de você achar que nunca vai estar em um lugar de 37


Thayná

patamar alto, tanto academicamente quanto de emprego”. Ela faz uma pausa como quem pensa na sua própria experiência, que ali, representa tantos outros iguais que na vida, buscam mesmo é ser representados. “Então, muitas vezes você está na escola e você acha que a escola não era nem para você estar ali e muitas vezes você está na faculdade e acha que nunca vai conseguir, mesmo que você se forme, um emprego na sua área ou alguma coisa...então, isso pega muito na parte de representatividade”. Sobre as memórias do passado na escola, ela é incisiva ao dizer que quando pensa no ensino médio, falam mais alto as lembranças das amizades e do longo tempo passado na biblioteca. Já quando se refere ao ensino fundamental, se sobressaem as memórias relacionadas ao racismo sofrido. “Do ensino fundamental, eu lembro muito do racismo e do bullying, já no ensino médio foi muito mais as amizades que eu fiz, o basquete que eu comecei a jogar naquela época e eu gostava muito de ficar na biblioteca da minha escola...eu sempre gostei de ler, comecei com 4 anos de idade e eu sou apaixonada pela leitura. Então são as memórias que eu mais tenho”. Ela comenta ainda a vontade que teve em cursar biologia durante um período por influência de um professor e garante que não descarta a possibilidade de, no futuro, se empreitar na jornada por uma segunda graduação. Para Thayná, é impossível retornar ao terreno das memórias do ensino médio sem trazer para si as lembranças de uma época dolorida marcada pela depressão. Entre 2015 e 2018, de acordo com levantamento divulgado pelo Ministério da Saúde, constatou-se um aumento de 115% no número de atendimentos relacionados à depressão entre jovens de 15 e 29 anos. Ainda segundo a Associação Pan-Americana de Saúde (OPAS), a depressão é uma das mais relevantes causas de incapacidade entre adolescentes. É uma realidade inquestionável que em muitas ocasiões acaba despercebida. Alguns gritos são silenciosos. No início, assim foram os de Thayná. Um dia, depois de seu celular estragar, ela se viu extremamente inquieta e mesmo após o conserto, percebeu que a sensação de desespero não se findava. Tudo culpa do celular, podia até pensar. O celular estava consertado de novo, mas o oco e sensação de medo profundo não passaram. “Tinha alguma coisa muito errada. Aí eu comecei a chorar todo dia de manhã e de tarde, principalmente no início da manhã e no final

38


O caminho possível

da tarde. Chorava, chorava todo dia sem exceção. Comecei a parar de comer e eu ficava sentada em um canto da minha casa. Minha mãe colocou um tapete porque era só naquele canto que eu ficava e só”. Não se tratava do celular, era mais do que parecia ser. Encontrar nome para o que causa tormento nem sempre é fácil ou mesmo desejado. Se falado em alta voz, se passado para o mundo e para si o que de fato acontece, de repente, o que já dói parece ganhar contornos mais reais. Mas Thayná encontrou ajuda, foi por meio das futuras colegas de profissão que descobriu que dar nome ao problema pode ser o primeiro passo para a libertação. “Na época eu tive muita sorte, eu tava no terceiro ano e lá mandaram uns psicólogos de uma faculdade para fazer orientação profissional. Então, nos dias da orientação profissional os próprios estagiários começaram a perceber que eu tinha alguma coisa errada. Naquela época uma das meninas percebeu, falou para a orientadora dela que me pediu para ficar uns minutinhos depois da aula. E ela disse que iria me encaminhar para terapia. E era assim, se você tivesse condição você pagava 15 ou 25 reais, e se você não tivesse condição você não pagava nada porque você já ia ter que pagar o ônibus. Então foi assim que eu consegui”, diz com evidente gratidão. Quando pergunto como foi o processo de percepção da família frente aos problemas psicológicos que enfrentava, ela se lembra da reação da mãe, que logo percebeu que havia algo “fora do lugar”. Diz sorrindo: “minha mãe foi a primeira a perceber, mãe sabe né?” e salienta a dificuldade de lidar com o descompasso das emoções em meio ao último ano do ensino médio, já conhecido pelo seu terreno caracterizado por pressões, medos e incertezas. “Meu pai achava que eu estava surtando, que estava dando chilique a toa e foi uma época muito complicada na minha vida. E eu nunca tinha tido isso. Estava com 16 anos e ia me formar, estava super feliz e eu já tinha vendido todas as rifas para a minha formatura...mas muitas vezes eu tinha problemas e não reclamava sobre nada, por exemplo não reclamava sobre meu relacionamento. Só fui contar pra minha mãe que a família do meu ex era racista depois que eu terminei. Não reclamava das dificuldades que eu tinha na escola, não reclamava de nada. Sempre guardava pra mim. Acabei com a minha saúde mental”, lamenta. 39


Thayná

Thayná diz ter ouvido comentários que duvidavam da existência de razões que justificassem a presença de sentimentos depressivos. Sobre isso, ela mostra a firmeza na voz ao frisar que não tinha tempo ou forças para dar ouvidos as dúvidas externas, já que estava envolvida na “simples” missão de se manter viva.

O que eu estou fazendo aqui?

Imagine-se em um lugar onde os seus próximos passos parecem definir o sucesso de todo o seu futuro. A sensação espinhosa de você ser a única pessoa em todo o mundo responsável por fazer transparecer a sua eficácia ou o seu fracasso. Você olha para trás, e por um momento tudo parece insuficiente, ainda que você tenha passado semanas a fio se dedicando para as horas que logo já vão começar. O que eu poderia ter feito de diferente? Eu me diverti, sabia que não devia ter feito isso. Não li o que deveria, não pesquisei o que esperam que eu tenha pesquisado e nunca vou saber o mais do que aquelas meninas que estão ali na frente. Assim, e mais uma série de palavras auto depreciadoras integram a sucessão desorganizada de pensamentos que rondam a mente de grande parte dos estudantes no fatídico vestibular, na atualidade, o mais popular entre os estudantes e aceito pela maioria das universidades brasileiras é o Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM).

Para Thayná, a primeira vez que realizou a prova, ainda no segundo ano do ensino médio, feito apenas como teste, ou seja, para se ambientar no formato das questões, perceber os conteúdos exigidos e principalmente, perceber como se dará o ritmo dos batimentos cardíacos durante o tempo de execução do exame, foi marcado por uma experiência onde a simples aparência do seu cabelo já foi razão para se sentir inadequada, desconfortável por simplesmente estar ali. Na ocasião, um dos aplicadores dos cadernos de prova solicitou aos presentes na sala para que prendessem os cabelos, ela não conseguiria sem o auxílio de um elástico e sendo assim, o aplicador permitiu que mantivesse os 40


O caminho possível

cabelos como já estavam. O instante já foi suficiente para virar alvo de olhares contorcidos e expressões desconfortáveis. “A vida inteira estudei em escola pública, desde a pré-escola. No ensino médio foi quando eu comecei a perceber que eu poderia não passar pra faculdade. Quando fiz o ENEM pela primeira vez eu estava no segundo ano do ensino médio e lembro que na minha sala só tinha gente, a maioria meninas, com uniforme de escola particular (nesse momento ela começa a citar nomes de escolas famosas particulares de Campo Grande) e era desesperador. Eu olhei a minha volta e falei ‘cara eu não vou entrar’”, ela lembra da sentença que na época deu àquela situação.

Agora, universitária

Thayná entrou. Tornou-se aluna do curso de Psicologia e deve se formar em 2022. O que antes parecia ser um sonho “largo” demais para os limites que estava acostumada, ganhou estruturas reais e parte de cada nova manhã. Mas, como quase todo sonho, a entrada na universidade não foi feita apenas de manhãs felizes e dias ensolarados. A insegurança, o medo e sensações que a transportavam novamente para as memórias doloridas do ensino fundamental e médio, chegavam novamente a sua presença, mas agora, com roupagens novas, era o mundo adulto.

O primeiro impacto foi perceber as deficiências de aprendizagem que nos primeiros semestres da faculdade passaram a mostrar evidência. Começou a se comparar com os demais colegas, reparando naquilo que todos pareciam saber, menos ela. Ao olhar para a sua volta, a comparação tornou-se companheira cotidiana. ”Eu achava que estava super tranquilo e foi quando eu comecei a ficar mal também, e tinha muito tipo, por exemplo em método de pesquisa, normas da ABNT (Associação Brasileira de Normas Técnicas), e aí a maioria da galera da minha sala sabia e eu e uma minoria ficava ‘mas eu não sei fazer isso’ e lembro que uma professora nossa pegava e falava: ‘Nossa como vocês não sabem isso? Vocês que não sabem não deveriam nem ter passado no vestibular’. 41


Thayná

Para os estudiosos do ensino superior, há uma estatística que se destaca entre as diversas apresentadas, o número de evasão maior principalmente nos primeiros semestres da graduação, ou seja, são nos meses iniciais do ensino superior que um número maior de alunos desistem do curso. “Eu fiquei muito mal, e eu falava para minha mãe que parecia que ali não era o meu lugar”, Thayná acrescenta e mostra na frase o deslocamento sentido em meio ao seu lugar por direito. Existe um distância significativa entre a entrada no ensino superior e as condições de permanência do aluno, que, quando negro e pobre, tendem a se esforçar com passos ainda mais largos na tentativa de se manter em equilíbrio. Na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, de acordo com a Divisão de Assistência ao Estudante (DIASE), 1779 estudantes são beneficiários da bolsa permanência. Entretanto, as condições de permanência envolvem além de questões financeiras, a própria noção de pertencimento ao local de ensino. Quando se olha para um caso particular, é importante perceber onde este “um” está inserido. Os resultados de um indivíduo podem ser melhor encarados tendo-se em vista o contexto maior que envolve as suas vivências. No estado de Mato Grosso do Sul, segundo resultados da Prova Brasil de 2017, 82% dos alunos avaliados que estudam em escolas estaduais não apresentaram as competências necessárias para a resolução de problemas de matemática no 9° ano do ensino fundamental. A primeira reprovação de Thayná se deu na disciplina de estatística. No ensino superior público, quando se reprova em uma disciplina, dá se o nome de “DP”, dessa forma, o acadêmico poderá refazer a matéria quando ela for oferecida novamente, em geral apenas no próximo ano. Com a reprovação em estatística, a acadêmica de Psicologia questionou novamente a validade de sua aprovação. Não deveria ser boa o suficiente, pensava. Talvez tinha ido longe demais, deveria ter trabalhado, poderia pensar frente ao que via como certificado de incompetência. Multiplicavam-se as opiniões sobre si mesma. “Todos os meus outros cinco colegas mais próximos, que tinham vindo de escola particular e instituto federal não pegaram DP, eu fiquei muito muito mal. Mas hoje em dia eu já convivo muito melhor com isso, porque entendi que a minha realidade foi diferente da deles. Eles tiveram um privilégio que eu não tive. Mas quando eu entrei na faculdade não conseguia entender isso, só pensava que eu era burra”, concliui. 42


O caminho possível

Perceber as diferenças que de certa forma o separam daqueles com quem se convive deve gerar a consciência de que os contextos não devem ser ignorados. Quando se recorda do início da graduação, Thayná ri e cita um aprendizado que já até passou para as suas irmãs mais novas: “façam amizades, mas cuidado com as pessoas com quem vocês vão andar”, ela comenta e ri da constatação. “Eu passei por umas situações terríveis na faculdade, principalmente no começo. Então comecei a andar com um grupinho, e aí passei a ver que eles não tinham menor empatia com a realidade diferente da deles, começaram a me tesourar, a não querer fazer mais dupla comigo porque eu peguei minha primeira DP e eles não queriam fazer nada com pessoas que tinham DP”, fala mostrando a tristeza diante da lembrança. “Me lembro até hoje de um semestre horrível, que perdi meu avô, que me criou como pai, eu estava no meio do luto, faltei acho que uma semana de aula e a gente teve uma prova, e a professora queria que ela fosse feita em duplas ou trios, e fui a única pessoa da sala, com mais de 80 alunos, a fazer sozinha, ninguém quis fazer comigo”, e essa não seria a primeira vez. Foi no momento de recebimento das notas avaliativas que certa vez uma professora perguntou a Thayná o motivo de ter feito a prova sozinha. “Se vocês estão fazendo Psicologia, para deixar seus colegas pra trás porque eles têm alguma dificuldade de aprender ou entender, ou por uma dificuldade pessoal e mesmo assim estão vindo aqui, vocês podem sair do curso”. Foi a resposta da professora, dizendo ainda que se a situação se repetisse, todos perderiam nota. Depois disso, Thayná não fez mais prova sozinha naquela disciplina. A memória permanece. A relação com os professores também é parte significativa no que diz respeito à experiência do aluno no ensino superior. No caso de cursos integrais como o de Thayná, a impressão gerada muitas vezes é a de que se passa mais tempo em contato com os professores e colegas do que com os próprios familiares. São cinco anos de convivência diária, horas incontáveis entre diversas atividades. Assim, os corredores da universidade passam a integrar a maior parte da memória de um tempo que será sempre lembrado. Com todas as suas partes. Os percalços não são vivenciados apenas por números nas chamadas de aprovação. O olhar precisa ser ampliado para que sejam perebidos com profundidade. Quando se vê pessoas por detrás dos símbolos numéricos, uma nova perspectiva é construída. 43


Thayná

“Eu já sabia que muitos professores do meu curso não tinham a menor noção que alunos tinham a realidade diferente das deles, mas o que mais me mostrou foi nessa época da pandemia quando eles descobriram que existem pessoas que não tem internet e computador em casa”. Ela fala a última frase mostrando a ironia e a surpresa diante de uma constatação que, para ela, beira a obviedade. O processo por entender o seu espaço em meio à universidade e construir internamente as fundações necessárias para lidar com as diferenças gritantes de realidades não se deu do dia para a noite, mas se dá continuamente. Às vezes, em passos mais rápidos, em outras, mais lentamente. “Antes eu me desesperava, mas hoje eu tenho amigos que inclusive também vão se formar depois e que têm realidades mais parecidas comigo e hoje em dia nós falamos ‘gente, pelo menos vamos nos formar! quando a gente achou que ia formar na vida?’. A interação com pessoas que lhe causasse identificação foi parte importante em meio ao caminho que aos poucos a levava para um lugar mais parecido com o que procurava e esperava em meio aos muros universitários. “Muitas vezes quando me sentia sozinha eu tentava usar a minha solidão como solitude. Foi assim que fui aprendendo e conhecendo pessoas que eram mais parecidas comigo, até em relação à realidade social. Na minha sala são poucas pessoas mas conheci veteranos, pessoas de outros cursos e comecei a realmente fazer amizade com elas”, diz e o sorriso reaparece em cena novamente. Faço a ela a clássica pergunta, “se pudesse mudar algo na escola ou na universidade, o que seria?”, curiosa para saber a resposta. Alguns longos segundos separaram a questão da resposta, mas então acrescenta: “Eu acho que eu mudaria o jeito elitista tanto da universidade ser e também mudaria na escola algumas formas muito tradicionais de ensino, como as mesas uma atrás da outra e coisas assim. Eu faço psicologia escolar, que é meu estágio desde o começo e sou apaixonada pela área. A gente conversa muito sobre isso no estágio, quero fazer meu trabalho final relacionado a escola e pretendo colocar alguma coisa relacionada a psicologia mais antirracista dentro da escola”, fala orgulhosa pelos planos de colocar em sua profissão, elementos da sua luta particular, e de tantos. O que seria uma escola mais antirracista?, emendo o raciocínio. A resposta dessa vez já surge de maneira rápida e bem estruturada, 44


O caminho possível

como quem já dedicou tanto tempo ao aprofundamento do assunto, e dessa vez os sons dos latidos ao fundo aparecem, nos lembrando da natureza virtual que mistura elementos cibernéticos com o dia a dia. “Eu acho que trabalhar com as crianças, acho que tudo começa muito na infância. Se você começar a trabalhar com as crianças na educação anti racista e com as crianças negras o seu local de fala e com as crianças brancas alguns dos seus privilégios elas já vão crescer com outra realidade. Porque eu vejo que muita coisa começa dentro da escola, tanto na escola pública como na particular. Então, se a gente começar a mudar isso na escola, acho que na faculdade também ajudaria”, relembrando o impacto da infância. Parte importante na vida acadêmica de Thayná foi a participação nos grupos que funcionam em uma espécie coletivo dentro das universidades. Alguns são formados apenas por acadêmicos, que se unem em encontros regulares. Existem ainda os grupos de pesquisa, coordenados por professores, que desenvolvem em conjunto com os graduandos e alunos de pós-graduação pesquisas de um determinado foco temático. O reconhecimento é parte fundamental. “Eu participo do NEABI (Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros e Indígenas), que é um coletivo negro que tem na faculdade, formado por pessoas negras e a gente falava sobre várias coisas, coisas que nós poderíamos incluir na faculdade e no final do ano sempre tinha uma festa e coisas assim”, explica sobre as reuniões que aconteciam a cada 15 dias, de forma presencial. “Participo também do círculo entre mulheres, que é um círculo de leitura só de autoras mulheres que acontece também à noite e é a minha orientadora do PIBIC (Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica) que faz também”, já demonstrando o interesse por leituras, hábito que a acompanha desde pequena. A inserção nesses grupos durante o curso de Psicologia funciona como um modo de ter contato com horizontes ainda mais amplos dos que os aprendidos dentro das paredes de uma sala de aula. A experiência universitária vai além do adquirir de competências profissionais, já que oferece um arcabouço de oportunidades de construção de redes de conhecimento que provavelmente não fariam parte da rede de relações do aluno se não estivesse ali. “Eu acho que o valor é muito grande porque é dentro desses grupos que você consegue encontrar pessoas com a realidade parecida com a sua, claro que tem pessoas 45


Thayná

com realidades totalmente diferentes e que tem muita noção sabe? E que ajudam muito, mas eu acho que você se sente menos perdido quando você consegue entrar nesses grupos. Além de você aprender algo novo, você se sente pertencente”, completa. O “batente” de todo dia é árduo, e a rotina de Thayná é parecida com outros tantos que também dependem do transporte público para a frequência nas aulas. Ela me explica a referência de localização de onde mora, citando um shopping conhecido na cidade pela distância expressiva dos principais pontos de movimentação da capital. Quando comparado à localização da Universidade onde estuda, é praticamente preciso cruzar a cidade de uma ponta a outra. Despertador toca e lá fora é quase madrugada, o sol ainda aparece tímido do outro lado da janela. Cada passo da arrumação é medido tendo como referência o horário que o ônibus vai passar no ponto mais perto. É melhor torcer para não surgirem quaisquer imprevistos, se perder o próximo ônibus, até vir o próximo toda a programação é completamente bagunçada. Melhor correr para tentar ir sentada no ônibus, ao contrário o esforço para se equilibrar já aparece nas primeiras horas do dia. Terminais lotados, num vai e vem de gente que também parece juntar a coragem para mais um dia, cada coletivo parece ter um sol particular, com sorte, o assento da janela vai estar vazio. A gritaria estridente ao redor já não assusta mais, é parte da vida de ônibus. O sonho pelo próprio carro é assunto insistente. “Eu pego quatro todos os dias, passo 1h40min dentro dos ônibus, na volta pode ser até duas horas por causa do horário do rush. Ter que fazer isso todo dia é bastante cansativo”, ela diz com ênfase no adjetivo como para evidenciar a intensidade da exaustão. “Teve uma época em que ouvia muito que eu não ajudava dentro de casa, mas no final de semana tentava fazer o meu máximo para ajudar. Uma coisa que eu aprendi com a vida e também com a terapia é que por mais que você faça as coisas, muitas vezes as pessoas vão te dizer que não está fazendo nada. Então tá tudo bem, entende?”, diz convicta.

46


O caminho possível

De repente, uma pandemia

“Bem no começo da faculdade eu já comecei a tentar bolsa, auxílio, tudo. Só que só fui conseguir no ano passado. Consegui auxílio permanência e só. Eu não consegui auxílio moradia porque moro com a minha mãe, mas parece que eles já estão conversando sobre isso porque tem muitas pessoas que moram com os pais mas tem algum problema, por exemplo se eu morasse com meu pai no começo da faculdade e ele não entendesse que não ia ter como eu trabalhar, ia ter muitos problemas de convivência com ele”, destaca. Para ilustrar a urgência de algumas situações, cita o caso de um colega. “Eu tenho um colega que é homossexual e que se assumiu recentemente, foi espancado pelo pai e continua na casa, e ele gostaria de sair. Mas a gente não conseguiu o auxílio para ele porque geralmente só dão pra quem é de fora”, fala com a esperança de que casos assim possam mudar a configuração do chamado auxílio moradia.

As dificuldades tornaram-se ainda mais latentes com a iminência da pandemia do novo coronavírus, que em março de 2020 causou o encerramento das aulas presenciais em todas as modalidades de ensino. “Aqui a minha mãe era empregada doméstica, mas por causa da pandemia ela foi demitida, então a gente tá zerado. E o meu padrasto é marceneiro e também as pessoas não estão comprando móveis no meio de uma pandemia, né? A situação não está das melhores, só não está tão ruim por conta que tem o auxílio do governo, eles queriam deixar até dezembro, mas a gente não sabe, então ainda tem mais isso”, reflete preocupada diante da incerteza para os próximos meses. Thayná não possui computador em casa, nem rede de Wi-fi. Acompanha as aulas usando o celular, dependendo da rede móvel de internet. 47


Thayná

Semanas depois da entrevista, entro em contato novamente querendo saber se o notebook prometido pela Universidade já estava em suas mãos. Outra pergunta foi sobre a adaptação ao segundo semestre à distância, que se tornou o único modo possível de ensino e aprendizagem no contexto atual. A modalidade, entretanto, acaba por ser dificultante para muitos alunos, principalmente para aqueles que possuem acesso comprometido ao uso da internet. A situação extrema revela com intensidade os abismos e diferenças estruturais pré-existentes. A escrita deste livro de forma remota, faz surgir as perguntas acerca dos efeitos futuros dos tempos contemporâneos de incertezas e árdua luta pelos direitos fundamentais. Sobram questionamentos e poucas certezas. “Saiu um edital falando sobre o empréstimo dos computadores mas até agora nada, e já é setembro e as aulas já voltaram”, explica. “O segundo semestre está sendo bem difícil, no primeiro semestre os professores estavam meio perdidos, mas agora já estão sabendo mais se situar. Mas estamos no meio de uma pandemia e estão tacando um monte de coisa, além de terem professores que estão cobrando presença de alunos que não tem acesso a internet e nem a computador. Inclusive, eu larguei uma matéria porque a professora falou na frente de todo mundo que se a pessoa não tivesse acesso a um celular não deveria ter se matriculado na matéria”. O impacto das novas formas de contato também interferiu nas pesquisas desenvolvidas por Thayná, que têm como foco de estudo a interseccionalidade nas comunidades das mulheres negras. O plano inicial era visitar a comunidade da Tia Eva, comunidade urbana do município de Campo Grande que tem no nome, o registro de Eva, escrava que recebeu a carta de alforria em 1887, aos 49 anos e fundou a comunidade no então estado de Mato Grosso. O grupo de pesquisas do qual Thayná faz parte pretendia aplicar questionários de forma presencial às moradoras negras da comunidade, que depois iam fazer parte de um grupo para que fossem identificadas as semelhanças e diferenças entre as mesmas. A pesquisa perdeu o ponto do contato físico, passou a funcionar com os recursos do online, como quase todas as esferas contemporâneas. No nosso primeiro contato, Thayná se preparava para apresentar de modo virtual os resultados da pesquisa na próxima edição do INTEGRA UFMS, considerado o maior evento de Ciência, Tecnologia, 48


O caminho possível

Inovação e Empreendedorismo do estado de Mato Grosso do Sul. As pesquisas avançam e se dão entre os laboratórios virtuais usando dos meios possíveis. Métodos são repensados, apresentações adaptadas e, com isso, é a sociedade persiste sendo a maior privilegiada. É para ela que se voltam os resultados produzidos na Universidade. “Garota, não se culpe Seu melhor é o suficiente Então pegue a caneta

Nota para si mesma

E escreva uma nota para si mesmo E não seja cruel porque as coisas acontecem E você sabe que não é culpa sua Não cubra suas feridas com o sal.”

A canção de Jake Bugg, músico britânico, é uma das primeiras a serem citadas por Thayná, ao pensar sobre suas músicas favoritas. No caminho pelo acesso e pela permanência no ensino superior, aprendeu a escrever bilhetes, notas para si mesma. Deveria lembrar-se de encarar a sua negritude com alegria, nunca como um elemento a ser escondido ou disfarçado. Aprenderia a ver por meio de suas dificuldades a presença de contexto maior do que ela, com variáveis que fugiram de seu controle. A gentileza transformou-se em primeiramente hábito consigo mesma. No livro favorito de Thayná, o clássico infantil “Menina bonita do laço de fita”, a protagonista, uma criança negra, torna-se alvo de grande admiração por seu amigo coelho, branquinho como neve. Ele passa todas as páginas da história na tentativa incessante de descobrir a origem da negritude da menina que tanto admira, para que pudesse “escurecer” também. Talvez, o livro tenha funcionado como uma espécie de nota para Thayná ainda criança, que passaria durante os anos seguintes por processos intensos de apreciação de si mesma. Uma das memórias mais marcantes dos tempos de escola é o tempo passado entre as paredes da biblioteca. Ela diz que de certo modo, era um esconderijo. Um lugar seguro entre as páginas com as jornadas que não as suas. Ali, teria que lidar apenas com os acontecimentos dos personagens das folhas entre seus dedos. 49


Thayná

Já diria Dom Quixote, um dos clássicos mais apreciados entre os títulos da “prateleira” das lembranças literárias da acadêmica: “Quem lê muito e viaja muito, muito vê e muito sabe”, as palavras do clássico espanhol parecem também nortear os pensamentos de Thayná no que diz respeito aos sonhos. Em um dos seus trechos, ele diz “Sonhar o sonho impossível, sofrer a angústia implacável, pisar onde os bravos não ousam, reparar o mal irreparável, amar um amor casto à distância, enfrentar o inimigo invencível, tentar quando as forças se esvaem, alcançar a estrela inatingível: Essa é a minha busca”. A busca de Thayná beira novamente os espaços acadêmicos e são tantas áreas de apreço dentro do curso que conta com mais de uma única opção para os seus rumos futuros. “Eu tenho muita vontade de fazer mestrado em Antropologia ou mestrado em Psicologia Hospitalar, um desses dois”, confidencia e diz que pensa em ser professora de universidade. O hábito pela leitura inspirou até mesmo pessoas ao seu redor. Thayná conta com uma alegria resplandecente o caso da amiga que entrou no curso de Filosofia e, após a confirmação da entrada na graduação, recebeu a mensagem de agradecimento pelas vezes em que “arrastou” a amiga para a biblioteca. Ali em meio aos livros, nasceu na amiga o interesse pela Filosofia. Thayná não descarta a possibilidade de ingressar em uma segunda graduação, mas em sua fala demonstra a fragilidade que vez ou outra ainda se faz presente. “Assim, eu sempre tenho vontade de fazer assim uma segunda faculdade, mas muitas vezes me vem aquela sensação de impotência sabe? Aquela sensação de eu não conseguir porque tipo como eu passei muita dificuldade na minha faculdade atual, muitas vezes eu acho que eu não vou conseguir, mas a gente não sabe…”. Com o som dos passarinhos ao fundo, pergunto se notou mudanças em si mesma desde o momento em que adentrou os muros da universidade. “Quando eu entrei na universidade eu queria muito ser igual às outras meninas e hoje só quero ser eu”, as palavras simples saem mostrando a potência da constatação. “Eu tinha muita necessidade que alguém fosse meu amigo ou muita necessidade que alguém fizesse tal matéria comigo e hoje sinto que é muito mais eu por eu mesma. Isso não me incomoda mais como me incomodava antigamente”, declara. “Me sinto em um local onde eu tenho mais liberdade de discussões que antigamente acho que eu nunca teria, nem dentro da minha casa. Foi dentro da universidade que descobri um mundo bem mais amplo 50


O caminho possível

e acho que isso foi muito importante na minha vida. Eu penso em levar muita coisa boa de dentro da universidade para o meu futuro”, diz mostrando segurança. Certa vez, Thayná foi modelo para uma campanha publicitária de sua universidade, suas fotos estamparam banners e imagens para divulgação, era bom estar ali, sentindo-se parte da universidade ao ponto de representá-la para a comunidade externa. Nesse período, ela foi questionada por uma colega sobre qual o critério fora escolhido para deixar ela ali, posicionada tão na frente na foto em questão. “Sempre uma coisa muito ruim porque eu não quero ser igual a ninguém”, desabafa. Angela Davis, escritora engajada no movimento negro e conhecida mundialmente, já dizia: “Quando a mulher negra se movimenta, toda a estrutura da sociedade se movimenta com ela”. Seus escritos fazem parte da biblioteca de Thayná. Ao pensarmos na entrada de mulheres negras na universidade, podemos imaginar as estruturas sociais movendo-se na mesma medida. “Eu acho que a sociedade ainda não entendeu que o racismo ainda existe. A sociedade finge que não existe e que hoje em dia é muito velado. Por exemplo, depois da morte do George Floyd1 muitas pessoas que já foram muito racistas colocaram no instagram “vidas negras importam” pra conseguir engajamento e gente, isso não existe cara, sabe? As pessoas não entenderam que o racismo não acabou e que ele precisa acabar”. Thayná não admite que o racismo seja normalizado, velado ou explícito. As estruturas sociais reproduzem falas, comportamentos e tantos outros padrões racistas, mas isso sempre será debatido e questionado por ela. “Eu sempre tive noção que eu era uma mulher negra porque minha mãe sempre falava pra mim. Mas foi no meu ensino fundamental que por conta do racismo eu queria muito ser uma menina branca, de qualquer jeito. Quando eu entrei na faculdade que eu comecei a ficar muito mais firme em relação à minha negritude sabe?”. Milhões de meninas passam a enxergar a beleza existente do mundo pela lógica dos padrões brancos. Os cabelos? Lisos, alinhados e sem volume. O nariz fino, os lábios grossos, mas não demais. Os traços devem ser cada vez mais parecidos com o que se vê na mídia, cada vez mais distantes da imagem refletida no espelho. 1 George Floyd tornou-se mundialmente conhecido após ser assinado por um policial branco em maio de 2020, no estado norte-americano de Minnesota.

51


Thayná

A realidade dói. Os cabelos crespos de Thayná, azuis no dia da entrevista e lilás nos dias de hoje enquanto escrevo este capítulo, mostram em tons vibrantes a liberdade de fazer as pazes com aquilo que durante toda uma vida foi motivo de lutas e conflitos, o atrevimento em ela própria. Thayná se reconheceu. Hoje, ajuda outras a se reconhecerem também. Venceu a timidez e publica dicas de fortalecimento capilar e passos para uma rotina de cuidados especial para cabelos crespos. “Eu lisava o meu cabelo, e estava com 16 ou 17 anos, e comecei a procurar pessoas que tinham o cabelo crespo e não encontrava. Eu via pessoas que tinham o cabelo cacheado mas eu não achava pessoas com cabelo 4b e 4c (a nomenclatura diz respeito a curvatura dos cachos, a partir da numeração 4, o cabelo pode ser definido como crespo) E comecei a cuidar do meu cabelo sozinha, com dicas caseiras da minha avó, da minha mãe. Comecei a aparecer semana passada, acho que essa é a importância de você fazer qualquer coisinha assim meio bobo sabe? Relacionado a cabelo, relacionada a pele negra... ainda hoje faltam alguns tipos de conteúdo, por exemplo para o cabelo crespo, crespíssimo ou para pele negra retinta...então, às vezes você faz uma coisa que você acha que não vai atingir ninguém, mas atinge alguém que está precisando”, diz entusiasmada. Como diz uma de suas músicas prediletas, existem coisas que ninguém pode tirar de você. Ainda que seus olhos não estejam fechados para as lacunas que ainda existem no ensino superior, Thayná o defende e fala sobre o seu potencial de transformação para quem quiser ouvir. “Para mim significa autoconhecimento, acho que acima de tudo. E formas de você se encontrar, de você poder encontrar um futuro para si mesma. É pensar mais em você e não no que esperam de você. Acho que a educação acadêmica me fez me tornar uma pessoa que acredita em si mesma. É uma chance de você não só ter uma graduação mas conviver com pessoas diferentes e focar em você. É se encontrar”, completa. Ela escolheu viver com sonhos que para ela são os mais grandiosos no mundo que começou a construir. Ela enumera que em dez anos quer ter sua casa, ter se formado no mestrado, ter um espaço para os seus livros e “é isso”, como ela diz. Quem é a Thayná hoje? Ela fala em tom de pergunta reflexiva, “eu acho que eu diria que é uma menina muito desprendida de muitas coisas que antes ela era presa. Uma pessoa que hoje reconhece realmente quem é...e que quer pas52


O caminho possível

sar para as irmãs e para outras crianças que elas terão oportunidade de fazer o que quiserem”. Entre as reticências ela desenha um futuro para si e para quem ama. A despedida da entrevista se deu porque a irmã, que estava repleta de tarefas a fazer, precisava de sua ajuda. Eram muitos cadernos e exercícios e toda ajuda era bem-vinda. Thayná não se adaptou ao ensino à distância, mas faz o que pode para tornar o ensino das irmãs mais próximo do que espera para si mesma. Se a educação é a arma mais poderosa para mudar o mundo, como diria Nelson Mandela, ela precisa se certificar que suas irmãs estejam bem equipadas.

53


FOTO: ARQUIVO PESSOAL

Jairo

54


caminho para ampliar vozes, a começar pela sua

2

A força do tal “sair da zona de conforto” nos leva a ficar incomodados com o sossego de uma rede aconchegante depois de uma bela feijoada, nos faz deixar de contemplar o momento porque é preciso se preparar melhor para o novo dia, nos induz a sentir insatisfação mesmo diante de um abraço claramente de amor. Quando a vida dá certo? - Jairo Marques, 13 de outubro de 2020.

Neste capítulo, você lerá trechos da coluna “Assim como você”, que integra o jornal Folha de S.Paulo, e o trechos do livro “Malacabado”, ambos escritos pelo personagem central deste perfil. Cada trecho irá simbolizar uma nova abertura. A partir da sua escolha de palavras, descobrirá também partes importantes da sua forma de ver o mundo. “Jairo, quando a vida dá certo?”, pergunto após ler o título e um fragmento de seu texto. Silêncio. Encaro a tela por uns segundos, pensando se devo sugerir algum começo de resposta. Não, não interfiro. Quero chegar a sua perspectiva pura, sem a mínima interferência da escutadora inquieta do outro lado .da chamada de vídeo.

https://assimcomovoce.blogfolha.uol.com.br/

55


Jairo

Silêncio. Está vindo uma daquelas respostas mais profundas, ele tem jeito e tom de voz para providenciar tais tipos de respostas. Silêncio. “É complexo, não é?”, é tudo o que eu consigo providenciar como quebrador de miudezas de som. Ele balança a cabeça, repetidas vezes, confirmando algo que ainda não sabia ao certo o que era. “Jéssica, é difícil eu te dar essa resposta”, é o que faz romper o silêncio que durava naquela altura pouco mais de vinte segundos. Respiração profunda. “O conjunto da vida, como dar certo, dar errado, dar mais ou menos, é muito difícil dizer. Eu acho que em muitos momentos a gente dá certo. A gente dá certo quando a gente se sente alegre. Quando a gente tem um filho. A gente dá certo quando a gente ama. Dá certo em muitos momentos”, e eu concordo. Ali estava a sua definição, mais contemplada em pensamentos do que em conceitos objetivos segundo ele, do que era dar certo na aventura previsível e cheia de imprevisibilidades do que é viver. São Paulo era fria e dura. Grandes em possibilidades e pequenas em oportunidades viáveis. Estrondosa em inovações, silenciosa em acolhimentos. Plural em diversidade, potente em separações. Capaz de transformar a noção mais sólida e dos mais experientes sobre tempo e sobre espaço. O que era longe se torna perto, um pulo para logo ali. O que era tempo de sobra se torna período contado, apertado e abraçador de mil e um compromissos diários. Viver ali era aprender a ser elástico, de jeito nunca visto antes. Era aprender uma nova dinâmica de uma cidade que não para com um sorriso sem pressa para lhe mapear informações. Era fascinante e amedrontador. São Paulo como era, se apresentava a Jairo. Deixava a poeirenta Três Lagoas para trás, se encaixando entre os arranha-céus dos cimentos paulistas. “Jairo, eu não vou passar nesse processo. Você quer tentar se inscrever?”, a colega dizia em uma das salas da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS). “Eu nem peguei formulário para tentar me inscrever”, dizia ele em resposta. “Eu vou te dar o meu”, propunha a colega em tempos onde inscrições eram impressas, distantes dos ambientes eletrônicos típicos dos dias de hoje. “Eu não tenho nem como ir nos Correios para enviar o formulário”, debatia, tentando frustar as tentativas da amiga. “Eu entrego para você, pode deixar, você vai tentar”, respondeu, lhe tirando mais razões para adiar a tentativa. E assim, o formulário estaria prestes a ser enviado para as terras paulistas. 56


O caminho possível

Naquele dia, a colega ainda esqueceria o formulário em cima da mesa antes de voltar para casa. Mas ela voltou. O formulário foi preenchido e enviado para se somar às outras centenas de papeis preenchidos de aspirantes a jornalistas. Os caminhos de Jairo tomaram os rumos para o estado paulista. Região pulsante do país, longe das terras do Centro-Oeste, onde havia passado toda uma vida. Após a formatura em Jornalismo, na UFMS, Jairo estava lidando com o solo das incertezas. Sem conseguir emprego, a pressa por novas oportunidades emitia seus sinais em modo luminoso. Mas sem respostas externas. Um mundo a ser escrito e investigado pela curiosidade inata do jornalista, sem que houvesse espaço para que a curiosidade e o “faro” jornalístico se construíssem para além da mente de Jairo. Inquieto, já não conseguia achar prazer absoluto na identidade profissional que havia escolhido para si alguns anos mais cedo. Os quatro anos de graduação se misturam criando uma angústia dura, de corroer os ossos e esfolar a garganta dos mais seguros acadêmicos. A vida adulta acena sem piedade e compreensão das crises de mercado do trabalho e assola os pensamentos ao se estar acordado e os sonhos mais profundos quando já se está na cama. A vida de gente grande tem pressa, assim como Jairo. O formulário veio como um presente. A esperança impressa em tempos de incerteza. Um afago entre o turbilhão de comparações e questionamentos. Uma oportunidade. Após entregue, restaria a espera. Saber se São Paulo seria a sua próxima casa era uma das inúmeras perguntas que pairavam no jovem recém formado. Nascido em Três Lagoas e morando em Campo Grande para realizar a graduação em Jornalismo, Jairo tinha poucas certezas indubitáveis. Superabundam as suposições e possibilidades. Rareiam-se as respostas prontas e definitivas. “Seguir adiante” é um dos lemas que procurou sempre carregar de modo intrínseco em seu modo de pensar e agir. Olhar para frente é um jeito mais prático de lidar com os porquês que muitas vezes persistem sem resoluções por períodos indefinidos. Para frente é uma direção mais confiável. O telegrama chegou a sua porta. Era abril de 1998. Ali, continha um pedaço de um caminho que, apesar de escasso em incertezas, poderia ser o ínicio de um território propício a oportunidades. Exatamente o que Jairo precisava para esculpir um futuro com possibilidades mais acesas e menos nublado pela escassez de chances.

57


Jairo

Tratava-se da resposta do jornal Folha de S. Paulo, um dos mais significativos veículos da grande imprensa nacional. Era ali que Jairo mirava seus próximos meses. De início, não estavam lhe prometendo grandes promessas e compromissos estáveis. O telegrama representava a entrada no processo de treinamento, ao lado de 200 jornalistas sobreviventes ao processo que já havia eliminado outros 2000. Campo Grande se tornava menor diante dos olhos do Três-Lagoense, cidade que, já em 2020, conta com aproximadas 123 mil pessoas. “O ser jornalista se mistura com o ser Jairo?”, pergunto em meio à manhã da quarta-feira de outubro. O sol era estridente, típico do Centro-Oeste. Dias depois retornariam as chuvas, causando a transformação repentina do tempo que também é característica tradicional sul-mato-grossense, conhecido pelas quase imprevisíveis amplitudes térmicas. Dessa vez, a resposta veio de imediato. “Absolutamente”, me responde Jairo, e emenda com as explicações contidas em seus textos, que verbalizam e registram o alinhamento entre Jairo, simplesmente Jairo com o Jairo, jornalista há mais de vinte anos na Folha de S. Paulo. A mistura era evidente. Dos primeiros anos na capital acinzentada, Jairo se recorda da estadia nos hotéis que se distanciavam dos padrões sonhados por um jovem recém formado cujos pés começavam a fincar-se na vida adulta. Ele define como “hotel de travestis” e já garante que pouco se importava com o público alvo da instalação. Não havia recursos para ue outro local servisse como lar na nova cidade, teria então que se adaptar às instalações disponíveis. Mais um entre os desafios que já lhe eram comuns. A experiência como um todo escancarava o que era viver sozinho na cidade grande, sem tempo para adaptações. Escolheu um prédio que ficasse perto da redação da Folha, para facilitar o deslocamento diário. No meio do percurso, ainda restavam as dúvidas dolorosas sobre o que o esperaria após o término do processo de treinamento. Concluir as atividades não significava a contratação empregatícia imediata. Em Campo Grande, há quase 1000 km longe dos prédios, avenidas e metrôs da capital paulista, Jairo havia passado em um concurso para trabalhar na chamada TV Educativa. Uma espécie de ambiente seguro para o jornalista que ainda estava desempregado. Nas malas de Jairo, cabiam esperança e medo. Mas prosseguiu. Mantendo o lema de vida operando entre as irresoluções da cidade onde estava. “Angustiado, sem emprego direito, em uma edícula. Aquela vida de cão”, me confidencia. 58


O caminho possível

Com o fim das fases quase infinitas do processo seletivo, Jairo tomou coragem e arranjou fôlego para o questionamento direto à equipe do Jornal: “Gente, e ai? Eu passei em um concurso lá em Campo Grande”, começou explicando aos poucos o andar de suas dúvidas. A resposta veio sem grandes acalantos. “Faça o que for melhor para você”, foi o que ouviu, o contrário do esperado para um jovem inundado em meio às dúvidas. O “melhor”, analisado por ele naquele período, foi continuar. E persiste ficando, hoje já em outras condições, na selva de pedras. O começo da carreira no jornal foi como repórter, período que ele mesmo define como tempo de grande sorte, por poder viajar entre praticamente todos os estados do país. Segundo ele, era tempo das “vacas gordas” no jornalismo, o que lhe permitia atuar como repórter nacional desenvolvendo grandes reportagens que chegavam até uma semana de construção, esbanjando tempo, artigo valioso no jornalismo diário - cada vez mais escasso e valioso entre as redações brasileiras. Fez reportagens dos mais variados temas, envolvendo multiplicidade de vozes, personagens, autoridades públicas, cidades grandes e vielas. As editorias, nomenclaturas que recebem as sessões dentro de um jornal, como economia, política, cultura para citar alguns exemplos, se tornaram terreno para a descoberta e construção das matérias pelo jornalista que desde os terrenos campo-grandenses se mantinha inquieto e ávido por boas histórias a serem compartilhadas. As histórias foram sempre muito bem contadas. As averiguações, das simples às mais complexas, entregues sobre as mais variadas formas. Os caminhos para a conquista da credibilidade profissional podem ser os mais intrincados e dificultosos, agarrando-se sem piedade aos alunos mais dedicados em tempos de faculdade. A lógica do mercado de trabalho pode ser dura e um tanto inflexível, entretanto, Jairo ia galgando o seu espaço. Provando-se um profissional apto a desenvolver com maestria as mais complexas averiguações jornalísticas. Desse modo, o trabalho bem feito era lustroso a quem quer que se dedicasse a enxergá-lo. A perceber a construção de um jornalista que longe de casa mostrava, aos trancos e barrancos, seu valor em meio a concorrida vida de jornalista. Os dispostos a enxergá-lo além da cadeira de rodas que o acompanhava por todos os caminhos perceberiam tal fato sem maiores dificuldades. Do contrário, perdiam a chance de contemplar um bom profissional mediante o peso desconcertante e infundado de seus próprios preconceitos. 59


Jairo

Em São Paulo, conquistava espaços, nem sempre acessíveis, o jornalista sul-mato-grossense. A poeira e o calor escaldante vindo dos rios, entre eles o Sucuriú e o Paraná, que cercam a pequena Três Lagoas, molhada e quente por natureza, estariam cada vez mais distantes da redação ao redor de Jairo.

Não fui um estudante triste porque não tinha tempo para mágoas. Desde cedo, em casa, escutei que não existia outro caminho para conquistar dignidade, aceitação e conforto a não ser o conhecimento. “Malacabado”, A história de um jornalista sobre rodas - Jairo Marques, 2016.

As ruas da vizinhança, incluindo a sua, eram arenosas e esburacadas. O calor não dava trégua, não importasse o incômodo que causava no rosto daqueles que saíam com a cara e com a coragem para mais um dia rumo à escola pública nos anos do ensino fundamental. A simples ida de mãe e filho para a sala de aula ganhava ares de maratona. A escola, que até hoje persiste sendo uma das principais e mais numerosas instituições de ensino regular do município interiorano, era grande em estruturas e pequena em quaisquer pensamentos inclusivos. Década de oitenta, o país estava em distâncias descomunais de um pensamento coletivo e de leis organizadas em prol da inserção acertada de pessoas com deficiência no ambiente de ensino. “A década de 80 e 90 para uma criança com deficiência foi muito difícil, simplesmente porque as questões que envolvem acessibilidade e inclusão não existiam”, é o que diz Jairo, quando me interesso em saber a sua experiência com os primeiros anos escolares. A básica ida ao banheiro nunca foi uma opção 60


O caminho possível

para Jairo nos tempos de escola. Nunca existiram banheiros adaptados disponíveis. O ginásio, local para as atividades físicas, era localizado no andar superior da escola pública. Décadas depois do tempo de Jairo na escola, já em 2019, Jairo compartilha em sua página em rede social o inquieto depoimento ao lado do vídeo de alunos carregando um colega com paraplegia pelos lances de escadas para que pudesse conhecer o território no “mundo desconhecido” logo acima. Na publicação, Jairo salienta que permaneceu na escola até a 4° série, precisando se ausentar da instituição justamente pelos mesmos lances que separavam um aluno, efetivamente matriculado como todos os outros, do andar superior. “Escola sem inclusão não cumpre seu papel social, não está preparada para educar ninguém”, são as palavras escolhidas para finalizar a manifestação, que ganha tons de denúncia, lamento e incredulidade diante da permanência das mesmas lacunas. As escolas eram organizadas por meio da presença das chamadas “salas especiais”, locais destinados para todos os alunos com alguma forma de deficiência, tidas como mais severas. A mãe de Jairo, funcionária em uma das escolas em que estudou, foi a responsável por manter o filho na sala regular. Insistiu para que o filho não fosse excluído do contato com os outros alunos. A exclusão, no entanto, se manifestou de outras maneiras. Jairo não tinha quaisquer tipos de contato com outros alunos com deficiência, nem mesmo nos períodos de recreio. Uma outra forma de separação era criada. Era excluído o convívio com pessoas que, como ele, possuíam outras formas de necessidades específicas. O resultado evidente é a falta de referências semelhantes, essenciais no processo de construção da identidade de todo ser humano. No isolamento forçado, era privado o espaço para conviver com particularidades similares às suas. Perpetuavam-se os abismos. Para o ensino médio, Jairo passou a estudar em uma escola particular reconhecida com destaque entre os habitantes da pequena Três Lagoas. Recebeu uma bolsa de estudos, mantida com a promessa de boas notas nas avaliações posteriores. Para a família, os gastos seriam necessários para os materiais escolares. Um grande compromisso orçamentário para a família que não contava com recursos abundantes. Em seu livro, Jairo conta que a cada novo ano do ensino médio, a insegurança diante da imprevisibilidade do espaço na lista de matriculados. Certa vez, ouviu de uma das funcionárias que o espaço necessário para alocar Jairo na sala ocupava o que seria o lugar suficiente para quase mais três alunos pagantes. 61


Jairo

Se sobrasse um “espacinho”, ele seria avisado. Palavras da própria diretora. Jairo sempre procurou manter-se desgarrado de discursos que o menosprezassem e lhe tirasse o ânimo de ocupar, ainda que necessárias adaptações, os mesmos lugares daqueles que estavam de pé. Entretanto, diante da pequenez do discurso daquela que representava a instituição de ensino, era difícil manter quaisquer composturas inabaláveis. A exclusão era verbalizada. Depois, por meio de um telefonema de outro representante do colégio, Jairo fora avisado que sua vaga, o seu “espacinho”, seria mantido para mais um ano letivo. Embora as palavras ouvidas tenham se transformado em memórias longínquas que perpassam os limite do tempo. Para fazer uma cirurgia, que demandou uma longa estadia em Brasília, Jairo precisou repetir um ano. Era a chamada oitava série. Não era o primeiro procedimento realizado por ele, mas foi o período mais longo que precisou ausentar-se da sala de aula. Ao todo, quase um ano completo foi passado durante o tratamento no Distrito Federal. “Foi muito doloroso para mim, muito. Porque eu sempre fui muito aplicado, gostava muito de estudar, mas não teve jeito. No hospital não tinha como eu estudar também. Era impossível mesmo. Então eu perdi o ano. Foi um marco muito forte na minha vida sabe?”, diz Jairo, já transportado para o terreno das rememorações do tempo de escola. O marco é presente na voz. As mesas eram altas ou baixas demais. Conforto era conceito de luxo para o aluno com deficiência. O diferente que se adaptasse ao regular. Ao comum. Perceber as particularidades e prover condições que as transportassem para um terreno mais igualitário, menos penoso e mais humano, era pedir demais. Exigir demasiadamente de um raciocínio coletivo indisposto a fazer alterações. Mínimas que fossem. “Tratamento diferenciado” é conceito evitado, intrínseco ao discurso que se diz evitador de “privilégios”. E assim continuam nas mesmíssimas exclusões. Escolhem o diferente que isola ao diferente que acolhe. Certa vez, após ser preciso uma espécie de colete de gesso que imobilizava toda a sua coluna vertebral e portanto os movimentos do pescoço, o que já era dificultoso ganhou ares ainda mais penosos. As mesas fora das proporções adequadas se tornaram totalmente inviáveis. A mãe mais uma vez surgiu em cena. Definida como presença marcante em toda sua trajetória de aluno, foi ela quem providenciou uma mesa para o filho. Feita sob medida. Mais confortável e com o espaço fixo para o estojo, que se deslizasse causava maiores descon62


O caminho possível

fortos. A mesa chegava até a passar por outras salas e por outras mãos, usada para apresentações de trabalho e em festanças organizadas pela escola. Aproveitada pelas suas dimensões maiores. O artefato encomendado de uma marcenaria da cidade das lagoas ganhou nomenclatura adjetivada, passando de simples mesa, para a “mesa do Jairo”. “Todas essas questões arquitetônicas eram meio que um ‘não é um problema nosso’, entendeu?”, Jairo me explica ao comentar sobre as características da escola. Particularidades que podem expressar a maioria dos casos, quando pensamos que os mesmos padrões eram repetidos em outras instituições de ensino. As mesmas falhas alcançavam outros alunos como Jairo. Como resultado, o direito a educação se minava e ganhava menos contornos de direito de fato. Jairo tentava compensar as ausências provendo sempre bons resultados. No ensino médio, me diz que as expectativas sobre ele eram altas. Embora, por vezes, era olhado com diferença, sem grandes confianças inabaláveis, o esforço era sempre multiplicado. Manter um ritmo eficiente de estudos era mais do que uma maneira de manter a bolsa de estudos, mas uma tentativa de mostrar-se competente como qualquer outro colega entre as cadeiras poderiam vir a ser. Emprestando suas próprias palavras, Jairo enfrentava um mundo cujos contornos não foram desenhados para ele. Uma carga pesada para um jovem que já carregava as incertezas, dúvidas e anseios necessários para delinear todo um futuro. “As pessoas sabiam que com alguma oportunidade eu galgaria algum sucesso. Mas acho que havia sim um olhar diferenciado do professor pra mim. Sobretudo o professor que não me conhecia né, o professor novo e tal. Eu acho que havia um olhar diferenciado nas questões emocionais, embora isso não fosse uma prática”, diz Jairo quando convidado a pensar sobre as diferenças de tratamento e de expectativas depositadas sobre ele durante os anos colegiais. Nesse mesmo contexto, o jornalista afirma: “Acredito que o caminho é que a criança tenha pessoas em sua trajetória que o oriente e que o acolha de alguma maneira. É um aluno que tem lá suas peculiaridades, isso não é diferenciar. Isso é acolher, orientar e o papel do professor. Dar instrumentos diferentes para crianças diferentes. No ensino médio eu percebo que isso se acentuou, eu tinha professores que me viam ali como uma das possíveis estrelas da sala, essas bobagens assim”, destaca Jairo, que não compreendia as justificativas para quaisquer tratamentos desta natureza. 63


Jairo

Ao ser aberto um espaço para a discussão da questão da pessoa com deficiência, grande parte dos esforços se dá em análises de discursos. Quais palavras usar. De que modo se sentem mais representadas e menos ofendidas. Como prepará-las para um mundo que não lida bem com o diferente, ainda que mesmo os que se veem como iguais carregam um turbilhão de diferenças. Por outro lado, pouco é investido na preparação social para que o todo se adapte às diferenças. Colocando-se na prática, é visto como mais fácil ensinar o indivíduo com deficiência a se preparar com armaduras e uma “casca” cada vez mais grossa diante das intempéries do preconceito em detrimento de construir um discurso, desde a infância, que acate o diferente com maior naturalidade. Espaços cedidos são vistos como benevolências e bondades supremas. Procuro entender se havia esforços para construir discursos dentro de sua própria casa. Jairo conta que não havia grandes falas, discussões ou reflexões sobre a condição da deficiência. A luta era colocada e visualizada sempre na prática. Não seriam necessários conjuntos de enunciados para Jairo compreender o apoio da mãe, por exemplo. A labuta diária e o empurrar, que ultrapassa o literal, diziam por si só tudo o que era preciso ser dito. “Deus proverá”, é o que ouviu tantas vezes da mãe. O apoio era percebido nos traços do cotidiano, nas escolhas, adaptações, acolhimentos e escutas que faziam do lar um lugar seguro. Jairo e os mais dois irmãos, na pequena casa interiorana, aprendiam conceitos como solidariedade e entrelaçar de mãos, no mais puro exercício do viver. Jairo, naquela época, não precisou de grandes palavras. “Não tínhamos muitos instrumentos, em nenhum nível. A gente ia construindo as questões conforme elas apareciam. Tinha um certo assistencialismo, tipo fazer vaquinhas para as cadeiras de rodas. Não tinha muito a questão do direito. Era absolutamente diferente do que é hoje. Absolutamente diferente. A minha sorte é ter uma mãe que trabalhava no meio de educação, que sabia que aquilo era um instrumento importantíssimo para mim e que me incentivou a enfrentar as questões. Não havia um discurso de enfrentamento ou de falta de enfrentamento, era mais uma coisa natural da vida de ‘vamo que vamo’, sabe?”, explica com o cenário azul ao fundo. Em nossa conversa, dois cenários diferentes apareceram pela parte de Jairo. No início, o céu azul, com nuvens grandes que faziam com 64


O caminho possível

que sua cabeça ficasse no exato ponto médio entre elas, sem quaisquer sinais de chuva. No canto da imagem, percebia-se o pedaço de um prédio, com isso descobri que o local da conversa era a área externa de um condomínio. Jairo, segurando o celular de modo que seu reflexo fosse visto de baixo para cima, trajava uma camiseta laranja de golas. Os fones de ouvido, fiéis instrumentos no mundo regido por chamadas de vídeo, também apareciam na tela visível. Em determinado momento do diálogo, Jairo começa a olhar para o lado. As respostas mais vagas por alguns segundos. Logo descubro o motivo. Era Elis, sua filha, alcançada pela visão do pai. “Jéssica, vou desligar só um pouquinho, vou tirar minha filha da piscina e a gente já volta a se falar”. Foi o tempo do meu acenar com a cabeça e a ligação já se encerrava. Sozinha na sala da chamada virtual. Depois de uns goles de água, organizar das canetas da mesa que faziam parte do cenário do lado sul-matogrossense e mais uns minutos de aguardo, a mensagem de convite para a ligação já retornava à tela. Depois do clique em “Aceitar”, prosseguimos com a prosa. O fundo já era diferente. Um relógio na parede ao fundo, no que parecia ser o começo de um novo cômodo, com jeitos de cozinha devido à luminária presa ao teto. Mais perto de Jairo, consigo ver pedaços de garrafas de bebidas, organizadas em uma pequena mesa. Ao lado da mesa, uma espécie de quadro cinza, estampado por circunferências pretas em diferentes proporções. Quando Jairo move a câmera para trocar de fones de ouvidos - os primeiros falharam no meio da conversa, percebo uma cruz colada na parede. Mais tarde, durante a leitura de seu livro, descobri que Jairo gosta de colar em seus apelos falados e escritos a expressão com a “Nossa Senhora da Bicicletinha”, protetora de todos aqueles que dependem das rodas, em mais uma dose de humor que, nem sempre escancarado, se insere entre as redações de Jairo. Voltando a conversar sobre sua família, Jairo define a mãe como “mulher forte” que criou os três filhos sozinha, devido à morte do marido e pais dos filhos, do qual Jairo não guarda grandes lembranças. Entre as falas sobre a família, pergunto sobre a origem da paraplegia, buscando conhecer mais sobre as reações desniveladas pela família do jornalista que me recebia em sua sala de estar. Na Três Lagoas de 1975, Jairo contraíra o vírus da poliomielite, popularmente conhecida como paralisia infantil, doença infecciosa que pode ser acometida pelo contato direto ou indireto com outros indivíduos. No Brasil da infân65


Jairo

cia de Jairo, o vírus estava em ampla disseminação, principalmente no Centro-Oeste brasileiro, sem grandes campanhas de vacinação. A vacina é dividida em três doses. Jairo tomou duas. Aos nove meses de idade, entre idas apressadas e temerosas a hospitais, em Mato Grosso do Sul e no estado de São Paulo, Jairo perdeu o movimento dos membros inferiores e teve o braço esquerdo parcialmente afetado. Ele procura evitar suposições. Como estaria a sua vida se a terceira dose tivesse sido tomada? Não é uma pergunta que ganhe grandes proporções. A vida como ela é precisa ser acatada e vivida como é, afinal. Em seu relato, Jairo destaca que a grande raiz do problema estava centrada nas questões logísticas de não distribuição e informação na região considerada periférica no país: 3.596 crianças foram diagnosticadas com poliomielite no país no ano de 1975. Mais de quatro décadas depois, na semana de nosso diálogo, em outubro de 2020, a doença ganhava espaço de manchetes entre os jornais sul-mato-grossenses. Os títulos chamam a atenção para a queda da cobertura vacinal contra o vírus da poliomielite nas crianças de 12 meses a 5 anos de idade no estado. Apenas 36,37% da faixa etária foram vacinadas, até o momento da apuração, segundo o jornal impresso O Estado, com dados da Secretaria de Saúde (SES). No dia de escrita deste capítulo, 12.134 crianças entre 48.110 da capital haviam sido vacinadas. Em Três Lagoas, cidade de Jairo, 2.852 entre as 6.759, em termos percentuais 42,20%, estavam imunizadas contra o vírus.

O pensamento comum é que não tem “nada de mais” em dar uma ajudinha empurrando, carregando, conduzindo, apoiando, abrindo portas, dando uma licencinha, abrindo uma lata de sardinha. De fato, toda solidariedade e gentileza são dignas e necessárias, mas o exercício aqui é outro. Breve discurso sobre autonomia - Jairo Marques, 26 de junho de 2019.

A independência de Jairo fora sempre almejada e enxergada como possível, embora não houvesse a negação de que as condições objetivas e subjetivas dos lugares pelos quais passasse pudessem servir como lembretes de que tal inde66


O caminho possível

pendência fosse se apresentar de maneira mais dificultosa e, portanto, estabelecendo distâncias mais esburacadas. O acesso ao ensino superior, ainda no ambiente familiar, sempre foi apresentado como o modo de contato com maiores possibilidades, oportunidades e, em certo modo, para uma liberdade mais concreta. A mudança de Três Lagoas para a capital sul-mato-grossense foi planejada pensando exclusivamente na entrada para o ensino superior. O jornalismo, de início não surgiu como opção definitiva. Direito parecia ser a opção mais acertada. Jairo chegou a passar um tempo no terreno do “juridiquês”, em uma faculdade particular no interior paulista, hábito comum para os jovens de Três Lagoas, que aproveitam a localização do município na divisa com o estado de São Paulo - divisão marcada de forma física pela Usina Hidrelétrica Engenheiro Souza Dias (Jupiá), construída em 1974. “Precisávamos ter acesso à educação superior para ter uma vida melhor, para aprender, para galgar uma posição social melhor, isso era muito claro para nós. Muito claro pra minha mãe também”, diz Jairo, que depois da experiência no interior paulista, decidiu optar pelo Jornalismo na principal Universidade Federal de seu estado de origem. O interesse pelos textos, pela escrita e por todo o manejo com as palavras já vinha de tempos anteriores, entre os esboços criativos e as zelosas cartas de amor, nas quais parte da escrita foi aprimorada. Os professores do período do ensino médio perceberam o jeito particular de Jairo com a colocação de sua visão de mundo nas palavras escritas e logo o incentivaram na empreitada pelo universo da comunicação. Decisão tomada. “Aí a história surgiu…”, Jairo completa. “Foi apenas quando entrei na universidade, entre os dezessete e os dezoito anos, em meados da década de 1990, que me deparei com as duas situações até então inéditas para mim: ser visto pelos outros com mais naturalidade e menos curiosidade e ter noção de que eu tinha direitos a serem respeitados e postos em prática”. São as palavras de Jairo, inseridas em seu livro. Aqui, relata a transformação arraigada na experiência universitária, fonte de conhecimento que excedeu aos termos acadêmicos para fornecer o contato mais próximo com a realidade marcada pelos direitos que já lhe pertenciam. E com o reflexo de si mesmo, a partir de lentes diferentes. Lentes que lhe permitia enxergar suas próprias habilidades e especificidades a partir de um reflexo que começava a se locomover por terrenos menos desnivelados e mais abertos ao que poderia oferecer ao mundo. 67


Jairo

Ao chegar na Universidade, localizada na larga avenida de Campo Grande, Jairo se deparou com um lugar sem medidas de acessibilidade. Entretanto, reconhece que o problema não se manteve por muito tempo. Um engenheiro passou a ouví-lo e levar as requisições para a Reitoria. Jairo pôde participar inclusive do processo de preparação dos novos prédios, entrando em elevadores, usando as rampas e utilizando de outras medidas para garantir que os processos arquitetônicos atenderiam a outros alunos com deficiência de modo seguro e efetivo. Ele se recorda do nome da rua do seu pensionato, local onde morou durante a graduação, transparecendo o olhar de saudosismo dos tempos de universitário. A distância entre onde morava e o local dos estudos era de cerca de 4 km, percorridos pela cadeira de rodas motorizada. Velha companheira nas trajetórias da graduação. “Eu morava perto do hospital universitário, dividi um quarto com sei lá quantas pessoas, mas foi um momento muito simbólico, muito importante na minha vida. Quando eu cheguei na Universidade, essa história já é velha inclusive, foi tipo uma revolução porque a Universidade não tinha rampa e sabendo do meu problema colocaram esse engenheiro comigo para minimizar os impactos da falta de acessibilidade. Então, muitas das rampas que existem hoje, foi nessa época que foram construídas. Eles fizeram rampas da porta da sala de aula até quase na porta do pensionato que eu morava. Foi nessa época que muita coisa começou a acontecer”, destaca Jairo, que depois passa a relembrar as singularidades do trajeto acadêmico, que como de costume prevê uma série de novas descobertas. O contato com alunos com deficiência, embora modesto, ganhou certo incremento. Nos tempos de escola, os alunos que eram vistos como “especiais”, nunca foram apresentados de perto a Jairo. Ficavam “trancafiados”, usando suas próprias palavras. “Eu não sabia nem quem eu era, eu não tinha muita identidade como pessoa com deficiência. Não havia nenhuma referência. Era uma integração meio que a forças. Isso marcou a minha identidade até eu ir para São Paulo, pra você ter uma ideia”. Do período de graduação, consegue se lembrar de duas pessoas com deficiência. Um com cegueira e outro com tetraplegia. Nenhum em sua sala. O contato, todavia, já era maior do que aquele que lhe foi apresentado durante todos os seus dias até ali. “Mas não havia nenhum núcleo, por exemplo, de pessoas com deficiência, a questão da deficiência, da acessibilidade e da inclusão, também não existiam. Quando eu me mudei para São Paulo, aí sim foi 68


O caminho possível

um choque de identidade. Na universidade não havia discussões sobre acessibilidade, direitos da pessoa com deficiência, criar produção científica sobre, zero. E essas questões nascendo na universidade é muito recente”, conclui Jairo, que na época de discente participou de cerca de três iniciações científicas, processo no qual um aluno, com o acompanhamento de um professor, se envolve na produção de pesquisa científica sobre determinada temática. Jornalismo policial e o jornal laboratório do próprio curso foram uns dos temas escolhidos para a pesquisa de Jairo. Pergunto se durante a graduação a ideia de ingressar no mestrado não se fez como uma opção plausível. Jairo diz que sim, mas que a vida foi tomando outros rumos. Apesar de não saber ao certo como se encaixaria a rotina exaustiva de estudos de uma pós-graduação na agitada vida nas redações, Jairo afirma que não exclui a possibilidade dos planos futuros. “Vem aqui falar oi para ela direito, minha filha”, diz Jairo entre a resposta de mais uma pergunta. A pequena Elis então aparece rapidamente, dizendo um “oiiii”, com a extensão da letra “i” que refletia a sua animação. A menina, chamada de “biscoita” em vários dos textos do pai, aparece no canto da tela ainda com os cabelinhos molhados, resultado da manhã na piscina. Elis, no auge da alegria de seus cinco anos, é matéria recorrente de inspiração para os escritos do jornalista. A tentativa é a de por meio das experiências particulares, com relatos do cotidiano, as vivências sirvam de instrumento para abordar questões que remetem ao coletivo. Jairo me explica que a presença da filha nas suas produções jornalísticas vai além de “escrever sobre sua fofice”, mas de construir experiências que, de certo modo, possam valer para todos. Depois, descolamos-nos mais uma vez do presente e voltamos para os tempos da graduação, finalizada no meados da década de 90. “Jairo, quais são as suas melhores memórias do tempo de faculdade?”, é a pergunta feita em meio ao diálogo na sala de estar. Um “nossa!”, seguido por um “caramba”, e uma leve reticência são os primeiros esboços de reações vindas de Jairo, que a essa altura já escancara um sorriso diante da tarefa de seleção de memórias positivas. A primeira namorada, a viagem para um congresso no Rio de Janeiro, ao lado dos dois fiéis amigos Marina e Heric, que hoje também vivem em São Paulo, o momento de construção do Jornal da turma, chamado “Paredão”, responsável por arrancar ávidos suspiros de inquietação e curiosidade, partes do chamado “faro jornalístico”, 69


Jairo

típicos das engajadas classes de Jornalismo. Na experiência, o jornal era feito em cartolinas, que permanecem coladas nas memórias afetivas de Jairo, com as fitas adesivas permanentemente envoltas pela saudade e apreciação de um tempo que faz surgir efeitos até os dias atuais. “A gente era muito inquieto”, é como Jairo tenta definir a turma da qual fez parte. A distribuição dos exemplares unem-se aos melhores momentos. O instante em que as produções avançam pelos olhares desconhecidos. Geram respostas, críticas e fazem nascer o contato com o público. “Adeus meus ais saídos, dos dias doidos, dias doidos adeus. Há dias só dias sadios. Há dias só dias sábios. Dias doidos adeus. Dias doidos adeus”. As palavras, que encaixam-se em poucas linhas, cabem toda a mensagem trazida pela música interpretada por Tetê Espíndola, lançada aos ouvidos do público em 1996, dois anos antes de 1998, ano da formatura de Jairo. A canção foi a escolhida para a sua entrada, acompanhado de sua mãe, rumo ao dia que marcaria o término de um período importante para a construção de uma profissão e de uma identidade. Ou pelo menos, parte significativa da mesma. “A formatura foi um momento muito legal, muito forte. Eu entrei com minha mãe, então foi uma coisa muito simbólica e importante. Eu gosto dessa música até hoje”, completa Jairo. Após ler seu livro, percebo que também se aventura pelas músicas de Caetano. “Sozinho”, porém, Jairo não se classifica. Inquieto, segundo ele mesmo, com o chamado interno de jamais ficar parado, faz questão de assumir seu lugar na luta constante de poder viver a sua individualidade de modo pleno. Mas também se vê cercado por um coletivo forte de pessoas que o acompanham no trajeto de descobrir-se por inteiro.

70


O caminho possível

Dessa forma, cabe às empresas, aos comércios, às rodas de amigos, às internets, aos banqueiros, aos jornalistas, aos médicos, aos influenciadores, aos donos da rua, às ruas compreender que um montão de gente ainda aguarda para curtir os sabores de levar a vida como bem quiser, aqui, neste mundo mesmo. Mais do que isso, cabe aos múltiplos agentes sociais a movimentação necessária de seus pares em busca de mais cores, além do preto, do arco-íris e do rosa, todos absolutamente legítimos, mas que não formam a aquarela humana completa. Lei Brasileira de Inclusão faz cinco anos, ainda cambaleia e clama por apoio social - Jairo Marques, 07 de julho de 2020.

A chegada na Folha de S. Paulo demandou algumas adaptações na redação, local de trabalho para os jornalistas do veículo. Jairo explica que não foram necessárias muitas adaptações e que não demoraram muito tempo para serem efetivamente concluídas. Depois do período como repórter nacional, de madrugadas e plantões, Jairo começou com o blog. Um espaço específico dentro do jornal, com uma nova linguagem de capaz de alcançar um público que, em grande parte, não estava entre o público do jornal em sua versão impressa. Com o tempo e diante do crescimento do apelo popular e da relevância em se tratar de temáticas relacionadas aos direitos humanos - inclusão e acessibilidade, que se tornaram uma das expertises de Jairo que chegou a fazer uma pós-graduação em Jornalismo Social em uma das faculdades paulistas. O alcance do blog crescia, comunidades de leitores contínuos iam se formando, assim como a confiança creditada ao jornalista para seguir com coberturas mais completas acerca dos temas trabalhados. Alguns dos trechos em destaque neste capítulo foram retirados da coluna “Assim como Você”, escrita por Jairo para a Folha de S. Paulo. A coluna aborda questões ligadas aos direitos e vivências de pessoas com deficiência, mas não se restringe a esse universo. São contadas sobretudo histórias sobre cidadania, que para Jairo é parte fundamental do bem-estar de todo e qualquer ser humano. Nos seus textos, são oferecidos sobretudo um olhar de apoio e atenção aos dilemas plurais que cercam o viver cotidiano de personagens múltiplos, ou ainda, dele mesmo. Usando o singular para tantos outros. O resultado pode ser 71


Jairo

visto de maneira explícita nos próprios comentários de suas publicações. São dezenas de manifestações de pessoas com deficiência, seus familiares, apoiadores das temáticas sociais, que carregam em comum a identificação com o jeito de Jairo apresentar o olhar informativo e opinativo sobre o mundo que os cercam. São elogios, agradecimentos e, por vezes, olhares emocionados de uma audiência diversa. Atenta a cada linha. De início, Jairo cita uma data que acredita ser a do início da coluna. Alguns segundos depois, faz uma alteração. “Só um minutinho. A minha mulher me informa corretamente que minha primeira coluna foi dia 25 de maio de 2010. Ou seja, faz dez anos que sou colunista. Muito mais do que eu te falei. Véio”. Jairo me conta sobre suas outras experiências profissionais, como o período em que ministrou aulas no curso de Jornalismo da Universidade Metodista de São Paulo, considerada como um dos mais importantes centros de ensino em comunicação no país, onde ficou por cinco anos. O trabalho como professor é definido por ele como uma experiência forte com a educação. Foi um tempo de trabalho intenso e de múltiplas jornadas, mas que conferiu mais uma carga importante para a bagagem como jornalista. Em uma das aulas, uma boa surpresa. Uma aluna com paraplegia estava entre os alunos, e ali, simbolizava a esperança de um mundo mais plural. “A inserção da pessoa com deficiência no mercado de trabalho só começou a acontecer na Lei de Cotas, isso de maneira objetiva, organizada e mais ou menos numerosa. Antes disso eram iniciativas muito pontuais e de pessoas extremamente esforçadas que encaravam a falta de condições de qualquer empresa. O acesso ao emprego para pessoa com deficiência é algo revolucionário. Muda suas relações sociais, oferece condições de ter acesso à mobilidade, a mais conhecimento e a maiores possibilidades. “Todas as pessoas com deficiência que eu conheço que tiveram acesso ao trabalho, tiveram mudanças muito, muito, muito importantes nas suas vidas. O contrário disso é o peso social. A gente vai gerar pessoas que vão ter uma demanda muito grande de assistência, e essa assistência vai gerar um custo que vai ser pago pela sociedade”, defende Jairo, que argumenta sobre a evolução das legislações sobre a pessoa com deficiência. Para ele, as maiores problemáticas que persistem por ser enfrentadas não estão ligadas as lacunas presentes nas leis. “As leis estão feitas”, diz ele, o que continua a passos lentos é a consciência social. A primeira experiência profissional de Jairo, ainda na graduação, foi o trabalho em um jornal local, um dos “jornais de bairro” típicos do 72


O caminho possível

período na capital, e que precisavam ser distribuídos aos finais de semana na Afonso Pena, principal avenida do município. “Ainda distribuem esses jornais nos domingos?”, pergunta, mostrando a curiosidade pela rotina da cidade que não visita com a regularidade que gostaria. A própria Três Lagoas, onde está a mãe e o restante da família, ainda não havia sido visitada por ele durante o período da pandemia, que no momento da nossa conversa, se estendia de março até outubro. As distâncias se tornaram maiores. Jairo diz que os debates acerca das condições de inclusão no mercado de trabalho costumam ser um dos tópicos abordados em suas palestras. Ou, ainda, de suas lives, pensando no mundo aos moldes das particularidades de 2020. “Muitas vezes quando a gente leva esse tipo de discussão é como se o oceano estivesse sendo aberto para que as pessoas cruzassem. Não há muita consciência de como funciona uma pessoa com deficiência no mercado de trabalho, no mundo laboral. Os estigmas, estereótipos e preconceitos ainda são muito presentes, muito latentes”, pontua o jornalista que vê nesses elementos, o atraso para a real inclusão. O lugares alcançados por Jairo são vastos, indo desde experiências profissionais e escolas de Jornalismo, como a concorrida escola de Gabriel García Márquez, na Colômbia, coberturas de paraolimpíadas em Londres, ou até mesmo, passando pelas aventuranças no cenário das histórias infantis. Jairo participou como colaborador em edições da revista de quadrinhos da Turma da Mônica e aparece em sua rede social ao lado do criador, o cartunista Maurício de Sousa. As edições são focalizadas nas histórias de Luca, um dos personagens com deficiência que aparecem entre as páginas das tradicionais aventuras da turma do bairro do Limoeiro. Em suas redes sociais, Jairo divulga orgulhoso o resultado das colaborações e celebra o sucesso vindo dos comentários dos leitores. Apesar dos lugares conquistados serem enxergados com alegria, sempre há espaço para os elementos simples de casa. De reviver o pedaço de si inteiramente ligado às raízes que permanecem fincadas nos solos pantaneiros. Regadas pela saudade. “São Paulo é uma cidade muito dura. A consciência coletiva aqui é muito diferente. Os mecanismos para você ser cidadão aqui são muito diferentes. Eu sinto uma certa nostalgia da vida de Campo Grande. De ir à feira comer sobá, de tomar tereré, de ter menos velocidade. De ter preocupações talvez menos duras. Aproveitei e aproveito muito a cidade, aqui tive minha filha, casei, mas é uma sensação dúbia”. O espaço escolhido para o aprofundamento de suas experiências, opiniões e 73


Jairo

olhares sobre si e sobre o mundo foram transportados para livro. “Malacabado - A história de um jornalista sobre rodas” é o título que recebeu a obra que carrega já no título parte da personalidade do autor. Não apenas pelo direcionamento da presença da deficiência, mas pelo humor e criatividade inerentes ao escritor. O termo “malacabado”, que teve o hífen dispensado por Jairo, o fez receber críticas duras. Diziam que ele mesmo estava trazendo um tom de mau gosto à temática das pessoas com deficiência. Mas Jairo é adepto das provocações, dos neologismos, e faz das palavras terreno de apoio para potencializar suas narrativas. O livro como um todo é uma experiência completa, de arrancar risadas e fungadas aos mais sensíveis. De fazer pensar, questionar e que abre espaço para a autocrítica para quem lê disposto a reconhecer suas próprias limitações. Jairo tem mesmo o tal jeito com a escrita, já reconhecida nos tempos de escola da pequena Três Lagoas. Lançado em 2016, o livro foi adquirido pela Prefeitura de São Paulo para passar a integrar as prateleiras de todas as bibliotecas públicas da capital. Um marco importante para a inclusão. As sementes lançadas por meio da leitura não podem ser contabilizadas por inteiro. Jairo acredita que os frutos, as novas construções de pensamento e o espaço melhor construído em prol da acessibilidade serão vistos com o passar dos anos. Para ele, as turmas de formandos carregam em parte o compromisso maior com o debate das temáticas. No futuro, veremos os resultados da inserção dessas “novas” mentes no mercado de trabalho. Há lugar para a esperança. Embora o caminho ainda seja longo, ele está em construção. Os escritos de Jairo, em grande parte, podem servir como um convite para os dispostos a ajudar a pavimentá-lo. Quem o lê, passa a ler o mundo por novos contornos. “Jairo, para terminar, consegue me dizer o que o ensino superior significou para você?”. O silêncio dura por pouco tempo. “Foi um divisor de águas total. O ensino superior me deu a ferramenta fundamental para que eu tivesse ali condições para cavar um mercado de trabalho. Disso eu não tenho a menor dúvida. Na minha época de faculdade, a gente também fomentava muito as discussões, a gente era muito curioso. Eu fui tentando nutrir ali a questão intelectual que de alguma maneira me deu bagagem para que eu tivesse um espaço no mercado de trabalho”, completa o jornalista. Jairo, se olhado de relances, transmite uma visão muito prática do mundo. Que pode até ser 74


O caminho possível

vista como dura por alguns. Segundo ele, é bagagem que veio da mãe. Entretanto, sobressai o olhar que acolhe ao que exclui. Os espaços para os diálogos que ampliam aos que reduzem. Algumas palavras inventadas na tentativa de registrar um olhar próprio para as questões do mundo. A alma não precisa ser malacaba. É o que Jairo diz. Nas entrelinhas, é feito um convite para sermos inteiros. A começar pela forma com a qual olhamos. Reconhecer a existência de particularidades que demandam diferentes adaptações não é fornecer privilégios. Jairo carrega com alegria a marca de ter publicado temáticas ligadas à inclusão em todas as editorias do jornal. Com isso, mostra que a temática carrega interesse público e os demais critérios de noticiabilidade. É um espaço a ser explorado. Para ele, estamos em construção. Que no futuro, possamos vislumbrar as estruturas construídas a partir de um solo menos desigual. Com superfícies menos esburacadas. Com planejamentos que excluem a necessidade de remendos. O enfrentamento nasce para assumir formas coletivas. Não estamos olhando para heróis. Que enxerguemos como seres humanos.

75


FOTO: ARQUIVO PESSOAL

Gisele

76


caminho para construir um mundo de direitos vividos

3

De todas as tarefas essencialmente humanas, talvez, a mais difícil seja a de se auto definir. Mesmo assim, tal incumbência é comumente requisitada, encontrada pelos questionários, conversas soltas e testes de personalidade. Vivemos tentando definir a personalidade que carregamos para depois, entendermos, uns mais cedo, outros mais tarde, que vamos viver nos definindo, não por inteiro e de modo definitivo, mas de um jeito perene, que ainda assim, muda a todo instante. As definições acabam por ora, a funcionar como pequenas caixas organizadoras, fornecendo sinalizações mais claras e definidas de onde devemos e como podemos nos encaixar, ora funcionam como espaços limitantes que descartam a multiplicidade que, essencialmente, já é intrínseca ao turbilhão de definições pouco organizadas do que é ser humano. Coisa de gente é se redescobrir. A personagem deste perfil se recusa a aceitar coisa de pobre como sendo tudo o que um pobre pode ter. Muito menos, tudo o que ele pode ser. O mundo é mesmo estranho, reduzindo o que é grande a uma série de pequenezas, ou como diz Matilde Campilho, poetisa portuguesa que é alvo de sua admiração, o mundo está tremendamente esquisito.

77


Gisele

Na rua, a escola

Para a família de Gisele, personagem central deste perfil, o bem transformador e de fato, insubstituível, nem mesmo pelas raízes firmadas em solos pantaneiros, era a educação. Artigo de luxo em meio aos solos terrosos e fartas plantações para a mesa de fim de dia, e onde a labuta ardia de sol a sol. Por ela, valeriam as mudanças de toda uma vida. Reaprender a sobreviver para poder conhecer. Seriam substituídas as árvores frondosas, assim como o chão batido, o som dos pássaros e o medo dos felinos quando a lua subia ao céu. Tudo, pelas palavras. Ali, na coragem de se despedir do que já era conhecido pelo o som da cidade grande, se mostrava o verdadeiro desenvolvimento. Não pelo contato com a civilização, mas pelo o que a família do pai argentino, mãe mato-grossense e os oito irmãos já construíram em si mesmos. “Eu nasci em Corumbá, mas vim para cá com um ano de idade, então eu me considero campo-grandense. Viemos porque meus irmãos estavam ficando mais velhos e a minha mãe queria trazer eles para estudar. Saiu todo mundo da fazenda, onde meus pais trabalhavam,para a ‘cidade grande’ para os filhos poderem estudar”, diz Gisele, que lembra do êxodo vivido pela família na década de 1980. Ela divide a imagem de caçula com sua irmã gêmea, Gislaine. Ao longo da entrevista, percebo que compartilha também com a irmã os momentos mais significativos. Nas falas de Gisele, moram poucos substantivos no singular. Já os coletivos, que geralmente incluem a irmã, são abundantes. “Meu pai era da Argentina e com 14 anos fugiu do país por vir de uma família muito violenta e foi morar em Corumbá. Conheceu a minha mãe, que se casou com 15 anos, super novinha. A minha mãe é negra e meu pai é bem branco.Ela não estudou, cuidava dos outros irmãos e meu avô dizia que ela não precisava estudar. Ele era daquelas pessoas que moravam em fazenda, que trabalhava só no mato e falava que ela não precisava estudar. Que não tinha necessidade de uma mulher aprender a ler, escrever, essas coisas. Minha mãe nunca foi para a escola. Já meu pai estudou até a quarta série”, destaca a ausência da trajetória escolar dos pais que deixaram para trás as terras pantaneiras com o único objetivo de fazerem os filhos estudar. 78


O caminho possível

Ainda em Corumbá, a mãe cozinhava para os outros peões que trabalhavam na fazenda, o pai cuidava das terras, animais e outros serviços braçais típicos da vida no campo. Gisele diz que a região era isolada, sem quaisquer escolas por perto. Venderam os bichos, as criações e o que quer que possuísse algum valor. A empreitada agora era a ida dos dez pantaneiros para Campo Grande, terra com escolas, asfalto e desafios ainda desconhecidos para a família. “O meu pai tinha um ou outro conhecido, pessoas com quem já tinha trabalhado, que foram facilitando a vida dele. Ele conseguiu uma casa que era perto da escola, tanto que a minha casa é na rua da escola. Tem até hoje, Licurgo de Oliveira Bastos, onde todo mundo da minha família estudou. Então, eu moro aqui há 34 anos, na mesma casa. Ele já pesquisou uma casa perto de escola. Era só pra isso mesmo, pra gente poder estudar. Esse sempre foi o objetivo da minha família toda”, conclui. A vinda para Campo Grande foi marcada pela rotina trabalhosa, que passou a ser destinada aos pais e aos seis irmãos mais velhos. Viver apenas estudando, não era uma possibilidade alcançável diante da realidade socioeconômica da família. “Essa coisa ‘ah, é só lutar’ é bem difícil né? Meus irmãos trabalhavam e estudavam. E quando eu digo trabalho, não era coisa leve e no ar condicionado. Era no sol, trabalhando na horta perto de casa, o dia todo, para a noite ir para a escola. As minhas irmãs trabalhavam de doméstica ou cuidando de crianças. Foi como acontece em todas as famílias com uma classe menos favorável, os mais velhos vão trabalhando para ajudar a criar os mais novos”, Gisele diz, evidenciando o desapreço por discursos que colocam no esforço o único elemento para o sucesso. Depois de um tempo, os irmãos não conseguiram manter a jornada dupla de estudo e trabalho. Tiveram que optar por aquilo que possibilitaria a ajuda financeira para os pais, os estudos precisaram ser colocados em segundo plano, para infelicidade da mãe que via no saber. A fonte de maior liberdade para seus filhos. “Era muito difícil, pensa como é trabalhar o dia inteiro no sol, colhendo alface, plantando alface, carregando caixas, e a noite você estudar. Tinha dia que não dava tempo de ir pra escola porque chegavam do trabalho tarde. Ou, porque não tinha roupa pra ir. Então, tinham as dificuldades de acesso ao ensino infantil. Depois de muito tempo a minha irmã mais velha concluiu o ensino médio, mas não fez faculdade”, explica. Ela ainda comenta que era a época escolar onde o Governo Federal havia instituído como obrigatório o ensino médio profissiona79


Gisele

lizante, decretado a partir da aprovação da Lei 5.692, no movimento que se tornou conhecido como uma reforma no ensino médio. Em resumo, as escolas brasileiras deveriam fornecer o certificado de cursos técnicos profissionalizantes para todo aluno no término do ensino médio, na época conhecido como “2° grau”, exemplos de cursos eram o magistério e contabilidade. Na época, a justificativa trazida pelo governo, em meio à ditadura do regime militar, era a formação de novos profissionais, necessários aos postos de trabalho nacionais. Atualmente, a tese mais defendida pelos estudiosos da educação é que a medida se deu pela tentativa de reduzir a entrada no ensino superior. De fato, a lei que data de 1971 conduz efeitos que se mostram visíveis ainda nos dias contemporâneos, diante do contingente de pessoas, principalmente integrantes das camadas mais vulneráveis, que se distanciaram da entrada no ensino superior. Em nossa conversa, mais uma vez virtual, assim como as outras que compõem este livro-reportagem, acontecida numa manhã de outubro, pergunto se Gisele se recorda da incidência de queixas pelos irmãos mais velhos, diante da dificuldade em manterem-se matriculados na instituição de ensino municipal. A lembrança do irmão, o único homem em meio às sete irmãs, é a primeira que surge. Em todo o tempo, a relação que marca o elo forte entre os irmãos é recorrente em nosso diálogo. Ali, eram as memórias dos irmãos que em conjunto possibilitaram que as gêmeas tivessem espaço para a esperança. Esperança que veio em forma de livros. “Primeiro, ele começou trabalhando nessa horta. Depois de açougueiro, em uma indústria. Desde muito pequeno ele já trabalhou em muita coisa na vida. E ele ficou por muitos anos lá, ia de bicicleta né, porque a gente foi ter veículo depois de adulto formado. Acordava de madrugada para ir, porque tinha que entrar cinco horas da manhã no serviço, e era longe pra caramba, chegava em casa de noite. Ele ia de bicicleta porque eles davam uma ficha que era aquela que tinha um buraquinho no meio para pegar o ônibus. Ele pegava aquelas fichas e dava para minha mãe, que trocava por pão e coisas no mercado pra gente. Era um período que eu falo que as pessoas não lembram, era o governo do Fernando Henrique Cardoso. As pessoas não tinham poder aquisitivo para nada, o que elas ganhavam era para comer, e não era pra comer bem, coisas caras, era pra comer o essencial”, completa. Quando fala sobre as irmãs mais velhas, Gisele relata as pressões

80


O caminho possível

vividas por aquelas que trabalhavam com serviços domésticos. Alguns dos seus sobrinhos precisaram passar a maior parte do tempo com a avó devido à carga horária extensa praticada pela mãe. Gisele diz que hoje, em comparação com as realidades anteriores, a classe das domésticas conquistou direitos importantes. Entretanto, esses ainda eram distantes do cotidiano vivenciado pelas irmãs. O lamento é perceptível na voz da caçula, que se compadece pelas condições que precisavam ser aceitas, diante da impossibilidade de maiores escolhas. A casa da rua da escola foi lar dos oito irmãos até cerca dos 15 anos de Gisele. Depois, os irmãos foram dispersos por outros caminhos, mais distantes do lugar que agora, já era lar. “Na casa, ficamos eu, a minha irmã gêmea, a minha outra irmã que chama Norma, e só. Hoje em dia moramos só nós três. Meus pais que moravam com a gente foram “sem terra” durante muitos anos, aderiram ao Movimento Sem Terra e no ano retrasado conseguiram por meio do governo uma terra. Hoje, eles moram lá mas pagam para o banco. Eu e minhas irmãs ficamos na casa onde sempre moramos, que aos poucos a gente mudou, conseguimos depois de formadas. Antes era toda de madeira, e conseguimos ir arrumando”, ela diz. As irmãs gêmeas seguravam por si mesmas a cobrança de que, um dia e durante toda a vida, conseguissem retribuir aquilo que receberam dos pais e de seus irmãos mais velhos. Ao contrário dos demais, não precisaram trabalhar enquanto estavam nos anos da educação básica. Ainda assim, não foi uma infância livre de dificuldades. Entretanto, as irmãs receberam a chance de poder enxergar no futuro, sempre com a educação, a possibilidade de mudança. E, por isso, seriam sempre gratas. “Hoje eu tenho sobrinhas que fizeram faculdade e já terminaram, mas eu e minha irmã gêmea fomos as primeiras da família a ter ensino superior. Não tinha ninguém com o ensino superior, a gente não nasceu nessa sociedade que as pessoas já tinham essa realidade, geralmente as pessoas da periferia não têm”, e conclui dizendo que ajudar aos pais é o mais próximo de retribuir o que receberam.

81


Gisele

Da luta, não me retiro

As cinco palavras, separadas em duplas por uma vírgula, expressam a mensagem que Gisele se importa em fazer ecoar como uma das mensagens centrais acerca de sua personalidade. Ou, para explicar melhor, acerca das lentes que enxerga a vida. Quando converso com ela, as marcas deixadas pelas lutas não aparecem de modo imediato. Gisele é alegre, ri alto. O celular que segura nas mãos e que permite a ocorrência do nosso conhecimento, sempre treme, tamanha a intensidade do riso. Sorrir, produto de estado de alegria, não costuma ter cara de pobreza. “Alegria de pobre dura pouco”, tenta constatar o ditado popular. Mas Gisele insiste em sorrir.

Há quem possa dizer que tal alegria é resultado das mudanças dos últimos anos, resultado do ensino superior e das oportunidades que galgou ao longo da vida e, em parte, é uma explicação plausível. Única, porém, não parece, já que o riso de Gisele tem jeito de antigo, morador de longas datas. O pobre, menos do que por quem é, mais pelo o que o permitem ser, tem motivos para chorar aos montes. Entretanto, talvez pela sua experiência com o manejo das tristezas, aprende a construir em si e nas esquinas da vida a alegria que dura. Como a que vejo em Gisele, ao me dizer que, hoje, já não tem mais vergonha de nada. Não foi sempre assim, garante-me. Por vezes, já evitou pedir favores mesmo em momentos extremos, mas não achava voz. Ou não tentava encontrá-la. Hoje, a encontrou e nisso, achou também uma parte a mais do que é ser Gisele. Uma parte de quem é. Fernando Pessoa, em um dos seus heterônimos, dessa vez na voz e nos “dedos poéticos” de Ricardo Reis, diz sobre a realidade de existir na grandiosidade de quem é, pequeno e vasto. “A realidade sempre é mais ou menos o que nós queremos. Só nós somos sempre iguais a nós-próprios. Suave é viver só”, é o que atesta o eu-lírico do poeta português que costumava escrever palavras requintadas. 82


O caminho possível

Gisele também não se retira do compromisso de ampliar a voz dos discursos que minam o alcance da intolerância, do preconceito e da ausência de direitos garantidos. Traço que a acompanha desde cedo, influência da própria família, que também não tolera injustiças. Com mais de três décadas percorridas, a corumbaense de nascimento e campo-grandense de vivências não permite flexibilidades que prejudiquem o bem-estar do outro. Enxergá-lo é sempre uma tarefa grande, já que sempre existe a vida que ninguém vê. Amante das músicas da Legião Urbana, banda de Renato Russo, concretiza uma das canções, “Já não me preocupo se eu não sei por que, às vezes o que eu vejo quase ninguém vê”. Se ela fingir que não vê, estaria mentindo, e como diz a mesma canção, mentir para si mesmo é sempre a pior mentira. Gisele é adepta às verdades. Das mais reais. “Mesmo meus pais não tendo acesso, eles sempre foram pessoas mais ligadas a esse lado, das injustiças, de não ter preconceitos, de não aceitar. A minha mãe fala que hoje eu sou muito briguenta, mas não tem como não ser. Como que vai ficar quieto?”, ela me explica com o tom de voz mais firme. Os pais, engajados em questões políticas, deixaram o legado na filha que, hoje, decide não se calar. Mais do que isso, escolheu uma profissão que se dá em não permitir outros silenciamentos. Formada como bolsista por meio do Programa Universidade para Todos (Prouni), Gisele é assistente social. No mundo que tende a caracterizar pessoas pelo o que fazem, desempenham ou produzem, pergunto o que ser assistente social diz sobre quem é Gisele. E enxergo na indegação a possibilidade de conhecer mais uma entre as camadas que integram quem é Gisele. Em resposta, ela me diz que é sobre a parte de quem assume a postura de garantir a execução de direitos. Existir não é suficiente, precisam ser acessados por aqueles que precisa e que em demasiados casos, nem sabem que podem alcançá-los. Gisele quer ser ponte. “As pessoas no geral, as que são menos favorecidas ou em vulnerabilidade, sempre acham que estão pedindo um favor para o estado, prefeitura, ou para qualquer coisa. Então, quando vão na saúde, elas falam ‘por favor me atenda’. Ou quando vão na escola, e querem um ensino de qualidade, falam “é assim mesmo, vamos deixar assim mesmo”. Ser assistente social é dizer para as pessoas que elas têm direitos, que precisam acessar esses direitos e que eles precisam ser de qualidade. O Estado não está fazendo mais do que a obrigação. Esse serviço precisa ser de qualidade”, e, assim, Gisele se apresenta. 83


Gisele

Era manhã de um dia ensolarado entre dois chuvosos quando a conheci. Os cabelos lisos, penteados de maneira que não deixa perceptível nenhuma divisão entre o couro cabeludo, no comprimento, médios. Cor, pretos bem pretos, como se diz. Tento reparar nos objetos ao seu redor, sem grande sucesso. Pelo enquadramento da tela digital, funcionando como íris que permite que a imagem chegue e se reflita para mim, percebo uma parede branca, o pedaço de um sofá que tem uma pequena parte coberta pelo o que parece um pano vermelho, e Gisele posicionada ao centro. No rosto, não há adornos complementares. Depois de um tempo, percebo que há resquícios de um cabelo recentemente molhado, o que explica o rosto em aspectos naturais. Depois, quando acesso seu perfil em uma rede social, descubro que gosta de batons em tons vermelhos. Mas ali o único ponto de cor trazido em sua imagem era o azul marinho da blusa de mangas curtas complementado por listras brancas. Nos primeiros segundos de nossa conversa, enquanto faço a primeira pergunta, ela responde em voz alta algum questionamento que não consigo compreender, feita por alguém que parece aparecer no mesmo cômodo. Continuo a pergunta, a voz ao fundo retorna. “Desculpa, espera só um pouquinho”, e quando vejo, o celular já foi parar no colo de Gisele. O ângulo desajeitado revela que o que achei ser blusa, era um vestido de listras, assim como relembra a imprevisibilidade dos diálogos feitos a distância, tão sujeitos ao mais comum cotidiano. Uma lonjura que também sabe ser próxima, já que com um único toque e poucos segundos, lá está você em um dos cômodos desconhecidos. Entre quedas de sinal e latidos dos cães vizinhos. E ouço, no puro exercício do verbo. Tento ouvir o menos possível a partir do que vejo e mais do que Gisele permite que eu conheça. Ali, conhecia a assistente social, a irmã, a tia, a funcionária pública, a filha do Pantanal, amante da cidade, e das chácaras aos finais de semana, hora de renovar as energias. Descubro que admira Malala, a menina indiana conhecida mundialmente por definir a educação com toda a sua vida. “Eu sou Malala - A história da garota que defendeu o direito à educação e foi baleada pelo Talibã” é o livro que Gisele me recomenda a leitura. Com isso, como tudo o que é revelado estima e apreço, desvela-se mais sobre o sujeito que diz. “Pronto, pode falar”, diz retornando o celular para a posição original. Prossigo com a pergunta, a primeira sobre sua origem de nascimento, logo depois de explicar o propósito do livro-reportagem e 84


O caminho possível

portanto de nossa conversa. Ela sempre concorda com a cabeça com veemência e esboçando reações, a primeira impressão, daquelas que dizem mais do que as que conseguimos só por olhar, é que Gisele parecia prestar atenção de maneira atenta. Entre as respostas, os engajamentos social e político se misturavam ao humor sempre presente entre as brechas dos pensamentos. Depois, vejo que nas redes sociais Gisele é adepta ao compartilhar de memes e tirinhas de humor, como a que é a capa de seu perfil. Na ilustração de Maurício de Souza, os personagens aparecem se movimentando às pressas, descabelados e dizendo repetidas vezes: “O que está acontecendo?”, “Eu não sei”. A imagem que trata o desconhecimento de explicações razoáveis para o que se dá no mundo com humor e descontração é combinada à foto de perfil de Gisele, que traja a máscara usada para prevenção contra o vírus que se espalha no ano de nossa entrevista, cercada pelos dizeres: “Em defesa do serviço público. Contra a Reforma Administrativa”. Ali, os dois lados de Gisele, que sempre abre espaço para as sátiras e zombarias, sem perder de vista o enfoque nas causas que defende. “Gisele, você tem algum lema de vida?”, pergunto, buscando conhecê-la mais, agora pelas palavras de outros. “Olha, eu tenho”, declara, e prossegue:“Eu gosto muito, nem sei de quem é, mas é: ‘Conheça o mundo, mas jamais esqueça do quintal da sua casa’. É de onde vem as coisas, da sua ancestralidade. Muita gente antes de você contribuiu para quem você é agora, muita gente trabalhou, suou, para você poder estar onde está. Você tem que honrar isso. O quintal da sua casa é onde as pessoas deixaram o suor delas pra você ser quem você é”, diz da sala de estar.

85


Gisele

Vai, levanta e anda

“Quem costuma vir de onde eu sou, às vezes não tem motivos pra seguir. Então levanta e anda, vai, levanta e anda. Mas eu sei que vai, que o sonho te traz coisas que te faz prosseguir”, é o trecho da música que Gisele intitula como uma de suas favoritas, daquelas que te fazem pensar, é o que me diz. A canção por inteira relata o ponto de vista periférico, o viver em meio ao ódio, e o levantar como saída. “Irmão, você não percebeu que você é o único representante do seu sonho na face da terra”, é o que canta Emicida, em outro trecho da música que soa como poesia.

Para entender a trajetória de alguém pelo ensino superior, prefiro começar pelo começo. Assim, nessa simples repetição. Vale ouvir as quedas e as vezes levantadas. Os conselhos que decidiu guardar e, em grande parte, as críticas com as quais precisou lidar. A passagem pelo ensino superior certamente não chega ao fim deixando a quem entrou no mesmo lugar de ser e de estar, em diversos sentidos. O meu preferido é o de que saímos sabendo mais e menos ao mesmo tempo. Aprendemos para também sermos capazes de desconhecer. Entramos em contato com respostas, mas com dúvidas. Nem sempre agradáveis. Já que nem todas resolvem-se nos livros demarcados com códigos exatos, dispostos na biblioteca. Antes de procurar descobrir as dúvidas da versão universitária de Gisele, interesso-me pelas mais antigas. Voltamos para o tempo do ensino médio, onde o processo de descobrir o seu espaço e, em parte, sua função no mundo, se dá de modos distintos a partir das realidades que muitas vezes mostram duras discrepâncias. “Como a gente era aluno de periferia, os professores nunca achavam que a gente fosse ser alguém, sabe? Então, eu acho que eles pensavam ‘Ah, vai terminar por terminar, vai ser mais um aluno aqui e pronto, depois engravida, vai ter cinco filhos e vai ter essa vida que todo mundo tem’ que muitos acham que todo mundo tem que ter. Que é a estatística. A gente não se recorda, sempre falamos isso, de ter falado como entrar em uma faculdade federal, por exemplo. Nós não sabíamos que era pelo vestibular, terminamos o ensino médio sem saber como entrar na faculdade. A gente falava assim ‘Vamos entrar na faculdade, para ser médico, professor, tem que entrar na faculdade’. Agora, como entrar, os passos para entrar ali, isso nunca tivemos”, relembra um dos 86


O caminho possível

traços marcantes do seu período no ensino regular. “Nós temos um grupo de ex-alunos do ensino fundamental e não tem ninguém que fez faculdade no grupo. Uns foram morar fora, outros casaram, tem uma das meninas que está fazendo enfermagem agora, que também foi sozinha caçar as coisas, sabe? Parece que é um caminho solitário, que ninguém para e te diz o que fazer. Antes, também não tínhamos muito acesso à informação, hoje em dia temos muitas tecnologias, você pega o celular e está ali. Naquela época não era tão facilitado, tínhamos que ir no cyber, ficar uma hora ali e se passasse o tempo e não tivéssemos mais dinheiro, não tinha como acessar mais. Então, são os aspectos dificultadores para a nossa graduação”, responde acessando as memórias engavetadas do tempo de escola, que ali na manhã de outubro, aparecem vívidas. Em contrapartida, Gisele encontrou em casa incentivo e apoio para conduzir os estudos de modo a demarcar um caminho para o ensino superior. As despesas, eram apertadas. Não sobravam espaços para gastos pouco controlados. No entanto, ao se tratar dos livros, matéria que nunca fora vista como supérfluos pelo ponto de vista de seus pais, eram quase sempre garantidos. Quando me conta essa memória, ela usa a palavra “sacrifício” associada aos atos dos pais, para que ela e a irmã gêmea pudessem ler os títulos necessários. “A gente sempre se esforçou para ter um repertório cultural”, me conta e diz que a irmã ingressou no curso de Artes Visuais na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS). Aproveito o diálogo sobre livros para perguntar sobre seu escritor favorito, e em um primeiro momento, me diz ser Clarice Lispector, o que a mesma diz ser um “clichê”. Clichê ou não, Clarice, que em seu nascimento era Chaya, persiste sendo um dos maiores nomes da literatura nacional. Afinal, assim como Gisele nasce em Corumbá mas é ligada de maneira mais profunda a capital, Clarice classificava-se essencialmente brasileira. “Eu, enfim, sou brasileira. Pronto e pronto”, Lispector disse certa vez, inquieta pelos questionamentos acerca de sua ancestralidade. Não permitia que tirassem quaisquer pedaços de sua brasilidade. Assim como Gisele teve seus irmãos mais velhos centralizando responsabilidades e poupando ao máximo dores às gêmeas, Clarice também teve Elisa, sua irmã mais velha, que viveu em conjunto com os pais, toda a dor do país em guerra, e do trajeto penoso como refugiados, em busca de uma nova pátria ausente de discursos antissemitas. O contexto de Gisele é mais brando, isso é certo. O Pantanal ou a rua com a 87


Gisele

escola municipal já em Campo Grande, não presenciara guerra civis ou fugas de imigrantes famintos. No entanto, Clarice também entendia sobre ser poupada. De lidar com as dores dos irmãos queridos, na impossibilidade de fazer grandes atos para mudá-las. Certa vez, a escritora ucraniana-pernambucana, acerca do corajoso ato de encontrar-se, escreveu: “Há tantos anos me perdi de vista que hesito em procurar me encontrar. Estou com medo de começar. Existir me dá às vezes tal taquicardia. Eu tenho tanto medo de ser eu. Sou tão perigoso. Me deram um nome e me alienaram de mim”. Gisele teve um dos encontros consigo mesma em um lugar que aqui já fora mencionado com veemência: o Instituto Luther King. Instituição que desde 2003, oferece aulas ministradas por professores voluntários no curso preparatório para vestibulares voltados aos alunos de baixa renda. Para ela, o Instituto fora o responsável por fornecer as explicações necessárias sobre as etapas para a entrada no ensino superior. Mais uma vez, Gisele não estaria sozinha. Após assistirem a um informativo de abertura de vagas em um programa de televisão, ela e a irmã gêmea decidiram tentar a entrada na instituição. O critério de seleção seria a análise dos boletins contendo as notas do ensino médio. Ambas conseguiram. Gisele, que na época já trabalhava, passou seis meses no cursinho, já a irmã, completou um ano inteiro. Mais tarde, Gisele voltaria para, ali, ser assistente social. “Fomos selecionadas mas o cursinho não dava passe de ônibus, e aí eram duas pessoas né? E passe de ônibus nunca foi barato. Eu lembro que teve uma noite que fomos para a aula e faltou R$1,00 para o passe de voltar para casa. E a gente tinha muita vergonha, hoje em dia eu não tenho mais vergonha de nada, mas na época tínhamos muita vergonha das coisas. E aí não pedimos para ninguém. O Instituto tinha, sempre teve para ajudar, mas a gente não pediu. E a gente ficou, ficou, ficou e aí quando chegou 22:00, que era a hora de ir embora, ficou faltando esse R$1,00. Então, o que a gente fez? Saímos a pé, lá do Instituto até em casa. Que é muito longe. Chegamos em casa meia noite nesse dia. Mas eu e ela”, quando termina de contar, acrescenta que hoje aprendeu a ver esse dia com orgulho. Logo, porém, salienta que coisas assim não deveriam acontecer. O discurso que engrandece casos assim, como o das irmãs que voltaram a pé para casa, geralmente é carregado de boas intenções. Ao mesmo tempo pode desconsiderar o fato de que diante de tais aconte88


O caminho possível

cimentos, é necessário pensar em alternativas e políticas públicas que trabalhem por impedir que tais sacrifícios sejam necessários. Trazendo para o cenário atual de pandemia mundial, onde as escolas estão fechadas, vez ou outra surgem notícias que mostram pais, geralmente da zona rural, andando quilômetros a pé para buscar as tarefas dos filhos. Se assim não fizerem, os filhos não estudam. A primeira reação social é parabenizar o feito. “Quem quer dá um jeito”, superabundam entre os comentários. Gisele pensa diferente. Diante desses casos, faz mais sentido a cobrança social de que o poder público construa medidas para que tais “andanças” nem mesmo sejam necessárias. Mais do que o direito à educação, é dever do Estado providenciar as medidas facilitadoras ao seu acesso, na cidade ou no campo. Sem que pés precisem sair esfolados durante o caminho. “Meus irmãos foram se mudando e minha mãe começou a trabalhar de empregada doméstica. Meu pai trabalhando longe, e minha mãe pagava o passe de ônibus pra gente. Sabe aquelas coisas contadas? Se era R$200,00 para o passe de ônibus, se tirassem R$10,00 dali, já não ia dar o mês. As coisas eram bem certinhas, senão as coisas não funcionavam. Mas a gente continuava estudando porque estudar era o principal, sempre foi assim. Se a gente falasse para a minha mãe que iríamos largar tudo pra estudar, ela iria nos apoiar. Sempre foi uma coisa importante”, Gisele destaca o apoio que encontrou nos pais por toda a vida. Os mesmos que decidiram vender seus bens, carregar os oito filhos e mudarem de cidade para alcançar os muros da escola, persistiram ali, celebrando cada passo dado, com o orgulho escancarado para quem pudessem vê-los. A casa encontrada pelo pai, anos atrás em uma de suas primeiras andanças pela cidade, produziria frutos duradouros. Gisele sorri quando lembra da ocasião em que preenchia os papéis para entrar em uma segunda graduação, de Letras, que não chegou a ser finalizada. Dessa vez, o pai ficou ao seu lado o tempo todo, exalando orgulho por cada passo dado pela filha. Sem entender as letras embaralhadas nos documentos que a filha assinava, ficou ali, observando-a em cada preenchimento. E nesse ficar, mostrava que a apoiava. E disse tudo o que podia ser dito sem precisar de uma só letra. Volto para o Instituto, perguntando se poderia colocar em palavras o papel assumido pelo lugar na vida das irmãs. Primeiro, recebi uma pausa como resposta. Mas, em seguida, surgiram as considerações sempre percebidas na fala de quem passou por lá. 89


Gisele

“Assim, na nossa vida é um divisor de águas. Eu não sei se você já esteve lá dentro, ou se conhece alguém que passou por lá. O lugar é bem simples, mas sempre quando qualquer pessoa fala do Instituto, eu sempre falo que não tem como explicar o que você sente estando lá dentro, sabe? Porque as pessoas que estão lá dentro fazem de tudo pra você. Tudo, tudo, tudo. Parece que te pegam no colo. Se você diz ‘meu sonho é ser médica’ elas vão falar ‘então é o nosso sonho também a partir de agora’. Quando você realiza seu sonho, é como se todo mundo estivesse realizando. É como se a comunidade inteira te apoiasse, é uma rede de apoio muito grande. Muita coisa que eu vivi na vida, que eu conquistei, inclusive os amigos, é por causa do Instituto. Até a viagem que eu fiz para os Estados Unidos, é coisa do Instituto”, ela diz, comprovando com a própria experiência o que acabara de dizer.

A hora da estrela

“Viver não cabe no Lattes”, a frase de autoria desconhecida, marcada em um muro, é uma das imagens compartilhadas por Gisele, observadas em sua rede social. A plataforma Lattes é conhecida no meio acadêmico e funciona como uma espécie de currículo profissional. Ao contrário dos currículos tradicionais, onde são pontuadas as experiências no mercado de trabalho, no Lattes são registradas pesquisas, projetos desenvolvidos, artigos publicados, apresentações acadêmicas, e outras experiências que constroem uma espécie de linha do tempo da trajetória profissional de um pesquisador. Assistente social, Gisele faz questão de certificar-se que está vivendo. No melhor sentido do verbo. Enquanto isso, vive para garantir que outros estão vivendo com todos os seus direitos de maneira integral. Ou, mais perto disso.

Enquanto estava matriculada no cursinho, vislumbrando a entrada no ensino superior, Gisele teve contato com o caminho necessário para concorrer a bolsas de estudo, conheceu o Programa Universidade para Todos (Prouni), responsável pela sua entrada na faculdade alguns anos depois. Depois de formada, Gisele voltaria às mesmas salas, agora para ensinar outros alunos a acessar o Sistema de Seleção Unificada (Sisu), a como providenciar os documentos necessários, e até 90


O caminho possível

mesmo garantindo que todos soubessem o horário e a cor da caneta a ser levada para os dias de prova. Desta vez, falando a partir de outro lugar, providenciava que outros jovens estivessem bem equipados para a jornada que os esperava. “Foi lá que eu descobri como entrar, não somente pelas matérias em si, mas sobre saber como ter acesso. Eu nunca tinha ouvido falar sobre Prouni ou sobre bolsas na faculdade. Eu não sei se hoje nas escolas os professores falam, mas quando eu saí do ensino médio nenhum professor falava. Eu acho que tinha que ter um dia na escola só pra explicar isso. Tinha também que ter um dia pra ensinar fazer um RG, um CPF, essas coisas simples. Porque saímos da escola sabendo muito de coisas, como Fórmula de Bhaskara, mas pouco sobre como viver o cotidiano. Eu não sabia. Tivemos que aprender batalhando por essas coisas”, Gisele diz. Em 2006, de acordo o Ministério da Educação (MEC), o governo passou a oferecer bolsas de auxílio a alunos selecionados pelo Prouni, no valor que chega até R$300,00 mensais, para alunos que estudam em cursos presenciais, com carga horária de aulas igual ou superior a seis horas diárias. Em 2020, foram oferecidas 1.148 bolsas para o estado de Mato Grosso do Sul, entre bolsas integrais e parciais. Procuro saber se o curso de Serviço Social sempre fora a sua primeira opção, Gisele responde que, no início, suas primeiras opções eram Psicologia ou Jornalismo. “Eu sempre falava muito de Psicologia”, diz bem-humorada, revelando a imprevisibilidade dos planos que traçava no passado. Na época, antes mesmo de entrar no preparatório para vestibulares, trabalhava em um projeto chamado “Agente Jovem”, que oferecia empregos para menores de idade. Após completar 18 anos, passou a trabalhar como educadora social. Ali, teve seu primeiro contato com a assistência social, percebendo que era o mercado no qual se via trabalhando de forma integral. Anos depois, o diploma que a tornava assistente social se materializa. Uma semana mais tarde, a irmã também se formava. “Eu sou apaixonada pela minha profissão. Eu gosto até hoje, eu já gostava antes de ter entrado, eu falo que eu já era assistente social mas só me faltava o diploma. Eu só não tinha a formação e o pagamento pelas coisas que eu fazia”, ela ri. “Eu gosto muito de tudo que eu vivi na graduação e de tudo como eu já fiz como assistente social, eu gosto muito da minha formação acadêmica e da minha vivência enquanto assistente social. Eu não voltaria para fazer outro curso. Eu não escolheria outra 91


Gisele

coisa se eu pudesse voltar para os meus 17 anos”, diz com convicção. Quando recorda o tempo na faculdade, afirma que sempre teve consciência das diferenças entre realidades sociais que distribui seus efeitos ao longo dos quatro anos de graduação. As discrepâncias se constroem e se evidenciam dos mais significativos até os mais ordinários detalhes do cotidiano. É percebida quando alguém não possui acesso integral a uma boa rede de internet. Ou, ainda, quando as moedas se juntam e não somam quantia suficiente para a impressão requisitada na última aula. Reparada nos passos rápidos de um aluno bolsista que apressa os passos ao passar em frente às mesas lotadas da cantina na região central da Universidade, evitando maiores tentações. Imagens comuns, cheias de assimetrias. “Eu sempre fui muito envolvida com política, então eu sempre jogava a real. Eu tô aqui com bolsa, meu pai é sem terra, e essas são as bandeiras que eu defendo. Tive muitos inimigos por conta disso mas também tive muitos amigos. Sempre fui muito assim, 8 ou 80, é da minha personalidade mesmo. Mas eu acredito que pra outras pessoas que não tenham a personalidade tão forte, tão definida, seja mais difícil. Era mais cansaço mesmo, de ter que trabalhar e estudar, enquanto outras pessoas só precisavam estudar e estudavam bem mal ainda”, completa a frase abrindo espaço para as risadas. Pergunto se era comum as reações negativas após descobrirem sobre a atuação política da família. A conversa se torna séria novamente, o tom de voz firme. Mas Gisele parece sempre pronta a se defender. “A vida inteira! Uma vez, eu discuti com uma colega porque tinha uma menina que era cotista, e ela falou assim, ‘fulana é cotista e tem um tênis melhor que o meu’, aí eu fiquei pensando ‘ah agora não pode ter tênis melhor que a bonita só porque é cotista?’. Aí brigamos por conta disso. Agora quer dizer que, por você ser cotista, você não pode ter um tênis? Então eu tinha muito disso. Agora porque o fulano é pobre ele tem que fazer o perfil do pobre. Se ele mudar o perfil do pobre, não é mais pobre. Isso me irritava bastante”, finaliza e explica que diante de discursos semelhantes, sempre se posiciona. Lispector, no romance A hora da estrela, já deixara bem dito: “Porque há direito ao grito. Então eu grito”. Assim Gisele o faz. Decido buscar entre as memórias de Gisele seus momentos favoritos providenciados a partir de sua atuação como assistente social. “São tantos”, ela logo já me responde. Primeiro, retornamos ao tempo de 92


O caminho possível

Instituto. Atualmente, Gisele trabalha como funcionária pública municipal, está em período de estágio probatório. Mas quando seleciona as melhores lembranças, retornamos ao prédio repleto por sonhos de jovens estudantes no centro de Campo Grande. Ela me explica que a primeira vez que o Instituto Luther King foi selecionado para receber doações a partir do projeto Criança Esperança, iniciativa liderada pelo Grupo Globo em parceria com outras instituições, foi a partir de sua insistência e esperança. “O Instituto nunca tinha recebido dinheiro do Criança Esperança na vida, e eu lembro de ter ido pra lá e ter inscrito o projeto. E o pessoal falava que nunca tinham conseguido ser selecionados nem na primeira fase, mas eu falava ‘a gente vai, a gente vai, a gente vai ser escolhido’. Quando a gente foi selecionado, eu fiquei muito feliz, não só por eu ter inscrito o projeto, porque essa foi a parte mais fácil de tudo, mas porque a gente comprou livro sabe? Material de gente rica para aluno pobre estudar. E isso me deixou muito feliz”, declara deixando escapar sorrisos. Os caminhões chegavam abrindo espaço pelas ruas, lotados pelas mercadorias que no ponto de entrega iriam representar insumos para os sonhos de dezenas. Ao pararem no prédio simples, logo já ganharam plateia. Quem passava por perto, reparando nas expressões das mulheres que rodeavam os caminhões, ansiosas para ver as primeiras caixas destinando-se para dentro, poderiam pensar tratar-se de carga valiosa. E de fato era. 120 conjuntos de livros. Para cada livro, um passo para um futuro mais amplo. Para escolhas. Assim, a missão de Gisele se materializa. Esperança em caixas. Conhecimento, para o acesso. O lema que repetiu para mim durante a entrevista. As caixas nunca estiveram tão pesadas. Pensando nas histórias que acompanhou de perto, diz que são tantas, capazes de preencher um livro por completo. Dos alunos que iam de bicicleta para cada aula e, hoje, alcançam amplos espaços por outros estados do país. Da aluna que vendia bombons na praça, para que guardasse dinheiro suficiente para os passes de transporte coletivo. Da estudante que dormia no ônibus para descansar entre a árdua rotina de estudos, e está cursando medicina. A lista é grande. Entre as narrativas, Gisele escolhe uma em específico para trazer com mais detalhes. “Tem uma menina que era bem quietinha, muito estudiosa mas muito quietinha. E ela estava sempre ajudando, perguntava se precisávamos de alguma coisa. E eu nunca tinha ido na casa dela, como assis93


Gisele

tente social eu só fazia visita quando era para conceder bolsa. Ela tinha o sonho de fazer um curso que tinha lá na Universidade do Paraná, se ficasse aqui em Campo Grande ela iria fazer um outro curso que ela não queria. Ficou indecisa entre ir pra lá ou ficar aqui. Na época, eu falei: ‘Olha, você tem que ir’, mas ela me dizia que não tinha condições nenhuma. Aí eu pensei que esse ‘não ter condições’ era tipo não poder comer um Mcdonald’s no final de semana, coisas assim. Eu disse que o Instituto iria conceder a bolsa pra ela. No dia que eu fui na casa dela para fazer o relatório, levei um choque tão grande que eu voltei para casa chorando. Ela, a irmã e a mãe moravam em um conjunto de casinhas de madeira que parecia um cortiço. Era um banheiro no fundo, só um vaso, para todas as casas. Na casa dela, o único móvel novo era a mesa onde ela estudava. E eu voltei pra casa pensando: ‘Eu nunca imaginei que ela vivia assim, nessas condições’, e a gente não sabe mesmo. Então é outra pessoa que já mudou por conta do estudo, da educação, e a gente fica muito feliz de saber essas coisas”. A menina da lembrança emocionada de Gisele conseguiu se mudar para o Paraná. Fez um estágio em uma grande fábrica no estado e depois foi contratada. A família conseguiu se mudar da antiga casa de madeira, uma nova realidade fora apresentada. Depois de contar a história, Gisele se enxerga nessa própria mudança. Quando é convidada a falar sobre a educação, não poupa palavras. “Muda uma família inteira, uma comunidade inteira. A nossa família mudou bastante. Hoje em dia, todos os nossos sobrinhos já saíram da escola querendo fazer faculdade. E os pequenininhos que estão crescendo agora e já falam a mesma coisa. Alguns brincam dizendo ‘Ah vou fazer faculdade de assistente social porque a tia Gisele só trabalha 30 horas por semana’. Eles veem. Sabem a diferença de certos empregos e a gente joga a realidade mesmo. Porque não saímos da perife- ria, nós moramos na mesma casa, então a gente fala que a realidade é essa, para mudar essa realidade vai ter que estudar. Esse é o caminho, não tem outro. E a educação é transformadora, ela transforma o ciclo inteiro de violência, de pobreza, de tudo na vida das pessoas”, enfatiza. Ela completa que enxerga no futuro um caminho para de passo em passo chegar a lugares mais altos. “Quem vier depois, vai saber que possuem alguma coisa aqui”, e diz que o degrau mais almejado na carreira é a vaga em um concurso federal: “Aí vai estar bom, né?”, brinca.

94


O caminho possível

New York, New York

Um dos momentos que Gisele mais guarda com carinho é a sua ida para os Estados Unidos, a primeira vez que saiu das terras brasileiras. A ida foi proporcionada a partir de sua atuação como assistente social, já que após ser a responsável por arrecadar fundos e gerenciar os gastos com iniciativas de valor social, passou a concorrer a uma viagem com todas as despesas inclusas. Gisele se recorda da “cidade que nunca dorme” com êxtase e alegria evidentes, com as memórias guardadas de maneira especial, como que para congelar a sensação se estar entre as ruas iluminadas, rostos desconhecidos, e o idioma estrangeiro ao fundo. A viagem, para ela, ganhou ares de fantasia, digna dos contos infantis.

“Quando eles me chamaram pra trabalhar no Instituto, em outubro de 2015, falaram que estavam precisando de assistente social. Só que a coordenadora na época me disse que eles não tinham como me pagar. Então me explicou sobre o projeto, onde eu trabalharia como mentora para outras ONGs e iniciativas pequenas. Como assistente social, eu cuidaria de todo o processo. Desde o chamamento das iniciativas, a avaliação, repassar os recursos, tudo. Se no final, o projeto que eu ajudei na mentoria for pra eleição e for o mais votado, o prêmio seria uma viagem para Nova York, para participar do jantar de gala da Brazilfoundation, responsável pelo edital. O jantar beneficente acontece com celebridades nacionais e internacionais, e o prêmio seria esse. Quando terminaram de me explicar, eu só aceitei e já falei: ‘Tá bom, eu vou para Nova York’, ela explica e já ri da sua própria autoconfiança, característica que se mostra marcante durante toda nossa conversa. A BrazilFoudantion, de acordo com o manifesto público disponível em endereço virtual, define como um de seus objetivos: “Identificar e apoiar iniciativas que permitam um futuro de igualdade de acesso, justiça social e oportunidades para todos os brasileiros”. Gisele explica que a ONG que venceu a eleição, que analisaria e elegeria a vencedora a partir da maneira pela qual as iniciativas aplicaram os recursos recebidos, foi a “Liga do Bem”, que reúne um grupo de voluntários, caracterizados como super heróis, para visitas de pacientes em hospi-

95


Gisele

tais, idosos em casas de repouso e principalmente, crianças em algum estado de vulnerabilidade. “Comecei a trabalhar, eu e a Gislaine, que está sempre comigo. Trabalhamos com duas ONGs, que foi a Liga do Bem, e o grupo de mulheres negras da Tia Eva. Eles foram selecionados, a gente recebeu o recurso, fizeram um projeto, eu cuidei do processo todo, enviamos para lá, e no final ficamos entre os mais votados. E a Liga do Bem foi a grande vencedora. Fomos juntos, eu como monitora, a Gislaine como minha auxiliar, e a Liga do Bem como a iniciativa campeã”, diz orgulhosa. “Ficamos uma semana em Nova York, vi a Juliana Paes, Elba Ramalho e um monte de gente que eu nem conhecia. Recebemos alimentação, transporte, e apresentamos o projeto no jantar de gala, fizemos discurso e tudo, foi tipo sonho de princesa mesmo”, finaliza mantendo a animação na voz durante toda a descrição. Emendo a memória perguntando sobre seus planos de voltar para as terras estadunidenses. “Sonho em voltar lá um dia, mas vou esperar o Trump sair né? Tenho medo de me barrarem quando virem essa cara”, diz em meio às gargalhadas. Gisele ainda me conta sobre a aventura com o idioma desconhecido, as mímicas que funcionaram como canal de comunicação com os funcionários do aeroporto, e a estranheza em perceber que, no país, dizer que é brasileira é código para automaticamente transformar a conversa para seguir nos rumos do espanhol. “Para eles, se somos latinos a gente entende espanhol, né?”. E me conta sobre os planos de estudar o inglês para facilitar os diálogos em sua volta no futuro. “Gisele, se pudesse ensinar algo sabendo que as pessoa iriam aprender, o que seria?”, é a pergunta escolhida para retornarmos aos solos brasileiros. “Busca por direitos, correr atrás mesmo. Ninguém diz pra uma pessoa ‘olha, você tem direito a isso ou aquilo’, porque se todo mundo descobrir isso, pensa na revolução que vai acontecer? Se você descobre que você tem acesso a uma carteirinha de graça pra você viajar. Pensa o tanto de gente que vai viajar? Ah, mas é para lazer? Não interessa, lazer também é um direito humano”, reforça. “É preciso se orientar, se preciso ir na defensoria, no caso de precisar de um remédio caro, por exemplo. Podem dizer ‘ah não vou me envolver com isso’, mas não vai se envolver por que? É preciso garantir acesso às coisas mínimas, pessoas às vezes morrem por conta disso, 96


O caminho possível

porque ninguém disse para elas. Conhecimento para ter acesso. Dizemos que elas possuem direitos e como acessar esses direitos, que é o mais importante de tudo”.

97


FOTO: ARQUIVO PESSOAL

Walkíria

98


caminho para a descoberta do mundo e de si mesma

4

O bairro da estrela é o bairro da mãe de Walkíria, que ali cresceu com as irmãs. Ao todo, são quatro. Algumas se mudaram para outros rumos da constelação da cidade que há quem diga que é pequena, capital com jeito de interior. Mas basta reparar para perceber que é grande o suficiente para mudar o mundo das irmãs. Walkíria continuou morando com a mãe e com a irmã. Fez morada na estrela. A casa é daquelas que parece que é duas em uma só. A primeira casa própria da mãe, ganhou do padrinho. Ganhou casa e ganhou paz de ter um lugar para chamar de seu. Nunca houve lugar melhor do que a estrela. A casa de mais de três décadas, guarda no fundo, uma edícula, que por sua vez guarda o quarto da filha. Oito anos depois de deixar as pontas da estrela, ainda permanece arrumado, ansioso para a dona retornar. Para a mãe, pode passar oito ou oitenta, o lugar da filha é ali, onde os olhos podem ver. Não existe brilho maior no mundo do que o que relampeja nos olhos da mãe de Walkíria quando ela pensa em ver a filha voltar. A cama já está arrumada e se for preciso, trago todas as abelhas que ela precisar pro nosso quintal”, diz e nutre esperança.

99


Walkíria

O sol ardia forte, com os raios quentes incidindo sobre todo o seu corpo . Os cabelos enrolados guardados pela proteção sobre a cabeça se amontoavam e quando um fio só escapava, paAbelha recia que queimava também, conforme entrava em contato com o pedaço de pele desprotegida. Trabalhadora Olhava para frente e tinha a impressão de que as ruas se multiplicavam. “As calçadas se alargaram desde a última vez que olhei, só pode ser”, diz em voz alta, ou no pensamento, já não sabe dizer. As árvores agora eram suas melhores amigas, quando avistava uma com uma sombra generosa, era como ver o melhor dos mundos no meio daquele asfalto quente que parece atravessar em fogo vivo cada um de seus pés. “Quem acha que no cerrado não tem deserto é porque não passou uma tarde aqui nessas ruas”, pensava com o suporte de empurrar o carrinho entre os dedos. O tecido da roupa é quente, faz piorar a sensação abafada, mas é o que protege a pele dos raios do sol. A abelha-trabalhadora, mais conhecida como abelha-operária, é aquela responsável por uma série de procedimentos essenciais ao mantimento da funcionalidade da colmeia. Para a existência de todos os seres que habitam ali, durante seu período de vida, realizam diversas funções, como limpeza de alvéolos, alimentação de larvas, realização da defesa e produção da cera, além da responsabilidade de coletar substâncias como o néctar e a água. O trabalho se faz presente desde o primeiro dia de vida da abelha até por fim em seu último, quando finda a sua intensa participação na sua própria sociedade, a colmeia, e a sua contribuição para o ecossistema em geral, que envolve a manutenção da própria vida humana. “Eu trabalhei de gari e não é uma coisa desonesta, mas para mim foi tão sofrido, porque eu me cansava tanto. Eu cheguei a pesar 48kg, eu não comia, não tinha como ir ao banheiro, eu não tinha água pra estar bebendo e varria umas 40 quadras por dia, então apesar de eu ter ficado quase um ano, foi assim muito dolorido, muito cansativo”, Walkíria diz ao se lembrar da jornada diária de trabalho que desempenhava antes de pensar em ir para os rumos da universidade. Walkíria viu na profissão de gari a possibilidade de finalmente alcançar uma 100


O caminho possível

melhor remuneração, procurava pela certeza do salário na conta em todo mês. Trabalhava já há anos na casa da mesma família, o laço com a criança da qual era babá já havia se criado, quando recebeu a notícia que estava dispensada pelos pais. Os recursos para manter uma babá estavam poucos, Walkíria precisaria ir. Ela compreendeu, se despediu da criança e, agora, precisava encontrar outra forma de sustento. Avaliou suas opções, tinha experiência com limpeza e com o cuidado de crianças. Era preciso garantir a ajuda para sua casa, onde morava com sua mãe e uma das irmãs, que tinha dois filhos. E foi durante uma tarde, vendo o trabalho de limpeza sendo feito em uma das ruas da capital sul-mato-grossense, que decidiu perguntar. “Onde que vai pra trabalhar de gari?”, disse pensando que assim conseguiria trazer de volta o auxílio para as contas que não pararam de chegar. Do colega de sua futura profissão, ouviu toda a explicação necessária. Interou-se de onde precisaria ir, com quem falar, e assim o fez. “Ah, deve ser poucas quadras que eu vou precisar varrer, e fui toda contente. Eu fui contratada, fiquei feliz e no outro dia eu já fui trabalhar. E aí eu vi que não era nada daquilo que eu pensava, porque era uma subida enooorme”, ela enfatiza o adjetivo deixando claro a sua surpresa, “eu chegava lá às 7h da manhã, tinha uma hora de almoço, de 12h às 13h,e aí seguia até 15h30 da tarde”, completa. Todos que moram em Campo Grande já conhecem o potencial da “quentura” do sol que surge no céu de todos os dias. Mas a experiência com o velho conhecido se transforma quando ele bate no topo de sua cabeça diariamente, durante horas, somando as distâncias percorridas pelo chão. O que era quente se torna ainda mais, a impressão que fica é que ele está ali, separado por míseros centímetros. As calçadas e o asfalto esquentam em conjunto com o sol e providenciam o ambiente com trejeitos desérticos. Assim como a água é uma das mais importantes propriedades para as abelhas, ali no meio das ruas é assunto da maioria dos desejos que se passam pela mente daqueles que varrem as superfícies. Walkíria conta que depois de um tempo já começava a dizer aos colegas de profissão que iria desistir. Pensava que não iria conseguir, que seu corpo uma hora iria sucumbir aos esforços que, para ela, já estavam além do que considerava ser capaz de fazer com eficiência e segurança. “Você não tá precisando de dinheiro Walkíria? Não vai desistir não, vai conseguir sim”, era o que ouvia em resposta. E ela continuava a puxar o carrinho, precisava mesmo daquele dinheiro. Era 2011 e, naquele ano, a primeira vez que ganhava mais de 101


Walkíria

um salário mínimo, que na época, correspondia a R$545,00. Certa vez, se dirigiu ao trabalho pensando ser o último dia ali. Havia ensaiado as palavras do pedido de demissão. Quando recebeu o dinheiro em mãos, temeu a sensação da instabilidade novamente. A certeza do valor em mãos a fez desistir do discurso pré-ensaiado. “Na hora que eu recebi aquele dinheiro e que eu vi que era um dinheiro que eu nunca tinha pegado assim na minha vida, foi o que me fez mudar de ideia e falei ‘eu vou conseguir sim’, e fiquei quase um ano. Eu também sou muito agradecida ao pessoal de lá, porque eu tive várias experiências”, diz ao relembrar memórias passadas a quase uma década. O cansaço físico não era o único responsável pela inquietude de Walkíria diante da permanência no emprego. Tinha medo da reação de alguns da família, não sentia vergonha, mas queria evitar os conflitos que poderiam surgir depois de ouvir determinados julgamentos. Foi aconselhada pelos mais próximos a não contar para mais pessoas, entendeu que essas não precisavam saber de tudo o que lhe dissesse respeito. Sabia que o emprego era honesto. A exposição ao público veio por uma matéria no principal jornal impresso do estado. Era a notícia que contava sobre sua aprovação em uma universidade no estado. O enfoque, ou o “gancho” utilizando-se do jargão das redações jornalísticas, era a entrada no ensino superior feito por uma trabalhadora que era parte do grupo que não costuma adentrar os ambientes da graduação. O que poucos sabiam agora era divulgado para quem quisesse ler no solo sul-mato-grossense. Mas não eram as opiniões de desconhecidos que importavam, o que de fato poderia fazer a diferença era a reação dos mais próximos, dos que eram ligados a ela pelos laços familiares. E, então, precisou lidar com as manifestações que vinham em sua direção. Ouvia desde “É Walkíria, você ficava escondendo né” em tons de zombaria. A reação mais marcante surgiu de um dos familiares, que “estampou” a notícia impressa em seu comércio, acreditando que com isso, estaria envergonhando a familiar trazendo seu trabalho a tona. “Quer deixar aí, tudo bem, eu não vou arrancar o jornal, pra mim quem quiser ver, pode ver”, foi a resposta dada por Walkíria a situação. “Quando eu chegava lá eu ficava até elogiando, ‘nossa que bom né’, acho que ele quis me prejudicar de uma forma e acabou me dando audiência”, acrescenta e consegue já ver humor na situação que há oito anos, foi construída para lhe prejudicar. Walkíria escolheu conceder mais relevância aos elogios que eram direcionados ao seu crescimento e apoio, percebeu que essa era a forma que mais lhe fazia sentido. 102


O caminho possível

Precisava levar seus sobrinhos para fazer a matrícula na escola, era um dia normal, que iniciaria e teria seu fim sem acontecimentos extraordinários. Estava acostumada a conviver com os sobrinhos, e lidaria com a tarefa de garantir a eles o curso de mais um ano escolar, no mesmo prédio que ela mesma fizera o ensino fundamental, algumas décadas mais cedo. Seria mais um dia se não tivesse recebido um folheto diferente em suas mãos, se não parasse para lê-lo, poderia terminar despercebido na próxima lixeira entre os corredores da escola no bairro onde cresceu. Mas aquele folheto foi lido, cada letra teve sua atenção completa e, por isso, aquele não era mais um simples dia. Naquele pedaço de papel era apresentado um curso feito justamente para auxiliar a entrada de indivíduos em condição de baixa renda em instituições do ensino superior. Instituto Luther King era o nome do lugar. Prestou atenção no telefone, endereço, e viu no quadrado em suas mãos um convite para o futuro que esperava para si mesma. Talvez não fizesse muito sentido se olhasse para as condições mais aparentes, idade, o tempo sem abrir quaisquer cadernos, ou dinheiro para se manter em uma universidade. Mas àquela altura a ideia de estudar no ensino superior ganhou mais potência. “Eu saí dali bem contente, peguei e anotei o telefone né, cheguei em casa e falei pra minha irmã ‘Olha, eu vou fazer a inscrição’ e minha irmã me apoiou e falou ‘vai sim, quem sabe você consegue’. Umas me apoiaram, outras não. Algumas falavam ‘Ah você não vai conseguir não, isso aí é difícil ainda mais em uma federal’, ela recorda. Se Walkíria fechasse seus olhos, lá estavam as palavras “eu preciso dar um jeito na minha vida”, o desejo foi ganhando tons de urgência e tornou-se evidente, para ela, que deveria ser feito algo. “O tempo está passando e eu continuo na mesma, não estou progredindo. E eu me sentia mal em relação a isso, eu sempre fui muito apegada ao pessoal da minha casa e acabei acomodada, essa é a palavra certa”, ela diz quase como quem confessa algo. Descobriu que para entrar no Instituto Luther King eram necessários alguns documentos, comprovações de renda, além de uma entrevista feita de modo presencial. Passou por todas as etapas com êxito e, em 2011, tornou-se aluna. Ficou ali por dois anos, o lugar tornou-se quase um lar. O desejo pela entrada no ensino superior não era recente, ela me conta durante a entrevista feita em uma tarde quente de setembro. Quando concluiu o ensino médio, formou-se também no aperfeiçoa103


Walkíria

mento técnico em contabilidade. Na época, prestou vestibular para ciências contábeis ou administração, mas não conseguiu ser aprovada. Não havia mais tempo para continuar tentando, precisava trabalhar, e assim, seguiu para os serviços de limpeza e, depois, no cuidados de crianças. No momento em que decidiu retomar o sonho antigo, deu margem também a novas formas de se auto avaliar, fazer crescer uma crença em si mesma, era o primeiro passo a ser dado. “Se outras pessoas conseguiram eu também tenho a chance de conseguir. Assim que eu pensava e também porque não tinha condições de pagar nada naquele momento, minha vida sempre foi assim de muito sacrifício”, ela completa dizendo que sabia que deveria contar com o ensino público, era a única alternativa possível. “Se a gente pode estudar numa escola pública e numa universidade pública, por que não?”, era o que dizia a si mesma. Em muitas ocasiões as vagas para o ensino superior público são vistas de maneira geral como mais difíceis de ser ocupadas, visto a alta competitividade para suas ocupações. A rotina também precisou logo se adaptar para fazer possível os novos dias que Walkíria vislumbrava para o seu futuro. O dia começava cedo com o trabalho de gari, das 7h às 15h30, era ali que Walkíria passava seu tempo, de segunda a sábado. Debaixo do mesmo sol ardido que tanto a assustou no começo dos seus dias de serviço. Quando o expediente terminava, não sobrava tempo suficiente para voltar para sua casa e depois ir para as aulas que se davam no período noturno. Assim, a jornada entre os dois pontos era feita de modo direto. Depois de terminado o trajeto de ônibus coletivo, chegava bem mais cedo no cursinho, e aproveitava para oferecer a sua ajuda para o que quer que estivessem precisando. Oferecia ajuda, conversava com quem ali trabalhava, revisava algum conteúdo, e assim o tempo passava, até o relógio apontar às 19h que inauguravam mais um turno de aula. “Chegava lá e ficava muito cansada, nossa aquele sono, eu ficava muitas vezes querendo dormir, não conseguindo prestar atenção nas aulas, mas eu estava ali firme e forte. Não tive uma falta, se perguntar lá eu não tive falta”, diz e fica evidente que apesar do cansaço que a rotina providenciava, o que mais persiste nas lembranças de Walkíria é a saudade do tempo entre aqueles corredores do prédio na Avenida Fernando Corrêa da Costa, no centro da capital. “Ali eu fui abraçada de um jeito que nem os meus familiares me abraçaram. Eu me sentia muito feliz naquele lugar, todo assunto que me fazia sentir mal, eu conversava com eles, e me davam o maior 104


O caminho possível

apoio”, conta e abrindo um sorriso já fala que eu deveria ter estudado lá, já que só estando ali para entender o que ela sentia. A sensação de acolhimento e pertencimento pareciam ser difíceis de colocar em palavras, mas Walkiria conseguiu transparecê-la sem esforços. A rotina exaustiva de trabalho fazia com que o tempo no Instituto fosse praticamente o único disponível para seus estudos. Geralmente, alunos que fazem cursos voltados para a aplicação para vestibulares e para o Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) transformam o seu cotidiano em uma grande tabela de cronograma de estudos. No caso de Walkíria, ela precisava manter seu trabalho como gari, então precisou certificar que cada período vivido na sala de aula fosse aproveitado ao máximo. Na volta para casa, se sentia bem até mesmo no momento de espera do ônibus, espera que pode ganhar ares de tortura e medo quando se é mulher e já é noite, mas ali ela não estaria sozinha. A cada fim de dia, vários alunos rumavam em direção ao ponto de transporte coletivo, não distante do prédio do curso, e Walkíria se sentia segura e ao lado de pessoas que, assim como ela, mascaravam o cansaço em meio a esperança de que o conteúdo que acabaram de ver exposto na lousa da sala de aula fosse alvo de uma questão do próximo vestibular. Foi em meio às salas do Instituto que Walkíria viu seus próprios interesses passarem por uma mudança de campo. A Administração e as Ciências Contábeis, áreas de seu interesse desde os tempos do ensino médio, já não eram o que pareciam mais combinar com a visualização de seu futuro. Precisou se abrir ainda mais para o desconhecido, teria que confiar na sua própria habilidade de imaginar a si mesma fazendo o que realmente gostaria. Tarefa difícil para quem é pouco estimulada a sonhar. Um dos responsáveis pelo deslocamento de afinidades foi um dos professores do cursinho de Walkíria. “Foi ali que eu fui realmente conhecer a biologia, porque como eu vinha do ensino fundamental e de um curso técnico que foi contabilidade, eu não cheguei a ver esses cursos como biologia, eu via mais continhas, essas coisas. O professor Fernando é um professor maravilhoso e eu fui me sentindo curiosa, ‘nossa, como a biologia abrange tanta coisa’, era o que eu falava. Um dia só eu ergui a mão quando ele perguntou quem iria fazer biologia, e levantei e disse ‘É biologia, tá decidido’’. A ansiedade já estava começando a dominar todo e qualquer pensamento que surgia em sua mente, uma hora estava confiante, depois já vinha a onda de insegurança. Sabia que tinha dado o seu melhor, lembrava dos dias de jornada dupla, das noites de luta contra o sono, 105


Walkíria e das vezes em que ela própria se tornava o alvo da luta. Uma simples atualização de uma página virtual poderia lhe dizer o que seriam dos seus próximos quatro anos. Naquele momento tudo se torna urgente e imediato, como se o que você está prestes a ler ganhasse a missão de ditar tudo o que você será. É hora de grandes generalizações e pouco equilíbrio. Se vier a negativa, você terá que pensar o que irá fazer, mas antes da página atualizar, não é bom nem mesmo pensar em tal cenário. Tudo o que se consegue imaginar é saber que os quatro anos serão diferentes, que os cadernos dos conteúdos do ensino médio serão fechados e trancados no armário, para darem lugar às pilhas de livros da biblioteca e impressões requisitadas. Parece perto, mas também parece longe. Naquele dia, Walkíria entrou na sala da secretaria do Instituto sabendo que dali sairia diferente, para melhor ou pior. Estava lidando com as duplas possibilidades. “Eu fui bem em biologia, nessa parte eu sei que fui”, pensava. “Mas e o resto? será que o que consegui vai ser suficiente? E se não foi?”, era o que seguia a indagação anterior. Conferiu repetidas vezes se o resultado apareceu. Nada. A dualidade logo já voltava a aparecer, o medo de nutrir algo que podia lhe ser tirado. Atualizou, pronto, avisaram que o resultado estava disponível. Desespero e tentativa de manter-se calma aparecem de uma só vez, disputando espaço. Conseguiu correr e falar para uma das mulheres que ali trabalhavam: “Saiu o resultado, vê pra mim!”, esperou e nada. Um esboço de reação surgiu no rosto da moça, Walkíria olhou. “Não consegui né?”, foram as palavras saídas. “Espera aqui um pouquinho” foi tudo o que ouviu, e a moça saiu da sala. O que era nervosismo já havia se transformado em uma avalanche de pessimismo. Continuou a esperar. O barulho da porta abrindo surge no ambiente, seguido por um “Walkíria, o Aleixo quer falar com você”. A porta se abriu, lá estava ele. O senhor responsável pela fundação daquele lugar que Walkíria já estava acostumada a ver como apoiador de sonhos. Aprovada ou não, o lugar permaneceria com o mesmo valor envolto em sua existência. Se preparou, o pessimismo dando lugar a uma sensação que se pedissem, não acharia palavra certa para explicar. Olhou para a mesa, contou os objetos que ali estavam, reparou na posição da cadeira, imaginou as palavras que sairam do homem que estava ali em sua frente. Então, ele falou. “Parabéns, Walkíria, você conseguiu”. Na sala, no prédio da avenida larga cortada pelo córrego Prosa, Walkíria soube que era real. Walkíria conta com orgulho que passou na Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD), situada no interior do estado, a aproxi106


O caminho possível mados 230km da capital. Faz questão de dizer que entre as 60 vagas oferecidas para o curso de Ciências Biológicas, estava ocupando a 26° posição pela ampla concorrência, e a 11° utilizando-se da cota aplicada, devido ao seu histórico escolar cursado inteiramente em ensino público. Agora, o desafio de Walkíria ganharia novos contornos, aos 36 anos, ela teria que, pela primeira vez, deixar a casa da mãe no bairro com estrela no nome, e contar apenas consigo mesma para a cidade conhecida por ser a segunda em número de população no estado. Para a reação da família, ao mesmo tempo em que contava com as felicitações pelo êxito da aprovação, se misturaria ao impacto da constatação pela distância dos, no mínimo, próximos quatro anos. “Eu fiquei com medo, eu pensava assim, como que eu vou pra Dourados, nunca fui lá”, lembra. Na época, havia conseguido passar em um concurso da prefeitura para a área de limpeza e sabia que teria que deixar a aprovação para trás. Chegou a pensar se não seria melhor tentar uma faculdade particular, havia achado uma com o custo bem abaixo da média do que geralmente era visto no mercado. Sua mãe disse que seria melhor que ela ficasse ali, trabalhando na escola, mas principalmente, perto dela. “Eu preciso fazer uma escolha e que não possa me arrepender”, foi o que disse na época. Um dos conselhos que a fez, por fim, decidir o que iria fazer e onde estaria nos próximos anos veio de uma das irmãs. “Walkíria hoje você vai estar trabalhando na escola, mas futuramente você pode entrar na escola como professora”. A certeza de olhar para os dias vindouros e avistar um desfecho diferente, um lugar onde se quisesse, poderia ser professora e ensinar. E então escolheu.

Pólen

Dia da matrícula, deveria ir para Dourados. Levar os documentos separados e bem organizados para que só precisassem ser entregues. Eu faltei ao serviço para poder ir fazer, eu lembro que era uma quarta-feira. Fui sozinha fazer e voltei no mesmo dia”. E assim, na quarta-feira de 2012, que Walkíria se tornou acadêmica de Biologia, bem longe do bairro que conhecia. “Foi uma mudança, a gente fica com medo, tinha medo de chegar e não ter onde morar, não ter como me sustentar, por mais que o meu serviço de gari fosse um serviço cansativo pra mim, era ali que eu tinha o meu dinheiro né?”. 107


Walkíria

Nessa altura, Walkíria precisou olhar para o que já havia sido percorrido. Era um incentivo diante do cenário de incertezas. Precisou lembrar do dia em que sua história saiu no jornal, do medo e da sensação de liberdade que vieram em conjunto após a decisão. Ela relata que a escolha de contar a sua história veio por perceber era o momento de não sentir vergonha pelo o que fazia, e pelo desejo de oferecer uma boa visibilidade ao Instituto. Depois do jornal impresso local, sua narrativa apareceu no Fantástico, programa dominical da Rede Globo, os últimos passos e esboços das decisões futuras de Walkíria passavam a ser de conhecimento nacional. O amparo para o período acadêmico surgiu logo no início na estadia de Walkíria na nova cidade, quando foi convidada por uma conhecida para morar em sua casa, enquanto não alugasse o seu próprio lugar. Durante um mês, Walkíria morou ali e recebia carona para ir ao campus da Universidade. Por meio da rede de contatos do Instituto Luther King, conseguiu um emprego na área de limpeza. O auxílio do cursinho comunitário ainda se estendeu por um ano, por meio de uma bolsa oferecida por um fundo denominado Daniel Reis, que já ajudou outros alunos que passaram pelas salas do Instituto, a custear despesas como aluguel após se mudarem para uma nova cidade. Não queria continuar dependente daquela que se tornou sua amiga, e logo já iniciou a busca por locais disponíveis para aluguel. Após um tempo, Walkíria encontrou um lugar para ser seu durante o período da graduação. Ela se refere ao lugar como um “quartinho”, e foi ali que precisou aprender a construir as raízes na cidade que, agora, faria parte do seu presente e futuro. Quero saber se o quarto alugado era perto da Universidade, e Walkíria responde que o câmpus é distante aproximadamente 20km do local central da cidade. No entanto, estava aliviada por as estruturas de sua independência estarem sendo formadas. Aos poucos, os móveis chegaram e foram tomando lugar. Geladeira, fogão e cama se encaixavam e ocupavam os poucos metros quadrados. Caçula entre as quatro irmãs, Walkíria diz que sempre se viu como alguém muito ligada à família. Em Dourados, estava se descobrindo enquanto estudante de graduação ao mesmo tempo em que entrava em contato com camadas ainda não descobertas, sem o contato físico com aqueles que já estava habituada a compartilhar a vida. O plano inicial de Walkíria era começar os estudos em Dourados, e depois tentar uma transferência para a Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS). “Antes, eu passava na frente da UFMS e dizia ‘um dia ainda vou 108


O caminho possível

estudar ali’, era um sonho pra mim”, conta e ri do jeito que tinha de criar uma realidade futura com base nas palavras faladas em alta voz. “As pessoas perguntavam ‘por que você tá chorando?’ E eu falava, ah é que eu quero minha mãe, quero minha família, não quero ficar aqui. Eu tive medo, porque quando é novidade, as pessoas tem medo né?”, ela conta e me diz que sempre se considerou uma pessoa medrosa. Mas logo já acrescenta que a Universidade assumiu o papel de aos poucos incentivá-la a deixar o medo às escondidas. Ou, pelo menos, não permitir que ele se tornasse o ditador do rumo das suas decisões. Durante o primeiro ano, contou com os R$ 400,00 da bolsa oferecida pelo Instituto Luther King, que uniam-se ao que conseguia receber com os trabalhos de limpeza. Durante a graduação, conseguiu receber o Auxílio Permanência e o Auxílio Alimentação oferecidos pela Universidade, que totalizavam R$ 550,00. “Para manter essas bolsas tem que ter boas notas, você não pode ter falta, mas graças a Deus eu consegui ir até o final com as minhas notas, e eu nunca gostei de faltar mesmo, e esse meu serviço me ajudou a pagar as minhas continhas, me manter e ficar mais tranquila”. Quando saiu de Campo Grande, ouviu que em poucos meses estaria de volta, já que não iria aguentar o peso da mudança. Ali, se constituía uma forma de se sustentar, de manter-se firme nas aulas e de garantir que conseguiria. Dias e noites se passaram, o quartinho foi ganhando jeitos de lar. O choro já não surgia regularmente na garganta, as ruas já não eram tão estranhas. O começo da graduação foi difícil, abrir um computador era razão de medo, tudo poderia dar errado dentro da máquina que carrega sua própria linguagem de funcionamento. “Minha graduação foi trabalhando, estudando e foi sufoco hein. A graduação não é fácil, tive que aprender muita coisa do dia pra noite, mexer em computador mesmo. Eu tive muita parceria em relação às amizades mas tinha decidido algo novo. Cheguei com uma mala, e com o tempo eu sentia menos vontade de voltar para Campo Grande. ‘Comecei aqui e vou terminar aqui’, foi o que passei a falar”. Quando fala de sua mãe, com olhar e voz marcados pela saudade, pergunto como foi a sua relação com os estudos durante a infância, querendo entender como o acesso à educação era visto pela família do bairro da estrela. “Olha, como eu cresci com minha mãe, sempre trabalhando e com mais quatro irmãs, a minha mãe nunca deu importância em relação ao estudo, inclusive ela tem até a quarta série. A gente tinha que trabalhar, ela tinha que trabalhar pra sustentar a gente, então eu 109


Walkíria

não fui instruída assim a estudar”. Walkíria conta que entrou na primeira série do ensino fundamental já aos 11 anos, mas logo já emenda orgulhosa dizendo que nunca teve reprovação nos anos do fundamental e no ensino médio. A educação não era enxergada por Walkíria como apenas uma forma de acesso aos bens materiais, o que ela mais desejava, no dia que pegou aquele folheto, era a chance de saber mais. Já havia aprendido muito com o viver, lições que escolas não oferecem entre os livros didáticos. Enxergava no ensino superior a chance de encontrar novos olhares sobre o que poderia aprender e pela biologia, sobre todos os seres vivos. Na graduação, Walkíria precisou lidar com as reprovações. As disciplinas mais temidas por ela possuem os nomes lembrados sem grandes esforços. “Biologia Molecular, Química, Zoologia”, diz já se recordando dos conteúdos. No entanto, a visão que Walkíria possui da necessidade de refazer as matérias, hoje já não é de fracasso ou incapacidade acadêmica. Se formou um semestre depois de sua turma, e considera que diante de suas dificuldades, e após 52 disciplinas presentes na graduação, obteve um bom trabalho. Walkíria, hoje bióloga, aprendeu a reforçar suas próprias qualidades em detrimento de perceber as fraquezas como predominantes. Era preciso valorizar-se, assim, se mantinha com mais firmeza entre os afazeres, olhares e impressões que lhe eram passadas sobre quem poderia ser. “Eu não sou uma pessoa inteligente, eu falo pra todo mundo isso. Mas eu sou uma pessoa muito esforçada. O que eu começo, minha intenção é sempre terminar”, ela diz sem receio durante a nossa conversa e demonstra lidar bem com a constatação. “Recebi tanta ajuda, as coisas foram se ajeitando. Aquela vontade de voltar pra casa foi passando, toda vez que eu entrava na sala de aula e eu aprendia tanta coisa nova, achava tão interessante, ficava como uma pessoa que chegou em um lugar diferente. A estrutura da UFGD, fiquei apaixonada, até então nunca tinha entrado em uma universidade”, diz animada. “Chegar numa universidade federal, você conhecer aquela estrutura, as salas imensas, aquele ar condicionado, cada disciplina sendo dada por um professor diferente. Você vê aquele tanto de coisas novas, nossa eu aprendi muito, muito mesmo”, completa relembrando a sensação primária da vez em que vislumbrou o local que a receberia. Estar em um ambiente universitário envolve fatores que vão além do desempenho particular nas disciplinas obrigatórias e optativas que integram a grade curricular. Para Walkíria, parte significativa da gra110


O caminho possível

duação foi os relacionamentos desenvolvidos com os colegas, a necessidade de aprimorar suas habilidades de comunicação e aprender a lidar com os professores, que já não eram os conhecidos do ambiente do cursinho comunitário, no qual ficou por dois anos. Walkíria conta que, apesar de ter enxergado uma certa dificuldade em se inserir em um grupo, por acreditar que as salas já tinham divisões bem definidas, isso não demorou para acontecer. “Quem aqui tem computador?”, o professor pergunta em uma de suas aulas. De maneira rápida, todas as mãos estão levantadas. Exceto por uma, que permanece abaixada. Um entre os braços erguidos na sala dos sessenta alunos permanece colado ao corpo. Era o de Walkíria, que naquele momento se viu como exceção. Diferenças já lhe eram velhas conhecidas. Naquela sala, reparando e seu braço abaixado, o que lhe fazia desigual estava demarcado de maneira exata. O que era sentido diariamente, já há muito tempo, agora poderia ser expresso de modo percentual, se alguém se importasse em reparar. Walkíria era 1,67%. “Por que você não levantou a mão Walkíria?”, o professor indaga. “Porque não tenho computador”, esclareceu o que o seu braço não erguido já havia dito. “Então, você é a única miserável da turma?”, silêncio. Na época, os colegas da turma reprovaram a atitude do professor, e perguntaram se Walkíria pretendia fazer algo a respeito. Acreditou que não valia a pena fazer algo sobre, preferia continuar com seus estudos e fazendo o possível para se adaptar, da sua própria forma. Depois, ganhou um notebook, que hoje ainda não é o seu mais próximo amigo mas já não lhe causa tantos arrepios. A máquina já passa a estar mais naturalmente integrada em seus dias, e aos poucos, Walkíria a domina. “Eu sempre fui muito quieta e muito tímida”, foi uma frase que Walkíria repetiu diversas vezes em nossa conversa. Quando descreve a si mesma, usa palavras de sentidos próximos. Na minha, tímida, quieta, neutra, tranquila. Foram alguns dos adjetivos que escolheu quando tentava me explicar a sua personalidade ou justificar como se deram os acontecimentos diários e outros de grande impacto em sua vida. A alteração no ritmo de vida foi um dos aspectos que mais a assustou, assim como o modo distinto que se configura o hábito de estudar no ensino universitário. “Eu vivia com a cara nos livros, não é igual escola. Até o professor na faculdade nos falava isso, muita coisa é diferente”. “Eu não gosto de incomodar ninguém, mas se eu preciso eu peço. Alguns dizem que não podem, que tinham outras coisas pra fazer, mas eu conheci pessoas maravilhosas, que no geral sempre que eu precisei, 111


Walkíria

me ajudaram. Eu sempre fui aquela de troca, a pessoa me ajuda, eu sei agradecer, tenho outras coisas que sei fazer. Eu não sei fazer isso que tô precisando agora, mas eu sei fazer outras coisas, você pode contar comigo. Dou um presente, uma lembrança. Eu sempre agradecia as pessoas que me ajudaram”, e destaca que quando encontrava pessoas que estavam dispostas a lhe ajudar no que podiam, se sentia acolhida. Quando é convidada a lembrar de seus professores, Walkíria diz que muitos se colocavam dispostos a ajudar. Apesar da graduação exigir uma forma mais autônoma de método do estudos, ouviu de mais de um professor que caso restassem dúvidas, os alunos poderiam procurá-los em suas salas. Entre cada relato do período de sua graduação, ela separa um espaço de seu discurso para evidenciar sua felicidade por ter conseguido. Quando descreve a sua sensação, pergunta-me se consigo entender o que ela quer dizer. Se está conseguindo transmitir a importância que via em a cada semestre concluído, somar novos saberes ao seu “currículo”, mais do que aquele que distribuímos na procura de empregos, mas no amontoado de descrições que apresentam o que podemos fazer. “Da rosa pro cravo, do cravo pra rosa, da rosa pro favo, e de volta pra rosa”, é o que diz Vinícius de Moraes, na canção escrita na cidade carioca, no início da década de setenta. Intitulada “As Abelhas”, a canção pronuncia em quatro estrofes os afazeres diários que se unem ao que é ter um dia de abelha. A ida da rosa para o cravo, do cravo para rosa, da rosa para o favo e por fim para a casa, já dizia sobre o que é ser abelha e aqui, o que é ser Walkíria. A vida que agora era dividida em jornadas, em horas marcadas, e em afazeres listados. Se assim não fosse a vida da abelha, acabaria por ficar sem pólen, a ficar sem nada. Os estudos da graduação foram completados no primeiro semestre de 2016. Walkíria não costuma chorar com frequência, mas chorou no dia em que teve entre os dedos das mãos o certificado de conclusão do curso. O fim daquilo que pensou que seria grande demais. Segurava a oficialização de que havia de fato conseguido, saiu do bairro da estrela mas encontrou a sua maneira de fazer permanecer o brilho que já era seu, agora incidente em um novo lugar. As lágrimas apareceram pela lembrança exata daquilo que foi estudado, renunciado e aprendido. Não há nada mais valioso do que poder carregar um conhecimento que nasceu de uma escolha que fez por si mesma. O diploma era o sonho palpável. O elo com os solos acadêmicos não se findou com a chegada do término. Walkíria escolheu permanecer por um tempo estendido, 112


O caminho possível

e agora, ao lado de novas companheiras, que, assim como ela, entendem de ir do cravo para a rosa, da rosa para casa.

Primavera

Era setembro, o mês escolhido para a minha conversa com Walkíria. Com os novos jeitos que assumiram o mundo no ano da escrita deste livro, esperava conhecer sua casa por meio do enquadramento permitido pela tela do computador. Antes dos primeiros segundos de conversa, organizei a mesa de vidro para a nossa conversa. Um pequeno caderno, para marcar a ordem das perguntas premeditadas. Um copo de água, caso o calor da tarde da primavera me roubasse o fôlego. O computador, canal que tornaria todo o diálogo possível, centralizado na mesa, confiro se a bateria está carregada por três vezes. O sinal de Walkíria aparece na tela, marcando que já estava disponível para a entrevista entre a capital e Dourados.

Nos segundos que antecedem sua entrada na chamada sala virtual, imagino qual cômodo de sua casa estou prestes a conhecer. Ela aparece, primeiro apenas os olhos e o topo de sua cabeça, demora um pouco até que ela lembre de posicionar novamente sua câmera para que eu consiga ver sua expressão por inteiro. Primeiro, sou tomada pela curiosidade, tentando adivinhar qual cômodo aparecia por trás da pequena cadeira onde Walkíria estava. Ao fundo, apareciam do lado esquerdo uma estante cinza grande, feita de metal, lembrando as que costumam estar em depósitos de lojas. Eram visíveis duas prateleiras, na inferior estava um saco plástico preto, iguais aos que recebem lixo, parecia estar abrigando um volume grande de objetos. Na prateleira superior, uma caixa amadeirada. Situadas logo ao lado da prateleira acinzentada, estavam empilhadas duas caixas, a da base feita de um plástico verde, e a de cima, menor em tamanho e feita de papelão. O ambiente parecia ser pequeno, e repleto por utensílios guardados. Na parede que aparecia ao fundo, pendurava-se uma espécie de mural, com o que pareciam ser várias fotos organizadas em fileiras, apertei os olhos para identificá-las, mas estavam longe. 113


Walkíria

Antes mesmo do tempo para a pergunta curiosa sobre o que seria aquele cômodo, Walkíria já se adianta. “Eu estou tranquila, estou aqui no laboratório da UFGD, esse aqui é o laboratório de apicultura, mexo com abelhas no meu mestrado”. Pela primeira frase já percebi que quando tratava-se de suas pesquisas e rumos acadêmicos, uma palavra transforma-se em frases em um piscar de olhos. A razão do seu mestrado foi a primeira informação dada por Walkíria, que parecia mesmo estar falando diretamente de sua casa, ou pensando-se no mundo animal, em seu habitat natural. No primeiro momento, estranho sua resposta, já que desde março, há seis meses passados, todos os campus universitários estão sem atividades presenciais. Como que lendo minha estranheza, ela me diz que possui a chave do laboratório, e que recebeu permissão para dar continuidade com as análises das abelhas, a data final da conclusão de seu mestrado acadêmico se aproximava. Quando explico a razão de tê-la escolhido para conversa, ela logo solta um “que chique!” e diz estar feliz por estar ali. “A minha história com o Instituto foi um divisor de águas pra mim. Eu era muito tímida, não falava nada, pra mim ter essa conversa com você seria bem difícil. Eu ficava ali quietinha, e fiquei 12 anos fora da escola, depois que eu terminei o ensino médio, eu fiquei parada e aí senti aquela vontade de voltar a estudar, de ter um curso superior que sempre foi o meu sonho”. “A diversidade de abelhas nos parques urbanos de Dourados” é o tema de sua pesquisa, e logo narra parte da rotina do que é ser pesquisadora. Escolheu dois parques públicos da cidade, nos quais precisava ir duas vezes por mês, ficando lá das 8h às 16h. Não demora para Walkíria transparecer seu encanto pelas abelhas, sempre que pode as nomeia pelos nomes científicos e me conta suas diferenciações como quem conta uma história que de tanto ouvida, decoram-se as partes e falas dos personagens. Dessa história, ela não esconde as partes menos agradáveis. “Já passei muito apuro nesses parques. Tive que correr lá das pessoas que iam atrás de mim, quase fui roubada. Como fico lá o dia inteiro, várias pessoas passam por você, te apertam, mexem com você e acaba que fico com medo. Medo de roubar sua máquina, porque eu tenho que ficar tirando foto para a pesquisa. Levo pouca comida, eu bebo pouca água porque não tem como você ficar indo no banheiro”, ela diz fazendo questão de detalhar os processos penosos da pesquisa. Não demora para os termos científicos tomarem espaço na conversa, ela parece querer se certificar que estou acompanhando a sua explicação, e que se torne compreendido o valor do estudo com as 114


O caminho possível

variadas abelhas. “Eu coleto as abelhas que ficam nas flores, daí elas vão pra um potinho, de lá elas vão pra um saco, vão pra universidade e ficam num freezer, e daí eu deixo na caixa entomológica”, completa. Quando fala das abelhas, vê que só as palavras já não eram suficientes. Então, se levanta e deixa por alguns segundos a câmera mirando apenas o pequeno pedaço do laboratório. Quando volta, me apresenta uma caixa cheia de abelhas, todas paralisadas e colocadas uma ao lado da outra, respeitando sempre uma distância parecida entre elas. Walkíria me diz que ali dentro estão mais de uma espécie, e que elas precisam ficar sempre organizadas, lembrando as exposições feitas em museus. E essa é a impressão transmitida, para um olhar mais calmo e detalhista, aparece um sistema bem calculado de organização, e para quem não entende das nomenclaturas e divisões profissionais, já fica claro que trata-se de algo importante, com razões e objetivos finais bem definidos. Para quem ouve Walkíria explicando as chamadas divisões e apontando com cuidado para os nichos da caixa com tampa transparente, também se torna evidente o apreço compartilhado entre ela e os pequenos insetos. Isso é transparente como o vidro. Ao se levantar, é possível ver com mais detalhes a blusa preta de mangas curtas e gola mais alta, que permitem maior contraste em contato com os brincos. Do lado direito, o brinco é mais curto, formado por uma pequena parte de metal que lembra o formato de uma gota, e na ponta pendura um círculo feito por um material que lembra o artesanato, remetendo a uma semente. No lado esquerdo, o brinco é extenso e ultrapassa a linha do ombro. Formado por um círculo grande feito por linhas que lembram palha de um tom dourado, ligado a penas em tons de azul e amarelo, o que dá a Walkíria os ares indígenas, que logo seria o alvo de nosso diálogo. Nos olhos, percebia-se uma leve sombra brilhante e a marcação inferior feita pelo lápis preto. Não usava batom escuro, e assim, o enfoque se dava no olhar. O próprio objeto de estudo do mestrado não chegou a Walkíria com facilidade. Assim que terminou a graduação, foi influenciada pelos professores e convenceu-se de que ficaria por mais dois anos na cidade que agora, já era bem conhecida. Já contava com amigos, e as ruas já não eram tão distantes e confusas. Walkíria conversou com um de seus professores, dizendo que gostaria de estudar insetos. Na ocasião, só havia vaga para os estudos em Biologia Geral, não era o desejado por ela. Ainda assim, movida pelo desejo dos rumos acadêmicos, fez a prova de admissão para o mestrado. Não foi aprovada. Decidiu prosseguir 115


Walkíria em Dourados, e frequentar as aulas do mestrado como aluna especial, uma forma de participar das aulas sem estar efetivamente matriculada. Nesse período, confirmou o que já sabia. Gostaria de se especializar no estudo dos insetos. No próximo ano, realizou a prova novamente, dessa vez se dedicou aos estudos, movida pelo anseio em dedicar seus esforços ao que era de fato alvo de sua curiosidade. Dessa vez, fora aceita e, assim, tornava-se oficial o início do trajeto ao lado das amadas abelhas. O adjetivo “amadas” não configura exagero literário. Seguindo o olhar após o fim do brinco que carrega a semente na ponta, logo se percebe o desenho da abelha gravado de forma permanente nos ombros de Walkíria. Ela ajeita os cabelos lisos e pretos para trás, se posiciona mais perto da câmera e me mostra o desenho, mostrando o que seria a prova do “tanto” que ela gosta das abelhas. Nem precisava dizer, o gosto já era aparente a essa altura da nossa conversa. “Eu prefiro ficar aqui estudando as abelhas, é um ambiente onde me sinto bem, se eu ficar em casa eu acabo prestando atenção em outras coisas e aqui tem tudo que eu preciso”, ela diz respondendo a razão de estar no laboratório da Universidade. Procuro saber com mais detalhes a forma como a ideia de fazer mestrado surgiu, e descubro que veio depois da constatação que, ainda que voltasse, o bairro da Estrela já não pareceria o mesmo lugar. Pelo menos, não para Walkíria. “Assim que eu terminei eu pensei em voltar pra Campo Grande. Quando eu cheguei lá eu vi que era meio diferente, quando você pensa em voltar não é mais a mesma coisa. Eu não me sentia mais, não sei, eu não me sentia muito bem mais em Campo Grande, então eu pensei ‘vou me dar a oportunidade de estudar novamente’, finaliza. “Eu saí contente e pensei ‘eu passei no mestrado’ eu falei pra mim mesma. E quando saiu o resultado eu vi que eu tinha sido aprovada e com bolsa. Aí eu falei pra minha família ‘olha vou ficar mais dois anos’ quem não gostou foi minha mãe, que queria que eu voltasse pra Campo Grande”, e completa dizendo que já com o fim do mestrado se aproximando, pensa em voltar para Campo Grande para satisfazer o desejo da mãe. “Eu gosto de pesquisa, gosto do que eu faço. O futuro a Deus pertence. Eu vejo que as coisas acontecem na vida da gente né? A gente até pode se programar, igual eu falei assim que eu ia voltar pra Campo Grande mas na hora eu mudei de ideia e acabei ficando, fiz a prova e estou aqui. Eu não sei o que vai acontecer comigo, mas eu pretendo sim trabalhar na minha área”, diz com esperança na voz. Os limites do ensino superior se expandem à medida que por meio das figuras que por ele passaram, é construído o conhecimento que providencia o discurso que traz para a sociedade os próprios instrumentos para a sua liberdade. 116


O caminho possível É criado o espaço para questionar e conhecer o que substancialmente é responsável pela formação dos sujeitos. As grandes áreas se unem, se contrastam e se complementam em prol de conhecer o que de fato é existir em sociedade. Conhecer os dilemas e propor intervenções. No meio do caminho, alunos se descobrem e ganham espaço para a exposição do que para eles significa existir. Assim como foi com Walkíria. “Eu vejo que o que mudou foi o conhecimento. Eu cheguei leiga de tudo aqui. O que eu aprendi eu levo pra vida. Cada semestre, é uma disciplina diferente que aprofunda. Saber falar das coisas da minha área, me deixa muito feliz. As coisas começaram a melhorar pra mim agora no mestrado, eu recebo uma bolsa de 1500 reais...daí no ano passado eu vi que eu tinha que ter essa melhora. Eu vi que tinha que ter essa transformação, falei ‘eu preciso me arrumar, eu sou uma mulher bonita’, então eu cortei meu cabelo porque antes eu só andava com o cabelo preso, passei a ter uma maquiagem, coisas para mim”, completa lembrando da sensação nova em dar voz a auto-estima. “Eu passei a ver vídeos das pessoas que colocam a gente pra cima! Que nós somos mulheres bonitas, poderosas...temos que usar uns termos assim, poderooosa, empoderada”, diz em tom de brincadeira, mas que permite revelar a importância dos termos em seu novo vocabulário. A mudança foi notada em um primeiro plano por ela mesma. Sentiu o ganho de confiança para falar, interagir e se expressar. Não demorou para ouvir dos próprios professores, ao se encontrarem pelos corredores da Universidade. ‘Esse mestrado fez bem para você. hein Walkíria?’, e assim recebia a confirmação de que estava conseguindo transparecer aquilo que não queria esconder. O impacto de estar construindo um futuro moldado às suas próprias escolhas. O direito da escolha é negado de forma intensa e ocorre de maneiras incontáveis nos contextos mais pobres da população brasileira. O acesso à educação superior por Walkíria, ainda que seja a expressão de um direito possuído por ela, merece ser celebrado, porque não é possibilitado a muitas outras com características e origens semelhantes. Walkíria conta que ouviu de um professor durante o mestrado que antes, ela era de um jeito diferente. Ela faz um gesto de colocar as duas mãos ao lado do rosto e o abaixa, mostrando um gesto para a timidez. Lembra que atividades corriqueiras da rotina acadêmica, como a apresentação de seminários em slides, eram vistas quase que como tortura. “Tem umas pessoas que apresentam super bem, e admiro elas, mas eu não era assim. E tem uns professores que não

117


Walkíria

sabem conversar, né? Que te deixa pra baixo. Deixa você de certa forma desanimada. Porque você estar ali, apresentando dando a cara a tapa, não é fácil”, ela relembra e detalha as cenas de apresentação de trabalhos, e se vê feliz com o seu próprio avanço ao longo dos anos. Hoje, os slides não a amedrontam como antes. “Eu fui trabalhando nisso, eu pensava ‘sou uma profissional, tô estudando para ser professora”, então fui quebrando limites de mim mesma. Muitas vezes eu falava que não ia conseguir e as pessoas falavam ‘você consegue sim, Walkíria, se você tá aqui é porque você consegue’. E hoje eu vejo que estou bem, percebo que quando a gente faz o que a gente gosta, você se modifica. Hoje eu levanto e agradeço a Deus, gratidão. Essa é a palavra que eu uso”, e explica que se certifica de que seu vocabulário seja preenchido por palavras positivas. Garante que esse costume, é resultado do que aprendeu durante os últimos anos. “O que me mantém é olhar para trás e ver tudo que eu passei, sabe? Ver que não quero mais aquela vida para mim, que não quero mais ser aquela Walkíria de antes, hoje eu tô contente com essa Walkíria aqui. Com essa pessoa que sabe conversar, que sabe se comunicar, que entende um pouco de biologia, não tudo, mas que sabe um pouquinho de tudo. Então, com tudo isso que aprendi, eu sou muito grata. E consegui ser uma pessoa humilde para falar com as pessoas”. Antes de nos despedirmos, ela comenta sobre a tristeza ao ver a situação de destruição ambiental que se agrava nos últimos meses. Ressalta o valor e a fundamentalidade das abelhas para o meio ambiente, e destaca, sempre que puder ajudar o seu amado cursinho a ajudar outras pessoas como ela, assim fará. E encerra: “Assim nós duas vamos fazendo história, né? Você do seu jeito, e eu do meu”, completa. E compartilha comigo parte da sua própria história, e como em todo encontro entre entrevistadora e entrevistada, com o terminar das perguntas, Walkíria e suas incontáveis abelhas passam a integrar a minha também.

118


O caminho possível

119


POSFÁCIO Na tentativa de traçar uma origem para o meu contato com a temática da educação, de forma mais sistematizada, é preciso retornar ao final de 2019. Durante um trabalho para uma disciplina do curso de Jornalismo, na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), tive contato com um projeto dominical que oferece alimentação, aulas de música e de teatro para crianças de um bairro carente na capital. A missão pré-definida era a de realizar entrevistas com os idealizadores e com os professores daquele projeto. Naquele domingo, não fui com expectativas de encontrar algo surpreendentemente novo, afinal, já possuía uma certa idealização do que seria passar a manhã de domingo ali, ao lado de crianças que enxergavam no projeto o ponto mais alto e esperado em suas semanas. Olhei para as crianças, ouvi sobre suas vulnerabilidades e desafios enfrentados, na maior parte, dentro de suas casas. Ouvi também sobre nascimento de sonhos, e me surpreendi ao perceber o elo estreito entre a origem de sonhos e a geração de conhecimento o qual foram apresentados. Foi nesse ponto que descobri que o potencial de transformação a partir da educação seria a temática a qual gostaria de conhecer, escrever e apresentar ao mundo com maior profundidade. Em um bloco de notas, delimitei “a inclusão social de populações vulneráveis a partir da educação”, como tema para o que viria a ser o meu trabalho de conclusão de curso da graduação. 120


O caminho possível Tal escolha estava intimamente ligada ao compromisso que reuniria todos os meus esforços e atenção durante todo o ano. Deveria ser um tema que eu enxergasse um vínculo que justificasse tamanhos esforços. Assim, a educação para populações vulneráveis se estabeleceu de maneira definitiva entre os meus pensamentos. Realizando-se um salto temporal, já no período de elaboração do pré-projeto elaborado no primeiro semestre de 2020, veio o primeiro entendimento: a educação é um campo extremamente amplo. Percebi então que o que eu enxergava como recorte ainda abraçava muitas nuances que apenas um livro-reportagem não seria capaz de abarcar. Eram variados desafios, primeiro decidir o nível de ensino, depois, delimitar de quais vulnerabilidades eu falaria, já que infelizmente, são tantas em variadas formas. Por fim, encontrar os melhores recursos de apresentação das histórias que eu conheceria. A decisão pela delimitação da educação superior foi concebida a partir de longas reflexões, que passou a considerar mais do que afinidade pessoal, mas a própria manifestação das temáticas da educação no tecido social. Recordei os ávidos discursos ouvidos em sala de aula acerca do processo de desvalorização da educação superior. Relembrei as frases ouvidas em situações cotidianas, construídas no sentido de desvalorizar a posse do diploma universitário. Analisei as estatísticas que marcam a diminuição dos recursos destinados à educação superior pública e o agravamento da situação vivida pelos pesquisadores que dependem das bolsas para a continuidade de seus estudos. A lembrança vivida dos jornais laboratórios produzidos pelo curso sendo oferecidos em escolas públicas e em meio a manifestações contra os cortes de verbas. A tentativa incessante de mostrar o potencial da universidade pública para a própria sociedade. A partir dessas e de tantas outras constatações, percebi que era preciso construir um produto que primasse por um discurso de valorização da educação superior. Houve um caminho de dúvidas até a decisão pelo formato do livro-reportagem. Sobravam as dúvidas e a cobrança por encontrar o “formato perfeito”. Depois, enfim entendi. A esfera que deveria ser atingida por mim seria principalmente a que tange aos sujeitos. A vida que ninguém, ou que pouca gente vê, como diria Eliane Brum. Empenhei-me em construir narrativas que exemplificassem o impacto da educação superior em vivências particulares. Para isso, encontrei resposta no livro-reportagem. Depois, no jornalismo literário somado ao perfil. A maneira pela qual a educação superior deveria ser valorizada pelas minhas linhas seria a partir de gente de “dentro” das salas de aula. Perceber como se deu a entrada desses 121


posfácio personagens, a manifestação das desigualdades, e as mudanças percebidas na identidade, perspectivas e na própria esperança desses personagens tornou-se o objetivo central. Em conversas com o público - segurança, saúde e por fim, a educação são sempre alvos da maior parte dos clamores. Entretanto, quantos seriam capazes de defender e embasar suas argumentações pelo direito à educação superior? Ou ainda, em relacionar o contingente de conclusão do ensino médio com a inserção em níveis posteriores de ensino? Fornecer ferramentas para essas discussões estão entre os imperativos levados em consideração no momento de elaboração de perguntas, de escolhas de estatísticas a serem apresentadas, e por fim, na forma de escrever cada história apresentada. A valorização da educação superior não implica na desconsideração dos tópicos que ainda precisam ser repensados e reformulados. Entretanto, reconhecer as lacunas não minimiza o enfoque em seu potencial de transformação e emancipação. Com isso, relacionar temáticas profundas e complexas a partir de novas roupagens, de instrumentos “emprestados” da literatura, tornaram-se alvo de meu interesse para um futuro profissional, no mercado e em pesquisas acadêmicas. No livro-reportagem produzido, há um convite para se olhar as desigualdades. A repensar as formas de caracterização de privilégios. A defender a educação superior como um direito de todos.

122


123


Evidenciar o acesso à educação superior como caminho para a ampliação de escolhas e de oportunidades a partir da entrada e permanência em instituições de ensino é a mensagem central deste livro-reportagem. A trajetória do ensino universitário no Brasil possui um longo percurso político e histórico, que perpassa gerações e influencia todo o imaginário coletivo acerca das possibilidades de delineios para o seu próprio futuro. A educação persiste sendo o caminho mais eficiente de inclusão e ascenção social. Neste livro a partir de quatro narrativas, ela será enxergada como o caminho possível.

124


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.