Pelo espelho retrovisor

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Ana Heck Flรกvia Lima Vanessa Albuquerque

pelo espelho retrovisor


Créditos das Imagens: Ana Heck Edição e Revisão: Marcos Paulo da Silva


A todos que contribuíram para que trilhássemos esse caminho. Em memória: Altanir (Neném) Edson João Saraiva Que agora brilham feito estrelas no céu.



Prefácio

“Um passo à frente e você já não está no mesmo lugar”. O verso do lendário compositor pernambucano Chico Science diz, de alguma forma, respeito ao trabalho de pesquisa jornalística e de construção narrativa que se desenvolve nas próximas páginas. Lembro como se fosse a poucos minutos do momento em que o jovem professor recém-ingressado na Universidade foi abordado por três jovens estudantes que compartilhavam um objetivo comum: escrever um livro que humanizasse – para além das estatísticas de volume de cargas e de acidentes de trânsito – o cotidiano da profissão de caminhoneiro. Um livro sobre caminhoneiros? – surpreso, não tardei a questionar. Afinal, não planejavam apenas escrever a partir do distanciamento


que o ofício de jornalista muitas vezes prega, mas desejavam embarcar literalmente no trabalho de campo, rodar por algumas das estradas do país e vivenciar a rotina desses profissionais que respondem pela movimentação de grande parte da economia brasileira. O retorno foi imediato. Já haviam pensado nos detalhes da logística. Agosto seria mês de recesso escolar e, como caminhoneiro, o pai de uma delas – a primeira a vislumbrar a pauta – seria o responsável por conduzi-las estrada afora e introduzi-las no universo particular da vida dos profissionais de carga. Também fui tomado por certa empolgação. No brilho dos olhos das jovens futuras jornalistas, imaginei uma pitada das aventuras de Sal Paradise e Dean Moriarty, personagens centrais da trama beat “On the road”, obra clássica da década de 1950 do escritor norte-americano Jack Kerouac. Também dos Estados Unidos veio a inspiração “sem-destino” dos protagonistas de Easy Rider, famoso road movie da segunda metade do século XX. Enfim, deram o passo à frente. A longa viagem de carona que cortou grande parte do território do Mato Grosso do Sul e do interior de São Paulo foi sucedida de uma vasta pesquisa jornalística: localização de personagens, novas entrevistas, conhecimento da legislação de trânsito, levantamento de estatísticas, estudo do vocabulário próprio da profissão... Em suma, tarefas que somente as ferramentas jornalísticas ofereciam ao grupo.


Os desafios, todavia, não pararam por aí. Um novo passo precisou ser dado. Como construir a narrativa? Eram três olhares distintos para o fenômeno. Além disso, tinham na manga dezenas de personagens entrevistados e/ou que haviam sido objeto da técnica de observação participante. O desafio possuía tamanho diretamente proporcional ao mosaico de pontos de vista que o grupo conseguira coletar. À cabeça veio a ideia da construção de um personagem complexo. Não um personagem ficcional, fruto da descompromissada imaginação, mas o resultado de um trabalho jornalístico desenvolvido com objetivos claros. Uma vez mais a coragem do grupo foi posta à prova. Neste orientador, encontraram o anteparo conceitual para que seguissem em frente. Afinal, como advoga Edvaldo Pereira Lima, “quando a ciência avança para horizontes mais sutis de percepção, por que o jornalismo deveria permanecer restrito a um campo de visão míope, em tempos modernos? Por que não deveria encontrar os pontos de confluência entre o real visível e aquele menos tangível que se insinua camuflado, tímido e fugidio, por detrás dos acontecimentos concretos?” (2004, p.131). Embora cientes de todas as limitações que um trabalho de conclusão de curso apresenta, essas três futuras jornalistas levaram às últimas consequências o título daquela disciplina denominada “projeto experimental” – âmbito que, paradoxalmente, muitas vezes escapa àquilo que, de


fato, é experimento. Experimentaram na linguagem; experimentaram na ousadia. Além disso, repito, mesmo em suas limitações naturais, colocaram como norte a perspectiva do new journalism tão bem talhada por Tom Wolfe no precursor The right stuff, quando, na distância de poucas linhas, o narrador se torna astronauta, depois esposa, depois astronauta novamente, e assim por diante. O trabalho ainda será julgado: por outros professores, por leitores comuns e, quem sabe, pelos próprios caminhoneiros entrevistados que – cada um à sua maneira – deram origem ao personagem central que conduz a narrativa na primeira pessoa do singular. De nossa parte, fica a euforia. Boa viagem!

Marcos Paulo da Silva – professor orientador Campo Grande, 11 de novembro de 2013.


Sumário

Introdução: Os caminhos possíveis

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Eu

1. Trecho de partida 2. Uma estrada, dois caminhos

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Tu

3. Espelho 4. Horizontes 5. Percalços

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Eles

6. Ausência 7. Roda viva

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Referências Bibliográficas

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Introdução: Os caminhos possíveis

Inicialmente a ideia era de uma só. Ela trazia a experiência vivida durante muito tempo. Seu pai passara anos na estrada e era esse mundo fantástico que nos atraia. De uma conversa simples surgiu o interesse das demais. Primeiramente mais curiosidade sobre essa vida, onde as inquietações são pouco conhecidas e exploradas. Escrever sobre o assunto surgiu de uma maneira, digamos, nada convencional. Queríamos destrinchar todos os aspectos possíveis desse universo, perdemos o foco. Talvez tenha sido a inexperiência responsável por isso. Os pensamentos borbulhantes estavam presentes em mentes que previam apenas

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possibilidades do que tratar. Ideias compartilhadas surgiram de diversas maneiras em cada cabeça. Juntando todas elas, a exemplo de um amontoado de peças encaixadas como um quebra-cabeça, puderam se tornar uma grande ideia. As inquietações de uma tornaram-se as angústias das outras. É como o preparo de um bolo: mistura-se tudo. Cada ingrediente colocado é responsável pelo resultado que se deseja chegar. Tudo pulsa para ser colocado no papel por aspirantes a jornalistas com muita vontade de escrever história. História de pessoas, da vida, das estradas. Um pouco confuso à primeira vista... e talvez muito mais na sequência. Mas foi exatamente isso o que sentimos. O que escrever? Como escrever? O que abordar? Como sair do lugar comum? Talvez tenhamos sido seduzidas pelas possibilidades que surgiram aos olhos: o anseio era conhecer todos os ângulos. O medo era de não chegar a lugar algum. Aos poucos, mergulhamos nesse universo, buscando na memória histórias curiosas, amigos que faziam parte desse mundo. Em conversas paralelas, cada uma identificou aquilo que mais chamava a atenção. Enfim, a vontade de enxergar a olhos nus, sem estereótipos, o que realmente está presente em cada vivência desses profissionais. Nossos personagens às vezes parecem ser

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um só. São histórias que se cruzam. São famílias que convivem quase diariamente com a saudade. É gente que cria vínculos que não os prende em lugar algum. Gente que conhece o mundo, mas às vezes desconhece sua própria natureza. Histórias inusitadas? Eles têm de monte. Vivências de perigo? Por quantas já passaram. Em casa deixam mulher, filhos, mãe, irmãos. Na bagagem carregam toda essa ausência, somado à presença de novas descobertas. Em cada pedacinho de terra que passam deixam sua marca e carregam um pouco daquele lugar. Talvez não seja fácil entender o que motiva os caminhoneiros. Alguns estão ali apenas pelo dinheiro, precisam dar sustento à família. Outros não se veem parados em um lugar só. O prazer da liberdade fala mais alto do que a “prisão de bater o cartão”. Primeiro molhamos apenas nossos pés nas histórias que eram descobertas, mas logo mergulhamos por inteiro. Tudo passou a ser parte do que queríamos construir. Talvez nem tudo caiba nas páginas que seguem. Sim, tivemos que selecionar e até mesmo lapidar parte daquilo do que conhecemos. Mas, absolutamente, tudo permanece em cada uma de nós. O contato com algumas famílias, mesmo que apenas para compreender melhor onde entrávamos, foi fundamental. Quando estão em casa falam de seus

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feitos; os filhos olham com admiração. Começávamos a compreender o que realmente estava por vir. Em meio às conversas surgiram histórias: acidentes graves, a companhia dos filhos nas viagens, a experiência nas estradas, os lugares passados. Esse foi nosso primeiro contato efetivo com um caminhoneiro. Ele, Airton Heck, é quem nos levaria em sua cabine por essas estradas que cruzam o país. Era chegado o momento de entrar na boleia e enfrentar o desconhecido. Treze de agosto de 2013, 5 horas e 30 minutos, começava a aventura. Saímos de Sidrolândia (MS) e seguimos até Campo Grande (MS), onde esperamos a manhã inteira em uma empresa de processamento de grãos pelo carregamento do caminhão. Após o carregamento, tocamos viagem, mas só no dia 16 chegaríamos a Rio Claro (SP), onde seria feito o descarregamento. Durante a viagem, os dias começavam com música, geralmente sertaneja de raiz, que às vezes se misturavam a pequenas orações. No caminho quase presenciamos acidentes, a irresponsabilidade de alguns motoristas ocasiona isso. Tivemos a experiência de comer na “caixa” (uma cozinha improvisada que fica na carga, perto das rodas do caminhão). A estrada às vezes se fazia vazia. Os carros estavam ali, mas o pensamento ia longe. Talvez fosse um pouco de saudade de casa, ou o anseio de absorver todas as experi-

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ências em poucos dias. Em cada parada o tempo era cronometrado: cada segundo é realmente precioso para um caminhoneiro. Cada minuto o aproxima mais do destino final e, consequentemente, o reaproxima de casa. Cada cochilo depois do almoço recarrega as energias para mais algumas horas de estrada. Estávamos, enfim, inseridas no cotidiano, no universo que sempre desejamos explorar e narrar. Era chegado o momento de partimos para o contato com as histórias de caminhoneiros. A cada entrevista uma nova descoberta e, ao mesmo passo, histórias repetidas. Todas serviram para montarmos um personagem complexo, que dará vida a todas as características que encontramos, bem como possibilitaram a construção da narrativa presente nas próximas páginas. Boa leitura!

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Parte I

Eu


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Trecho de partida

- Dois anos de trabalho na Argentina. Não foi fácil, tinha que falar a língua deles, me adaptar, mas consegui. Costumava ficar trinta dias longe da família. Depois preferi trabalhar somente no Brasil. Viver entre diferentes fronteiras faz parte da rotina de muitos profissionais de carga brasileiros. Assim era a vida de Eraldo Pereira dos Santos, 58 anos de idade e quatro décadas de estrada. Começou jovem nessa função. Quando ainda vivia na rota internacional, carregava frango na ida e maçã na volta. Eraldo é um caminhoneiro, assim como eu – e esta é a nos-

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sa história. Não sou apenas “um”, mas o retrato de muitos. Também não sou um personagem ficcional. Sou, na verdade, o resultado de uma extensa pesquisa jornalística, o que me faz um personagem complexo, elaborado a partir de perfis de vários desses profissionais que preenchem constantemente as estradas brasileiras. São quase dois milhões de colegas que diariamente cruzam o país. Nossa economia é dependente do transporte rodoviário de carga. Em 18 anos tivemos um aumento de 116 mil quilômetros de rodovias. Consequência de um processo histórico que levou o governo federal à investir nessa modalidade, o que sucateou o transporte ferroviário e não estimulou o desenvolvimento do transporte hidroviário. Muitos me enxergam como um problema nas estradas, alguém que faz continuar viva, por exemplo, a prostituição nos acostamentos. Simplesmente esquecem, porém, que passo dias, semanas ou até mesmo meses longe de casa. Passo domingos sozinho em postos de combustível com a companhia única dele, o meu caminhão. Chamo-me Claudino Pereira, tenho 42 anos, mais de 20 pelas rodovias – um retrato médio do caminhoneiro brasileiro. Sou campo-grandense e aprendi a profissão com meu pai. Desde pequeno me deslumbrava com seu caminhão e me imaginava guiando aquela máquina. Afinal, é natural que essa paixão

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passe de geração para geração. É comum encontrar colegas de profissão que herdaram o ofício do pai. Foi assim com Arlindo Strack, um amigo de Sidrolândia, cidade de 40 mil habitantes, vizinha da capital sul-mato-grossense. Por 19 anos, Arlindo teve o volante em suas mãos. Hoje guia sua transportadora no pequeno município. De certa forma, não deixou de lado o caminhão, já que ainda vive do serviço que ele oferece. Arlindo começou bastante jovem, tinha apenas 16 anos, ainda sem habilitação. Ficou dois anos nessa situação – um sinal da precarização da profissão num passado recente. Aos 18 anos, conseguiu a carteira própria para o transporte de carga. Hoje não é mais assim. Para se tornar um profissional da estrada, a motorista deve ter 21 anos e ao menos um ano de habilitação de automóveis. Essas exigências mudam de acordo com a categoria. Às vezes é preciso ainda mais tempo e experiência. Não é tarefa fácil encontrar uma autoescola no interior do Brasil para se tornar habilitado na condução de um caminhão (habilitações que a legislação brasileira denomina de categorias C e E). Além disso, o investimento é alto para iniciar o curso e o preço dos veículos são impraticáveis para alguns centros de formação de condutores. Há complexidade por trás das regras da profissão. Caso o caminhoneiro comece a transportar uma carga reconhecida como perigosa, não basta estar

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habilitado. Antes, é preciso ter um treinamento oferecido no Brasil por entidades como o Serviço Social do Transporte (SEST) e o Serviço Nacional de Aprendizagem do Transporte (SENAT) – instituições que integram o Sistema Nacional de Mão de Obra (o chamado Sistema “S”) e a Rede Nacional de Formação e Habilitação de Condutores, sistema criado para sintonizar a formação de condutores no Brasil com a Política Nacional de Trânsito. Embora passem despercebidas por muitos, as burocracias da minha profissão são inúmeras. Falar delas quase me faz perder o rumo da conversa. Pois bem, estava apresentando meu amigo Arlindo, um profissional que foi muito cedo para as estradas. Como tantos outros colegas, contudo, seu desejo de conduzir um caminhão é ainda mais antigo. - Sei que eu sempre tive o sonho de ser caminhoneiro. E falo que sou um cara realizado. Era um ideal meu, sabe? Sempre quis aquilo. Meu pai tinha na época três caminhões velhos. Havia dias em que chovia e o caminhão ficava lá dentro da garagem, num galpão. Eu costumava ir lá treinar, botar trieiro1 para aprender. Isso é verda1 Sinônimo de trilho ou de um caminho bem definido.

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de. Tem gente que dá risada, que acha que é brincadeira, mas sempre tive aquela vontade de aprender. Eu tinha uns 14 anos, já queria dirigir, e meu pai foi me ensinando. Ele tinha quatro ares [hectares] de terra lá no Sul. Saíamos de uma fazenda para a outra e meu pai sempre nos deixava dirigir, sentava num lado e incentivava, falava que não tinha perigo. Parece nostalgia, mas a história de Arlindo remete à minha infância. Assim como muitos companheiros de estrada, tenho pouco estudo. Completei apenas o ensino fundamental2. Talvez seja esse o outro motivo que fez com que me encontrasse na mesma profissão de meu pai e de meus irmãos. Nossa profissão é apaixonante, diria que um pouco viciante. O Arlindo mesmo não consegue deixar de dirigir. Quando está em férias, gosta de pegar um de seus caminhões e viajar ao encontro dos familiares no Sul.

2 De acordo com a pesquisa do Programa Ambiental do Transporte – Despoluir, realizada pela Confederação Nacional do Transporte (CNT) e apresentada no relatório “Caminhoneiros no Brasil: Relatório Síntese de Informações Ambientais”, 43,7% dos caminhoneiros possuem ensino fundamental. Foram ouvidos mil caminhoneiros, em 63 postos de combustível em estradas federais e estaduais, localizados em 35 municípios.

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Minha rotina é quase sempre a mesma. O que geralmente muda é o local para onde seguirei viagem. Sair de casa segue geralmente o mesmo ritual. Acordo às 5 horas da manhã, levanto-me para começar a trabalhar. Prefiro esse horário, mais calmo, mais fresco. Aproximo-me dele, o meu companheiro de trabalho: o caminhão. Ligo-o e volto para dentro de casa. O silêncio da cidade mistura-se ao seu som. Enquanto ele esquenta, tomo meu café. Todos ainda dormem, despeço-me de minha esposa levemente adormecida. Deixo meus filhos em suas camas, passo no quarto de cada um. A despedida me faz pensar no tempo que ficarei longe. Ainda assim, acho que não sei viver em outro lugar que não nas estradas. Nelas fiz minha vida. Passei por cada canto desse país. Conheço as mazelas e as riquezas do Brasil. São poucos estados brasileiros que não conheço. Isso também é algo que eu e meus colegas temos em comum. Certa vez conheci um caminhoneiro, o Celso Orlando. Ele começou a trabalhar com caminhão na década de 1970. Naquela época comprou um Chevrolet movido à gasolina e puxava cana-de-açúcar em uma usina chamada Maringá, em Araraquara, interior de São Paulo. É outro apaixonado por caminhão desde sua infância e já rodou muito pelas estradas do país.

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- Só não conheço Piauí, passei perto, mas não conheço. E Roraima. O resto eu conheço tudo. De ponta à ponta. Manaus, Rondônia, Acre, Porto Alegre, Rio Grande do Sul. Conheço tudo. É o que ele me disse em um desses encontros em postos de gasolina. Gosto de ouvir histórias parecidas com a minha e isso é muito comum na nossa profissão. Sempre encontramos alguma semelhança. Algumas vezes ela está no simples fato de sentirmos saudade de casa. Mas as conversas, as histórias compartilhadas, já nos ajudam a rodar mais um trecho. É curioso perceber como nos dá força saber que os colegas também passam por isso, mas continuam a dirigir quase que incansavelmente. Alguns amigos de profissão só permanecem nesse mesmo ofício pela falta de estudo e pela crença de que não sabem fazer outra coisa a não ser dirigir. Muitos falam que preferem essa vida sem uma parada fixa do que trabalhar em obras, pois como caminhoneiros recebem melhor. Talvez você já tenha ouvido algumas expressões que só nós usamos. Nós levamos a carga. Sim, é o que falamos. Por isso é muito comum ouvir “eu estou carregado” e não “o meu caminhão está carregado”. E para nós os lugares para onde vamos são coisas palpáveis.

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Assim, não é estranho ouvir: “faço muito Nordeste ou Sul” ao invés e de “vou ao Nordeste ou ao Sul”. No entanto, sabe o que realmente me motiva a continuar? Não sei se é a sensação de liberdade ou se é a possibilidade de conhecer tantos lugares e pessoas. O fato é que ainda não me vejo longe dos eixos do meu caminhão. Temos nossas preocupações. Deixamos em casa nossa família. Temos medo de assaltos e dessas estradas ruins. Mas, ainda assim, é onde queremos estar. Outros colegas já não pensam do mesmo modo. Querem logo parar. Há ainda alguns que precisam deixar as estradas por conta de problemas de saúde ou de algum acidente. É o caso de Ivo Delavi, outro parceiro que trabalhou bastante tempo puxando carga. Percebi numa conversa com ele que a opção de deixar o caminhão foi necessária por conta de um acidente que sofrera. Ivo tem hoje 66 anos e trabalhou por mais de uma década como caminhoneiro. Antes disso mexia com agricultura. - Trabalhei em fazenda por muito tempo, toquei lavoura por 20 anos mais ou menos. Depois as atividades ficaram um pouco complicadas. Hoje está mais fácil mexer com agricultura, mas na época era complicado. Aí as coisas foram ficando difíceis. Como a

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gente já era da atividade, a única coisa que sabia fazer era trabalhar com caminhão e lavoura, né? Então eu disse: bem, vou sair da lavoura o que que eu vou fazer? Vou pro caminhão! Comprei um caminhão, viajei muito tempo, 13 anos, aí as coisas foram se complicando, me machuquei e ficou difícil. Ivo também contou-me como se acidentou. Acidente um pouco bobo, mas que acabou lhe afastando da direção do velho companheiro, o caminhão. - Eu estava lá em Paranaguá, no Paraná. O caminhão estava vazio. Eu e a Vanessa, minha esposa, fomos jogar a lona em cima da carreta. Estava abrindo a lona, ela numa ponta e eu na outra, veio um vento e eu escapei do lado. Cai de costas e bati o calcanhar, quebrei o pé. Fiquei praticamente dois anos sem poder trabalhar. O pé inchava demais e doía muito. Hoje, Ivo trabalha como taxista também em Sidrolândia. Já são dois anos sem longas viagens. É na nova profissão que ele se agarra para matar a saudade do velho ofício, embora sinta no bolso a diferença.

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- Estou dentro da atividade de motorista, só diminuiu o tamanho do carro, mas continuo nisso aí. Da estrada em si eu não sinto falta. Só que meu poder aquisitivo caiu bastante comparado com quando eu tinha o caminhão. Com o caminhão, eu dependia de mim mesmo, do meu trabalho. Com o táxi não, dependo de outras pessoas. Então, essa é a minha grande dificuldade, pois tenho filho pequeno. Com o caminhão, se você trabalhasse bem, sempre faturava tanto. O táxi é completamente diferente. Além da remuneração também somos motivados pelo espírito aventureiro. Cada dia estamos em um novo lugar. Passamos por várias situações de risco. Há ainda muitas histórias engraçadas. Enquanto aguardamos uma carga ou paramos em um posto de combustível, conhecemos sempre muita gente, um novo colega caminhoneiro, um frentista camarada. O fato é que estamos sempre em contato com novas pessoas. Com algumas delas fazemos amizades que duram quase uma vida. Com outras, isso já não acontece: são os pensamentos que diferem ou algumas atitudes com as quais não concordamos, situações que

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acabam por nos afastar de vários colegas. Vejo muita gente que se deslumbra com nossa profissão, talvez por estarmos sempre em movimento. Mas, repito, é engraçado que não pensam muito na falta que sentimos de casa. Não pensam que gostaríamos de estar mais presentes na vida dos nossos filhos. Geralmente, nossa distância é apenas física, pois, de certa forma, sempre estamos por perto: um telefonema, uma mensagem, possibilidades de comunicação que nos aproximam. Acho que no fundo sempre tive o medo de tornar-me um estranho dentro de casa. Creio que ainda não tenha falado de outro grande parceiro de viagem: meu rádio. Ele, assim como meu caminhão, é outra companhia fiel. Mantenho-me informado, distraio-me, passo o tempo. Costumo cantar junto, em voz alta, e a viagem parece encurtar-se um pouco. De vez em quando é com ele que também rezo. É curioso, pois os radialistas sabem que somos um grande grupo de ouvintes e às vezes conversam com a gente. - Meu amigo caminhoneiro, essa é pra você. Quantos já disseram isso! Aliás, não são somente os locutores que nos fazem sentir profissionais

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valorizados. Não sei se já repararam, mas as crianças costumam ficar encantadas com nossos caminhões, principalmente os meninos. Vejo muitos com os olhos a brilhar, olhando fixamente para cada detalhe, para cada pneu. Enfim, são coisas que aliviam a rotina, já que no meu caso o mais difícil da profissão são as longas horas de espera – espera por carga, espera em postos fiscais – e a constante pressão para cumprir prazo. Mas esse é um assunto que conversaremos mais tarde. Por ora, gostaria de tocar em outros aspectos importantes sobre o perfil de nossos pares. É engraçado, as mulheres têm tomado grandes espaços na sociedade brasileira, mas ainda somos nós, os homens, que trabalhamos, majoritariamente, no transporte de carga. Aos poucos, porém, elas se fazem mais presentes. Representam apenas 0,5% dos profissionais de carga. Outra constatação curiosa é a de que alguns caminhoneiros não gostam de puxar carga para a região Nordeste. Acham muito longe, longas horas de estrada, muito calor. No entanto, assim como o colega Ivo, também vejo algumas vantagens em viajar para aqueles lados. Compartilho com ele, por exemplo, a opinião sobre o benefício de poder planejar um descanso.

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- Para o lado de cá [Mato Grosso do Sul], a frota de caminhão é muito grande. Todos trabalham quase na mesma rota. Quando você viaja daqui [Sidrolândia] para Três Lagoas, vê cerca de dez caminhões, sabe que aqueles dez seguem para o mesmo lugar. Então tu não quer perder tempo, pois sabe que vai chegar lá e se aqueles dez estiverem na sua frente, vai ficar pra trás. É uma correria. E no Nordeste não tem nada disso, não tem essa pressão por horário. Você chega ao meio-dia, por exemplo, e pode se programar: ah, vamos parar em tal lugar, naquela árvore, naquela sombra. Vamos fazer um almoço, dormir um soninho à tarde. Costumava ser bem mais descansado. Aqui é uma correria, uma grande concorrência, o que deixa o trabalho mais complicado. Também é comum termos rotas que não queremos ir de maneira alguma, caminhos que sempre damos um jeito de desviar, de se esquivar. Lembro-me de um lugar que o Arlindo Strack nunca gostava de ir. Hoje, tenta nem mandar seus funcionários.

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- Eu nunca cuspo pra cima e falo que não vou, mas tem um lugar que não tenho vontade de mandar gente, que só uma vez foi caminhão meu pra lá. Não é um lugar pra caminhão, mesmo para mim que já fui pra lá. Se chama São Paulo. Aquilo não foi feito pra caminhão, não tem lugar para estacionar, você para e é multado, tudo o quanto você faz está errado. Então, não deixo ir caminhão meu, tem tanto lugar que tem serviço. Infelizmente, muitas vezes não somos nós que decidimos – e São Paulo, embora assista a uma redução gradual na última década, permanece como uma cidade com um dos maiores fluxos de caminhões do mundo, cerca de 150 mil veículos cadastrados, mesmo com a restrição de horários e áreas para circulação3 . Por outro lado, se evitamos alguns locais, também temos aqueles que são terras quase sagradas. Veja novamente o caso do companheiro Arlindo. Para ele e seus funcionários, o trecho mais comum liga o interior do Mato Grosso do Sul ao Paraná e ao Rio Grande do Sul. 3 Dados do Departamento Estadual de Trânsito (Detran) e da Companhia de Engenharia e Tráfego de São Paulo.

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Nossa rotina nos traz algo que não é muito bom: o estresse. São longas horas diárias no domínio de um veículo grande e muito pesado. Temos que estar no controle da situação a todo o momento. Isso nos pede muita atenção. Mas o trânsito não é feito só por nós, temos que prestar atenção nos demais veículos. Ficar atento a qualquer descuido de um colega de profissão ou de um condutor de veículo menor. Qualquer acidente que envolva uma carreta, por exemplo, pode ser fatal. Nesse sentido, acho que o pior horário para nosso trabalho é no período da noite. As luzes dos faróis dos outros carros confundem nossas vistas, principalmente se vierem juntas ao cansaço. Essa pode ser uma combinação perigosa. Quando meu olho começa a pesar já sinto a necessidade de parar no posto mais próximo. Não adianta continuar, a viagem não rende e ainda pode me trazer sérios danos. Já a minha maior tristeza com relação a essa profissão é o preconceito. Vivemos muito isso. Vou explicar: geralmente estamos sempre relacionados a números. Os índices de acidentes são ótimos exemplos para isso. A suposta contribuição que damos para a manutenção da prostituição é o assunto preferido de tantos outros. Não posso negar que nos envolvemos em acidentes, que cometemos imprudências e que alguns colegas pagam por

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“carinhos” entre uma parada e outra. Mas, e o ser humano por trás disso tudo? Acho que muita gente não pensa nesse aspecto. Pois vejam: em uma das esperas para descarregar, encontrei um colega que dizia que os outros nos enxergam como cachorros vira-lata, que tudo o que acontece na beira da estrada é culpa da nossa classe profissional. Talvez seja por esse tipo de opinião que muitas vezes nos auto desvalorizamos. O mesmo colega argumentou que as pessoas nos culpam até pelos incêndios nos acostamentos. Queria poder lembrar o nome desse companheiro, mas nosso encontro único de apenas poucas horas não me permite – o que revela outro sintoma da superficialidade das relações sociais que geralmente temos. Tenho outro exemplo interessante sobre isso. A filha do companheiro Celso Orlando, Andreia Orlando, recorda um tempo em que seu pai sofria com algumas separações que os postos de combustível faziam, sobretudo na área dos restaurantes. Os motoristas tinham acesso a um restaurante inferior e até a comida era de pior qualidade. Talvez tenha sido esse tipo de situação que nos motivou a cozinhar no próprio caminhão, o que tem se tornado comum no cotidiano dos profissionais de carga. Explicarei como isso funciona mais pra frente. Por ora, apenas destaco que carregamos uma cozinha improvisada

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que também possui a vantagem de deixar as refeições mais baratas. Não concordo com nenhum desses estereótipos. Para que as pessoas possam mudar de ideia, acredito que devemos fazer nossa parte, nos orgulhar da nossa função. Você já parou para pensar em como seria se todos os caminhoneiros resolvessem parar de trabalhar por pelo menos uma semana? Ouço dizer que o Brasil viveria um verdadeiro caos. Não tenho a pretensão de eliminar todas as visões negativas que pairam sobre a profissão, mas quero mostrar cada pedaço do nosso cotidiano para que as pessoas possam tirar suas próprias conclusões. Fico ansioso, tenho vontade de contar tudo por aqui. Mas são tantas as histórias, as vivências, os pontos de vista, que meu receio é juntar tudo e não explicar nada. Tenho muito para contar, tanta coisa que muita gente desconhece. Porém, como pode-se perceber da minha narrativa até agora, uma boa virtude de caminhoneiro é a calma e a paciência. Outras histórias virão nos próximos trechos.

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Uma estrada, dois caminhos

Há um detalhe importante para a compreensão do cotidiano de um caminhoneiro. Nós, profissionais de carga, nos dividimos em dois grupos: os autônomos e os funcionários. Como o próprio nome sugere, os autônomos são aqueles que trabalham por conta própria, ou seja, são donos de seus caminhões, decidem os fretes mais interessantes. Como seis em cada dez caminhoneiros brasileiros, me enquadro nesse grupo. Enquanto outros quatro trabalham geralmente para uma transportadora, possuem salário fixo e todos os benefícios dos demais funcionários. Depois de 9 anos de trabalho como funcionário, consegui juntar um dinheiro para dar entrada no meu primeiro caminhão. O restante parcelei através de um financiamento. Foram parcelas bem pesadas,

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aproximadamente R$ 1,6 mil por mês1 . Praticamente a metade do que eu faturava no mês era destinado para pagar a carreta. Faz mais de um ano que quitei o meu grande companheiro, um alívio, pois agora posso usar o pronome “meu” sem restrições – infelizmente, ao contrário de muitos colegas. As contas diminuíram bastante e agora não preciso me preocupar tanto com a necessidade de viajar toda e qualquer semana. Essa é uma das grandes diferenças do profissional autônomo: responsabilidade sobre tudo. Afinal, não deixa de ser um risco se a opção for sair do comando de outra pessoa para decidir sozinho o que fazer. Isto é, cabe ao próprio caminhoneiro a tarefa de ser um administrador confiável, uma vez que um atropelo nas contas pode o levar ao “perigo” de voltar a ser funcionário. Alguns colegas, às vezes por necessidade, outras por gosto ou oportunidade, seguem além disso. Coordenam não apenas o próprio caminhão, mas uma empresa. Arlindo Strack é um bom exemplo. Passaram-se quatro anos desde que ele montou sua empresa de transportes. Teve que fazer a escolha mesmo sem abandonar o gosto de viajar. Já não conseguia mais conciliar as duas funções. Conheço bem o sangue de caminhoneiro – e, para ele, não foi fácil se adaptar ao cotidiano do escritório.

1 O valor da parcela foi obtido por meio de um simulador de financiamento disponível no site da Confederação Nacional dos Transportes. Para a simulação levou-se em consideração um caminhão usado que custa R$150 mil, dividido em 120 vezes.

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- Hoje, se precisar passar a manhã inteira dentro do escritório, eu consigo. No começo, nem pensar. Ficava doente, toda hora saia, ia pra fazenda. Hoje não, vamos nos acostumando com a rotina. Mas, sinto muita vontade de voltar para a estrada, gosto de voltar pra estrada. Em finais de semana em que há alguma viagem perto, pego o caminhão e vou fazer. Sei lá, sempre falo que o que engorda os bois é o olho do dono. Gosto de estar no meio dos funcionários, no meio dos caminhões, no meio da empresa. Arlindo tem muito orgulho do que construiu ao lado de seu pai, Laurindo Emílio Strack, e dos irmãos. O pequeno negócio de família prosperou e hoje eles têm 13 caminhões. Assim, não é preciso gastar muita saliva para que ele fale de seu patrimônio, o assunto flui. - Adotamos um padrão de tratar funcionário como amigo. Tratamos bem o funcionário, pagamos em dia, registramos, damos férias, décimo terceiro, tudo certinho como manda a lei. Porém, se você não está fazendo do jeito que eu quero, não serve pra mim. Tem funcionário que fez três viagens

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e falei: não, vamos parar! Você é meu amigo, nos encontramos, tomamos cerveja, não tem problema nenhum, mas para trabalhar não dá certo, vamos parar. Vai fazer quase dois anos que o último funcionário pediu a conta. Teve funcionário que eu dei as contas. Quer dizer que não somos patrões ruins. Somos exigentes? Nós exigimos, mas damos condições de trabalho. É preciso condições de trabalho, caminhão bom, pneu bom. Condição de trabalho é o ponto chave para ser funcionário. As viagens são sempre muito pesadas, cansam. O retorno financeiro é bom. O salário gira em torno de R$ 3,2 mil . Mas, se o patrão não dá ao empregado o mínimo de assistência como em qualquer outro emprego, ele segue em busca de outro lugar ou muda de profissão. A história do colega Fabrício Juntes, caminhoneiro desde 18 anos, é interessante. Ele está pensando em parar, pois a empresa onde trabalha exige que seus motoristas fiquem no mínimo 30 dias sem voltar para casa. - Eles são bem exigentes, por que, na verdade, fica tempo fora para faturar pra eles e para ti, né? Aí você tira uma média de quatro a cinco mil por mês.

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Conheci o Fabrício numa fila de espera para descarregar em um grande supermercado. Já fazia 46 dias que o caminhoneiro não voltava para Florianópolis, Santa Catarina, onde reside. Notei sua expressão tristonha. A saudade da esposa grávida de oito meses não cabia mais dentro dele próprio. É bem verdade que ele recebe remuneração acima da média do empregado de frota brasileiro, mas, pesadas as circunstâncias, o esforço não compensa mais. - Porque primeiro de tudo tu não vive. Viver, viver na estrada, a gente vive. Conhece um, fala contigo, fala com ele, fala com todo mundo. Mas viver mesmo é estar junto da família, ver a mãe hoje, ver o pai, sair passear, ir numa praia ou pegar a esposa para ir ao shopping, sair pra comer uma pizza num sábado à noite ou em dia de semana, não é? Que vida que eu levo? E a minha esposa, que vida que ela leva? Nem ela, nem eu, ninguém vive, então não vale a pena. Eu não quero mais! Fabrício, que tem 35 anos, vai começar a trabalhar para o pai, que também já foi caminhoneiro, em uma construtora. Arlindo, mais experiente, entende bem essa equação. Para ter funcionários motivados, é preciso dar contrapartida, não

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somente as básicas, exigidas por lei, como salário fixo, férias e décimo terceiro. Mais do que isso, é preciso mostrar que o emprego vale a pena. - Sempre dou uma referência e cobro muito dos meus funcionários a união. Uma família que não é unida, que o pai e a mãe brigam, nunca segue pra frente. Se você pegar uma empresa em que os funcionários e o patrão não são unidos, ela não segue adiante, pode ter certeza disso. Para prosperar, tudo tem de ter união, isso eu cobro dos meus funcionários. E a mesma coisa eu faço com eles. Estou junto com eles nos finais de semana, estou junto no dia-a-dia. Eu estava puxando safra de soja aqui na região central do Mato Grosso do Sul quando conversei com Arlindo sobre esse assunto. Fui visitá-lo e conheci a casa de seus pais, onde também funcionam o escritório e o pátio da empresa. Nesse local são guardadas todas as carretas. Junto da casa há uma garagem entulhada de peças de caminhão e tubos de óleo. Muitas vezes os problemas mais simples de mecânica são resolvidos ali mesmo. Quando Arlindo saiu para ajudar um colega em uma das carretas, puxei assunto com outro funcionário, José Paulo de Lima, que trabalha na transportadora há cinco anos. Logo ele me avisou

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que a conversa só prosperaria se eu lhe chamasse pelo apelido, Tiririca, que recebeu com muito gosto de outro patrão quando começou a trabalhar como caminhoneiro. Tiririca sempre trabalhou como empregado – a exemplo de outros 40% companheiros de estrada ao redor de todo o Brasil. Antes de ser oficialmente contratado pela transportadora, fez pequenos trabalhos para os Strack nos momentos de folga. - Um dia falei assim: “na hora que vocês precisarem de um motorista, me arruma a vaga que eu quero trabalhar para vocês”. E assim ficou, ficou. Passou um ano, passou dois anos e nada de eu arrumar esse serviço. Sempre trabalhava para um e para outro patrão. De repente bateram em minha porta para trabalhar para eles. Nunca havia encontrado o Tiririca antes dessa oportunidade. Perguntei então se alguma vez ele havia pensado em sair da empresa e a resposta foi imediata: - Não penso, não! O dia em que eu sair daqui vou chamar um advogado. O dia em que eles me mandarem embora eu vou chamar um advogado para não me mandarem embora.

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Sem travas na língua, o rodado caminhoneiro leva a comicidade da questão para os próprios patrões. De passagem pela garagem, Seu Strack, pai de Arlindo, tem sua distração surpreendida por Tiririca: - Né seu Strack? No dia em que vocês me mandarem embora eu vou chamar um advogado. - Como que é? - No dia em que vocês me mandarem embora eu vou buscar um advogado. - Para que? - Para não sair. - Ah! Se não te mandarem embora? - Não. Se me mandarem embora. Vou contratar um advogado... - Para ficar aí. - ... para ficar. - Ih! Pode ficar. Tem que varrer o pátio... sempre tem alguma coisa para fazer. Isso ai nós combinamos! Todas as pessoas próximas caíram na gargalhada, incluindo os demais funcionários e a matriarca da família, dona Emília Urbanski Strack, que faz questão de supervisionar tudo o que acontece no pátio - mais uma característica

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do ambiente informal que, apesar das tensões naturais das relações trabalhistas, costuma caracterizar as empresas em que os proprietários são ex-caminhoneiros. Todavia, nem todos são como Tiririca. Muitos não gostam ou nem pensam em voltar a trabalhar como funcionário de transportadora. Desde que experimentou algumas das regalias de ser dono do próprio caminhão, Caio Marks, um de meus parceiros de estrada, eliminou da cabeça a possibilidade de novamente ter patrão. - Ao trabalhar como empregado, você tem de dar satisfação. Não poderia ficar, por exemplo, como agora. No dia em que eu resolvo ficar uma semana em casa, simplesmente fico. Dias atrás minha filha estava em casa, veio me visitar com o neto. Fiquei 15 dias sem viajar. Caso eu fosse empregado, não poderia ficar. Com um dia de folga o patrão já acha ruim. Caio tem 46 anos e começou a dirigir aos 15. Também começou com o caminhão do pai. Depois trabalhou com o irmão por quatro ou cinco anos, negócio familiar. Mais tarde, fizeram uma sociedade e, recentemente, comprou o próprio caminhão – uma conquista que é muito valorizada por não ser privilégio de todos. Falo por experiência própria. O autônomo tem, sim, mais liberdade para organizar seu

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trabalho, a forma como vai conduzi-lo. Pode decidir quando vai sair de viagem, quando volta, para onde vai, o que carrega. Mesmo a manutenção do principal parceiro – o caminhão – fica mais ágil. Decisões simples, a exemplo da escolha do local onde será feita a troca de um pneu ou uma revisão mecânica e o montante que será investido no serviço parte exclusivamente do caminhoneiro. Tudo isso se torna mais engessado quando existe um patrão no cenário e surge a necessidade natural de requerer autorização. Não é preciso ir longe para verificar essa mudança de panorama. Na própria transportadora dos Strack, Arlindo – demonstrando destreza no novo perfil empresarial – me confidencia que não gosta de deixar a solução dos problemas dos caminhões nas mãos dos funcionários. - Com o crescimento da empresa, falo sempre a mesma coisa: 14 anos atrás, éramos uns ‘merdeiros’, quebrados, que não tínhamos dinheiro algum. Se precisasse fazer um serviço na oficina, tinha que pedir ‘pelo amor de Deus’ ao cara. Tinha que explicar: ‘vou te pagar quando acabar e tal’. Hoje, todo mundo corre atrás da gente. A dinâmica da empresa de Arlindo, entretanto, não é uma realidade compartilhada por todo o setor de transporte de carga no Brasil. O

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próprio ex-caminhoneiro e agora patrão costuma criticar os empresários que fazem contratações e deixam toda a responsabilidade nas costas dos funcionários. - É muito errado. Se o empresário contrata, o que o motorista deve fazer? Na minha opinião, ele tem que dirigir o caminhão, tem que entender do veículo. Mas há aqueles que contratam e querem que o motorista pegue o frete, faça o acerto, cuide de comprar pneu, fazer freio, administrar o caminhão inteiro. Na verdade, o difícil mesmo para nós, caminhoneiros autônomos, é que temos que nos organizar até para tirar férias. Ou seja, viajar mais para locais longínquos, para onde o frete é melhor, economizar aqui, apertar dali, para poder sair ou até mesmo ficar em casa na folga sem preocupação alguma. O funcionário, com contratação regular, por outro lado, tem férias garantidas por lei, além de aposentadoria ou seguro desemprego, já que a contribuição do Instituto Nacional de Seguro Social (INSS) e o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) são obrigatoriamente descontados. Enquanto o autônomo necessita pagar diretamente suas contribuições na Previdência Social. Outra diferença básica envolve o salário. O autônomo depende do faturamento do mês. No

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meu caso, na posição média dos caminhoneiros do Brasil, o faturamento bruto varia entre R$ 11 mil e R$ 13 mil. Descontados os gastos com óleo diesel e manutenção, minha renda mensal fica em torno de R$ 4,9 mil. Por sua vez, o funcionário recebe um salário fixo, além de comissão, ou o salário mais as diárias. Outros ainda recebem os três, a exemplo de Fabrício, o colega que conheci na fila de descarga. - Ganho comissão, mais diária. Quando fico parado, recebo R$70 por dia, além de R$ 31,20 como comissão. Contudo, essas variáveis são diferentes de empresa para empresa. Mesmo as opiniões sobre o assunto são divergentes. Arlindo Strack, do outro lado do balcão, considera que o empresário que se sujeita a pagar mais de cinco salários mínimos para um caminhoneiro pode, ao final do mês, “vender o caminhão”. Já o colega Caio Marks chegou a me confidenciar que, em sua opinião, o salário costuma ser muito bom se for levado em conta que muitos profissionais sequer completaram o ensino superior. - Nós que somos autônomos e não temos um salário fixo, conseguimos em certos momentos um dinheirinho bom e em outras horas podemos estar quebrados. Mas,

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para um funcionário, o salário é constante e não é ruim. Geralmente, quem trabalha de funcionário com caminhão sequer possui estudo e recebe mais do que uma pessoa estudada. Só que nunca está em casa, está sempre viajando. Posso falar por mim mesmo. Sou um personagem complexo, um fragmento de histórias de vida. Já trabalhei das duas formas: fui funcionário, hoje sou autônomo. No futuro, quem sabe, serei patrão. O que nos sobra ao final de cada jornada é a experiência vivida nas estradas. Ainda assim, possuir o seu próprio bem pode ser muito gratificante – e eu amo, amo muito, o meu companheiro diário, o meu caminhão.

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Parte II

Tu


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Espelho

Pleno domingo de descanso com a família e cá estou a pensar minha rotina que recomeça amanhã. Fico um pouco ansioso, mania de caminhoneiro de querer deixar tudo preparado para mais uma viagem. Ontem passei na borracharia do bairro para verificar se precisava arrumar algum pneu. Prudência nunca é demais na hora de realizar uma revisão antes de partir. Evita imprevistos e a perda desnecessária de tempo. Na volta também parei no supermercado. No carrinho de compras, feijão, arroz, carne, açúcar, pão, queijo e alguns outros ingredientes que preciso para preparar minhas refeições. Sim, faço minha comida no veículo: almoço, janta e lanches. Tenho uma cozinha improvisada. Não é grande, mas tem espaço

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para um fogão de duas bocas, talheres, pratos, copos e alimentos. Algumas pessoas ficam curiosas ao saber dessa particularidade nos caminhões. No entanto, não é nada demais: apenas um caixote de madeira, retangular, confeccionado especialmente para veículos de carregamento, que fica bem próximo das rodas, junto à carga, com compartimentos e gavetas. Há também uma caixa de papelão para colocar o restante das panelas que não cabe nos gaveteiros e um punhado de garrafas pet que armazenam a água filtrada para o preparo das refeições. Ao lado, tenho minha pequena geladeira e a “barrica”, um reservatório de água no formato de cilindro com uma torneira para lavar a louça. Eraldo, o experiente colega que costumava trabalhar na fronteira com a Argentina, é outro exemplo entre tantos caminhoneiros que preferem cozinhar durante as viagens. É bem verdade que se trata muitas vezes de nossa única opção, já que nem sempre encontramos um lugar minimamente adequado, com bom atendimento e higiene. - Há lugares em que a comida não é boa. Acaba que a gente tem que botar a mão na massa, abrir a cozinha e cozinhar. É essa jornada que a gente faz. A exemplo do Eraldo, saio de casa com algumas coisas adiantadas. A principal delas é o

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feijão. Coloco-o em potes menores para preencher todo o espaço da geladeira – na verdade, um pequeno cubo pouco menor que um frigobar. Ela possui duas divisórias em forma de grade e um compartimento ao fundo que é separado por uma porta emborrachada – o nosso congelador. Na porta da geladeira também encontra-se alguns pequenos espaços para acomodação dos alimentos. Com uma boa organização, uma quantidade razoável de mantimentos pode ficar ali durante os dias na estrada. A noite chega e antes de dormir deixo tudo pronto no caminhão. Roupas, cobertor, lençol, travesseiro, toalha e escova de dentes já estão separados em cima da cama. Verifico se não falta nada e levo para dentro da cabine. Aliás, cabine é o nome da parte interna do veículo, onde dirijo – a popular “boléia” ou “cabina”, como esse espaço é também conhecido pelo interior do Brasil. A minha cabine tem praticamente uma cama de casal, além do banco do motorista e do volante. É bem grande. Se preciso for, um número satisfatório de pessoas pode ser transportado ali. Levo toda minha família para passear e não há aperto. Há também um maleiro - um mini guarda-roupa localizado na parte superior da cama. Garanto que todo esse espaço não se trata de luxo. É o básico para quem o tem como residência durante dias e dias. Tanto a cama como maleiro eu tive de adaptar. Originalmente, o caminhão não vem assim. A cama que vem de fábrica é pequena, menor

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que uma de solteiro, pois existe um banco para o caroneiro. Quando comprei o veículo, levei-o em uma oficina e pedi para modificar. A alteração foi simples: tirei a poltrona auxiliar e embuti uma cama maior. É mais confortável para quem leva a família junto, pois aumenta significativamente o espaço para dormir. Dadas às necessidades, logo pedi para colocar também o maleiro. Assim, não preciso levar minhas roupas numa mala apertada e elas ficam geralmente mais organizadas. Essas mudanças no espaço interno do caminhão são comuns entre os profissionais de carga. O motivo é óbvio: tentamos trazer um pouco do conforto do lar para o dia-a-dia na estrada, já que passamos mais tempo nela do que em casa. Além disso, é claro, queremos também deixar o nosso grande parceiro com a nossa cara – afinal, com o tempo o caminhão se torna o espelho do motorista. Guardo também alguns mantimentos na cabine. Deixo a carne e os frios na geladeira de casa para apenas levá-los ao veículo pela manhã. Tudo está encaminhado. No dia seguinte, basta acordar cedo, tomar meu café preto e seguir viagem. Ainda na rua, dou uma última olhada na minha máquina e fico admirado. É algo platônico. Com certeza, está ali meu maior parceiro, meu melhor amigo, meu colega de trabalho e minha profissão por inteiro. É com ele que garanto o dinheiro do mês e o sustento de minha família. Vou apresentá-lo: tenho um clássico Sca-

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nia 113 H, bege, carga branca com lona vermelha. Ele já está um pouco rodado, acaba de completar duas décadas que saiu da fábrica. Foi o caminhão que se enquadrou em meu orçamento quando fiz o financiamento anos atrás. Gostaria de comprar um veículo novo, sonho de qualquer profissional. Uma máquina ainda maior, cheia de tecnologia, mais espaçosa e confortável do que os modelos antigos. Vejo nos postos de beira de estrada colegas desfilando com piloto automático, direção hidráulica e painel digital. Também encontramos alguns ainda maiores. Cheguei a ver uma pessoa de quase 1,80 metro de altura ficar tranquilamente em pé na cabine de um desses. Outros possuem até bicama como dormitório. Fico empolgado só de imaginar uma jornada de trabalho com uma máquina assim. Mas a adrenalina logo abaixa. Pensando bem, não troco meu velho amigo por qualquer outro não. Já estou acostumado com ele, sobretudo por já ter trabalhado em outras ocasiões com veículos da mesma marca. Isso também acontece com muitos outros caminhoneiros que se acostumam com certa montadora e não trocam de marca jamais. Basta olhar o caso da família Gelli. Onésio e seus filhos Gedimarcos e Jérico trabalham juntos. O pai já dirigiu um antigo FNM, o popular Fenemê, e um Mercedes-Benz, mas na hora de comprar preferiu um Scania. Hoje ele possui três caminhões da marca. Encontramo-nos – eu, Onésio e Gedimarcos – em um posto de combustível quando levava uma car-

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ga para o Paraná e discutimos sobre nossos instrumentos de trabalho. A opinião foi unânime: a relação custo-beneficio – o preço e a disponibilidade de peças e manutenção – é determinante na hora da escolha de um caminhão. Já a opção por uma certa marca constitui um ponto menos pacífico. Diferentes marcas dividem a preferência entre distintos grupos de caminhoneiros. Não há consenso. Em 2012, por exemplo, somente nos seis primeiros meses do ano foram comercializados no Brasil cerca de 70 mil novos caminhões. Entre as cinco montadoras com maior procura estavam Volkswagen, Mercedes-Benz, Ford, Volvo e Iveco1. A paixão é tão grande que os pensamentos voam longe quando começo a refletir sobre meu caminhão. E cá ainda estou eu, parado na rua, em frente ao meu companheiro. Ele é grande, preenche por inteiro a frente de minha casa que mede 20 metros. Caminhão grande tem suas dificuldades, manobrar em postos lotados, por exemplo, é sempre custoso. Um veículo como o meu é geralmente formado por duas partes: o chamado “cavalinho” – veículo automotor que configura a porção frontal – e a carga, também chamada de carreta. As partes são interligadas por um dispositivo de travamento

1 Segundo o boletim da Fenabrave 69.535 mil caminhões foram comprados no ano de 2012, no período de janeiro a junho. Os números da pesquisa feita pela instituição são baseados na quantidade de emplacamentos realizados no ano.

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denominado de “quinta roda”, localizado na parte traseira do “cavalo”, e pelo “pino-rei”, fixado na carreta. Devido a essas peças, consigo engatar e desengatar com certa desenvoltura a carga da parte frontal do caminhão. Embora separáveis, porém, a carreta está relacionada a todo o conjunto do caminhão. Oficialmente, reguladas por lei, essas partes recebem respectivamente os nomes de cavalo mecânico e semirreboque. Já o conjunto é chamado apenas de carreta. Todavia, a classificação formal dos tipos de caminhão não para por aqui. Eles se dividem conforme a quantidade de eixos e de peso que suportam2. Explico melhor: o eixo, a exemplo dos carros de passeio, configura a base onde são fixadas as rodas e, ao mesmo passo, constitui o mecanismo que as faz girar. Por sua vez, o cavalo mecânico possui diferentes estruturas. O caminhão extrapesado é a modalidade composta por dois eixos. A outra modalidade consiste no cavalo mecânico trucado, composto por três eixos que, consequentemente, suporta semirreboques mais pesados. Quando o assunto é a carga, as classificações são um pouco mais detalhadas. No caso de ambas as estruturas – cavalinho e carga – possuírem eixos duplos, o nome dado ao conjunto é carreta 2 eixos. Essa modalidade suporta um peso médio de 33 toneladas e pode ter o comprimento máximo de

2 Existem duas resoluções do CONTRAN que regulamentam os tipos de caminhões.

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18 metros. Já a carreta 3 eixos é composta por um cavalo mecânico de eixo duplo e um semirreboque de eixo triplo. Com comprimento similar à modalidade anterior, suporta no máximo 41,5 toneladas. Finalmente, a carreta cavalo trucado possui tanto a parte da carga quanto o cavalo com três eixos. Meu caminhão é assim. Deve suportar um total aproximado de 45 toneladas de peso e medir pouco menos de 20 metros de comprimento. Os maiores do mercado são os gigantes bitrem e rodotrem. Popularmente conhecido como treminhão, o bitrem apresenta sete eixos e suporta 57 toneladas. Geralmente é visto nas estradas com dois conjuntos de carga. O rodotrem também possui dois semirreboques, mas a diferença está nos eixos, com duas unidades a mais. Esse último suporta a surpreendente marca de 74 toneladas. Meu amigo Caio Marks trabalhou com quase todos esses tipos de carretas. Creio que os primeiros exemplares de bitrem e de rodotrem de Sidrolândia foram dele. - Já trabalhei com quase todo tipo de caminhão. Carreta, bitrem, rodotrem, com tudo um pouco. A diferença na forma de trabalhar a gente não percebe. Sempre trabalhei com caminhão grande e peguei o jeito. Eu tinha quinze anos quando meu pai já possuía carreta. Estive sempre envolvido com isso, viajava junto, dirigia, estava

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acostumado. Tinha truck, tinha carreta, então mudávamos, íamos de um para outro, e nem notávamos a diferença. As carrocerias também têm distinções que dependem do tipo de carregamento. O meu caminhão é um graneleiro, uma vez que costumo transportar grãos como soja, milho e cargas secas. A câmara fria é aquela carroceria fechada, de alumínio, que leva geralmente alimentos que precisam ser resfriados, como carnes e frutas. A carroceria baú é semelhante a uma câmara fria, mas sem resfriador. É o modelo de furgão conhecido por levar mudanças, muito embora cargas secas também sejam transportadas por essa modalidade de carroceria. O tanque é aquele caminhão apropriado para combustíveis ou outros carregamentos líquidos. Já a carreta utilizada para transportar automóveis é chamada de cegonheira. A modalidade voltada ao carregamento de animais vivos é denominada gaiola. Há ainda os caminhões que levam containers. Nossa! São muitos os tipos, sem falar que existem tantos outros modelos que não são popularmente conhecidos. Além dessas categorias, existe outra classificação para os caminhões leves, semileves e pesados. Esses modelos possuem a carga acoplada ao chassi do caminhão, formando um elemento só. O veículo urbano de carga (ou simplesmente VUC), por exemplo, é a denominação dada para o automotor que tem a carga máxima de três tonela-

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das. Já o toco é um semipesado que dispõe de dois eixos e suporta 16 toneladas. O caminhão classificado como pesado nessa categorização é o truck, com três eixos e capacidade para 14 toneladas. São as resoluções do Conselho Nacional de Trânsito (CONTRAN) que definem todos esses tipos de caminhões e de carretas. Embora eu esteja na lida diária, não foi fácil decorá-las. Tive que estudá-las em um curso obrigatório de qualificação. Geralmente, nós caminhoneiros sempre temos outras classificações para os nossos caminhões. O bitrem, por exemplo, também é chamado de “Romeu e Julieta”. A explicação é fácil e simples: as duas cargas formam um casal que é separado dependendo do tipo de carregamento e podem trabalhar sozinhos. Há ainda as diferenças entre as placas. Quase me esqueço disso! O primeiro colega que me alertou sobre essa distinção foi o José Garcia, caminhoneiro dessas estradas há 15 anos. Temos duas opções de placas quando tratamos do transporte de carga: a vermelha e a cinza. O caminhão com placa cinza só pode carregar produtos da empresa que pertence. Essa é a modalidade do caminhão de José. - Não fico procurando carga, porque placa cinza você não pode carregar produtos de terceiros. Placa vermelha sim, pode transportar produto de qualquer lugar. A

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placa cinza permite somente a mercadoria da própria empresa. Se eu carregar uma carga diferente passar na barreira fiscal, certamente ficaremos presos, eu e o caminhão. Ou seja, só mercadoria da empresa e em nome da empresa. José trabalha com um modelo toco para uma empresa de Cotia, na região metropolitana de São Paulo. Ele gosta de trabalhar só com caminhão pequeno, pois argumenta que carretas grandes dão muito mais trabalho. O máximo que chegou a conduzir foi um truck. Ufa! Depois de tanta explicação, está na hora de ir para cama e dormir. Quer dizer, tentar dormir! Para muita gente é complicado descansar na noite que antecede uma viagem. Mas nem me dou mais o capricho de ficar ansioso. Durmo e simplesmente desligo. O dia seguinte será longo.

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Horizontes

Finalmente é hora de acordar. Como disse em outro momento, costumo me levantar por volta das cinco horas. Campo Grande, a cidade que moro, ainda está levemente adormecida. São poucas pessoas que se levantam nesse horário e saem de casa para trabalhar ou estudar. Hoje meu destino é o bairro Indubrasil, um importante polo industrial da cidade. Com tudo praticamente arrumado, a tarefa é tomar o café, despedir-me da família – que ainda dorme – e acertar os últimos detalhes no caminhão. Preparo meu chimarrão, outro grande companheiro de estrada. Não vivo sem ele. É um costume que trago de família. Nascemos no Rio Grande do Sul e em busca de melhorar nossa condição financeira, colocamos a

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mudança no lombo do caminhão de meu pai e viemos parar aqui. Outras famílias também optaram por isso. Os familiares do meu amigo Arlindo constituem outro exemplo. O pai dele comprou um caminhão para ajudar nas plantações do sítio que possuíam em Frederico Westphalen, no Rio Grande do Sul. Com o tempo, começou a viajar para longe dali e numa dessas viagens conheceu o Mato Grosso do Sul. Pôs-se a transportar safras de grãos na região de Sidrolândia. Gostou do lugar e não pensou duas vezes, uma vez que sairia da zona rural para morar na cidade. - Comecei a trabalhar com caminhão lá no Sul, dentro da lavoura, na fazenda de meu pai. Em março de 1994, vim para o Mato Grosso do Sul. Trabalhei um ano sem carteira, em Sidrolândia, numa época em que a fiscalização era pouca. Enfim, enquanto permaneço na longa espera pelo carregamento, voltam à minha memória as diversas paisagens lindas pelas quais tenho passado durante minha jornada. Mas nem todo horizonte é belo na vida de um caminhoneiro. Temos contato com muitas coisas ruins também. Vemos muita pobreza e passamos por vários apertos. Às vezes sentimos

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medo, angústia ou apreensão, embora eu conheça muito bem os meus destinos após esses anos todos de janela. Quando menos espero, sou levado a um novo canto do país. Não passei por todos os estados brasileiros, mas estou bem perto disso. Minha rotina de viagem é quase sempre a mesma. Muitas vezes até meu destino é rotineiro – ou ao menos próximo das estradas nas quais costumo estar. O que muda com mais frequência são as empresas onde faço meus carregamentos ou descarregamentos. Ainda assim, o processo é sempre similar. Desta vez farei o carregamento na região do Indubrasil, bairro de Campo Grande conhecido como um polo industrial. Disseram-me que eu teria prioridade para carregar, mas algumas coisas sempre enrolam. Cheguei no horário certo, às sete horas da manhã. Como de costume, a espera será grande, muitos caminhões na fila. Só conseguirei sair daqui próximo ao horário de almoço. Aliás, algo que geralmente irrita qualquer caminhoneiro é essa espera. Sem exagero, às vezes ela chega a ser desumana. Tem sido praxe em alguns dos mais movimentados supermercados da capital sul-mato-grossense a formação de enormes filas do lado de fora dos estabelecimentos. E quando digo “lado de fora”, definitivamente não me refiro a um pátio. A espera se dá na própria rua, sem banheiro e local

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para uma alimentação digna. Aguardamos por horas, às vezes por dias, nas filas para descarga. E sair dali nunca é uma alternativa a ser considerada, pois perder o lugar na espera é sinônimo de ficar ainda mais tempo parado. Foi justamente em uma dessas paradas que conheci o Fabrício. Mais uma vez, ouvi de um colega que a função de caminhoneiro foi herdada de outras gerações da família – no caso dele, do pai e dos tios. Lembro-me com clareza que cheguei à fila de caminhões do supermercado por volta das 9 horas e perguntei a ele sobre o tempo de espera. A reposta, como não costumar ser raro, foi desanimadora: - Cheguei ontem, seis horas da manhã. Senti Fabrício um tanto quanto tristonho. Não era por menos: estava a mais de um mês e meio fora de casa. Demorei muito para carregar e ir embora naquele dia. Fabrício teve mais sorte – outra palavra valiosa no vocabulário de um caminhoneiro. Ainda antes do horário do almoço, foi chamado para se livrar do carregamento de leite condensado que trazia em sua carreta. Agora tenho que agilizar o processo aqui. Levo a ordem de frete ao funcionário da empresa. Logo se dão conta que eu tenho preferência porque o carregamento é de um tipo especial de farelo de milho. Passo à frente de alguns colegas, mas

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ainda assim tenho que enfrentar outra fila, desta vez bem menor. Enfim me chamam e fazem o carregamento de meu caminhão com uma volumosa e pesada carga. Tudo pronto, arrumo a lona. Onze horas e 30 minutos. Somente agora posso encarar o horizonte rumo ao destino da vez: o interior de São Paulo. Antes, uma parada para consertar um dos pneus se faz necessária. No primeiro posto, meu problema é parcialmente resolvido na borracharia. Logo à frente, no entanto, terei que parar novamente para uma solução definitiva. Outra dificuldade: não encontro nesse posto sequer uma boa sombra para preparar meu almoço. A única opção viável é seguir meu caminho. Felizmente, logo encontro um bom lugar, paro e começo a cozinhar. São nesses momentos que consigo me sentir minimamente mais próximo da rotina de casa. Por coincidência, o telefone toca. É meu filho em busca de notícias. Poucas profissões valorizam tanto a propagação da telefonia móvel quanto os caminhoneiros. Mas nem tudo são flores. Há muitos e longos trechos de estrada pelos grotões do Brasil em que um mero e fraco sinal de celular pode ser considerado um artigo de luxo. Já estou longe e no início do preparo de comida. Como vocês já sabem, preparo meu almoço no caminhão. O tempo passa rápido nos momentos de descanso. Continuar meu trajeto é preciso. Tudo pronto, louça lavada e estrada que segue.

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Levo aproximadamente 30 toneladas na carreta. Como preciso dirigir lentamente, tudo parece ficar mais longe. Ao meu lado esquerdo avisto uma paisagem plana, muita pastagem e cidades distantes uma da outra. É normalmente assim nas estradas de Mato Grosso do Sul. Ao lado de meu grande companheiro, o caminhão, outro amigo acaba por ser o rádio. O som me distrai, leva o pensamento longe, embora a concentração na estrada siga intacta. Escuto muitas músicas sertanejas, mas nem sei se ainda posso chama-las assim. Prefiro as músicas caipiras, aquele sertanejo de raiz, algo que cada dia aparenta estar mais escasso nas ondas sonoras. Também me informo pela tradicional Voz do Brasil. Para que meu trabalho seja bem executado, necessito da mão-de-obra de outros profissionais. E são muitos: o borracheiro, o frentista, o policial rodoviário. De certa forma, todos contribuem para que eu consiga fazer as minhas entregas. A tarde se aproxima. Já parei em alguns postos para descansar e usar o banheiro. A hora agora é de presentear minhas retinas com a beleza do pôr do sol. São essas pequenas sutilezas da natureza que talvez façam com que eu me apaixone ainda mais pela profissão. O ponteiro do velocímetro pouco se movimenta. Estou longe de casa, mas permaneço em Mato Grosso do Sul. Falo de minha paixão e novamente trago à memória a angústia do colega Fabrício.

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- Que vida que eu levo? Eu não quero mais. Isso dá depressão na gente. De vez em quando preciso ir no psicólogo. Muito tempo sem ninguém, sem conversar. Tu não tens um carinho de família, um ombro para chorar nos momentos em que alguma coisa aperta. Aqui tu tem que te virar, é tu e Deus. Voltemos à minha viagem. É a noite que passa a ser minha companheira. Chego em Bataguassu, cidade que faz a divisa com São Paulo. Depois de alguns imprevistos e uma viagem lenta, a melhor opção é parar e dormir. Melhor seguir viagem no dia seguinte. Uma vez mais, vale a sabedoria de meu amigo de estrada Celso Orlando: - O melhor remédio para o sono é o travesseiro. Dormir no caminhão é tarefa fácil pra mim. Sempre escolho um posto de combustível que já conheço. No pátio, observo que alguns colegas também já encerram o expediente. O frio chega, abro minha cozinha e tomo o lanche da noite. Logo o sono se fará mais forte, então me fecho em minha cabine. Preciso de um bom descanso para rodar mais alguns quilômetros pela manhã.

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O dia ainda não amanheceu, mas já começo a acordar. Me levanto, vou ao banheiro, são três e meia da manhã, tentarei seguir viagem. A expressão é esta mesmo – “tentarei” – pois o posto está completamente cheio de caminhões. A precariedade do setor de serviços para atender aos profissionais de carga é outra crua realidade no gargalo brasileiro de infraestrutura. Sair daqui só com manobras muito difíceis, mas não custa tentar. Infelizmente, não consigo, veículo grande, um caminhão Scania 113 totalmente carregado. Melhor dormir um pouco mais e aguardar que alguns colegas sigam viagem. Logo adormeço. Mais uma hora de sono e começo a escutar os motores em ignição. Hora de sair. A cabine que era cama volta a ser local de trabalho. Desço do caminhão para escovar os dentes e percebo que o clima já mudou. Minha estimativa é de cerca de quinze graus célsius e um vento gelado corta os corredores formados pelas carretas. Cinco da manhã, horário de rotina. Preciso me concentrar em minha saída do posto. Muitas manobras ainda são necessárias. O dia ainda não é meu companheiro. O sol demorará um pouco para apontar no horizonte. Ligo o rádio. Nesse horário as rádios preenchem suas grades com aqueles “modões” sertanejos. Poucos quilômetros à frente e me encontro na divisa com o estado de São Paulo. Como praxe, paro no posto de fiscalização, preciso apresentar a documentação do produto que

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transporto. O Mato Grosso do Sul é um dos poucos estados brasileiros que ainda não adotou a nota fiscal eletrônica. Outro gargalo. Nas divisas preciso parar a viagem para que a fiscalização confira se está tudo correto, sobretudo em relação aos tributos. Alguns caminhoneiros já estão na fila. O fiscal olha cuidadosamente cada nota, carimba, devolve pela pequena janela.

- Próximo.

Quando não há problema relacionado à nota fiscal, o trâmite flui regularmente. Logo sou dispensado. Por outro lado, se algo desandar... Uma vírgula fora do lugar pode ser motivo para nos deixar na espera por vários dias. Nas fronteiras entre países a burocracia é ainda mais complexa. O Eraldo costuma recordar as situações que vivia quando puxava carga para a Argentina. O cenário às vezes era desolador para o profissional. - Enquanto não pagar o tributo da mercadoria o caminhoneiro não pula para o lado argentino. É necessário o pagamento, é tipo um ICMS. Somente é permitida a entrada no outro país quando está tudo pago, tudo certinho. Já fiquei oito dias esperando em um posto fiscal.

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Repito, nessas longas esperas conhecemos muitos colegas. Escutamos histórias, compartilhamos momentos de descontração. Não há muito o que fazer além de jogar conversa fora e aguardar os trâmites burocráticos – circunstância que na maior parte das vezes escapa ao campo de atuação do caminhoneiro. Dormimos. Comemos. Ao menos não ficamos sozinhos, poderia ser pior. O Eraldo é testemunha ocular disso tudo. - Você nunca está sozinho, sempre chega algum companheiro. Aumentamos o feijão, colocamos um pouco mais de água. E outros colegas chegam, e por assim vai. O outro lado da moeda também existe. É desconfortável quando não podemos confiar no próprio colega. Vivemos tantas coisas comuns, mas ainda assim encontramos sempre aqueles motoristas que querem tirar proveito de tudo. Notei no desabafo do companheiro Fabrício que sua desilusão com a profissão decorre também dessas situações. - Motorista ainda a maioria é sem vergonha, quer tirar vantagem em cima do outro.

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A vida segue. Em uma de minhas paradas reencontrei o Celso Orlando. Do alto de seus vastos anos de experiência, ele me relatou que a classe dos caminhoneiros outrora fora mais unida. Ainda hoje, porém, não é raro encontrar ajuda mútua nas estradas. O próprio Celso já contou com o auxílio fundamental de um colega em uma situação inusitada. Foi numa ocasião em que transportava uma espécie de plástico moído. O invólucro que protegia a carga rasgou e o material passou a ser perdido pela estrada. Até que um caminhoneiro parou e o avisou. Depois de tudo resolvido os dois seguiram viagem. Certos amigos que fazemos pelo caminho marcam de fato nossa história. Continuamos em contato com alguns, com outros não. Muitos reencontramos pelo próprio caminho. Outra forma de não deixar a camaradagem se perder na cansativa rotina de prazos a cumprir é o nosso rádio amador. O radioamadorismo é uma espécie de hobby praticado em quase todos as partes do mundo, mas em nossa profissão torna-se também um grande aliado para matar o tédio das viagens lentas. Enquanto observamos a interminável distância do horizonte, podemos conversar com os demais colegas sintonizados na mesma frequência e no alcance do sinal das ondas sonoras. Conta-se piadas, relata-se brigas, fala-se sobre pontos críticos da estrada. Meu prazo é curto. Preciso me concentrar em minha viagem até a região central do

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interior paulista. Preocupo-me muito com os prazos que preciso cumprir para entregar a carga. Muita gente, sobretudo nos meios de comunicação, argumenta que essa pressa é a possível causadora do elevado número de acidentes que envolve caminhoneiros no Brasil. Nossa, como somos mostrados em acidentes! É sempre um assunto de grande repercussão. Faz algum tempo que tive a oportunidade de conversar com a Luciene Faria, policial rodoviária federal que trabalha no Núcleo de Operações Especiais, em Mato Grosso do Sul. É interessante quando temos essas possibilidades de diálogo. Pude entender um pouco melhor esse triste lado da minha própria profissão. A policial me explicou que todos os condutores de maneira geral cometem imprudências. Os caminhoneiros, contudo, sempre recebem maior visibilidade. - As imprudências dos condutores de transporte de carga causam maiores danos, pois são veículos de grande porte, pesados, carregados com diversos tipos de cargas. Também a questionei a respeito do balanço que a Polícia Rodoviária Federal faz em relação às causas dos acidentes na pista. A resposta imediata pontuava a preocupação com o prazo de entrega.

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- Os acidentes estão relacionados com a pressa de se chegar ao destino para descarregar a carga e logo conseguir um novo frete, uma vez que os caminhoneiros vivem da comissão do que transportam. Diante disso, os condutores desses veículos abusam da alta velocidade, dirigem cansados, poucas horas de sono, cometem imprudências. Argumentei que nem todos os caminhoneiros são imprudentes e que muitas vezes rodam horas sem parar por não encontrarem um lugar adequado e seguro para estacionar. Lembrei que muitas estradas são desertas, não possuem postos de combustível, e que não se pode simplesmente parar no acostamento e dormir. Seria brincar demais com a sorte. Em minha opinião, essa falta de lugar para descanso é o grande problema da Lei 12.619, informalmente chamada de “lei do descanso”, que entrou em vigor em 2012 para regulamentar a atividade dos profissionais de carga. Nela, propõe-se que o caminhoneiro tenha intervalos de trinta minutos de descanso sempre após quatro horas rodadas e que cada jornada de trabalho tenha apenas oito horas diárias, com a possibilidade máxima de que o prazo seja estendido por mais duas horas. Apesar de todas as reclamações que escutamos no

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cotidiano das estradas, Luciene me garantiu que a fiscalização tem sido realizada. - A resolução n°405/2012 do CONTRAN que fala sobre o descanso dos motoristas está sendo aplicada. Eles estão sendo fiscalizados. Porém, muitas vezes os próprios condutores tentam burlar a lei, dirigindo sem o descanso recomendado, prejudicando assim a si mesmos, pois não querem perder tempo parados. Um motorista ao ser abordado e se constatado pela PRF que não fez o descanso recomendado, será multado e terá que cumprir o devido descanso. Já que o assunto é prazo, volto a me preocupar com o meu. Até quinta-feira preciso estar em São Carlos, cidade de quase 222 mil habitantes na região centro-leste de São Paulo. A distância de Campo Grande ao meu destino é extensa, cerca de 900 quilômetros, sobretudo para um caminhão carregado com toneladas de farelo de milho. Além de descarregar no município, seguirei viagem até a pequena Ibaté onde carregarei um tanque de combustível. As horas passam. Hoje é mais um dia em que repito todos os meus “rituais”. Paro em uma sombra para fazer almoço. Descanso

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um pouco. Dirijo mais algumas horas. Espero a noite chegar para novamente encontrar um posto bom para dormir. Como disse, minha rotina é quase sempre a mesma. Mas existe algo particular que modifica essa regularidade e assombra parte significativa dos caminhoneiros: os assaltos nas estradas. Às vezes os assaltantes armam emboscadas, nas quais acabamos caindo. Outras vezes, um mero descuido é suficiente. O Ivo Delavi passou por isso, quando sua esposa ainda era companheira de viagem. - Estávamos em um posto de combustível em Mossoró, no Rio Grande do Norte. Lá eles costumam pagar tudo em dinheiro. O cara acertou comigo e minha esposa foi fazer a janta. Então jantamos, fechamos a caixa e ajeitamos nossas coisas. Havia um casal que estava estacionado próximo e suspeito que foram eles que nos roubaram. Chaveei o caminhão, coloquei minha carteira embaixo do cobertor e fomos para o banho. Quando voltamos, a porta do carona estava aberta e vi no tapete uma nota de R$ 10. O cara deixou R$ 10!. De certo, deixou para que pudéssemos fazer um lanche. Sorte que não

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levou minha carteira. Tirou o dinheiro, mas deixou os documentos. Tem ficado mais difícil roubar caminhão de empresa. Hoje em dia tudo é rastreado por satélite, mas ainda assim acontece. O Eraldo que teve sorte. Em uma de suas viagens, parou em um posto, foi tomar uma água e quando voltou tinha companhia em seu caminhão: dois assaltantes. Um deles se escondeu atrás do banco do motorista e o outro entrou pela porta do carona depois que Eraldo percebeu a ação. A essa altura uma arma já estava apontada para ele. A sorte é que seu caminhão era rastreado. Os bandidos, cientes disso, desceram e mandaram que ele seguisse viagem, deixando bem claro que era para esquecer tudo que passara. Coisas da profissão. Tanta conversa que, enfim, chego ao meu destino. É bem cedo ainda, deixei para tomar café da manhã por aqui. Mal fecho minha caixa e já encontro o fiscal da empresa. É neste momento que costumeiramente eles checam o nome do caminhoneiro, verificam que produto é carregado e encaminham para a lista de espera. Não aguardo muito e sou chamado. Animação meramente momentânea. Entro na empresa, mas perco a conta das horas que espero lá dentro. Várias regras devem ser seguidas. Cada lugar possui as suas. Aqui, preciso colocar uma roupa branca por cima da minha – eles próprios cedem essa vestimenta.

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Logo se aproxima da hora do almoço e os serviços param. Ainda não faço minha comida, preciso comprar carne. Com o carregamento realizado, saio do perímetro urbano de São Carlos em busca de uma sombra para cozinhar. Encontro um posto e encosto, mas não é ocasião para demora. Pretendo chegar a Ibaté, distante pouco mais de 70 quilômetros dali, até a noite. Dormir na pequena cidade pode adiantar o carregamento da manhã seguinte. Consigo cumprir minha meta. São nove horas da noite e já estou parado em um novo posto. Agora é dormir e carregar ao amanhecer. Os documentos estão checados, espero não ser surpreendido por nenhum outro atraso. Às vezes insisto em me iludir. Mais do que planejamento, é preciso sorte para conseguir realizar o carregamento dentro do horário previsto. Já deveria estar acostumado com isso. Enquanto espero, aproveito para verificar a lona da carreta. Dobro com cuidado, não precisarei dela para cobrir o tanque. Ajeito as coisas na carga. As horas passam. Finalmente, providenciam tudo que preciso para colocar a nova carga nas costas de meu velho companheiro, o caminhão: um tanque de combustível de três toneladas. Retornarei mais leve para Campo Grande. Isso diminui bastante o tempo de estrada. Estimo que estarei no aconchego de minha casa

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por volta das dez horas da noite. Costumo parar bem menos no percurso de volta. Um almoço rápido e um breve descanso, apenas o suficiente, pois tive uma boa noite de sono. Tudo agora caminha como previsto. Passarei o final de semana em casa, como havia combinado com a família. Quanto mais me distancio da região central do estado de São Paulo, mais erma fica a paisagem. Gradualmente, as cidades ficam dispersas e distantes umas das outras. Chego a Três Lagoas, primeiro município após o Rio Paraná, que faz a divisa estadual. Optei por fazer o caminho da volta pelo eixo da Marechal Rondon, rodovia que cruza todo o território paulista. São quase oito da noite. Entrego a nota ao fiscal. Dessa vez nem me preocupo com a espera. Na semana passada também carreguei um tanque. Apenas paguei algumas poucas dezenas de reais em impostos e fui liberado. Ledo engano! Não sei quem errou, mas hoje resolveram me cobrar mais de mil reais em tributos. Terei de esperar. Ligo para quem me encomendou a carga, pois não tenho esse montante comigo. Se não conseguir resolver o impasse hoje, mais uma noite será passada na estrada. Minha sorte é que com a Internet a comunicação fica mais ágil. Não acho certo ter que pagar bem mais caro do que a média, mas preciso ir embora, minha família me espera. Em pouco tempo, a empresa consegue

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efetuar o pagamento on-line. Precisam primeiramente me liberar, depois tentarão descobrir o que realmente aconteceu. Estou liberado, posso ir para casa. Pelo caminho, novas reflexões virão: as condições das estradas, o grande número de pedágios e os gastos que caracterizam a jornada de um caminhoneiro. Minha viagem para o interior de São Paulo será um bom exemplo para explicar um pouco mais os percalços da profissão.

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Percalços

De volta à minha viagem ao interior de São Paulo, o calor e as condições do asfalto somados ao uso de pneus gastos foi a equação certa para o meu primeiro problema do dia. A 100 km do ponto de partida, um pneu estourou. Já estava em Nova Alvorada do Sul, na BR 267, sentido Bataguassu. Era o terceiro pneu que dava problema desde o início da viajem – os dois primeiros de pouca gravidade. Por ironia do destino, justamente aquele que pensei que aguentaria todo o trajeto foi o que me deixou de fato na mão. Pedi ao borracheiro que trocasse a câmera de ar e o colarinho – uma borracha que serve de proteção à câmera – por peças novas, embora pesasse um pouco mais no orçamento. Remendar o pneu novamente poderia me trazer mais empecilhos à frente.

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A borracharia era bem parecida com tantas outras nas quais eu já havia parado no decorrer da carreira: uma construção pequena precariamente pintada na cor branca, manchada pelo pó preto do asfalto, com um telhado puxado para fazer sombra em toda sua frente. Os pneus velhos, sem uso, empilhados pelos cantos. De um lado, um cocho com água é usado para verificar se as câmeras estão realmente furadas. O borracheiro costuma mergulhá-las várias vezes e um resquício de bolhas de ar é a confirmação. O proprietário do local estava do outro lado do terreno pintando alguns pneus de carro e de lá mesmo partiu a ordem para o funcionário resolver meu problema. O esforço foi grande para conseguir tirar o pneu do eixo do caminhão. É uma peça pesada, de quase 80 quilos, que além da câmera e do colarinho, compõem-se também do pneu propriamente dito e da roda, um arco de metal que serve para encaixá-lo no eixo. Um macaco hidráulico, colocado embaixo do chassi, levantou o caminhão e facilitou o trabalho. Outra máquina afrouxou as porcas e o funcionário soltou-as com a chave de roda. O pneu foi rolado até a cobertura da borracharia, desmontado e trocado pelas peças que pedi. Enquanto aguardei o conserto, notei que um caminhão toco foi estacionado ao lado meu. O motorista era José Garcia, 55 anos de idade. Diferentemente de muitos amigos de profissão,

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ele iniciou sua carreira profissional como vendedor em uma antiga loja de departamentos, até que a mesma fechou. - Então parti para aquela ideia: agora vou para estrada. Por falta de oportunidade e por não ter estudado, acreditava que a única opção que possuía naquele momento era tornar-se caminhoneiro. Na borracharia, ele me contou que em uma de suas viagens de volta para Cotia, onde reside, na região metropolitana de São Paulo, teve um problema com o cano da bomba adutora. - Tive problema em Bauru, onde arrebentou um cano da bomba adutora. Rachou um pouquinho e ficou jogando diesel fora. Eu parei e troquei, já estava sem dinheiro. Liguei pra firma e disse: ‘estou fazendo um serviço aqui, vocês depositam o valor da despesa, do material e mão de obra’. A firma depositou na hora. O relato de José Garcia é interessante. Normalmente, por ser autônomo, arco sozinho com gastos como esses. Não são todas as empresas que aceitam que seu funcionário conserte o caminhão em lugares que elas não conhecem.

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Lembro-me de uma conversa que tive com Arlindo sobre esse tipo de decisão. Ele me disse que sempre que acontece algo com seus caminhões durante uma viagem, o funcionário deve avisá-lo para que tome as devidas providências. - Tive um caminhão quebrado em Cascavel, no Paraná. Simplesmente liguei [para uma empresa] e falei que o caminhão estava com um problema na roda. Disseram-me: ‘vamos lá agora socorrer’. Mas quem mandou fazer isso? Eu! Não precisou que o motorista ligasse, saísse correndo. Depois mandam a nota aqui ou faço o depósito na hora. Abri cadastros em empresas de tudo quanto é lugar. Tenho os roteiros por onde passam os motoristas e ligo nas autopeças para socorrerem onde estiverem. Tanta conversa, que nem percebi o tempo passar. Demorou um pouco, mas logo o pneu ficou pronto. Segui meu destino. O caminho até São Paulo é cheio de pedágios, o que torna a viagem ainda mais cara. Em média, pago R$ 30,00 por pedágio. Tento desviar o máximo que posso deles. Uso rotas alternativas e o preço da escolha é passar por estradas danificadas: mão única e buracos. Por outro lado, como vantagem, existe o fato de serem um pouco mais vazias.

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Mesmo com o desvio de seis pedágios, gasto em torno de R$ 345,00. É geralmente o custo dessas viagens mais curtas. O pedágio é cobrado de acordo com a quantidade de eixos do caminhão. O meu, por exemplo, tem seis eixos. Muitos colegas que trabalham em transportadoras possuem o benefício dos sistemas de identificação e de pagamento eletrônico dos pedágios – o que é realizado mensalmente pelas próprias empresas. Isso facilita no momento da passagem pelos postos de cobrança: custo zero para o empregado e uma ótima opção para quem não gosta de perder tempo. Em um desses desvios das praças de pedágio, impressionei-me com a Rodovia Comandante João Ribeiro de Barros, uma vez que por ser pública estava em bom estado, além de possuir pista duplicada, o que normalmente não acontece em muitas estradas pelas quais costumo trafegar. Normalmente no Brasil são as estradas com cobrança de pedágio que possuem mais infraestrutura. O companheiro Eraldo compartilha minha opinião. - Onde tem pedágio a estrada é boa e tem socorro. Onde não tem pedágio, nesse Mato Grosso do Sul, se você quebrar pode morrer lá. Nas estradas pedagiadas não. Nos caminhos daqui para o Rio de Janeiro e para São Paulo

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existem câmeras te filmando para todos os lados. [Se o caminhão quebrar] e ninguém avisar [ao socorro], a câmera filma você, já sabe e vem alguém ver o que está acontecendo. Vem um guincho e te tira dali numa boa. Custo zero. Onde não tem pedágio, além do custo ser caro, você fica lá um dia, dois dias, até chegar o socorro. Tudo depende da sua firma também. Recentemente, vi uma pesquisa sobre o estado de conservação das estradas no Brasil. Até o primeiro semestre de 2013, foram analisados 96.714 quilômetros de rodovias federais e estaduais pavimentadas em todo o país1. Os resultados mostram que 36,2% dos trechos pesquisados apresentam condições satisfatórias. Nos outros 63,8% foram identificados problemas no pavimento, na sinalização ou na geometria da via. Para a Confederação Nacional do Transporte (CNT), o resultado mostra a necessidade de maiores investimentos para que se possa melhorar a situação existente, seja na reconstrução ou na manutenção das rodovias brasileiras, o que evitaria problemas com prejuízos

1 Pesquisa realizada pela Confederação Nacional do Transporte.

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econômicos para a sociedade. O que falar dos acidentes? Infelizmente, os números mostram que somos um grupo com um índice considerável. Em 2010, por exemplo, dos 11.669 acidentes com vítimas fatais no país, 3.343 envolveram caminhoneiros. No mesmo ano, 18.873 acidentes com feridos também estiveram relacionados com os profissionais de carga. Já nos acidentes sem vítimas, uma soma de 205.179, nosso envolvimento foi muito maior: 57.032 casos2. Por isso, é muito comum encontrar histórias de colegas que já passaram por situações de risco nas estradas. É novamente o caso de Eraldo. - Já sofri um acidente gravíssimo. Estava carregado e veio um carro com o farol apontado em minha direção. Pensei: ‘ué, o que está acontecendo?’. Sai da pista e fui para o acostamento para ele poder passar. O carro veio de encontro, eram quatro pessoas. Todas morreram. Ainda desci, fui prestar o socorro, mas não tinha o que fazer. Deu na perícia que a colisão foi a 240 2 Dados do Anuário Estatístico das Rodovias Federais de 2010 – Acidentes de Trânsito e Ações de Enfrentamento ao Crime. Realizado pelo o Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (DNIT) e Departamento de Polícia Rodoviária Federal.

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quilômetros por hora. Eu ia a 70 km por hora e ele bateu a 170. Nesse caso, apesar da trágica lembrança, Eraldo conseguiu sair ileso do acidente. Mas nem sempre é assim. O funcionário de Arlindo Strack não teve a mesma sorte. - Dois anos atrás nós perdemos um motorista em um acidente. Em 15 anos de empresa, foi o primeiro acidente que nos levou a perder um motorista. Falo que fomos muito infelizes naquilo, sabe, pois o nosso motorista estava certo na pista, o outro carro tombou, bateu e o matou. Arlindo enumera as principais causas que podem levar a uma colisão – e insere a maior parte da culpa nos próprios empresários . - O cara carrega lá em Santos e liga: ‘acabei de pegar a carga aqui, não estou aguentando de cansado’. O que o patrão fala? Se vira, preciso de você aqui, toma rebite3. Então ele dorme no volante, sai

3 Combinação proibida de medicamentos para inibir o sono.

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estressado, sai querendo tirar os outros da estrada, o que resulta em acidente. Não é falha mecânica. Coloco a culpa nos donos dos caminhões em 95% dos casos. Outra realidade que também pode interferir nas ocorrências nas estradas me foram apresentadas pela policial rodoviária federal Luciene. - Infelizmente, muitos condutores de caminhões e carretas, além de usarem os medicamentos para se manterem acordados, os chamados rebites, estão também usando cocaína. O número de condutores que utilizam a droga tem aumentado significativamente. O álcool também é uma grande preocupação da PRF, temos constatado casos de motoristas alcoólatras dirigindo nas rodovias. Em meio a tantas histórias ruins, volto a pensar na falta que minha família me faz e como é bom quando consigo trazer alguém para viajar comigo. Mas esse é assunto para as próximas páginas.

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Parte III

Eles


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Ausência

Como já relatei, nossa vida é muito solitária. Não que não convivamos com outras pessoas enquanto viajamos, mas muitas vezes as relações param na superficialidade. Sentimos falta do aconchego familiar e das relações de amizade mais íntimas. Sem contar que nossas paradas nos postos são rápidas. Esticamos um pouco mais na hora do almoço e quando encostamos para dormir. Porém, queremos mesmo é descansar nesses períodos para seguir o caminho na manhã seguinte. No máximo, assistimos televisão com outros colegas, mesmo porque não existem muitas opções de lazer nos locais onde paramos. Basta prestar atenção na rotina do José Garcia, algo muito semelhante a todos os companheiros de estrada.

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- No intervalo, quando estou no restaurante, assisto televisão ou converso com os colegas. Depois vou dormir. Por volta das nove horas todo mundo vai pra sua cabine descansar. Os períodos que mais aguardamos são em postos de fiscalização ou quando temos de encontrar uma carga para retornar para casa. Ainda assim, não temos muito o que fazer. Creio que era ainda pior para o Eraldo que trabalhava em outro país, com outro idioma e outros costumes, mas também tinha a companhia de colegas que estavam na mesma situação. - Comer, beber e dormir. Ficava lá na espera. Então juntava aquela galera, 40, 50 motoristas. Alguns têm a sorte de esperar a nova carga em cidades em que possuem familiares. Foi assim com Celso Orlando em uma dessas viagens em que o encontrei nas pistas. Ele partiu de Limeira, no interior de São Paulo, para Campo Grande carregado de veneno, uma carga considerada perigosa. Na cidade de destino reside sua filha, Andréia Orlando, e seus netos. Logo após o descarregamento, o caminhoneiro foi ao encontro da família, já que teve de ficar na cidade por três dias. Dormia na casa da filha e logo pela manhã saía em busca de uma nova carga. Dessa maneira, relata, o tempo costumava passar mais rápido.

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Pra quem é do Mato Grosso do Sul, como eu, levar carga para o Norte e o Nordeste resulta em maiores períodos de tempo ocioso. São viagens realmente longas. O legal é conhecer novos lugares, mesmo que seja superficialmente. Ivo Delavi costumava carregar muito para lá. No banco do passageiro estava sempre sua esposa, Vanessa, companheira de estrada por muitos anos. Moravam na própria cabine do caminhão. Tempos de muitas histórias e grandes recordações. - Vivíamos bem assim. Íamos pra Fortaleza, pra Natal. Chegava final de semana e íamos para a praia, aproveitávamos um pouco. Parávamos em cidadezinhas pequenas, fazíamos um almoço. Só não aproveitávamos muito porque estava sempre ligado no trabalho, mas quando havia a oportunidade de participar de alguma coisa, aproveitávamos. Muito tempo de viagem exigia também horas dedicadas ao trabalho doméstico, principalmente para Vanessa, que fazia da boleia sua morada. - Quando parávamos também íamos correndo pra lavar roupa. Costumávamos ficar dois dias lavando roupa.

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Na verdade, Ivo tinha sorte de ter sua esposa sempre ao lado. - Era ótimo, pois viajávamos e nos dávamos bem. Era um sossego. Estranhei na hora em que ela parou. Então tive que continuar sozinho, mas desanimei bastante. Levar a família para a estrada nos faz esquecer a solidão corriqueira da profissão. Muitas vezes é um alívio ouvir histórias como a do Arlindo. - Meu filho sempre gostou de ir comigo, ficamos 60 dias na Bahia, ele e minha esposa no caminhão. Não tem coisa mais gratificante para um pai caminhoneiro do que levar a família. Chegava final de semana, eu assava uma carne, íamos numa praia, num parque. Tinha com quem conversar, se divertir. É totalmente diferente de ficar sozinho. Eu mesmo, sempre que posso, também levo um dos meus filhos ou minha esposa. Confesso que isso era mais fácil enquanto as crianças eram pequenas. Ainda não havia preocupação com escola, não era preciso esperar apenas o período de férias. Concordo, nesse aspecto, com o José Garcia. - Quando meus filhos estão de férias, eles

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viajam comigo. Eles não ficam em casa. É corrida para o Paraná, aqui mesmo no Mato Grosso do Sul, para Minas Gerais. Para onde eu for eles querem ir. Quando estou com eles, fico feliz. É muito ruim viajar sozinho. A recíproca é verdadeira. Os filhos também guardam recordações das viagens com os pais. Andréia Orlando hoje tem 42 anos e é dona de casa, mas acompanhou seu pai, Celso - pelo qual expressa grande orgulho e paixão - em muitas viagens. - Era muito divertido, pois eu o imitava muito. Inclusive, costumava falar que aprendi a dirigir sem estar dirigindo, porque ele sempre me carregava. Eu virava os chinelos ao contrário pra fazer de embreagem e acelerador, pegava alguma coisa pra fazer de volante. Imitava mesmo. Não é preciso muito esforço para perceber que nossa principal companheira é a solidão. Muito embora as lembranças dos momentos em que passamos com nossos familiares sejam boas, essa é a menor parte do tempo. De modo geral, o dia-a-dia é bem solitário. Poucas pessoas me expressaram tão bem esse sentimento quanto o Arlindo. - O que você tem? Uma cabine. É solitá-

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rio. Aí o cara argumenta, você anda por tantos lugares diferentes? Mas não conhece ninguém. Viaje pra um lugar qualquer, sozinho, que não conhece ninguém, para você ver como é triste. O problema é assim: chega o final de semana, você tem que ficar ali. Quando você está trabalhando, está escutando uma música, conversa com o pessoal no rádio, não vê passar o dia. Mantem-se em movimento. Mas ficar, como eu cheguei a ficar, quatro dias parados, é complicadíssimo. Não tem uma casa de parente para ir. Você depende de um posto com banheiro imundo para tomar banho. Então você senta na cabine e não tem nem uma televisão para assistir. Olha, não tem coisa pior. Já comentei a importância do rádio para os caminhoneiros em geral. Mas, para alguns, esse pequeno aparelho é a única companhia. É assim com colegas como José Garcia. - Viajo ouvindo os meus louvores. Ponho meu CD no rádio e ouço o tempo todo. Não escuto outra música. Certa vez eu estava passando pelo posto de guarda da Rodovia Raposo Tavares, no km 30, em São Paulo, quando o policial rodoviário me disse: ‘eu

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te parei porque pensei que havia alguém aí dentro com você’. E eu respondi: ‘tem sim! Eu, Jesus e os anjos que andam comigo’. De todo modo, muitos colegas não reclamam dessa condição. Eraldo, por exemplo, é bastante conformado a respeito da profissão. - Foi nós mesmos que escolhemos. Agora temos que tocar em frente. Mas está bom, não tenho o que reclamar. É o seguinte: você tem que trabalhar. Se trabalhou e recebeu, então está bom! Ficar longe de casa nos faz perder alguns momentos importantes. Temos que contar com a compreensão de cada membro da família. É a reunião de pais na escola que nos ausentamos, a primeira palavra dita pelo filho que não escutamos, as noites mal dormidas da esposa que passara cuidando do nosso filho... Nos comunicamos por telefone. Hoje, com o celular esse contato acontece mais vezes. Contudo, nunca é a mesma coisa de estar fisicamente próximo. Já me cansei de ouvir relatos tristes pelo caminho. É o caso do Onésio, que não se cansa de contar com tristeza: - A vida na estrada é muito sofrida, pois passamos muito tempo fora. O filho nasce e você demora 90 dias para conhecer, como

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aconteceu comigo. Minha primeira filha nasceu e eu estava em Cuiabá. Quando a conheci, já estava grande. A família também sofre com os quilômetros que os separam. José Garcia sempre relata a forma como escuta um de seus filhos chorar do outro lado da linha. - Dá vontade de chorar também, mas tenho que trabalhar, não é? Tenho que levar o pão pra eles. Para aqueles que foram criados em famílias grandes, como Arlindo, se acostumar com a distância configura uma tarefa ainda difícil. - Fomos criados em 12 irmãos e é muito difícil. Digo que ninguém consegue ver o vazio em que ficamos. Olha, chegar num domingo, não ter serviço e ter que ficar sentado longe de casa, sem ter o que fazer, não existe coisa mais triste. Não há coisa mais triste do que você ficar longe da família um mundo de tempo. E as pessoas que deixamos em casa, como ficam? No meu caso, minha família lida de maneira muito positiva com a ausência. Trata-se também de

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uma questão econômica. Não é que não sentem minha falta, mas reconhecem meu esforço para manter a renda da casa. Minha esposa é parte fundamental nesse entendimento. De certa forma, ela sempre me fez presente na vida dos filhos. Isso é muito interessante e não ocorre apenas comigo. A filha do meu amigo Celso costuma dizer que, embora distante centenas ou milhares de quilômetros, sempre sentiu o pai presente. - É lógico que a profissão fez com que ele ficasse sempre ausente. Tipo, nunca estar presente numa reunião de pais e mestres, nunca me levar ao médico. Sempre foi minha mãe. Mas quando podia, ele estava com a gente. Eu não conseguia nem sentir falta, pois nos falávamos todos os dias nos períodos em que ele ficava uma semana fora. São tantas as memórias! Para falar de distância e saudade, geralmente recorro às histórias de meus colegas de profissão. Não que as minhas próprias experiências não sejam importantes, pelo contrário! Porém, acredito que seja essencial ressaltar a realidade daqueles que compartilham a mesma estrada comigo – seja no asfalto, seja na vida. Das coisas comuns que carregamos com mais frequência na bagagem diária, a solidão e a saudade são aquelas que mais nos aproximam.

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Roda viva

Finalmente, volto a me concentrar no retorno ao lar. Foram muitas as curvas e paradas nesta viagem diferente que aceitei trilhar: relatar por meio de palavras os detalhes do meu ofício. Como é bom voltar para casa. Antes de seguir meu destino, faço uma ligação para avisar que irei me atrasar. Relato rapidamente à família o que aconteceu no posto fiscal. Deixo a fronteiriça Três lagoas por volta das nove horas da noite. Certamente, isso me levará a desembarcar em casa apenas de madrugada. Farei todo o esforço possível para não ter que dormir pelo caminho. Quase não tenho escolha. Nesse trecho que seguirei não existem boas alternativas de postos de combustível para que eu possa descansar tranquilamente.

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Ao poucos o cansaço me faz companhia. Não posso deixar que o sono me tome por completo. Tento enganá-lo, não estou tão longe de casa, somente algumas horas me separaram da minha família. Paro no posto mais próximo. Jogo água gelada no rosto, tomo um café. Compro chicletes para manter-me acordado e volto à solidão de minha cabine. Penso em todos que quero encontrar ainda nessa madrugada. Ligo o rádio um pouco mais alto, canto junto com ele. A luz dos outros veículos começa a incomodar-me. Continuo o caminho, sei que ainda posso controlar o cansaço. Esforço-me para permanecer atento a tudo que acontece em minha volta. O movimento não é muito grande. A estrada é, em sua maior parte, muito estreita. Passo por um trecho em obras e reparo em todas as minúcias. Assim consigo driblar o sono. No horizonte, avisto Campo Grande. Rodarei apenas mais alguns insignificantes quilômetros até minha residência, um alívio! Estou exausto, não posso mais esperar pelo momento em que deitarei em minha cama. Todos já estarão dormindo. Viro a esquina e vejo o portão de minha casa. Ah, o conforto do lar! Estaciono meu companheiro. Tudo está quieto, somente os cachorros fazem festa com a minha chegada. Filhos e esposa dormem silenciosamente. É madrugada, dificilmente me esperariam. Vou diretamente ao meu quarto, o sono já não pode ser controlado. Por hora

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desligo-me de tudo: do caminhão, da carga. Dormirei apenas algumas horas, novamente em nome do trabalho. Preciso entregar o tanque de combustível logo cedo, esse foi o combinado. Manhã de sábado, desperto cedo. Mais uma vez vou ao encontro de meu caminhão. Dessa vez, felizmente, a entrega é bem próxima, em uma fazenda a poucos quilômetros de distância. O descarregamento é imediato, ao menos um dia de sorte, nada de espera. Agora sim poderei ficar mais tranquilo. Enfim, verei meus filhos que já devem estar acordados. Minha esposa esteve comigo logo no início da manhã. Levantou-se cedo, preparou meu café. Estaciono novamente na pacata rua de minha casa. O barulho de meu caminhão é grande, logo um dos meus filhos aparece no portão. Tenho três filhos, o mais novo não esconde sua paixão pela profissão. Confesso que não desejo, mas pode ser que ele siga o mesmo caminho. Abraço meu filho, estava com saudades do aconchego familiar. Ele logo sobe na cabine. Entro em minha residência e encontro-me com os mais velhos. Minha esposa prepara o almoço na cozinha. Novamente o cotidiano de casa. Um fosso de distância daquela rotina transitória que marcou minha semana. Volto ao encontro de meu caminhão. Meus filhos me ajudam a descer as minhas roupas sujas. Preciso deixar tudo arrumado, logo terei que viajar de novo. Tiro os tapetes, limpo por dentro. Na hora de enrolar a lona me recordo do Celso Orlando. Ele

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e sua filha sempre fizeram esse serviço juntos, ocupavam toda a rua de casa para lavar e dobrar o encerado1. O mesmo acontece aqui em casa. Meus filhos me ajudam, a lona é pesada para uma pessoa só. Aos poucos procuro adaptar-me à regularidade da vida em casa. Depois de alguns dias de solidão preciso de tempo para acostumar-me com o barulho, com as conversas. Os filhos querem saber da viagem, das histórias. Querem ouvir cada detalhe, cada imprevisto, cada relato inusitado. Conto tudo. Os olhos deles brilham de orgulho e isso me enche de ternura. Minha esposa escuta tudo de longe, sua atenção está voltada ao fogão, não pode deixar queimar. Aproveito o tempo para descansar. O dia seguinte será domingo e pretendo rever alguns amigos. Apesar de estar ali com todos, minha cabeça está longe. Penso se terei carregamento para a próxima semana, essa é uma preocupação constante. Esse é um dos problemas da minha profissão. Estamos sempre em busca de novas cargas, de novos destinos. O final de semana se esvaece e chega ao fim. Aproveitei cada minuto de descanso, fiquei com meus filhos e com minha esposa, mas não posso dizer que esses dias são sempre de festa. Como todas as famílias, temos problemas para resolver. A luz do pôr do sol de domingo amarela meu humilde bairro. Recebo, então, uma ligação. Um novo frete me aguarda na manhã seguinte. E está posta a roda viva. 1 O mesmo que lona.

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