Mulheres de Raça

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL FACULDADE DE ARTES, LETRAS E COMUNICAÇÃO CURSO DE COMUNICAÇÃO SOCIAL COM HABILITAÇÃO EM JORNALISMO

VÍDEO DOCUMENTÁRIO: MULHERES DE RAÇA

STEFANNY DA SILVA VEIGA VIVIAN CAMPOS DE OLIVEIRA

Campo Grande AGO /2017


VIDEO DOCUMENTÁRIO MULHERES DE RAÇA: O IDEAL EM TORNO DO SEU CORPO E SUA SOLIDÃO

STEFANNY DA SILVA VEIGA VIVIAN CAMPOS DE OLIVEIRA

Relatório apresentado como requisito parcial para aprovação na disciplina Projetos Experimentais do Curso de Comunicação Social com habilitação em Jornalismo da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul.

Orientador(a): Prof. Dr. Marcelo Vicente Cancio Soares

UFMS Campo Grande AGO - 2017


SUMÁRIO

Resumo

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Introdução

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1. Atividades desenvolvidas

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1.1 Execução

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1.2 Dificuldades encontradas

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1.3 Objetivos alcançados

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2. Suportes teóricos adotados

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Considerações finais

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Referências

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Anexos

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Apêndices

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RESUMO: “Mulheres de raça” é um vídeo - documentário que se propõe a discutir a solidão da mulher negra, a hipersexualização construída em torno de seu corpo e a discriminação decorrente dessas problemáticas. As 11 mulheres, sendo duas estudiosas de relações de gênero e raça, expõem aqui questões vividas em relacionamentos afetivos. Tratam de situações como a rejeição sofrida desde a fase escolar, a solidão, a discriminação racial no âmbito de um relacionamento amoroso, a negativa em assumir a mulher negra em espaços sociais, a procura somente para fins sexuais, o assédio caracterizado com abordagens pejorativas e o preterimento, que coloca a mulher negra como última opção ideal para um relacionamento afetivo. Os relatos são de mulheres comuns, de diferentes faixas etárias, heterossexuais e homossexuais, com diferentes níveis de escolaridade e classes sociais, mas com uma coisa em comum: São negras que vivenciaram o peso do assédio, discriminação ou do preterimento pela cor.

PALAVRAS-CHAVE: Mulher - Negra - Hipersexualização – Solidão - Mídia

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INTRODUÇÃO

O dicionário Michaelis define raça como um termo que classifica os seres humanos de acordo com suas características fenotípicas, como cor da pele, traços faciais e tipo de cabelo. Já etnia é uma classificação que envolve o âmbito antropológico e caracterizam grupos por semelhanças culturais, linguísticas e genéticas. Os últimos dados divulgados pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) em 2010 apontam que o percentual de autodeclarados pardos, chegou a 43,07% e 8,21%, se autodeclararam pretos, totalizando 51,28% de pessoas afrobrasileiras, número que superou o percentual de brancos, que é de 47,76% Almeida (2010) em sua análise, diz que os estudos sociológicos e antropológicos culpam a sociedade escravocrata, como causadora da desigualdade e discriminação racial no Brasil. Almeida também cita a tese da historiadora e antropóloga brasileira Lilia Schwarcz (1993), que postula que as teorias evolucionistas e a eugenia contribuíram significativamente para a problemática do racismo. A teoria da degenerescência racial pressupõe que o contato afetivo-sexual entre os povos de “raça” e culturas diferentes, levaria à degenerescência mental, física e social aos povos que se misturassem. Almeida (2010) ainda cita outros estudiosos da época, como Oliveira Viana, que durante o século XIX defendia o branqueamento. Na teoria de Viana, a miscigenação entre brasileiras (índios e negros) e imigrantes europeus levariam a uma suposta evolução racial, com uma melhora estética, mental, cultural e racial. Em contraposição, o médico Nina Rodrigues diz que a miscigenação causaria uma decadência física, mental e social do país. Gilberto Freyre teria criado a ideologia da democracia racial, no qual as relações raciais no Brasil se deram de forma cordial. Para o autor, a miscigenação diminuiu a distância social entre a casa grande e a senzala.

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A concepção de Freyre sobre as relações entre brancos e negros pode ser interpretada como uma teoria que sustenta o que se convencionou chamar de ideologia da democracia racial brasileira. Benzaquen de Araújo, ao analisar a obra de Gilberto Freyre, chama atenção para o fato de que o autor de Casa Grande e Senzala teria criado uma imagem quase idílica de nossa sociedade colonial, ocultando a exploração, os conflitos e a discriminação que a escravidão necessariamente implica, atrás de uma fantasiosa “democracia racial”, na qual senhores e escravos se confraternizariam, embalados por um clima de extrema intimidade e mútua cooperação. (ALMEIDA 2010; p.21)

O casamento ou a união de pessoas negras, sejam elas relações interraciais ou da mesma cor, acontecem mais tarde, idade média de 23,4 anos para mulheres e 26,3 para homens, podendo até chegar ao celibato, enquanto outros grupos como pardos se casam com menos idade. (Schwarcz, 1993) O Centro de Políticas Sociais da Fundação Getúlio Vargas (FGV) em uma pesquisa no ano 2000, identificou que a Bahia é o estado com maior número de mulheres solteiras no país. Em sua capital Salvador, onde há a maior concentração de descendentes africanos fora da África o número de mulheres solteiras é de 51% (Pacheco, 2008). Os pesquisadores apontaram como motivos, a cultura matriarcal e nas cidades do interior, identificaram a evasão dos homens que procuravam oportunidades de trabalho fora. Essas pesquisas foram divulgadas pela revista Veja em 2005, mas não foi feito um recorte de racial. (Pacheco, 2008) A questão em torno da solidão da mulher negra é histórica, o ideal criado é enraizado na época da escravidão brasileira, onde as negras tinham suas funções na sociedade, sempre voltadas para os trabalhos domésticos dentro das casas grandes, forçadas também a atender as necessidades sexuais de seus senhores. E esses resquícios históricos estão presentes até a atualidade. Um racismo velado, que mesmo diante de uma pesquisa que aponta que 51% das mulheres da Bahia são solteiras e a sociedade aponta outros motivos, fazem somente a análise de gênero e não racial, excluindo o fato que as mulheres negras carregam uma carga histórica de racismo em cima de seu corpo.

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Atividades desenvolvidas

Nossa principal motivação na escolha de tratar da mulher negra, foi a identificação pessoal. Durante a graduação, travamos várias discussões em sala de aula e fora dela. Numa dessas discussões, mais especificamente na disciplina de Antropologia Social, estudamos um texto do Gilberto Freyre, que fazia parte da obra “Casa grande e senzala” e nele abordava a mulher negra no contexto histórico brasileiro do Brasil colonial. Na ocasião, além de apresentarmos nossas conclusões do texto em sala, trouxemos um vídeo chamado “Morena”, que tratava da hipersexualização e preterimento da mulher negra, por meio de vários depoimentos de mulheres negras que haviam passado pela situação. Com esse vídeo, pudemos entender que algumas situações de assédio e preterimento que aconteciam conosco, não aconteciam por acaso. Outras mulheres passavam por isso e a causa era sua raça. Levantamos o debate em sala e percebemos que ninguém ali tinha consciência dessa problemática. Além das discussões, o nosso próprio reconhecimento de sermos mulheres negras e valorizarmos nossa identidade, aconteceu durante a graduação. No início do curso, Stefanny fazia química de alisamento no cabelo e Vivian permanecia com o cabelo sempre preso. Aos poucos, assumimos nossos cabelos cacheados e crespos e também nossa consciência de raça. Participamos de alguns movimentos negros, como o Movimento Crespos e Cachos em 2015 e 2016 e do Concurso Beleza Negra 2016. Esses eventos também fortaleceram nossa consciência de raça e na época, já pensávamos em trabalhar a questão racial em nosso TCC, então o contato com pessoas desses meios foi fundamental. Com esse histórico, decidimos trabalhar no TCC algo relacionado à mulher negra. A ideia inicial era fazer uma revista que fosse um veículo de representatividade para esse público. No entanto ao longo dessa jornada, percebemos que os depoimentos seriam fortes e perderiam sua intensidade se fossem escritos. Além de pensarmos ser 7


algo mais atrativo fomentarmos debates em rodas de conversas e ações, por meio da exibição de um vídeo. Na revista, que também se chamaria “Mulheres de raça”, poderíamos abordar diversas pautas, mas no vídeo-documentário, delimitamos para uma só temática, que é a solidão. Contatamos a Professora Dra. Maria de Lourdes da Silva, docente do curso de Pedagogia da UEMS e especialista em gênero, raça e educação para que nos indicasse leitura bibliográfica e nos norteasse no afunilamento do nosso trabalho. Apresentamos a ela a proposta de produzir um documentário sobre a solidão da mulher negra e ela nos indicou que elencássemos palavras-chaves para estudarmos. Delimitamos os temas que fariam parte do nosso trabalho e começamos a escrever a fundamentação teórica. Feita essa parte, definimos que as mulheres presentes no trabalho deveriam ser de perfis diferentes. Essa definição é baseada no princípio do Jornalismo, de buscar pluralidade na construção de uma notícia. Fico decidido que buscaríamos: Mulher no fim da adolescência (15 a 17 anos), mulher jovem (18 a 30), de meia idade (40 a 50), idosa (acima de 60), mulher homossexual e mulher que resida em bairro periférico. Buscamos mulheres conhecidas e pedimos indicações a algumas pessoas. Duas mulheres se recusaram por não se sentirem à vontade em falar do tema, outras duas não tinham disponibilidade de tempo, uma teve receio de se expor por causas familiares e uma aceitou e marcou a pré-entrevista, mas desmarcou no mesmo dia e não deu mais retorno. Elaboramos um roteiro para a pré-entrevista (ver apêndice na pág 49), no qual perguntaríamos todos os temas e ouviríamos a história de cada mulher. Após cada prévia, elaboramos um relatório e as perguntas que seriam feitas na entrevista gravada, de acordo com os pontos fortes de cada depoimento. Pedimos para nossas fontes que escolhessem o local, como a própria casa, parque, shopping, entre outros. Em alguns casos, fomos até locais de trabalho para obter imagens de apoio da fonte.

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1.1 Execução

Marcadas as entrevistas, fomos até o local escolhido pelas entrevistadas, de posse do roteiro de perguntas e equipamento (câmera, tripé, cartão de memória e microfone). Após teste de imagem e áudio, dávamos início a entrevista. O procedimento pós-entrevista, era de decupar e selecionar melhores falas e tempo de vídeo, para facilitar a edição. Gravamos as cenas de transição de bloco, depois de todas entrevistas concluídas. (Ver apêndice na pág 85) Por último, elaboramos o roteiro de edição (Ver apêndice na pág 40) e o executamos no editor de vídeo Première. Efeitos, vinhetas e GC (Gerador de caracteres) foram feitos com auxílio do nosso colaborador Cayo Cruz. A arte da capa externa e interna foram elaboradas pela artista plástica Neska Brasil (ver anexos – pág 34)

1.2 Dificuldades Encontradas

Uma das dificuldades foi conciliar nosso tempo com o tempo das entrevistadas. Algumas mulheres se recusaram a participar por não terem tempo ou por receio da exposição. Por não possuirmos equipamento próprio, utilizamos a câmera disponibilizada pela faculdade. O curso possui poucos equipamentos, que não atendem suficientemente a demanda de alunos. Com isso, tivemos muita cobrança pela devolução, o equipamento foi devolvido e algumas cenas (transição de bloco) foram gravadas com celular.

1.3 Objetivos Alcançados

Definimos em nosso pré-projeto que o objetivo era contemplar mulheres de diversos perfis, de diferentes idades, orientações sexuais e níveis socioeconômicos. Conseguimos três mulheres com idades que variam de 45 a 62, quatro mais jovens, com variação de 17 a 25 anos e duas mulheres homossexuais, de 19 e 20 anos. Outro item presente no plano era contemplar a mulher periférica como perfil. Elencamos a cidade de Deus – favela que é símbolo de resistência em Campo Grande e 9


que foi dividido em 2016 em quatro loteamentos nos bairros Vila Nasser, Jardim Canguru, Dom Antônio Barbosa e Vespasino Martins. Visitamos o loteamento Pedro Teruel, localizado no bairro Dom Antônio Barbosa para procurar essa fonte, mas não conseguimos. Constatamos – pelo menos nessa ramificação da Cidade de Deus – que a maioria das mulheres não se afirmam negra e muitas relatam que nunca sofreram discriminação racial. Nessa visita, chegamos à hipótese de que as mulheres negras da favela campograndense não reconhecem a raça e o racismo, por falta de informação. Esse dado ficou sendo uma situação hipotética, não conseguimos fazer essa busca em outras favelas para termos uma constatação mais palpável e por ser uma atividade que demandaria tempo, abandonamos esse item do plano. (Ver apêndice na pág 82) Por meio de uma fonte, que integra o coletivo de mulheres negras de Mato Grosso do Sul, tivemos acesso a outras duas fontes, que diversificariam nossa lista de relatos. Mantemos-nos firmes a metodologia com as fontes, de ganhar a confiança com uma entrevista prévia e sem câmeras, ocasião que perguntaríamos tudo a respeito das temáticas definidas, para depois afunilarmos a entrevista gravada. Por questões éticas, algumas mulheres entravam em assuntos sigilosos ou traumáticos na entrevista prévia e a pedido delas, não perguntávamos nada a respeito na entrevista gravada. Uma forma de construir uma narrativa, foi utilizar cenas que remetam a situações vividas pela mulher negra. E dividimos a narrativa em cinco blocos de acordo com as temáticas: Ser negra, “Tchau química”, mídia, rejeição e hipersexualização. O primeiro bloco, a cena criada é de uma criança que está se descobrindo como negra, tocando sua pele e afirmando que é negra. Nesse bloco, nossas entrevistadas relatam a descoberta de ser negra, a vivência escolar e a problematização do cabelo. No segundo bloco, mechas de cabelo caem no chão e há barulho de máquina, como se uma mulher estivesse raspando o cabelo. A cena introduz ao tema da transição capilar e abandono de produtos químicos. Nossas entrevistas falam nessa parte sobre o processo de aceitação do cabelo e como muitas abandonaram a química.

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O terceiro bloco, tratamos da representatividade na mídia, referida pela cena em que uma moça folheia uma revista, onde só tem mulheres brancas. As entrevistadas expõem a questão. No quarto bloco, abordamos as problemáticas que a mulher negra enfrenta nos relacionamentos afetivos, como discriminação racial com o (a) parceiro (a) e sua família, rejeição e preterimento. A cena inicial, uma moça tenta se aproximar de um rapaz, mas ele se nega a ficar perto dela e sai. Assim, cada entrevistada relata uma situação vivida. No quinto bloco, uma moça negra é assediada na rua com uma cantada pejorativa. Aqui, as nossas entrevistadas falam a respeito de corpo, hiperssexualização e relatam que abordagens com as mulheres negras são sexuais e diretas ao ponto. No último bloco, mostramos todas as mulheres do vídeo-documentário em imagens, com a citação da poesia “Gritaram-me negra ”, de Victória Santa Cruz. O vídeo-documentário tem em média 15 a 20 minutos, mas não é algo que deve necessariamente, ser seguido a rigor. Nosso trabalho tem 18:50 minutos e escolhemos duas trilhas sonoras de uso livre. A trilha de entrada é “Beat Rap Boom” e a outra trilha utilizada foi buscada no youtube como “música triste para fundo sonoro”. Links das trilhas:

Música triste para fundo de vídeo: https://www.youtube.com/watch?v=YzqrRLPD7YA

Beat Rap Boom Bap "Misunderstood" Hip Hop Free Use - Uso Libre:

https://www.youtube.com/watch?v=8K4VazvKM1Y

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2. Suportes Teóricos Adotados:

1. A mulher negra no Brasil

A história do negro no Brasil é marcada pela escravidão. As Africanas que chegaram ao país na época colonial desempenharam diversos papéis, desde os serviços domésticos como arrumadeira, cozinheira ao trabalho nas monoculturas de cana-deaçúcar. A “mãe preta”, como era chamada, ficava responsável pela criação dos filhos dos senhores, além de serem exploradas sexualmente. Da escrava ou sinhama que nos embalou. Que nos deu de mamar. Que nos deu de comer, ela própria amolengando na mão o bolão de comida. Da negra velha que nos contou as primeiras histórias de bicho e de mal-assombrado. Da mulata que nos tirou o primeiro bicho-de-pé de uma coceira tão boba. Da que nos iniciou no amor físico e nos transmitiu, ao ranger da cama de vento, a primeira sensação completa de homem (FREYRE 1977 apud ALMEIDA, 2010, p 26 - 27)

No final do século XVIII, o comércio humano cresceu significativamente e para a elite brasileira, possuir cativos representava um status que media a condição social das famílias. Os escravos constituíam verdadeiros objetos de mercado e a negociação se iniciava logo no desembarque dos navios negreiros. (Brazil e Schumarher, 2006). Continuavam chegando ao país navios negreiros em cujos porões espremiam-se homens e mulheres desterrados, que seriam levados, logo que desembarcassem, até que os armazéns, verdadeiras masmorras onde ficavam até o momento de “serem leiloados”. Depois de um período de “engorda”, eram obrigados pelos feitores a se organizarem conforme a idade e o sexo. Geralmente, os homens ficavam sentados em bancos dispostos ao longo das paredes, as crianças sentadas adiante, enquanto as mulheres se punham de cócoras entre eles. Todos compartilhavam a expectativa de um destino incerto. Em seguida, teriam de suportar a vistoria dos escravocratas, que os apalpavam, olhavam os seus dentes, para se certificarem do “estado” da “mercadoria”. Nos corpos das mulheres eram projetados um futuro de exploração física e sexual. Dos barracões e armazéns, as jovens meninas e também algumas mulheres adultas seguiam, mais uma vez separadas dos seus, numa precária viagem por terra ou mar, para os lares de seus exploradores. (BRAZIL E SCHUMAHER 2006; p. 40).

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Com o processo de urbanização que vinha ocorrendo no início do século XIX, era comum ver escravos trabalhando no comércio ambulante, as mulheres negras na época vendiam especiarias, mas muitas ainda estavam concentradas nas atividades agrícolas e de subsistência. Dentro das senzalas, as escravas idosas passaram a exercer a liderança religiosa, com as funções de benzedeiras e provedoras de valores religiosos, além também realizarem o trabalho de parteiras. As mulheres que trabalhavam no meio urbano eram exploradas pelo senhor do engenho, que as obrigavam a pagar uma quantia do valor arrecadado para conseguir a compra de sua liberdade. Outra forma de exploração foi a prostituição, os escravocratas obrigavam as negras a realizarem esse serviço e lhe tiravam o lucro obtido Os afazeres e negócios das cativas no comércio local foi um dos meios encontrados por alguns exploradores para acumularem algum capital, já que muitas vezes elas representavam a única fonte de renda de uma família. Muitas conseguiam pagar ao “seu senhor”, ao final de um dia ou semana de trabalho e ainda guardar a quantia necessária para a compra de sua liberdade, de seus companheiros e filhos. Outra forma de exploração encontrada pelos escravocratas era obrigando-as a se prostituírem. As “senhoras” enfeitavam as jovens com joias, anéis e rendas finas para atrair os potenciais clientes. Na década de 1860, encontramos o registro da pequena Honorata, então com 12 anos de idade, forçada à prostituição na Bahia. Até os 19 anos, ela pagava semanalmente a soma estipulada por “sua senhora”, que conseguiu comprar casa, roupas e comida com os recursos obtidos por Honorata (BRAZIL E SCHUMAHER, 2006; p.43).

As escravas que viviam na casa-grande como serviçais domésticas, eram alvo de abusos dos senhores e eram submetidas muitas vezes, à condição de amante. Muitas vezes os ímpetos dos exploradores não esperavam o percurso até os prostíbulos e se voltavam para aquelas que estavam mais próximas. O alvo eram as mulheres que trabalhavam na casa-grande, as quais se tornavam vítimas do estupro, dos assédios diários, podendo ainda ser obrigadas a uma vida de amásias e concubinas. Esta condição, longe de fornecer a suposta “proteção”, punha a cativa em maus termos com “sua senhora”, que passava a tortura-la por cair “graças de seu marido”. Em outros casos, quando eram acusadas de concubinato, acabavam sendo expulsas da cidade ou vila que residiam (BRAZIL E SCHUMAHER,; 2006, p.43).

Segundo Souza (2008) na época da escravidão, as negras eram ferramentas de trabalho e transitavam entre a casa grande e a senzala, fazendo trabalhos braçais, domésticos e tinham que atender aos desejos sexuais de seus senhores. A autora 13


ressalta que a cordialidade entre o branco e negro nunca existiu, lembrando que a miscigenação aconteceu de maneira violenta e forçada, com o estupro das negras.

2. Relações matrimoniais em número

Berquó (1987) analisou as taxas de nupcialidade e de celibato entre homens e mulheres durante a década de 1980. Dividiu sua pesquisa por idade e raça, constatando que as mulheres se casam mais cedo que os homens e que o tempo de celibato é maior para as mulheres do que para os homens. Na classificação racial, a mulher preta se casa em média aos 23,4 anos, pouco mais tarde que a parda (22,5) e que a branca (22,7). O mesmo fenômeno ocorre com os homens, quanto mais escura sua pele, mais tarde se casam. A exemplo, a média por idade ao se casar entre os homens pretos era de 26,3 anos, 25,4 para os pardos e 25,7 para os brancos. A condição de celibato após os 50 anos de idade também é liderada pelos homens e mulheres de cor preta (7,8% e 13,4%, respectivamente), seguido dos homens e mulheres de cor parda (5,2% e 8,0%) e dos homens e mulheres de cor branca (5,5% e 7,7%) Em primeiro lugar, vale a pena notar a grande semelhança, quanto este parâmetro da nupciliadade, entre as subpopulações branca, parda, quando se leva em conta, de um lado, as mulheres, e de outro os homens. De fato, as brancas e pardas, se casam em média com 22,7 e 22,5 anos, respectivamente, e ainda estão solteiras aos 50 anos, 7,7% das brancas e 8,0% das pardas. Quanto aos homens, o casamento se dá mais tarde e, por volta dos 25,7 anos para os brancos e 25,4 para os pardos, sendo o celibato definitivo da ordem em 5,5% e 5,2% respectivamente. Ou seja, se mantém o desfavorecimento das mulheres, com relação aos homens, quanto às chances de se casarem. Além disso, os celibatos femininos para estas duas subpopulações são muito similares ao da população total feminina que, como vimos, apresentou um celibato (BERQUÓ 1987; p.17)

Berquó também compara os números obtidos na década de 1980 com a de 50, época em que o celibato era o dobro. Os homens que viviam na condição de celibato nos anos 50 formavam o percentual de 8,2% brancos, 12,9% pardos e 16,3% pretos.

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Já as mulheres chegavam a um número mais acentuado conforme a cor. A porcentagem de mulheres brancas em celibato era de 9,5%, pardas 17,1% e pretas 23,4%. No último censo brasileiro realizado pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), em 2010 (Ver anexo na pág 37), o quadro de mulheres de acordo com sua raça e estado civil era o seguinte: Do total, tínhamos 40,6 milhões de mulheres que se autodeclaram brancas, 6,1 milhões de autodeclaradas pretas e 35 milhões que se autodeclaram pardas, totalizando 41,1 milhões de afro-brasileiras (pretas e pardas). As mulheres casadas totalizavam 15,5 milhões brancas, 1,7 milhão de pretas e 10.7 milhões de pardas. Somadas o número de afro-brasileiras casadas (12,4 milhões de mulheres pardas e pretas), o número não superava o total de brancas casadas. As desquitadas ou separadas judicialmente chegava ao seguinte número: aproximadamente 910 mil brancas, 106 mil pretas e aproximadamente 549 mil pardas. As divorciadas totalizavam 1,7 milhão de brancas, 179,5 mil de pretas e 963 mil pardas. Já o número de mulheres solteiras mostrava de forma mais clara a solidão entre as negras (pardas e pretas). Eram 18,8 milhões de mulheres brancas solteiras, pretas totalizavam 3,6 milhões e pardas, 20,5 milhões. Nesse quadro, o total de afro-brasileiras solteiras (24,1 milhões de mulheres pretas e pardas) supera o número de mulheres brancas solteiras.

2.1 Matrifocalidade

Devido à condição do homem negro, ainda escravo, as mulheres negras começaram a chefiar as famílias, surgindo daí o conceito de “família matrifocal”. Ao mesmo tempo, homens negros tinham intensa vida sexual, sem que houvesse prejuízos à sua vida social, o que ocasionava também a existência de mais de uma família e consequentemente isso favorecia à matrifocalidade. Essa condição excludente e de marginalização a que o homem negro foi relegado imprime um novo contorno à configuração familiar existente, fazendo surgir famílias matrifocais. Típicas do Novo Mundo, ao contrário das famílias poligínicas da África, sua característica básica é ser chefiada por mulheres, o que outorga

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ao feminino a condição de centralidade e autoridade na assunção da permanência e da guarda do lar, em contraposição à ausência definitiva ou flutuante da figura paterna - considerada também como itinerante - o que confere ao masculino uma total fragilidade no papel de provedor, seja por exclusão sócioeconômica, pobreza ou migração. (SOUZA, 2008)

Nesse cenário, encontramos mulheres negras solitárias, que não se casaram, seja por vontade própria, por dificuldades sociais, preterimento do parceiro, fazendo-a com que não tenha uma condição de estabilidade amorosa. (Souza, 2008).

2.2 Gosto: Uma construção social

Pacheco (2008) realizou um estudo na Bahia, estado com maior número de negros do Brasil. Instigada por uma reportagem da Veja que falava sobre a solidão da mulher e apontava a Bahia como líder no ranking. No entanto, a matéria não mencionava raça, mas trazia a foto de uma mulher negra. Pacheco defende a ideia de que as escolhas emocionais e afetivas são determinadas pela cultura em que o indivíduo está inserido. As experiências emocionais/afetivas expressam significados públicos, ou seja, os indivíduos estão envoltos numa teia ou trama de relações sociais de uma determinada cultura. Tais concepções não esvaziam os sentidos que as pessoas atribuem aos seus atos e nem tão pouco as aprisionam numa “camisa de força” das estruturas normativas. Pode-se dizer que a escolha de alguém ou de algo não está fora dos limites daquilo que uma determinada cultura pensa e vivencia como sendo aceito ou não, mas, também, possibilita aos indivíduos, reatualizações, ajustes, re-significações de suas experiências emocionais/ afetivas e sociais (PACHECO, 2008; p.45)

A autora cita Bordieu ao afirmar que as emoções são condicionadas por um conjunto de dispositivos duráveis, como a cor, classe, geração, sexo, e esses aspectos, são interiorizados pelos indivíduos e reordenados de acordo com sua cultura dentro do campo social.

2.3 Casamento interracial como ascensão social

Pacheco (2008) menciona em sua tese, um estudo realizado pelo antropólogo Thales de Azevedo sobre os casamentos interraciais na Bahia. Dos 222 pares 16


investigados, 34% eram da mesma cor, 43% o homem era mais escuro e 22% a mulher era mais escura. Isso se explica também pelo fato de que na sociedade baiana da época (anos 50), o homem que se casa com uma mulher, era integrado à família. Essa integração familiar contribuía para a ascensão ou decadência social de um homem. “O casamento de homem claro com mulher escura, sobretudo quando esta é muito mais pigmentada, sofre oposição forte em todas as camadas”. (Azevedo, 1951 apud Souza, 2008) Azevedo (1951) foi o primeiro a colocar o casamento inter-racial como um ponto crítico, no qual o preconceito e racismo se manifestaram. Mesmo sem ter aprofundado esta assertiva, Azevedo deixou implícito o imbricamento das relações de gênero, raça e classe nas preferências afetivosexuais entre mulheres e homens negros / mestiços e brancos. Diferentemente de Freyre, observou que as mulheres negras, as pretas, não eram tão preferidas afetivamente para a união conjugal inter-racial e, como consequência, atribui àqueles fatores a redução das chances matrimoniais das negras, haja vista o preconceito racial, social e de gênero que as atinge em todos os “setores” da sociedade baiana. ”. (AZEVEDO, 1951 apud SOUZA, 2008)

Em sua obra “Elites de cor”, Azevedo constatou que a maior parte dos homens que ascenderam socioeconomicamente, casou-se com mulheres brancas ou com pele mais clara. Mesmo que essas mulheres tivessem condições financeiras inferiores, sua cor mais clara representava uma compensação social para a família.

3. Feminismo Negro

Para Carneiro (2003), o feminismo fez as mulheres se mobilizarem pela igualdade social, política, trabalhista e pelo livre exercício da sexualidade e reprodução. No entanto, a autora se posiciona em relação às demandas por gênero e raça e usa a expressão “Enegrecendo o feminismo”, para designar a trajetória das mulheres negras dentro do movimento feminista. A expressão busca assinalar a identidade branca e ocidental como o feminismo clássico e mostrar a insuficiência teórica e de políticas

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práticas que atendam as diferenças no feminismo construído em uma sociedade multirracial e pluricultural. Ao politizar as desigualdades de gênero, o feminismo transforma as mulheres em novos sujeitos políticos. Essa condição faz com esses sujeitos assumam, a partir do lugar em que estão inseridos, diversos olhares que desencadeiam processos particulares subjacentes na luta de cada grupo particular. Ou seja, grupos de mulheres indígenas e grupos de mulheres negras, por exemplo, possuem demandas específicas que, essencialmente, não podem ser tratadas, exclusivamente, sob a rubrica da questão de gênero se esta não levar em conta as especificidades que definem o ser mulher neste e naquele caso. (CARNEIRO, 2003; p.119)

A necessidade de uma vertente racial dentro do movimento feminista se deve ao estigma histórico de subalternidade que as mulheres negras carregam. Gonzales (2000 apud Carneiro 2010) afirma que as questões específicas das mulheres negras são omitidas no feminismo no Brasil De um lado, o viés eurocentrista do feminismo brasileiro, ao omitir a centralidade da questão de raça nas hierarquias de gênero presentes na sociedade, e ao universalizar os valores de uma cultura particular (a ocidental) para o conjunto das mulheres, sem as mediações que os processos de dominação, violência e exploração que estão na base da interação entre brancos e não-brancos, constitui-se em mais um eixo articulador do mito da democracia racial e do ideal de branqueamento. Por outro lado, também revela um distanciamento da realidade vivida pela mulher negra ao negar toda uma história feita de resistências e de lutas, em que essa mulher tem sido protagonista graças à dinâmica de uma memória cultural ancestral – que nada tem a ver com o eurocentrismo desse tipo de feminismo (GONZALES 2000 apud CARNEIRO. 2010; p.120)

Almeida e Ferreira (2016) ao estudarem a interseccionalidade do feminismo por meio de uma análise de duas figuras públicas – Marcela Temer e Benedita da Silva citam a “A mística feminina” de Betty Friedan. Publicado 1963 nos Estados Unidos, a obra evidencia essa noção de feminismo etnocêntrico, que atinge a mulher burguesa, de classe alta, com nível superior e majoritariamente branca, cuja maior frustração é ter como único destino e apogeu de vida, o casamento e a maternidade. Esse livro aborda também que as mulheres que viviam nesse cerco machista, passavam por um processo de infantilização, quando se tornavam esposas e donas de casa, a julgo de um marido que as protegiam e direcionavam-nas em tudo. Um fato que sempre foi verdade sobre o

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destino das mulheres, mais especificamente para as mulheres brancas, heterossexuais e de classe média. Conforme Lemos (2000) citada por Almeida e Ferreira (2016). “Enquanto as feministas brancas foram à luta para entrar no mercado de trabalho, há mais de 500 anos se explorava a mão de obra das mulheres negras. Por isto elas exigiam direitos trabalhistas e não o direito de trabalhar” (LEMOS 2000 apud ALMEIDA e FERREIRA, 2016)

Considerando a colocação da obra de Betty Friedan e saindo um pouco do privilégio da vida da mulher branca, a mulher negra ocupa o papel de empregada e funções subalternas. Diferentemente da mulher branca, além de assumir sua casa e o cuidado com os filhos, a negra está no mercado de trabalho, ganhando baixos salários como doméstica ou/e cuidando dos filhos dos outros. E muitas vezes, as mulheres negras assumiam sozinha a subsistência de suas famílias,

4. Representação da mulher negra

4.1 Literatura

As mulheres negras criadas pelos autores brasileiros ao longo da história da literatura eram caracterizadas pelo erotismo e a esterilidade. O corpo da mulata e sua pele escura ganham um significado carnal, sensual e sem pudor. Segundo Duarte: Nessa ordem, a condição de corpo disponível vai marcar a figuração literária da mulata: animal erótico por excelência, desprovida de razão ou sensibilidade mais acuradas, confinada ao império dos sentidos e às artimanhas e trejeitos da sedução. Via de regra desgarrada da família, sem pai nem mãe, e destinada ao prazer isento de compromissos, a mulata construída pela literatura brasileira tem sua configuração marcada pelo signo da mulier fornicaria da tradição europeia, ser noturno e carnal, avatar da meretriz. Chama a atenção, em especial, o fato dessa representação, tão centrada no corpo de pele escura, esculpido em cada detalhe para o prazer carnal, deixar visível em muitas de suas edições um sutil aleijão biológico: a infertilidade que, de modo sub-reptício, implica em abalar a própria ideia de afrodescendência (DUARTE 2009, p.64)

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Gregório de Mattos Guerra, Guimarães Rosa e Jorge Amado são alguns nomes que estigmatizaram a mulher negra na literatura. Na “Crônica do viver baiano seiscentista”, Gregório de Matos traça versos, no qual negras, mulatas, pardas e animais (cabras) figuram de forma satírica e burlesca. Há mais versos dedicados as peles morenas do que às brancas e donzelas. O poeta hipersexualiza essas mulheres, designando suas personagens a nomes chulos e atribuindo comportamentos promíscuos. Pela pena satírica e burlesca de Gregório de Matos surge a “crônica do viver baiano seiscentista”, na qual pululam negras, pardas, cabras e mulatas. Essas ganham bem mais versos do que as donzelas e senhoras brancas. Versos marcados, todavia, por uma semântica erótica obcecada pelos corpos de pele morena, sempre desfrutáveis, segundo tal ponto de vista, aos olhos e às fantasias sexuais do homem branco. Ao longo de centenas de textos, o poeta enfatiza essa redução à esfera carnal ao vincular a mulher afrodescendente ao desregramento e à promiscuidade. E o faz submetendo muitas vezes tais personagens a um vocabulário chulo, em que o corpo e a intimidade femininos surgem inscritos no mais baixo calão. As opções verbais, próximas até do grotesco, expressam os part pris norteadores da perspectiva autoral, voltada para a desumanização que opõe “cor” a “entendimento”. Sem este último, e sem um código de conduta que ao menos a aproxime da sociabilidade ostentada pela mulher da classe senhorial, a escrava é reduzida a signo cujo sentido permanece prisioneiro de um discurso em que racismo e sexismo se emparelham em definitivo e remetem a uma organização social em que o modo de produção escravista dá o tom dos valores e comportamentos. (DUARTE, 2009; p.64)

José de Alencar em “O guarani” atribui estereótipo às suas personagens, nomeando de “anjo louro” e “morenas ardentes”. Há um contraste bem nítido nas duas personagens de Alencar. Ceci – de Cecília – tem o nome com significação espiritual uma aura angelical que remete à Virgem Maria. Já a indígena Isabel, é descrita por sua languidez, indolência, lábios desdenhosos, sorriso provocador e possui um poder de sedução irresistível. Na obra “O Cortiço”, clássico de Aluísio Azevedo, Duarte observa: Dominado pelo íncubo afro-brasileiro, o homem bom e pai de família deixa de existir; sua alma “derrete-se” e lhe “sai por todos os poros”, numa “agonia extrema” e “sobrenatural”. (AZEVEDO, 1973, p. 194). Após a sedução, Jerônimo é sorvido em definitivo pela decadência física e moral, não se impondo jamais frente aos caprichos da amada. Assim, a superficialidade de personagens infensos a qualquer elaboração mais profunda em termos de psicologia casa-se com a forma maniqueísta com a qual são encaminhados os conflitos. (DUARTE, 2009; p.67)

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Nessa obra, a personagem Rita Baiana tem uma natureza sedutora e destrutiva, que leva o seu amante, o personagem Firmo a ser assassinado e à desagregação da família do imigrante Jerônimo. Nas cenas de sexo entre Rita e o português (Jerônimo), é contextualizado como um estupro do homem pela mulher, remetendo a anjos (Jerônimo) sendo violentado pelo diabo (Rita).

4.2 A construção da mulata

Segundo Correa (1996), a exaltação da mulata esconde e ao mesmo tempo revela o desejo masculino e branco de rejeitar a negra. A afirmação se aplica a diversas manifestações da cultura brasileira, como na literatura, ditos populares, à nudez da Globeleza (vinheta de carnaval exibida até 2016 na Rede Globo, que mostrava uma mulher negra dançando nua, apenas coberta por tinta), as músicas de carnaval que prescreviam o sexo livre de compromisso e caracterizavam de forma hipersexualizada, cheiros e nomes como “mulata gostosa”. Como é sabido, os termos mulata e mulato derivam de “mulo” e “mula”, animais híbridos, fruto do cruzamento de cavalo e jumenta – ou égua e jumento – e, não nos esqueçamos, animais estéreis. Em adendo, é preciso lembrar que o discurso cientificista do século XIX, tendo à frente Arthur Gobineau, proclamava tal esterilidade também entre os relacionamentos interétnicos, alertando para os “frutos malsãos” das uniões entre brancos e negras. Assim, à doxa patriarcal junta-se o saber “científico”, que transborda as fronteiras da medicina para chegar à literatura e ao discurso crítico de um Sílvio Romero, por exemplo, quando proclama que “as raças demasiado distanciadas pouco coabitam e, quando o fazem ou não produzem ou se produzem, são bastardos infecundos depois da segunda ou terceira geração” (CORREA. 1996, p. 44)

Há uma diferenciação de gênero, os mulatos na literatura sempre ascendem socialmente, enquanto as mulatas decaem. O mulato, do mesmo Aluísio Azevedo, os mulatos de Sobrados e Mucambos e os de Jorge Amado são agentes sociais, carregam o peso da ascensão social, ou do desafio à ordem social, nas suas costas espadaúdas; com sua cintura fina as mulatas, no máximo, provocam descenso social, e, no mínimo, desordem na ordem constituída do cotidiano: na literatura, Vidinha (Memórias de um sargento de milícias, de Manuel Antonio de Almeida) e Rita Baiana (O cortiço, de Aluisio Azevedo) encarnam essa proposta. (CORREA, 1996; p.40-41)

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Em conclusão, Mariza Côrrea aborda o estudo de Roberto Damatta, que afirma que “nosso sistema de classificação, ainda que funcione por gradações, postula um lugar para cada coisa, cada coisa em seu lugar" (1996, p. 48). A mulata é uma figura feminina e construída socialmente, que se transforma em um personagem com estatuto próprio e que passa a ser aparentemente aceita no imaginário social.

4.3 Esterilidade

De todas as personagens citadas, mesmo com a atividade sexual intensa, nenhuma delas engravida, associando o erotismo ao corpo infértil. A Rita Baiana descarta o casamento e o vê como sinônimo de escravidão. Além da ausência da procriação na maioria dos personagens da literatura, o sangue menstrual também é ausente, ou quando presente, não atinge a fertilidade. Evaristo (2005 apud Duarte 2009) também reflete sobre a ausência de representação materna da mulher negra Observando que o imaginário sobre a mulher na cultura ocidental constrói-se na dialética do bem e do mal, do anjo e do demônio, cujas figuras símbolos são Eva e Maria; e que o corpo da mulher “se salva” pela maternidade, a ausência de tal representação para a mulher negra acaba por fixá-la no lugar de um mal não redimido. (...) O que se argumenta aqui é o que essa falta de representação materna para a mulher negra na literatura brasileira pode significar. Estaria a literatura, assim como a história, produzindo um apagamento ou destacando determinados aspectos em detrimento de outros, e assim ocultando os sentidos de uma matriz africana na sociedade brasileira? (EVARISTO apud DUARTE. 2009, p.71)

4.4 Televisão

Para Santos e Silva (s/d), a telenovela constrói realidade e une realidade com ficção. A telenovela pode ser considerada, no contexto brasileiro, nutriente de maior potência do imaginário nacional e, mais que isso, ela participa ativamente na construção da realidade, num processo permanente em que ficção e realidade se nutrem uma da outra, ambas se modificam, dando origem a novas realidades,

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que alimentarão outras ficções, que produzirão novas realidades. O ritmo dessas transformações passa a ser a questão (SANTOS E SILVA (s/d), p.4)

Os arquétipos criados nas telenovelas geralmente são de mulheres submissas, que não exigem grande esforço intelectual para serem interpretados, prostitutas ou mulheres que vivem intensa atividade sexual. Como se as atrizes negras fossem incapazes de exercer o protagonismo ou ascender economicamente. Para Araújo (2008), a televisão leva ao público discursos racistas e torna a democracia racial, um mito. A veiculação de comerciais, programas e telejornais com pessoas, em sua maioria brancas e a exposição de pessoas negras em papéis estigmatizados, reforçam ainda mais a discriminação racial. O racismo brasileiro apareceu na telenovela somente como uma das características negativas do vilão, e não como um traço ainda presente na sociedade e na cultura brasileira. Até o final dos anos 90, poucas telenovelas trataram a discriminação racial contra o negro brasileiro de forma direta. Na teleficção, assim como na nossa sociedade, a vergonha de demonstrar o próprio preconceito, ou o “preconceito de ter preconceito”, conforme alertava o sociólogo Florestan Fernandes, criou o tabu que inibe a manifestação aberta do racismo e fortaleceu o consenso em torno do mito da democracia racial brasileira. (ARAÚJO, 2008, p.981)

Em 2004, foi ao ar a primeira novela da Rede Globo protagonizada por uma atriz negra. Taís Araújo, que deu vida à personagem Preta em “Da cor do pecado”, se tornou símbolo de autoestima para as crianças negras. O papel de Preta de Sousa desempenhado por Taís Araujo em Da cor do pecado foi, dentro desse contexto histórico, um fator inédito de auto-estima para crianças e adolescentes afrodescendentes de todo o país, quebrando paradigmas e estereótipos sobre o negro brasileiro. No entanto, após essa telenovela, Taís Araujo, até 2008, ano em que este artigo foi escrito, não voltaria a ser convidada para o primeiro posto, no papel de heroína ou mocinha, em nenhuma das telenovelas da Rede em que trabalha, apesar do seu notório sucesso e fama (ARAÚJO, 2008; 981).

De acordo com Araújo (2008), nenhuma novela brasileira procurou defender a mestiçagem brasileira, na maioria das vezes, os papéis atribuídos a este grupo, restringiam-se ao de serviçais intermediários. O mulato sempre foi o capitão do mato, feitor, delegado ou pequeno comerciante nas novelas escravocratas. A trajetória era 23


sempre de humilhação e personagens que queriam subir na vida, fazendo a representação do povão. Os atores marcadamente mestiços, independentemente da fusão racial a que pertencem, se trazem em seus corpos e em suas faces uma maior quantidade de traços não-brancos, são sempre vítimas de estereótipos negativos. Como exemplo, Dira Paes, uma atriz de cinema que, por ter traços indígenas acentuados, tem pouco espaço na TV, sendo convidada somente para o papel de uma empregadinha cômica e de pouca inteligência no sitcom A diarista. Ou José Dumont, um ator sempre ausente das telenovelas por ter fortes traços do homem do sertão nordestino. E Nelson Xavier, com uma das carreiras mais profícuas no cinema, em decorrência dos seus traços de negro-mulato, sempre foi escolhido para fazer o papel do pequeno comerciante ressentido, do delegado “frouxo”, do “típico malandro brasileiro”, e somente usou terno e gravata em uma telenovela depois de mais de 20 anos de história na televisão. (ARAÚJO,2008; 981)

Não só nas novelas brasileiras, mas também nas tramas mexicanas, venezuelanas, colombianas, e de vários países da América Latina, existe a exclusão de atores negros e pardos. Quanto mais traços nórdicos um ator apresentar, maiores as chances de ele ser escalado para os papéis principais. Os papéis subalternos ou que represente a feiura, são predominantemente destinados aos negros/pardos. A escolha dos galãs, dos protagonistas, celebra modelos ideais de beleza européia, em que, quanto mais nórdicos os traços físicos, mais alto ficará o ator ou atriz na escolha do elenco. Os mesmos também receberão as melhores notas nos processos de escolha e premiação dos mais bonitos do ano pelas revistas que fazem a crônica cotidiana do mundo das celebridades. No lado contrário, os atores de origem negra e indígena serão escalados para representar os estereótipos da feiúra, da subalternidade e da inferioridade racial e social, de acordo com a intensidade de suas marcas físicas, seu formato de rosto, suas nuanças cromáticas de pele e textura de cabelo, portanto de acordo com o seu grau de mestiçagem. (ARAÚJO, 2008; 984)

Os atores afrodescendentes e indiodescendentes são obrigados a representar a humilhação social que sofrem os mestiços em uma sociedade norteada por ideologias de branqueamento e onde os traços negros indicam uma casta inferior.

5. Construindo um vídeo-documentário

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Segundo Melo (2002), o gênero documentário pode ser facilmente reconhecido por quem o assiste, por ter características diferentes do cinema e da reportagem. Independentemente do tema tratado (violência, ecologia, história, arte, cultura, biografia, etc.), somos capazes de identificar e diferenciar um documentário de outros tipos de produção audiovisual (filmes de ficção e reportagens de TV, por exemplo). É bem verdade que no momento da fruição, o espectador pode cometer equívocos de interpretação. (MELO,2002; p.24)

Conforme Lucena (2012), o ato de documentar com uma câmera foi a primeira atitude cinematográfica. A intenção nos primórdios do cinema, no século XIX, era registrar o cotidiano. Os irmãos Lumière gravaram cenas da saída dos trabalhadores da fábrica da família, o filme ganhou o nome de “A saída da fábrica”. Nessa época, segundo o autor, não usavam o título de documentário, esse iria surgir posteriormente. Lucena (2012) relata que nos anos 20, quando Robert Flaherty, em sua terceira viagem para o Canadá, se encanta por uma comunidade esquimó e com uma câmera registra seus costumes e dia a dia. E é considerado o primeiro filme não-ficção, o Nanook, o esquimó (1922). Mas é em 1926, numa crítica jornalística que o nome documentário é usado pelo John Grierson, que descreve Moana (1926), obra de Flaherty como um documentário, por registrar cenas do cotidiano. Segundo o autor (2012, p.11), Flaherty redefiniu a visão de filmes, colocando documentário como outra categoria do cinema. “Documentário passa a ser considerado como produção audiovisual que registra fatos, personagens, situações que tenham como suporte o mundo real”. Para Lucena o filme ficcional trabalha com cenas pré-determinadas, com personagens fictícios interpretados por atores, em maioria com objetivos de entreter o público. O documentário caminha de forma diferente, com personagens da vida real, com objetivo de informar, sem se preocupar com o entretenimento. Lucena afirma que “o documentário fala de forma direta, nos faz prestar atenção, trata-se quase sempre do mundo real, nos obriga tomar posições” (2012, p. 13). Em sua visão caracteriza:

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O documentário, diferente da ficção, é a edição (ou não) de um conteúdo audiovisual captado por dispositivos variados ou distintos (câmera, filmadora, celular), que reflete perspectiva pessoal do realizador- ou seja, nem tudo é verdade num documentário-, envolvendo informações colhidas no mundo histórico, ambientações quase sempre realistas e personagens quase sempre autodeterminantes (ou falam de si ou desse mundo) (LUCENA, 2012; p.15)

Para alinhar as ideias e executá-las, Lucena apresenta algumas instruções de como fazer um documentário. O autor inicia dizendo que para descobrirmos o tema e o que vamos falar em um filme não-ficcional, primeiro devemos olhar ao nosso redor, bairro, região, cidade, nesses ambientes existem vários temas do cotidiano a serem documentados. “As ideias nascem das observações do nosso entorno, do acompanhamento de noticiários da TV, da leitura de jornais, que mostram pequenas histórias e personagens que podem ser trabalhados em vídeo”. (Lucena, 2012, p. 25) Lucena diz que antes de concretizar uma ideia, é preciso responder algumas questões usadas pelos alunos de jornalismo ao fazer uma reportagem. “O que quero mostrar? Como eu quero mostrar isso? Por que eu quero mostrar isso? Quem é meu personagem? O que ele vai fazer? Como ele vai agir?” (Lucena, 2012, p. 25). Segundo o autor, o segredo é definir melhor e cada vez mais dar detalhes do assunto, para que as intenções e a abordagem fiquem claras. O roteiro do documentário “Mulheres de raça” foi escrito com cenas de ficção, baseados em contextos reais verificados na pesquisa, intercalando os temas das entrevistas, para que as representações fizessem uma abertura do tema que as entrevistadas fossem tratar. Essa característica escolhida de volta ao passado, para tratar do presente é definido por Chion (1989, p. 2013), como flash-back-trauma, “corresponde a uma lembrança reprimida em geral de um momento traumático que aflora cada vez mais precisamente na consciência de um dos heróis”. No roteiro, criamos uma personagem que encenou situações do cotidiano de algumas fases da vida da mulher negra, como assédio e rejeição. O “Mulheres de raça” trabalha com algumas cenas em que a personagem vê o mundo ao redor, como se estivesse contando a própria história. Uma dessas cenas é narrada, essa voz é caracterizada por Nichols, como a Voz de Deus, que define que a voz é ouvida, porém, nunca vista. Esse gênero se enquadra segundo o autor, no modo expositivo. “Expositivo se dirigisse diretamente, com legendas ou vozes que propõe uma 26


perspectiva, expõe um argumento ou recontam história” (2005, p. 142). Porém, não definimos o nosso documentário em apenas um gênero, por se tratar de um tema político, que é a resistência da mulher negra numa sociedade racista. Por se tratar de algo presente na vida dessas mulheres, nos embasamos também na definição de Nichols (2005, p. 169) para enquadrar essas características, o modo reflexivo, que é a definição de documentário que dão acesso ao mundo realismo físico, psicológico e emocional através de seus temas. Segundo o Bill Nichols, “documentários politicamente reflexivos provocam nossa consciência da organização social e dos pressupostos que a sustentam”. O documentário deve possuir o mesmo cuidado estético que os filmes: Escolha de planos, enquadramento, iluminação, montagem, separação das fases de préprodução, produção e pós-produção. Uma caraterística que difere do cinema é o seu comprometimento com a realidade do assunto documentado. (Melo, 2002)

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4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Constatamos após teoria e prática do trabalho que a mulher negra passa por problemáticas afetivas em todas as fases da vida e independente de sua orientação sexual e nível econômico. A solidão não ocorre apenas em relacionamentos amorosos, mas também nas amizades. A menina negra já sofre com isso durante a infância, na fase escolar, quando por exemplo, rejeitam sua companhia nas brincadeiras e nas atividades de sala. E conforme a mulher negra vai amadurecendo, a rejeição perpassa sua vida durante as paqueras, o que as tornam a última opção para um relacionamento firme e exposição nos espaços sociais, mas a primeira opção para uma “aventura” sexual. Das onze mulheres do vídeo, apenas três estão dentro de um relacionamento sério e a violência e rejeição na fase escolar, foi um fato unânime, que ocorreu na vida de todas as entrevistas. A visão passada pela mídia brasileira sobre a mulher negra, reforça estereótipos sexuais, como por exemplo, a imagem de que elas são sempre disponíveis, de que abordagem pode ser direta e sem rodeios. Não só a representação midiática, mas também a literatura mostra isso e em importantes obras, coloca a mulher negra como um ser altamente sexualizado e sem pudor. Essa percepção foi sentida por todas as fontes do vídeo e elas veem essa questão no cotidiano, por meio das cantadas e abordagens carregadas de significados sexuais e pelo desdém em assumi-las para relacionamentos sérios. O corpo também foi colocado em pauta, já que o padrão de beleza aceito socialmente é branco e muitas mulheres negras sentem vergonha ou receio do seu corpo, por causa da cor. Apenas duas delas se manifestaram a respeito 28


Diante de todas essas problemáticas, constatamos que a melhor forma de combater ou amenizar o racismo, é debater, colocar o assunto em pauta e conscientizar as mulheres negras, sobre a discriminação velada que existe em torno de seus corpos, sexualidade e afetividades. Com a visita que fizemos à Cidade de Deus, percebemos o quanto esse assunto não é discutido, principalmente para quem não tem acesso à informação. O desconhecimento sobre as questões relativas à solidão da mulher negra, faz com que elas se sujeitem à relacionamentos abusivos e consequentemente, não tenham percepção do quão empoderadas podem ser. A experiência acadêmica e o acesso à espaços de militância negra, nos proporcionou essa consciência. E agora, concluindo o curso de Jornalismo e esse trabalho, pretendemos levá-lo adiante, exibindo-o e levantando o debate, na tentativa de conscientizar e empoderar.

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5. REFERÊNCIAS

ALMEIDA, LADY CHRISTINA. As relações e a representação da mulher negra in “Trilhando seu próprio caminho: “Trajetórias e protagonismo de intelectuais/ativistas negras, a experiência das organizações Geledés/SP e Criola/RJ”. 2010, p 20 – 39. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais). Disponível em https://www.maxwell.vrac.puc-rio.br/17333/17333_3.PDF. Acesso em 17. Abr. 2017 ALMEIDA, ROBERTA SANTOS E FERREIRA. Os feminismos de Marcela Temer e Benedita Silva, in XII Colóquio Nacional Representações de Gênero e de Sexualidades. 2016, p 1 – 12. Disponível em http://www.editorarealize.com.br/revistas/conages/trabalhos/TRABALHO_EV053_MD1_ SA4_ID2026_25052016161523.pdf. Acesso em: 17 Abr.2017 ARAÚJO, JOEL ZITO. O negro na dramaturgia, um caso exemplar da decadência do mito de democracia racial brasileira.in Estudos Feministas, vol 16; UFSC. 2009, p 979 – 985. Disponível em https://periodicos.ufsc.br/index.php/ref/article/view/S0104026X2008000300016/9190. Acesso em 11 Abr.2017 BAIRROS, LUIZA. Nossos feminismos revisitados. 1995, p 458 – 463. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/ref/article/view/16462/15034. Acesso em 17 Abr. 2017 BERQUÓ, ELZA. Nupcialidade da população negra in Núcleo de estudos da população negra, Unicamp. 1987, p 08 – 43. Disponível em:http://www.nepo.unicamp.br/publicacoes/scripts/textos_nepo_11.php. Acesso em 18 Abr. 2017 BRAZIL, ERICO VITAL e SCHUMAHER, SCHUMA. Mulheres negras do Brasil. Editora Senac Nacional, 2006 CARNEIRO, SUELI. Mulheres em movimento in Estudos Avançados. 2003, p 117 – 130. Disponível em http://www.revistas.usp.br/eav/article/view/9948. 17 Abr. 2017 CÔRREA. MARIZA. Sobre a invenção da mulata. in Cadernos Pagu 1996, p 35 – 50. Disponível em: 30


https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/cadpagu/article/view/1860/1981. Acesso em 11 Abr.2017 DUARTE, EDUARDO DE ASSIS. Mulheres marcadas: Literatura, gênero e etnicidade. in Revista de Estudos Literários. 2009, p 63 – 77. Disponível em: http://www.uel.br/revistas/uel/index.php/terraroxa/article/view/24983. Acesso em 10 Abr. 2017 EVARISTO, CONCEIÇÃO. Literatura negra: Uma poética de nossa afro-brasilidade in Scripta – Revista do Programa de pós-graduação em Letras do Centro de Estudos Luso-afro-brasileiros da PUC-Minas. 2009, p 17 – 29. Disponível em: http://periodicos.pucminas.br/index.php/scripta/article/view/4365. Acesso em 10 de abril de 2017

GRIJÓ, WESLEY PEREIRA e; SOUSA ADAM HENRIQUE FREIRE. O negro na telenovela brasileira: A atualidade das representações.in Estudos de Comunicação 2013, . 186 – 203. Disponível em: www.ec.ubi.pt/ec/11/pdf/EC11-2012Mai-09.pdf. Acesso em 11 Abr. 2017 LUCENA, LUÍZ CARLOS. Como fazer documentários: Conceito, linguagem e prática de produção. São Paulo:Summus, 2012. NICHOLS, BILL. Introdução ao documentário. Campinas, SP: Papirus, 2005 PACHECO, ANA CLÁUDIA LEMOS. “Branca para casar, mulata para f...., negra para trabalhar”: Escolhas afetivas e significados de solidão entre mulheres negras em Salvador, Bahia. Dissertação (Doutorado em Ciências Sociais), Unicamp, 2008, p 9 – 85. Disponível em: www.revistaforum.com.br/wpcontent/uploads/2015/09/PachecoAnaClaudiaLemos.pdf. Acesso em 25. Mar. 2017 SANTOS, CLÁUDIA SANTIAGO. Escravas do desejo: Estratégias de liberdade e sobrevivência na sociedade escravista. 2015, p 1 – 12. Disponível em: www.snh2015.anpuh.org/resources/.../1427683022_ARQUIVO_artigo-ANPUH.pdf. Acesso em 19 Abr. 2017 SANTOS, FRANCIJANE LIMA E SILVA, MÁRCIA RAMOS. A representação das mulheres negras nas telenovelas brasileira: Um espaço em construção. Disponível em: http://www.anpuhpb.org/anais_xiii_eeph/textos/ST%2016%20%20Francijane%20Lima%20dos%20Santos%20e%20Marcia%20Ramos%20da%20Silv a%20TC.PDF. Acesso em 11 Abr.2017 SOUZA, CLAUDETE ALVES DA SILVA. A solidão da mulher negra: Sua subjetividade e seu preterimento pelo homem negro na cidade de São Paulo. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais), PUC-SP. 2008, p. Disponível em: https://sapientia.pucsp.br/handle/handle/3915. Acesso em 25. Mar 2017 31


WEINBERG, MONICA E MIZUTA, ERIN. Capitais da solidão in Veja. 2008, p 126 – 128. Disponível em: http://www.cps.fgv.br/cps/bd/clippings/hc102.pdf. Acesso em 25. Mar.2017

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ANEXOS

ILUSTRAÇÕES DADOS IBGE

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ANEXO I Ilustrações da capa e contracapa do DVD: Neska Brasil

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ANEXO II Dados: IBGE

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APÊNDICES

Roteiro de Edição Roteiro de Perguntas Entrevistas Prévias Ida à Cidade de Deus Entrevistas na íntegra

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Primeiro Bloco “Ser negra” Cena de fundo (Intertítulo)

Imagem com título do bloco Sonora Narração de Maria Clara:

Menina mostra seus pés e mãos juntas, enfatizando a cor da sua pele. Passa uma mão sobre a outra para observar sua cor. “Ser negra”

Minha mãe falou que meu cabelo se chama crespo, e que ele é assim porque eu sou negra. .

Sonora entrevistadas 4:

Sonora Ana José:

Entrevistadas falando sobre seu reconhecimento como mulher negra. 3:10 – 3:29 Quando criança a gente passa por tudo isso... ... parece que o alvo é nosso cabelo.

Sonora Maria José Gomes:

0:14 – 0:21 Desde criança sempre me vi negrinha...nunca fui a bonitinha

Sonora Luana Caroline:

1:06 – 1:21 Eu tinha o cabelo liso...deveria ter sido

Sonora Verhuska:

Sonora Camila Ribeiro:

0:30 –00:41 A negritude sempre foi algo do meu dia a dia... ...É uma família toda negra.

08:27- 08:54 Sofri vários assédios por professores, por alunos... ...me tiraram o que eu tinha ganhado.

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Sonora Ana Fernandes:

6:46 – 7:04 Um menino me apelidou ele era bem branco... ...ela nunca mudou. 7:19 – 7:46 Mas o fato dele direcionar ... ...como sociedade classifica.

Sonora Lurdinha escola:

8:57 – 9:21 A escola, em termos de relações .... ...campo difícil de se abrir 10:59 – 12:12 Qual o espaço do diálogo? ... ...perpetuados pela escola

Segundo Bloco Tchau, química! Descrição da cena de intertítulo:

Sonora Rebeca:

Sonora Luana:

Sonora Renata:

Sonora Verhuska:

Em um salão a personagem está raspando a cabeça para retirar todos os cabelos lisos e deixar crescer novos fios crespos. 0:56 – 1:26 Eu fazia progressiva nele... não precisava mais alisar 2:54 – 3:07 Parecia que eu via outra pessoa...eu particularmente nunca gostei.

1:26 – 1:45 Até depois mesmo que está cacheado...não precisa alisar 1:04 – 1:21 Então, meu cabelo eu entrei... tive o surto cortei 41


Sonora Camila:

10:51 – 11:13 Ai, minha mãe mexe com tranças... estético e indentitário ao mesmo tempo né

Terceiro bloco Mídia Cena de fundo (Intertítulo)

A adolescente está em casa, lendo revistas, enojada da mesmice dos tabloides de ver somente mulheres brancas nas páginas.

Imagem com título do bloco

“Mídia”

Sonora entrevistadas mídia

Sonora Verhuska:

13:36 – 14:20 Eu vejo que melhorou muito... ...quando a novela era de escravidão Vídeo 2553

Sonora Lucimar:

7:10 – 7:42 Hoje a gente consegue apontar três...se concentra em determinadas áreas.

Sonora Ana José:

10:10 – 11:53 Quando finalizamos a marcha de 2015 ...a figura da mulher negra

Quarto bloco Rejeição

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Cena de fundo (Intertítulo)

A moça negra coloca sua mão sobre a mão de um rapaz e ele se esquiva e sai de cena

Imagem com título do bloco

“Rejeição”

Sonora Camila:

2:41 – 2:48 Minhas experiências em questão de relacionamento são bem marcados pela questão racial... 3:12 – 3:44 Muitas vezes sofri por não estar dentro de um padrão..até com meninas negras eu sofri algumas coisas

Sonora Maria de Lourdes:

4:39 -5:10 Quando as pessoas se interessava... nem cumprimentar

Sonora Renata:

17:19 – 17:30 O fato é esse, se a menina...não assume, é bem raro 17:42 – 18:14 De umas três que eu me relacionei... ficava muito puta.

Sonora Rebeca:

5:56 – 6:40 Desde quando eu comecei...porque eu era negra

Sonora Yasmim:

3:55 – 4:09 No meu círculo de amigos ... minhas amigas no caso

Sonora Ana Fernandes:

12:20 – 12:36 Eu me relacionei com ele ... nem apresentar pra família dele. 12:56-13:02 43


De uma certa forma...pra satisfazer o prazer dele

Sonora Rebeca:

7:26 – 7:59 Teve um dia que eu voltei .. pra eu conseguir entrar

Sonora Ana José:

15:02 – 15:16 Quando ele firmou com essa... e a outra ia pro cartório

Sonora Ana Fernandes:

01:29- 01:56 A mulher negra ela fica em desvantagem... uma pessoa que não está só com você.

Sonora Zezé:

12:35 – 12:54 Em relação a ele o que eu sentia... ....então, ele evitava ter relação comigo. Vídeo 2561

Sonora Lurdinha:

7:01 – 7:34 Vendo as experiências das minha irmãs... não quer ter filha preta, não transa com preta

Sonora Lucimar:

12:49 – 13:19 A solidão não é algo valorizado... isso é bastante comum

Sonora Lurdinha:

10:31 – 11:03 A mulher negra num conjunto todo... só querem cama

Sonora Ana José

10:30 – 10:44 Hora de levar para o cartório.,apresentar para a família ... leva para o cartório

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Terceiro Bloco Hipersexualização

Ela passando na rua, um homem a vê passando, admirado e machista, inicia palmas e a acompanha com olhar, e a diz: Ê morena... você lá em casa.

Cena de fundo (Intertítulo)

Imagem com título do bloco

“Hipersexualização”

Sonora entrevistadas

Sonora Verhuska:

Sonora Luana:

Sonora Rebeca:

Sonora Renata:

Sonora Verhuska:

02:39-02:59 Eles sempre chegavam de uma forma... você é a mucama você está ali pra servir. 04:22-04:41 Bem clichês assim... que é fora da casinha.

02:56-03:14 Por você ser negra as pessoas já falam... e na gente é mais direto.

01:49-01:58 O cara chegou e me deu um tapa... todo mundo no ônibus ficou assim, parado. 14:16-14:34 Uma festa que eu fui, um amigo... com as outras meninas que estavam na roda ele não fazia isso. Poesia Gritaram-me negra 15:11-15:25 Eu acredito que é por conta... vamos investir mais pra ver se ela cede

11:22-11:27 Tem homens que tem horror...eles não se aproximam 45


11:35-11:41 Ai tem os mascarados... mas te prensam na porta do banheiro

Sonora Lucimar:

01:26-01:43 Os caras tem mais tranquilidade... ela meio safada assim, ela gosta.

Sonora Camila:

15:17-15:26 Geralmente as minas brancas entendem... eu lá, vou ficar e já era. 16:36-16:57 Já participei de rodas... biologizando uma questão que não é biológica é social.

Sonora Luana:

05:26-05:29 Eu tenho muita vergonha do meu corpo, muita mesmo. 05:42-06:09 Se for ficar com alguém, escuro... uma mulher branca sem roupa é mais bonita.

Sonora Yasmin:

Sonora Maria de Lourdes:

11:34-11:50 A gente já vem com essa vergonha... tinha que ser rosa pelos amor de deus. 03:20-03:28 Quanto mais claro você é... e menos exclusão de espaço você vai ter. 03:33-03:41 Meu corpo também, eu já desejei ter o corpo menos... é o estereótipo daquela negra hipersexualizada

10:52-11:19 O corpo da mulher branca tem que casar... perguntando porque não eu.

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Créditos

Produção Stefanny Veiga Vivian Campos Orientação Marcelo Câncio Roteiro e Edição Stefanny Veiga Vivian Campos Imagens Stefanny Veiga Vivian Campos Arte Gráfica Cayo Cruz Arte da Capa Neska Brasil Arte Capa gráfica Gabriela Oliveira Trilha Sonora Beat Rap Boom Bap Misunderstood Música triste para fundo de vídeo

Sonora Camila:

Poesia “Gritaram-me negra” de Victoria Santa Cruz

Agradecimentos

Ana Fernandes Ana José Alves Camila Ribeiro Crislaine Brito Cayo Cruz Coletivo de Mulheres Negras de Mato Grosso do Sul Harrysson Alberto Isadora Veiga Idália F.Veiga 47


Jorge Joaquim Jorge Lucas Luana Caroline Lucimar Dias Marcelo Câncio Maria Antônia Campos Maria Clara de Oliveira Maria José Gomes Maria de Lourdes Silva Moniky Vello Neska Brasil Otávio Augusto Renata Cristinne Rebeca Pereira Romilda Pizani Rudy Nolasco Valci Veiga Verhuska Pereira Walenthyna Vello Wesley Campos Yasmin Alexandra Yasmin Veiga

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6.APÊNDICES

Roteiro de perguntas para a pré-entrevista Perfil das entrevistadas: Nome completo: Idade: Data de nascimento: Profissão Nível de escolaridade: Orientação sexual: Classe social: Visão religiosa: Estado civil: Filhos: Questionário 1. Você se considera uma mulher negra? A partir de quando passou a se reconhecer e a se afirmar assim? 2. Já sofreu discriminação racial? 3. Qual a raça dos pais ou responsáveis? 4. Quando começou a se relacionar afetivamente?

5. Durante a infância/adolescência começam as primeiras paqueras. Nesse período, como era para você? Sentia alguma dificuldade ou rejeição nesse aspecto? 6. Caso tenha sentido rejeição, atribuía isso a sua cor? 7. Como você lidava? 49


8. Ao longo da sua vida e hoje, como você percebe as investidas? Qual o tipo de abordagem? 9. Convive com amigas brancas? Se sim, percebeu alguma vez diferenças nessas abordagens? 10. Como foi o seu primeiro relacionamento afetivo? 11. Quantos relacionamentos sérios teve na vida? Como foram? 12. Como era sua relação com a família dos seus parceiros (as)? 13. Já foi casada ou esteve em união estável? Tem vontade de se casar? 14. Como você lida com decepções, assédio ou rejeição hoje? Como é sua postura hoje para relacionamento? 15. Já sofreu assédio sexual? 16. Já viveu uma relação afetiva em que se sentiu “usada” pelo parceiro? 17. Diante dessas problemáticas, quais os critérios que você utiliza na escolha de um parceiro para um relacionamento sexual? Você precisa ter intimidade para se relacionar com uma pessoa? Ou vive sua sexualidade independente disso? 18. Diante do padrão branco – que é mais aceito – qual a relação que você tem com seu corpo? Você se aceita? Já desejou que algumas partes do seu corpo fossem mais claras? 19. A mídia idealiza muito o corpo da mulher, como você se vê representada? 20. Sua classe social/situação financeira influencia de alguma forma as ocorrências de discriminação? 21. Se considera feminista?

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Relatório das entrevistas prévias

Entrevista prévia com Yasmim Yasmim Alexandra Camargo de Andrade 19 anos Data de Nascimento: 06/07/1997 Naturalidade: Sorocaba (SP) Mora em: Campo Grande (MS) Profissão: Estudante de artes visuais Nível de escolaridade: Cursando nível superior Orientação sexual: Heterossexual Classe social: Classe média Visão religiosa: Evangélica Estado civil: Solteira Filhos: 0 Como contatamos? Conhecemos Yasmim em um evento do dia da Consciência Negra, ocorrido em 2016 e organizado pelo Movimento Crespos e Cachos. Ela nos falou que estudava na UFMS também e continuamos mantendo contato. Esse ano, comentamos sobre o nosso trabalho e convidamos ela para participar. Reforçamos o convite na penúltima semana de maio e no dia 25 de maio ela confirmou que participaria e após a sua aula, já estaria disponível para a pré-entrevista. Abaixo, o relato da fonte.

Yasmim sempre se considerou negra, mas relata que teve dificuldades para aceitar sua cor e cabelo e por isso, o alisava. De pai e mãe negros, o pai não a assumiu 51


como filha, foi criada pela mãe até os dois anos de idade, mas ficava com a babá enquanto trabalhava. Até que um dia, a mãe a deixou na casa da babá e não a buscou. Com quatro anos de idade, voltou a morar com a mãe. Terceira, de quatro filhos, passou a morar com a tia – irmã de sua mãe – e o tio. No período em que morou com a mãe e nas ocasiões em que a visitava, presenciou relacionamentos afetivos que sua mãe possuía. Yasmim afirma que analisando hoje, considera a maior parte das relações da mãe abusivas, pois as tarefas domésticas não eram divididas e sua mãe não tinha “poder de escolha”, expressão que ela defina como aceitação e inibição da voz feminina. A jovem ainda relata uma cena de violência que presenciou quando era criança, quando um dos parceiros da mãe – pai de sua irmã mais nova – a amarrou em uma árvore e a agrediu fisicamente, por ela ter saído com as amigas para beber. Yasmim, ainda criança, ficou em choque com a situação, e na tentativa de defender a mãe, jogou uma pedra na cabeça do agressor e pediu socorro ao seu avô. Para Yasmim, sua mãe sempre representou uma figura de fortaleza e segurança e diz que naquele momento, essa imagem se desmoronou para ela. Sua mãe, pouco tempo depois se separou do companheiro. Faleceu em 2011, mas até o final da vida, teve outro companheiro, que a tratava bem e Yasmim considerava que nesse último relacionamento da mãe, ela se sentira realizada. Mas ao longo da vida, sua mãe vivenciou diversos relacionamentos abusivos e foi traída e trocada, sempre por mulheres brancas. Yasmim conta que começou a se aceitar como negra a partir de 2013, ainda no ensino médio e atribui seu processo de empoderamento aos seguintes fatores: Influência do tio, que sempre afirmava que apesar dos preconceitos que a sobrinha sofreria na vida, ela teria que saber lidar e se aceitar da forma como ela era, aconselhando inclusive a parar de alisar o cabelo; sua participação na Virada Cultural em São Paulo, com artistas de hip-hop como Emicida, Rael e Mano Brow que levam o discurso de combate ao racismo para seus públicos; o público presente nesse evento – negros e negras de cabelo black power, cacheado – e que assumiam o estilo que possuíam; e uma palestra que Djamila Ribeiro - feminista e mestre em filosofia pela Universidade Federal de São Paulo - proferiu na faculdade de direito de Sorocaba, falando sobre feminismo, feminismo negro, racismo, solidão da mulher negra e empoderamento. 52


Ela já foi discriminada e relatou um episódio, que ocorreu em Campo Grande. Num ônibus coletivo que estava cheio, encostou em uma moça e essa fez um gesto como se estivesse se limpando, por ter tido contato com Yasmim e em seguida foi para a outra ponta de ônibus. Yasmim começou a se relacionar afetivamente em 2017, nunca namorou sério, mas relata que “ficou” com um rapaz durante seis meses e desataram essa relação, porque ele estava em dúvida quanto à própria definição de orientação sexual. Pela informalidade da relação, Yasmim não chegou a conhecer os pais do parceiro, mas o relacionamento era de conhecimento público e dos amigos de ambos. A jovem não tem vontade de se casar, mas não considera que é um fato impossível. Na vida escolar, ela sempre foi uma das únicas meninas negras na sala. Como suas amizades eram sempre, com meninas brancas, Yasmim fala que nesse período havia rejeição dos meninos em relação à paquera. As atenções eram voltadas para as meninas brancas, o que deixava ela em dúvida se essa rejeição que ela vivenciava era por motivos raciais ou por não ser uma menina legal. Ela afirma, que de certa forma, isso a entristecia, mas que se conformava com esse fato. Na vida universitário, seu leque de amigos se diversificou e atualmente Yasmim tem amigos tanto brancos quanto negros. Ela comenta que as investidas e cantadas que recebe do sexo oposto, geralmente, são de cunho sexual, como “e aí gatinha” “oi morena linda, vamos ali”, mas que com suas amigas brancas, ela percebe uma abordagem diferente, em que os homens se preocupam em conversar e conhece-las, numa investida mais amigável e respeitosa. Diante desse contexto, Yasmim revela que sua receptiva e critérios para um relacionamento com o sexo oposto são mais seletivas. Ela procura ter intimidade, conhecer sobre a pessoa com que está lidando, para então vivenciar uma relação. Hoje ela tenta lidar com decepções amorosas de forma flexível, mesmo que a entristeça, tenta não se abalar. Quanto ao assédio, ela não fica quieta, quando a assediam na rua ou em espaços públicos, Yasmim responde e rebate o assediador. Com o padrão branco eurocêntrico e imposto pela mídia, Yasmim afirma que já sentiu vontade de ter a pele mais clara e o corpo com formas diferentes, pois para a mídia, ela é representada como a “mulata exportação”, que tem formas curvilíneas e 53


bunda grande Também comenta que muitos homens a assediam, por causa do seu corpo. Hoje, ela tem consciência sobre essa imposição e se aceita mais da forma como é, mas ainda está em processo de desconstrução. Ela também se vê pouco representada na mídia e de forma estereotipada, comenta sobre as atrizes negras que sempre interpretam papéis de escravas, empregadas ou de mulheres histéricas. Por ser de classe social média, perguntamos se esse fato ameniza a discriminação e ela disse que não, pois para ela, o fato de ter dinheiro ou não, jamais mudará sua cor de pele, cabelos e traços físicos negros e consequentemente, será discriminada na sociedade. Yasmim se considera feminista e começou a ter contato e consciência com as ideias do feminismo e a vertente do feminismo negro a partir da palestra de Djamila Ribeiro e afirma que cada vez que lê e pesquisa sobre esses assuntos, começa a analisar situações e fatos do cotidiano.

Perguntas Entrevista Yasmim - Se considera uma mulher negra? Como foi sua aceitação como negra? - Como você se vê representada na mídia? - Sua classe social/situação financeira influencia de alguma forma as ocorrências de discriminação? - Você já desejou ter a pele mais clara ou a forma do corpo diferente? - Como eram as paqueras no período escolar? Já se sentiu rejeitada? - Você é muito assediada em lugares públicos? Como lida com essa situação? - Como são cantadas e investidas? Sente que abordagem com você que é negra seja diferente da abordagem com uma mulher branca? (Se ela não falar nessa questão, acrescentar se ela já ouviu algo pejorativo com relação à raça) - Você nos contou que sua mãe passou por diversos relacionamentos abusivos e sofreu rejeição, poderia relatá-los? - Você atribui essas situações que sua mãe passou à cor da pele?

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Rebeca Pereira de Souza da Silva Idade: 17 anos Data: 07/11/1999 Profissão: Estudante Nível de Escolaridade: Ensino Médio completo Orientação sexual: Heterossexual Classe social: Média Visão religiosa: Cristã (evangélica) Estado civil: Solteira Filhos: Zero

Como contatamos: Conhecemos a Rebeca em 2016, por meio de um amigo nosso, Rudy Nolasco, que organiza o concurso Beleza Negra. Nesse ano, ele levou a proposta do concurso para uma escola do bairro Cophavila, onde Rebeca estuda. Fomos acompanhar o evento com Rudy e conhecemos diversas adolescentes negras, coletamos alguns depoimentos e Rebeca tinha uma história forte de discriminação. Mantemos contato durante os meses seguintes e a convidamos Rebeca para participar do documentário

Rebeca uma menina de 17 anos, filha de pai negro e mãe branca, que passou a se considerar negra a partir do momento em que raspou seu cabelo para tirar a progressiva que tinha, para melhorar o aspecto do cabelo quebrado momento esse incentivado pelo primeiro namorado de Rebeca. Após cortar se admirou e pensou, “Por que não usei meu cabelo assim sempre? ”. Quando era criança usava o cabelo natural, mas como era cuidado pela mãe, ela sempre o prendia, por causa de piolhos e pela dificuldade de pentear. O bullying veio na adolescência onde ela teve que lidar com as brincadeiras sobre ela ser gorda, não soltar o cabelo nunca, negra e evangélica. E por ficar triste com essas atitudes dos outros, ela se defendia como podia, mas mesmo assim 55


colegas cortaram seu cabelo e abaixaram sua saia na sala de aula. Não bastando esse episódio no colégio, Rebeca teve seu cabelo cortado no serviço, ela reclamou para o patrão que não fez nada e ela denunciou o local. O pais de Rebeca não lidaram com o empoderamento da menina, eles sempre incentivaram ela a alisar o cabelo, até que sua mãe comprou um produto de alisamento e passou no cabelo dela aos 12 anos. Quando chegou na escola a menina foi elogiada pelos colegas que antes quando ela usava cabelo crespo não a elogiavam. Depois que Rebeca assumiu seu cabelo afro, sua mãe não a critica diretamente, mas faz afirmações que deixam subentendido a negação do novo visual da filha, “Ah que isso me deu um susto! ”. Continua afirmando ser fase, a filha usar o cabelo natural, que quando ela se casar vai querer alisar. Em seu primeiro namoro com 15 anos, teve dificuldades em lidar com a família do namorado, filho de um alemão, o namorado e a menina tiveram que enfrentar a família durante quase 2 anos para lidar com a situação do racismo. O namorado a assumia, mas quando a família a conheceu não foram receptivos, mesmo ela sendo magra e alisando o cabelo, nada diminuiu o preconceito. A irmã do namorado a rejeitou por motivos de que na família só existia brancos. Um paquera antigo que não a assumiu, a intitulava namorada, eles ficavam, mas não recebia convite para conhecer os pais e família do rapaz. Rebeca não considerava o namoro por não conhecer a família do garoto e durante 3 meses ela vivia essa relação. Atualmente namorando um jovem negro, a menina avalia seu namoro como bom, pois os dois sabem pelo o que passam por terem a cor escura. Juntos a 9 meses, o casal já conhece um a família do outro e se adoram, a sogra da menina a ama. Rebeca nota a diferença entre os namoros com brancos e agora com seu atual negro, e ressalta que essa está no tratamento, pois atualmente conhece todos os amigos de seu namorado e de seu antigo namoro não e até fica em dúvida se o antigo namorado não a apresentava por ciúmes ou por ela ser negra. E lembra de uma festa da prima de seu ex em que ela queria ir, mas não foi levada. Durante a época da escola Rebeca tinha um amigo que era apaixonado por ela, mas chegou a dizer que não ficava com ela por ela ser negra e não ser o padrão de beleza. Menino moreno-claro, com traços de negros, que não se aceitava na época, hoje 56


se assume negro e foi atrás da menina pedir desculpa pela atitude do passado, afirmando que como pode ter feito isso com ela e com ele. Com quase maioria das amigas brancas, Rebeca diz que numa festa as amigas levam vantagens por serem brancas, e que a realidade é a que os rapazes sempre chegam primeiro nelas. Sobre as investidas, a menina relembra o clichê do “A cor do pecado” e se diz incomodada, por saber o significado da afirmação. Indo além, sobre as diferenças, a menina lembra que os rapazes chegam nela puxando cabelo, dizendo que se eles derem um tapa nela não fica marca, mas diz que prefere ignorar e esquecer, para não sofrer e cair em uma possível depressão. Com desejos de casar após a faculdade, a menina relembra dois episódios de tentativas de estupro que passou. Após esses assédios sexuais e morais, a menina hoje em dia tem o pé atrás, e se defende e conta que acusou o vizinho de querer algo mais com ela que só tinha 13 anos, como resposta o mesmo disse, “Você é bem espertinha para quem tem 13 anos”. Mesmo xingando e respondendo aos assédios, Rebeca conta que é chamada de “eita jubona” e que já disseram que ela “daria bem na cama” do cara. E diz que hoje não consegue mais ficar quieta, xinga e usa palavrões para se defender. E lembra que uma vez saiu de vestido preto e um homem a mandou ir colocar roupa pois ela estava sem isso por ser negra e estar vestindo preto. Sobre sua sexualidade, a menina afirma que ainda é virgem, mas que aceita seu corpo e não tem problemas com a cor de seu corpo. Ela já desejou ser branca, mas que como é impossível clarear ela se aceitou e que ignora as afirmações de que “preto não é bonito”, porque sabe que não é real. De classe média, Rebeca avalia que sua condição financeira colabora no racismo praticado pelos outros e conta de sua amiga que é negra e de classe alta que não sofre as mesmas coisas que ela. No dia da pré-entrevista, Rebeca levou sua prima e afirma que sempre recebem mais olhares negativos que positivos. E lembrou que no seu atual namoro, uma tia de seu namorado perguntou sobre como seria os cabelos dos filhos do casal.

PERGUNTAS 57


1.

Rebeca, conta como foi o seu processo de aceitação e de se

assumir negra desde o começo? 2.

Você disse que seus pais não falavam sobre racismo e que

incentivavam você a alisar o cabelo. Conta como foi o apoio dos seus pais nesse momento de raspar a cabeça? 3.

Como era o apoio dos seus amigos?

4.

Como foi a sua relação com sua autoestima na época,

aumentou ou diminuiu? 5.

Seu namorado foi uma pessoa importante nesse processo,

mas ao mesmo tempo tinha a família dele que não te aceitava. Conta pra gente como foi esse relacionamento e como a família dele a tratava, como ele a tratava e se ele te escondia? 6.

Como ficou sua autoestima diante a rejeição da família do

7.

Você teve um paquera, um namorado de dois anos e seu atual

rapaz?

namorado.

Conta

pra

gente

as

diferenças

sentidas

desses

relacionamentos? 8.

Você comentou sobre um amigo que se reconheceu negro e

pediu desculpa por ter sido racista contigo. Me conta em detalhes como foi na época e como se sentiu em saber que seu amigo gostava de você mas não te aceitava como negra? 9.

Você disse que suas amigas são brancas e que você nota

diferença em como os meninos tratam você e elas. Conta alguma situação que você passou, momentos que lembra de os meninos te rejeitando e preferindo elas? De detalhes de como elas são tratadas por eles e como você é tratada e como se sentia. 10.

Sobre as cantadas na rua, conta pra gente como são as

cantadas e como você reage a elas. 11. Sua condição financeira ajuda no racismo que você sofre?

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Luana Caroline Nome Completo: Luana Caroline Souza Ferreira Idade: 22 anos Data de Nascimento: 16/07/1994 Profissão: Hostess Nível de escolaridade: Médio Incompleto Orientação sexual: Bissexual (mas não será falado no vídeo) Classe social: Classe média Visão religiosa: Evangélica Estado Civil: Solteira, não namora Filhos: 0

Como contatamos? Luana trabalhava no restaurante recém-inaugurado em Campo Grande, “Naszca”. Stefanny a viu lá, se apresentou e falou sobre a proposta do nosso documentário. Luana aceitou participar e trocamos contato. A pré-entrevista foi feita no Shopping Campo Grande no dia 29 de maio

Luana é natural de Três Lagoas (MS) e se mudou para Campo Grande aos 17 anos. Filha de mãe branca e pai negro, Luana nunca aceitou sua cor e cabelo até se mudar para a capital. Durante a infância e adolescência, foi gorda e alisava o cabelo. Na fase escolar sofria discriminação pela cor e peso e relata que ouvia xingamentos e ofensas dos colegas. Na adolescência, lembra que havia um grupo de meninas que eram as ‘populares’, todas com o padrão branco, loiras e uma delas, Bianca, costumava oprimir as meninas que não tinham o mesmo padrão. Ela estudou no período noturno, numa escola que tinha o ensino EJA. Se interessou por um rapaz bem mais velho que estudava lá e que todas as meninas o 59


achavam lindo. Quando ela revelou para as amigas que iria ‘ficar’ com ele, todas falaram ‘ah, você não vai conseguir ficar com ele, olha para você’. Mas quando ouviram boatos de que a Bianca ‘ficaria’ com o mesmo rapaz, a recepção foi diferente, “uau, a Bianca vai ficar com ele”. O primeiro e único namorado que teve na vida, foi aos 15 anos de idade. Conheceu por meio de um amigo de sua mãe. Elas saíam juntas em sambas e bailes e tinha um homem mais velho que sempre dava em cima dela. Numa dessas saídas, esse homem levou seu primo de 22 anos, o Rúnior e partir daquele momento, Luana e Rúnior ficaram amigos, pouco depois começaram a namorar. Runior era branco assim como toda sua família, mas Luana foi bem aceita nesse meio, a não ser pela mãe do rapaz. Essa morava em Minas Gerais, mas sempre mantinha contato com o filho por telefone e sabia da relação dele com Luana. Sempre que ela ligava para Runior e ele estava na companhia de Luana, a mãe de Runior pedia para passar o telefone e conversar com ela. Segundo Luana, diante do filho, a mãe aceitava e aprovava o relacionamento, mas nas ligações com Luana, sempre dizia a ela “você não é mulher para o meu filho, não quero esse tipo de gente no meu ninho familiar”. O namoro durou em torno de oito meses e Runior terminou com Luana, justificando com “a minha mãe me contou toda a verdade sobre você”. Luana ficou muito triste com a situação, mas até hoje não descobriu que verdade era aquela. Seus pais se separaram ainda na infância e Luana lembra de cenas abusivas e de violência do pai com a mãe e por conta disso, ela afirma que hoje tem um bloqueio emocional com os homens e tem dificuldade de relacionar com eles. A mãe sonha em ver Luana namorando/casando com o Lucas (Um amigo da família, negro). Mas Luana não sente vontade de namorar e se casar, pois não se imagina vivendo com uma pessoa por toda vida e não acredita que seja possível amar apenas uma pessoa durante a vida inteira. Ela ainda afirma que quando começa a se envolver emocionalmente com alguém ou vice-versa, dá logo um jeito de se afastar. Luana se considera uma mulher feminista, por ser uma mulher livre e pensar que pode fazer o que quiser e ser respeitada quando diz não.

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Ela contou que é bissexual e descobriu isso aos 20 anos. Luana e sua mãe são melhores amigas e contam tudo uma para outra, mas a mãe ainda não sabe da bissexualidade, fato que será omitido na entrevista, por respeito ao pedido da fonte. Ao mudar-se para Campo Grande, procurou emprego na área do comércio e trabalhou em um quiosque de aços cirúrgicos no Shopping Campo Grande. Após um período, procurou emprego no restaurante ‘Imacaya’, também localizado no Shopping e frequentado pela nata de Campo Grande. Candidatou-se para a ocupação de cozinheira ou garçonete, por já ter experiência na área. Mas ao entregar seu currículo e conversar com o gerente, ele sugeriu que haveria um posto melhor para ela, o de hostess. Quem trabalha como hostess, faz muito mais que recepcionar, é responsável por aconchegar os clientes, apresentar e fazer uma boa imagem da casa, geralmente as hostess são belas e foi o que o gerente achou de Luana. Ela conta que o restaurante buscava passar uma imagem diferente e por ela ser negra, seria algo positivo e diferente para o estabelecimento, ela chamaria atenção por ser uma bela negra, que faria o atendimento inicial aos clientes. A experiência durou dois anos e ela fala que trabalhar nesse meio, lhe abriu muito os horizontes e melhorou sua autoestima, pois recebia muitos elogios saudáveis e lá ela se sentia reconhecida. Mas ao mesmo tempo sofreu muito assédio de clientes do sexo oposto e comentários racistas. Ela conta que muitos homens já a abordaram com más intenções e que era comum que muitos lhe entregassem notas altas de dinheiro junto com um papel contendo o telefone. E que inclusive homens casados lhe assediavam. Também recebia várias propostas indecentes, em uma ocasião, um homem pediu indicação de um lugar para tomar vinho, ela indicou o “Território do vinho” e ele respondeu: “Te espero lá mais tarde” Ela então explicou “eu dei indicação, não falei que tomaria vinho com você e aqui é meu ambiente de trabalho”, Ele insistiu de forma abusiva e lhe perguntou “Então você não gosta de homem? ” Ela: “A minha orientação sexual não lhe diz respeito”. Ele: “Eu não queria sair com você mesmo, sua neguinha” 61


Ela contou sobre a situação para seu chefe, que foi reclamar com o cliente. Seu chefe ficou ao seu lado e lhe ofereceu apoio jurídico, já que sua esposa é advogada Ouvia coisas como, “o que você vai fazer depois que sair daqui? Vai lá para minha casa” Além do assédio sexual, Luana ouviu milhares de comentários racistas. “Só tem você para atender aqui? Eu queria uma pessoa branca me atendendo”. As mulheres, quando acompanhada dos maridos ou namorados ficavam enciumadas com Luana. E por conta disso, Luana sempre preferiu e também recebeu a recomendação de se dirigir à mulher, quando entrava um casal (a atitude é tomada como uma postura da profissão de hostess, como ela nos explicou). Em um episódio, o filho pequeno de um casal começou a interagir com Luana, ela começou a brincar com a criança, o pai da criança começou a conversar com ela e a mãe da criança, que estava quieta até aquele momento, começou a gritar com Luana “você vai ficar dando em cima do meu marido até que hora?”, e lhe jogou uma taça de vinho. Luana afirma que a maioria das pessoas que frequentavam o Imacaya eram ricas e se comportavam como ‘seres superiores’ aos outros. Com essa experiência profissional, aprendeu muitas normas de etiqueta. Ela também já foi discriminada em uma academia, quando foi se matricular e o dono do estúdio falou que não atendia pessoas da cor negra. Além do restaurante, ela trabalhou na balada sertaneja “Room”, antigo “Bodega bar”. Também com a função de hostess, Luana tinha uma outra dinâmica nesse ambiente, que lhe permitia menos formalidade e o uso de roupas curtas. Na balada em que trabalhava ou nas frequentava, era comum ouvir cantadas de teor sexual e que se referiam a cor, como “nossa, ouvi falar que mulher negra é quente na cama”. Em um episódio, um amigo de um amigo chegou nela e falou, “nunca fiquei com mulher do seu tipo, mas estou disposto a tentar algo com você”. Luana afirma que com as cantadas e olhares abusivos, sentia-se suja. Em uma noite trabalhando na “Room”, um carro com um casal dentro parou em frente ao estabelecimento e chamou Luana. Ela se debruçou na porta do carro para ouvir o que o casal que estava lá dentro, tinha para falar com ela. Eles propuseram, que no final da noite, ela acompanhasse eles para uma relação sexual à três. Naquele momento, 62


ela ficou em choque e se afastou do carro e ficou traumatizada, quando lhe pediam para ela atender algum cliente que parasse o carro na frente do local, pois segundo ela, se sentia uma prostituta fazendo isso. Seu círculo de amizades é composto na maioria por homens, mas das poucas mulheres que tem como amigas, a maioria é branca. Quando morava em Três Lagoas, tinha um grupo de amigas e nas paqueras, ela sempre acabava sozinha. Hoje em Campo Grande, ela sempre é a primeira escolhida pelo sexo oposto, mas sente que as investidas e cantadas são direto ponto, com a intenção sexual sempre explícita. Com as mulheres brancas sente que as investidas não são tão diretas. Ela fala que sente mais atração por homens brancos, embora também tenha se relacionado com homens negros. Acredita que tenha sido racista nessa parte, pois sempre teve o pensamento “não vou me casar com um homem negro, para que meus filhos não nasçam negros” Conta que para lidar com os assédios – a maioria em ambiente de trabalho – tentava manter a etiqueta que o local exigia. Recebeu diversas propostas indecentes em troca de dinheiro, bens materiais e oportunidade, mas nunca aceitou nenhuma e atribui a recusa a seu caráter e princípios. Na “Room, além dela, havia uma outra hostess, Jaqueline que era branca e japonesa. Alguns clientes preferiam ser atendidos pela Jaqueline Luana visita a família com frequência em Três Lagoas, mas ela prefere não se relacionar com ninguém lá, por que já não se interessa por ninguém de lá e se sente em outro nível de vida atualmente. Mas ela conta que alguns rapazes que a rejeitavam no passado, hoje querem se relacionar com ela, mas ela se recusa Luana prefere relacionamentos abertos e não se importa se o homem tiver fetiche pela raça, pelo contrário, se sente com mais autoestima e poder, quando um homem revela gostar mais de mulheres negras, considera que isso seja mais uma ‘paixão pela cor’. Não se sente representada pela mídia, pois para ela os papéis designados às negras, sempre são inferiores e há raros protagonistas, não vê uma representação positiva.

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Por ter tido experiências profissionais em ambientes elitizados, Luana afirma que talvez se não tivesse passado por esses lugares, não teria contato muitas coisas, não teria aberto seus horizontes para vida e comentou que “se sentia pobre quando passava em frente a esses lugares” Na infância desejou ter a pele mais clara, a ponto de falar que queria ter a doença do Michael Jackson para ser branca. Sua mãe ao ouvir isso, bateu nela. Luana conta que sente receio em relação a cor, quando está em uma relação sexual. Pois devido ao imaginário masculino e à indústria pornográfica, o ideal de corpo propagado é branco, com as partes íntimas rosadas. E por esse receio com a cor das partes íntimas escuras, ela sempre teve relações com a luz apagada. Ela também foi discriminada em um relacionamento homossexual. Luana se envolveu com uma mulher, que declarou que estava apaixonada por ela, mas Luana se esquivou por não querer relacionamento sério. No outro dia, a mulher reatou com a ex. Ao se encontrarem com Luana, a ex da mulher falou “não acredito que você ia me trocar por esse lixo de mulher! Você prefere uma pessoa negra do que eu?”

Perguntas Luana

- Quando você começou a se afirmar como mulher negra?

- Como foi sua mudança de ponto de vista em relação a sua aceitação?

- Como você se vê representada na mídia?

- Como eram as paqueras na escola?

-No seu primeiro namoro, a família dele aceitou? Se sentiu discriminada alguma vez por eles?

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- No seu trabalho como hostess, foi discriminada racialmente? Você se sentia assediada pelo sexo oposto nesses ambientes? (Relembrá-la das histórias dos homens que davam em cima dela no Imakaya, das mulheres enciumadas e na Room, quando um carro com um casal a assediou e as cantadas pesadas que ela recebia dos homens)

- Como você lida com esse assédio?

- Como são as investidas que você recebe? Sente que tem diferença das investidas que as mulheres brancas recebem?

- Já desejou ser mais clara ou ter partes do seu corpo mais claras? Sente receio da sua cor em uma relação sexual?

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Ana Fernandes Ana Maria Jorge Fernandes Idade: 24 anos Data de nascimento: 18/08/1992 Escolaridade: Ensino Superior incompleto Orientação sexual: heterossexual Classe social: baixa Religião: Sem religião Filhos: zero

Como contatamos: Um amigo da Stefanny nos indicou e passou seu contato.

Ana começou se achar bonita a partir dos seus 19 anos, quando cortou seu cabelo curto. Antes disso se achava feia, por esse estigma de que todo negro é feio e pobre. O bulliyng na escola era sobre ela ser negra e gorda, os apelidos variavam, mas o que marcou foi quando a chamaram de “macaca”. Essa época passou e somente na faculdade, ela pode se olhar no espelho e gostar do que via e se aceitar. Filha de pai negro e mãe indígena, seus pais não dialogavam sobre racismo, não tratavam sobre como a menina poderia sofrer no decorrer de sua vida e assim diz que seguiu sofrendo sozinha. Ana conta que beijou de selinho aos seus 8 anos de idade, mas que o beijo de língua só veio aos 11 anos. Sobre seus as rejeições durante as paqueras de adolescentes ela descarta ter ficado abalada com o fato de que os meninos não a desejavam, ela defende que, cada um tem um gosto então é normal alguns gostarem dela e outros não. Seu primeiro namoro era um namoro santo, sem beijo na boca e sexo, a jovem conta que a família do namorado a aceitava, nunca passou por situação de racismo da parte deles. O relacionamento durou 5 anos, quando ela tomou atitude de terminar por 66


não se encaixar mais nas regras do namoro que o seu companheiro queria. O próximo relacionamento foi com um homem 10 anos mais velho que ela, que durou apenas 3 meses por incompatibilidade de personalidade. Teve sua primeira experiência sexual com 20 anos, com um rapaz que ficou por 4 anos e meio, por ele não querer namorar, ela terminou com ele. Ela relata que o jovem era popular, então, por Ana não se encaixar no padrão de beleza imposto, ele não a assumia e não quis namorar. Um outro relacionamento que durou 4 meses, era tudo tranquilo até que desconfiou estar grávida de seu companheiro e o avisou, logo o rapaz mudou a postura com ela, mas disse que ia apoia-la, mas logo que saiu os exames negativos a largou. Como não saiam muito em público, Ana diz que o jovem pensava que ela era boa na cama, mas não para mostrar para os outros. Sem ver problemas no fato da mulher negra ser fetichizada, Ana diz que “gosta” do fato dos homens se aproximarem por gostar da cor dela, das formas dela. E que ignora quando os homens vêm com o papo de “sangue quente”, que o homem que se aproximar dela com esse tipo de abordagem, ela nem se interessa e isola. Sem levantar bandeira feminista, ela apoia a ideia de igualdade entre os gêneros. Mas não simpatiza com as novas ideias de relacionamento, como o aberto, diz que esse formato não favorece a mulher negra, por ela ser sempre a segunda opção da pessoa e não a primeira, portanto fica em desvantagem no relacionamento. Por não aceitar sua cor durante a infância e pelos apelidos da fase escolar, Ana confessou que tomava muito banho na tentativa de ficar branca. Seus cabelos eram sempre presos e admirava as mulheres brancas, por acha-las mais bonitas. Para fugir dos assédios vai em baladas LGBT, e diz que nunca sofreu ou passou por um assédio sexual ou abusivo. Afirmou que bota medo nos homens por ser uma mulher forte e determinada. Sobre as cantadas que recebeu relata que as que foram abusivas ela ignorava.

PERGUNTAS

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1.

Conta como foi sua fase de aceitação. Como isso aconteceu?

O que te impulsionou a isso? E como você se sentiu na época? Como as pessoas reagiam a sua atitude de cortar o cabelo curtinho? 2.

Seus pais não conversavam com você sobre o fato de que

você poderia sofrer pela cor da sua pele. Você disse que sofreu sozinha, quais foram os sofrimentos? Como você queria que tivesse sido? E qual a importância de os pais trabalharem essa problemática com seus filhos? 3.

Você passou por uma fase na escola onde as pessoas

zombavam de você pela sua cor e seu peso. Conta como foi esssa época? Como você lidava? Quais eram as frases usadas pelos agressores? Como sua autoestima ficava? 4.

Você ficou 4 anos com o rapaz com quem transou a primeira

vez. Conta como foi esse relacionamento? Onde vocês se viam? Como ele te tratava? Você chegou a conhecer algum amigo dele, família? Por que terminaram? 5.

Um outro relacionamento durou 4 meses, e terminou quando

você suspeitou que estava gravida do rapaz. Como era esse relacionamento? Como era o acordo de vocês? Vocês pretendiam namorar? Vocês saiam em público? Conhecia os amigos dele? 6.

Nesses relacionamentos que você passou, você pretendia

namorar algum desses rapazes? 7.

Você

comentou

que

os

relacionamentos

abertos

desfavorecem as mulheres negras. Nós queríamos que você comentasse sobre o porquê disso. 8.

Você disse que por rejeitar a sua cor você já fez algumas

coisas para ser mais clara. Quais foram a atitudes que você tomou durante sua vida para “amenizar” sua aparência negra ou até clarear? 9.

Você comentou que o corpo negro ele traz uma carga

histórica. Quais são elas?

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Ana José Alves

Nome completo: Ana José Alves Idade: 62 anos Data de Nascimento: 28/11/54 Profissão: Administradora de empresas e especialista em gênero e raça Nível de escolaridade: Superior completo Orientação sexual: Heterossexual Classe social: Classe média C Visão religiosa: Católica praticante Estado civil: divorciada, namorando Filhos: 0 Como contatamos? Em um evento do “Movimento Crespos e Cachos”, que ocorreu em agosto de 2016 na Plataforma Cultural. Na ocasião, Ana faria uma palestra sobre empoderamento da mulher negra. Conversamos sobre a nossa proposta de TCC (que na época seria uma revista) e continuamos mantendo contato

Ana José sempre se considerou e se afirmou como mulher negra e essa consciência se deve a educação de seus pais. Seu pai negro e sua mãe indígena, sempre lhe falaram desde criança que ela é negra e que deveria se aceitar e se autoafirmar como tal. Seu pai dizia “Eu sou negro e vocês são negras e vocês tem que estudar muito, porque eu não quero filha minha limpando chão”. Nunca teve vontade de ter a pele mais clara, mas passou por pressão das tias e parentes que lhe diziam para alisar o cabelo. Durante a juventude, teve um relacionamento de dois anos com um homem que era “garanhão”. Esse homem conheceu outra mulher branca, recatada, virgem e que iria 69


se casar com ela e propôs à Ana, que permanecesse ao seu lado na condição de amante. Ana reagiu de forma bruta, expulsou de sua casa e vida. Ana acredita, que na época por já ser uma mulher independente e morar sozinha, o indivíduo tenha tido certa liberdade em lhe propor isso. Já foi casada durante 16 anos, mas não sofreu discriminação racial nesse relacionamento, apenas formas indiretas de discriminação. Ela percebia atitudes de desdém pela família do marido, como comentários que os irmãos dele faziam em relação à ex-mulher anterior à Ana, que tinha descendência paraguaia, chamando-a de “bugra”. As esposas de seus cunhados, eram brancas ou da pele mais clara. Ela é militante do movimento negro. No ano de 86/87, por meio do José Roberto (ela não especificou quem era José Roberto) quando seu pai trabalhava na Enersul. No local conhecido hoje como Vovó Ziza, era o centro recreativo da Enersul, houve um primeiro encontro do movimento, a convite do José Roberto. Depois as reuniões passaram a acontecer no Sindicato dos Jornalistas. Ana afirma que um debate que o movimento negro levanta, é a ausência nas periferias. Os movimentos são centríneos, como Ana relatou e há a necessidade de ter representantes nesses espaços periféricos, que deem voz às mulheres negras desse local. Ana José também comenta que há uma negação quando se assume a raça. “Se você afirma ser negro, as pessoas lhe dizem, ‘mas você não é negro, você é moreno’. Não se enxerga os traços negros, como cabelo, nariz, boca, apenas a tonalidade da pele Em relação à solidão, ela tem consciência de que a discriminação com as mulheres negras dentro de um relacionamento acontece, assim também como a hiperssexualização. Ela comenta que em um recorte, as mulheres negras, são as que menos se firmam em um relacionamento estável e as que mais são abandonadas na gravidez. Sobre as investidas dos homens, Ana relata que na sua juventude, não existia esse comportamento da paquera, pois existia uma repressão da sociedade e da família. E não havia um olhar de percepção sobre o tratamento dos homens com mulheres brancas ou negras.

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Ela já sofreu assédio no trabalho quando jovem e sentiu olhares e investidas de cunho sexual, seu patrão lhe oferecia carona, dava presentes. Ana atribui essas atitudes ao fetiche que existe sobre o corpo da mulher negra. Ela vê a representatividade da mídia para os negros como um alvo, que o mercado está se apropriando e atingindo em massa nos últimos anos. Ana José cita como exemplo a grande quantidade de produtos disponíveis hoje para cabelo cacheado e crespo e acredita que essa ‘apropriação’ do mercado tenha sido fruto da Marcha das Mulheres Negras em 2015, realizada em Brasília.

Perguntas:

1. Você se considera uma mulher negra? Como sua família a influenciou em sua aceitação? Sentiu-se repreendida ou discriminada por sempre assumir sua raça? 2. Como você conheceu o movimento negro e como surgiu o coletivo de mulheres negras? 3. O movimento negro hoje é bem forte e tem conscientizado muitas mulheres negras. Mas as mulheres negras da periferia não têm acesso a esse meio. Por que? E como podemos fazer o movimento chegar a esses locais? 4. Você contou sobre um relacionamento em que o indivíduo queria submetê-lá à condição de amante. Poderia relatar esse caso? 5. No seu casamento, você percebeu atitudes da família dele que tenham sido discriminatórias, mesmo que de forma indireta? 6. Existe o fetiche sobre o corpo da negra e por esse motivo, as mulheres negras passam por muitas situações de assédio. Você passou por isso? Poderia comentar sobre? 7. Como você se vê representada na mídia? Acha que o mercado tenha se aproveitado do momento de forte empoderamento do negro, para lucrar?

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Renata Cristinne Nome: Renata Cristinne Alves Idade: 20 anos Data de Nascimento: 02/11/1996 Profissão: Operadora de caixa Nível de escolaridade: Médio completo Classe social: Média baixa Orientação sexual: Homossexual Visão religiosa: Evangélica Estado Civil: Solteira, namorando Filhos: 0

Como contatamos? Indicação de uma amiga da Vivian, que nos passou o contato

Renata se assumiu homossexual aos 18 anos, mas antes de descobrir sua orientação, já havia se relacionado com rapazes. Ela trabalha como operadora de caixa em uma rede de cinema e lá conheceu sua atual namorada Adrieli há dois meses atrás. Na escola, ela teve algumas paqueras e chegou a ‘ficar’ com alguns deles, mas percebia essas relações não davam continuidade e que os meninos a trocavam no dia seguinte ou pouco tempo depois e geralmente por meninas brancas ou da pele mais clara. Renata conta que um desses meninos afirmou que gostava dela, mas ele ‘ficou’ com outra menina mais clara. O preterimento com mulheres negras também acontece com homossexuais. Renata conversava com uma menina no aplicativo de relacionamentos Tinder, se conheceram e começaram a se relacionar, mas nunca houve pedido de namoro, apesar da moça falar que tinha interesse em namorar sério com Renata. Ela também não foi 72


apresentada aos pais e amigos, conheceu apenas um amigo dela. Ainda relata que quando ela saía ou chamava os amigos em casa, não a convidava. Certo dia, a menina revelou que não queria mais ficar com Renata por “não a conhecer o suficiente” e que a relação acabaria ali, mas após três semanas, a moça começou a namorar uma outra menina de Rio Verde de Mato Grosso (MS). Hoje Renata sente que se iludiu e que a menina só a ‘enrolava’ e era branca. Renata contou que saiu uma vez com a menina e mais um grupo de amigos dela. Na ocasião, ela não pegou na mão de Renata, não a apresentou para outros amigos que havia encontrado no bar e foi embora sem ela. Sobre as cantadas, Renata afirma que recebe mais cantadas de homens que de mulheres e que geralmente, são investidas mais diretas. Ela trabalha a noite e afirma que tem medo de voltar à noite, pois tem um vizinho que mexe com ela com expressões como “Ô morena”, “ai se eu te pego”. Onde trabalha, tem um colega que nunca a chama pelo nome, é sempre “ô morena” e ela afirma “Todo mundo tem crachá lá, meu nome está escrito. E eu não sou morena, eu sou negra”. Hoje Renata se considera uma mulher negra, mas antes se afirmava como “morena” quando era criança. Mas sua a avó a repreendia por essa afirmação e falava que ela era negra. Renata também alisava o cabelo e hoje ela se arrepende em não ter assumido o cabelo crespo, hoje se sente mais bonita e “mais eu”. No seu trabalho no cinema, o uniforme é composto por uma camiseta, calça e calçado pretos e um colega sempre fala para ela em tom pejorativo, “você veio trabalhar sem roupa e descalça? ”. Há três anos, ela parou de alisar o cabelo. Sua mãe e irmã são negras e alisam o cabelo, no entanto, a atitude de assumir o cabelo não foi aprovada pela mãe, que tenta sempre convencer a alisá-lo novamente. Nos primeiros dias, Renata teve dificuldade em soltar o cabelo, porque chamava a atenção e ela sentia que todos estavam olhando para ela, principalmente na igreja. Ela ficou um tempo andando com o cabelo preso, mas depois foi se empoderando e andando com ele solto na rua.

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Pai e mãe são negros, separados e Renata mora com o pai e madrasta. Ela afirma que seus pais nunca tiveram um diálogo aberto sobre racismo e situações de discriminação que ela enfrentaria na vida. Renata teve um relacionamento “corte”, que é pregado pela religião evangélica, na qual o casal tem um relacionamento de amizade, mas não tem contato físico e sexual até o casamento. Ela se sentia lésbica desde criança, mas só teve certeza e coragem para se assumir quando grande. A mãe dela sabia (por intuição de mãe, de acordo com Renata) e jogava isso na cara de Renata, de uma forma negativa, além do pai e outras pessoas desconfiarem. Quando assumiu a homossexualidade aos 18 anos, o fato teve grande repercussão na igreja. Na época, ela liderava as células de louvor da igreja, contou ao pastor que era lésbica e ele a afastou da liderança do grupo, mas não a impediu de participar. Havia outra menina que se assumiu lésbica na igreja e o pastor até aconselhou que as duas se unissem para “sair dessa vida”. Ela entregou a liderança das células, contou a toda a família a decisão de se assumir. Nesse período, chegou a sofrer diversas repreensões dos frequentadores da igreja, hoje ela não frequenta mais os cultos. Renata confessa que teve medo de qual seria a reação do pai, que na época morava em Dourados e veio morar com ela em Campo Grande. Ele a apoiou e deixou claro que independente de quem ela estivesse namorando, que ela se dedicasse aos estudos. A namorada de Renata, Adrieli estava presente na entrevista e nos contou que a família aceitou Renata, mas que seu irmão havia feito um comentário que não havia agradado. Adrieli enviou uma foto de Renata para o irmão, que reagiu com - Sério? -Sim, sério - Você já está apaixonada por ela? - Sim, por que? - Adrieli, mas ela é negra - Ainda bem que está namorando ela, sou eu 74


Adrieli se chateou e não falou com irmão por três dias. Renata não sabia dessa história, até a ocasião da nossa pré-entrevista, mas não demonstrou ter ficado triste ou brava. As duas meninas ainda enfrentam preconceitos das famílias em relação à orientação sexual e afirmam que eles esperam que elas tenham filhos. Quando Renata contou ao pai que estava namorando, ele ainda a questionou, “quem é ele? ” e ela retrucou “Ele? É ela”, o que deixou o pai chocado. A mesma situação aconteceu com Adrieli quando contou aos pais sobre Renata. Na fase escolar, Renata paquerou alguns meninos e falou que eles sempre a trocavam por alguma menina de pele mais clara e era também muito “zoada” por apelidos. Ela dançava na escola e todos os meninos paravam para vê-lá dançar, mas nunca se interessavam em ter algum tipo de relação ou paquera. Hoje ela superou todas as discriminações raciais que viveu e tenta empoderar as pessoas negras ao seu redor, influenciando-as a soltar o cabelo e se aceitarem. Renata conta que já viveu situações de assédio sexual, inclusive quando está acompanhada da namorada, mas nada que tenha relação com a sua raça. Ela teve vontade de ter a pele mais clara, mas afirma que não sente receio em expor as partes íntimas negras em uma relação sexual, pelo contrário, acha um absurdo, sentir receio disso. Vê pouca representação na mídia, citou a jornalista Maria Júlia Coutinho que atualmente apresenta o Jornal Hoje. Não se considera uma mulher feminista. Ela é de classe média baixa e pensa que independente de classe social, o negro irá sofrer discriminação, mas que é sempre uma surpresa ver um negro ocupando espaços sociais importantes ou cargos altos.

Perguntas:

- Se considera uma mulher negra? Como foi seu processo de empoderamento? E como foi a reação das pessoas? - Como foi se descobrir e se assumir homossexual?

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- Por ser mulher, negra e homossexual, você tem um conjunto três motivos para ser discriminada. Como você lida? Poderia nos contar uma situação marcante de discriminação? - Como eram as paqueras na escola? - Em um relacionamento homossexual, a mulher negra também é preterida/nãoassumida? O que pensa sobre o assunto? - Já passou por uma relação assim? Como se sentiu?

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Maria José Gomes – “Baiana do Acarajé” Nome: Maria José Gomes Duarte Idade: 55 anos Data de Nascimento: 13/04/1962 Profissão: Feirante Nível de escolaridade: Médio completo/Técnico Classe social: Média baixa Orientação sexual: Heterossexual Visão religiosa: Não informado Estado Civil: Solteira, não namora Filhos: 2

Como contatamos? Conhecemos Zezé também em um evento do Movimento Crespos e Cachos, em agosto de 2016. Continuamos mantendo contato e nos reencontramos em uma roda de conversa do Coletivo de Mulheres Negras em junho de 2017. Propomos a entrevista e ela de imediato, topou.

Zezé teve uma infância difícil, foi abusada aos 7 anos de idade por um homem que alugava o salão de seu pai. Ele machucava suas partes íntimas, lhe dava uma bala e pedia para ela não contar. Após se mudar desse local, ela contou a história para sua mãe, mas por repressão e medo de apanhar do pai, ela desfazia a história.

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Frequentou a escola, se formou em técnica em contabilidade. Procurou trabalho na área, mas só conseguiu inicialmente empregos precários. Trabalhou em uma loja de móveis, fazia a parte da contabilidade e nos intervalos, a limpeza dos móveis novos, por meio salário e longas jornadas. Após uma semana, saiu do emprego e conseguiu outro também que a submetia a longa jornada e salário baixo. Zezé queria continuar estudando, mas não tinha condições de ir para fora da cidade. De avós baianos com 11 filhos e sem condições de criar todos, as crianças foram distribuídas a quem tinha condição de criar. O pai de Zezé foi criado por um japonês, mas depois perdeu o vínculo. Ele se encontrou com um irmão de Presidente Prudente (SP), esse irmão convidou Zezé para morar em Prudente e lá trabalhava na feira, ficou um tempo lá e voltou para Campo Grande Namorou e se casou pela primeira vez e daí começou a sofrer os primeiros abusos em relacionamentos. Seu primeiro marido lhe passou uma doença venérea, a crista de galo, que é passado por contato físico. Com receio, Zezé se separou. Seu pai, de certa forma, repreendeu a separação, por ser a primeira filha que iria se separar. Zezé foi morar sozinha. Seu primeiro marido era branco, após 4 anos, ela conheceu outro homem que era negro. Ela havia herdado uma casa do primeiro casamento, mas o segundo marido não quis pagar parcela da casa que não estava no nome dele. Ela já tinha 27 anos e queria engravidar, mas o rapaz se recusava a ser pai Ela teve a ideia de adotar, conheceu uma moça grávida que não teria condições de criar a criança e Zezé se dispôs a adotá-lo. Nasceu um menino negro, mesmo querendo ter uma menina, Zezé o adotou. Na época, Zezé estava trabalhando numa gráfica, tinha casa e carro Zezé relatou que se casou 7 vezes e teve dois filhos, um adotivo e um natural, que nasceu quando ela tinha 43 anos. Ela se casou com um homem cristão fanático da Igreja Universal em 2002 e se mudou para Palmas (TO) com ele. Ele era descendente de alemão, ela conheceu toda a família dele e o descreveu com uma pessoa carinhosa. Em Palmas, eles tinham um negócio próprio e ela trabalhava na parte administrativa. 78


Em uma ocasião, ele saiu durante a tarde e voltou a noite, tomou banho e fez a barba. Ela estranhou a atitude. Ela se deitou no sofá para cochilar e acordou com ele a espancando sem nenhum motivo. Ela acordou 1 da madrugada e apanhou até as 4 horas, tentou correr, gritar, mas sem muitas forças. Ele quebrou a casa inteira e quase a matou, descreveu “ele me pegava pelo cabelo e me jogava até na outra parede, como se eu fosse um objeto”. Na manhã seguinte, toda arrebentada, ela decidiu ir embora. Sem conhecer a cidade e ter parentes por lá ou dinheiro para vir embora, vendeu a maior parte de suas roupas para comprar sua passagem. O pastor da igreja ainda tentou convencê-la a ficar e alegava que era o ‘demônio’ no corpo dele, mas ela não aceitou essa submissão, principalmente porque o espancamento ocorreu quando ela estava dormindo. Ela chegou em Campo Grande no dia 30 de julho de 2002, no último dia da Copa do Mundo de Futebol. Só com as malas e o filho, decidiu começar tudo de novo, relata, “eu tive muitas histórias de recomeço, to lá no zero e recomeço de novo, a Branca de Neve perdeu”. Em 2004, ela conheceu outra pessoa, com quem teve um filho. Ele jogava na sua cara que ela teve muitos maridos e que ela não combinava com ninguém. Esse marido a abusava no sentido sexual, com propostas de filmá-la em ato sexual com vários homens ao mesmo tempo. Ele era branco, não fumava nem bebia e segundo ela “tinha carinha de santo”. Mas além dessas propostas abusivas, ele não queria trabalhar e queria que ela dividisse com ele, o dinheiro que ela ganhava. Ele não podia pegar peso e ela estava amamentando um bebê. Nessa época, ela teve a ideia de começar a vender algo na feira. Inicialmente ele vendia água de coco, tirava a polpa e jogava fora. Zezé começou a comer a polpa do coco, tentou fazer bolo e doce com aquela polpa, mas não dava certo. Começou a fazer frapê, batia com água, mas ficava sem sabor. Tentou incrementar com leite condensado e leite em pó e começou a vender e fez sucesso. No primeiro dia, ela vendeu 400 reais e ele 140 com a água de coco, e a clientela de Zezé ia aumentando cada dia mais, chegando a vender quase dois mil reais em um dia.

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Seu marido queria vender a polpa de coco para ela – polpa que ele jogava fora inicialmente – e depois ele passou a exigir metade do lucro dela, mas ela não aceitava. Nos fins das feiras, ele não a ajudava a desmontar a barraca e guardar as coisas. Ela pensou em mudar o produto, para não depender do coco dele e não ter briga. Zezé usava uma touquinha branca na cabeça e as pessoas viam perguntar se ela era baiana e se vendia acarajé. Em um evento de carnaval, ela foi vestida de baiana e vendeu frapê e a partir disso, se interessou em vender acarajé. Aprendeu fazer o acarajé, tinha dificuldade em acertar o ponto da massa, mas foi aprendendo pouco a pouco e ficou conhecida pelas feiras Conheceu Ana José do Coletivo de Mulheres Negras em uma das feiras e após um ano, ela entrou no coletivo. Zezé relatou outra violência em um dos casamentos. Em um exame preventivo, constatou que ela tinha coliformes fecais, mas ela nunca tinha feito sexo anal e ao questionar seu marido, ele a agredia psicologicamente “é você que não limpa direito”. Além das propostas em filmá-la em ato sexual com outras pessoas ou com objetos. Recusando se submeter e esse tipo de situação, decidiu se separar. Zezé contou as histórias aos irmãos, mas não à mãe dele, que queria que ela se separasse, alegando que “ele casou com você, o que você quer mais? ”. Mesmo assim, ela se separou.

Perguntas 1 – Você se considera uma mulher negra? 2 – Você já sofreu discriminação racial? Quando criança, seus pais a conscientizavam do racismo que poderia vir a sofrer? 3 – Você se casou sete vezes e sofreu todos os tipos de violência, física, sexual, psicológica e econômica, poderia nos relatar algumas histórias - Do marido crente que a espancou - Do marido que não queria te dar um filho - Da exposição às doenças venéreas - Do marido que queria seu lucro com a venda nas feiras 80


- Do marido que queria submeter a fantasias sexuais com objetos e outras pessoas e filmá-la - Do momento de separação, em que você era julgada pela família 4 – Como você era visto pelas famílias. Nesses grupos, alguém a discriminava por sua cor? Já deixou de ser assumida em um casamento ou relacionamento por sua raça? 5 – A negra é sempre hiperssexualizada e você comentou que os homens tendem a achar que a negra não tem pudor no sexo. Poderia comentar isso no vídeo? 6 - Como os homens a abordam? Já levou uma investida mal-intencionada por causa da cor? 7 – O que você aprendeu nos seus casamentos? Como conseguiu superar tantos abusos 8 – Como conheceu o coletivo de mulheres negras?

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14/06/2017 - Ida a cidade de Deus Fomos na tarde do dia 14 de junho à comunidade Dom Antônio Barbosa, uma das ramificações da favela Cidade de Deus. Para chegar até lá, fomos de ônibus até o Terminal Aero Rancho e de lá, adentramos no Ônibus 319 (linha DomAntônio/Lageado). Descemos na rua Eveline Figueiredo Selingardi e seguimos pelas ruas. Perguntamos a dois rapazes, se conheciam uma mulher negra que topasse falar sobre discriminação racial, um deles indicou a mãe, mas ela estava trabalhando. Em seguida, paramos no bar “Último gole”, conversamos com o dono e um cliente que estava presente. Esse cliente, chamado Joaquim, nos apresentou à dona Maria, uma mulher negra, com aparência de 50 a 60 anos e que mora com neta Ingrid. Se considera negra, tem a tonalidade de pele bem escura, tem uma filha que mora a poucas quadras de sua residência e outra filha travesti. Questionada se já havia sido discriminada pela sua raça, ela respondeu que nunca havia sido discriminada e que era uma pessoa muito querido, que todos gostavam dela. Ela nos contou que era viúva há 29 anos e que preferia não ter nenhum relacionamento afetivo. Ela falou que sua filha poderia falar conosco, já que gostava de aparecer diante das câmeras. Fomos até a casa da filha, Mariluci, que morava a algumas quadras da dona Maria, com a filha e a neta. Mariluci é negra, ela demonstrou interesse no tema do nosso trabalho e relatou que nunca sofreu discriminação racial dentro de um relacionamento. Mas relatou que havia sofrido um relacionamento abusivo por 16 anos, no qual era vítima de violência doméstica. Hoje ela é casada com outro homem e se sente respeitada. A filha de Mariluci, que é branca e mãe de um recém-nascido relatou ter sofrido um relacionamento abusivo também. O pai não assumiu a criança, mesmo estando casados e desapareceu. Ele tentou agredi-la, mas ela reagiu de forma violenta em sua defesa. Hoje ela não sabe do seu paradeiro. Insistimos para que Dona Maria falasse sobre sua história e ela apenas contou um caso de uma de suas filhas que não morava com ela, a mãe de Ingrid. Nos contou 82


que quando a mãe de Ingrid engravidou, a família por parte de pai havia falado que não aceitaria a menina por ter “sangue negro”. Conhecemos Letícia, filha da Maria. Ela é travesti, se demonstrou interessada no tema, mas a discriminação que sofre é relacionada mais à sua orientação sexual que à raça. Em busca de mais fontes, fomos às ruas da comunidade. Falamos com duas adolescentes negras com a pele de tom escuro, que se afirmaram como “morenas”. Outra adolescente, vizinha de Dona Maria, não soube se enquadrar em uma classificação racial, apesar de ter a pele escura e afirmou que não possuía experiência relativas à questão da solidão/preterimento/assédio/hiperssexualização. Abordamos dona Tete, que se considerava parda/morena e afirmou não ter sofrido discriminação em relacionamento e nem outros aspectos da vida (social, profissional, etc). Na ocasião, ela estava ocupada e recebendo materiais para construir uma cerca na frente de sua casa e não pode falar muito conosco. Conversamos também com outra mulher, que possuí deficiência física. Ela se considera morena. Na ocasião, estava ocupada lavando roupa e não pôde nos atender por muito tempo. Sua vizinha, de 15 anos, relatou que nunca sofreu nenhum tipo de discriminação. Por último abordamos Emília ela é solteira e tem uma filha deficiente. Quando tentávamos explicar o tema do trabalho, ela desviava do assunto, falava sobre a comunidade, sobre a vida dela, mas não respondia o que perguntávamos. Ela comentou que não procura relacionamento por cuidado com a filha, que é cadeirante e que já recebeu investidas de um homem que mora no Jardim Canguru. Mas sua maior preocupação é com a filha, que é totalmente dependente dela.

Concluímos que existe uma negação da raça entre as mulheres negras da Cidade de Deus, suas classificações são sempre pardas ou morenas. Mas também percebemos o predomínio da matrifocalidade, que são casas chefiadas por mulheres sozinhas e que criam seus filhos e netos. A maioria afirma não ter sofrido nenhum tipo de discriminação e com base nessa visita, elaboramos as seguintes hipóteses:

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- Por ser uma comunidade majoritariamente negra, não há discriminação; - A informação e conscientização do assunto é inacessível a esse local; - A cultura regional nega o reconhecimento aos negros, assim como outras etnias, como a indígena.

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Decupagens das entrevistas gravadas Yamim Alexandra

Nome do vídeo: VIDEO 1 (DSC-2041)

Oi, eu sou Yasmim, tenho 19 anos, faço curso de artes visuais aqui na UFMS. Eu sou natural de Sorocaba e eu vim aqui para Campo Grande para cursar.. só estudar mesmo... Você se considera uma mulher negra? Sim, “aham” E como foi sua aceitação? Cara, minha aceitação foi longa, ela é mais recente. Começou lá em 2014 quando eu fui em uma Virada cultural em São Paulo e tals, eu usava cabelo liso, eu não gostava do meu cabelo, aí eu vi um monte de mulher maravilhosa e a parti disso, eu comecei a repensar e me aceita, acho que foi aí que começou o processo Aceitou seu cabelo? Cortou o cabelo? Como foi? Eu parei de alisar meu cabelo e depois eu cortei, fiz o BC e a partir disso, eu comecei a cuidar e deixar crescer natural, sem alisamento Como se vê representada na mídia? Agora na mídia eu vejo um pouco mais de representação, mas o pouco que eu vejo, é estereotipado, ou você é empregada ou está em um serviço inferior ou você é a negra sensual. Então, tem uma certa representação, mas acho que ela é muito falha ainda.

Sua classe social influencia você ser discriminada ou não como negra? Acho que não, independente de eu ser rica ou não, eu sou negra, ainda vou ter o fenótipo de negra e isso incomoda a sociedade, incomoda as pessoas, as pessoas são preconceituosas, então independente do quanto eu tenha de dinheiro ou da minha posição social, eu ainda vou ser negra e vou ser discriminada 85


Já desejou ter a pele mais clara ou a forma do seu corpo diferente? 3:20 Sim, bastante vezes, porque é aquela coisa, quanto mais claro você é, melhor a sociedade te aceita. E quanto mais retinto, mais preconceito, mais exclusão de espaços, você vai sofrer, então eu desejei pra caramba. E meu corpo também, eu desejei de repente, ter um corpo menos curvilíneo, menos bunda, porque querendo ou não, o meu corpo é o estereótipo daquela negra hiperssexualizada, então eu já desejei ser diferente

Como eram as paqueras no período escolar? Você já se sentiu rejeitada? 4:00 Já, a maior parte do meu círculo de amigos eram brancos e eu era a única negra da escola, então sempre tinham preferência por alguma menina branca. Embora eu gostasse de algum menino, achasse ele bonito, ele sempre preferia a branca, as minhas amigas no caso, que eram todas brancas, então eu via bastante essa questão da rejeição.

Você é muito assediada em lugares públicos? Como você lida com isso? 4:30-4:50 Sim, eu sinto que eu sou sim. Independente da roupa que eu estou, eu recebo buzinada, cantada, um “ô morena”. Antes eu tinha o hábito de fingir que não era comigo, de ficar quieta, mas hoje eu sou um pouco mais crítica pra isso, e dou lição de moral se preciso for, eu repreendo, tipo “não é assim”, mas eu sinto que é bastante o assédio

Como são as cantadas e as investidas que você recebe? 5:20- 29 Eu sinto que na maioria das vezes é por uma questão de segundas intenções, relacionadas ao sexo, eu sinto assim... Você sente diferença na abordagem que tem em uma menina branca e em você que é negra? 5:39 - 52 Uhum, sim, pelas minhas amigas por exemplo, eu sinto que é coisa que já não é intencionada, é a questão de fazer amizade, de repente ficar com a pessoa, é diferente. 86


Mas quando é comigo, tem muito essa coisa relacionado ao sexual, de segundas intenções.

Recebeu cantadas pejorativas relacionadas a cor? 6:16-24 Não...não foi cantada, mas uma vez eu estava passando e ouvi um cara falar “Nossa, olha essa negra, como ela é gostosa”

Você poderia relatar um pouco da história da sua mãe? 6:50 Minha mãe teve bastante relacionamentos e tal, ela casou uma vez e os outros relacionamentos, ela só juntou. A maioria dos maridos dela eram brancas, só alguns eram negros, mas analisando assim, eu sinto que a relação que eles tinham, eram abusivas, porque a minha mãe sempre ficava como a dona de casa só, ela não trabalhava, ela era sustentada, sempre foi assim. Então eu sentia que tinha muito essa questão de ela ser silenciada, sabe? Embora ela tivesse uma personalidade muito forte, uma opinião de se impor, mas ela era muito silenciada. Ela não tinha opinião em muitas das coisas que aconteciam na casa e todas as vezes que ela terminava, ela descobria que era traída. Quando se separava dessas junções que ela fazia, ela era traída e era sempre por mulheres brancas, analisando isso é engraçado, mas sempre foram por mulheres brancas, então ela se sentia as vezes bem rejeitada e ela se fazia uns questionamentos “por que isso? ” 7:50-8:09

Ela demonstrava? Ela nunca demonstrou.. sempre fazia aquela figura da mulher forte

Você acredita que existe mesmo a questão da solidão da mulher negra? 9:08-23 Sim, pra caramba, porque tem caras que tem vergonha de assumir que estão com você, a solidão da mulher negra é uma coisa muito real e até os dados falam isso, 87


elas são as que menos casam, as que menos constituem famílias, então acho que é muito real isso, sem dúvidas

Você começou a se relacionar recentemente, após a adolescência. Contenos como foi, por que tão tarde? Como foi a abordagem do rapaz, sentiu algum preconceito? 10:00 Eu comecei a me relacionar agora, como eu tinha dito, porque quando eu era mais jovem, um menino tentou me beijar a força e isso me bloqueou em todos os sentidos de relacionamentos amorosos, porque eu sempre tinha essa impressão de que qualquer cara que eu me relacionasse, ele ia tentar alguma coisa, me forçar a algo que eu não queria, então eu meio que decidi não ter nenhuma relação. Demorou um pouco para eu começar a refletir e desconstruir que nem todo cara vai ser assim. E esse ano que eu comecei a me relacionar, era um menino branco, foi diferente, não teve nenhuma questão de preconceito, de me rejeitar, inclusive foi super educado, super fofo chegando em mim e tals. A gente fez uma amizade antes e a gente começou a se relacionar, mas foi bem interessante.

Uma das nossas entrevistas falou que transa no escuro por sentir vergonha da cor do mamilo e da vagina. Você sente esse tipo de insegurança? 11:30-12:01 Cara, não.. agora não, mas já tive bastante... eu acho que é meio inconsciente, mas a gente já vem com essa vergonha na gente, tipo “ah, mas é muito diferente de um corpo branco, porque a gente acha que o nosso corpo é colocado como corpo sujo, então a gente tem muito essa neura de “ah, meu mamilo é muito escuro, tinha que ser rosa pelo amor de Deus”, mas acho que hoje, demorou muito tempo, mas hoje eu aceito meu corpo, pra mim é normal, esse é meu corpo, cada um tem o seu

Nome do vídeo: Video 2(DSC-2042)

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Yasmim, dê exemplo de coisas que aconteciam na escola com você e suas amigas, no âmbito das paqueras, amizades, já aconteceu de te rejeitarem pela cor? 0:35 De amizade, teve bastante, tipo, na escola eu sempre era a negra da turma, as poucas amigas que eu tinha eram brancas. E às vezes acontecia de eu ir falar com um grupo de amizades e eles falavam “eu não quero que você fique aqui, porque você é negra”, já aconteceu muito de falarem isso ~barulho alto de buzina~ e eu sair chorando, eu não entendia. ~vídeo interrompido por causa da buzina, Yasmim começou a rir e tira os óculos para a câmera, podemos usar como imagem de apoio

Nome do vídeo:Vídeo 3 (DSC-2043)

Por partes Cores escuras das partes íntimas 0:47 Antes eu tinha essa questão de não aceitação da cor do meu mamilo e tudo mais e eu acho que isso começa a mudar quando você começa a aceitar seu corpo e entender que cada pessoa tem um corpo diferente, porque é uma besteira a gente ficar “cara, meu mamilo é muito escuro”... hoje eu aceito mais, aceito meu corpo, então hoje para mim, não incomoda mais, eu entendo também que cada um tem uma cor, então obviamente vai mudar, não vai ser todo mundo igual. Mas teve uma época que eu queria ser mais clara e isso estava incluído junto, mas hoje não, isso já mudou bastante.

Como foi aceitar seu cabelo? Como ficou a sua autoestima? 2;15 No começo era difícil, até porque minha família ficava “não, alisa esse cabelo”, “vamos fazer uma progressiva”, então minha família não aceitava esse processo que eu queria passar. Meu tio teve um papel importante nisso, na época ele falou “não, vamo deixar crescer, seu cabelo vai ficar grandão”, aí eu fui parando de usar alisante, de fazer progressiva. Era engraçado, porque em relação as pessoas de fora, era basicamente o 89


que acontece hoje, umas vão olhar e vão estranhar, outras olhavam e falavam “nossa, que bonito”, me elogiavam, tinha umas que ficavam assustadas, tipo, “meu, que cabelo é esse? Como assim?”, “meu, essa menina não vai pentear esse cabelo?”, então tinha diversas reações que eu percebia. Mas no começo, eu sentia que eram reações mais negativas, pela minha falta de autoestima, hoje eu não sinto mais isso, hoje eu me sinto uma pessoa com mais autoestima, então esse lado negativo, esse lado negativo não pesa tanto pra mim mais em relação ao meu cabelo, como e uso ele. Hoje já é “gostou, gostou! Não gostou, paciência”

Você falou sobre o corpo negro ser considerado um corpo sujo. Fala um pouco sobre isso 4:00 È sobre a aceitação que você falou sobre a cor do mamilo, da vagina e tudo mais, porque a sociedade coloca o corpo negro como aquele corpo que é sujo. Colocam o corpo branco, o mamilo rosa, não sei o que rosa, como bonito, então é óbvio que você vai querer ter aquilo também, mas você não vai ter aquilo, seu corpo é negro, você passa por essa questão de “e aí?”. Então, o processo de aceitação é importante por isso, porque você entende que cada pessoa vai ter um tipo de corpo, uma cor diferente e que o mamilo rosa que a galera coloca como bonito não é o único existente, porque você não tem só um tipo de cor de pele, então quando você entende e aceita isso, você começa a aceitar o seu tipo de corpo e a cor que ele é em todas as partes 4:30-45

Nome do vídeo: Vídeo 4 - DSC 2044 Seus irmãos negros se aceitam?

Eu e meus irmãos nunca paramos para debater juntos sobre isso, mas meus irmãos estão num caminho de aceitação, porque eu acredito que eles tiveram problemas também. A minha irmã tem muito peito e muita bunda e isso incomoda ela, ela se acha

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gorda e não é gorda, ela só tem muito peito e muita bunda, mas ela vê isso numa proporção bem diferente. Meu irmão se incomoda porque ele é bem magrelo e ele tem um narizão de batata, então os dois mais velhos estão num processo agora de começar essa aceitação, porque eu falo isso muito para eles, não são coisas que eles procuram. Nesse sentido, eu sou mais senso criítico, eu vou e levo a discussão, os dilemas ali pra gente debater. Tanto é que minha irmã mais nova eu vejo isso. Minha irmã tem o cabelo cacheado, só que ela tem um cacho liso, ela não tem o cabelo tão crespo quanto o nosso e ela não gostava, ela queria alisar de tudo quanto é jeito porque na escola ninguém tinha o cabelo igual o dela e ela queria alisar. Daí, a gente teve que trabalhar isso nela e falar “não cara, seu cabelo é bonito”, mostrar foto, mostrar pessoas que tem o cabelo igual o dela, ensinar “olha, você pode cuidar dessa maneira, você pode fazer isso”. Hoje ela ama o cabelo, tanto que hoje ela trabalha como modelo, ela tem 14 anos e hoje ela superou. Quando a galera da agência fala “Kawani, você tem que alisar o cabelo”, ela fica super brava, ela fala “Não, não vou alisar meu cabelo”. Então eu acho que todos eles estão num processo, num caminho para a aceitação

DSC 2045 - Vídeo 5 Como você descobriu o feminismo?

Cara, eu descobri o feminismo, como eu falei na palestra da Djamila Ribeiro, que ela é uma ativista negra e tals, escreve na Carta Capital e tudo mais, quando ela deu uma palestra em Sorocaba. Cara, abriu minha mente, acho que por causa dela, eu me considero feminista, porque gente, eu acho que todo mundo é feminista, porque se você quer uma igualdade entre os sexos e tipo.. uma igualdade em relação a salário, a posição social e a quanto você ganha independente da sua profissão, não tem como não falar, “não sou feminista”. Sâo pontos que você vai analisando e fala “cara, eu sou feminista”, aí quando eu vi, foi interessante, porque todo mundo acha que feminismo é geral, só que não, porque cada mulher vivencia o feminismo de uma maneira diferente, cada uma tem uma vivência, por isso acho também que é necessário essas subdivisões, o feminismo negro, o feminismo trans, porque cada mulher vai ter sua vivência do que é o feminismo 91


e as suas problemáticas dentro disso, então hoje eu me considero feminista muito por causa dela. 3:16 E descobrir o feminismo negro que vai tratar de questões mais pontuais à mulher negra também foi importante na minha formação como pessoa

O que é o termo mulata exportação? 3:40 – 4:10 Então, esse termo eu li justamente num texto da Djamila Ribeiro e eu achei interessantíssimo porque até então eu não conhecia, mas fazia muito sentido porque a mulata exportação seria aquela negra que todos acham bonito, tem aquele corpo curvilíneo, que passa essa coisa sensual, que é reforçado na mídia por exemplo como a Globeleza... então eu me enquadro nesse estereótipo ...

4:38- 53 É o que é colocado como o fetiche, é vendido na mídia internacionalmente, é o que as pessoas veem da negra, essa hiperssexualização que traz

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Rebeca Pereira de Souza Silva Nome do vídeo: entrevista Rebeca (decupado)

Por favor, fale seu nome e profissão 00:30 –

Você pode nos contar como foi o processo para aceitar seu cabelo? 00:55 REBECA: Posso sim. Pra eu aceitar meu cabelo foi uma fase muito difícil da minha vida, por causa que meu cabelo caia muito e eu fazia progressiva e ele foi caindo, caindo e eu decidi cortar na máquina 3, pra tirar tudo o cabelo e ai, foi quando eu cortei na máquina 3, e ai eu percebi que meu cabelo era mais bonito cacheado e eu não precisava mais alisar. E foi ai que eu me aceitei e eu gostei da minha transformação.

E como as pessoas do seu convívio reagiram a mudança? 01:46 REBECA: Ah! Minha mãe falou bem assim... “Ah! Ficou legal” mas aquele legal, tipo, não ficou legal, pra não falar, falou legal. Recebi muitas críticas por que eu cortei o cabelo, mas só que teve uma fase que eu não consegui mais ligar pra isso e comecei a me aceitar como realmente eu sou. E não ligo mais pra opinião das pessoas.

E como foi a reação dos seus amigos mais próximos? 02:18 REBECA: Ah! Meus amigos foram melhores, “Nossa Rebeca! Você cortou seu cabelo”, você vai voltar seu cabelo cacheado, vai sair essa coisa lisa do seu cabelo, que não é o natural. Mas muitos também não gostaram, falaram “Nossa Rebeca! Porque você fez isso com seu cabelo? Ficou que nem homem”. Mas são coisas da vida. 93


Como ficou sua autoestima depois disso? 02:51

REBECA: ah! Ela aumentou, porque antes eu não tinha muito ânimo pra me arrumar. Hoje eu também não tenho muito, assim... só pra sair. Muitas vezes antes eu nem me arrumava pra ir na igreja, ia bem simples, eu não tinha auto estima, mas agora eu tenho auto estima e gosto de me arrumar.

O que te ajudou na sua autoafirmação e no seu empoderamento? 03:47

REBECA: Eu tive incentivo da minha prima. Minha prima pegou eu falou assim: Ah! Prima não liga pra essas pessoas não, você é linda do jeito que você for. Você tem que se aceitar como você é. Ai, eu comecei a me vestir diferente, comecei a sair das normas dos meus pais, e vestir do jeito que eu queria, e ai eu me senti melhor, porque ficar sendo oprimida, “Ah! Você tem que ficar assim, não sei o que..”, “Você não pode vestir isso, nem cortar seu cabelo, nem passar batom”.

Seu namorado te ajudou no seu processo de aceitação? 05:00

REBECA: Meu namorado foi uma pessoa muito boa. Mesmo com todos da família dele criticando, ele sempre tava do meu lado, falando que não importava o jeito do meu cabelo que ele me amava do mesmo jeito, como eu era antes do cabelo liso, pra falar a verdade nunca o meu cabelo foi liso. Foi muito importante pra mim, porque ele era mais um incentivo na minha vida, pra eu continuar com meu cabelo cacheado.

Você teve algum problema com a família do seu namorado em aceita-la? 05:56

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REBECA: É que assim, desde de quando eu comecei a namorar com ele foi bem difícil, porque eles não gostavam de mim, não sei se porque eu era negra ou porque ele nunca tinha namorado, não sei. Mas desde que comecei a namorar com ele, eles não falavam muito comigo. Eu percebi isso porque a maioria da vezes as pessoas não me davam “oi” quando eu estava lá, e tipo, é namorada de alguém da minha família, eu tenho que dar oi. E o padrasto dele era alemão, e ele nunca dizia oi pra mim porque eu era negra, eu fui descobrir isso com três meses de namoro e ai eu fiquei muito indignada com isso. Como assim, você não vai falar oi pra uma pessoa porque ela é de outra cor? Nossa! Nada vê isso. Conforme o tempo foi passando, eu terminei com ele e ele não tinha falado comigo ainda, quase dois anos da minha vida e ele não falou oi pra mim, mas o resto da família dele a maioria começou a falar comigo, outros não gostavam de mim, mas fazer o que.

Lembra de alguma história marcante dessa época que namorava com ele? 07:26 REBECA: Teve um dia que eu voltei de uma formatura e eu perdi meu ônibus, não tinha pra onde ir, e ai eu fui pra casa dele, que era o último ônibus do terminal e eu fui pra lá, ele não estava, tava trabalhando, e ai, só o padrasto dele tava lá e as irmãs dele e ai quando ele viu que era eu, ele não abriu o portão pra mim. Ele não abriu o portão pra mim e eu tive que esperar meu namorado chegar, pra mim conseguir entrar. Tipo, você se lasca com você, não importa o que vai acontecer com você, eu não quero você aqui. Como você se sentia com a rejeição da família dele? 08:21

REBECA: Ah! Eu não gostava de ir lá por causa disso, não me sentia muito bem com essa situação, mas eu ia do mesmo jeito, eu tinha que enfrentar esse problema, se eu gostava dele eu tinha que ir lá, porque é a família dele, mesmo que eles não gostem de mim eu tinha que ir lá. Conforme... Sete meses de namoro, todo mundo começou a virar meu amigo, mas demorou um tempo. Como você lidava com isso? 95


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REBECA: Ah! Assim... eu ficava meio mal, mas meio que eu chegava em casa e... “Foda-se!!”

Quais diferenças você notou nesses três relacionamentos que viveu? 09:22 REBECA: O primeiro que foi esse paquera ai, ele era uma cara legal até, mas só que era ruim ao mesmo tempo, porque a gente começou a ficar, só que ele não queria me assumir pras outras pessoas, não sei porque, né?! Mas só que isso era muito ruim, tipo, a eu gosto de você e quero que todo mundo saiba que a gente está junto e ele não queria isso. Então, eu me afastei dele. Já meu primeiro namorado, ele tava comigo em quase todos os lugares, mas só que eu não conhecia os amigos dele, eu não conhecia quase ninguém da família dele, as pessoas mais importantes eu não conhecia. Mas pra sair pra lugares assim.., sim. Nas redes sociais sim. Mas a vida pessoal, os amigos deles não. O terceiro eu já conheço todos os amigos, toda família, é uma coisa muito boa, mas tem essas diferenças.

Você nos contou sobre um amigo que a discriminou. Poderia relatar agora em vídeo? 11:29 REBECA: O nome dele é Lucas, ele é um amigo da infância, desde o pré, mas na época eu meio que gostava dele, era criança, né?! E ele sabia que eu gostava dele, mas só que ele, tipo, ai... Ele falava assim, que eu era feia porque eu era negra, e com coisa que ele é branco. E a pouco tempo, agora.. deixa eu vê... faz mais o menos uns nove meses e agora que ele ta bem crescido, bem com cabeça -finalmente, ele chegou em mim, pediu desculpas porque por tudo o que ele fez eu passar, que ele também era negro, que el não tinha que ter me desprezado porque eu era negra também e agroa a genta ta tudo de boa, me pediu desculpas, mas...

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REBECA: Não. Ele só me rejeitava por causa da minha cor. Eu falava oi pra ele e ele virava as costas pra mim. Tipo, num campeonato, a gente foi jogar junto, campeonato de ping-pong, e aí, no dia ele não foi porque eu ia ser a dupla dele. ... Onze.

NOME DO VÍDEO: Entrevista rebeca mídia.

Como você se vê representada na mídia? 00:09

REBECA: Eu acho que na mídia nós não somo muito bem representado, porque a maioria do os negros que aparecem na tv são empregados, são de série de escravismo ou são o ladrão. A maioria são coisa que não são a verdade, é o lado ruim que eles veem, eles não querem enxergar o negro presidente, como foi o Luther King, eu acho que não é muito representado.

NOME DO VÍDEO: Entrevista rebeca amigas brancas.

Você nota diferença na abordagem dos meninos com você em relação a suas amigas brancas? 00:49

REBECA: Quando a gente vai numa festa, eu chego junto com elas, a maioria dos caras vão nelas, porque... não sei o porquê, mas as vezes é porque elas estão mais abusadas que eu, mas eu não sei o porquê. Isso sempre acontece, quando tem muito cara assim, já chegam exatamente nelas entendeu? Aí falam oi pra mim e tipo, “Ah! Arranja sua amiga pra mim!”, mas eu não fico abatida com isso, mas acontece.

Você é assediada nas ruas? Poderia nos contar alguma situação que tenha vivido? 01:41

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REBECA: Esses dias no ônibus eu denunciei o cara, não sei se vão encontrar o cara, né?! Sexta-feira passada o cara chegou e me deu um tapa na bunda, me chamou de gostosa e eu peguei e falei que ia ligar pra policia. Todo mundo no ônibus ficou sabe assim... parado. E ai eu fui fazer boletim de ocorrência pra ele, tipo, ele ficou rindo da minha cara, não ficou com medo, como se ele fosse um tarado, entendeu?! Faz isso sempre e não tem mais medo do pode acontecer com ele.

Já sofreu alguma abordagem racial pejorativa? 02:32 REBECA: Já! Já me chamaram de a cor do pecado, nega “fuá”, não no sentido ruim, porque tem um ditado lá no meu bairro, nega “fuá”, por causa que as nega “fuá” de lá... Tem umas mulheres e tipo elas são prostitutas, e eles pagam pra elas e ai as vezes eu passo e eles me chamam de nega fuá por causa delas. Porque eu também sou negra, mas... Você acredita que a classe social pode influenciar na discriminação racial? 03:24 REBECA: Eu acho que se eu fosse rica eu sofreria menos racismo, porque... ah! Porque eu sou rica, né?! Iam ter uma visão diferente, mas ai, tipo, um nego pobre e um nego rico tem uma diferença muito grande porque ele é pobre, da favela, já surge o racismo de você morando onde você mora. O rico não. Vai ter uma escola boa, um ensino bom. Se o nego erra uma coisa ele já julgado por aquilo pra sempre, mas o negro rico assim [rico], já não é visto dessa forma.

Você sofre com piadas racistas? 04:21 REBECA: Com meus amigos assim, as vezes eles zoa.”Ah! Esse cabelo da pra lavar meu corpo.”. Eu pego e xingo eles, falo, “Você acha isso bonito? E se você fosse negro?”, dou a lição de moral neles, não deixo passar reto.

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Luana Caroline Souza Ferreira 22 anos Hostess

Quando você começou a se afirmar como mulher negra? E como foi sua mudança?

Eu comecei a me assumir mais quando eu me mudei pra Campo Grande. Quando eu era mais nova, eu morava em Três Lagoas e foi bem difícil. Era tudo bem difícil, eu tinha o cabelo liso, não gostava da cor da minha pele, eu era muito gordinha, então quando eu mudei pra cá, eu meio que dei um basta, “agora eu vou mudar, agora eu vou me assumir, agora eu vou ser quem eu sempre deveria ter sido”. E foi isso, aí eu mudei o cabelo, comecei a correr atrás de várias coisas, consegui me assumir mais, poxa eu sou negra, então não tem como mudar isso, eu vou ser assim, eu vou ser aceita, achei melhor aceitar do que ficar passando por sacrifícios ou por algumas coisas sempre, bem melhor ter aceitação de si mesma

Como foi a reação das pessoas que você convive e das pessoas que passou a conhecer? Muita gente falou assim “não muda não, tá bonito seu cabelo liso” e muita gente apoiou “assume, vai ver como vai ficar, qualquer coisa se você não gostar, alisa de novo”. Aí eu já estava sem passar produto químico no cabelo por um tempo e já tinha muito cabelo cacheado nascendo e pouco liso e um dia eu falei assim “é hoje”, eu fui, meti a tesoura e cortei tudo. Aì eu assumi, chorei muito muito, parecia que eu via outra pessoa e não era eu, pra aceitar aquilo foi bem difícil. Até porque quando eu assumi meu cabelo cacheado, eu não gostava, eu usava porque todo mundo achava bonito, mas 99


particularmente eu Luana nunca gostei no começo, agora eu já amo meu cabelo, é minha personalidade totalmente, espelha quem eu sou praticamente (2:40-3:18) Como você se vê representada na mídia?

Por televisão, eu não acho que a mulher negra ... a maioria das mulheres negras da televisão ou é faxineira, nunca é a atriz principal. Quando eu era mais nova teve, a única que saiu mais e até hoje uma das mulheres negras mais lindas, acho que ela fez uma novela que ela era atriz principal e aquilo repercutiu “nossa, uma mulher negra como atriz principal”, eu acho que não deveria ser uma coisa que deveria ser tão polêmico, porque é uma mulher, a única coisa que tem de diferente é a tonalidade da pele.. tinha ter mais mulheres negras como papel principal, mas acho que hoje em dia não tem uma representação tão boa assim não Na escola, como eram as paqueras? 4:23-42 Na escola não teve paqueras, eu nunca me achei bonita e aí eu acho que isso influenciava muito, era sempre.. os meninos chegavam nas minhas amigas, que eram branquinhas, que eram mais bonitinhas, que eram magrinhas, então eu sempre fui muito deixada de lado. A minha infância e minha adolescência foi bem ruim nessa parte de relacionamento e tudo mais, até porque eu mesma era muito fechada e eu não deixava as pessoas se aproximarem muito de mim, porque eu não tava muito bem comigo mesma, então nessa parte foi bem difícil.

Você contou que no seu primeiro relacionamento, a mãe dele não te aceitava e te ofendia por telefone. Você pode relatar isso? (5:14-37) Então, ele falava assim “minha mãe quer falar com você pelo telefone”, no começo eu achei que ela gostava de mim, ela queria falar comigo, mas ela falava assim “ah, você não serve pro meu filho, meu filho merece uma pessoa melhor do que você”, coisas assim que eram desnecessárias de falar, sendo que ela nem me conhecia, isso era bem ruim, me deixava desconfortável e eu não tinha coragem de falar pra ele, porque se ele soubesse que a mãe dele não gostava de mim, o meu medo era de perder ele, 100


então eu ficava muito insegura. Sempre fui insegura e ela me deixava mais ainda, me deixava com medo de perder em termos a única pessoa que eu tinha

No seu trabalho como hostess, você nos contou que sofreu discriminação racial e assédio de homens, poderia contar aqui?

Lá no restaurante, acho que foi bem mais forte essa questão de preconceito, porque como é um restaurante.. é um dos melhores restaurantes da cidade, então ia um pessoal de uma classe superior e eles acham que por você estar ali sendo funcionária, eles podem pisar ou te tratar mal de qualquer forma. Então, quanto à mulher, a gente não pode se relacionar diretamente com o homem, tem que falar mais com a mulher, porque ela já se sente enciumada e se você está lá trabalhando de recepcionista, você já é alguma coisa menos do que ela e ninguém nunca dá valor a esse trabalho. 8:27 – 9:27 - 9:31-39 E quanto a assédio, teve muito, porque você trabalha na recepção. Na maioria das vezes, você está bem mais bonita, bem arrumada, maquiada, um vestido, alguma coisa que talvez mostre uma pequena sensualidade e aí as pessoas acham que tem o direito de mexer com você e te intimar ou fazer alguma proposta indecente, porque você está ali, você é funcionária e ele tem o padrão de vida maior ou melhor que o seu. E de propostas assim, de homens casados, que já foram lá com mulheres ou que ofereceram dinheiro em troca de alguma coisa ou que fizeram propostas bem indecentes que talvez não fariam em outro lugar ou talvez com outras pessoas, então questão de preconceito teve também de .... como eu posso dizer, por eu falar um não, a pessoa querer me humilhar, pisar ou desvalorizar o que eu estava fazendo, desvalorizar o meu trabalho.

Nome do vídeo: Vídeo da Entrevista 2

Como você lidava com as situações de assédio no trabalho?

Por ser no trabalho, você tem que ter toda aquela postura. Se for um cara que está com a mulher e mexer com você, você não pode chegar e falar assim “Moça, seu 101


marido está dando em cima de mim”, não dá para fazer isso. Ou quando for algum cliente, geralmente cheio da grana, que sempre ia no restaurante, você não pode chegar no seu gerente e falar “manda ele ir embora, porque ele ta dando em cima de mim”. (0:40 – 1:16) Você tem que ter uma postura, você tem saber lidar com esse tipo de coisa e eu acho que é a parte mais difícil, porque a pessoas está ali te incomodando, te assediando e você tem que ir lá, sorrir pra pessoa, tratar a pessoa bem, então isso é muito desconfortante, é muito sem graça, porque a pessoa não se toca. Ela acha que porque ela está ali, ela tem uma condição financeira melhor do que você, você está ali trabalhando de recepcionista, você está ali para servir ele do jeito que ele quiser, entendeu? E não é assim que funciona, eu estava ali só para recepciona-lo, só pra levar ele até a mesa e não para dar algo a mais que ele quisesse, então nessa parte você tem que ter aquele jogo de cintura pra lidar com essas situações, porque senão, no final das contas, a errada acaba sendo você

Na balada, você recebia muitas cantadas pejorativas em relação a cor? E como reagia? 1:58 – 2:36 Sempre tem essa coisa que todo mundo fala ‘ah, porque mulher negra é mais quente, é mais boa na cama, isso e aquilo’. Acho que em balada, o pessoal já fica meio que..já bebe, já perde um pouco da vergonha ou alguma coisa assim e já chega chegando, já chega passando a mão, já chega intimando e você fica até meio que “sério que isso está acontecendo?” E são diretas muito pesadas, que talvez eles não fizessem no dia-a-dia, mas na balada eles se sentem mais à vontade por chegar em você assim tão diretamente, entendeu? Com umas propostas mais pesadas mesmo

Você acha que esse tipo de investida é diferente se fosse com uma mulher branca? Ao mesmo tempo que sim, ao mesmo tempo que não, porque do mesmo jeito que a pessoa está lá bêbada na balada, ela pode mexer com outra pessoa e pode dar 102


cantada da mesma forma. Ao mesmo tempo que por você ser negra, já tem aquele negócio de todo mundo fala de mulher negra ser mais quente e tudo mais. Então, parece que você fica mais exposta, eles já chegam mais, já intimidam mais. E com as outras pessoas, talvez já sejam mais delicadas ou tentam contornar mais e na gente é mais direto 2:57 – 3:15

Já desejou ser mais clara ou ter partes do seu corpo mais claras? 3:58 -4:37 Quando eu era mais nova, como eu sofri muito preconceito, meu sonho era ser branca, eu sempre quis ser mais clara, sempre alisei o cabelo pra tentar ficar parecida com todo mundo, que sempre foi a modinha do cabelo liso, magra, bonita e branca. Então, isso sempre foi muito ruim pra mim e aí teve a época que o Michael Jackson fez aquele tratamento lá que ele tinha a doença na pele e nossa, meu sonho era ter a doença do Michael Jackson, porque eu queria ficar branca e eu lembro que eu levei uma surra da minha mãe, que eu acho que foi a maior surra que eu levei na minha vida, porque ela falou que eu tinha que me orgulhar de quem eu era, de como eu era, do que eu era e que eu tinha que parar com esse pensamento besta, mas não tinha como tirar da cabeça de uma criança que sofreu preconceito praticamente uma boa parte da infância de que ser negro era uma coisa boa, porque era muito preconceito só pelo tom de pele, que era um pouquinho mais, uma diferença pouquíssima, por outras pessoas que tinham a cor mais clara. Isso pra mim, quando eu era mais nova, era muito ruim, eu sofri muito com isso, eu mesma tinha preconceito comigo mesma, então isso era uma coisa horrível pra mim e eu não conseguia me assumir, eu não conseguia me assumir como negra, então pra mim, o sonho era doença do Michael Jackson

Você tem algum receio de se relacionar por causa da cor da sua pele? 5:25

Olha, eu tenho muita vergonha do meu corpo, muita mesma, mas não tem como, se eu for ficar sempre com essa vergonha, eu vou ficar sozinha pra sempre, eu nunca 103


vou ter ninguém ou alguma coisa assim. Se eu ficar com alguém, escuro, ah não sei como eu posso dizer, eu não gosto que vejam meu corpo, eu tenho vergonha de mim ainda, acho que talvez eu possa mudar isso, esse pensamento ou quando eu tiver com o corpo que eu quero, o corpo ideal ou alguma coisa assim 6:03 – 09 Às vezes eu ainda tenho vergonha por eu ser negra e às vezes achar que uma mulher branca nua sem roupa é mais bonita

Gostaria de falar alguma coisa? Dar algum conselho pra quem ainda não se empoderou ainda?

6;26 - 57 Eu tenho uma irmã, ela tem quinze anos e sofreu o mesmo preconceito que eu.. tá sofrendo, mas ela não consegue contornar isso tudo, então eu gostaria de falar pras meninas mais ou menos dessa idade, entre 15 pra frente, pra se assumir, pra não ter vergonha, porque é maravilhoso e agora tá todo mundo assumindo os cachos, então, vai no embalo, se aceita, aceita quem você é, vai ser mais fácil porque se você ficar privando das coisas boas da vida, você nunca vai ser feliz, de verdade, isso é uma coisa que eu falo de mim mesma, que eu precisei sofrer muito pra me aceitar, então é mais fácil você se aceitar.

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Ana José Alves Eu sou Ana José Alves, natural de Campo Grande, sou campo-grandense, tenho somente 62 aninhos, tô na juventude. E sou bacharel em Administração de empresa, especialista e pós-graduada em gênero e raça pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul.

Você se considera uma mulher negra? 2:52 - 53 Eu sou uma mulher negra E como você começou a se afirmar como mulher negra? 3:07 – 4:03

Essa autoafirmação de, é lógico que quando criança, a gente passou por todo esse processo que a criança passa, de principalmente, quando a gente fala, do cabelo. Então parece que o alvo da nossa... desde a infância é o nosso cabelo, aquilo corta, “ah porque

é

ruim

pra

pentear,

não

pode

pra

isso

e

pra

aquilo”.

E aí quando chegou na adolescência, pra variar, a minha família e as titias “ah, você tem que passar henê, ah você tem que alisar, ah você tem que fazer bob”. E a gente, eu e minha irmã, falávamos ‘não, eu quero meu cabelo do jeito que é, não vou fazer, não vou alisar, não gosto, eu gosto do meu cabelo do jeito que é’. Então, a gente já tinha, sem entender, a gente já tinha o que? Já se rebelava. Já tinha uma atitude de se rebelar e aí também pela educação, também porque eu acredito que a educação que a gente recebe é fundamental na vida da gente. Aonde vai fortalecer, aonde vai dar essa estrutura, porque meu pai sempre dizia “olha bem pra mim, eu sou negro” e vocês tem que estudar, vocês tem que estudar. Eu dou alimento, trabalho, me responsabilizo por todo mundo, mas vocês têm que estudar. Traduzindo, vocês vão ter que sobreviver porque esse mundo não é de brincadeira

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Como você conheceu o movimento negro e como surgiu o coletivo de mulheres negras no estado? O movimento negro foi na época de.. na época que nasceu em Mato Grosso do Sul, a primeira organização que formalizou foi o grupo TEZ. Antecedente, já tinha grupos de estudos, inclusive até na universidade federal se fizer uma pesquisa, tinha grupos que discutia, reunia, mas não formalizava, não se constituía. Aí em 1985, constituiu a primeira organização negra, que deram o nome de “Trabalho e Estudo Zumbi”. E aí vai daqui, vai dali, colegas começaram a convidar e nessa época, meu pai trabalhava na Enersul e tinha uns colegas ‘ah, vamo la, vai participar no grupo, aparece lá’ no grupo TEZ. Aí era um grupo que se reunia no fim de semana e eu ia, ia pra ver, pra conhecer e fui me interessando, fui indo devagar, não foi aquela coisa que eu já cheguei assumindo. Quando foi em 95, era aquela coisa, a gente só tinha o fim de semana pra poder estudar, pra poder participar, trabalhava na semana inteira e chegava o fim de semana que a gente tinha reunião, era todo sábado final da tarde. E aí quando foi em 95, eu me afastei, continuei estudando e quando foi 95, a gente já veio com outra intenção, aí fomos convidadas por um grupo de mulheres pra gente fazer uma reunião, discutir e criar o grupo de mulheres. Nesse grupo que a gente foi, chegamos com tudo, ‘vamo criar um grupo chamado Coletivo de Mulheres Negras’, a gente se interessou, tinha boas colegas de trabalho também negras e começamos e já nascemos com identidade. Já fomos constituindo, formalizando, criando estatuto e fomos embora e assim tocamos a frente do Coletivo de Mulheres Negras. É lógico que tudo foi construído, não foi assim de repente, tudo construído, discutido, como que seria, que nome que daria, foi feito todo um trabalho mesmo, aprofundado, estudado e discutido, aí ele foi tomando rumo. Até foi interessante que para dar o nome do coletivo leva o nome da professora Raimunda, a gente fez uma pesquisa que nome que daríamos pro coletivo de mulheres negras, só que tinha critério, tinha que ser uma militante, negra e viva. Aí a gente discutiu e que atendia esse critério era a professora Raimunda.

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... A gente nasceu em 23 de setembro de 95 e de lá pra cá, estamos até hoje na resistência

Nome do vídeo: Vídeo 2 De que forma o movimento negro pode chegar às periferias? 1:24 -1:55 Dentro das discussões que a gente vê que trabalhar a questão racial, a questão da negritude, não é fácil, realmente tem uma série de fatores. E por mais que a gente vai, trabalha com as mulheres, vai nas universidades, vai nas escolas, pra começar, há um processo de negação muito forte, é muito forte esse processo de negação ‘’você não é negro, você não é negro, você não é negro”, o que é ser negro nesse país? A visão de ser negro nesse país é você ser retinto.... se você tem muita tinta, você é negro, se você tem pouca tinta, esse talvez seja resquíscio do processo de branquitude, são resquícios. E você passar por esse processo de negação que é muito forte negação ‘’você não é negro, você não é negro, você não é negro”, a pessoa vai ‘ué no meio dos negros, eu não sou negro, no meio dos brancos, eu não sou branco, eu sou o que?’, você começa a se perder 2:38-44... Essa questão da conscientização tem que partir das escolas, nas igrejas, nas associações, nos grupos. Esse debate tem que ser feito, tem que ser promovido, não só nas datas, 13 de maio, 20 de novembro, não ficar só nesses calendários, mas sim ser trabalhado os 365 dias, ser abordado, ser dito, ser falado e as pessoas... romper com essa coisa de ‘então, se eu falar que é negro, ofende’, quer dizer, ofende pra chamar eu de negro, mas pra cometer o racismo não ofende 3:18 - 4:03 Faziam uma enquete, você pergunta para as pessoas “Você é racista?” “não, eu não sou racista, eu tenho até amigo negro, tenho compadre negro”, mas existe racismo no Brasil? “ah, existe”, há muita contradição, quer dizer que existe racismo, mas as pessoas não são racistas e aí elas se justificam, então esse trabalho é constante (4:0738)

E como esse trabalho pode romper as barreiras da periferia?

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Eu acredito que devido a toda uma gama de informações, tem meios de a gente estar colocando, tem muito mais recursos, o recurso eletrônico, digital. E aí a gente estar levantando, discutindo, levando.. por um lado todo esse mecanismo que existe, tem também uma pessoa muito forte que... aí tem aquela questão de negro bonito, “ai, ela é negra, mas é bonita”, “ai, ele é negro, mas é bonito”, há uma justificativa, quer dizer que se não for bonito, você não é negro... Mas eu acredito que com poucas mãos, poucas pessoas, que não somos muitas, a gente tá chegando, eu acredito porque o movimento não para. O movimento negro, as mulheres negras, a gente tá constantemente, tá na luta. .. Nós negros temos a estima baixa, então nós temos que estar lutando para fortalecer essa estima. Então a partir do momento que você chega e se autoafirma, você vê que você já tem um impacto. A gente faz muito esse teste, se tiver 2 ou 3 negros chegando, você já vê os olhares, então a gente incomoda, não aquele olhar pejorativo, de cuidado “cuidado com a minha bolsa, cuidado”, não é isso, mas você imagina se chegar 3, 4, um número grande de negros com postura, com a estima mesmo, nossa... é isso que eu acho que a gente, acho não, penso que a gente tem que trabalhar muito é a nossa estima. Porque a mulher negra quando se empodera, é através da roupa, do cabelo e tal, aí você vê que a gente, leva outros estereótipos, “ah, a negra metida”, “Ah negra isso”, “ah lá ta se achando”.. Então você vê que mexe com o racista

Na nossa pré-entrevista, você comentou sobre o recorte que se faz ao analisar a questão da solidão da mulher negra. A maioria das negras chefiam famílias, são solteiras, você poderia comentar sobre?

Ah sim, o estudos também apontam que quem tá mais, ela demora mais tempo.. não tem um relacionamento mais firme, o que a gente observa? Ela vai casar com idade mais avançada, não se firma, então o que a gente vê? É a questão da sexualização. Ela é vista pela sua sexualização, “isso, aquilo, ta desfilando aqui, desfilando ali”. A jovem,... o que a gente questiona? Hora de levar para o cartório, apresentar para a família, não é 108


a negra.. quem é que ele realmente vai la e assume e leva para o cartório, 10:30-44 então aí a gente percebe que há um fetismo, não sei uma... o negro que.. tanto que, até citei naquele dia pra você, teve uma pesquisa na década de 90, que não chegava a 12% casal étnico, casais negros, não chegava a 12%, então a mulher negra quando tem um relacionamento fixo, não é com negro e o homem negro não é com a negra, então era muito baixo pra mais de 52% da população 11:04-12 ... E se você fizer uma análise de mulheres independentes, a maioria quem vai ta lá sozinha? É a negra. Na parte afetiva, ainda a gente está nesse patamar, eu não sei se eu colocaria como desvantagem 12:03 - 18 Devido a todo o mercado, o consumo, a publicidade, o comércio, tá usando muito a figura do negro, da negra, mais para o mercado... e as famílias tão constituindo? Aumentou os casais étnicos...

Você nos contou um caso pessoal, em que o rapaz queria te submeter à condição de amante. Poderia relatar novamente? Sim, sim, passei por essa experiência 14:40 de ter esse relacionamento e quando ele se firmou, isso porque eu conhecia a família, frequentava a casa, conhecia a família, a minha família também. E aí quando ele firmou com essa outra pessoa, branca, ele veio me propor que ficaria comigo amante e a outra ia pro cartório 15:16

... 15:26 Como eu já tinha um outro entendimento, também a militância me ajudou, que aí eu não me submeti. Por que dependendo da situação afetiva que a gente está envolvida, muitas vezes a gente pode ceder 15:40 O emocional abala viu, o emocional da gente fica super abalado, por que você fica o que? Sendo preterida. Você tem um relacionamento, tem todo um envolvimento, tem um envolvimento afetivo, nós estamos falando de afetividade, não é simplesmente sexualização, satisfação, é um relacionamento afetivo de tempo, pra daí você ser pega, no caso, ‘ah não, to firme, vou casar com a fulana e eu fico com você e com ela.. você atrás da porta e a outra, na frente, você preta negra fica escondida, aí a branca eu vou desfilar com ela, vou constituir família com ela 17:01 - 09

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Tanto é que quando eu me separei, que eu casei, vivi um bom tempo com meu ex-esposo e quando eu me separei, essa mesma pessoa ficou sabendo.. ele também separou e tentou novamente se aproximar, mas a fila anda, já passou

Você também disse que sentia um desdém por parte da família do seu exmarido. Poderia relatar? As cunhadas do meu ex-esposo.. desdém, sabe? Sempre tava assim desfazendo..

Nome do vídeo: Vídeo 3

..aí eu tinha uma cadeira de balanço e eu gostava muito de sentar naquela cadeira, aí chegou no maior desdém, “ai nossa, cadeira de velho”, aí eu comecei a observar... via que tinha aquela questão de diferença de classe com raça, faz uma mistura, mas no fundo é racismo Meu ex-esposo era o mais.. ele era o pretinho, os outros eram mais clarinhos, aí casavam com branca, então ele era o pretinho que casou com uma pretinha.. Aí eu comecei a observar o que? Ele já era divorciado e a ex-mulher dele era negra, então realmente, você vai ligando as coisas, há um preconceito.. E assim é a família, a maioria das famílias, não posso falar todas, não posso generalizar. Mas a maioria das famílias, elas instrui.. se a mulher apresenta um homem negro, ele vai passar pelo mesmo problema, ela branca apresenta um homem negro, “ele não é uma pessoa ideal pra você” . Se é ele apresentando uma mulher negra, tem mil e um defeito, “é isso mesmo que você quer? Você já pensou? Você já pensou nos filhos que você vai ter? Olha bem, olha bem com o que você vai casar”. Então coloca um monte de minhoca, tem um monte de pressão, “é isso mesmo? ”, as famílias fazem isso (2:373:24)

Você nos contou que sofreu um certo assédio no ambiente de trabalho, por conta da sexualização da negra. Poderia relatar?

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A juventude e o assédio né, é lógico né, vocês são jovens, sabem que quando a gente tem o primeiro emprego, isso acontece até hoje, não mudou muito. É aquele assédio, você é mais jovem no primeiro emprego, eu trabalhava no escritório e tinha as pessoas, a maioria, era uma sociedade de pessoas idosas, aí tinha eu e uma outra menina, que eram as mais novinhas. E era presente, me oferecia pra levar na escola, queria me buscar, principalmente levar na escola. Saía do serviço, já direto pro trabalho.. saía do serviço, já vinha pro colégio... corpinho adolescente, jovem, 17 anos, 18, usava minissaia, calça jeans marcando o corpo, então o assédio era...aí você vê que tudo era o que? Uma coisa puxa a outra, a juventude, a sexualização.. e aí começa, se você não tem um outro olhar “peraí, ta me cuidando por que? Ta dando presente por que?”, aí nesse ponto, minhas tias ajudavam, minha mãe também, “não vai aceitando presente, cuidado”

Você acha que era por sua cor? A mulher negra é vista pela sexualização, tem esse chamariz.. a mulher negra é.. o olhar nosso da mulher negra, do homem pra mulher negra é de satisfação sexual, é de sexualização mesmo, ela é vista pra satisfação. Não é vista pra... hoje se discute muito mais das mulheres que passam pelo fiu fiu, a roupa, isso e aquilo, enfim.. então não tem aquela coisa do corpo, do nosso direito de ter o corpo bonito e você poder vestir do jeito que você quer, do jeito que você se sente bem, não é uma roupa que vai isso ou vai aquilo. Tem que se sentir bem com o seu corpo, o corpo é teu e aí a jovem passa por essa questão de assédio, a gente passa por isso. E a mulher negra é vista pelo desejo, pela parte da sexualização mesmo

Como você vê a representação da mulher negra na mídia? E você também havia comentado que o mercado está se apropriando da figura do negro

Eu observo que não tinha e nesse ponto o movimento de mulheres, o movimento negro contribuiu muito porque a gente questionava muito nas propagandas, “cadê a negra? cadê a família negra?” tanto na televisão, tanto na imprensa, enfim, tudo o que 111


você via de propaganda, não tinha a criança negra, não tinha adolescente negra, não tinha a família negra. E aí, como a gente começou a criticar, criticar, questionar que o racismo era tão forte, que nem nas propagandas não colocavam, não tinha a figura negra, não tinha a família negra. Até a gente começou observar.. parecia que criança não tomava leite, quem aparecia nas propagandas de leite? Não tinha negro, quer dizer que criança negra não toma leite. E dos produtos, era aqueles cabelos, não tinha a figura negra, aí quando começou todo o movimento do cabelo, cabelaço, do black e tal, aí veio o mercado e ... Até que eu comentei de 2015, que começou um movimento e foi foi foi, quando finalizamos a marcha de 2015, Marcha das Mulheres Negras, a primeira marcha, aí foi o boom, o mercado fez aquele.. aí você viu crespos e cachos, produtos e mais produtos com a figura da mulher negra, então o mercado veio com tudo, com todo produto. Por um lado, a gente fala ‘não agora’, mas tem um outro olhar, aí o mercado veio com tudo.. teve banco, serviço, comércio, as propagandas, você pega os panfletos, ta lá a figura da família, ou do negro ou da negra, mas é o consumo, é mostrar ‘ta na moda’, cabelaço ta na moda, a pessoa negra ta na moda. Há destaque, a imagem da pessoa negra, nós estamos vendo, mas há todo um processo, todo um olhar de mercado, é vender

..... Para finalizar, você gostaria de dizer alguma coisa? Deixar algum recado? Falar sobre algo que não tenhamos perguntado?

O recado é que a gente... espero ter contribuído, deixar esse recado de fortalecimento, da identidade nossa, da gente se olhar no espelho, não com aquele olhar de.. mas a gente se admirar. 15:53 – 16:11 Se admirar, gostar, olha bem pro cabelo, admira, olha bem pros seus traços, admira, nosso bocão, narizão, nossa pele, a gente ir buscando nosso eu, a gente fazer 112


nosso trabalho. Se precisar buscar apoio, busca apoio, orientação, porque tudo é um processo.

16:26 - 48 Uma coisa eu digo, eu não quero fazer aqui, sem falsa modéstia não, nós somos mulheres negras, jovem negra, criança negra, idosa negra, nós somos bonitas, sabe a gente é bonita... Se fazer uma maquiagem bem suave assim, já fica assim ó, brilhando, que já tem uma beleza natural, bonita, essa é a mensagem que eu quero deixar. De empoderamento, de olhar, olha o cabelo nosso, você faz um negocinho assim, ele já se ajeita, ele é lindo. Agora o que é feio? O que é ruim? É o racismo, feio, ruim é o racismo. O racismo, ele mata, ele adoece e mata, então vamos valorizar e ressaltar o que a gente tem de bonito. Narizão sim, nosso narizão é bonito, cabelo e se amar, esse é o recado que eu deixo para as pessoas. Faça esse exercício, tendo a dinâmica faz quando tá atuando em projeto, esse exercício que tem que ser feito. Não é egoísmo, você pegar um espelhão, colocar na frente, começar a se olhar e fazer esse exercício, de se olhar mesmo e pegar o cabelo e ressaltar, a roupa, o corpo e começar a fazer esse trabalho, que diante do espelho, você está diante de si, você está conversando com você mesmo, não é uma representação. 17:13 - 17:56 18:15 - 47

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Renata Cristinne Eu sou Renata, tenho 20 anos, trabalho no Cinemark de operadora de caixa, vendo pipoca lá

Renata, você se considera uma mulher negra? Sim, negra maravilhosa Como foi seu processo de empoderamento e como foi a reação das pessoas? Assim, o processo de transição, de começar a me aceitar mesmo foi no finalzinho de 2016, 2014, por aí. Aí eu comecei a achar que eu sou maravilhosa, porque eu sou maravilhosa, aí comecei a querer deixar o cabelo crespo e tal. Eu fui fazendo trança para passar pela transição e nisso falavam “nossa, que legal, você tá deixando seu cabelo, assumindo quem você é mesmo” e outros falavam “nossa, pra que esse cabelo? ‘Vamo’ alisar”. Até mesmo depois de ficar cacheado, minha mãe fala “ah, se a gente alisar, vai ficar sensacional”, mas ele já é sensacional, não precisa alisar (1:25 – 45)

Teve apoio dos amigos? Como foi a reação deles e das pessoas que te encontram na rua? Como é a reação? Os meus amigos me apoiavam bastante, porque eu era da igreja na época, então todo mundo falava ‘nossa, que legal’. Lá até tinha uma menina que tem o cabelo igual ao meu e ela falava ‘nossa, que legal que você está assumindo’. Na rua, as pessoas me olhavam com cara tipo ‘meu Deus, por que essa pessoa tá deixando o cabelo dela desse jeito’, não sei o que eles imaginam, até por isso eu não soltava o cabelo pra sair na rua, eu ficava de cabelo preso, fiquei muito tempo de cabelo preso. Meu cabelo, eu já tinha tirado toda a parte lisa do meu cabelo, que é o big shop, só que aí eu andava com ele preso ou semi-preso, não soltava o cabelo. Na primeira vez 114


que eu soltei o cabelo, parecia que tava todo mundo olhando pra minha cara, meu Deus do céu, fiquei com muita vergonha, comecei a prender de novo e depois eu comecei a soltar, fui deixando 2:27 – 46

Como você se descobriu e se assumiu homossexual? Eu sempre fui, eu acho. Na verdade, quando eu era menor assim, eu ficava com rapazes, mas não muito também, mas ficava com rapazes. Só que eu nunca gostei de ficar com rapazes, sempre tinha paixãozinha por uma menina ou pela irmã do rapaz, ou coisa parecida, similar a isso. Aí eu comecei a frequentar igreja, então eu coloquei na minha cabeça que não era aquilo, tanto é que eu passei sete anos na igreja, sete anos sem ter relacionamento nenhum com ninguém. Eu gostava de uma menina aqui, gostava de uma menina ali, mas era só pra mim, e aí depois de um tempo, tinha uma menina na igreja que eu tinha ficado com ela. Depois de uns cinco anos que a gente ficou, a gente se reencontrou, tanto é que a gente ficou de novo e eu falei ‘não vou viver assim, não é assim que eu quero viver’, a sombra de alguém que eu quero ser, que eu sou na verdade. Eu sou lésbica mesmo e não tem porque eu ficar me enganando achando que eu sou hétero, que eu vou conhecer um rapaz e ele vai ser o rapaz da minha vida, se eu não sou assim, e aí eu me assumi. Aí deu muitos BO’s, meu pai veio pra Campo Grande, a minha mãe, começou a falar um monte de coisa, mas hoje em dia é mais tranquilo (3:56- 4:12)

Sendo mulher, negra e homossexual, você tem 3 motivos para ser discriminada, como você lida com essa situação? A princípio eu fico muito revoltada, porque não tem necessidade disso. As pessoas têm que ser quem elas são, independente de cor, de sexo, gênero, do que ela gosta e tudo. Eu vivi várias situações, tanto por ser negra, por ter o cabelo crespo ou por ser homossexual mesmo. Teve uma vez que ‘tava’ lá no cinema mesmo, já estava trabalhando lá e a Adrieli tava comigo, acho que foi a primeira vez que a gente trabalhou junto e ela atendia um casal. Aí o casal pediu um copo de coca que é um litro, aí ele pegou e falou assim ‘ai, vou ter que tomar tudo isso de coca mesmo para aguentar essa situação’, aí eu perguntei 115


‘o que foi?’, eu perguntei pro cara ‘ o que que foi’, aí ele ‘aquele casal ali se beijando’, aí eu fui ver, eram dois homens se beijando, ‘eles não tem vergonha na cara, mas que nojo, vou tomar esse litro de coca pra engolir’, e eu fiquei tão cética que eu não sabia o que falar. E a Adrieli ficou me olhando assim ‘meu Deus, o que aconteceu?’, eu fiquei absurdada mesmo, porque a pessoa tem que ser livre, tem que ser feliz e a minha felicidade não incomoda as pessoas, não tem que incomodar na verdade, é o meu relacionamento, a minha vida

Já passou por alguma situação discriminatória que te marcou na vida?

Deixo eu lembrar... Quer responder depois? Aham.

Depois a gente volta nessa pergunta. Como eram as relações na escola, as primeiras paqueras? Já foi discriminada por ser negra? Porque geralmente as negras são sempre as únicas negras na escola

Sim, a mais escurinha da turma, a mais escurinha do grupinho e tal. Quando eu fazia um curso, acho que era Semilk que chamava e aí eu gostava de um rapazinho desse curso e eu era muito apaixonada por ele, gente do céu e ele só zoava com a minha cara. Quando tava só a gente, umas duas vezes que tava só eu e ele, ele até gostava de mim, ele falava ‘ah, me dá um beijo, eu gosto de você’, só que eu não quis dar um beijo, porque ele gostava de mim quando não tinha ninguém com ele, era só quando tava eu e ele. E quando tava ele e o pessoal que jogava futebol e as meninas que dançavam com a gente, ele não gostava de mim. Todo mundo me zoava, ‘ah, a neguinha, a menina do cabelo duro, do pé sujo’, e aí ele entrava na zoeira também, era mais ou menos assim

6:36 -7:18

Como você reagia? 116


Ah, eu ficava mal, ficava mal porque eu gostava muito dele assim, gente do céu, eu chorava, que ódio. Chorava por ele, não só por ele, mas até pela situação dele gostar de mim e depois me zuar na frente das pessoas, porque queria subir, queria status e eu ficava um pouco mal. E até eu não queria ser negra, eu ficava ‘meu Deus, por que eu nasci negra? Por que eu nasci com o cabelo crespo? Queria ter o cabelo liso e tal’, naquela época era assim 7:27 – 7:48

Em um relacionamento homossexual existe isso também da mulher não ser assumida por outra mulher? O que você pensa sobre isso? 8:02 -29 Existe, existe bastante. Antes de ter um relacionamento com a Adrieli, eu fiquei com algumas meninas e assim, a maioria delas, eu ficava com elas, teve uma que eu conheci só um amigo dela, um amigo só dela, mais ninguém e ela falava ‘ai, to aqui tomando tereré com uma pessoa, com a minha mãe, com a minha tia, com a minha vizinha aqui’ e ela não me chamava pra tomar tereré na casa dela, era só eu e ela, eu e ela e esse amigo dela, não tinha mais ninguém. 8:30 - 38 Outras meninas também que eu me relacionei, era só nós duas, nunca teve isso de apresentar pra mãe, de querer conhecer e nada, era mais ou menos assim, então existe muito. A Adrieli é sua primeira namorada, como foi a reação da sua família ao saber que você está namorando uma menina e da família dela por estar namorando uma menina negra? Da minha família, assim, todo mundo, eles já sabiam que eu era lésbica. Só que assim, eles sabiam, mas eu nunca cheguei e falei ‘eu estou namorando uma menina, eu estou ficando com uma menina’, então quando eu fui contar pro meu pai que eu namorava uma menina, foi muito engraçado. Eu falei assim ‘pai, eu to namorando’, tanto é que eu nunca cheguei nele pra falar que eu tava namorando ninguém, nunca nos meus 20 anos eu cheguei nele ou chegou historinha ‘ela ta com namoradinho, ela ta com namoradinha’, nada. E aí cheguei nele e falei ‘pai, eu to namorando’, aí ele falou assim ‘ ah ta, depois a gente conversa’, e passou e nada nada. Ele conversou com meu irmão, conversou com 117


todo mundo.. aí ele veio conversar comigo ‘quem é?’, eu falei ‘então, o senhor conhece’, eu fiquei meio sem graça. Aí ele ‘é algum amigo do Eduardo?’ eu parei e fiquei olhando pra cara dele e comecei a rir, ‘ amigo do Eduardo? Não é nenhum colega do Eduardo’, ‘mas eu conheço?’, ‘o senhor conhece’, ele já tinha visto a Adrieli uma vez no cinema, aí ele perguntou onde ele morava, eu falei onde ela morava e tal e ele, ‘quem é ele? Me fala’, eu falei ‘pai, não é ele’, ele falou assim ‘não é ele? É ela?’ aí eu falei ‘é ela’, ele falou ‘você ta falando sério?’ e eu ‘eu to falando sério’. E ele ‘ah ta bom, quando eu vou conhecer?’ ‘Amanhã, ela vai vir aqui’, mas depois foi tranquilo. .. 10:06 – 17 12:13 – 40 Ah acho que pra família dela, não sei ao certo, por que quem deveria estar falando era ela, mas pra família dela acho que foi tranquilo. Só que eu não vou negar que eu fiquei com muito medo Adrieli: Sério? Sério, fiquei com muito medo. Aí eu fiquei com muito medo, eu tava com o cabelo todo black e eu tava de salto, aí meu salto arrebentou, eu falei ‘não é pra ser, não é pra ser’, mas a mãe dela é um amor, o irmãozinho dela também é um amor, todo mundo gosta de mim, o padrasto dela também é muito fofo, foi bem tranquilo eu acho, né amor?

Como são as cantadas? 13:40 – 13: 56

Eu acho que as pessoas olham mais com malícia, muito. Mas assim, eles falam ‘que neguinha bonita, que morena bonita’. Tem até um rapaz que vai la no cinema pegar pipoca, depois que acaba o... depois que fecha tudo, a segurança, ele vai la pegar pipoca. Ele chega e fala ‘ô morena, ô isso, ô aquilo’, eu fico pensando, que primeiro eu não dei intimidade nenhuma pra ele falar assim comigo, eu não sei nem o nome dele e segundo porque eu não sou morena, eu sou negra. Não sou morena, tanto é que quando eu era menor, eu falava ‘Renata morena’ minha avó falava ‘Você ta louca? Você não é morena, 118


você é negra, não tem nada de morena em você’, minha avó era bem direta com relação a essas coisas’

Já foi assediada?

Mais em festa.

Como era?

14:17 - 35 Abusivo... teve uma festa que eu fui, que tinha um rapaz amigo da minha amiga e ele ficava me pegando, me coçando e já tava me dando um nojo, um certo nojo assim e eu falei pra ele ‘eu sou lésbica, não gosto de rapazes’ e quase todas as meninas que tavam lá, ele não fazia isso, não fazia. Mas em mim, ele encostava, queria que eu dançasse perto dele, me abraçava e ficava naquela pegação, aquela coisa nojenta. Até que eu falei pra ele ‘para, por favor, não quero que você fique me encostando, não quero ficar com você, não quero nada’. Teve uma hora que eu falei pra ele ‘eu sou lésbica’ e ele ‘eu também’ e eu falei, ‘que sem graça’

Você acredita que esse abuso é por causa da sua cor? 15:11 - 44 Eu acredito que é por conta da minha cor e por assim, todo mundo tava de roupa curta e tal, mas eu acho que eles veem, não generalizando, mas por que ela é negra assim, vamo investir mais pra ver se ela cede, essas coisas. Tanto é que as outras meninas que tavam com a gente, nenhuma era negra, acho que eu era a única negra lá, eu conhecia uma menina só que era a .. não vou citar nomes, eu conhecia só uma menina lá que era colega nossa, e é amiga dele e ele não tava assim com a amiga dele, nem com as outras meninas que estavam lá, era só comigo e eu fiquei pensando ‘qual é o problema desse garoto, não entendi?

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Num recorte homossexual, como é o tratamento das meninas? Tem outras amigas lésbicas negra? 17:19 - 28 Mas assim, o fato é esse, se a menina, ela é mais clarinha e ela tem um relacionamento com uma menina mais escura, a maioria não assume, não assume, é bem raro. Que nem eu falei pra vocês antes, antes da Adrieli, eu fiquei com umas.. não vamos contar números... mas assim, de umas três que eu me relacionei, elas chegaram em mim e falaram ‘quero um compromisso sério com você’ mas eu não conheci ninguém da família delas, não teve contato nenhum, mas da pessoa chegar e falar assim ‘eu gosto muito de você’ e no outro dia falar assim ‘ah, acho melhor ficar só na amizade, porque não vai dar certo, acho que a gente não se conhece o suficiente’ e não dá três dias, relacionamento sério com fulano e esse fulano não é negro, não tem cabelo crespo, nem nada e eu ficava muito puta, ficava com muita raiva (17:42 – 18:14)

Adrieli*: Você teve medo de eu não te assumir? Não, eu fiquei com medo da reação da sua família

*Adrieli é namorada da Renata e estava presente no momento da entrevista

Por que? Qual era o seu sentimento? Não, eu não fiquei com medo de nenhuma não me assumir, entendeu? Por que eu tenho um problema de confiar muito nas pessoas. A pessoa fala pra mim ‘eu gosto de você, vamos ter um relacionamento’, e aí eu acreditava na pessoa, porque eu era muito iludida, o meu medo mesmo é a família da pessoa, do que ela vai achar, ela vai ver uma menina negra com um batonzão, com um cabelo desse tamanho, do que eles vão pensar, o meu medo era mais ou menos esse, de chegar lá. Mas eu fui super bem recebida na família da Dri

E essas meninas que você ficou, alguma delas praticou algum tipo de racismo velado? Com cabelo, por exemplo 120


Acho que não, acho que todas elas gostavam do meu cabelo, meu cabelo é lindo. Mas com relação a isso, minha mãe falava muito, tanto é que quando eu me assumi, assumi meu cabelo, ela falava ‘aí, Deus que me livre’, eu falava ‘mãe, deixa seu cabelo crespo também’, ‘Deus que me livre’. A minha irmã então, eu falava ‘Rúbia, deixa o cabelo crespo’, ela fala ‘não, ficar igual você, você ta doida? Ficar com essa juba?’, porque pra eles tudo é juba. 19:34 -50

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Camila Ribeiro Camila, você poderia começar se apresentando e contando um pouco das suas experiências em relacionamentos? 2:14 Meu nome Camila de Jesus Ribeiro, eu sou uma mulher preta lésbica, tenho 21 anos, nasci na periferia de Paranaíba moro até hoje no mesmo lugar .Faço estou no último ano de ciências sociais, trabalho no estúdio de fotografia. E minha experiência, minha experiência em questões de relacionamento são bem marcados pela questão racial e pela questão de gênero então essas duas categorias de relacionamento estão interseccionada

na minha ,na minha vida ,na minha vida

afetiva na minha vida sexual, é mesmo sendo uma lésbica não relacionado com os homens, muitas vezes sofri com o machismo dentro de relacionamento abusivos ,muitas vezes eu sofri com ,com não está dentro de um padrão aceitável de ,de sexualmente estabelecido ,é já sofri com relacionamento com meninas brancas por exemplo eu sofria com ,é eu sofri com, com o racismo e muitas vezes até com meninas negras eu acabei sofrendo com, com algumas coisas.

4:01 Foram vários relacionamentos, então é, e porque acho que nossa vida quando se uma militante feminista, e me afirmo enquanto uma mulher militante feminista antirracista, quando eu... A nossa pratica afetiva está muito ligado aos meios que a gente transita ,então e muitas vezes até dentro do movimento negro ,é eu era considerada estereotipa de negro pra transar até por meninas dentro do movimento negro ,é então eu já fui ,já me disseram é eu quero transar com você porque mulher negra e boa de cama ,ou até mesmo quando vem me fazer um elogio e um elogio e 122


sempre voltada é como sou aceitável sexualmente mais não faz nem uma menção a outro coisas por exemplos ,é já vive relacionamentos abusivos ,já tive e um relacionamentos abusivos, a minha inteligência era tratada como, ou a falta dela ,era tratada como uma coisa de segundo plano ,então beleza vamos transar depois a gente conversa (risos..) né, ou quero ficar com você mais só no fim da noite ,então a mulher negra e procurado mais só no final da noite né , então vai pra festa fica festa inteira e quando acaba a festa e não ficou com ninguém ai liga pra mulher negra pra ficar, mais isso e só no escuro e so quando ninguém tá vendo, e ai ,ou até mesmo a mulher negra ser ou eu por exemplo não ser assumida publicamente

6:08 É por exemplo de, não vou te levar para minha casa, não vou te apresentar pro meus pais né, primeiro porque você e uma mulher né?! E uma questão, uma questão sexual e segundo uma questão ética no racial porque você e negra , meu pais não querer é que esteja comigo então isso tem que ser escondido.

6:36

Isso ela falou pra você, ou você deduziu? 6:41 A gente acaba deduzindo, né?! porque algumas coisas são, a grande sacada de quando você estuda a questão étnico racial e que o racismo nem sempre e aberto, muitas vezes ele tá velado, entre de baixo de muitas coisas a priori pessoas que não tem esse felling não, não entenderiam ou passava por coisa despercebidas, mas tem algumas coisas que a gente já olha e fala “poxa!”. Por exemplo, você é uma negra bonita ou você é uma negra gostosa e que num primeiro momento seria um elogio e a gente consegue entender o que está por trás desse elogio quais são os pressupostos que essa pessoa tem pra fazer esse elogio. E ai é isso, algumas coisas são veladas ou são escancaradas e é bem isso.

Você já teve vontade de ter a pele mais clara? 123


07:55 Já! Acho que tem o período. Eu conheci o movimento negro, e fui me afirmar, me entender quanto preta, com 17 anos de idade. Todo meu período escolar, a escola é extremamente racista, é um espaço racista, que consegue manter veladamente todas as relações racistas sem se posicionar, então, eu sofri vários assédios, por professores, por alunos, eu já apanhei na escola porque eu era a única aluna negra que tinha ganhado alguma coisa na escola e ai os alunos falaram “Não essa neguinha não vai ganhar o prêmio de melhor aluna da sala”, e ai, me bateram me tiraram o que eu tinha ganhado. Então, várias coisas aconteceram durante meu processo de aprendizagem no ensino fundamental e no ensino médio. E por várias vezes, “Ah! Se não tivesse a pele tão escura... Por exemplo, “Ai, você é tão bonita! Pena que é tão negra, se fosse um pouquinho mais clara você seria mais bonita. Se seu cabelo não fosse tão ruim até que você seria melhor, seria mais bonita. Alisa seu cabelo!”.

Você alisava o cabelo? O que a fez parar de alisar e assumir o cabelo crespo? 09:27 Eu alisei meu cabelo até meus 17 anos. Eu nem tinha entrado na universidade ainda e eu tive contato com um poema de uma escritora que chama “Gritaram-me negra”. E esse poema ele fala “Tinha 7 anos apenas, apenas 7 anos, de repente as vozes nas ruas me gritaram... NEGRA!” E ela começa a contar a história de uma menina negra que enfrenta o racismo. E ao fim do poema ela diz “Negra sim, negra sou, negra sim, negra sou, de hoje em diante não quero alisar meu cabelo. Não quero! Vou rir daqueles, que por evitar segundo eles, por evitar algum dessabor chamam os negros gente de cor”. E aí ela faz uma... Pega algo considerado ruim, que era o negro, ne?! Preto, que era chamado e ela inverte isso e joga na balança e fala “Negra sim, negra sou e não vou mais alisar meu cabelo, não vou mais pintar minha cara”, não vou mais ter vergonha do que eu sou e da minha pele. E aí, com esse poema eu falei “Caraamba! Pode crê não vou mais alisar meu cabelo”. Ai, minha mãe mexe com tranças, minha mãe é cabelereira, e no mesmo final de semana eu cortei todo cabelo alisado e coloquei as tranças. E aí, eu fiz todo processo de transição de tranças e ai já me entendendo como uma mulher preta 124


e nesse processo estético e identitário ao mesmo tempo, né?! Porque o processo da beleza negra, ele é identitário e estético. E esse foi meu processo de me entender quanto mulher negra e a partir disso eu comecei a entender várias outras coisas que estão interseccionadas, não apenas a questão racial, mas a questão de eu ser uma mulher, mulher lésbica, mulher periférica, de estar numa cidade do interior. E essas coisas foram vindo depois que eu me entendi uma mulher negra.

Como foi para você assumir a homossexualidade? 11:53 Foi um processo bem mais complicado, porque eu venho de uma família tradicional e toda minha adolescência eu passei dentro de uma igreja. E quando eu entrei nas Ciências Sociais, eu comecei a entender algumas coisas.. “Já era! Não quero mais!”. Eu com 15 anos de idade, eu não era padrão, né?! Então, os caras não me procuravam, porque eu era a mina preta, pobre de cabelo ruim. Nunca fui padrão, nunca fui padrão de beleza. E os caras... Não era interessante pra eles e acho que até por isso nunca fiquei com homens. Então, os caras nunca me procuravam e eu sempre soube que eu era lésbica e gostava de meninas, sempre soube desde o começo e esse processo com a minha família foi bem mais lento assim... Eu comecei a namorar uma menina e eu falei “Beleza! Quero que essa menina venha pra minha casa. Quero que ela faça parte do meu cotidiano”. Meu irmão tinha várias namoradinhas e as namoradinhas dormiam em casa, né?! Então, por que que minha namorada não pode dormir na minha casa? E esse foi um processo de.. Pouco a pouco, minha família foi super aberta, consciente em certas coisas, claro que dentro dos limites deles. Mas foi isso isso, eu me descobri enquanto uma mulher lésbica e ai comecei a trabalhar isso não apenas comigo, um trabalho com a minha família, com os meus, com as pessoas importantes que fazem parte da minha vida. E hoje em dia é tudo tranquilo, minhas companheiras vão para minha casa, participam do meu dia-a-dia, do dia-a-dia da minha família. Tanto que chega dia de aniversário da minha companheira, minha mãe faz presentes “Vou dar presente para fulana”, mas foi um processo.

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Você sente diferença na abordagem das meninas negras e das meninas brancas? 14:49 Geralmente... Tanto é que eu disse “Não vou mais me relacionar com mulher branca”. Depois de que eu optei por ter um relacionamento afro-centrado eu acho que eu vou levar isso, claro que eu não vou me privar das possibilidades, né?! Mas depois que eu tive um relacionamento com uma menina branca e que ela reproduzia vários estereótipos sobre a mulher negra. A abordagem das “minas” brancas é entender a mulher negra só pra transar, a mulher negra é boa de cama, mulher negra eu vou lá vou ficar e já era. Com as meninas negras eu vejo essa diferença, a questão racial com as meninas negras já não tenho isso.. Elas me entendem como quanto um ser completo e não somente um ser sexual, um ser que tem sentimentos, emoções.

Uma das nossas fontes relatou que tem receio de expor o corpo em uma relação sexual, por ser negra e ter as partes íntimas escuras. Você tem essa vergonha do próprio corpo? 16:22 Eu nunca tive... Eu acho que essa minha inserção no movimento negro feminista, me possibilitou ter mais liberdade quanto a isso, então, eu já vi, já participei de rodas conversa, em que meninas, por exemplo, “Eu gosto de transar com meninas negras porque tem os clitóris menores que as outras e isso me dá mais prazer”, tipo, biologizando uma questão que é toda... Que não é biológica, é social. Tive problemas quando eu engordei, que eu engordei uns 15 quilos nos últimos anos de faculdade e tive vários problemas com o meu corpo, “porra” tipo, esse não é o padrão, mas tudo bem, continuo me amando assim... sendo linda, mesmo não usando 36, né? Mesmo não pesando 50 quilos. Para finalizar, você gostaria de deixar um recado, falar alguma coisa? Difícil isso hein? Pode ser com um poema? Eu vou recitar um poema da Vitoria Santa Cruz, eu só preciso lembrar, vocês estão com muita pressa? Aí tem várias: Conceição Evaristo, tem Carolina Maria de Jesus, do livro “Quarto de despejo”. Conceição Evaristo tem uma escrita da mulher negra pra mulher negra, 126


Lucimar Dias Lucimar, a mulher negra é hipersexualidade? Como você vê essa questão? 01:04 É, eu nunca vi pesquisa, mas sabe o que eu percebo? A forma, a abordagem é mais dura, você percebe que os caras têm mais tranquilidade de falar coisas pra gente que eles não falariam... A sensação que a gente tem é que eles não falariam para outras mulheres, porque é meio desse imaginário “Ah! Ela gosta disso! Ela é meio safada, ela gosta.”, eu percebo esse tipo de abordagem, sabe, o cara vai com menos delicadeza talvez, não sei se a palavra é essa. Eu já percebi isso. Até assim, de modo geral... Esses dias eu estava na minha sala e a menina da faxina começou a conversar comigo, eu falei “gente por que ela tá me contando isso?”, ela começou a contar sobre a limpeza do banheiro, sabe essas coisas, tipo, tô falando com uma irmã e eu sou professora da universidade e ela não falaria... Sempre tenho essa sensação, “será que ela falaria dessas coisas com a professora que tá ali do lado?” Eu acho que não. O porteiro que te trata com mais informalidade, essa que eu acho que é a palavra, com mais informalidade, e acho que os homens de modo geral também e acho que os homens também, eles acham que precisam de menos trato com a gente do que com mulheres brancas, com a mulher branca eles tem que ser menos conciso, direto, mais sedutor, e com a mulher negra ele pode ir direto, porque é menos informalidade. Sempre sinto que tem uma coisa de informalidade presente com as mulheres negras. Eu sinto isso muito no trabalho, como eu tô num lugar que tem poucas mulheres negras, na universidade tem pouquíssimas mulheres negras, então, eu sinto muita informalidade pra tratar comigo, eu vejo ele me chamando de professora, por que ele não me chama de professora também? Por que que comigo a informalidade tá permitida?. Ai eu não sei do ponto de vista da sexualização se isso é... A minha experiência como mulher negra, não tem muita vivência desse tipo de abordagem. Não sei, acho que sempre fui uma mulher que assustei um pouco os caras, não sei eu tenho essa sensação, sabe assim?! Não chega muito perto, que não vai rolar. Mas eu acho que tem sim esse tipo de liberdade, sabe?! Uma liberdade maior 127


com a mulher negra, eu vejo muitas colegas minhas relatando “Pô! Será que o cara falaria isso pra outra mulher? Será que ele falaria desse jeito?”, eu acho que rola um lance desse, é essa ideia do imaginário mesmo, da mulher quente. Uma vez eu tava dando uma palestra, a mulher foi falar, pra exemplificar que não existe racismo, por exemplo, “nossos maridos, quando querem trair a gente, traem com mulheres como você”, isso ela tava achando que tava dando um exemplo de como não tem racismo e acho assim, que isso rola, se ela fala isso é porque rola isso entra os homens também, né?! É um universo que a gente nunca entra, e você pode falar Marcelo*, é o universo dos homens brancos, como é que a gente vai saber o que vocês pensam?

*(Nosso orientador Marcelo Câncio, que estava presente na entrevista)

E como é essa construção do imaginário em relação a mulher negra? 05:05 Ele se constrói em vários momentos da sociedade, na história que você estuda, nas imagens que você vê, no lugar que a mulher negra ta ocupando ou não. O Mister Brau, apesar de ser super legal, a Taís é a gostosona (sempre com roupa apertada)... Isso, então, a mulher... Se você olhar a imagem da mulher negra da modo geral, é essa mulher, a gostosa, a meio despudorada, acho que se constrói nessa rede de representações que a sociedade coloca. E uma negra pra se destacar ela tem que ser uma mulher escultural. Uma Carol da... Mc Carol, por exemplo, só apareceria como piada e como uma mulher, pra levar a mulher a sério, porque ela é gorda,

ela é preta, ela

é diferente do padrão que está estabelecido, mas o padrão que se estabelece pra mostrar uma mulher negra, é sempre dá gotosa. Gabriela cravo e canela, por exemplo, o que está no imaginário nosso da Gabriela cravo e canela? É uma mulher linda, maravilhosa, gostosa, sensual, sempre, toda produção literária dele, representa essa mulher negra é essa, né?! Pega o Cortiço, por exemplo, na literatura você vai pegar um monte, né?! (...) Por isso a mulheres negras batem tanto, porque são estereotipadas, né?! Porque aí são chamadas de radicais, associa essa ideia de que essa mulher é assim porque ela não tem um homem, por isso que ela faz essas coisas, mas acho assim, as coisas estão mudando, mas está devagar. 128


Maria José Gomes (Zezé/Baiana do Acarajé) Como você passou a se reconhecer como negra? 00:14 Desde criança sempre me vi negrinha, naquele tempo quando eu era criança negrinho nem era bonito, as negrinhas eram feias, feinhas mesmo, e eu sempre fui a feinha nunca fui bonitinha. Então, sempre em casa a gente falava... Eu já tenho o nome de negro mesmo, Maria José, já é um nome que lembra um nego ou uma nega. Aí em casa meu nome é Zezé, nome de casa é Zezé, minha família que me chama de Zezé, então, a gente sempre foi tratada, o pai, a mãe, trouxe a gente assim mais como negro, o negro que sempre fomos. Minha mãe era bem negra, meu pai era um pouquinho mais claro, mas era descendentes de negros também.

Já sofreu discriminação racial? Tem alguma história que você poderia nos contar? 01:08 Muitas vezes, desde de criança, adulto, agora, sofro. Outro dia mesmo no ônibus, eu fui me vesti toda, botei um turbantão, aí fui de ônibus, tava fazendo um curso de educadora social, lá no Banco do Brasil, falei, lá é difícil de estacionar, né?! Vou descer de ônibus. Aí entrei no ônibus, o motorista do ônibus olhou pra mim... Eu vi que na hora que ele parou já deu uma olhada diferente, falei “ele já gostou da minha cara”. Fiquei ali, sentei. Aí tava muito cheio lá, ai já fiquei logo no início, pra achar o cartão. Aí ele virou pra mim “essa é a última volta do ônibus, é o recolhe já” eu, “ai que bom né?!”, “pode ficar tranquila, não precisa nem passar”, bom vou ficar, atrás tá muito cheio. “Qual é a sua religião mesmo?”, falou pra mim, eu falei “por que?”, “ah! Porque vê uma negona assim que nem você, com um pano na cabeça. Você não é do candomblé não, né?! Você não é mãe de santo?” e ele também negro. Falei, “por que você tá perguntando?”, “só perguntando, só pra perguntar”. Então quer dizer, a visão que ele teve “hum, pano na 129


cabeça colorido, é uma mãe de santo, é uma negra que tá..” discriminação né?! E entre as pessoas, em todo lugar que eu vou, todas as pessoas olham pra mim, e já vi mesmo que sou uma negra, não escondo, eu uso turbante todo dia... Nossa senhora!

Para você, qual o significado do turbante? 02:45 Resistência. É a minha resistência. Desde criança eu sempre gostei de usar um paninho na cabeça. Antes a gente fazia, minha mãe ensinou fazer crochê, um lencinho de crochê, aí a gente usava na cabeça esse lencinho. Não usava como turbante, eu usava amarradinho aqui só e deixava o cabelo solto, sempre meu cabelo foi bem curto, aí depois que comecei ver nas revistas, a gente via na revista, nas novelas até que nunca observava muita coisa, muito difícil ver na novela algumas coisas, mais na revistas que eu via turbantes, as pessoas usando uma faixinha na cabeça, falava uma faixa, não falava turbante, ai comecei usar turbante e aprendi a amarrar, vi os tutoriais que tem no youtube. Aí comecei. Turbante é minha personalidade, cada dia eu quero colocar ele daquele jeito, não tem jeito, as vezes eu penso, hoje eu vou amarrar ele diferente, aí eu vou amarro de um jeito não dá, amarro de outro jeito, não dá, não é esse aqui que eu quero, é aquele lá! Aquela cor que combina comigo hoje, uma personalidade assim, que tem. Então hoje eu vejo, onde eu tô as pessoas olham, olham mesmo. E eu consegui conquistar espaço por causa do turbante. Já percebi isso. Sobre a questão da feira mesmo quando eu colocava aquela touquinha da feira, puta, aquilo ali deixa você acabada, então, vou colocar um turbante em cima que fica mais bonitinha, todo mundo olhava... você é baiana? Todo mundo assim, olhava mais, passava assim, destaca. Agora eu entendi, é o símbolo da resistência.

Poderia nos relatar alguma situação de racismo, que tenha te marcado? 04:58 Eu lembro quando eu cheguei aqui, eu nunca tinha ido no shopping, aí eu conheci uma menina que trabalhava na papelaria “Franco”, aí depois ela sumiu de mim, aí um dia eu liguei, ela falou, olha eu tô trabalhando aqui no shopping numa loja de material pra escritório. Ai eu falei “a hora que eu for aí, eu vou te visitar”, sem imaginar que um dia... 130


Aí cheguei lá, comecei a conversar com ela bacana ela, simpática atenciosa, aí chegou um cliente e procurou um produto lá, “ah! A gente não tem”, aí o cara saiu e deixou um bilhetinho, escreveu um bilhetinho assim e deu pra ela, ai dobradinho o papel, e o cara saiu e foi embora, um bonitão, aí ela olhou o papel, “cara cretino filho da puta”, começou a xingar, ne?! “O que ele falou? Falou palavrão pra você?”, fiquei assim... “Olha o que ele escreveu aqui... ‘parece uma macaca essa negra’” e mostrou o papelzinho pra mim, ele falou e saiu deixou o papelzinho dobrado, deixou o recado pra ela e saiu. Ela falou “não sei nunca vi ele aqui, primeira vez que vejo ele aqui”. Isso foi em 95/96, eu cheguei aqui em 94, é que eu fui no shopping a primeira vez foi em 95. Eu fiquei assim constrangida, pensei assim, o que eu tô fazendo nesse lugar aqui? Esse lugar aqui não é pra mim. O que eu vim fazer aqui? Eu saí mais chateada. Aí fiquei assim pensando, fiquei triste, aí ela falou, “não fica triste, não tem nada a ver, bobagem, esse cara é um ridículo, idiota, esse cara deve ser um vagabundo, desocupado”. Aí você fica assim... comecei a olhar para aquele shopping, “não tem ninguém que se parece comigo aqui, não tem nenhum negro aqui, não tem nenhuma negra aqui, lá atrás dos bastidores tem ne?! Limpando, fazendo comida, mas aqui passeando não tem ninguém. Era um dia de folga minha, não lembro, uma segunda, terça-feira, no meio da semana, pensei que eu vim aqui me divertir, voltei pior do que eu tava. Voltei chateada. Ai, eu fiquei muito tempo sem aparecer no shopping depois disso aí. Demorei um tempão até hoje eu quase não vou muito. Vou no mercado, dou um rodado no mercado, mas as lojas eu praticamente nem passo. No mercado sempre eu vou porque tenho que comprar algum produto para trabalhar, mas vou exclusivamente no mercado, mas passear no meio do shopping, no cinema, tal, raramente.

Você já sofreu racismo dentro de um relacionamento? 08:51 Essa do gaúcho mesmo. Fui lá no Sul, o povo “mas ela é moreninha né?! Ela é queimadinha” falavam pra ele, “ela é brasileira”, eles se relacionavam aos negros, como brasileiros, porque quando eles chegaram pra cá, quando vieram da imigração, o que tinha aqui eram os escravos, então os brasileiros eram os negros. Ele era da segunda geração, o avô dele era puro, o pai dele era puro e ele nascido aqui já, então, ele foi a 131


segunda geração que já nasceu aqui. Então, o povo assim olhava de um jeito. Na igreja também, “vocês dois não tem nada a ver”, pessoal da igreja olhava assim, o que que um cara desse tem a ver com você. Tinha aquelas irmãzinhas, que eram mais assanhadas e aí elas falavam assim, “você conhece a família dele? Já foi na casa dele? Você conhece toda a família dele lá do Sul?”, “conheço fui lá”, “mas eles aceitaram você?” Daquele jeito tipo assim... De uma maneira bem direta mesmo, não rodeavam, falavam, “é que esse teu marido, não tem nada ver com você”, falavam assim pra mim. Tem hora que eu acho também que não tem nada vê. Mas ele me tratava bem, de início ele sempre foi muito carinhoso.

Você se sentiu discriminada por esse marido? 12:27 Em relação a ele, eu percebia que ele não queria ter filhos comigo. Eu queria ter um filho ainda, eu estava com 40 anos, a gente se conheceu eu tinha 36, e eu falava “eu quero ter pelo menos um filho ainda” e ele não, não queria ter filhos, ele evitava ter relação comigo, ele evitava períodos longos, tipo, 6 meses, ele evitava mesmo, pra não engravidar, ele sabia que eu não tomava nem um tipo de remédio.

Você acha que era pra não ter filhos negros?

Eu acho, porque ele tinha um filho branco e ele era apaixonadíssimo nesse filho. E ele podia ter mais filhos, por que não? Nós vivemos um período longo, nós vivemos uns 5 anos e ele evitava. Eu me sentia mal, lógico, chega uma hora que você fala “poxa! A pessoa me trata bem, é carinhosa comigo, dorme abraçado comigo, me traz tudo que eu gosto, faz todas as minhas vontades, o que eu penso ele traz”. No domingo de manhã ele levantava bem cedinho, ia lá no mercado, “hoje você não vai fazer nada, você vai só descansar”, ai ele ia lá e trazia o pão, bolo, pudim, doce, pavê, fruta, enchia a mesa, fazia aquele café da manhã enorme. Aí pro chimarrão, ele sentava pra tomar chimarrão duas horas, todo dia tomando chimarrão, de manhã, a tarde, a gente tinha aquele período nosso de tomar chimarrão, que é a cultura dele. No domingo a gente ficava um tempão, e ele falava “não, 132


eu vou fazer a maionese, eu vou temperar a carne, eu vou acender o fogo, eu vou assar o churrasco, você depois só lava a louça se você quiser, se não nem lava a louça”, então, ele tirava o domingo para me agradar, podia dormir até mais tarde, a semana inteira fazia tudo que ele queria, no domingo ele me agradava, mas só que a hora que eu procurava ele, se recusava, não aceitava, eu ficava “mas por que é assim? Por que que demora tanto tempo assim? 2 meses, 6 meses. Você não é doente, você é uma pessoa saudável, o que que acontece?”, “Não eu não quero. Não quero ter relação.”, eu pensava “será que ele não quer ter relação comigo?”, a gente frequentava a igreja, a gente seguia mais o menos os mandamentos da igreja, né?! A gente tava junto, a gente trabalhava junto o dia inteiro, ficava junto à noite, não tinha assim, como falar saiu e fez alguma coisa com alguém. Aí eu ficava, por que isso? Então, ele se recusava mesmo era porque ele... Teve vezes que ele falou “mas você tá doente. O que que é isso? Teve relação ontem e já quer ter relação de novo? Pelo amor de Deus”. Eu ficava assim dum jeito que era... “Mas que merda esse cara, tudo tá ótimo, mas nessa hora não dava certo”

O que você aprendeu nesses relacionamentos? 00:25 É muito difícil a gente tocar sozinha, mas tem situação que é melhor você tocar sozinha, porque primeiro, você pode agir e fazer o que vem, o que tem, se você conseguir manter a dignidade, pra não se prostituir, não cair em situação de roubo, então, eu sempre mantive a dignidade. Não é fácil, é difícil, mas vale a pena, vale a pena mesmo.

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Maria de Lourdes Silva Nome do vídeo: DSC 2557 (vídeo 1)

Poderia começar se apresentando?

Meu nome é Maria de Lourdes Silva, sou conhecida como Lurdinha, sou professora da UEMS, professora de história da educação, educação étnico-raciais, gênero e educação, políticas públicas. Sou professora desde 1981, começo na educação básica e em 2000, inicio na educação superior, onde estou até hoje. Minha formação é pedagogia, pedagogia com especialização em orientação educacional. Aí mais tarde em 2001 a 2004, fiz Mestrado em Educação na UFMS e em 2013, fiz Doutorado em Educação na UFSCAR

Nome do vídeo: DSC 2558 (vídeo 2)

O número de pessoas que se autodeclaram pardas e pretas aumentou significativamente nas estatísticas do IBGE. A que se deve esse aumento? Nós passamos por um processo que demarca a partir da saída da ditadura em 1985 e nós trabalhamos por processos mais democráticos. E o movimento negro não ficou a parte nessa história, o movimento negro constituído no Brasil, ele foi também buscando essas alternativas de uma sociedade mais democrática, inclusive racialmente. Aí nós viemos com um processo todo, 2001 nós tivemos a Conferência Internacional de Durban contra o racismo, intolerância e toda forma de intolerância correlata, de todo um termo. E nós no Brasil, também um marco importante a constituição de 1988, quando o censo de dizer a raça, ele foi recuperado, ele foi colocado também como pauta para o IBGE. Neste momento também que nós temos os 100 anos da dita abolição da escravatura. 134


E neste movimento todo, movimento negro, movimentos sociais, movimentos pós-ditadura militar, reivindicando esse direito dessas pessoas, de todas as pessoas que estavam a margem das conquistas e dos bens produzidos por nós todos, então essas são as principais marcas. Em 1988, nós temos uma larga campanha de assumir a raça, dizer ‘eu sou preto, eu tenho orgulho de ser preto’, então a gente começa ali. Aí a gente vem, depois disso, Durban. De Durban, começa um movimento na UERJ pelas cotas na Universidade Estadual do Rio de Janeiro, pelas cotas universitárias. E com isso nós tivemos também políticas e iniciativas que dessem conta dessa parcela da população que tinha sido muito tempo alijada dos processos. Então, a gente começa a exigir, por exemplo, que nos comerciais de TV, nas novelas tenha uma parte ou pessoas representando esse grupo, a gente vai crescendo nisso. E nós temos em 2003 a lei 10.639, que é a lei educacional de ações afirmativas para Educação Básica, a inserção da história e cultura negro, afro-brasileiro e africano nos currículos escolares. E com isso, a gente começa a mexer também com a autoestima das pessoas, então foram vários programas, tipo assim, fundação Ford, por exemplo, mestrado e doutorado para a população negra, indígena e empobrecida, então nós tivemos uma gama de profissionais na academia que foram formados por essa oportunidade. E aí, de uma certa forma, algumas pessoas não gostam, mas eu acho que eu não tenho problema com isso, que é o empoderamento da população negra em termos da sua autoestima e as leis foram assegurando essa possibilidade. Então, hoje ninguém mais xinga de macaco no estádio ou em qualquer situação e vai sair impune disso e a gente tem um monte de dificuldades, a gente não tá no paraíso. Mas hoje a gente tem a condição de dizer não para essas coisas e aos grupos que são do nosso pertencimento, dizer assim ‘nós podemos’, então mudou muita coisa. A gente já teve um presidente no maior país do mundo, no país mais poderoso do mundo, um homem negro, quantas referências a gente tem no tênis, no automobilismo, no Óscar, a gente tem algumas referências que tem ajudado as pessoas a se identificarem. É claro que a gente entende também alguns processos em que as pessoas acham que vão ser privilegiadas em algum espaço das ações afirmativas, que na modalidade de cotas para negros, pretos e pardos 135


nas universidades. Mas eu acho que não é só isso não, a gente tem visto a identidade afro-brasileira muito presente em muitos espaços, então é muito mais comum você chegar e ver um monte de gente cacheada, meninas muito novas, rapazes muitos novos com seus drads, seus empoderamentos. Eu tô numa situação de encantamento. Tem um grupo de meninas de Dourados que eu viajei com elas pra Niterói e fiquei extremamente encantada, que eu não tinha me dado conta desse assumir, de assumir-se negro, assumir-se preto e pardo. E outra coisa, eu tenho muito contato com grupos de alunos negros da UFMS aqui em Campo Grande e são pessoas assim muito bacanas, muito conscientes, muito responsáveis por aquilo que eles estão divulgando e muito responsáveis por essa solidariedade que a gente precisa fortalecer nos grupos afro-descedentes, afro-brasileiros negros

Nome do vídeo: DSC2559 (vídeo 3)

Percebemos o aumento da figura do negro na mídia brasileira. Poderia comentar a importância desse aumento? Isso eu vejo em dois viés. Existe um comprometimento, que também é um comprometimento político e transformações sociais e tem um comprometimento que a pessoa ainda não se deu conta do que ela representa, do que é nossas crianças negras, pretas, pardas, cacheadas veem na televisão uma Taís Araújo, a Maju no jornal e tudo mais. Então, isso cria uma responsabilidade muito grande das gerações mais velhas para as gerações futuras e representatividade parece um lugar-comum, parece uma fala meio clichê, mas representatividade importa, importa sim. Eu estava falando e ouvindo uma entrevista que eu dei em 2012 por aí, para um aluno nosso em que ele falava, que eu embora, não com arrogância, mas eu sabia muito bem o sentido de chegar eu professora negra, agora doutora numa sala das Letras, numa sala da Pedagogia, numa sala da Geografia e conseguir fazer um trabalho comprometido, responsável, academicamente ético. Eu sei, eu tenho tomado consciência do que isso significa pros alunos negros que estão lá, para os negros e para os não negros. E sei que ao me identificar-me, eles vão dizer, ‘ela pôde, ela conseguiu, ela chegou. Isso também 136


eu posso’. Por que o lugar reservado para as pessoas negras vem muito demarcado às vezes e isso é materializado nesses espaços sociais, nesses espaços de convívio. A gente precisa avançar muito, mas a representatividade importa e cada um negro consciente dessa representatividade é importante. Glória Maria já se deu conta disso, Taís Araújo já se deu conta disso, Lázaro Ramos já se deu conta disso, a Maju já se deu conta disso. Então com essas possibilidades, buscando as oportunidades é que a gente vai conseguir buscar espaço, não ocupação de espaço simplesmente pra trocar, é importante que nessa mobilidade ou nessa nova forma de organizarmos socialmente que seja importante que também tenhamos uma conduta diferenciada (barulho de alarme de carro). Aí, a gente bate naquela tecla, não basta ser preto, não basta ser negro, mas que ser humano você é quando você conquista um espaço? Como é que está a sua capacidade de estender a mão pros outros? Como é que tá o exercício de sister Hunter, que é um termo estadunidense, nascido também nessas questões afro-americanas de dizer ‘estenda a mão pro outro, também dê oportunidade pro outro’, seja de qualquer pertencimento, seja ético, seja respeitoso, porque não basta ser só negro, ser negro e continuar fazendo as mesmas coisas? Não, é preciso ser negro e consciente de mudança de postura diante da vida e diante dos outros, aí sim representatividade importa e importa muito. Nome do vídeo: DSC 2560 – vídeo 4

Maria, nós entrevistamos várias mulheres e a maioria relatou que sofreu racismo na escola. Você que é educadora, qual é sua visão para que a escola e os pais fortaleçam a autoestima da criança negra? Nós vivemos, todas nós temos uma experiência de abandono afetivo. A primeira coisa que eu acho que foi importante para minha construção identitária mulher, de mulher negra era o fato de ter uma família acolhedora. O mundo me batia, mas eu voltava pra casa, eu tinha uma mãe, que embora semi-analfabeta, mas tinha um posicionamento diante da vida e diante do ser negro que foi fortalecendo a todos nós.

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Eu tive um pai que ele era um orgulho pra todos nós, ele era o orgulho da cidade, pelo fato da postura de ser correto e desse carinho e desse acolhimento, então a primeira coisa eu penso que passa por esse núcleo familiar. E assim, apesar que a gente tem que analisar que família a gente tem hoje. Eu, nós, não sei, a maioria das pessoas tem pai, mãe, irmãos e tal. Hoje a constituição é diferente, mas eu digo que embora seja diferente ou ainda bem que é diferente, mas que tenha essa capacidade de acolhimento e fortalecimento identitário. E a escola tem me tirado muito o sono, tem me tirado muito o sono, tem me incomodado porque é a mesma escola do tempo que a gente estudou, é a mesma escola que discrimina, é a mesma escola que o professor ajuda a discriminar, é a mesma escolar que o diretor vai punir quem for já humilhado, quem foi injuriado, então é a mesma escola em que tem um grupo de pessoas que se coloca como superior e querendo inferiorizar grupos. Essa questão da escola, eu fui ficar mais um pouquinho fora do eixo quando foi ano passado no 20 de novembro, a gente numa roda de conversa com as meninas, com as crespas e cacheadas. Embora crespas e cacheadas, tem pessoas também de outros pertencimentos étnicos-raciais, mas a maioria se constitui de meninas negras ou mestiças, mestiças a negras, pretas e pardas e aí o que ocorre? Naqueles depoimentos eu fiquei estarrecida ao perceber que as práticas continuam as mesmas e com requinte de crueldade. Ouvi de meninas lá, de por chiclete na carapinha, o fato de a mãe ter uma posição social, chegar com certo carro, a pessoa ficar questionando se era do patrão ou da patroa e outras coisas, isso em escola pública e escola privada. E quando uma das moças contou que saiu da escola particular e na escola pública piorou, aí que eu fiquei mais incomodada, porque eu sou fruto de uma escola pública, eu trabalho em uma instituição pública com um monte de gente que veio da escola pública. Eu fui apurar meu olhar e apurar meu ouvido para essas escutas, então meninas, meninos e quando combina a orientação sexual com o fato de ser preto, é um processo extremamente cruel. E quando combina o preto, o gay e a convicção dos pais e da família, uma convicção religiosa mais conservadora, é um extremo sofrimento. Isso que a gente tem ouvido e são pessoas que estão na escola. 138


Eu tenho ido à Furnas de Dionísio por conta de um projeto que a gente tem de Educação Quilombola e que eu tenho percebido? A escola é dentro do Quilombo, é uma escola pública dentro do quilombo, então com lei 10.639, com Educação Quilombola formatada para exercitar, você entra numa escola que as pessoas que administram, tornaram uma escola comum e é uma escola onde o aluno negro, a maioria negra, a maioria descendente de Dionísio, eles não se veem. Os cartazes das portas são meninas loiras de rabo de cavalo e de maria-chiquinha. As pessoas que estão organizando a escola, que estão lá trabalhando, são pessoas não-negras e aí tão fazendo uma outra coisa que não é Educação Quilombola e com isso não se permite o orgulho de pertencimento e uma apropriação da própria história. Eu considero isso muito sério, nós estamos lá, não sei ainda o que vai dar. E as pessoas que estão trabalhando lá, não se dão conta disso. A gente tem uma ou duas professoras que são do Quilombo, que são dali de Furnas do Dionísio e durante algum tempo elas ficaram silenciadas. Com o projeto, elas estão ganhando voz de organização, porque a gente chega lá e quer falar com elas, nosso compromisso é com elas, é também um compromisso com os alunos negros de lá. Outras experiências de educação básica, ontem falava com um aluno via Messenger e ele ‘professora, eu tô numa escola assim, os alunos são alunos em conflito com a lei e tal, mas eles se maltratam muito, eu quero fazer alguma coisa’. E esse menino é não-negro e esse ‘eu quero fazer alguma coisa’ é importantíssimo, porque as vezes as pessoas querem fazer alguma coisa e não conseguem um apoio, ou alguém para orientar ou alguém pra falar ‘vamos fazer, vamos juntos’. Eu não vou lá dar aula, não vou lá dar palestra, mas eu posso ser o apoio que essa pessoa precisa para se instrumentalizar frente a uma problemática extremamente difícil, de não se reconhecer, de achar que apelido é normal, de achar que igual, nós somos iguais mesmo e nosso destino é esse, essa coisa meio predestinada. Então, a escola, eu tenho assustado muita gente quando eu digo isso, em termos de relações humanas é extremamente hostil. E é um campo difícil de se abrir, que aí a gente vai pensar na formação de professores. A maioria dos professores que estão aí, são professores formados em época de ditadura civil militar, em cursos às vezes aligeirados, às vezes sem muito compromisso. 139


As pessoas também têm uma necessidade desse aligeiramento, porque se você pensar hoje numa categoria profissional relativamente segura, é a categoria docente, é a oportunidade que as pessoas têm de mais rápida mobilidade social e econômica. Tem essa coisa de mercado, tem essa coisa ligada ao Brasil Colônia, de ser missão. Então ser missão pode ser qualquer jeito, pode ser mal pago, ser missão pode não pensar no outro e aí vem a questão da metodologia, vem a questão do currículo. Por que o que a metodologia ensina? Pra esse grupo que tá aí um tempão, pra esse grupo que vem sendo formado, eu tô dizendo grupo docente, vem sendo formado e vem reproduzindo, que aula é preleção do professor, repetição e leitura do aluno e prova. Qual o espaço do diálogo que a gente tem? Diálogo das nossas coisas? O que assegura uma didática, uma modernização dessas relações? Então vai sendo reproduzido, vai sendo reproduzido e as desigualdades também, reproduzidas e perpetuadas pela escola. É importante que a gente continue revendo outros processos de formação de professores com essas temáticas, que a gente hoje já não pode dizer que são novas temáticas que chega à educação. Então, meio ambiente, raça, gênero, condição socioeconômica, relações homem e mulher, relação filhos, crianças, pessoas com deficiência, faixa etária, idosos, isso já não é mais tema novo, mas são as formas que a gente tem de existência e isso tem que fazer parte daquilo que a escola ensina, trabalha e trata. Nome do vídeo: DSC 2562 – Vídeo 6

Quais problemáticas afetivas que as mulheres negras enfrentam?

... E ela mesma sendo assediada. Quarto de despejo tem um trecho que um vendeiro estava de olho nela, mas de olho pra que? E aí, essa questão, penso assim que a consciência disso não é pra entristecer, mas pra fortalecer e de uma certa forma não esperar muito desses grupos sociais. Porque nessas questões de constituir família, de um desejo mais romântico criado pela sociedade ocidental, isso vai ser muito mais difícil, porque até as próprias mulheres negras em suas raízes, elas também não foram criadas nesses contextos, são contextos mesmo de enfrentamentos, enfrentamentos duros. Enfrentamento à escravização, aos desejos, assédios e às violências dos patrões. Aos 140


assédio e violências enfrentados e enfrentando pra proteger maridos, pra proteger companheiros, pra proteger seus filhos, então quantas coisas não foram feitas por mulheres negras no sentido mesmo de buscar uma saída para essas situações. Aí vem a característica da mal amada, vem o termo grosseiro da mal comida, como se isso fosse definidor das questões das mulheres negras e as mulheres negras passam por um processo solitário porque elas criam os filhos sozinhos, as estatísticas estão aí. Elas passam por um processo solitário quando tem um orçamento apertado porque tem que segurar a barra de algum familiar e sozinha. E ela passa por um processo apertado porque também está mais exposta aos assédios e a essa mentalidade racista, machista, misógina, patriarcal de querer coloca-las em certos lugares em benefício próprio ou não, em benefício de quem quer submeter e não quem é submetido. As relações são realmente difíceis, às vezes você tem expectativas em relação a pessoa e essas expectativas nunca vão ser respondidas, porque agora ainda inventaram essa coisa do ‘não dizer’. Então aí, se não diz, como tá num contexto, você imagina, mas só que esse contexto imaginado, você tem que guardar pra você, porque não é isso que a outra pessoa quer. E tem outra coisa, as relações altamente parasitárias, assim, parece meio livros de autoajuda, mas altamente sugadoras de energia. Aí tem o livro do Padre Fábio de Melo, “sequestradores de identidade”, que submete a mulher aquele ‘não ser’ e quando ela tenta alguma saída, a pessoa vem tentando coisas que não tem pra oferecer. A mulher negra, ela vem sendo chamada de uma certa forma a ser forte e muito mais forte, pra compreender seus processos, pra compreender de onde vem e pra enfrentar isso com muita cabeça erguida. Nome do vídeo: DSC 2563 – vídeo 7

Por que tem esse estereótipo sexual sobre a mulher negra? Tem um livro da Maria Lúcia Moti ou Jacomine, não lembro. Uma das questões que eu penso que pode ser um princípio de uma análise é o fato de que primeiro, a condição era mesmo de mercadoria.

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A revolução de 1932, há a ideia de que a mulatice era uma coisa linda e celebrada e essa mulatice abandonou os estupros, ela não trouxe consigo os estupros, as violações de direitos, ela não trouxe nada com isso. E de uma certa forma, nós embarcamos nesse processo cultural extremamente complicado, como por exemplo a dança, com o carnaval, com outras formas de manifestações culturais mesmo. Se a gente pensar, eu vendo uma reportagem outro dia de umas mulheres da Cabília, que é uma região da África. Os corpos são desnudos, seios de fora, corpos cobertos com argila, uma outra forma de se posicionar, daí a existência desse corpo. E isso, o olhar sobre o outro, que é o olhar Ocidental... mas é um olhar já contaminado por outras coisas ao ver isso, acha que é uma exposição, porque olha, presta atenção, as mulheres ocidentais, se a gente for estudar ali depois da Idade Média, como que eram as roupas? Compridas e tudo mais e enquanto as mulheres estavam desse jeito pela condição do Ocidente, se organizar assim, as mulheres negras, como escravas, como mercadorias, como coisas, com os corpos expostos até para evitar fuga e um monte de outras questões que podiam aparecer e aí o que acontece? Isso já é Sônia Jacomine. A Sônia Jacomine diz que uma das coisas que acontecia era o fato dessas mulheres, sobretudo aqui no Brasil Colônia, toda coberta e como elas tinham, não tomavam muito sol, como elas tinham muitos filhos, tinham filhos um atrás do outro, acabavam engordando, a flacidez. Como a cultura era de muito doce, então caía muito os dentes, por conta de cárie e essas coisas. Depois eu falo o nome do livro da Sônia Jacomine, é a primeira experiência de tentar falar de mulher negra no Brasil. Aí, a autora expõe o seguinte, que nesse caso, as mulheres estavam na labuta, já não eram poupadas, iam pra cana-de-açúcar e essa atividade física fortalecia os músculos, a musculatura ficava muito bem exercitada e com as roupas poucas, com poucas roupas porque eram as condições das escravizadas. Aí o que acontece? Os homens, os senhores, os filhos dos senhores se aproveitavam disso pra poder abusar, abusar mesmo. Não vou dizer que essa erotização.. mas eu penso que a erotização é um direito de quem quiser fazer, agora o nosso problema é dizer que só aquela categoria, que só aquele grupo que é erotizado, aí é que está a questão.

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E ter desejos, sensações é direito das pessoas, ser sexualizado é um direito das pessoas. Agora essa exposição que é complicada e o Brasil até hoje aposta nisso, com Globeleza, com algumas figuras, não quero entrar na polêmica do funk, porque eu acho que já tem algumas coisas que já foram proibidas, o samba foi proibido, a capoeira foi proibida e hoje se estabelece aí como cultura popular brasileira, cultura afro-brasileira com muita força. Mas existe um movimento para essa erotização e aí a erotização não permite que as pessoas pensem. Pensem em processos políticos, pensem em processos de alijamento, pensem em processos de inferiorização por exemplo. Então, muitas meninas, muitas jovens se acham o máximo porque sambam bem, pelada e essas coisas todas. Eu não tenho problema com isso, o problema é você não ser responsável por aquilo que você espalha por aí. Aí você vai criando, fortalecendo a obrigação de um outro que não quer, por que é negra precisa sambar? Por que é negra, precisa cozinhar? Por que é negra, precisa né? É a mesma coisa. Todo árabe bate em mulher? Todo árabe é um homem bomba? É quase a mesma coisa. E assim, a gente tem que pensar nisso, no carnaval, em certas danças e essa cultura ocidental. Olha o balé por exemplo, é meia, sapatilha, aquela coisa toda. Aí você vê por exemplo, uma dança senegalesa, é o pano amarrado, descalço os pés, o corpo, tudo muito livre. Não tá errado, é a diferença que tem, o quanto que nós não perdemos em não ter aprendido também essas experiências indígenas e africanas. Enquanto isso, as nossas bailarinas vão acabando com os seus pés nas sapatilhas lá, porque tem que ficar de ponta e tudo mais. Não é errado, não é feio, não é isso, não to falando da questão plástica, da questão estética, eu dizendo que ninguém erotiza por exemplo uma bailarina. Até os contos são diferentes, pega o enredo de um balé e pega um enredo de um samba. Então, tem as suas contribuições, tem o seu valor, tem o seu lugar, mas existe uma preservação da mulher não negra que não existe com relação à mulher negra. A mulher não negra, ela vem com aquela ideia ainda da candura, uma ou outra escapa dessa designação, mas a mulher negra não, ela vem enfrentando, já vem enfrentando tudo o tempo todo, o tempo inteiro. 143


E a mulher não negra, ela é meio que preservada, então ela é a Bela Adormecida, ela é Rapunzel, ela é a que precisa.. é a mãe que doa, que cria. Ela e a esposa amorosa, que vai precisar do dia 12 de junho para receber as flores e aquelas coisas todas, tão entendendo? Então, a mulher não negra, consegue ser definida em alguns processos pelo patriarcado. É o patriarcado que diz, o que ela deve ser, o que ela deve fazer. Claro que tem as brechas, tem gente que fugiu disso. E a mulher negra, o patriarcado faz coisa diferente, ele não iguala, mas ele não poupa. Então, o corpo da mulher branca tem que casar virgem, preservada igual a virgem Maria, mas a negra não, a negra ta aí pra isso. Aí eu transo com a negra, tenho filhos com ela, mas eu me caso com a não negra, essa vai ser apresentada na sociedade, essa é a mulher maravilhosa e as mulheres negras ficam lá chorando, sofrendo e perguntando ‘por que não eu?’ Nome do vídeo: DSC 2564 – vídeo 8

Na literatura é realmente isso, a branca é representada com a figura pura e materna e nunca a negra é mãe Sim, porque as crias eram gado. Se a gente for pensar na escravização, a gente tem uma outra referência que a gente não conseguiu ainda mapear. Acho que a gente ainda tem tentado mapear as experiências africanas em espaços africanos negros e a mulher negra nunca foi mãe no Brasil Colônia, Império e República. A mulher negra nunca foi mãe, ela vira mãe de leite para sustentar o filho da outra, que por alguma coisa, a Angela Davis fala disso também, que alguma coisa acontece que a mulher branca resolve que ela não tem que amamentar, que ela não quer amamentar e passa a responsabilidade para a mulher negra. E na literatura é muito difícil você localizar a história de uma família negra, de uma família negra com luta, com trabalho, com desafios, com conflitos. E quando eu vejo algum discurso na televisão com gente pensando educação escolar como uma educação de maneira geral, eu fico muito preocupada quando eles dizem ‘é a família, os pais’, mas essa mulher também não foi dada a condição de ser mãe, ela não foi dada a essa condição, ela foi criar os filhos dos outros e não os dela.

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E geralmente as mulheres negras hoje, eu sou um exemplo delas, você fica muito mais preocupada com os filhos dos irmãos, os sobrinhos, porque... no meu caso foi uma decisão, ‘não vou ser mãe, não quero ser mãe’, mas você fica em função dos filhos dos outros. E aí se a gente for pensar ainda assim, na educação infantil, hoje de manhã, tava ligada na televisão e um programa de uma moça negra, gostando de ser professora e professora da educação infantil. Aí eu fiquei pensando ‘será que é esse prazer todo?’, porque essa história de educação infantil, ela tem muito essa característica de quem cuida, de quem educa, quem dá banho, quem lava a bunda de coco, isso tá muito presente. E a sociedade aceita facilmente isso. Mas aí a hora que chega os graus tidos como superiores, a coisa já muda. E dependendo de algumas disciplinas, hierarquicamente colocadas, há dúvida sobre a capacidade intelectual e desempenho profissional dessa professora, então parece que ela tá ali só pra cuidar mesmo dos filhos dos outros.

A mulher negra é sempre vista como um ser forte. Você acha que essa visão contribui para que ela seja preterida e hiperssexualizada?

Pra tudo! Essa invenção de que a mulher..eu queria saber quem inventou isso, não só a mulher negra, toda pessoa negra ... É uma invenção, um folclore, acima de tudo seres humanos. E aí a mulher negra com essa idealização negativa, porque as pessoas acham que é positiva, acha que aguenta tudo, inclusive afetivamente, acha que aguenta tudo, aí são as mulheres que vão lá ter filhos em situações de parto altamente doloroso, deprimente em questão mesmo de abandono. Aí a pessoa está lá de braço quebrado e não pode gritar tem que ser forte e são as mulheres negras que mais escutam de algumas pessoas da saúde que nem sempre tem médicos para atendê-las, que quando estão gritando “tá gritando porque tá doendo agora, não foi gostoso pra fazer”, então é comum a gente escutar isso e soa horrível, isso

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é horrível. A gente sabe por exemplo, achei muito interessante vendo a Bela Gil dizer “não, dói pra caramba”, ela dizendo que é uma dor louca mesmo. E as mulheres negras são submetidas a essas dores e a essas questões e de preferência que não reclame, porque o tal do dito que ‘é forte’. Isso é negativo até porque no quadro das representações, é complicado, aí vem uma pessoa negra e outro fica assustada “aquele negão vai fazer alguma coisa comigo, vai pegar, vai bater, porque ele é forte”, isso é muito ruim pra todos nós e a gente perde a oportunidade de entender as dores e os desafios dos outros. A dor de ser mulher, não só no parto, mas também as dores que todas as mulheres são submetidas e não tem essa de ser o mais forte. E vem a mesma linha de que um grupo é frágil e o outro é forte e um grupo por ser frágil precisa ser protegido e o outro é muito forte, por isso pode ficar a deus-dará. Eu lembro daquele filme ‘À espera de um milagre’, que tinha um artista, ele é muito grande. E a fragilizada demonstrada diante das injustiças que ele sofreu. Aquele homem grandão chorando, aquele homem grandão sendo solidário, tendo uma delicadeza, com trato, com pessoas que até estavam o maltratando. É a questão dos suicídios, do tirar a própria vida e dessa morte de não querer mais se cuidar, não querer mais se tratar.. é uma experiência que pode se transformar em coisas muitas sérias, em termos de saúde mental. Taí a Neusa Santos, psiquiatra brilhante, negra, escreveu o livro ‘Tornar-se negro’, que todo mundo deveria ler. Neusa Santos, psiquiatra brilhante, cuidando da mente de todo mundo, não suportou. Será que é essa força? Acabar com a própria vida?

Uma das nossas fontes relatou que o marido propunha mil fantasias e fetiches fora do comum, para que ela realizasse. Nisso, ela comentou que os homens veem a mulher negra como uma mulher sem pudor sexual nenhum. É, é vem com essa expectativa, eu por exemplo, eu tenho algumas reservas e como qualquer pessoa, tem algumas coisas que eu não topo. Essa coisa de internet, namoro, minha última experiência de namoro à distância, o que acontece? Daqui a pouco o cara ativista, petista, um monte de coisa, e tá pedindo nudes, que é uma coisa complicada. A questão não é só de não confiar no outro, a questão é o que pode acontecer com uma imagem dessa. 146


E vem dessa forma mesmo, a pessoa se aproxima achando que você gosta do arriscado. Acho que ficam criticando lésbicas negras, porque há ideia do fetiche, da brincadeira, parece que tem que sair dos acordos naturais. E o pior é que o prazer é do outro, porque quando você faz uma coisa forçada ou que não tá dentro daquilo que você gosta, que te dá prazer, aí você pelo prazer do outro, simplesmente é muito frustrante, porque em determinada hora, você olha ‘que é que eu tô fazendo aqui?’ … Tem coisa que não tem o porquê, mas quer fazer da mulher negra que ela tenha obrigação disso, muitas vezes não existe um toque no despertar, não existe uma carícia no seu corpo, uma tentativa pra se ter uma ação boa a dois, a pessoa só está interessada mesmo em se satisfazer e com essa imaginação. Isso é tão fácil, tem profissionais pra isso, liga lá, fala o que quer, mas fazer da esposa, da namorada, companheira esse tipo. Outra coisa, os xingamentos, que se quer puta, por que não foi transar com a puta? Com todo respeito as profissionais do sexo, aí quer falar esse tipo de coisa no seu ouvido, aí quer dar as palmadinhas e é horrível. Eu já terminei dois relacionamentos exatamente por isso, não me chama de puta, eu não sou e não pretendo ser, eu sou uma mulher de desejos que quer estar também com um cara de desejos. O que acontece ali, a maturidade que vai dizer. E as mulheres, relações, são aquelas que você esquece que você tem uma cor, que até que você tem uma vida, uma coisa mais controlada e é isso, é isso que constrói. Agora essa coisa de vir com a mulher negra e ter uma expectativa altamente sexualizada e erotizada e tem outra questão, a fantasia é bom pros dois, eu sou do tipo que não gosta, eu sou muito da realidade. E muitas mulheres também não vão gostar disso. E assim, pra satisfazer o homem, pra satisfazer aquilo que ele quer e a pessoa nem te toca direito e quer tudo, aqui ó

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