Retratos da Comunidade São Benedito

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS CURSO DE COMUNICAÇÃO SOCIAL - HABILITAÇÃO EM JORNALISMO

RETRATOS DA COMUNIDADE SÃO BENEDITO

PRISCILA DE OLIVEIRA RIBEIRO

Campo Grande NOVEMBRO/2013


PRISCILA DE OLIVEIRA RIBEIRO

RETRATOS DA COMUNIDADE SÃO BENEDITO

Relatório apresentado como requisito parcial para aprovação na disciplina de Projetos Experimentais do Curso de Comunicação Social – Habilitação em Jornalismo da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul.

Orientador: Prof. Msc Silvio da Costa Pereira

UFMS Campo Grande NOVEMBRO DE 2013


Página destinada ao PARECER da banca avaliadora, que documentará a nota final da disciplina. O(a/s) aluno(a/s) e os membros da Banca assinarão após tomarem conhecimento do Parecer (aprovação, reprovação, recomendações, etc.


SUMÁRIO

Resumo .......................................................................................................................4 1 - Alterações no plano de trabalho .............................................................................5 2 - Atividades desenvolvidas .......................................................................................6 3 - Suportes teóricos adotados ..................................................................................23 4 - Objetivos alcançados ...........................................................................................33 5 - Dificuldades encontradas .....................................................................................35 6 - Despesas (orçamento) .........................................................................................38 7 - Conclusões ...........................................................................................................39 8 - Apêndices .............................................................................................................40 Entrevista com Eurides Antônio da Silva ..............................................................40 Entrevista com Neuza Jerônima dos Santos ........................................................43 Entrevista com Lúcia da Silva Araújo ...................................................................55 Entrevista com Sérgio Antônio da Silva ...............................................................64 Entrevista com Otávio Gomes de Araújo .............................................................81 Entrevista com Luzia de Arruda Silva ..................................................................94 Entrevista com Geraldo Pereira Graciano ...........................................................98 Entrevista com Vânia Lúcia Baptista Duarte ......................................................102 9 - Anexos ...............................................................................................................113 Título de Cidadã Campo-grandense de Eva Maria de Jesus ............................113 Árvore genealógica parcial da família de Tia Eva ..............................................114 Divisão do Sítio de Tia Eva (Década de 80) ......................................................115 Lotes adquiridos por pessoas de fora da comunidade (1985 a 2007) ..............117 Lotes dos descendentes de Tia Eva (2009) .......................................................119


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RESUMO: Este trabalho teve por objetivo produzir um livro-reportagem fotográfico sobre a Comunidade Remanescente de Quilombo São Benedito, de Campo Grande, Mato Grosso do Sul. O núcleo foi fundado em 1905 pela ex-escrava Eva Maria de Jesus, nascida em Mineiros (GO), e desenvolveu-se juntamente com o município. Ele é conhecido por organizar anualmente a tradicional festa em homenagem ao santo padroeiro. O trabalho foi realizado a partir de uma pesquisa e do registro cotidiano dos moradores e descendentes de ‘Tia Eva’, não apenas durante a festa, como também em outras épocas do ano, por meio de fotografias, entrevistas, observação direta e pesquisa bibliográfica.

PALAVRAS-CHAVE: Comunicação – fotojornalismo –Tia Eva - UFMS – Campo Grande.


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1-

ALTERAÇÕES DO PLANO DE TRABALHO

Não houve alterações significativas no plano de trabalho.


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2- ATIVIDADES DESENVOLVIDAS

2.1 - Período Preparatório: O período preparatório começou em março. Logo após eu1 escolher que o trabalho seria realizado na Comunidade Tia Eva. A primeira etapa foi a busca por materiais bibliográficos a respeito do tema, até então pouco conhecido por mim. Inicialmente, acessei artigos e trabalhos acadêmicos na internet e depois consultei publicações na biblioteca da UFMS e arquivos da hemeroteca do curso de Jornalismo. Como eu decidi trabalhar com fotografia, convidei o professor Silvio da Costa Pereira, especializado na disciplina em questão, para orientar o meu Trabalho de Conclusão de Curso. No início do primeiro semestre de 2013 me matriculei na disciplina ‘Oficina de Fotografia I’, ministrada pelo professor Helio Godoy, do curso de Artes Visuais. O objetivo era voltar a fotografar e exercitar as técnicas que havia aprendido há quase três anos no curso de Jornalismo. Para isto também comprei uma câmera digital amadora avançada, utilizada nas atividades práticas. Como o trabalho seria realizado na Comunidade Tia Eva, era de suma importância acompanhar a tradicional Festa de São Benedito, que acontece no local todos os anos, no mês de maio. Mas para isto, além de treinar as técnicas fotográficas, eu ainda precisava me aproximar das pessoas que vivem no local e seriam minhas fontes. Quem me ajudou a estabelecer este contato com a comunidade foi o professor Edson Silva, também do curso de Jornalismo. Ele orientou diversos trabalhos acadêmicos na Vila São Benedito. Por isso já havia estabelecido uma relação com os moradores e conhecia a dinâmica do local.

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Escrevi esta parte do trabalho em primeira pessoa, diferentemente do restante, porque descrevo minhas experiências. Acredito que assim os relatos ficam mais fieis aos acontecimentos.


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2.2 - Execução: 2.2.1 - Primeiro contato com a Comunidade A minha primeira visita à Comunidade São Benedito foi em 20 de abril de 2013. No dia 19 eu liguei para Lúcia da Silva Araújo, presidente da Associação Beneficente dos Descendentes de Eva Maria de Jesus, e ela concordou em me receber. Neste dia, a Comunidade estava movimentada, pois as famílias se reuniram para organizar os preparativos para uma festa de aniversário de 15 anos. A conversa aconteceu no salão de festas ao lado da igreja São Benedito. No local funciona a sede da Associação, que nesta tarde dava espaço a um bazar beneficente. Entreguei à Lúcia um ofício que solicitava apoio à realização do trabalho e ressaltei que após a conclusão do TCC, deixaria uma cópia com a comunidade. Ela foi muito atenciosa, me acompanhou em um breve passeio para conhecer o bairro e até me mostrou alguns documentos da demarcação das terras, convidando-me para a reunião com os representantes do INCRA no fim de semana seguinte. Foi neste dia também o meu primeiro contato com a dona Neuza Jerônima Rosa dos Santos, importante personagem da comunidade e muito respeitada por todos. Ela é tataraneta de Tia Eva e filha de dona Narzira da Cruz de Barros, que por muito tempo foi a benzedeira da Comunidade.

2.2.2 - Reunião com o INCRA Na reunião do dia 27 de abril, na sede da Associação, representantes do INCRA foram à comunidade apresentar os resultados de um estudo antropológico realizado no local. O objetivo da pesquisa era descobrir qual a extensão das terras quilombolas, para então demarcá-las. Segundo os pesquisadores, a área total da comunidade é de 25 hectares, ou 250 mil m², de acordo com o conceito de território adotado no estudo. Eles


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afirmaram que os proprietários da terra que não forem quilombolas seriam notificados e teriam que vender os lotes e deixar o local. Neste dia conheci o pai de Lúcia, senhor Otávio Gomes de Araújo, conhecido como ‘Tuti’, e a vice-presidente da Associação, Vânia Lúcia Baptista Duarte.

2.2.3 - Festa de São Benedito Depois da reunião, só voltei à comunidade na época da festa realizada em homenagem a São Benedito. A confraternização acontece todos os anos no mês de maio, dura dez dias e conta com novena, missas, procissão, apresentações culturais e um almoço. A festa é uma tradição que começou com uma promessa da matriarca Eva Maria de Jesus e teve continuidade com os descendentes dela.

2.2.3.1 - 17 de maio Nesta noite registrei imagens do começo da festa de São Benedito. Primeiro a missa de abertura no salão paroquial. Após a celebração, o baile foi com o Grupo Trem Bão. Mas o movimento maior acontecia na rua, onde os jovens dançavam e alguns moradores montaram barracas para vender comida e bebida.

2.2.3.2 - 18 de maio Neste dia eu fotografei o terço, que acontecia na pequena igreja São Benedito, lotada de fieis. Do lado de fora, as barracas vendiam comida e bebida, aguardando o show que aconteceria à noite.

2.2.3 – 19 de maio Pela manhã começou o ‘Torneio de Futebol Tia Eva’. Foi neste dia que conheci o


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organizador do evento, Eurides Antônio da Silva, conhecido como ‘Bolinho’, filho de Sérgio Antônio da Silva e tataraneto de Tia Eva. No campo ‘Poeirinha’, na Rua Tamandaré, nos limites da comunidade, o público se aglomerava nos barrancos para assistir a partida e saborear o espetinho vendido por ambulantes. Muitos não eram da comunidade, porque o tradicional campeonato também reúne equipes de outros bairros. Diversas pessoas me perguntaram se eu era a fotógrafa contratada para cobrir o evento.

2.2.3.4 - 23 de maio Este dia foi de muitas fotos e entrevistas2. A programação começou com o terço. Depois conversei com moradores da comunidade que montaram uma barraca de espetinho na calçada da casa deles, que fica do lado da igreja. Por volta da 20h30 iniciaram as apresentações culturais de dança e Capoeira, no salão paroquial.

O mestre capoeirista, Marcos Vinícius Campelo,

contou que ministra aulas de graça na comunidade durante a semana, no entanto, nenhum dos moradores se interessou e todos os alunos são de outros bairros. Além das rodas de Capoeira, uma jovem, também de fora da comunidade, dançou ao som de ritmos africanos, usando uma vestimenta típica. Depois trocou de roupa e se apresentou no embalo do samba.

2.2.3.5 - 24 de maio Era dia de show com o grupo de pagode Mistura de Raça. No salão, a maioria das pessoas não era da comunidade. Com o local quase vazio e metade das luzes apagadas, foi difícil fotografar.

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Todas as entrevistas utilizadas para a elaboração dos textos do fotolivro foram registradas com o uso de um gravador.


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Havia muitos jovens na rua em frente ao salão. Eles bebiam cerveja no copão e conversavam. Faziam barulho com as motos e ouviam música muito alta nos carros.

2.2.3.6 - 26 de maio Este foi o último dia da festa. O dia do churrasco. Não consegui chegar a tempo da procissão e fotografei apenas a missa. Em certo momento da missa, moradores entraram no salão dançando, alguns deles com vestimentas típicas africanas. Cada um carregava nas mãos alimentos (pães, bolos), feitos por eles mesmos e levados para esta celebração religiosa. A comida depois foi servida às pessoas que participavam da cerimônia. Ainda na parte da manhã, aconteceu a final do campeonato de futebol no ‘Poeirinha’. O time’ Tia Eva’ foi campeão. A premiação aconteceu dentro do salão paroquial, na hora do almoço. O salão estava lotado, todas as mesas e cadeiras colocadas à disposição do público foram rapidamente ocupadas. Do lado de fora, havia barracas vendendo bebidas, pastel e churros. Um pula pula e um escorregador inflável também foram montados em frente à igreja para divertir as crianças. Este momento da festa foi o de maior integração. Pois quase toda a comunidade é formada por pessoas da mesma família, todos descendentes de Tia Eva, que moram nos lotes que ela deixou de herança. E no dia do churrasco eles se reúnem e até os parentes que mudaram do bairro vêm participar da confraternização. É uma forma de manter a união do grupo. Muitas pessoas de outros bairros também vieram confraternizar. De acordo com a presidente da Associação, Lúcia Araújo, o churrasco grátis servido para os convidados foi doado por fieis que fizeram promessas. Esta tradição dos donativos vem desde que a festa começou, nos tempos de Tia Eva. No entanto, segundo os moradores, a ajuda para a realização do evento tem diminuído sensivelmente.


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A música sertaneja animou o pessoal durante a tarde, e à noite foi realizado o show de encerramento, com o Grupo Laço de Ouro.

2.2.4 - Cinema na comunidade – filme infantil Depois do período da festa, me concentrei no projeto do TCC, nas leituras e nas disciplinas do final do primeiro semestre na universidade. Voltei à comunidade apenas no dia 6 de julho, durante uma sessão de cinema. O Pontão de Cultura Guaicuru fez uma parceria com a Associação e durante aproximadamente dois meses foram realizadas exibições no salão paroquial. Aos sábados à noite eram exibidos filmes infantis e aos domingos a programação era destinada aos jovens e adultos. Além de fotografar, retornei ao convívio da comunidade e conversei com Lúcia, que estava no salão, fazendo pipoca para as crianças.

2.2.5 - 10 de agosto Neste dia eu fiz uma entrevista com dona Neuza Jerônima Rosa dos Santos, personagem fundamental na história da comunidade e bastante respeitada pelos outros descendentes. Ela desempenha um papel ativo na sociedade local, sempre participa das atividades da Associação e por muito tempo ajudou a organizar a Festa de São Benedito. Também conheci a irmã de dona Neuza, a dona Neuzita Caetano de Barros, que é costureira. As duas moram no mesmo terreno, mas cada uma na sua casa. Levei para minha entrevistada um porta-retrato com uma foto da família dela que eu havia tirado no almoço da festa, como forma de agradecer a gentileza dela me receber em sua casa.


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Depois de uma tarde de conversas, fui ao salão da Associação. Neste dia estava acontecendo a finalização de uma série de vídeos produzidos em uma oficina ministrada pelo Pontão Guaicuru. Um desses documentários relatava a história da Comunidade Tia Eva. A presidente e a vice da Associação estavam participando do grupo que produziu o vídeo. Mas, fora elas e um senhor, não havia outros descendentes participando da oficina. No entanto, muitos deles inscreveram para as aulas de fotografia, ministradas especialmente para as pessoas do bairro. No mesmo dia entreguei para Lúcia uma toalha que minha mãe bordou e pediu que levasse para ela, que me recebeu tão bem na comunidade.

2.2.6 - 15 de agosto Nesse dia fiz uma entrevista com Lúcia, líder política da Vila São Benedito. Ela também me levou até a casa do senhor Sérgio Antônio da Silva, cujo apelido é seu ‘Michel’, para que eu o entrevistasse. Um dos símbolos da comunidade, ele foi um dos fundadores e o primeiro presidente da Associação Beneficente dos Descendentes de Eva Maria de Jesus. Quando chegamos, seu Michel e a esposa, dona Luzia de Arruda Silva, estavam sentados na varanda, tomando chimarrão. Ele comentou que havia acabado de dar outra entrevista para um jornal da cidade que estava fazendo uma matéria sobre o aniversário de Campo Grande. Muito solícito, também aceitou me conceder outro depoimento. Depois da longa conversa, dona Luzia preparou um café e o seu Michel trouxe uma pasta cheia de documentos, fotos, recordações e foi mostrando um a um. Neste dia eu havia levado fotos do casal que tirei no dia do almoço e mandei ampliar, para presenteá-los.


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2.2.7 - 16 de agosto No dia 16 de agosto entrevistei o senhor Otávio Gomes de Araújo, o seu ‘Tuti’, pai de Lúcia da Silva Araújo e uma importante figura política local. Por muitos anos ele foi o presidente da Associação dos Moradores da comunidade. Ele voltara há poucos dias a morar no bairro, com a nova esposa. Estão vivendo na casa da filha dele, que foi morar na Suíça com a mãe dela.

2.2.8 - 17 de agosto Quando fiz a entrevista com seu Michel, combinei que voltaria no sábado para entrevistar dona Luzia. Os filhos e os netos estavam na casa e todos haviam almoçado juntos. As crianças corriam e brincavam nos quintais, ora no de dona Luzia, ora na casa da filha dela, que fica do outro lado do muro. Neste dia eu fotografei bastante. Seu Michel colocou o DVD da festa de bodas de ouro dele e de dona Luzia, para eu assistir. Depois ela me levou para conhecer o salão de cabelereiro da filha dela, que fica no terreno ao lado. Quando chegamos, as moças trabalhavam fazendo um penteado afro. Mais tarde, quando Eurides Antônio da Silva, conhecido como ‘Bolinho’, filho de seu Michel e dona Luzia, chegou à casa dele, que fica no mesmo terreno da casa dos pais, aproveitei para entregar a ele algumas fotos do torneio de futebol organizado por ele durante a Festa de São Benedito. Depois fui convidada por seu Michel para jogar sinuca. No bar Amarelo, ponto de encontro do pessoal da comunidade aos fins de semana, fotografei ele jogando com um amigo. Depois, foi a minha vez. Perdi duas partidas seguidas e acabei voltando a fotografar e deixando o jogo para outra hora. Despedi-me e fui até a casa de dona Neuza, visitá-la e combinar de no outro dia tirar algumas fotos com a família dela. Ela estava lavando roupa e a irmã costurando, então aproveitei para registrar algumas imagens.


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Fui à Associação, conversei um pouco com Lúcia e depois fui embora.

2.2.9 - 18 de agosto No dia 18 fui acompanhar a semifinal do 9° Campeonato Integração de Futebol Society, no campo Poeirinha. O convite veio de Bolinho, que estava organizando a competição. Neste dia tive um imprevisto e não pude ir até a casa da dona Neuza, como combinado. Liguei, mas não consegui falar com ninguém.

2.2.10 - 25 de agosto No dia 25 eu fui acompanhar a final do campeonato. Mas antes, passei na casa da dona Neuza e entreguei um vaso com flor, que comprei para me desculpar por tê-la deixado esperando no outro dia.

2.2.11 - 31 de agosto Este foi o dia da apresentação dos vídeos no salão da comunidade. Também foi a apresentação das fotografias tiradas durante uma oficina de fotos oferecida pelo Pontão Guaicuru exclusivamente aos moradores do bairro. No salão estavam, além dos participantes da oficina, alguns dos personagens que fizeram parte dos vídeos. Entre eles, Lúcia, Vânia, seu Michel, dona Luzia e dona Neuza.

2.2.12 - 1 de setembro Um dos aspectos importantes na comunidade é o familiar. Por isso eu precisava fotografar um almoço em família na comunidade. Dona Neuza aceitou me receber na casa dela.


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Neste dia estavam em casa a filha que mora com ela, e a outra filha, que se mudou, mas veio visitá-la, trazendo os netos. Fotografei bastante, conversei com a família e almocei com eles. Foi uma ótima oportunidade de estreitar os laços com a comunidade e conhecê-los melhor.

2.2.13 - 15 de setembro Fui à comunidade fotografar alguns objetos específicos, como o busto de Tia Eva e a igrejinha. No entanto, a visita foi mais produtiva do que eu esperava. As casas estavam cheias de visitas. Consegui adentrar em uma delas para tirar fotos e conversar com o pessoal. Vários jovens também jogavam vôlei na rua e renderam algumas imagens. Também encontrei no local uma igreja evangélica, que não havia reparado antes. Pude me aproximar mais dos moradores e nas conversas consegui informações importantes.

2.2.14 – Decupagem Depois de realizar a maioria das entrevistas que precisava, as próximas semanas foram usadas para decupar e redigir o material. Aproveitei também para trabalhar o relatório que seria entregue para a qualificação e planejar o formato do livro-reportagem fotográfico.

2.2.15 - Reuniões com o orientador Desde julho, as reuniões com orientador do meu TCC, professor Silvio da Costa Pereira, têm acontecido semanalmente. Nós analisamos o que foi produzido durante a semana e definimos tarefas a serem realizadas até a próxima. Antes disso também conversamos diversas vezes para tirar dúvidas a respeito de fotografia, da bibliografia a ser consultada e do modo como trabalhar.


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2.2.16 – Relatório para qualificação Como o relatório foi entregue no dia 23 de setembro, os dias que antecederam a entrega foram dedicados a redigir o relatório e depois, juntamente com o orientador, fazer as alterações necessárias. Também preparei uma apresentação de slides para poder mostrar algumas fotos para a pré-banca.

2.2. 17 – Entrevista com representante do INCRA Eu marquei para o dia 3 de outubro uma entrevista com Mauro Jacob, coordenador do departamento do INCRA que cuida de assuntos relacionados a comunidades quilombolas. No entanto, quando cheguei ao INCRA, fui informada que ele não iria trabalhar naquele dia, pois estava de licença médica e só voltaria no dia 15 de outubro. Como precisava das informações para dar continuidade ao trabalho, decidi fazer a entrevista com outro técnico da instituição. O combinado foi que ele me passaria todas as informações que tivesse e em caso de dúvidas eu voltaria ao local ou ligaria. Entrevistei o técnico agrícola Geraldo Pereira Graciano, que trabalha com Mauro Jacob na divisão de assuntos quilombolas e ele esclareceu satisfatoriamente os meus questionamentos. Repeti várias vezes as perguntas, até compreender as respostas e fiz anotações no caderno para me localizar. No mesmo dia, quando cheguei em casa e fui decupar a entrevista, percebi que ela não ficara salva no gravador. Rapidamente, peguei as anotações e passei para o computador, juntamente com todas as informações que lembrei. Para me certificar que os dados estavam corretos, voltei ao INCRA em um outro dia, expliquei para o entrevistado o que aconteceu e conferi as informações com ele, que fez as correções necessárias3. 3

Nesta ocasião, Mauro Jacob ainda estava de licença, o que não permitiu que eu acrescentasse ao trabalho informações passadas por ele.


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2.2.18 – Produção dos textos Com toda a bibliografia que encontrei sobre o assunto em mãos e com quase todas as entrevistas prontas, comecei a redigir o texto que foi dividido em capítulos e pensado para complementar as imagens.

Tarefa que durou

aproximadamente três semanas. Depois o meu orientador, professor Silvio da Costa Pereira, fez as correções do material.

2.2.18 – 23 de outubro Neste dia fui à comunidade entrevistar Vânia Lúcia Baptista Duarte, descendente de Tia Eva e vice-presidente da Associação Beneficente dos Descendentes de Eva Maria de Jesus. Eu já havia marcado a conversa em outras ocasiões, mas infelizmente, por alguns imprevistos como viagem da entrevistada, não pudemos nos encontrar antes. Nesta época eu ainda estava redigindo os textos, e coloquei no conteúdo do livro todas as informações que consegui nesta entrevista.

2.2.19 – Escolha das fotos e diagramação Ao mesmo tempo em que escrevi o texto, fui testando vários modelos de diagramação, conforme solicitado pelo meu orientador. Comecei com recortes e colagens em papel sulfite, já que tinha dificuldade em trabalhar com programas de computador. Testei o tamanho das imagens, e a distribuição do texto de diversas maneiras. Um processo demorado, mas que em compensação abriu várias possibilidades para diagramar. Depois, com dicas do orientador, fui aprendendo a lidar com as ferramentas digitais e comecei a passar os modelos de design gráfico para o computador. Nesta fase, pude testar cores diferentes. Também iniciei a escolha das fontes. Algumas das letras encontrei em livros sobre design gráfico, outras eu


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procurei e baixei de sites na internet ou ainda de um cd de fontes que meu orientador me passou. Como exemplo de diagramação, utilizei dois Trabalhos de Conclusão de Curso. Ambos são fotolivros desenvolvidos por acadêmicos de Jornalismo. Comecei a escolher as fotografias. Entre os critérios adotados para a escolha, priorizei as que continham mais informações e que não pudessem ser passadas por meio do texto. Depois, também levei em consideração as fotos com melhor estética, que estivessem com uma boa resolução, enquadramento e foco adequados. É importante salientar que as fotos foram escolhidas e pensadas ao mesmo tempo em que eu escrevia o texto e compunha o modelo de diagramação. Evitando assim que as informações escritas e as registradas nas fotografias se repetissem, pois o objetivo é que elas sejam complementares. Depois da diagramação pronta, as imagens foram tratadas por Steffany Aparecida dos Santos e o livro já com as fotos, texto e diagramação foi mais uma vez revisado pelo meu orientador. Com o conteúdo pronto, foquei no relatório final. Fiz as alterações que considerei necessárias e entreguei o documento ao meu orientador para que ele pudesse revisá-lo. Enquanto o professor fazia as alterações, concentrei-me na confecção da capa do livro. Para tanto, contei novamente com a ajuda de Steffany, e também de Camila Machado. Confeccionamos vários modelos, mas nenhum foi escolhido. Depois, durante uma reunião, mostrei os modelos ao orientador do meu trabalho, que me ajudou a finalizar uma das opções, escolhida para a capa.

2.2.20 – Relatório final Com quase todo o trabalho pronto, faltando apenas a capa do livro, voltei a redigir o relatório a ser entregue para a banca, adicionando a conclusão do


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trabalho, as novas atividades desenvolvidas, objetivos alcançados recentemente, dificuldades encontradas, acrescentando as despesas e todos os dados da produção desde a entrega do relatório parcial. Esta versão do relatório também passou pelas correções do meu orientador, antes de ser finalizada.

2.2.21 – Impressão A fase final foi a impressão do produto e do relatório. Enquanto eu finalizava o conteúdo do fotolivro, liguei, mandei e-mails e fui pessoalmente a várias gráficas rápidas para fazer orçamentos. Descobri então que devido ao formato do livro em A4, no estilo de paisagem, os custos de impressão e encadernação seriam bem maiores do que eu tinha planejado4. Como a maioria das gráficas rápidas informou que não imprime capa, os profissionais destes estabelecimentos me orientaram a imprimir o conteúdo do livro em um local e fazer a capa e a encadernação em outro. Então imprimi as páginas do livro em uma gráfica e a capa e a encadernação foram feitas em uma encadernadora, onde também foi impresso o relatório.

2.3.1Livros ANJOS, Rafael Sanzio Araújo dos. Território das comunidades remanescentes de antigos quilombos no Brasil: primeira configuração espacial. Brasilia [s.n], 1999. 92p. CARVALHO, Rui Moreira de. Compreender África: teorias e práticas de gestão. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2005. 288 p.

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Os problemas com a impressão aqui descritos serão mais detalhados no relato das dificuldades encontradas, na página 34.


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FREYRE, Gilberto. Casa grande e senzala. 13. ed. Brasília: Ed. Universidade de Brasília, 1963. 589 p. GIACOMINI, Sonia Maria. Mulher e Escrava: uma introdução histórica ao estudo da mulher negra no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1988. 95p. (Coleção negros em libertação). HEDGECOE, John. O novo manual de fotografia. São Paulo, SP: Senac São Paulo, 2006. 416 p. LIMA, Edvaldo Pereira. Páginas ampliadas: o livro-reportagem como extensão do jornalismo e da literatura: jornalismo literário. 4. ed. rev. E ampl. Barueri, SP: Manoele, 2009. 470 p. MATTOS, Regiane Augusto de. História e cultura afro-brasileira. São Paulo: Contexto UNESCO, 2007-2009. 217p. MATTOSO, Katia M. de Queirós. Ser escravo no Brasil. 3. ed. São Paulo: Brasiliense, 1990-2003. 267 p. MOTT, Maria Lúcia de Barros. Submissão e resistência: a mulher na luta contra a escravidão. 2. ed. São Paulo: Contexto, 1991. 86 p. (Coleção repensando a história). MOURA, Clovis. Dicionário da escravidão negra no Brasil. São Paulo: EDUSP/Clacso, 2004. 434 p. SALEM, Therezinha de Alencar. 100 mulheres pioneiras em 100 anos de Campo Grande: relatos que falam de mulheres que fizeram a história de Campo Grande. Campo Grande: BPW Campo Grande, 1999. 197 p. SILVA, Rafael Souza. Diagramação: O Planejamento Visual Gráfico na Comunicação Impressa. São Paulo: Summus, 1985. 147 p. SQUARISI, Dad; SALVADOR, Arlete. A arte de escrever bem: um guia para jornalistas e profissionais do texto. 7. Ed., 1ª reimpressão. São Paulo: Contexto, 2012. 105 p. VALENTE, Ana Lúcia E F. Ser negro no Brasil hoje. São Paulo: Moderna, 1994. 64p. (Coleção polêmica).


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VALENTE, Rosangela. Fotojornalimo: informação, técnica e arte. Campo Grande, MS: Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, 1997. 146 p. WILLIAMS, Robin; [tradução Laura Karin Gillon]. Design para quem não é designer: noções básicas de planejamento visual. 2. Ed. São Paulo: Callis, 2005. 188p.

2.3.2 Periódicos: ARCA. Revista de Divulgação do Arquivo Histórico de Campo Grande. N° 5: 1995. EVA. Jornal Comunitário da Vila São Benedito. UFMS: Campo Grande, julho e novembro de 2001.

2.3.3 Outros documentos: ARAÚJO, Lúcia da Silva. Entrevista concedida a Priscila Ribeiro. Campo Grande, 15 de agosto de 2013. ARAÚJO, Otávio Gomes de. Entrevista concedida a Priscila Ribeiro. Campo Grande, 16 de agosto de 2013. ASSIS, Ana Maria; SANTOS, Eliane dos. Os filhos de Tia Eva. 2008. Trabalho de Conclusão de Curso (Bacharelado em Comunicação Social com habilitação em Jornalismo) – Universidade Católica Dom Bosco, Campo Grande, 2008. CERUTTI, Aline Sesti; LEAL, Amanda; VIRUEZ, Nelly Stéfani Cano. Descendentes de uma promessa: a festa de São Benedito na Comunidade Tia Eva. Campo Grande: Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, 2010. 8p. CHIAD, M. O uso do vídeo por grupos populares: a influência de um instrumento de poder em uma comunidade. 1993. 25 f. Trabalho de Conclusão de Curso (Bacharelado em Comunicação Social com habilitação em Jornalismo) – Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Campo Grande, 1993. [Orientador: Prof. Edson Silva].


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Duarte, Vânia Baptista. Entrevista concedida a Priscila Ribeiro. Campo Grande, 20 de outubro de 2013. MORAES, Vanda. Tia Eva, negraeva: História da Comunidade São Benedito. Campo Grande: Diogo Gráfica e Editora, 2003. 14p. Patrimônio Cultural Imaterial. Iphan. Brasília, DF: Iphan, 2012. SANTOS, C. Fiéis descendentes: redes-irmandades na pós-abolição entre as comunidades negras rurais sul-mato-grossenses. 2010. 477 f. Tese (Doutorado em Antropologia Social) – Instituto de Ciências Sociais, Universidade de Brasília, Brasília. 2010. SANTOS, Neuza Jerônima Rosa dos. Entrevista concedida a Priscila Ribeiro. Campo Grande, 10 de agosto de 2013. SILVA, Eurides Antônio da. Entrevista concedida a Priscila Ribeiro. Campo Grande, 23 de maio de 2013 SILVA, Luzia Bento da. Entrevista concedida a Priscila Ribeiro. Campo Grande, 17 de agosto de 2013. SILVA, Sérgio Antônio da. Entrevista concedida a Priscila Ribeiro. Campo Grande, 15 de agosto de 2013. VILHARVA, Antônio Carlos. Coletânea sobre as comunidades negras rurais quilombolas de Mato Grosso do Sul. Campo Grande, MS: FUNASA, 2009.75p. 2.3.4 Redes, sites, e outros: SILVA,

Gilvânia

Maria

da.

Quilombolas.

Disponível

em:

<http://www.INCRA.gov.br/index.php/estrutura-fundiaria/quilombolas>. Acesso em: 03 de julho de 2013. TEIXEIRA,

Rodrigo.

Tia

Eva:

herança

milagreira.

Disponível

em:

<http://www.overmundo.com.br/overblog/tia-eva-heranca-milagreira>. Acesso em: 03 de fevereiro de 2013.


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3- SUPORTES TEÓRICOS ADOTADOS

Para estudar a Comunidade Remanescente de Quilombo São Benedito, em Campo Grande, Mato Grosso do Sul, é necessário retroceder na história e resgatar conhecimentos acerca dos processos que conceberam a escravidão negra e a caracterizaram tal qual a conhecemos no Brasil. Nos séculos XV e XVI, os europeus, ao explorarem um novo caminho para as Índias, começaram a construir feitorias em território africano. Em pouco tempo, elas se transformaram em entrepostos comerciais que começaram a negociar compra e venda de escravos. (CARVALHO, 2005: 40). As justificativas apresentadas pelos europeus para a escravidão negra são de que os africanos precisavam ser civilizados, pois pertenciam a uma ‘raça inferior’ e possuíam ‘costumes primitivos’. Além disso, alegaram que os negros eram escravizados no próprio território. Porém, a situação era bastante distinta, pois tratava-se de lutas entre tribos rivais e não da submissão de uma nação ao domínio de outras nações movidas por interesses econômicos. (VALENTE, 1994: 13) Estes escravos eram então trazidos ao ‘Novo Mundo’: Entre 1502 e 1860, mais de 9 milhões e meio de africanos serão transportados para as Américas, e o Brasil figura como o maior importador de homens pretos. O século XVIII detém o recorde da importação: as Américas Coloniais fizeram vir a elas 6 milhões e 200 mil escravos durante esse período. (MATTOSO, 2003: 19)

Longe

de

seu

território,

submetidos

ao

trabalho

exaustivo

sem

remuneração, aos severos castigos dos feitores e a condições de vida degradantes, obviamente os cativos se revoltaram. Foram muitas as formas encontradas para resistir à dominação. Segundo Mott (1998: 29), alguns cativos simulavam não estar aptos para o serviço, não realizando satisfatoriamente as tarefas ou alegando doença. O que resultou em muitos adjetivos pejorativos, que infelizmente são utilizados até hoje, por quem não tem discernimento histórico, para se referir ao negro.


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Mott também relata formas mais extremas de resistência, como o aborto (para não ‘dar mais um escravo’ para o senhor) e o suicídio. Além de significar a fuga da opressão em que viviam, também era uma forma de lesionar o senhor, pois para os pequenos proprietários, a perda de escravos e, consequentemente, da renda que eles geravam, poderia significar a ruína econômica. Naquela época também era muito comum a fuga dos cativos, o que remete ao símbolo da resistência negra à escravidão: os quilombos. Segundo Mattoso (2003: 158), eles eram os esconderijos dos escravos fugidos, que isolados da sociedade escravagista, retomavam o modo de vida africano. Não eram, entretanto, movimentos contra o poder branco. Os quilombolas viviam em paz e apenas recorriam à violência se atacados, ou descobertos pela polícia ou pelo exército, que tentavam destruí-los. Nos quilombos não viviam apenas escravos, mas também homens livres, inclusive brancos, vítimas de alguma lei discriminatória. A população deles era extremamente variada. Com o fim da escravidão no Brasil (pelo menos ‘no papel’), decretada pela Lei Áurea, em 1888, extinguiu-se a necessidade dos quilombos. No entanto, como não houve outras leis responsáveis por promover a integração do negro à sociedade, os novos libertos continuaram organizados em núcleos sociais isolados. Assim foram formadas o que hoje compreendemos como comunidades Remanescentes de Quilombo. Santos (2010) define comunidade Remanescente de Quilombo como: (...)não somente às comunidades que têm vínculo histórico e social com os quilombos conceituados classicamente, mas também comunidades, descendentes de escravos negros e ex-escravos libertos, que em um território (em terras obtidas por meio de doação, de compra, ou da simples posse) desenvolveram um modo próprio de resistência e de reprodução social. (SANTOS, 2010: 2)

A Comunidade São Benedito, em Campo Grande (MS), é um exemplo de Remanescente de Quilombo. A história dela começa ainda na época da escravidão no Brasil, com a matriarca Tia Eva.


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Foi na fazenda Ariranha5, de propriedade de José Manoel Vilela, que nasceu, no ano de 1848, a escrava Eva (futura Eva Maia de Jesus – ‘Tia Eva’). Criada, desde cedo, para os afazeres domésticos, a escrava Eva desempenhou várias funções na casa sede da fazenda. Já jovem assumiu os serviços na cozinha onde fazia vários doces. (SANTOS, 2010: 251)

Ainda em Goiás, onde permaneceu trabalhando após a libertação até conseguir recursos para mudar para o Mato Grosso, Tia Eva ficou conhecida por desempenhar o trabalho de benzedeira: Com esse ‘dom’ a ex-escrava Eva começou a ser conhecida como ‘Tia Eva’ gerando uma clientela que a procurava em busca de tratamento para diversos males. Por meio desse ‘dom’ Tia Eva criou estratégias para garantir seu espaço social na fazenda e em seus arredores. Por outro lado, o nome dela associado com o termo ‘tia’, que é uma categoria honorífica, solidificou redes sociais nas quais estava inserida. (SANTOS, 2010: 258)

Santos (2010: 259) conta ainda que, após a Lei Áurea, assinada em 1888, Tia Eva continuou trabalhando na fazenda da família Vilela, pois não tinha para onde ir, nem dispunha de recursos para sustentar as filhas. Situação semelhante à de muitos outros ex-cativos, que sonhavam com novas terras para morar: Sem opções de trabalho, sem acesso à terra, os libertos ainda estavam presos a (sic) hierárquica estrutura econômica e social do modelo escravagista que os cerceava e não permitia que reproduzissem sua condição camponesa. Por isso, os libertos, sem condições de desenvolverem o ‘projeto camponês’, procuraram sair de suas áreas de origem e fugir desse modelo. (SANTOS, 2010: 261)

Em 1905, a ex-escrava e a família foram em busca de novos lugares para viver. Nesta época, ela estava com uma ferida na perna, onde derramou banha quente quando cozinhava doces (SANTOS, 2010: 254). A viagem é narrada por Martins: Com uma chaga na perna direita, que a medicina da época não conseguiu curar, partiu de Mineiros em 1905 à procura de um bom lugar para recomeçar a vida. Vinha num carro puxado por dois bois e trazia suas três filhas ainda crianças: Sebastiana, Lázara e Joana. Sobreviveu às dificuldades do caminho enfrentando a fome e as doenças da época. Trazia consigo uma imagem esculpida em madeira de São Benedito, seu protetor e a quem havia feito uma promessa de que construiria uma capela em sua homenagem quando fosse curada da chaga da perna. (MARTINS, 1995: 54) 5

A fazenda localiza-se no interior de Goiás e recebeu este nome em homenagem ao rio Ariranha, que passa pela propriedade. (SANTOS, 2010: 250)


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O destino escolhido foi o Arraial Santo Antônio de Campo Grande, atual Campo Grande, localizado então no estado do Mato Grosso, e longe de se tornar uma das capitais do país. Mas que já atraia migrantes: Em 1905, a cidade de Campo Grande era apenas uma rota das tropas imperiais por ocasião da guerra do Paraguai. Acabou se tornando um lugar de refúgio para algumas pessoas e outros se interessaram pela informação de que na região havia terras e condições para se estabelecerem. (CERUTTI; LEAL; VIRUEZ, 2011: 2)

Segundo Santos (2010: 267), Tia Eva, as filhas, o genro, o neto, o companheiro dela, Adão, e outros ex-escravos se instalaram em uma região de mata próxima ao córrego Segredo. Em um local chamado Olho D’água, que recebeu o apelido de Cascudo por causa dos afrodescendentes que andavam de pé no chão, engrossando a sola. O autor conta ainda que a região era segregada e quem morava lá eram os negros. A divisão também era feita pelo trabalho. Quem tinha dinheiro criava gado, quem não tinha, plantava. Eva Maria de Jesus continuou trabalhando muito nas novas terras, como registrado por Martins: Procurando trabalho para seu sustento e de suas filhas, bateu de porta em porta oferecendo seus serviços. Foi parteira e benzedeira fervorosa e dedicada procurada para curar quebrantos, picadas de bicho, cobreiro e outros diversos tipos de males. E assim a fama de Tia Eva, como era conhecida, foi se espalhando e o respeito aumentando. Não cobrava por seus serviços, mas ganhava muitos presentes que ajudavam na sua sobrevivência. (MARTINS, 1995: 54)

E foi com muito trabalho que Tia Eva comprou as terras para construir a comunidade. Segundo o bisneto dela, senhor Sérgio Antônio da Silva, citado por Santos (2010, p. 276). “Tia Eva procurando regularizar suas terras requereu ao intendente da comarca de Campo Grande, Nilo Javary Barem, a posse de oito hectares de terras devolutas que lhe custou 85 mil réis. Esse valor foi pago com recursos da venda de doces que fazia Tia Eva”.

Segundo Santos (2010: 275), a matriarca fazia doces e vendia no centro de Campo Grande. E as enormes panelas que ela utilizava receberam o apelido de ‘panela de Tia Eva’ em homenagem a ela.


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Estabelecida na comunidade e com a ferida na perna já curada, a exescrava não esqueceu da promessa feita a São Benedito. Santo que segundo Barros (apud Santos, 2010: 257) é o protetor dos negros e dos cozinheiros. (...) com o auxílio de doações Tia Eva promovia festas no pátio de seu rancho com o objetivo de arrecadar fundos para a construção da Capela de São Benedito. Foram necessárias muitas festas e muita gente ajudou nesta construção. (MARTINS, 1995: 54)

E foi assim que, de acordo com Santos (2010: 40) foi construída a igreja de São Benedito em 1905, ainda de pau a pique. E reconstruída em 1919, agora de alvenaria. Waldemar Bento de Arruda, citado por Santos (2010, p. 286), conta como se deu a reforma: Aí aquela igrejinha que disseram que é a igreja da Tia Eva, aquela igreja era de tábua. Era de tábua e bem pequenininha. E aí sabe o que, aí construíram de material, sabe como é que foi? Naquele tempo tinha muita revolução, muito tiro de carabina, de 44, aquela coisa lá, (...), e uma bala pegou na perna do major de polícia. É pegou na perna, bem no tornozelo aqui, e ele andava só mancando, mancando pra lá, mancando pra cá, e afastou da polícia e fez uma promessa lá no oratório da Tia Eva, se a Tia Eva e se o São Benedito tirasse aquela bala, porque ele não podia operar, porque se ele operasse ele ia ficar aleijado por completo. Se aquela bala saísse ele ia dar umas vacas pra festa dela, e a bala saiu, e a bala ficou no altar de São Benedito pra todo mundo ver naquele tempo. E ficou a bala de 44 nos pés de São Benedito durante muito tempo, aí ele deu a festa, a vaca e resolveu mandar a banda de música lá. Ninguém conhecia, era só por nome, então foi a primeira banda de música que tocou lá, foi por causa disso. (...)

De acordo com Salem (1999: 33), quando a reforma aconteceu já eram celebradas homenagens ao santo padroeiro da comunidade. Desde 1912 se realiza nessa comunidade a Novena em louvor a São Benedito, inicialmente à sombra das mangueiras, quando os padres chegavam para a celebração da festa religiosa de charrete e até mesmo a cavalo.

Mas a festa só ficou famosa mesmo depois da reconstrução da igreja. (...) em 13 de maio de 1919 Tia Eva cumpriu sua promessa: a Igreja estava pronta e foi inaugurada. Os festejos duraram nove dias com rezas, fogos, leilões, pau-de-sebo e bailes de catiras, chotes (sic) e valseados dançados no pátio de terra batida. (MARTINS, 1995: 56)


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E mesmo depois da morte da matriarca, os descendentes dão continuidade às celebrações. Eva Maria de Jesus faleceu em 1926 e foi enterrada em frente à Capela que construiu com tanto amor. Aos seus descendentes deixou a tarefa de dar continuidade à festa de São Benedito, tradição que perdura até hoje (...). (MARTINS, 1995: 56)

O festejo ainda é realizado anualmente, mas com algumas alterações. Assim como as outras relações sociais, e ao mesmo tempo, a tradição da festa também foi sofrendo modificações. Muito devotos de São Benedito pagavam promessas com a doação de objetos, que passaram a ser leiloados na festa anual. Os festejos também não aconteciam mais sob os pés de manga. Um barracão de madeira foi construído. Depois foi reformado. Para participar da programação da festa passou a ser preciso pagar ingresso. As esmolas deixaram de ser recolhidas. Comida e bebida passaram a ser vendidas nas barracas, e outros elementos como shows e apresentações artísticas, foram sendo incorporados à programação. Também ficou instituído o comando da festa a partir da direção da Associação Beneficente dos Descendentes de Tia Eva, que passou a funcionar por volta de 1997. (MORAES, 2003: 18)

Como quase toda a comunidade é formada por pessoas da mesma família, descendentes de Tia Eva que moram nos terrenos deixados por ela como herança, as comemorações estreitam os laços entre eles. Além da tradição religiosa, percebe-se que a festa possui um caráter de confraternização entre os descendentes. Desde o início do evento em torno do Santo, funcionou como um fator de união e socialização entre os moradores, fortalecendo os laços entre eles. (CERUTTI; LEAL; VIRUEZ, 2011: 2).

E também aproximam os descendentes de pessoas vindas de outros locais. “Com o tempo, há presença de pessoas de várias partes da cidade e fora dela, o que pode demonstrar um crescimento para além dos ‘muros’ da Comunidade”. (CERUTTI; LEAL; VIRUEZ, 2011: 6). A comunidade, que inicialmente era rural, passou por um processo de urbanização ao longo de sua história, acompanhando o desenvolvimento do município. Como explica Santos (2010: 326), com o processo contínuo de expansão urbana, o Sítio de Tia Eva foi adquirindo uma configuração de vila. Por isto é atualmente denominado pela prefeitura de Campo Grande como Vila de São Benedito. Neste processo “a comunidade conseguiu rede de luz, água, linha de


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ônibus e ponte para conectar a comunidade São Benedito ao Bairro Monte Castelo”. (Ibid., p. 320.). Hoje, após a melhoria na infraestrutura do local, além dos descendentes de Eva Maria de Jesus, outras pessoas moram na Vila São Benedito. Pois aconteceu a entrada de pessoas de fora na comunidade, por meio de compra de lotes. Fato que provocou conflitos de terra entre os ‘de fora’ com os ‘de dentro’. (SANTOS, 2010: 324). O motivo das vendas também é relatado por Santos (2010: 319): Parte dos problemas em comum, pelo qual passava a comunidade Tia Eva, era basicamente com infra-estrutura (sic), o inchaço populacional provocado pelo grande número de descendentes de Tia Eva e seus afins, a vinda de famílias de Furnas do Dionísio (as quais eram descendentes de Lazara Maria de Jesus) e o Imposto Predial e Territorial Urbano – IPTU. Esses problemas ajudaram a impulsionar a venda de lotes, realizadas por alguns descendentes. Além destes, o autor destaca que há ainda outros fatores, como casamentos com pessoas de fora, falta de trabalho, migração para trabalhar em fazendas e falta de espaço no lote para construção de novas casas para os filhos casados.

Não apenas a infraestrutura do local, mas também as condições de vida dos moradores se modificaram ao longo do tempo. Como se pode perceber, o desenvolvimento da cidade de Campo Grande provocou certas mudanças nas atividades profissionais realizadas, sobretudo, pelos homens da área de Tia Eva. Começou a se desenhar um padrão de trabalho para os homens ligado especialmente à construção civil. No caso das mulheres, não houve variação em suas atividades profissionais, pois continuaram realizar o trabalho de domésticas e de lavadeiras. SANTOS (2010: 299)

A realidade atual já se configura de modo diferente, pois descendentes que moram na comunidade conseguiram cursar o ensino superior, alguns deles durante o projeto Negra Eva. Como aborda Santos (2010: 407), “um grupo de jovens da comunidade Tia Eva, que já participavam do Movimento Negro, viu a chance de construir um projeto que pudesse apoiar os negros a ter acesso ao ensino superior”. Segundo uma das idealizadoras do projeto, a Assistente Social Sandra Martins dos Santos, citada por Santos (2010: 408),


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(...) o projeto de apoio a afrodescendentes para acesso e manutenção no ensino superior foi proposto pela Associação Beneficente dos Descendentes de Tia Eva, em parceria com a Universidade Federal de Mato Grosso do Sul e com a Secretaria de Educação do município, o Dr. Aleixo ajudou muito nessas parcerias, juntamente com o professor Edson Torres. O projeto contou também com o apoio do Movimento Negro, por meio do Fórum. (...). Aí o projeto foi aprovado em 2003 e eu, a Vânia e o Ataíde passamos no vestibular, outros também passaram e começamos a receber as bolsas para estudar, só que demorou muito para o dinheiro chegar. Mas mesmo assim o cursinho pré-vestibular que nós montamos com o projeto continuou.

Sandra Martins dos Santos afirma ainda que, “Inicialmente o projeto Negra Eva foi pensado para beneficiar 14 alunos e no final ele beneficiou diretamente 27 alunos, já o cursinho beneficiou cerca de 350 alunos. (...)”, conforme Santos (2010: 410). Outra mudança é o número crescente de adeptos a outras religiões que não o catolicismo. Outra justificativa para a transformação tanto da tradição religiosa como na própria comunidade está, de acordo com alguns moradores, na interferência de outras crenças, como a evangélica. Hoje há um número elevado de descendente de Tia Eva, que são evangélicos até porque com o tempo, outras religiões como esta, se firmaram no local, criando disputas dos fiéis no campo do sagrado. (CERUTTI; LEAL; VIRUEZ, 2011: 3)

Além dos evangélicos, há adeptos de religiões tradicionalmente africanas, mas em menor número. Algumas pessoas quando ouvem falar em comunidade negra, logo imaginam que a religião cultural seja o candomblé ou a umbanda. Seu Michel, bisneto de Tia Eva, diz que ela nunca comentou da parte africana. Segundo ele, ela não conhecia. Mas Eurides diz que se propaga na comunidade essas práticas religiosas, mas ainda há preconceito e os adeptos fazem às escondidas. (CERUTTI; LEAL; VIRUEZ, 2011: 5)

Com o passar dos anos, além das novas configurações sociais, a comunidade teve seu valor histórico reconhecido pelo poder público: No dia 30 de agosto de 1996, Tia Eva foi homenageada com o título de cidadã Campo-Grandense, tributo concedido aos relevantes serviços prestados à cidade de Campo Grande (Decreto legislativo nº 368, de 27/06/1996). No ano seguinte, a igrejinha de São Benedito passou a fazer parte do patrimônio público estadual e municipal. Foi


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a primeira construção de característica religiosa tombada em Mato Grosso do Sul. (SANTOS, 2010: 335)

Como narra Santos (2010: 335), (...) no dia 29 de fevereiro de 2008, a comunidade negra rurbana Tia Eva recebeu o certificado, da Fundação Cultural Palmares, de Comunidade Remanescente de Quilombo. Desde então vem reivindicando, junto ao INCRA, a regularização fundiária do território original de Tia Eva.

O direito a terra é garantido por lei, como retrata Vilharva (2009: 12), A Constituição Federal de 1988 resguardou o direito de propriedade territorial aos Remanescentes de Quilombos, garantindo-lhes a titulação definitiva da terra pelo Governo Federal. O artigo 68 da Seção dos Atos das Disposições Constitucionais Transitórias dispõe: ‘Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida à propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos.’ Assim, a identificação das pessoas referidas no texto constitucional é regida por uma série de conceitos, pesquisas históricas e etnográficas destinadas a certificar e datar sua existência. A partir do reconhecimento, as Comunidades poderão acionar instrumentos públicos que executem ações para melhoria na qualidade de vida.

Mas o autor ressalta ainda que “mesmo com a garantia de posse da terra determinada em lei, muitas Comunidades enfrentam conflitos e dificuldades para regulamentação das propriedades”. (Ibid., p. 12.) Esta luta pelos direitos também é travada por outras comunidades negras, que inclusive têm relações de parentesco com a Comunidade São Benedito. Um exemplo dessas comunidades é Furnas do Dionísio6, onde Lázara Maria de Jesus (filha de Tia Eva) foi morar com o marido e os três filhos. (Vilharva, 2009: 39). Segundo o autor também há relações familiares com outros povoados de negros: A Comunidade Negra Rural Quilombola Chácara Buriti localiza-se a 31 quilômetros da Capital de Mato Grosso do Sul, onde vivem atualmente 12 famílias. A história desta Comunidade teve início quando Eva Maria saiu de Mineiros em Goiás no final do século XIX e chegou a Campo Grande com as filhas Sebastiana Maria de Jesus, Joana Maria de Jesus, Lázara Maria de Jesus e outras famílias de ex-escravos, e acabaram formando as Comunidades São Benedito e 6

A comunidade foi fundada por Dionísio Antônio Martins, ex-escravo que veio de Goiás junto com Tia Eva, morou na Comunidade São Benedito e depois se mudou para Jaraguari (MS) onde requereu as terras que hoje compõem Furnas do Dionísio. (SANTOS, 2010: 261)


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a Buriti, dividindo a família em dois quilombos próximos: um na área urbana e o Buriti na zona rural. Os ex-escravos Jerônimo da Silva e a esposa Sebastiana da Silva Maria de Jesus (filha de Eva), após o casamento, foram morar e trabalhar na fazenda “Buriti Escuro”, localizada no município de Campo Grande. Lá, tiveram nove filhos, um destes filhos era João Antônio da Silva (conhecido como João Vida), que se casou com Maria Theodolina de Jesus. Os dois, ainda segundo o sonho dos avós, de encontrar uma terra para viverem em liberdade, venderam tudo que possuíam e adquiriram terras às margens do Córrego Buriti, onde está localizada a Comunidade, que recebeu o mesmo nome do córrego.

De acordo com Waldemar Bento de Arruda (apud SANTOS, 2010: 375), a Comunidade São Benedito também possui parentesco com a Comunidade Furnas da Boa Sorte7. Pois é composta por pessoas de Furnas do Dionísio, onde estão inseridos descendentes de Tia Eva. Todas estas comunidades, bem como a maioria dos negros que vivem no país, ainda hoje enfrentam o preconceito e outras dificuldades relatadas por Valente (1994). A autora relata a desigualdade de condições que os negros enfrentam em relação aos brancos no mercado de trabalho atual; a desvalorização e subjugação, principalmente da mulher negra na sociedade; os índices de pobreza maiores entre a população afrodescendente; além do preconceito e o racismo não declarado em uma sociedade aparentemente igualitária, fenômeno que ela denomina de ‘mito da democracia racial’. Valente (1994: 43) ressalta também a importância da autovalorização do negro. “Ao ser considerado e reconhecer-se negro, têm a possibilidade de lutar por um tratamento igual, mantidas as diferenças.”

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A comunidade, formada também por descendentes de Eva Maria de Jesus, localiza-se no município de Corguinho (MS). (SANTOS, 2010: 375)


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4- OBJETIVOS ALCANÇADOS

O objetivo geral era: “mostrar a realidade atual dos descendentes de Eva Maria de Jesus, ‘Tia Eva’, que ainda vivem na comunidade. Qual a profissão deles, a situação socioeconômica, como são as casas da comunidade, como é a convivência entre as famílias, quais as atividades de lazer disponíveis, onde eles estudam, como é a rotina no bairro, que igrejas eles frequentam”. Como não haveria tempo hábil para entrevistar um grande número de moradores, escolhi alguns personagens, como de praxe no jornalismo. Procurei pessoas com perfis que representassem também outros descendentes. Optei por pessoas mais velhas, que conhecem mais a fundo a história do núcleo familiar e já a vivenciaram por um tempo maior. Todos os entrevistados moram na Comunidade e quase todos são descendentes de Tia Eva, com exceção de dona Luzia de Arruda Silva, que vive no local há 50 anos, desde que se casou com Sérgio Antônio da Silva. Entre os entrevistados também há católicos e evangélicos, o que traz duas visões distintas sobre a religiosidade do local. O trabalho poderia abranger perfis os mais diversos perfis (pessoas mais jovens, não-descendentes, descendentes que moram em outros bairros). Porém, receio que se tivesse visões distintas e pouquíssimos perfis de cada uma, não haveria um aprofundamento no tema e as informações poderiam ficar superficiais. Entre os objetivos específicos estão: “Conhecer a organização sociocultural da Comunidade São Benedito”. O que acredito ter alcançado quando participei das atividades da comunidade e pude estar mais próxima do cotidiano dos personagens, bem como ouvir suas biografias e opiniões. “Determinar as características que a definem como Remanescente de Quilombo”. Esta questão foi melhor esclarecida para mim com leituras a respeito do assunto.


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“Identificar os aspectos (religiosos, culturais, familiares) responsáveis por manter a tradição ao longo das gerações”. Com o trabalho eu pude perceber que o fator que mais une todos é o parentesco e as terras. A religião já não constitui um fator de convergência, uma vez que o catolicismo está agora dividindo espaço com outras crenças. E muitas vezes quem não é católico acaba não participando da festa, que constitui uma representação da identidade local. Os mais jovens também apresentam visões de mundo muito distintas das dos mais velhos, o que colabora para o enfraquecimento destes costumes. No entanto, o orgulho de pertencer à comunidade torna os laços mais fortes entre eles. “Acompanhar a rotina dos moradores, bem como os costumes atuais e registrá-los por meio de fotografias e texto escrito a partir da minha observação e do depoimento dos descendentes de Tia Eva”. Esta parte resume quase todo o trabalho prático até aqui, que proporcionou a produção de conteúdo para o produto final, que constitui o último dos meus objetivos “produzir um livro de fotos e texto”.


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5- DIFICULDADES ENCONTRADAS:

As minhas dificuldades começaram com as técnicas fotográficas. Pois quando cursei as disciplinas de Fotografia e Fotojornalismo, ainda não havia câmeras profissionais no curso à disposição dos alunos. Fiz as disciplinas utilizando a câmera compacta que eu já tinha. Teoricamente aprendi as técnicas fotográficas, no entanto, como não exercitei na prática (pois a câmera que eu tinha não permitia muitas regulagens), esqueci como trabalhar com elas. Problema que foi acentuado pelo fato de tê-las cursado no início da grade curricular. Para solucionar a dificuldade, me matriculei na disciplina optativa de ‘Oficina de Fotografia’, do professor Helio Godoy, do curso de Artes Visuais. Além de comprar uma máquina amadora avançada para treinar tanto o manuseio dela como o meu olhar sobre as imagens. A respeito da parte de coleta de dados, de início a minha preocupação era ser aceita na comunidade, poder me inserir nela para realizar o trabalho. Pois precisaria estar constantemente no local e dependeria da ajuda de pessoas que moram lá, as minhas fontes. Também instruída pelo meu orientador, procurei outros profissionais da área acadêmica que já tiveram contato com a comunidade. São eles os professores de Jornalismo, Edson Silva, e de Ciências Sociais, Antônio Hilário. Depois de conversar com os professores, eles me emprestaram materiais bibliográficos e me passaram o contato de possíveis fontes das quais eu precisaria. Ambos também me explicaram como é a dinâmica da comunidade. Quando cheguei à Vila São Benedito, já conhecia um pouco da história do local, o que possibilitou que os diálogos fluíssem melhor. Também levei um ofício e me comprometi a deixar uma cópia do trabalho na comunidade, como me foi recomendado. Fui muito bem recebida entre os moradores, principalmente aqueles que se tornaram minhas fontes. Eles me permitiram conversar, fotografar, filmar. E atribuíram grande importância ao trabalho que estou fazendo. O qual só foi possível


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de ser realizado com a colaboração deles. Mas ser educada e tratar a todos com o devido respeito foi peça fundamental para conquistar a confiança. Outro problema de cunho prático foi a diagramação, pois tinha muita dificuldades com os programas de computador específicos para realizar tarefa. Não lembrava como utilizá-los, pois sempre cursei as disciplinas de ‘Planejamento Gráfico’ com bastante esforço. Porém, como eu não dispunha de recursos financeiros para pagar uma diagramador, precisei superar minha limitação. A solução, sugerida pelo meu orientador, professor Silvio, foi começar da forma mais básica de diagramação que aprendi nas aulas. Os rascunhos com os modelos de página eu fiz à mão, usando papel, cola, tesoura, caneta e páginas de revista recortadas. Depois passar a ideia para o computador tornou-se menos complicado. Mas ainda assim precisei de algumas dicas do professor sobre como utilizar as ferramentas do programa. Isto fez com que eu demorasse muito mais tempo que o previsto para montar um modelo gráfico para o livro. Também enfrentei dificuldades na hora de diagramar a capa. Mesmo contando com a ajuda de outras pessoas, foi necessário construir vários modelos, até que um ficasse satisfatório. A impressão foi uma das partes mais complicadas do trabalho. Esse problema está relacionado ao fato de não ter sido feito um projeto gráfico logo no início do TCC, que me permitisse orçar os custos de gráfica e, assim, constatar os elevados preços. Caso isso tivesse sido feito eu poderia alterar o projeto para adequar o livro a um formato de menor custo. Porém, com a minha dificuldade para compor a diagramação, ela não ficou pronta rapidamente, não deixando muito tempo hábil para maiores mudanças. O livro foi feito com fotos coloridas, em páginas um pouco menores que as A4, e no estilo paisagem, pois assim é possível valorizar mais as fotos. Como algumas imagens passam de uma página para outra, foi necessária uma encadernação especial, de brochura, pois a espiral não permite tal visualização, o que encarece ainda mais o processo.


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Uma possível solução seria modificar o formato para vertical, o que prejudicaria a diagramação, já que a maioria das fotos é horizontal. Ou ainda reduzir consideravelmente o tamanho do livro, de forma que duas páginas A4 horizontais coubessem (lado a lado) em uma folha A3, pois assim também poderia grampear as páginas ao invés de encaderná-las com brochura. No entanto, as folhas A3 têm um valor mais alto e, fazendo os orçamentos, descobri que a troca não compensaria, até porque muitas vezes esta segunda opção ficou mais cara que manter a diagramação em A4 no estilo paisagem. Todas as gráficas onde fui, ou para as quais liguei eu mandei e-mail disseram que não confeccionavam a capa, e me orientaram a procurar uma encadernadora. Por isso imprimi o conteúdo do livro em uma gráfica rápida e depois de terminar a capa, procurei uma encadernadora para imprimi-la e encadernar o trabalho. Como as impressoras dos dois lugares eram diferentes, a foto da capa, que eu retirei do interior do livro e cortei, fazendo um novo enquadramento, ficou com cores diferentes das outras fotografias. Isso porque a gráfica que imprimiu as páginas de dentro do livro utilizou impressora a laser, enquanto a encadernadora que imprimiu a capa utilizou o método de jatos de tinta. Em função dos custos elevados, meu orientador recomendou que eu imprimisse o produto para a banca em papel sulfite, pois não interferiria na avaliação do trabalho, e depois, na entrega da versão final, utilizasse um material de maior qualidade, como papel couché.


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6- DESPESAS (ORÇAMENTO)

 Câmera Fujifilm Finepix S2980 - R$ 498  Combustível utilizado nos deslocamentos até a comunidade - R$ 156  Duas cópias do relatório encadernado em espiral para a qualificação R$20  Três cópias do relatório encadernado em espiral para a banca - R$ 40  Três cópias do produto final impressas em papel A4 sulfite e encadernadas em brochura para a banca - R$ 214  Uma cópia da versão final do relatório encadernado em capa dura para o curso - R$ 35  Uma cópia da versão final do livro impressa em papel couché e encadernada em capa dura para o curso - R$ 130


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7- CONCLUSÕES

Este Projeto Experimental permitiu que eu colocasse em prática todos os aprendizados de quatro anos no Curso de Jornalismo. Para obter um produto final de qualidade foi preciso pesquisar a respeito do tema, aprimorar minhas técnicas de fotografia e fotojornalismo, lapidar minha redação jornalística, tomar decisões éticas, lidar com a responsabilidade do deadline, rever meus conceitos de diagramação, gravar e decupar áudios, editar e cuidar dos detalhes da impressão. Porém, mais relevante que todo o aprimoramento tecnológico, o Trabalho de Conclusão de Curso me possibilitou a aproximação das fontes por um período de tempo maior. O desafio de me incluir na realidade de outras pessoas e buscar a aceitação do meu trabalho, bem como a colaboração deles. Também aprendi mais sobre a Comunidade São Benedito e a matriarca Eva Maria de Jesus, que são parte da história do município de Campo Grande. Descobri a importância que a trajetória da ex-escrava tem. Não apenas para os descendentes como também para todos que acreditam em uma país com igualdade racial e são inspirados por uma mulher que construiu uma vila onde seus descendentes pudessem viver livremente e ter acesso a novas oportunidades. Na comunidade, onde quase todos pertencem à mesma família e a união prevalece apesar das diferenças, como a religião, percebi a importância do trabalho em grupo. Conceito que também ficou nítido nas tantas vezes que precisei pedir ajuda a alguém para prosseguir com meu trabalho. Todo o processo fez eu me tornar mais profissional, consciente de que tenho capacidade para realizar o trabalho ao qual me propus quando ingressei no curso para me graduar Jornalista. Ao mesmo tempo em que tive certeza de que ainda tenho muito a aprender sobre a profissão, para desempenhar melhor as funções para as quais for designada.


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8 - APÊNDICES

Apêndice 1 – Entrevista com Eurides Antônio da Silva – 23 de maio de 2013 Faça uma apresentação sua. Sou Eurides Antônio da Silva, popular Bolinho. Nasci em 1963. Fiz 50 anos agora no mês de abril. Sempre morei na comunidade, com muito orgulho. Sou filho do senhor Sérgio Antônio da Silva, seu Michel e filho de dona Luzia Bento. Com muito orgulho. Você sempre participou da festa? Eu nasci praticamente dentro da festa. Porque meu pai, seu Michel, praticamente a festa era realizada sobre a sombra das mangueiras, debaixo da minha casa, da casa do meu pai. E eu nasci ali, vendo, assistindo, participando. E depois de muitos anos ajudando a organizar essa festa que faz parte da nossa família. Com muito orgulho. Como é a organização? Antes nós não tínhamos uma Associação dos Descendentes da Tia Eva. Era realizado através do meu pai e dos amigos que se reuniam. Cada um assumia uma particularidade dentro da festa. Com certeza o objetivo maior era não deixar essa tradição cair, né. Assim como diz Tia Eva, que a família não deixasse ela acabar. Hoje a organização é de uma forma até diferente. Antes não tinha apoio do governo do estado e da prefeitura municipal através das bandas, da segurança. E antes era assim mesmo, na batalha, na luta. Era a comunidade que fazia as quermesses antes pra que pudesse realizar a tradicional Festa de São Benedito. O que mudou na festa? Falar que não houve mudança, houve sim. Eu me lembro que antes a festa era sobre as mangueira, os caramanchão. Então não era cobrada a entrada. Até porque quase que não tinha despesa. E hoje não tem jeito, se paga luz, se paga água. Então tem que tirar o dinheiro através das festividades. Por esse motivo hoje é cobrado. E talvez nem todas as pessoas entendam essas questões. Mas se faz necessário em virtude das despesas que acontecem também durante a realização do evento. Ainda há doações? Sim, hoje de uma maneira bem menor. Antigamente existia uma participação maior dos devotos de São Benedito. Eles contribuíam mais. E hoje a gente percebe que


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aquelas pessoas antigas se afastaram um pouco da comunidade. Mas também está sendo feito um trabalho pra que possamos estar resgatando de maneira positiva e dando continuidade a essa tradição. O que a festa significa para você? Pra mim é um marco histórico, de orgulho. Porque eu falo assim: poxa, Tia Eva é minha tataravó e eu sei contar a história de Tia Eva desde o momento em que ela teve a carta de alforria até os dias atuais. E é tão difícil a gente contar um pouco das nossas histórias. Às vezes nós lembramos do nosso pai, da nossa mãe, dos avós, e acabou. Hoje eu falo, quem é descendente de Tia Eva tem que se orgulhar e aprender também essa história tão linda, tão maravilhosa. Você tem filhos? As novas gerações estão dispostas a continuar a festa? Eu faço isso dentro da minha casa. Eu falo pros meus filhos, mesmo eles estando um pouco distante da igreja católica, eu procuro mostrar pra eles a importância da história da Tia Eva. E o que eles representam nesse contexto todo. Nós temos que passar a mostrar para os nossos filhos, para os nossos netos, bisnetos, essa história para que ela não possa se perder. Fale sobre o Torneiro Tia Eva. O Torneio Tia Eva, hoje eu intitulo como torneio histórico, o mais antigo de Campo Grande. Começou na década de 60, na época do seu Otávio Gomes de Araújo, o Tuti. Posteriormente com meu pai, o seu Michel. E hoje eu estou à frente desse torneio há mais de 20 anos. E eu espero que ele não acabe. Ele começou aqui dentro da comunidade. Porque de primeiro nós tínhamos uma área aonde era realizado os torneios de futebol, os campeonatos. E hoje não temos uma área dentro da comunidade na qual possamos fazer nossos torneios. Mas eu espero que com esse tombamento de comunidade quilombola nós possamos resgatar o campo de futebol para dar continuidade. Principalmente passando o futebol para os mais jovens. Pra que possamos estar resgatando, tirando os jovens da droga. O esporte é cultura. O que mais poderia melhorar na comunidade? Eu como um grande esportista já falo: aqui necessitamos urgentemente de uma praça de lazer, em especial o campo de futebol. E eu como sonhador eu disse certa vez pra um prefeito de Campo Grande: olha, nós poderíamos tornar a comunidade como um pelourinho, como um ponto turístico. Eu não queria o asfalto, eu queria o paralelepípedo aqui na comunidade. Eu queria o


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acarajé, o vatapá. Através desse trabalho nós poderíamos não só resgatar a culinária afro, mas também dando oportunidade social pra que cada família possa sobreviver do seu ganho. Eu acho que nós temos uma história muito linda, muito rica. E hoje nós temos tudo se nós tivermos um governante comprometido com a comunidade, capaz de lembrar e fazer isso. É um sonho né. Todos aqui preservam a identidade quilombola? O nosso espaço do salão social é voltado pra essa questão. Há poucos anos tínhamos nossa banda Afroeva, que é um ponto particular da nossa cultura. Tínhamos o Catira. Mas acho assim que há necessidade de nós estarmos resgatando essa questão. E eu acho que é possível. Também passa a ser um sonhos nossos grupos de dança afro. Acho que há possibilidade de estarmos resgatando. A nossa Capoeira, o grupo de Capoeira São Benedito. Isso tudo é um sonho que deixou-se de lado um pouquinho, mas acho que é possível estar resgatando. É um trabalho muito sério. Como fazer isso? Em maneira de parceria. Porque hoje a Associação, ela não tem condições de fazer nada sozinha. Ela tem que buscar parceiros nos órgãos governamentais, e aquelas pessoas, ONGs que possam e que queiram estar somando junto com a comunidade. E a comunidade também querendo, acima de tudo, resgatar os seus valores. Mais alguma coisa? Acho apenas que a comunidade precisa resgatar algumas questões. Como por exemplo o encontro dos descendentes de Tia Eva. Nós temos que resgatar nossa família. Nossa família é muito grande e ela não pode se encontrar apenas nos momentos festivos ou nos momentos fúnebres. Temos que nos encontrar pra que nós possamos nos organizar e nos tornarmos fortes. Porque somos fortes por natureza. Descendentes de Tia Eva, e que fortaleza é Tia Eva. Temos que nos organizar pra que de maneira organizada possamos alcançar nossos sonhos, nossos objetivos.


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Apêndice 2 - Entrevista com Neuza Jerônima dos Santos – 10 de agosto de 2013

Dona Neuza, faça uma apresentação da senhora. Meu nome é Neuza Jerônima Rosa dos Santos, 63 anos. Nasci em 16 de dezembro. Sou residente da comunidade São Benedito, sou tataraneta de Eva Maria de Jesus. Dona de casa, viúva, tenho três filhas e somos em dez irmãos: cinco homens e cinco mulheres, mas já falecida uma. Tenho seis netos e mais os filhos e netos “adotados”. Sou pensionista, cabelereira, manicure, costureira, artesã. Fale sobre sua mãe, dona Narzira da Cruz de Barros. Minha mãe era uma das líder da comunidade, era benzedeira, muito querida pela comunidade toda. Eu tenho uma honra muito grande por ser descendente de Eva Maria de Jesus, fazer parte desta comunidade que eu nasci. Não me criei aqui dentro, fui pra fazenda, meu pai morava em fazenda e voltei pra cá depois de casada. Estou com 30 e poucos anos trabalhando dentro da comunidade, faço pouca coisa pra ajudar, mas aquilo que faço, faço com muito amor. A senhora também benze, como sua mãe? Eu benzo também, mas não faço como minha mãe fazia, ela atendia o público, eu não, só em caso de muita necessidade. Um neto, uma pessoa que eu vejo que tá muito ruim, uma criança, por muita necessidade aí eu benzo, mas não peguei o hábito de benzer igual minha mãe. Minha mãe era diariamente. Porque na benzição você nunca deixa de colher aquilo que a pessoa que você benze tem. Se você já é doente acaba ficando mais doente. Te dá sempre uma molesta, uma coisa ruim. Então eu não me habituei porque isso enfraquece a gente. Te esgota. É como você fazer um serviço pesado. A benzição é uma coisa que exige muito de você. Quem vai benzer e às vezes não tem uma oração, esquece de antes de benzer se resguardar. Então ela causa um certo mau e pra quem é doente já é meio caminho andado. Então eu procuro não benzer muito, benzo os netos, os filhos, gente de fora só no último caso. Tem o “Toído” que benze, mas ele está sempre doente. Já é surdo, é mudo, não fala. Então às vezes tem uma certa dificuldade, então ele não usa muito atender as


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pessoas. Tem o João também, que benzia, mas já faleceu. Hoje não tem ninguém que benze igual minha mãe. Eu tenho um pouco de preconceito com esses assuntos, as pessoas também, pensam que benzição é trabalho espírita e não tem nada a ver, é um dom que Deus dá pra gente. E vai depender muito da fé da pessoa que tá precisando da benzição, da oração, se ela vier pedir com fé ela é bem atendida. Se ela tiver fé na benzição é valida. Se não tiver também, só se for por um milagre de Deus, ou criança às vezes funciona. Mas não tem nada a ver com espiritismo, benzição é uma coisa espiritismo é outra. Eu sou católica e minha família toda também. Há outras religiões na comunidade? Tem muita gente na comunidade que pertence à família e tão mudando de religião. Tao passando a maioria pra igreja evangélica. Isto causa algum conflito? Não é que causa um conflito, simplesmente enfraquece a ideologia que a minha vó deixou. Porque o sentido dela, como ela era católica, é que a família inteira participasse da oração, do terço, dos nove dias da festa. Era uma coisa que era pra ser feita em família. Mesmo que não esteja na época da festa, mas a gente reza o terço durante a semana, ou alguém faz alguma promessa, alguma coisa. Já está bem enfraquecido mesmo a movimentação da festa. A gente já conta mais com as pessoas de fora que com as pessoas mesmo da comunidade, porque a maioria tá virando crente. Eles não participam da festa? Da parte religiosa não participam, vão almoçar lá no dia às vezes. Tem alguns que vai, outros nem vai. Mas não participa já assim, direto. Mas é bastante gente? Olha, já é uma boa porcentagem. Sem contar com as pessoas que moravam pra fora também, na maioria das vezes, eu me lembro que eu era criança bem pequena, quando chegava a época da festa toda hora tava chegando gente da família que vinha. Tinha meus tios que morava em Buriti. Todo mundo vinha pra festa, quando chegava a semana da festa a casa da minha vó ficava atuiada de gente. Tinha a vovó “Bastiana” e a vovó “Tita”, então era duas casas que recebia as pessoas. Ficava bastante gente.


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Hoje você vê que não tem mais isso. Vem no baile, à noite. Depois que termina o terço o pessoal vem pra dançar, mas outras pessoas de fora que vem participar da festa. Mas a família mesmo já não se junta mais como juntava. Pessoal de furnas vinha bastante gente, agora vem menos. Tem mais agora, mas é por causa do pessoal que mudou pra cá né, os filhos que vem pra estudar e os pais ficam trabalhando. Então as pessoas vêm pra cá, mas já ficam na casa dos parentes mais próximos. Já não é como no tempo da minha vó. E por quê? Mesmo em Furnas já tem muita gente evangélica. Faz muito tempo que eu não vou lá, mas vejo falar muito. Vejo as pessoas de lá falando fulano é evangélico, fulano já mudou. Então é igual aqui. E é uma coisa que enfraqueceu bastante a promessa da minha vó, da família toda participar. Então eu sempre falo pra eles, eu acho que a gente deveria fazer um culto ecumênico, porque aí todos participavam, se reuniam. Eles fazem a parte deles e a gente fazia a nossa. A gente cede espaço pras pessoas fazerem o culto, após o nosso terço, que é em primeiro lugar, porque é a religião católica, fazia o terço e depois cedia pra ele. Eu sempre dei essa opinião, mas não foi acatada. O pessoal não aceitou. E depois na hora de almoçar almoçasse todo mundo junto, como no domingo é natural estar toda a família reunida pra almoçar. Hoje a maioria das pessoas que vem é de fora, que vem pro almoço, às vezes não vêm um dia no terço durante a semana, são pessoas que não acompanham a procissão, só vêm pra almoçar e vai embora. Já não tem aquele desfecho sério de responsabilidade com a religião. Como é a relação com a igreja católica? A nossa igreja São Benedito, os padres queriam que passasse pra eles, cedesse a igreja pra diocese. Como meu tio “Michel” não aceitou e nem minha vó, lutaram contra. E muitas pessoas também apoiaram. Porque se era uma coisa da família tinha que ser nossa. Isso foi pra Roma e o Papa falou que não tinha condições de construir duas igrejas do mesmo santo aqui. Tem aquela ali em cima, Nossa Senhora do Rosário e São Benedito, mas eles não poderiam ter colocado São Benedito porque aqui tão próximo já tinha a igreja e ficou duas. Aí porque o papa falou que não podia ter duas, colocaram primeiro Nossa Senhora do Rosário, mas intenção deles era São Benedito. Isso deve ter sido pelo ano de 65, 66, por aí.


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O tio Michel lutou muito, teve uma dificuldade bem grande. Brigou com muitos padres, teve muitos problemas. Dentro da comunidade a gene teve anos aqui que não teve missa. O padre não quis celebrar porque não queria entrar na igreja porque não houve acordo de passar pra eles. A gente rezou terço, teve a procissão e não teve missa. No velório da minha vó Catarina eu não tava aqui, mas o meu tio falou que o padre não entrou pra celebrar. Não benzeu o corpo dentro da igreja. Teve que tirar da igreja e benzer do lado de fora debaixo dum pé-de-manga. Depois disso tiveram mais problemas com a igreja? Agora de uns tempos pra cá estamos bem. Tem missa no dia 11 de novembro, o dia que a Tia Eva faleceu, e no primeiro e último dias de festa. Não tem padre aqui? Não, temos que “pegar emprestado” lá da paróquia São Francisco. Teve ano que tivemos que pegar de outros lugares, mas agora o padre que estiver na São Francisco celebra a missa pra gente. Esses problemas enfraqueceram o catolicismo na comunidade? Acho que não é isso. A igreja evangélica vem tomando conta do mundo todo. A igreja católica teve bastante fraca. (fala dos movimentos da igreja católica e dos papas). “Deus é um só, não existe Deus evangélico, Deus católico, Deus espírita.” É um só que age em todo lugar. Se a gente quiser viver bem tem que se misturar, não tenho dúvida, não adianta ficar um desfazendo da igreja do outro porque isso não vai trazer mais efeito nenhum. Há outras religiões aqui além de catolicismo e dos evangélicos? Diz que tem pessoas que frequentam espiritismo. Pode ser que tem alguém porque o negro tem o dom desse negócio de espiritismo. Mas pelos menos publicamente ninguém confessa, ninguém fala. A liderança feminina predomina na comunidade? O único homem que entro na liderança foi o tio Michel, ele ficou 40 anos, mas mesmo assim a maior parte do tempo com a minha vó. Ele foi um braço direito da minha vó Catarina. Mas também nunca trabalhou sozinho. Toda vida teve mulher junto. Eu mesma, durante o tempo que fiquei aqui dentro, muitos poucos anos eu não participei.


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Porque isto acontece? Acho que é uma dádiva, porque aqui sê vê que a maioria aqui é mulher sozinha que cria os filho sozinha, e que luta, trabalha, sustenta. Minha vó mesmo criou eles sozinha. Casou a a primeira vez, que era o pai da minha mãe, se chamava José Rosa, meu avô. Ela separou dele, teve outro marido, mas também não ficou. E ficou sozinha, criou os filhos. Depois um outro meu tio ficou trabalhando junto com ela. Mas se olhar bem, você conta várias e várias famílias aqui dentro que criou os filho sozinha, só as mulher. É uma liderança, a líder que comprou essa terra pra gente, parece que ela deixou assim uma coisa muito viva, que as mulher tem que ter ânimo, tem que ter posição de ir à luta, e trabalhar e lutar e criar. Fazer a comunidade e ir criando seus filhos, a maioria sozinha. Porque isso não é só aqui na comunidade, mas aqui dentro tem uma grande força. É muitas mulher que tem filho e cria sozinha. Que histórias da Tia Eva a senhora conhece? A história dela é que ela foi uma pessoa muito importante. Quando ela chegou aqui não tinha nem padre. Quando precisava de um padre tinha que buscar em Nioaque, aqui não tinha padre, não tinha nem uma igreja construída ainda. Quando o fundador José Antônio Pereira chegou pra cá diz que já existia uma concentração de negro retirado na cidade. E essa concentração que eles fala era ela, era a família dela aqui nesse lugar. Então quer dizer que ela chegou antes dele. Pelo fato de ser uma mulher e ser uma negra, uma ex-escrava, é que num tá registrado isso no livro ata da cidade né. Num tá na história. Mas que a gente tem certeza que era ela. A concentração de negro mais antiga que tinha aqui na cidade era nós. Era aqui o pessoal da vovó Eva. Como ela era? Como era a família antigamente? Ela tinha três filhas que veio com ela. Chegou aqui se casaram, foi até uma pra Furnas, ficou duas aqui. Mas não é porque uma foi prum canto e outra pra outro que se desligou. Tavam sempre junto, sempre trabalhando, fazendo a festa, tocando o movimento. Acho que isso ficou um marco na família, a união de ter que trabalhar junto. Agora a gente já tem uma dificuldade de juntar as pessoas pra trabalhar, é bem complicado. Mas eu me lembro bem quando eu era criança, o tanto que chegava gente, era aquela união, aquela coisa. Para trabalhar era sempre a família. Depois teve festeiro também. Pegava outras pessoas de fora que vinha ser festeiro. Depois acabou.


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O que é festeiro? Festeiro é a pessoa que fazia a movimentação da festa. Mas como começou a dar muito prejuízo, fazia tudo e levava o dinheiro, deixava a comunidade sem nada. Aí meu tio teve a ideia de serem eles mesmo os festeiro. Deve ter sido por 70, 71, 72. Como eram escolhidos os festeiros? Eles se candidatavam e tinha um sorteio. É necessária uma maior valorização da comunidade? Eu acho que deve ter um reconhecimento. Mas em primeiro lugar, nós aqui do lugar. Haver um reconhecimento de mudar, fazer um trabalho da festa mais aperfeiçoado. Quando conseguir organizar (a gente precisa de uma cozinha arrumada, de um salão bem organizado) e uma diretoria mesmo de afinco, que chega e pega as coisas. Se a gente conseguir se organizar melhor aí a gente pode chegar a esse lugar. Mas vai depender muito, antes da sociedade depende de nós do lugar. E é o que você não tem, não consegue porque as pessoas não quer mais ter responsabilidade, não quer mais ajudar. Todo mundo só quer trabalhar, quer que paga. Tem essa dificuldade. A senhora nem sempre morou aqui? A gente foi criado em fazenda. E aí vinha às vezes aqui na festa, mas a gente não trabalhava na organização né. Às vezes vinha já nos últimos dias da festa, no final de semana né. Depois eu casei. Vinha eu, meu marido. Trazia colchão e colocava um colchonetezinho no chão pra por as criança pra dormi e a gente ia trabalhar no balcão ajudando meu tio. Fazendo as coisas pra vender. Fui pra fazenda com 6, 7 anos e voltei com 19 para 20 anos. Mas eu não morava aqui, minha mãe morava lá na saída de Rochedão. Veio só eu e minha mãe com os irmãos pequenos, meu pai já não veio. A gente não vinha participar, mas eu vinha na festa. Aquele tempo eu era solteira, jovem ainda. Vinha pra dançar. Aí depois que eu casei aí que eu passei a vim trabalhar com meu tio e ajudar. Eu e meu marido. Eu mudei pra cá acho que em 77. Como era a festa antigamente? O que havia antigamente, uma coisa que marcava muito, era a quantidade de gente. Porque tinha festa a semana toda. Tinha o baile, tinha barraca. Faziam barraca pra tudo quanto é lado. E não tinha clube pra pagar ingresso pra entrar. Não tinha um salão especial. A gente fazia festa embaixo dos pé-de-manga. E o pessoal dançava no chão bruto aí a noite toda. E tinha as barracas, aquele movimento.


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E o terço, você vê, a igreja pequenininha ficava lotada de gente e as pessoas por fora, na frente, no fundo da igreja, pra todo lado, acompanhando o terço. Hoje você vai no terço, mesmo na semana da festa, durante a semana só tem nós da família, que é aqueles que vão, que tem muitas pessoas que é da família e também não vai ou não é todo dia que vai, e de fora vem muito pouca gente no terço. O enchimento é depois que termina o terço, que começa música, que faz os baile, é pagode, é música sertaneja, aí enche o salão né. Mas já é completamente diferente. De primeiro a gente dançava a noite toda. O dia às vezes ia acabar sete, oito horas da manhã, que parava o pessoal dançando. E a gente trabalhava até aquelas hora. E o pessoal dançando a gente trabalhando, emendava o dia. Quem tinha tempo conseguia dormir de dia, quem não tinha voltava à noite pra trabalhar, sem dormir e tocava o bonde os nove dias. E hoje não faz mais isso né, só mesmo quem tá na frente que fica ali a noite toda, presidente, algumas pessoas a mais que tá no balcão. Durante a semana não tem festa, é só o terço, não tem aquela movimentação. E de primeiro era direto. Tinha música ao vivo. Era o pessoal do lugar mesmo que tocava. Tinha muito tocador. Agora não, agora você tem que pagar pra tocar. É tudo diferente. E a respeito dos grupos musicais? Tinha muitas pessoas da família que tocava. Às vezes também tinha gente de fora que ajudava, vinha pra tocar. E agora a prefeitura, o governo que paga né os conjunto que vêm tocar. E às vezes não vem coisa boa. Por exemplo esses grupo de pagode que veio, só dá mais é confusão. Só bebedeira e não dá lucro também né. Não é aquela coisa assim, que nem era antigamente né. Como está a participação do jovem? Antigamente participava mais, era muito diferente. Hoje o jovem não quer nada. Agora tá tendo pra rezar terço durante a semana que tem dia que é o grupo de jovem que reza, mas também não é só da comunidade é daqui da saraiva, são roque, todo o pessoal que faz parte da outra igreja, que faz parte da leturgia, vem e reza. Outro dia é Legião de Maria. O que mudou na festa? Antigamente tinha os grupo de catira que apresentava, tinha a dança da fita. Tinha muitas apresentações que vinha de fora, um grupo da universidade, de furnas que


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dançava engenho de maromba, várias coisas diferentes. E hoje não tá tendo mais essas coisas. O que é viver em comunidade? Antigamente não existia essa palavra comunidade, mas quando minha vó planejou essa vida em família, é um movimento comunitário. Se tornou uma comunidade porque a partir de dois, três morador já é uma comunidade. Mas antigamente não existia essa palavra. Hoje é que a gente vê falar em todos os setores se fala comunidade. Antigamente não existia essa frase. Era uma coisa que a gente não sabia dar um nome pra aquilo ali. Mas a vivência em comunidade que eu entendo é quando se trabalha todo mundo, as pessoas têm responsabilidade. Hoje você vai trabalhar naquilo, naquilo. Não tem que tá preocupado se vai receber alguma coisa, se está trabalhando pra pagar alguma coisa, se ele quer uma entrada, se quer isso ou se ele quer aquilo. Hoje em dia aqui se trocam por isso. Se vai alguém ajudar a fazer alguma coisa é porque não quer pagar pra entrar na festa, porque agora tem salão, tem que pagar luz, tem que pagar água, tem conjunto sobrando. É uma coisa que não tem necessidade disso que é da família né. Antes o pessoal da família entrava, não tinha que pagar nada. Todo mundo quem tinha responsabilidade de fazer as coisas não queria saber se ele tinha tempo, se não tinha. Eu trabalhava, eu e meu marido, porque meu marido era pedreiro e eu trabalhava de doméstica. Mas quando chegava a semana da festa a gente ficava esgotado, porque trabalhava a semana toda, não podia faltar serviço e chegava aquela hora você tinha que tá com as coisas arrumadas, frango assado. Mas as pessoas que trabalhavam tinham amor naquilo que tavam fazendo. Hoje não, é eu não vou trabalhar pra ajudar fulano, fulano que tá com dinheiro, ele faz isso, faz aquilo. Já não é praticamente um trabalho comunitário. Como é a relação entre a família fora da época de festa? É cada um pra si, Deus pra todos, na maioria. Ainda tem algumas pessoas que têm aquele jeito de contribuir. Mas não é mais aquela vivência de um tá servindo o outro, tá ajudando, tá fazendo isso, tá fazendo aquilo. É diferente, vai mudando. É como nos outros lugares. Quais transformações ocorreram na comunidade?


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A gente tinha o colégio estadual ali nas irmãs. Minhas filhas mesmo estudaram lá até o quarto ano. Não tinha água encanada, a gente tinha água de poço, não tinha luz, não tinha ônibus na vila. Não tinha asfalto e a gente paga um preço muito caro por isso, com o movimento já machucou muita criança. Agora a gente tem colégio, tem creche, várias coisas. Mas na realidade você paga às vezes um preço meio alto pelo progresso. A questão dos acidentes, porque cresce o movimento. Quando saiu o asfalto na Rua Eva Maria de Jesus a gente teve problema várias vezes com criança machucando, acidente. O que ainda precisa melhorar? A gente precisa de mais mercado, uma casa de aviamento pra costura, mais salões de beleza, um bom açougue, uma padaria (que só tem próximo, mas não dentro da comunidade), ainda falta, uma farmácia mais próxima. A família da senhora estudou no Colégio? Minhas filhas estudaram na imaculada conceição e meus netos aqui. Como as pessoas “de fora” adentraram na comunidade? Casamento. Tem algumas pessoas que habitam aqui e não são casadas com alguém da família, a sede do gaúcho, a associação dos gráficos. Tinha um senhor que construiu umas casas, mas agora também já não tá mais aí. Como está a questão das terras? Aqui ficou uma confusão. Eu tenho casa, tudo aqui, mas a gente não tem a escritura. O terreno, que era da minha vó, tá no nome do meu tio. Não fizeram inventário. Agora passa pra ser quilombo, a gente não sabe como vai ficar bem. Você tem que ficar ali, não pode vender e não fica no nosso nome. Como manter a tradição? A família unida? É uma benção de Deus quem consegue ainda ter a família unida, porque a maioria vai se desvinculando, vai se dispersando. Mas eu acho que pelo fato de ter sido uma comunidade implantada por alguém que veio, construiu, isso nunca vai perder o vínculo da comunidade e dás famílias. Há algumas que se desvinculam, desentendem, se separam, mas a maioria consegue se manter, com um pouco de dificuldade, mas consegue. Do que a senhora mais se orgulha? A vida, não tem uma coisa em especial, é o trabalho da minha tataravó que passou pra bisa, pra vó, minha mãe, meu tio e esse processo da família. O fato da gente já ter no lugar colégio, ter conseguido os filhos casar. Ter os filhos, hoje eu tô sozinha,


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tô viúva há 20 e tantos anos. Tô com as minhas filhas graças a Deus. Uma é casada, a outra está amasiada, mas não está sozinha, tem dois filhos, a outra tem três, a outra tá aqui comigo. E a gente consegue viver unido. Tem alguns problemas que não deixa de ter sempre um “arracarabozinho”, uma confusãozinha, que é coisa de família. O maior prazer que eu tenho é ter conseguido criar elas e tá hoje todas as três formadas, graças a Deus. Eu sempre falo pra eles que casamento antes era segurança, hoje é desconfiança. Eu falo pra eles, o que tem que fazer é trabalhar, estudar com dignidade, ter responsabilidade de se formar pra ter um salário digno não depender de tá contando com o dinheiro de marido. Eu fiquei viúva, não me formei, mas consegui cria-las sozinha. Meu marido se chamava Ildo Martins dos Santos. Eu fiquei viúva com 37 anos, não me casei mais, consegui criar elas todas graças a Deus. Com um pouco de dificuldade, trabalhando, pus pra trabalhar. Porque eu nasci aqui, me criei em fazenda, trabalhava em tudo quanto era coisa. Em tudo que meu pai foi trabalhar a gente pegou junto e deu conta. Aqui eu pus elas pra trabalhar de domésticas. Estudava e trabalhava em casa de família. Com 12, 13 anos elas já tavam trabalhando, mas também estudando. Essa que tá aqui, com 22 anos tava se formando. A outra se formou depois. Deu briga, deu confusão, porque não queria, não fazia questão. Mas eu lutei até pôr todo mundo formado. A mulher não tem que pensar que vai ter marido pra sustentar até o fim. Nem filho você pode contar com ele pra te sustentar a vida toda. Você tem que ter capacidade pra viver sozinha e se manter. A senhora já sofreu preconceito? Nossa, e muito. Você pode ter certeza que o negro não tem pra onde ele ir que não sofre preconceito. Às vezes até nos seus próprios lugares, aqui dentro da comunidade mesmo, você consegue sofrer preconceito, com pessoas que vêm de fora, com pessoas que você convive, às vezes dentro da comunidade com os próprios parente, às vezes na própria família. Preconceito é tão natural isso, que você não se livra dele, ainda mais com o fato de ser mulher, de ser negra, em todos os sentidos. Eu não olho pra ele não, se quer falar, quer criticar, faça o que achar que deve. Se eu perceber que estou sendo discriminada, eu não vou abaixar a cabeça, ficar com vergonha, eu ando de cabeça erguida. Eu vivo direito, graças a Deus, sou honesta, sou trabalhadeira, tenho força


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de vontade. Não criei meus filhos roubando, nem tirando dinheiro de ninguém. Eu tenho dignidade. Sempre falo pras minhas filhas: a maior herança que a gente tem na vida é a dignidade. Isso de saber trabalhar, ter coragem, disposição e força de vontade pra sobreviver, não viver dependendo dos outros. Quais atividades a senhora já realizou? Toda vida eu trabalhei como doméstica. Fui faxineira oito anos, quando fiquei viúva, o sapato apertou bastante no pé. Fui trabalhar de faxina porque dava mais dinheiro. Trabalhei 8 anos direto, que nem cantiga de grilo. Tinha dia que nem sábado, nem domingo tinha folga, mas trabalhava. Eu vendi roupa, eu vendi calçado, eu trabalhei fazendo cabelo, aprendi a trançar. Trancei muito cabelo, me ajudou muito aqui. Fui manicure, fui costureira. Eu trabalhava fazendo salgado na festa pra ajudar a vender pra benefício do salão. Eu fiz curso de artesanato, de argila. Eu fiz curso de bordado, de cozinha. Eu trabalhei numa rádio. Nós fizemos um filme também, um documentário da comunidade. Eu trabalhei também como repórter. Eu não tenho medo de arriscar, porque se tá aí e é pra aprender, tem que exercitar. Se você não for capaz, tudo bem, você larga, desiste. Mas, até agora, graças a Deus, nunca tive nada pra fazer que eu pegasse e não desse conta. Disso eu me orgulho. Sou pequena, não tenho estudo. Estudei muito pouco, há 40 anos atrás em escola de fazenda. A gente tinha uma dificuldade tremenda, andava 3 km a pé pra poder chegar no colégio. Às vezes não tinha roupa, não tinha isso ou aquilo, ia do jeito que dava pra ir, naquele sacrifício todo. Fiz até o segundo ano, naquele tempo era primeiro, A, B, C. Mudamos de fazenda, o patrão do meu pai falou que ia ter escola lá pra nós e no final das contas não teve nada. Depois a gente veio pra cidade. Eu trouxe minha mãe e meus cinco irmãos, tudo pequeno. Eu tinha que trabalhar pra ajudar minha mãe a sustentar. Não podia estudar, não dava tempo. Casei, arrumei os filhos. Quando mudei pra cá comecei a estudar no mobral, ali nas irmãs, na imaculada conceição. Eu tive um aneurisma, tive que parar, não estudei mais. Depois comecei no mobral, tive outro problema, uma hemorragia, tive que parar outra vez. Aí depois eu voltei a estudar um pouco aqui na igreja batista. Mas aí a professora era muito fraca, fazia mais artesanato, aí aprendi bastante coisa. Tem mais alguma coisa que a senhora gostaria de falar?


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O trabalho que mais me comoveu, que mais me deixou feliz nessa comunidade foi o trabalho da rádio, que veio da universidade federal. A gente teve o vídeo, que a gente fez o documentário. Depois passamos pra rádio. A gente tinha uma equipe de 23 pessoas, mas todo mundo ficou assim meio com medo. A gente foi na rádio na universidade fazer o programa piloto. E lá eu fiquei tão nervosa que não consegui, tinha que ler. Nem eu nem meu tio desembaraçamos muito. Mas quando vem pra comunidade você se sente mais em casa. Quando eu vi que ninguém tava querendo assumir, eu e uma menina que morava aqui, a Marilda, assumimos essa parte. Nós fazíamos o programa. Aí depois a Marilda saiu, eu fiquei mais dois anos fazendo a programação sozinha. Eu escrevia o programa, decorava e fazia lá. Teve uma vez que vieram uns embaixador da África, a primeira vez. Trabalhei tanto, fique tão esgotada que tive um aneurisma, fiquei ruim. Aí minhas filhas foram fazer o programa de rádio, uns dois ou três sábados. Quando melhorei, continuei fazendo. Foi a melhor época. Sempre falo que eu tinha loucura por ser advogada. Depois desse trabalho do vídeo e da rádio, me apaixonei por jornalismo. Porque às vezes você nasce, se cria e morre sem saber até que ponto você era capaz de chegar, como era a sua capacidade. Foi um prazer imenso, foi o melhor tempo que eu tive dentro da comunidade. Eu e a Marilda criava tanta coisa, fomos ao supermercado, fazia propaganda, pedia ajuda pra dar brinde. Foi um trabalho que me fez ver do que a gente é capaz.


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Apêndice 3 - Entrevista com Lúcia da Silva Araújo – 15 de agosto de 2013

Faça uma apresentação sua. Meu nome é Lúcia da Silva, eu sou tataraneta de Eva Maria de Jesus. Meu pai é Otávio Gomes de Araújo, minha mãe é Ramona Antônia da Silva de Araújo. Tenho três filhas e sou casada com Ademir Guimarães. Que histórias você conhece sobre a Tia Eva? Tia Eva veio devido à necessidade de um lugar. Era muito recente a sua libertação. Ela era um ex-escrava. Teve sua alforria fazia pouco tempo. Ela estava em busca de um espaço pra começar a vida. Eu acho que esse foi um grande motivo E teve a notícia onde ela tava, em Goiás, que aqui em Mato Grosso do Sul tinha essas terras. E poderia ter um bom começo de vida. E acho que várias comitivas já tinham vindo. Ela veio em busca desse novo caminho. Dessa nova vida. Como ela era conhecida na região? Campo Grande acho que era um vilarejo ainda. Em 1905, Campo Grande acho que nem vilarejo ainda era. E ela veio, ficou conhecida como benzedeira, como parteira. Na época não vinha padre. Tinha dificuldade. Tinha que trazer de Nioaque se não e engano. Ela fez essa parte de batizados. Sabe, quando não tinha padre, ela que fazia essa parte. Um recurso como o SUS que a gente tem hoje, não era bom naquela época. Então ela foi parteira também. Ela acho que foi uma pessoa que ajudou muito nesse crescimento, porque logo em seguida ela já começou a fazer a festa de são benedito. Que os antigos contam que vinha gente da região todinha. Trouxe imigrantes pra essa cidade. Eu acho que a Tia Eva fez um leque, um elo entre Campo Grande e as cidades vizinhas. Devido à essa grande festa que ela fez, de São Benedito. Fale sobre a herança matriarcal da comunidade. É devido à fundação ser feita por uma mulher. Seu Michel foi o único homem que a gente sabe que foi presidente dessa Associação. E no fundo, como dizem os antigos, ele foi criado, ele teve segmento de uma mulher. A mulher quando fica à frente tem uma outra visão, mais de mãe, a gente tenta resolver os problemas como se fosse os da nossa casa. Não á a parte estrutural só, a infraestrutura que ela se preocupa, ela se preocupa mais com a pessoa. A mulher procura ver mais com os problemas da família.


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No meu me mandato eu me preocupo com onde vai esse jovem, o que eu posso oferecer pra eles verem um novo horizonte lá fora. Sabe, essas preocupações. Como que tá cada família da comunidade. Isso fica na sua cabeça. A minha maior preocupação é: será que eu tô fazendo igual a Tia Eva? Porque aqui dentro da comunidade, Tia Eva sempre tentou unir a família. E eu sinto falta, como meu pai falava, a gente tinha o café na casa da vovó. Ali a gente sabia dos problemas, como tá a vida do outro. Não saber das fofocas, mas assim, como é que tá fulano hoje. A preocupação da mulher é maior do que a do homem. Fale sobre a Associação dos Descendentes. Tenho 32 anos de vida comunitária, fui presidente de clube de mães, associação de moradores. Uma época um grupo me chamou. Eu nunca tive o interesse de ser da família. Porque eu acho que de todas essas entidades, a Tia Eva é um outro olhar. Não é o mesmo olhar. Porque clube de mães é curso pra mulher, associação é infraestrutura. Agora a Tia Eva, além de tudo isso você tem que tentar manter essa união do povo. Quando me chamou, primeiro me deu um choque. Eu em senti assim, será que eu dou conta? E a gente viu que teve a necessidade. A comunidade ela tava atravessando uma crise. A ligação do governo, do poder público com a gente tava se isolando. E como eu tava no meio devido à associação, além de ser da família, me chamaram pra assumir essa entidade e eu resolvi ir. Em 96 eu entrei, hoje estou entrando no terceiro mandato. Era de três em três anos, agora é de quatro em quatro anos, a gente mudou o estatuto. São 13 integrantes que tem na Associação: Vânia, Benedita, Edinéia, Andréa, Joel, Danusa, Sheila, Claudete e outras pessoas. Qual o papel da associação? Na verdade a gente acha que é todos. Todas as necessidades. Mas a gente tá trabalhando como outra entidade, além da preocupação com a família, que é maior. Mas o papel da entidade é isso, é principalmente promover essa festa, que isso está até no estatuto, que tem que fazer. É cuidar cada vez mais da nossa família, é unir a família. O que fazer para conseguir cursos? O clube de mães não é ligado à Comunidade Tia Eva. Ele já abrange uma parte que não é só descendente. A comunidade está no meio. Mas a associação vive correndo


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sempre onde que sabe que tem, SAS, Seleta, Funsat, Funtrab. Aonde a gente sabe que tá dando curso a gente vai atrás. Faz parceiros e trás aqui pra dentro. Sem contar com outras entidades como o Pontão. Várias pessoas que a gente sabe que tem curso pra trazer pra cá e a gente vai atrás. Pró-jovem. Sempre a gente buscou essa parceria de curso. Como é a relação da comunidade com a Associação? Ela é como todas as outras associações. A minoria.

A maioria só vem assim,

quando tem alguma coisa pra repartir. Mas devagar eu acho que tá voltando. No começo era pior. No primeiro mandato foi pior. Não sei se não tava acreditando. Não sei o que era. No primeiro mandato eu senti que foi bem pior. Nos primeiros dois anos teve momento que eu tive vontade de desistir. Mas agora eu acho que está chegando. A nossa cabeça é outra. A gente tá tentando buscar isso. Mas o que eu senti nesses três mandatos é uma coisa que é falha não da comunidade, mas da associação, é mais assembleia. E mais trazer, não só na hora do curso, mais a família mesmo, os moradores para o salão, discutir, fazer eles debaterem mais coisas. Eu acho que essa falha a Associação tem. Eu acho que a gente discute muito na hora da festa. Ou eu chego na casa falando tem um curso, tem isso, tem aquilo. Acho que não é por aí. O que a gente tá tentando fazer agora, na última reunião, é o que a gente vai fazer pra trazer eles mais pra dentro. Eu acho que se eles discutirem os assuntos, eles vão tá mais interagidos. Eu via eles muito distante. Eu me sentia muito sozinha. Era mais na parte da festa, na hora da gente distribuir alguma coisa. Era muita cobrança e pouco trabalho. No primeiro mandato cheguei a chamar um grupo pra conversar. E a gente viu que foi mudando. Acho que devagar a gente chega lá. Como funciona o bazar? Essa roupa, eles dão um tanto pra gente, ou a gente vende pros outros e fica com uma porcentagem. A gente faz isso pras irmãs que cuidam das crianças com AIDS, para os vicentinos. Agora estamos tentando abrir nosso bazar. Porque todo mundo aqui compra roupa de bazar. Como a maioria das roupas não é nossa, a gente viu que dá pra fazer isso. A gente consegue pagar, água, luz, gás, não é um dinheirão, mas... Muitas vezes a gente ganhava roupa, ganhava as coisas aqui na comunidade e você dava, ah vamos dar pra fulano. A gente via que não tava legal. Nem se for pra


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comprar dez centavos, você comprando aquilo que é seu, que você quer usar, é mais valorizado. E o que sobra mandamos pra algum lugar, pra Furnas, pra assentamento, ou devolve pro dono. Que outras atividades vocês realizam? Festas, baile, almoço, brechó, rifa. Várias coisas. Ficamos o primeiro e o segundo mandato, não tinha água, luz na associação, e tava com um débito muito grande no projeto do FIC, que a outra administração deixou, foram enganados... Tivemos que pagar várias contas que foram deixadas. Não podíamos fazer convênio com estado, município, porque quando você deve uma esfera fecham as três. Este ano, com a festa é que conseguimos juntar o montante de R$ 18.213, pagar o FIC. Então só agora a Associação pode pleitear um convênio pra ela se manter. Tem que pagar ônibus, mototáxi. Agora temos dinheiro em caixa, não devemos ninguém. Levou sete anos pra pagar uma conta, mas pagamos. A outra associação fez três projetos pelo qual não acertaram o dinheiro com o Estado. Que transformações aconteceram na comunidade? Vim pra cá com oito anos de idade. Agora tem asfalto, escola, creche, ônibus. Eu acho que ela transformou totalmente. O jeito de cozinhar, a gente cozinhava muito em fogão de lenha, carregava lenha. Agora tem coleta de lixo, que antes era queimado. A gente lavava roupa no corgo, dia de sábado as mulheres desciam com trouxas e trouxas. Luz era lamparina. A gente estudava na escola Imaculada Conceição que era das freiras, primeiro estudamos no padres, que era o seminário diocesano ali. Até vim a nossa escola. Tinha menos gente aqui. Vai fazer uns dez anos que o pessoal veio de Furnas, trazer os filhos pra estudar. Aumentou as casas. Tinha mais plantação, hoje não tem mais, não tem espaço. O que a gente sentiu aqui na comunidade. Acho que é em geral. É uma área de lazer, que antigamente eles num pensaram nisso. De deixar um lote pra fazer uma área de lazer. Isso eu sinto que os jovens, todo mundo sente falta. O cemitério era clandestino, registraram os corpos, cada família levou para o cemitério onde tinha seus outros parentes e a Tia Eva ficou na igreja. Era lá onde está o piso na frente da igreja. Nosso maior problema hoje é a creche. Porque a maioria das crianças é menor de três anos e ela não pega, tem que ir pra Vila Nasser ou pro Monte Castelo. E


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geralmente esses bairros são de população grande. Então pra pleitear uma vaga já vi gente perdendo serviço. Porque uma doméstica ela não consegue pagar. Ninguém quer receber hoje menos de 300 reais pra cuidar uma criança. Então uma doméstica ela ganha um salário mínimo. Nosso sonho é que as terras vão voltar e a área de lazer da associação dos gráficos vai ser nossa, com piscina, campo de futebol, mas ainda vai levar uns dois anos. Mas já era pra ter acabado esse processo nosso, ficou quatro anos e meio parado. Agora estamos acabando andando com o estudo antropológico. Mas ficou quatro anos e meio parado. O INCRA perdeu uns convênios que tinha pra pagar as pessoas que fica com essa parte. E quem foi prejudicado foi não só São Benedito, como todas as comunidades quilombolas que tá no mesmo processo. Tem que notificar as pessoas, comprar a terra pra depois devolver pra gente. O INCRA já está nessa conversa. Como funciona a organização da festa? Começa no final de fevereiro, começo de março. Nosso maior problema hoje é que ela se tornou uma festa cara. Antigamente eles pegava uma sanfona pé-de-bode, um violão. Era um baile grande. Vamos pegar lá pelos anos 40, 60, 70. Hoje, pro público vim ou até mesmo a comunidade vim tem que ser um cantor de nome. Está cantando os mesmos que cantam na festa de Santo Antônio. Esse nome tem que ter pro público vim, é o “chama” que a gente fala. Mas o nosso maior problema hoje tá sendo os órgãos governamentais. A gente manda os ofícios pedindo ajuda, músicos, em março, final de fevereiro. Quando é 15 dias antes da festa eles avisam quem vai cantar. Essa falta de respeito com a gente tá atrapalhando, você tem 15 dias de divulgação. E a comunidade fica cobrando, porque o que eles mais adoram é pegar o convite da festa e sair entregando para os amigos. Como funciona a parceria? O estado pega metade dos dias com músico, segurança. E a prefeitura a outra metade. O pessoal da comunidade ajuda? Os mais velhos. Antigamente eles lutavam pela igreja, para manter esse milagre vivo. Uma boa missa, um bom terço, uma boa procissão. E essa juventude está mais preocupada com a parte cultural, quem vai cantar. Então nessa parte no salão você tem ajuda até demais. Mas quando se trata lá de baixo, que é a parte fundamental


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da festa, a gente vê a presença dos mais idosos, dos mais responsáveis. A juventude não tá preocupada com isso. Eles participam só do baile. A gente já tá preocupada com quem vai manter a festa. Ano que vem a gente vai tentar colocar uma responsabilidade maior. Tentar fazer alguma coisa aqui dentro pra mostrar pra eles que eles não podem parar. Porque do jeito que vai indo, se a gente deixar do jeito que tá, eu não sei até que ano a gente vai levar isso. Quais os grupos musicais da comunidade? Temos dois grupos de pagode, profissionais. Se não tiver nada pra fazer estão aqui. E muitas vezes a gente dá um pagamento. Os músicos da prefeitura cantam uma hora e meia. A Associação é responsável pelo resto de baile. Seis, sete noites, não é mais dez. Hoje são dez dias de festa, mas na parte cultural a gente só faz sete. O pessoal não vem eu acho que porque a dificuldade financeira é maior. Vinha mais pessoal de outras cidades, Terenos, Jaraguari, Furnas. Vinha de carro de boi pra cá. Eles falavam que era 15, 20 dias de festa. Eles se alojavam por aqui. Hoje é um pessoal mais jovem, os antigos não vêm mais Vocês ainda recebem doações para a festa? A gente perdeu muita coisa. Agora me pergunta por que, eu não sei. Hoje mesmo a gente tem um pessoal que doa vaca. E eles saiam em comitiva né. Tia Eva saía um mês antes da festa arrecadando coisa nas fazendas. E hoje não tem mais né. Tinha uma bandeira que eles andavam. Iam ao redor, iam em outras fazendas. Era frango, era porco. Eles arrecadavam assim. A gente não faz mais isso. Cobramos ingresso porque antigamente eles ano tinham que pagar músicos, porque por exemplo eu ganho o chama, aquele cantor que todo mundo quer ver. Mas eles não fazem um baile. Tenho que fazer o baile antes dele subir no palco e depois que ele vai embora. A gente coloca ele pra cantar lá pra meia noite e depois eles vão embora a gente continua o baile. Eles não pagavam isso. Era um canto só e o sanfoneiro ia revezando. Eles também não pagavam seguranças (80 reais cada). Mas é preço simbólico, não passa de cinco reais. Esse ano a gente ganhou duas vacas e meia pro almoço. Geralmente aparece gente da casa e mais uns pra preparar as coisas. Churrasqueiros se oferecem. Vêm várias senhoras que se oferecem pra fazer almoço. Umas já disseram que querem fazer por três anos pra pagar promessa. Eu falei por dois eu sei que você pode fazer. Vem


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na procissão e vem fala que o arroz e a salada toda é da nossa família. O governo também manda algumas coisas. Como está a parte religiosa? Eu acho que a população mais jovem não tá tendo esse interesse. Eu faço parte da igreja católica Nossa Senhora do Rosário. Lá também a gente tem essa preocupação. O jovem quase não aparece na igreja. É geral. Os evangélicos colocaram barracas na hora da festa, mas não vem na parte religiosa. No fundo do salão mora muitos evangélicos. Quando precisa fazer um pagode que não é na festa eles se incomodam. Tem uma coisa que está incomodando muito Campo Grande hoje, o Brasil inteiro, que é o tal do carro de som, a balada, o funk no carro de som. Isso atrapalha muito seu evento. Então acaba a festa, se todo mundo fosse embora era uma coisa. Mas o carro de som fica ligado na rua e o povo quer ficar até de madrugada, até o outro dia no meio da rua. Quantos não são católicos? trinta por cento. Se tem além de evangélicos tá escondido. Muitos até assustam: ai, candomblé. A gente foi criado assim que não podia nem misturar. Meu pai se soubesse que você mexia com macumba, dava um jeito da gente se afastar. Muitos têm isso ainda, colocaram na nossa cabeça, a gente era criado com terço, tinha um dia da família que rezava terço. Dia de sexta era cheio a igreja, da nossa família só. Hoje vem aí tem seis, sete pessoas. Isso tem relação com os conflitos com a igreja? O povo hoje não vai pela fé, vai em busca de alguma coisa e igreja evangélica oferece mais coisa. Lá na igreja evangélica eles vão em busca de alguma coisa material ou espiritual pra si mesma, que eles acham que vão encontrar em outro lugar. Quem é católico vai normal na igreja. A única coisa que eles não aceitaram é que a diocese tomasse conta dessa igreja. Com medo de perder tudo, que os padres tomassem conta de tudo, da terra e alguns pedaços onde a Tia Eva plantava tudo, que viu que foi perdendo pros padres. Nesse estudo do INCRA, aqui atrás é dos padres e o bispo já falou que quando chegar a hora vai devolver. Por que vocês são uma comunidade quilombola? Porque a gente é descendente de uma ex-escrava. Onde tem uma concentração de negros junto, geralmente fala quilombo. Brasília veio e certificou devido à isso, uma


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concentração de várias famílias negras no mesmo lugar. Só que a gente não falava quilombo, falava comunidade só. Quantos moradores? O ultimo levantamento, há três anos e meio estava com 87 casas, contando que um cômodo que estava com uma família separada lá dentro era uma casa. Estava em 487 famílias, mas acho que teve mais uns oito que nasceu. A Vânia tem os dados. Quantos não são descendentes? Terrenos que já venderam, acho que tem 25 pessoas. 900 e poucos descendentes estão lá fora. Na festa a maioria vem, não tem como. É a data que a gente mais vê uma o outro. Alguns evangélicos vêm na hora do almoço. Fale de você. Nasci em Campo Grande. Vim pra cá com oito anos, morava antes próximo da Euller de Azevedo porque meu pai tinha vendido o terreno, mas a pessoa que comprou do meu pai acho que não se interessou. Então primeiro fizemos nossa casa na Saraiva, que é a vila do lado. Depois eu e minha irmã casamos, minha irmã fez a casa dela e eu a minha. Meu pai voltou para dentro do terreno e ninguém nunca mais nos procurou para falar nada. Estudei no colégio dos padres, depois na Imaculada Conceição. Meu ensino médio fiz na escola 26 de Agosto. Parei de estudar porque casei com 27 anos e terminei meu ensino médio na escola Antônio Delfino, aqui dentro da comunidade. Minha primeira filha tive em 89, a outra 92 e o menino 95. A família do meu pai é política, meu pai viveu na política, além de ser pedreiro. O único lugar que trabalhei foi na escola Elizabel como inspetora de aluno aí já me levaram para a política, teve um concurso na prefeitura, não passei. Qual a importância da comunidade para Campo Grande? Tem gente que fez prédio, até na estrutura de obras de campo grande, santa casa. E a Tia Eva levou o nome dessa cidade pra outras, devido à festa, e o mito que todo mundo fala. É difícil chegar num lugar, até em outro estado que ninguém conheça a história. Divulgação lá fora. Do que você tem mais orgulho na comunidade? De ser descendente de Tia Eva, fazer parte da história dessa mulher, levar o nome dela. Eu acho que ela foi uma grande mulher, uma grande guerreira e sonho um dia ser como ela.


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Você já sofreu preconceito? Todos nós aqui acho que já. Quando vai procurar serviço. Teve jovem com melhores currículos que não conseguiram o emprego. A primeira vez eu fiquei bem mal, mas passa. Só que geralmente fica uma mágoa na gente, uma coisa estranha, que eu não sei explicar.


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Apêndice 4 - Entrevista com Sérgio Antônio da Silva – 15 de agosto de 2013

Faça uma apresentação sua. Eu me chamo Sérgio Antônio da Silva, mais conhecido como seu Michel, tenho 78 anos, 11 filhos e tenho minha esposa Luzia Bento da Silva. E sou bisneto da Tia Eva. Que histórias da Tia Eva o senhor conhece? A construção da comunidade foi reconstruída pela Tia Eva, que era minha vó. Ela é uma pessoa que ainda pegou o tempo da escravidão. E naquele tempo quando terminava a abolição, os escravos ficavam com medo que podia voltar a escravidão então todo mundo se mandava. E ela veio. A gente sabe que não tinha outra condução a não ser o carro de boi e cavalo. Foi a condução que ela chegou aqui em Campo Grande. E ela era muito devota de São Benedito, fez esse voto de que se fosse feliz, e tinha também uma ferida na perna, se sarasse, ela compraria um terreno e construiria uma capelinha. Então primeiro construiu uma de madeira, em 1912. Eu conheci essa pessoa que ajudou a fazer essa igrejinha de madeira. Só que primeiramente ela requereu essa terra, por um senhor intendente, naquele tempo ano falava prefeito, era intendente, Nilo Javary Barém, o qual ela pagou por oito hectares de terra 85 mil réis. Esses 85 mil réis que ela pagou, naquele tempo era a lei dos primeiro verador que tomaram posse, lá em 1905. Então nessa área urbana tinha que ser oito hectares. Então foi depois ai que ela construiu a capelinha em 1912 e 1919 ela construiu isso ai. E no dia 11 de novembro de 1926 ela faleceu. Então a Tia Eva se tornou uma grande liderança aqui porque naquele tempo, aqui não tinha padre, então tinha que fazer um casamento, alguma coisa, tinha que buscar padre lá em Miranda. E a Tia Eva então fazia o trabalho como se fosse um sacerdote, ministro da igreja, como faz hoje. Quando morria alguém, vinha atrás da Tia Eva que ela sabia rezar muito. E também como não tinha maternidade. Então quando nascia e quando morria só dava Tia Eva. Então ela se tornou uma liderança que minha mãe fala que quando ela morreu a cidade toda parou, como se fosse uma pessoa importante, um governador. Devido a importância que a Tia Eva teve. Então a importância não só para o


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desenvolvimento social e cultural de Campo Grande mas também para o brasil porque ela foi escrava e trabalhou sem nenhuma remuneração. Então hoje ela é uma grande liderança não só pra nós que somos descendente, mas pra todos os brasileiros. O senhor pode falar um pouco da sua mãe, Catarina? Minha mãe é o seguinte, chamava-se Catarina Rosa da Cruz e ela foi uma pessoa que pegou ainda naquele tempo do meu avô, que mulher não podia aprender ler. Então todos os irmãos dela aprenderam a ler e as mulheres não aprendiam, meu avo não deixava porque dizia que ia escrever carta pra namorado. Ela foi uma das pessoas que morreu sem poder assinar pelo menos o nome. Mas eu se tornei a frente dessa comunidade porque é o seguinte. Minha vó Sebastiana, que era fia da Tia Eva, faleceu na minha casa. Então por isso que eu fiquei à frente dessa comunidade por 50 anos. E numa vida difícil quando naquele tempo ano tinha luz, não tinha água encanada, ano tinha nada. A igreja também quando eu assumi ela tava com o piso feito ainda de 1919. Tinha cada baita buracão dentro da igreja então eu consegui trocar o piso dela. Chovia, não tinha banco. Então o pessoal fazia festa mas não procurava progredir. Que as festa era do outro lado onde mora uma sobrinha minha ali. Então minha vó alugava pro pessoal fazer festa. A turma nunca pensou de ter um salão pra tirar o movimento da festa da casa da gente. Aí então eu arrumei uma diretoria provisória aqui da igreja. Um senhor com o nome Sebastião Cuiabano. Ele era muito amigo do Antônio Mendes Canal. Isso a prefeitura era aqui embaixo. Na esquina da Calógeras coma a Afonso Pena. Então ele falou: seu Michel, vamos construir, tirar esse movimento ai da porta da sua casa. E era mais ou menos o que eu queria. Então quis montar uma diretoria, sem registrar, sem nada. Mas o dia que a gente marcava uma reunião ele estava aqui. Ai o Antônio Mendes era senador naquela época. Falaram tal dia ele está aqui, vamos lá na casa dele. Ele morava na Dom Aquino ali pra cima da Pedro Celestino. Ele me arrumou 1500 tijolos pra começar a construir esse salão. Mas só que naquele tempo também eu tinha cedido a igreja pra alfabetizar as pessoas. Aí falei vou aumentar a igreja porque é muito pequeninha, não tinha outra aqui em roda. E foi bom que ele me orientou. Falou, seu Michel, isso aqui é coisa histórica, deixa isso aí. Não mexe não.


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Aí eu peguei esses 1500 tijolos, fui juntando, juntando dinheiro da festa e construí um salãozinho. Que dava já pra abrigar um numerozinho até bom de pessoas. Fechei de tábua e depois fechei de material com o dinheiro arrecadado da festa. E depois a prefeitura fez esse aí que é um salão maior. E aí eu conversando com um senhor que é bisneto do José Antonio Pereira. EduardoC. Nesse tempo não tinha dividido ainda aqui. A capital era Cuiabá. E aí ele falou porque que você não faz aí uma associação e ela facilita pra você ir até os órgão público e pedir dinheiro pra ajudar a fazer as festas. E assim foi. Montei uma associação, catei umas pessoa, associação registrada em cartório, com INPCJ, tudo certinho né. E aí as coisas começou a melhorar porque por exemplo até agora, o estado nas festas contribui três dias, a prefeitura três dias, e aí foi que a coisa foi crescendo. A associação é de que ano? Ela está mais ou menos com 25 anos. Eu não vou lembrar da data, só olhando no papel. Eu arrumei 12 pessoas. Tinha um sobrinho meu que trabalhava na associação de cultura e era uma pessoa mais baseado pra orientar em algumas coisas, sobre estatuto essas coisas. E arrumei também o dr. Sid Pinto Barbosa, dr Zé Roberto e dr Aleixo Paraguaçu, que nos ajudou a elaborar esse estatuto. Finado Nelson Trad também. Esse estatuto então eu coloquei dessa forma: Associação dos Descendentes da Tia Eva porque eu pensei assim, se colocar uma pessoa que não é descendente pode mudar essa história da Tia Eva, essa promessa que ela fez. Porque antes de morrer minha mãe diz que ela falou: olha, enquanto tiver um descendente, essa promessa eu quero que vocês cumpra ela. Então pensando nisso de cair na associação uma pessoa que não era descendente, só pode participar da associação se for descendente da Tia Eva. E assim que a coisa caminhou muito. Trouxe vários cursos pra cá, que a Lúcia até não trouxe. Melhorou muito. Eu consegui na minha época trazer duas vezes aqui os embaixadores da África. A gente fez vários encontros também em Brasília representando aqui a comunidade. Então sinceramente, nessa comunidade eu trouxe além da igreja que a gente conseguiu reformar eu trouxe colégio, trouxe asfalto, trouxe 20 casas de graça pra


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cá. 40 pessoas também aumentaram suas casas com material que a gente arrumou. Então sinceramente nessa comunidade eu me sinto realizado. Não é que nem na época da minha mãe, que eu que registrei ela quando já era casado no civil. Hoje você não faz nada sem ser documentado. Então com essa associação eu conquistei várias coisas e também ganhei o terreno da Irani Calvíria pra poder fazer esse colégio aí. Como foi isso? Eu tenho dado várias entrevistas na televisão falando de milagres da Tia Eva. E ela viu uma entrevista minha. Ela tava doente, meio lelé da cuca e aí fez aquele voto. Falou olha eu vi você falando assim e firmei o pensamento em Tia Eva. Falei que se eu ficasse boa ia comprar um terreno e doar pra construir um colégio aqui em nome da Tia Eva. Aí veio ela e o doutor Cleber, um médico negrão. Falou se você der o terreno eu vou dar assistência médica pra eles aqui. Aí tinha um parente nosso que tinha aquele terreno do colégio e eles tinha uma chacrinha na saída de São Paulo e precisava legalizar. E aí ele vendeu pra dona Irani, naquela época por 1,5 mil reais. E hoje ele deve tá muito arrependido. Essa área ela é 46x65 e todos esses terrenos pegam daqui e sai lá do outro lado né. Só que foi uma coisa boa porque o colégio nos valorizou muito pra gente que está aqui, né. O terreno era de um primo meu, Otacílio. Como é ficar à frente da associação em uma comunidade que tem essa herança matriarcal tão forte? Pra nós foi uma coisa um tanto bem gratificante. Porque hoje os próprio descendente que mora aqui às vezes não sabe o quanto essa história da Tia Eva é uma coisa tão forte. Eu falo porque pra passar a ser quilombola tem que fazer todo o histórico da comunidade. Então o mesmo que eu tô falando pra você aqui eu passei pro topógrafo pra fazer. Então entre todas as comunidade que passaram a ser quilombola do Brasil a nossa história foi a que tirou lá em Brasília primeiro lugar. Porque é uma história verídica que tá aí. Porque às vezes diz que ouviu falar e ela não, está enterrada aí. Em 98 que nós fizemos esse encontro tinha toda as comunidade negra do Brasil e mais 15 países. E por causa da história da Tia Eva, não por causa de mim, sentei na cadeira do senado representando toda as comunidade negra do brasil. E isso aí em orgulha muito por ser descendente da Tia Eva.


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Quantos anos o senhor ficou à frente da Associação? Ah, fiquei mais de 50 anos. Até eu fui agraciado na Câmara, fui homenageado. Ta aí, pelos 50 anos que eu fiquei à frente da comunidade. Por ser homem o senhor teve mais dificuldade? Algum preconceito? Não. Até a gente fez uma matéria outro dia com a Lúcia e com a Vânia. Eu até detestei isso, achei uma coisa ridícula porque quem eu sei que deixou alguma coisa, fez, foi só Tia Eva. Porque daí pra cá as filha dela largou tudo como eu tô te dizendo. Eu peguei aí, a igreja tava sem banco. O inventário dessas terras em 1955, começaram e não terminaram. Eu peguei e fiz, entreguei o documento de cada um na mão. E eu não sou mulher. Portanto, acho que esses pensamentos de dizer que tem que ser mulher. Os outros já pegaram todo o cavalo arriado, estão só pegando aí, como diz o ditado, as coisas que eu fiz né. E sobre os terrenos? Isso aqui eu fiz o seguinte. Nós tamos na quarta geração, então se eu fosse fazer inventário da Tia Eva até chegar agora.. eu atalhei o caminho com uso campeão pra facilitar mais. Se não, não ia sobrar nada de terra, que a maioria aqui deu terra pra pagar o inventário. Tem muita pessoa que deu da parte dele 30%. Se fosse pra fazer inventário talvez nem tinha terminado. Então eu fui orientado, arrumei testemunhas. Então fomo lá e fizemos tranquilo. Só ano tem escritura aquele que não pode pagar pra tirar escritura, mas aquele que pode tem. Quando foi pra fazer essa escritura tava alguns anos atrasado o imposto, a gente teve que correr atrás. Demorou 6 anos pra fazer isso aqui. Deu muita dor de cabeça. Até pra achar o atestado de óbito da Tia Eva. Tem um senhor que eu cansei de procurar esses documentos. Ele morreu, fui fazer o inventario, procurei a mulher dele e tava lá com ele. Só uma coisa que fiquei tão chateado nessa luta foi o seguinte. Porque eu meio sem experiência, podia ter tirado uma xerox desses documentos e passar pro advogado. Do atestado de óbito da Tia Eva. Não tirei. E agora ele fala que sumiu, eu aperto ele, mas acho que tá com ele. Eu queria ter esse documento em mão pra ir lá em Goiás, que a Tia Eva veio pra cá e ficou alguém lá e você ir sem documento lá fica difícil. Eu fico pensando de ir na ordem dos advogado, denunciar pra ele me dar esses papel. Ele falou pra mim que sumiu. Mas tem um primo que mora lá em Miranda e teve aqui esses tempos, falou: “não, tão com ele, ele falou pra mim que tá com ele”. Pra você ver como a mentira


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tem perna curta né. Ele ficou com mais terra aqui do que os herdeiros, porque ele pegou 25% de várias pessoas. Ficou com mais de uma hectare de terra aqui. Eu não sei qual o interesse dele de ficar com este documento. Porque pra mi, eu guardo tudo aqui, matéria que sai, como arquivo. E eu queria guardar esse atestado de óbito da Tia Eva. Eu tenho até dois livros aí que fala da história de Campo Grande. Tem um do Paulo Coelho Machado e um da Fundação de Cultura. E tem um dos livros que não bate, fala que a Tia Eva ganhou o terreno. E ela não ganhou, ela comprou. Pagou 85 mil réis. Ela deve ter ganhado esse dinheiro partejando. Minha vó também partejava. Cansei de chegar na casa da minha vó, chegava gente de carroça, meu avo achava ruim, mas fazer o que, tinha que ir, era pra salvar uma criança que ia nascer. A Tia Eva fazia doce? A vida da Tia Eva era essa aí. Partejar, e rezar essas coisas, porque ela sabia muita oração. A mamãe conta uma história que eles foram catar guavira. E ela era muito pesadona pra correr. E veio um touro pro lado deles lá. Eles tudo correram, molecada, passaram debaixo da cerca e foram embora. E o touro vinha, ela ajoelhou lá. O touro caiu e só levantou quando ela quis. Então são coisas que existe. Hoje esse pessoal novo não acredita, mas eu já vi pessoas benzer de cobra na minha casa. E parece que ia morrer o camarada. Só olhou assim e falou não morreu não morre mais. Sarou sem tomar soro, sem nada. Então são coisas que existe. Às vezes a pessoa não acredita, mas isso é coisa que eu já vi com o próprio olho. Só que a Tia Eva começou a não querer ensinar mais, porque teve uma pessoa que ela contou aqui que ensinou muita oração. E o camarada começou a mexer com a família dos outros. E nego chegava aqui pra matar ele, ele olhava assim, começava a rir e largava de mão da oração. E ela não quis ensinar mais, porque ela ensinava a pessoa a defender, não pra fazer essas coisas né. Na época da divisão, quantas pessoas moravam aqui? Eu não estou lembrado não, mais já era mais de 20 famílias. Aí depois que fez o inventário que veio chegando o pessoal da Furnas do Dionísio. Eles não sabiam nem que tinham terra aqui. Mas como eu não gosto de passar os outros pra trás, fui lá avisar eles. O colégio passa a história de Tia Eva para os alunos? Eu acho que essa história tinha que passar no colégio aqui, que nem do Luiz Gama,


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José do Patrocínio, do Zumbi. Esses embaixadores da África falaram muito que nós que fazia parte dessa etnia conhecesse nossa história. Porque até ele fez uma comparação assim que às vezes o corgo tá grande lá em baixo, mas você não sabe, não conhece a nascente; o sofrimento que foi, aqueles navio negreiro. Eles fizeram muita questão que a gente tivesse um conhecimento como foi a nossa história. Até a vez que a gente tava em Brasília era pra ter algum livro, uma cartilha pra passar no colégio. Pra pessoa estudar isso aí porque é importante. Porque hoje a nossa raça é a maioria, mas assim sem.. Outro dia nós tivemos na câmara, discutimos isso aí. Eles querem que tenha uma secretaria dentro do corpo da câmara pra representar. Porque já teve. Mas caiu um pouco esse movimento da raça negra. Uma pessoa boa pra ter uma secretaria era o doutor Aleixo. Quando ele foi secretário de educação procurou pessoas qualificadas. Porque não adianta você colocar o negro que não tem qualificação pra aquilo. Por exemplo, aqui quando inaugurou o colégio, eu colocaria quem eu queria. Mas eu coloquei uma sobrinha minha aí. Até tinha um padre que queria ser diretor do colégio. Mas no momento eu vi que é importante você ter a frente uma pessoa que tenha compromisso com a sua etnia. Por exemplo, o doutor Aleixo quando foi secretario de educação escurecia lá. Ele prestigiou nossa raça. Então você por uma pessoa lá que não tenha compromisso não adianta. O que aconteceu no falecimento da sua mãe? A minha mãe era uma pessoa que não sabia muita coisa, foi criada presa. Mas eu me orgulho muito da minha mae porque eu fui criado sem pai e ela ia daqui na cidade trabalhar, naquele tempo não tinha ônibus não tinha nada. Fazia compra, vinha com aquilo tudo na cabeça. Com aquele maior sacrifício. Não tinha experiência pra correr atrás das coisas. Mas me orgulho muito dela porque o compromisso que ela tinha com os filhos. E graças a deua a gente superou. O que ela não pode fazer a gente fez no lugar dela. O que aconteceu no velório dela me machucou demais. Porque os padres queriam que a gente doasse a igreja pra eles. Agora, eu tava na frente da comunidade, mas eu não sou o dono. Eu reuni todo mundo e o pessoal não concordou de doar. Uma vez eu fui na igreja são Francisco e o padre falou: nem o presidente da república faz eu celebrar missa lá. Foi na época que morreu minha mãe morreu e ele não quis benzer o corpo. Mas depois ele veio me pedir perdão dos erros dele.


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Nessa época eu trouxe o frei Davi pra cá, mas não deu certo porque ele era alemão, acharam que era racismo. Aí eu trouxe um padre preto pra celebrar a missa, tinha umas 500 pessoas. Foi quando esse outro padre pediu o microfone e disse: eu quero pedir perdão pro Michel, eu sei que magoei ele muito. Então eu disse: você me magoou muito mas eu perdoo. Porque se a gente não perdoar, Deus não perdoa a gente. A bíblia nos ensina. Então aquilo me aliviou. Eu já sabia que ele estava querendo porque eu encontrei ele lá no mercado, eu apurado pra vim embora e ele num papo comigo. Falei ué, mas esse homem agora. Então o tempo se encarrega de tudo. Porque eu sou assim, eu respeito todo mundo, mas eu também gosto de ser respeitado. Já fiz padre parar sermão aqui, porque certo é certo e errado é errado. E todos eles no fim chegaram até a mim e vieram me pedir desculpa. Primeiramente eu respeito deus depois respeito as pessoas, porque pra deus tanto faz você ter faculdade como não saber assinar o nome. A parte espiritual, ele vai do lado que tá certo. Ele não é aquela autoridade que se vende por dinheiro. Então todas as decisões que eu tomei, no fim a pessoa errou e veio pedir desculpa. Perdão dos erros. Tiveram outros problemas com a igreja? Não, só esse. A gente não tem anda. Sou uma pessoa que respeita muito os padres. São bem conceituados. Mas o que a comunidade acharia é que esse voto de Tia Eva deixaria de se cumprir. Porque até hoje a nossa festa, você vem aí e come carne de graça. É o único lugar de igreja que você vem e come de graça. Então se passar pra eles já vai cobrar e sair fora da promessa. Então ano que a gente vai dizer que o padre á uma má pessoa, não, sou uma pessoa que sempre respeitei. Mas eu acho que se passasse pra diocese essa promessa ia modificar. E nós fazemos ela até hoje assim. Desde o tempo da minha avó nunca foi cobrado o almoço, nunca foi cobrado nada. Os terços saem normalmente. Porque eu acho que é uma promessa que tem que ser respeitada. Tem bastantes evangélicos na comunidade? Já tem evangélicos. Alheio à minha vontade. Mas hoje a religião é que nem um talão de cheque, pode ser cinco estrelas, mas se não tiver fundo você não saca. Seja qualquer ela, católica ou evangélica, o que vai nos aproximar de deus é a obra que


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nós fazemos. Em qualquer religião que nós tivermos que vai fazer o trabalho do bom samaritano. E cada um na sua e deus por todos. A maioria virou evangélico por causa desses acontecimentos aí. Minhas filhas, por exemplo, tem algumas que é evangélica por causa desse negócio que negou de benzer o corpo da sua avó. Agora eu não mudo porque essas pessoas desse tipo você vai achar evangélico, vai achar católico, vai achar coisa que erra né. Cada um de nós que errar, o problema vai ser dele de errar. Judas quando traiu jesus por aquela moeda, ele quis dar aquela moeda na casa de oferta, ninguém aceitou. Falou, não meu filho, você errou, o pepino é seu. Você se vira com essa moeda. Eu penso dessa forma, cada um que errou o problema é dele, não é a religião que faz você errar. Todos nós, só quem não errou é deus, o resto. Tem aquela palavra na bíblia, que atira a primeira pedra quem nunca errou. Tem outra religião aqui na comunidade? Não, aqui. Agora eu tenho um filho que passou a ser maçom. Cada cabeça com sua sentença né. Eu vou ficar com a minha católica. Fale sobre a festa. A festa começou desde 1912, mas hoje as pessoas contam de 1919. Só porque a igreja que tinha em 1912 desmanchou, tem muita pessoa que nem sabe que tinha essa antes. Já tinha a festa desde que construiu a igreja, só que depois melhorou, arrumou material e fez essa de 1919. A festa começou em 1912 porque eu conheci uma das pessoas que ajudou a fazer essa de madeira. Porque eu não sou muito criancinha, estou quase chegando aos 80. Cheguei a conhecer essa pessoa que fez. Então é uma coisa verídica mesmo né. As festas eram na casa da minha vó, só celebrava a missa lá. Mas era do outro lado da rua, onde mora uma sobrinha minha. Aqui tinha uma estrada que descia por aqui, então vinha muita mocidade, aqueles jogo de dado, aquelas roda, aquela coisa. Isso enchia de barraca da igreja até aqui. Um punha bebida, outro punha jogo, outro punha salgado. Sabe aquele jogo de roleta, aquelas roda? Aquilo vinha muito pra cá naquela época né. Nós tinhamos o padre que atendia aqui, era o padre franco. O Dom Bosco era uma casinha véia ali na 14, eu lembro certinho. Até caindo tudo os reboques. Nessa semana eu passei ali com uma pessoa e tava falando: nós íamos de charrete ali buscar o padre. Então fazia casamento e batizado o dia inteiro o padre. E tinha uma


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camazinha na casa da minha vó que era para o padre sestear. Então essa caminha era de couro de vaca, toda trançada. Era reservada, ele almoçava aqui, sesteava e voltava de noite. Lá pelas cinco horas arriava a charretinha e levava ele. Na época da festa isso, só vinha aqui na época da festa. Depois, eu acostumei também, amas acho que a lúcia agora parou. Na data de aniversário de morte de Tia Eva celebrava a missa. Mas já está com dois anos que ela não manda celebrar a missa. É uma coisa que eu queria ter continuado. E fiz também, esse senhor, que eu falei que era da família do José Antônio Pereira, falou: Michel, nossa família com a sua, elas são fundadora de campo grande. Porque você não faz uma festa? Só que eles são um pessoal que tem um poder aquisitivo bom. Veio gente até dos estados unidos. Como uma senhora que parou aqui, queria me conhecer, ela era tão gorda que não conseguia nem descer do carro. Então ele deu essa ideia, eu fiz um projeto pro FIC, que me ajudou com cinco mil. Tá até o banner ali na sala. Então eu fiz essa festa. A Seasa me deu um caminhão de fruta pra decorar e eu ganhei de um político 450 quilos de carne, porque o dinheiro que eu peguei não podia comprar comida. Trouxe a banda de musica da policia também. Essa festa foi em 2004. Tá tudo registrado, fiz o DVD. De antigamente pra como ela é realizada hoje, como o senhor vê essa mudança? A diferença era muita em, porque ela era realizada na base da lamparina. Eu tinha que arrumar umas lata pra tampar do lado do vento pra não apagar né. Aí depois, o doutor José Roberto, que trabalhava na Enersul, ele me arrumou um fio, que pegava lá na rua do seminário pra trazer luz até o salão. Só que era só lâmpada, se colocasse um aparelho, ela caia. E depois nós conseguimos trazer a rede de luz pra cá, não tô lembrado em que ano que foi. Consegui também agua encanada. Em 80 mais ou menos. Consegui agua encanada aqui primeiro que na Euller de Azevedo. A gente falou com o bispo, o bispo cedeu. E tinha alguns políticos influentes lá na época, que fez rede d’água na vila todinha pra nós. Aí a coisa melhorou, com luz e água! Antes tirava no posto, mas era bom que a gente exercitava um pouco. De primeiro a gente era impalizado. Na época da festa tinha que chamar gente pra colocar madeira, depois que terminasse tinha que desmanchar. Aí depois eu fiz um aqui na porta da minha casa, coberta de folha de bacuri e trouxe aquele cupim. Você


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esparrama ele e soca ele fica lisinho, que nem piso. Mas aí apodreceu porque era de madeira comum, tava em tempo de cair na cabeça do pessoal, tive que tirar, derrubar. Aí partimos pra construir lá em baixo. De primeiro nós começava o terço e já emendava o baile. E agora os músicos são obrigados a tocar 4h então já vai começar quase 11h a festa. Então tem pessoa que espera, outras vão embora. Modificou porque existe uma lei dos músicos que eles não podem tocar mais de 4h. Porque o terço sempre começa às 19h30 e é uma hora. Então tem que esperar até 22h. Então na minha época eu trazia muito o pessoal pra fazer dança de Capoeira, desfile de moda, fiz vários. Todo mundo queria participar. Eu arrumava patrocínio, quem saísse em primeiro lugar no desfile de moda levava um prêmio. Desfile da beleza negra. Fizemos uma peça de teatro aqui também da história de Tia Eva, foram até em costa rica apresentar. Então a gente criou várias coisas pra preencher até chegar o horário da música pro pessoal não ir embora. Com a Lúcia algumas coisas mudaram. O que me deixa chateado é que na minha época vinha um monte de estudante, até de Aquidauana. Mas agora precisa de ofício pra entrar aqui e isso afastou, muita gente não vem mais. E às vezes vem, mas não sabe que precisa então volta pra trás. Você não pode descontentar a pessoa, voltar pra trás. A gente que está a frente tem que fazer todo o possível pra pessoal que vem à comunidade voltar né. Como está a participação da comunidade na festa? Olha, diminuiu muito viu. Esse ano a missa da abertura, por exemplo, acho que não tinha umas 40 pessoas. Hoje até o pessoal de fora às vezes ajuda mais. Antigamente tinha ano que até vaca a gente tinha no leilão. Só que aqui também, durante muitos anos o dinheiro arrecadado ia tudo pra diocese. Eu até falei a venda vai pra diocese, não me incomodo que fique, só que eu quero que constrói um salão. Foi daí que eles veio pedir pra doar a igreja pra eles, se não, não ia construir. A gente fazia tudo pra eles. A renda da festa ia toda pra diocese. E teve vez que não tinha nem toalha aqui. Aí eu fui lá e falei com eles né. Eu falei não quero mexer com dinheiro, porque eu estava numa correria danada, tinha uma fábrica de doces. Falei só quero que constrói, porque a festa é bom longe da casa da gente. Quando a festa era aqui tinha vez que tinha que acabava a festa tinha que comprar talher de novo. Criança dormia na cama minha e da minha mãe, a cama ficava toda


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mijada. Então esse foi o motivo mais de eu querer tirar a festa da porta da minha casa. Porque festa é bom mas é na casa dos outros, na casa da gente é complicado. Quem se apresentava nas festas? O pessoal daqui meus que tocava, meus tios pegava o violão, solava, acompanhava. Depois que começou a ter renda que a gente contratava músico de fora né. Porque muitos anos eu fiz a festa e paguei, com sacrifício, construindo o salão, juntando uns troquinhos. Aí melhorou depois que eu registrei a associação, que agora o estado patrocina três dias e a prefeitura três dias. Porque diminuiu a participação da comunidade na festa? Hoje o pessoal fala que não tem muita gente porque passaram a ser evangélico, mas tem muito que é católico e não participa. Os jovens daqui participam mais da igreja aqui em cima. Mas na hora da festa eles aparecem mais na hora do churrasco e coisa. Mas na parte religiosa, estão se interessando muito pouco. E é a parte que no tempo da minha vó, minha mãe, a gente se interessava muito por isso. Nós fazia o seguinte. de quinta-feira santa nós rezávamos até meia noite e de quinta pra sexta amanhecia o dia rezando. E tudo isso parou. Tem agora na sexta –feira um terço que nós rezamos aí, mas no máximo é 10, 15 pessoas só. O que é viver em comunidade? Às vezes até mesmo sem querer, tamo obrigado a ser quilombolas. O problema é que aqui tem muita gente que está atrasado com o IPTU e não tem condições de regularizar isso aqui. Tem gente aí com 50 mil de IPTU, vai pagar como? Então o passar a ser quilombola vai ajudar muito. Apesar que o quilombola nos dá o direito de pagar o atrasado pra depois não pagar mais IPTU. Mesmo assim vai ser difícil deles tirarem as pessoas aqui de cima. Porque acho que aqui é uma raiz muito histórica. Porque hoje um operário, uma pessoa que trabalha, vai pagar uma parcela de 40, 50 mil, tinha que fazer uma parcela de pelo menos mil reais. Vai pagar como? Fica difícil né. Então, nesse ponto eu acho que vai ajudar muito. Como é o bairro fora da época da festa? Aqui é normal, cada um na sua casa. Hoje a comunidade melhorou muito. Porque na época até que fez este colégio eu tinha até vontade que colocasse uma filha minha né. Mas ela não era formada. Hoje eu tenho filha qualificada pra assumir, formada na área de pedagogia. Tem mais de cinco que formou. Tem uma que tem quase três


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faculdades. E naquele tempo não era assim. Porque eu acho que pra tomar conta de um colégio não é como se fosse uma associação. O presidente de uma associação também, o negócio tem muita burocracia pra você passar, que eu apanhei muito pra poder aprender né. Porque tem várias normas. Teve uma vez que venceu meu mandato e eu reformei pra ser mais um ano. E fiquei com dinheiro preso lá. Porque por exemplo você tem uma conta no banco, venceu seu prazo da associação, você tem que ir lá tirar, se não eles te trancam. Eu tive que fazer toda a papelama com o dinheiro lá pra poder tirar. Verba também, prestação de contas. Eu peguei um dinheiro uma vez da prefeitura e você tem que prestar contas direitinho. Naquele tempo eu recebi mil e quinhentos pra pagar músico. Eu pensava que tinha isso mesmo. Mas fui sacar no banco, já descontou. E eu com advogado acompanhando. Depois descobri que tinha que ter pagado imposto de 150 dos mil e quinhentos. Agora já sei como é, mas é complicado. Depois, quando eu tava à frente da associação veio uma verba de 25 mil pra eu restaurar a igrejinha. Aí como meu sobrinho era tesoureiro, falei vamos ver como é que é isso direitinho. Porque eu ano vou cair numa enrascada dessa de novo. Se 20 centavos não bater tem que fazer tudo de novo. Eu fui lá ver, de 25 mil desconta oito de imposto. Aí a pessoa que está de fora não sabe, pensa que você desviou. Mas não é. Pra onde vão os recursos da festa? Por exemplo, pra comprar o salão, comprei o terreno e a prefeitura construiu. Por dentro arrumou com o dinheiro da festa. Agora com a Lúcia eu ano sei. O dinheiro era pra igreja de 1960 pra cá, coisa de uns 20, 30 anos que eu comecei a tomar a renda. Antes ia pra lá. Nem o dinheiro pra pagar querosena não ficava comigo. E amanhecia o dia tinha que trabalhar. Foi uma luta muito dura, mas graças a deus hoje a coisa mudou. Aquelas políticas que tinha acabou tudo. Eles viram também os evangélicos entrando e coisa. O que precisa mudar aqui? O maior problema que precisa mudar é acabar essa burocracia de precisar de ofício pra entrar. Isso afasta aqui. O pessoal tá acostumado desde o tempo de Tia Eva, visita e tudo. Só de Aquidauana recebi 300 alunos.


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Aqui o que não tem no momento é só rede de esgoto. A infraestrutura aqui graças a deus melhorou. Tinha muita pessoa aqui com casinha de tábua que você olhava dava do outro lado, essas casas podres mesmo. Então consegui as casas e hoje está mais ou menos. Sempre tem alguma coisa faltando, mas coisa básica hoje a gente tem. Conte a vida do senhor. Eu comecei a trabalhar com dez anos de idade. Nós morávamos aqui. Aí saímos daqui com um senhor de nome Manuel tocar carvão lá na furna do inferninho. Eles iam queimar carvão e eu e meu irmão limpávamos o quintal e plantava arroz e feijão pra gente comer. Aí depois minha mãe separou do meu padrasto, voltamos pra cá. E fiquei com minha mãe aqui. Ela começou a trabalhar na cidade pra nos sustentar. E eu também comecei a trabalhar na mata do segredo. A gente ia puxar enxada lá. Ia daqui a pé. Ficava lá a semana inteira. Depois a Vila Nasser era cafezal. Eu saía daqui pra rastelar café na Vila Nasser. Depois fui trabalhar de servente na cidade. Aquela parte do correio, ali pra baixo. Ajudei a fazer tudo aquilo ali. Depois eu trabalhava lá no correio, pegava doce pra vender de um senhor. Então na hora do almoço eu vendia doce. Minha mãe fazia bolo eu vendia. E tava tirando a mesma coisa de trabalhar a semana inteira. Eu trabalhava com um portuguesinho numa obra. Aí pedi uma licença pra ele. Falei eu tenho que arrumar uma cerca lá em casa, quero que você me dá essa semana de folga. Porque se não der certo eu volto né. Aí montei essa fábrica de doces. Aqui em casa mesmo. Aí comecei a fazer doce. Comecei a criar porco também. E vendia também na feira. Trabalhei de carroceiro também na praça, de 58 até 60 e pouco. Depois que comecei a fazer doce e foi 35 anos, até aposentar. Eu saía daqui de bicicleta, deixava 100 doces num matadouro que tem aqui na saída de Terenos. Saía daqui quatro horas da madruga, oito horas tinha que estar aqui pra entregar uns 50 litros de leite, de bicicleta. Fiz um mangueirão aqui até do outro lado, cheguei a criar 60 cabeças de porco. E aí fui. Tive também um tempo meio enrolado com política, uns quase quatro anos também com o saudoso Nelson Trad. Que arrumava uns troquinhos pra gente depois. Entrei na aposentadoria. E agora o serviço que eu estou fazendo é jogar uma sinuquinha, vou pra Assembleia, vou pra Câmara.


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E minha esposa pode dizer que ela foi agraciada, começou a vir nas festas aqui e falou esse é o cara (risos). E aí tivemos 11 filhos. Tive um primeiro casamento antes dela. Só que eu tinha uns 15 anos, casei com uma mulher quase de 40, era só quebra-pau. Aí eu fiz um investimento aí e já estamos juntos há cinquenta e poucos anos. Fizemos um festão aí, todo firmado. Eu tenho 8 filhas mulher, 33 ou 34 netos, uns 8 bisnetos, aqui quando chega todo mundo parece que é festa. Nós era 16 pessoas aqui em casa agora é só nós dois, tem quatro quartos a toa. Qual a importância da comunidade para Campo Grande? A Tia Eva foi uma pessoa que ajudou no desenvolvimento de Campo Grande, quando aqui não tinha sacerdote, não tinha maternidade, não tinha nada. Então toda essa parte aí a comunidade nos ajudou muito. Porque naquele tempo não tinha verba pra pedir pra fazer isso, fazer aquilo. Então a Tia Eva hoje foi muito importante. Importante pra nós também porque hoje, graças a deus tem algumas autoridade com a vista voltada pra cá. Mas eu acho também que a gente ajudou muito Campo Grande nessa área social e religiosa né. O senhor já sofreu algum tipo de preconceito? Olha, eu não vou dizer que foi preconceito. Dois anos eu fiz parte do conselho estadual do negro. E aconteceu aqui nesse Comper da 13 o seguinte, naquele tempo que houve racionamento de carne né e eu fazia parte do conselho ali na norte sul. Então o camarada me pulou pra atender uma madame lá né. E quando chega na reunião do conselho, todo mundo pergunta assim se tem algum informe, o que que tem alguma coisa pra levar pra tomar as providencia. E eu falei: óh, só que aconteceu um negócio, mas não vou nem falar que é racismo. O camarada me pulou lá pra atender uma pessoa lá no Comper né. E até eu tinha uns pessoal daqui que tava. E tinha um policial que tirava serviço lá. Eu sabia que ele era policial. Onde que eu tava. Eu já tava também quase deixando de comprar lá por isso. Aí aconteceu isso, eu peguei e falei pro policial. Óh, você que tira serviço aqui fala pro gerente que ele tem um funcionário, um açougueiro aqui que isso aí não é importante pra o gerente. Porque eu não vou faze nada, mas é o seguinte. Pode outras pessoas cria problema aí pra ele. E falei pra esse policial. O policial foi lá e falou pro gerente né.


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E aí cheguei, contei isso lá. Mas falei larga pra lá. Aí o pessoal: Não, não, vamo lá, vamo lá, vamo lá. Tem uns camarada. Não sei se você lembra do finado Aparício. Ele morreu tem pouco tempo. Ele que montou esse conselho estadual do negro. Aí chegamos lá. Nós fomo dois, tinha um negão do Rio de Janeiro, aqueles cabelão trançado assim até lá em baixo. Chegou dois negão lá no Comper. E a turma começou a olha, falamos que queria falar com o gerente né. O pessoal falou: ah, mais o que que é né. Então nóis ia lá só fala, dá um conselho, orienta o camarada pra num faze isso. Aí o gerente falou: Não, o policial lá falou, mandei ele na mesma hora, já num tava satisfeito. Se ele pulou o senhor ali, mandamos ele embora já, no mesmo dia. Aí foi todo mundo lá olhar, ele num tava. Mas aconteceu o seguinte, naquele hotel ali da Campo Grande, na época funcionava né. Eles precisava de uma pessoa lá que falava três língua né. E um crioulo do Rio de Janeiro que tava aí, ele falou as tr6es língua, fez o curso, passou em primeiro lugar. e eles num chamava ele. Aí ele pegou, foi lá e denunciou. Aí o pessoal do hotel falou: óh, fulano denunciou aí. No outro dia ele foi chamado né. Então a gente sabe que existe. É assim meio camofiado, mas existe né. Teve um camarado também que andava perseguido da polícia, aquele rolo também. Aí o povo do conselho foi lá no comando também. E tava querendo a polícia perseguir ele também. E mais outras denúncia que o pessoal aparecia lá também. No conselho. Porque se ele passou em primeiro lugar, direito dele de ser chamado né. Porque a gente hoje, às vezes a pessoa mesmo sendo negro né. O dr. Cléber contou uma história aqui em casa né. Contou que tinha uma reunião dos médicos né. E ele é negrão assim, até mais escurinho do que eu. E ele chegou, os outro médico já tinha chegado, ele contando aqui em casa, e ele chegou a enfermeira tava na recepção e num falou nada com ele. Ficou os dois sentado. Aí perguntou pra ela: escuta, não vai vim os outros médico, doutor fulano, doutor ciclano? Não vai ter mais? Ela falou não, nós estamos só esperando o dr Cléber chegar. E falando com ele. Aí ele contou, de certo porque eu era negro achou que eu não era médico. Aí falou, não, então o senhor pode entrar porque tá só esperando o senhor. O dr Aleixo também contou história aqui. Ele era secretário de segurança. A polícia parou ele: óh negão, que que você quer aí. Quando ele mostrou a identidade. Então existe esse aí e outras denúncias mais que saiu lá.


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Hoje tá mais acabado isso. Existe, mas a turma depois do negócio da Fundação Palmares, essas coisa mudou muito. Porque tem alguém formado lá em cima pra correr atrás né. Do que o senhor tem mais orgulho aqui na comunidade? O que mais eu tenho orgulho e de sempre poder tá recebendo pessoas como você e o moço que vieram aí. E a gente poder falar um pouco da nossa história, né. E também, várias pessoas que vem aqui, quer saber das glórias. E o que me orgulha também que os meu sonho, tudo que eu quis realizar, eu consegui. Então esse é o meu maior orgulho né. Porque tudo que eu pensei: quero trazer um colégio, fazer minha festa de 50 anos de casado, trazer o centro comunitário, trazer tudo isso aí. Então isso me orgulha muito né.


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Apêndice 5 – Entrevista com Otávio Gomes de Araújo – 16 de agosto de 2013

Faça uma apresentação sua. Meu nome é Otávio Gomes de Araújo. Tenho um apelido: Tuti. Desde um ano tenho esse apelido. Minha mãe chamava Maria Abadia Maria de Jesus, ela era neta de Eva Maria de Jesus. Dizem que eu sou bisneto de Eva Maria de Jesus. A Minha vó chamava Sebastiana. É filha de Eva Maria de Jesus. Minha vó tinha 9 filhos. Aqui onde nós estamos é a parte que é herança da minha mãe. Eu nasci bem aí na frente desse terreno, sou do dia 21 de julho de 1937. Quais histórias da Tia Eva o senhor conhece? Ela veio de Goiás, trouxe três filhas, solteiras. Sebastiana, Joana e Lázara. Ela chegou aqui em 1905 e requereu essa área aqui. E dividiu com as três filhas. Quando nós ficamos pagando imposto aqui, era o seu Michel que cuidava do imposto. Porque ele tinha muito filho. E teve uma época que os padres queriam tomar isso aqui. Isso foi em 55, 56. O padre com nome padre arcanjo, que era o padre prefeito aí do seminário. Aí quando a gente achou que ia perder, a gente começou a comprar terreno fora daqui né. E o Michel ficou porque tinha muito filho, não tinha como o aluguel e as despesas fora daqui. Ele encabeçou ele batalhou, encabeçou em manter isso tudo e legalizar. Fez as divisórias das terras, fez o mapa. Ele batalhou. Foi um fundador sofrido. Mas ele pagava com o movimento da festa de São Benedito. Tem uma festa de tradição aí, que é a que minha bisavó deixou. Que ela tinha uma ferida na perna. E ela chegou aqui, se ela sarasse daquela ferida, ia fazer uma igreja pra São Benedito. Sarou e fez a igreja né. Ela concluiu essa igreja em 1919. Com a inauguração dessa igreja. Nesse período ela foi lutando com dificuldade, com a ajuda da comunidade, das festas. Ela era parteira, pegou muito conhecimento aqui com esse movimento de parto né. Também fazia garrafada de remédio. Panhou conhecimento assim. O pessoal falava curandeira, mas não sei se ela era curandeira. Então com isso aí ela panhou muito conhecimento na redondeza aqui. Muita gente ajudava nessa época de festa. Todo mês de maio tinha, e ainda tem, ela falou que enquanto tivesse um descendente dela, que ela queria que fizesse a festa. Porque a festa é no mês de maio? Antigamente formalizava essa festa assim no domingo que mais tinha lua e que


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fosse mais próximo do dia 13 de maio que é o dia de São Benedito. Então não tinha luz aqui. A luz entrou depois que eu fui presidente a primeira vez. É que a gente conseguiu água, luz. Água foi o seu bispo que deu, Dom Antônio. Mas não tinha, porque o esgoto do seminário caía nesse corgo. Eu trabalhava com o secretário Juarez marques batista. E ele encabeçou um processo e mandou pro bispo assinar, relatando os problemas. E o bispo deu a água. E na época não era água guariroba, era Sanesul. E já eu, com conhecimento político que tinha. Que eu era fundador do pt aqui. Mas como eu ganhei a eleição aqui, fui candidato único. E quem tava no poder era o PMDB. Eles admiravam e acharam bom que meu trabalho e me convidaram pra incluir no partido. Falei olha, eu sou do PT. Se vocês me derem o que a minha comunidade tá precisando eu vou vestir a camisa do PMDB. E vesti com dignidade né. Aí falou eu vou fazer uma reunião, vou ver as prioridade da comunidade que tá precisando, e vou trazer ofício. E vocês veem, se dá pra me atender tudo eu vou vestir a camisa. Eles colocaram a água, fizeram o colégio. Conseguimos ônibus, luz, tudo. Não tinha nem caminhão de lixo aqui não tinha. Não tinha nada. Aí já veio as divisórias das terras, cada um ficou sabendo onde era o seu. E assim nós estamos tocando o barco aí. Só que houve muita coisa errada e ainda tá existindo ainda. Aqueles herdeiros que não tinha filho, o outro que tomava conta da comunidade formaram um grupo com advogado e venderam essas terra. Eu fiquei sabendo que veio uma dona aqui pra gente da a escritura. Na frente da escola agrícola o rapaz tava fazendo uma casa na herança da tia dele. Não tinha filho. Ele era sobrinho. Aí a japonesa veio com a polícia e falou “pode parar que esse terreno é meu”. Falei, a senhora tem a escritura? Isso aqui é seu? “Tenho!”. Falei: quem que assinou essa escritura pra senhora? Ela falou, Eva Maria de Jesus. Eu falei, dona, essa mulher era escrava, ela não sabia ler. Quando fazia 45 anos que ela tava falecida eu tirei ela do túmulo e pus dentro da igreja. Tá lá. E como é que ela assinou essa escritura? (olha, me parece, não sei assim concretamente, mas me parece que é em 1926. Mas eu falei pra ela que é em 1926). Ela morreu em 1926. Saiu do túmulo, entrou no colégio e aprendeu a ler pra assinar a escritura? A senhora disse que a escritura tem cinco anos. Aí a japonesa chorou né. Falou: seu Tuti, a minha escritura é fria? Falei: não, é gelada. Porque a pessoa que morreu nessa época, como é que assinou essa escritura pra você. Não tem cabimento.


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Ela não tinha a escritura, ela tinha título. Como é que ela ia passar a escritura se ela tinha título. Ela comprou essa escritura. Aí tem esse grupo aí, que vendeu. Que é o que eu chamo “grupo do mau” né. Estão vendendo tudo essas terra. Já vendeu tudo o que eu não tinha herdeiro e que não tinha filhos e já morreram. Então no mapa aparece o dono das terras. O nome. Mas a pessoa. Isso eu tenho documento que prova. Tenho tudo. Se for preciso, tenho tudo que prova. E hoje o INCRA é que tá na frente da organização disso aí. Nós tivemos uma reunião com dois advogado representando a prefeitura. E lá eu perguntei pros advogado se o engenheiro da prefeitura tinha autonomia pra entrar com requerimento numa área que era da igreja. Que era um campo de futebol. Nós fizemos um campo. Ele entrou com requerimento. Ele mesmo aprovou esse requerimento e lançou o imposto. Eu não tenho certeza, mas acho que ele fez até escritura. Ele adulterou o mapa da comunidade. Ele desmembrou o mapa. Fez o rascunho dos lotes em cima do terreno que era da igreja. Só que a igreja não tinha escritura. Ninguém tinha a escritura. Tinha o título, em geral. Aí o advogado falou, o senhor tem documento do que o senhor tá falando? Falei tá aqui na minha mão. Nesta pasta. Tá tudo aqui. O mapa normal, o mapa que ele desmembrou e o requerimento que ele fez e aprovou’. Aí ele não respondeu. Falei acho que eu não tô sabendo me expressa, porque eu não tenho estudo. Mas vou falar isso aqui até escurecer. Daí ele falou: não, ele não tem autonomia pra isso. O terreno tinha escritura, título. Então dividiu a área, pelo título, em três partes iguais e de cada um tirou um pedacinho pra fazer a área da igreja. Mas a igreja não tinha escritura. Aparecia no mapa a área da igreja né. Aí esse advogado pegou aonde era o campo de futebol, que era uma área da igreja, ele entrou com requerimento. Ele pegou um pessoal daqui memo. Eles venderam a terra deles. Que é a parte que pertencia pra eles. E entraram na área do requerimento. E eu tenho todo o documento, tudo que você falar: eu quero ver. Eu tenho. Só que quando veio uma senhora de Brasília, pra representar pra nós o Zé Roberto, que é o advogado do INCRA, eu falei esse aqui é suspeito pra mim. Na reunião eu falei que ele era suspeito. Porque ele sabe de tudo essas maracutaia que tá acontecendo aqui. E ele como advogado devia aconselhar: olha isso não pode fazer, tá errado. Então pra mim eu acho que ele é suspeito. E ela deixou ele assim mesmo ser o líder nosso aqui. Eu não uso falar o nome, mas dele eu tô usando falar. Porque se precisar eu provo. Tenho com o que provar.


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Então chegou um documento de Brasília, falando que a gente não precisava pagar imposto. O INCRA deu outro tá aí comigo. E eu tô quase pra ir preso por sonegação. Porque eu sou representante da minha mãe na área dela, que morreu, e do meu pai. Dos meus irmãos, ficou só eu. Então retalhei os terrenos, pus cada um no seu terreno. E eles não paga imposto. Quer dizer que se houver uma lei pra prender por sonegação, tenho que ir preso. Porque quem tá nos representando não tá cumprindo com o dever ou tem segundas intenções. E nós tivemos uma reunião com o INCRA aqui. Eu dei o papel e falei: o senhor quer ter a bondade de ler isso aqui na reunião? Esse documento é de vocês, pra não pagar imposto. Ele não quis ler. Ainda tá cobrando imposto. A prefeitura tem o direito de cobrar porque ainda não tá 100% quilombola. Bastante gente tá na mesma situação. E tem um documento que veio de Brasília, falando que a prefeitura não tem como tomar posse de área nossa. O Sérgio fazia os movimentos da igreja nas festas e pagava o imposto global, o título. Aí depois que dividiu, já veio a prefeitura cobrando imposto. Os invasores já tá tendo mais direito que nós que é proprietário. Porque tem o uso campeão né. Daqui uns dia eles vão entrar com o usucapião. E é dono. Os invasores que tem escritura assinada por quem já morreu tão tendo mais valor que nós, que somos herdeiros e com documento. Como o pessoal não-descendente chegou à comunidade? É a panelinha. De gente daqui, conjugado com certos advogado mau caráter dando orientação. Porque vai enrolando, enrolando, enrolando. Nunca eles saem. Agora por exemplo, tão fazendo uma reunião, formulação do documento daqui. Que aí essa área vai chegar até a escola agrícola, vai dar na rua do seminário. Vai passar pela divisa e vai até a rua do Pécora. Essa escola agrícola entra também dentro com a nova legalização né. O pessoal que não é descendente vai ter que se espirrar tudo. Pode ter bens, pode não ter. Eu diria que, se fosse pra eu escolher, eu queria a parte de cima do seminário. Porque até no ano 40, 39, era tudo devoluto isso aí. Então tinha uma cancha de correr cavalo. E tinha parente nosso que foi criado do lado de cima da rua do seminário. Então nós somos mais proprietários sem escritura do que esses aí que tudo tem propriedade. Hoje ainda tava passando a história da Glauce Rocha. Eu conheci ela mocinha né.


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Nós estudávamos com a mãe dela. Do outro lado do corgo. Então chamava rancho alegre. Ali, desde que eu me entendo por gente. Eu tinha seis ano de idade, fui lá fazer o primeiro ano A, já era dela aquele terreno. Então vamos entrar lá? E aqui não, entrou gente, requereram isso aí. Um tal de Sebastião Bagagia requereu isso aí. Mas foi em 40 ou 39. Em 42 pos os marco. Nós desfrutávamos disso aí. Pegava lenha, porque naquele tempo não tinha gás. De uma hora pra outra o homem requereu tudo, cercou, pôs o marco. Nós ficamos. Agora pra cá não. Pra cá toda vida teve proprietário. Quer dizer que o presidente da república vai ter que desapropriar isso aqui. E aqui nós tínhamos prova que era nosso. Nosso assim, sem escritura. Como nós ocupávamos aquilo lá. Acho que nós tínhamos mais direito pra lá do que pra cá. Era a cancha de correr cavalo a diversão. Tinha ali todo domingo. Então era mais nosso do que do homem que chegou lá da lua, sei lá de onde que veio, entrou e requereu isso aí. Nós temos uns 30 ou 40 metros pra lá pra baixo. Que nós estudávamos lá, a gente lembra. Tinha um canavial lá. Como era a vida aqui antigamente? Trabalhava em lavouras. Aí tem um paulista numa chácara grande ali. Que tem o nome de Figueira. A gente trabalhava lá plantando lavoura. Outros trabalhavam na chácara de um japonês. Tinha fábrica de pinga ali onde é o Estrela do Sul. Tinha três fábricas de pinga na mata do segredo. Meu pai mesmo era alambiqueiro, da primeira fábrica. Então trabalhava na colheita de café, trabalhava em canaviais, outros trabalhavam de toca lavoura nas fazendas. Era lavrador mesmo, no duro. Não tinha nem estudo nenhum. Eu em 47 fui estudar lá na escola 26, porque não queria ficar sozinho aqui. E chamava Edelweiss Ilgenfritz Rocha, é a mãe da Glauce Rocha. Era nossa professora. A escola chamava José do Patrocínio. E a chácara chamava Rancho Alegre, onde o colégio ficava dentro. Como era a festa de São Benedito? Toda a vida foi nove dias de festa. Não tinha sala. Dançava embaixo do pé de manga. Meu tio era o leiloeiro. Irmão da minha mãe. Chamava Manoel. Aí depois ele faleceu. Aí depois ele faleceu, ficou meu irmão como leiloeiro. Aí meu irmão não aguentou amis, aí passou eu a ser o leiloeiro. Então nós arrecadávamos. O pessoal saía com uma bandeira. É um pano vermelho


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numa vara com a fotografia de São Benedito. Então a gente saí nas chácaras, nas vila, nos bairro, arrecadando prenda, dinheiro. E tudo que arrecadava comia tudo nos nove dias de festa. Tudo de graça. Só bebida que toda vida foi paga. Então formava barracas na casa da minha vó. Várias barraquinhas. Igual quermesse. Ali cobrava uma micharia de cada um. E as mulheres cozinhava aquilo que ganhava. Era leitoa, era porco, era galinha. Fazia aquele panelada de comida. E dava de presente pro povo comer. Era a promessa da velha Eva. Aí tinha aquelas dança de tradições. Tinha catira, tinha engenho-da-maromba. Aí teve uma briga aí uma vez. Morreu acho que oito pessoas. Fizeram uma moda dessa morte. Meu primo sabe a moda. Eu sei algum pedaço. Mas ele sabe tudo. Eu não existia. Só a gente sabe da história né. Uns contam pro outro. Que nem eu conto pro outro. Que nem eu, conto pro meu filho. Conto pra você. Então foi por causa dum carão. Carão, você chega pra puxar uma dama né. E ela fala: Ah não vou dançar com você não. E naquele tempo era um abuso uma guria falar isso. O homem tava limpinho, tava arrumadinho, perfumado. Esse pessoal morava aí na segunda chácara, filha da Dona Maria. Tem o recordado da moda de catira pra lá e pra cá. Tudo que fala, tá falando da festa. Não tem nenhum pedacinho falando coisa que não aconteceu nessa festa. O dia da festa. Dia 11 de maio. Mas não colocaram o ano. Só tiro, muito tiro. Foi no dia da festa. Então o pessoal acha que puseram a barraca, um pau tava escorado na sacristia da igreja. Então acham que é um castigo. Mas isso aconteceu. Não sei se é castigo ou se aconteceu. Porque igreja é sinal de respeito, não é namoro e tal. Depois disso, nunca mais. Houve morte. Mas essa não. Foi proveniente da festa mesmo. Que a menina deu o carão no cara. Teve um que falou “vou torar a cabeça do Benedito na bala”. Quando chegou na porta da igreja, não sabe daonde saiu uma bala, pegou bem no meio da testa dele, ele caiu. Morto. Foi no mesmo dia, faz parte da moda. Fala assim “Paulo veio chegando meio quente na cerveja, tomou duas balas na testa, caiu na porta da igreja”. Em 1960 eu já era líder aqui. Criamos o esporte, futebol. Porque não tinha, não tinha nada. Jogava peteca, aqueles biribol, que amarra a bola numa corda e amarra num pau, e fica quatro pessoas. Um time ficou muito bom em matéria de vila, né. Fizemos excursão, fomo jogar em Maracajú, duas vezes tivemos lá jogando. Depois


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disputamos a suburbana. De 60 pra cá é que eu criei um campo. Arrancamos o mato com a mão e criei um campo. Já teve vários campos. O primeiro foi em frente àquela igreja grande que tem lá. Já fizemos ali em frente às freiras, onde hoje é o bulixinho em frente à casa do Sérgio. Primeiro nós começamos correndo com a bola aqui em volta da igreja, porque não tinha campo. O time ficou bom. Parece que só tinha dois brancos no time, o resto era tudo crioulo memo. O pessoal de furnas vinha pra cá? Era festa dia e noite? É. Não, de dia não tinha. Só no domingo, por causa do churrasco né. Mas que eles vinham de carro de boi vinha. Lá da Furnas. Várias vezes vieram de carro de boi. De dia ia trabalhar. Sempre o terço tem toda noite. Nove dias de terço né. Agora baile mesmo, quatro noites. Quando foi a primeira festa? Quando a igreja era de pau-a-pique. Mas esse eu não existia. Ela começou logo que ela veio de Goiás. Em 1905 já tinha essa festa. Porque ela já sarou da ferida. E ela fazia debaixo das mangueiras. Isso eu peguei. É do meu tempo. Dançar aquele bailão, fazer aquele empalizado. E as barracas fechava. Porque tem a festa até hoje? É promessa da minha bisavó né. Enquanto tiver um descendente.. porque primeiro foi a minha bisavó. Depois ela morreu. Foi minha vó Sebastiana. Morreu. Depois foi a mãe do Sérgio, chamava Catarina Rosa da Cruz. Aí ela faleceu e ficou o Sérgio. Agora é minha filha, a Lúcia né. Eu fui presidente da Associação de Moradores. Em 84 fui eleito a primeira vez. Fui presidente três vezes, mas não assim direto. Eu nunca quis. Eu fui intercalado. Nunca perdi uma eleição aqui. A festa está muito diferente? Ela diminuiu porque a religião ela foi enfraquecendo. Pra quem estuda a bíblia, eu fiz o curso de cristandade. Vasculhei a católica mesmo. Fundei grupo de jovens, coloquei garotos no seminário. De um saiu padre, que é o padre Helio. Hoje ele tá em Bandeirante. O chama pra pegar essa gurizada. Eu fundei um time deles né. Chamava Vasquinho. Então eles vinham jogar bola, eu pregava o evangelho em cima. Formei


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um grupo da catequese. isso foi em 80, mais ou menos. Em 60, eu mais o irmão do Michel, eu era o presidente ele era o vice. Quando nós documentamos a Associação no cartório tudo. Ele era um tesoureiro muito sincero, tudo que punha ali não sumia. As coisas descambaram depois que ele ficou como chefe. Aí descuidou. A gente não sabe quem foi esperto e quem foi o bobo. Fale sobre a Associação. Tem de moradores e dos descendentes (que foi quase obrigada a legalizar, porque virando quilombo, vinha muito benefício pra cá, e não tinha onde deixar a verba, material que recebia). Primeiro nós fundamos a associação dos moradores. Depois veio o clube de mães. Mas está parado. Só quem está na ativa é a associação dos descendentes. Michel foi presidente uns 20 anos direto. Depois o pessoal achou que não estava bom, tinha que formalizar melhor, aí que veio a candidatura dos presidentes. A Lúcia já tá no terceiro mandato. Esta última eleição nós ganhamos apertado. Eles armaram um esquema pra derrubar nós. Mas só que tudo nós fazia dentro da palavra de deus. Ganhamos por cinco votos só. Eles tinham comprado churrasco pra comemorar, bebida. acharam que ia ganhar estourado. Até a Lúcia falou: Pai, não tem jeito. Muita fraude, muito roubo. Acusaram que nós tínhamos roubado vaca. Tudo mentira. Você fazendo a coisa no nome de deus, deus dá cobertura. Ganhamos no poder de deus. O outro candidato é o meu sobrinho, que mora aqui do lado. É o filho do Michel. É o grupo dos ‘mau’. A gente fala assim porque a gente é tudo parente. A gente pode falar né. Mas se for preciso da a vida por eles a gente dá. Sê sabe como é que é família. Sempre tem um meio tortinho. Mas virou contra ele o bando pega. Se você ouvir o meu depoimento com o outro lá não bate. Aqui você tá em cima da verdade. Eu falo pra Deus, você tá me ouvindo. Mas lá não sei. Quando e como se deu o processo de urbanização? O asfalto entrou aqui sem requerimento. Era pra ser na rua de lá. Na época que o André era prefeito. Essa rua eu que mandei abrir, não tinha. Ela vinha até a igreja. Pra cá era tudo quintal. Abri várias ruas na minha presidência. A nossa administração pegava 11 vilas. Estava tudo sem água. Nós colocamos água nas 11 vilas e eu fiquei administrando. Abrindo rua, colocando água. Daqui até na Mascarenhas. Da Tamandaré até no corgo. Sou fundador da Associação dos moradores. Em 84. Eles colocaram que a


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Associação dos descendentes também foi fundada em 84. Mas não é não. Eu já estava com dois anos. Eu era mestre de obras, criei nesse ramo. Fale sobre a reforma da igreja. Eu que fiz. Aumentei a igreja, tirei o telhado, que era telha comum, de barro. Até diz que é pra fazer de novo, como era. Por baixo era um depósito de morcego. A igreja vivia suja de cocô de morcego. Aí fiz uma laje. As portas foram trocadas, as dobradiças não paravam mais. O piso era quadriculado, o lugar de acender velas. Tenho documento aí. Foi um convênio na segunda vez que o Juvêncio foi prefeito. Uma vez entrou uns ladrões aí. A gente fala ladrão né. Era época de festa. E eles acharam que tinha dinheiro na igreja. Quebraram as imagens com pau, tudo no porrete. Tinha a via sacra na parede. Os 14 tombo de Jesus carregando a cruz. Os bandidos quebraram tudo aquilo de noite. Na hora deles irem em bora, bateram o sino. Nós não tínhamos luz pra entrar lá dentro. Eles pensavam que o bandido estava lá dentro. Ninguém tinha coragem de entrar dentro da igreja. Aí meu avo veio com um tição de fogo e lumiou. Quando viu que não tinha ninguém a turma veio com revólver, garruncha, faca: “ah, cade o bandido?” Mas não tem. Já foi embora. Na época eu tinha uns 15, 16 anos, tem mais ou menos 60 anos. Porque reformar? O reboque, porque isso aí não era cimento. Na igreja foi colocado tijolo no barro. E com o tempo ele foi destacando o reboque com a parede. Chegava época de festa remendava tudo. Aquele lugar já não caía. Aí eu derrubei todo o reboque, passei massa com cimento. Agora ela tá em cima do cimento. Mas a fundação é feita de pedra. Aquela igreja nossa senhora do rosário era pra ser feita aí. Porque não cabe ninguém em época de festa. Fica tudo de fora. Aí um tal de Joaquim, com interesse de pegar a construção, pegar dinheiro falou que nós aqui era tudo macumbeiro. Porque umas duas vez fizeram encontro de espiritismo aí. Até dentro da igreja fez. E não pode falar que não. Porque aconteceu. Uma vez ou duas. Porque tem pessoas que crê em espiritismo até hoje aqui. Aí o bispo falou pra dom Antônio: gente, pra que fazer uma igreja se tem outra já? Vamos aumentar aquela e pronto. Não, lá eles não são católicos, são mais macumbeiros. Aí saiu aquela igreja lá. Aquela lá era pra ser aqui. Fazia ela, depois que cobria a outra, desmanchava a pequena.


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Fale sobre religião. O catolicismo era contado de história (superstição). Não tinha nem bíblia aqui antes de o seminário vir pra cá. Hoje eu vasculho a igreja evangélica. Achei melhor ficar na evangélica. Tá mais acentuado com a palavra de Deus. Até o pai nosso, você vê o pai nosso quando fala “assim na terra como no céu”. O que você vai mandar aqui dessa terra cheia de banditismo, de morte, de estupro. Vai mandar isso lá pro céu? Tudo que nós temos vem do céu. É a benção de deus, os santos que estão lá no céu. Não é a imagem. Uma coisa que os padre pregam errado é a imagem. Se você for ler a bíblia Deus odeia a imagem e quem faz a imagem. Se você acreditar na imagem, quando você morrer, que chegar na prestação de contas com Deus, ele vai te receber como uma imagem. Você vai falar e ele não vai te ouvir. Como as imagens. Tem boca, tem olho. Mas não enxerga, não fala. Tudo que você adquire na frente de uma imagem é pela sua fé. A imagem pode ser o diabo. Eu sei todos os hinos da religião católica. Pega a bíblia e vai ler se deus dá valor pra imagem. Nem tem lugar nenhum na bíblia que fala que nossa senhora é mãe dele. Ela é mãe de aluguel. Hoje que nós tá fazendo um estudo aprofundado da bíblia estamos sabendo. Jesus já tá vivendo lá no céu há mais de mil anos. Aí que deus falou você vai nascer lá daquela mulher porque Adão pecou, ele não pode representar o povo. Eles estão no pecado e na morte. Você aceita nascer dela? Se o senhor manda eu vou. Aí que ele veio. Mandou um anjo na frente: vai lá e fala pra Maria que ela vai ficar grávida, e vai ter um filho chamado Jesus. Ela é mãe dele? Mãe de barriga. E a religião católica briga que ela é mãe dele. Então de acordo com esses conhecimentos que eu peguei. Porque você tem que escolher. Ou você vive pelo historiador, aquele que conta as histórias do mundo. Ou vai na palavra de Deus. Eu achei melhor ir pela palavra. Qual o número de evangélicos na comunidade? De cem pessoas, 30 por cento. Eu por exemplo queria ser padre. Era o meu maior desejo. Ajudava o padre a celebrar missa. O padre celebrava com as costas viradas pro povo. Era em latim. Que que eu tava falando? Não sei. Não sabia o que eu estava falando. Tem outra religião aqui? Tem o espiritismo. Mas os espírita, tem uns aí que reza terço, vai na missa. Bate


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palma mas vai na macumba. Eu não sei que gente é essa. E é daqui. É parente nosso. Tem macumbeiro? Tem! Você tem que ter um contato com deus, prestar contas. Pelo menos três pai nossos por dia. Pra jesus, não pra imagem. Problemas com a igreja influenciam a mudança de religião? Não. Se tivesse, essa igreja era dos padres. Fale sobre o cemitério. Tirei os ossos da Eva e pus na igreja. Ali ia ser um parque infantil que não saiu até hoje. Foi mais ou menos em 71. Tem uma casa que tem um quarto dela que tem um defunto lá dentro. Nós tratávamos ele de Coronézinho, nem era parente nosso, um vendedor de queijo, andava a cavalo, um veinho da perninha torta. Tem umas 30 pessoas enterradas ali. A Joana, filha da vovó Eva tá ali. Fale sobre o busto. Aquilo lá não é Eva não. É uma semvergonheza do seu Sérgio. Aquela menina lá é minha prima primeira. Bisneta da Eva. Mas estava rendendo né. Ele ganhou um pouquinho pra fazer um busto. Ouvi falar que era 20 mil. Ela era bêbada, foi prostituta, tem filho de dois maridos. Aquela que tá lá na porta da igreja. O pai dela é irmão da minha mãe. Fomo criado junto. Morreu o pai dela, minha mãe. Minha vó criou seis netos. Como é viver na comunidade? Tudo que sê pensar tem aqui dentro. Ali mora um primo seu, ele é macumbeiro sê num é. Vai tratar ele conforme merece. Facilitou, quebra o pau. Assim nós vamos vivendo. A relação é bem mais próxima? Por obrigação, por dever, por acreditar em Deus tem que ser diferente. Por causa do sangue. Meu vizinho, macumbeiro? Eu não vou brigar pelo meu sobrinho? Deixa a macumba pra lá. Eu quero a pessoa. Mas ele não pensa assim. Já tentou me matar em macumba por causa de terra. O senhor tem quantos filhos? Cinco. Quatro filhos moram aqui comigo. Esse terreno desse muro até aquela cerca da Lúcia é a parte da minha mãe. Eu estava pagando aluguel. Fique quase três anos em outros bairros. Porque eu dei a casa pros filhos. Não se dava com o jeito do meu genro. Mudei.


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Minha filha que morava aqui foi pra suíça com a mãe dela e eu vim cuidar da casa. Fiquei dez anos solteiro. Duas mulheres não deram certo. Com a mãe da Lúcia vivi dez anos. Aí apareceu essa achando que ia dar certo, estou experimentando. O que precisa na comunidade? Um advogado bom. Que vai trabalhar pra ajudar a comunidade. Pra você ficar sossegado tem que tá na sua casa, com a escritura na mão. Ninguém tem isso aqui. Conte um pouco da vida do senhor. Fui estudar até o segundo ano primário, que deu a quinta série. Trabalhei na cadeia, como motorista. Fui mestre de obras, ajudei a construir a Agência Forte, no calçadão, o Dom Bosco, ajudei a fazer o seminário (começou em 59), neste tempo eu molhava horta, ganhava 70 mil réis por mês. Meu pai vivia pras fazendas, a família dele mora em Corumbá. Minha mãe teve dois maridos. Com o primeiro ela teve dois filhos, ficou viúva, casou com meu pai e teve eu. Do meu pai aqui não tem nada. O senhor já sofreu preconceito? Ixi. Se você prestar bem atenção, preconceito no Brasil, se for pra dar nota é 10. Assiste televisão que você vê, as mais negras que tem lá é da sua cor. Pode olhar. Liga a televisão e vê a imagem de quem tá representando o programa. Se tiver dez negro na televisão é o máximo. Quando eu servi o quartel, o cara que foi promovido no meu lugar eu que ensinei a fazer muita coisa. Ele foi promovido e eu não. Meu comandante era alemão, não gostava de negro nem japonês. Cheguei ir pra cadeia do quartel por perseguição de ser negro. Mas fui liberado pra jogar no time de futebol. Trabalhei como mestre de obras em Corumbá e um homem uma vez não quis fazer o contrato comigo porque eu era negro. Minha mulher abandonou o colégio porque foi reprovada por meio ponto. O racismo, na hora que você ligar uma televisão você vai ver. Tem morena. Mas queimado assim, parece que é pecado por lá. Não tem. Qual a importância da comunidade pra Campo Grande? Sou obrigado a falar uma coisa pra você. Se os político valorizasse essa comunidade eles tinham muita história boa. Mas essa comunidade, pros políticos, nasceu em 1984. Ela é de 1905. Do que o senhor tem mais orgulho na comunidade? De ter essa igreja. Não as imagens! A igreja que representa a comunidade desde


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quando começou Campo Grande. Essa igreja tá dando sustentação na documentação disso aqui. O senhor participa da festa? Não porque a bíblia proíbe. Eu tenho dificuldade pra caminhar. Tenho medo de arrumar encrenca. Se não for pra ajudar ir lá à toa. Já participei, ajudei a organizar. Enquanto eu não li essa parte na bíblia, que não se deve comer coisas de ídolo eu comia, eu participava do churrasco. Hoje nem se me der não pego. Que a bíblia não aceita.


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Apêndice 6 - Entrevista com dona Luzia de Arruda Silva – 17 de agosto de 2013

Como a senhora chegou à comunidade? Antes meus pais tinham uma aqui na chácara na Mata do Segredo, antiga figueira. Eles moravam aí eu não era nem nascida. Aí ele conheceu aqui o pessoal de São Benedito. Minha mãe foi festeira aqui e nós pegamos amizade com o pessoal. Minha mãe era quase parente da Tia Eva. Nós fomos na festa de São Benedito. Todo ano saía missa, terço, procissão, fogueira, levantação de mastro, churrasco. Depois que eu virei adulta, começamos a vir dançar nos bailes, que eram muito bons. Minha mãe trazia nós e dançava até o dia amanhecer. Aí eu conheci o Michel e começamos a namorar, dançar, cassamos eu vim morar aqui, porque ele já morava aqui, com a mãe dele, cuidava da vó Sebastiana. Criei 13 filhos, 23 neto, cinco bisneto já. E é um ambiente muito gostoso aqui. Do que a senhora mais gosta aqui? Do lugar, que é muito sossegado, tranquilo. Tem muito bairro por aí que o pessoal reclama da violência. E aqui graças a Deus não tem nada disso. Eu lavo roupa, posa no varal, levanta tá do mesmo jeito, nunca sumiu, nunca houve roubo. Acho que é porque mora muito só gente da comunidade, a maioria é parente e ninguém mexe. Como são os fins de semana? No fim de semana é muito gostoso, reúne a família. Nem todos os filhos tá aqui, mas tá bastante neto. Eles estudam dia de semana e final de semana vêm pra cá, brincar, ter o lazer deles, se divertir. Almoçou todo mundo aqui hoje. Os filhos moram perto? A Márcia, a Antônia, a Ângela, o Sérgio, o Paulo César e o Eurides, moram aqui na comunidade. Tem quatro que mora pra fora, uma em Bonito, outra Cuiabá, uma mora no Nova Lima e outra na Vila Paraty. É que antigamente não tinha inventário e também por causa do serviço dos genros. Meu genro foi morar em Cuiabá porque ele mexe com ar condicionado e lá é muito quente, mexe com computador, micro-ondas. E o outro de Bonito mexe com artesanato. O outro é motorista de ônibus e mora no Nova Lima. A outra filha é enfermeira na Santa Casa. Entrou lá como copeira em 80, lá fez o curso, o estágio e hoje é enfermeira, já aposentou, mas não quer parar de trabalhar porque distrai, já fez os filhos casarem, só teve um casal de filho. Ela mora na Vila Paraty, ficou mais perto do serviço.


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A Márcia trabalha por conta, é cabeleireira. Duas trabalham em casa de família. Os meninos trabalham em uma firma de quartel, o outro lá pro lado do shopping e outro na Júlio de Castilho. Eu trabalhava antigamente em casa de família, aí aposentei e agora só trabalho em casa, na lida do lar. Como são os dias de semana? É calmo, fica eu, meu esposo, a menina que mora aqui perto. Os netos vão pra aula depois do almoço. Todo dia vem aqui, chega 5h, cansado, vai fazer trabalho de colégio. Aí eu fico calma. Mas chegou sábado e domingo já fica aquele piseiro aqui de criançada. Duas filhas minhas têm dois filhos, a esposa do ‘Bolinho’ tem seis filhos. O que tem menos tem um. As crianças estudam na escola do bairro? Um pouco aqui. Alguns no Sesc e tem uma que estuda no colégio da Vila Nasser. Todos aqui são parentes? Tudo é parente. Tão sempre por aqui. Hoje tá calmo porque foi um pouco de gente pra Furna dos Dionísio que tem festa lá hoje. Mas quando não tem aqui tá lotado. Domingo mesmo tava cheio, aqui em casa, lá no barzinho, o pessoal tocando violão, tocando sanfona. O pessoal é muito divertido aqui. O que a senhora gosta de fazer? Eu passeio sempre fora mais meu velho. Vamos almoçar fora. Gosto muito de passear. Passeio por aqui também. Os vizinhos, às vezes minha ‘sobrinhada’ faz aniversário, almoço, convida a gente e a gente vai. E viajo, gosto de viajar, sempre estou indo pra Bonito passear. É gostoso, tomar um banho de rio. É bom até pra pressão, descansar. Minhas filhas vão vir final do ano pra cá, aí eu nem vou viajar esse ano. Como é o fim de ano? Eles vêm tudo pra cá. Minha casa fica lotada. Uns dorme no sofá, outros no quarto de hóspede. Um pouco na casa das irmãs aqui do lado. As crianças correm, brincam, brigam. Depois ficam cansados e dormem cedo. Tem muitos cursos na comunidade? Em 2009 saiu o de argila, eu tava no curso. A gente fazia artesanato, chaleira, potinho de argila. Com o tempo entrou outra presidente e parou agora. Não tô mais no curso porque não tenho mais paciência, cabeça. E o que a senhora faz para distrair? Eu gosto de fazer mais é pintura, porque quando meu esposo tava na frente da


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comunidade meu menino trouxe um pessoal que dava aula. A gente pintava pano de prato. Eu vendi tudo. Isso foi em 2009. Agora acabou. Mas estou pensando em fazer de novo. Às vezes no domingo meu esposo fica olhando jogo e as meninas sai tudo, aí eu fico sozinha aqui pra fora e dá vontade de eu pintar. Eu trabalhava de empregada doméstica, não tive tempo de fazer essas coisas. Minhas filhas tiveram, tiveram estudo. Eu aprendi ler só um pouquinho, em casa. Com nove anos de idade eu já trabalhava. Naquele tempo os pais eram carrasco punham a gente trabalhar cedo. Meus filhos, quase todas são formadas, estudadas. Tem uma que formou na UCDB, quase todas elas são formadas. Eu não tive tempo de estudar. Eu sei ler um pouquinho, escrever, mas não sou estudada igual elas. Sempre eu pego um caderno e vou escrevendo pra não esquecer. Ainda tem grupos de música africana na comunidade? Tinha, mas depois que a Lúcia entrou acabou tudo. Aqui tinha aula de Capoeira, danças da África, desfile da primavera. Dois meninos meus são capoeiristas. Aqui vinha dia de semana gente pedir chave da igreja pra entrar. Agora não vem porque ela pôs tudo muito difícil. Pra entrar na igreja tem que fazer ofício. Já pensou pra visitar um santo ter que fazer ofício? Vinha o grupo Sarandi, tinha palestra, o pessoal de Furnas vinha dançar catira. Agora ela não convida ninguém. Tem muitas brigas de família aqui? De vez em quando sai no bar umas brigas de bêbado, mas logo já aparta. Graças a Deus é tudo calmo, todo mundo se respeita. E como é à noite? O pessoal fica em casa, olhando TV. Um menino meu é pagodeiro, vai tocar, no grupo Samba di Prima. Eu não gosto de pagode, não sei dançar, minhas meninas iam quando era solteira. Eu sou mais do sertanejo. Ele chega 1h, meia noite, tá tudo tranquilo. Tudo da família no grupo. Eu fico preocupada com eles, mas graças a Deus meus menino não é de briga, nem os rapazes daqui. A gente conversa muito com eles, eles frequentaram muito o grupo de jovens. Que dias a senhora vai à igreja? Fora da festa a gente reza terço toda sexta, domingo é a missa na outra igreja. Tem mais alguma coisa que a senhora queira falar? Mora todo mundo perto. Mas às vezes eu fico chateada com a barulhada dos netos.


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Mas sabe que dia de semana eu sinto falta. Falo: puxa, ontem tava todo mundo alegre aqui, a crianรงada brincando, hoje tรก triste. Crianรงa dรก uma alegria na casa.


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Apêndice 7 - Entrevista com Geraldo Pereira Graciano, técnico agrícola do INCRA – 03 de outubro de 20138 A demarcação das terras quilombolas começa com a abertura de um processo9, que exige a certificação da Fundação Cultural Palmares, reconhecendo a comunidade como Remanescente de Quilombola. (A Comunidade São Benedito foi certificada em 2008). Depois o órgão responsável pelo processo de demarcação das terras vai ser notificado. A própria Fundação encaminha o certificado para eles. Mas é preciso que o presidente da associação da comunidade compareça ao INCRA no caso. (O INCRA recebeu a solicitação para abertura do processo da Comunidade São Benedito em 2007, antes mesmo de ela ter a certificação concluída). Segundo Geraldo, há comunidades quilombolas que ainda não demonstraram interesse na abertura de processos, mesmo após a certificação. Assim como há outras que já comunicaram o INCRA antes mesmo de ter o certificado. Então começa o RTID (Relatório Técnico de Identificação e Demarcação), que tem várias etapas:  Relatório antropológico (feito na comunidade pelo antropólogo contratado Carlos Alexandre Barbosa Plínio dos Santos)  Levantamento fundiário (avalia quem vai ser envolvido no processo: quantos descendentes e não-descendentes moram no local, que atividades eles desenvolvem, quantas casas há na comunidade e quais os proprietários que tem documentação das terras)  Planta memorial e descritiva (faz parte da etapa de levantamento fundiário) OBS: Para a antropologia, a história oral, juntamente com as comprovações materiais, tem valor de documento. Por isso os antropólogos fazem entrevistas, pesquisas, principalmente com as pessoas mais velhas, e tentam encaixar os depoimentos.  Cadastro quilombola (está sendo feito na Comunidade)

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A entrevista não está em formato de pingue-pongue porque não foi feita com base na decupagem das perguntas e respostas, e sim a partir das anotações que fiz no dia, pois o áudio não ficou salvo no gravador. No entanto, para certificar a confiabilidade dos dados, voltei outro dia ao INCRA, e conferi com as informações com o entrevistado, que acrescentou correções. 9 Os grifos em negrito constituem as etapas do processo de demarcação das terras quilombolas, feito pelo INCRA.


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 Levantamento de sobreposição de incidente OBS: incidente foi o termo usado por Geraldo para se referir aos nãodescendentes. Segundo o técnico agrícola, nesta parte do estudo é feita uma espécie de mapa, com a divisa das terras, inclusive com os terrenos dos vizinhos. Então este mapa é mostrado a todos, para saber se todos consideram as demarcações corretas. Tendo assim certeza de onde começa e onde termina a propriedade de cada um. 

Parecer conclusivo jurídico

Após este levantamento, começa o processo de oficialização destes dados. É a aprovação pelo CDR (Conselho Diretor Regional). Este processo também conta com algumas etapas: 

Notificação aos ocupantes e confrontantes

Publicação do Relatório Técnico de Identificação e Delimitação nos Diários

Oficiais da União e do Estado 

Notificação de órgãos e entidades

Quando todos já foram notificados, tem início a fase contestatória. Nesta parte do processo acontecem os julgamentos em 1ª e 2ª estância dos casos. Que contam com câmaras de conciliação em casos específicos. Com os processos administrativos e judiciais já resolvidos, é publicada a desapropriação. A última parte é a etapa de desintrusão, que conta com a desapropriação, o reassentamento e a demarcação. O título das terras é entregue à entidade que responde pela comunidade quilombola. No

caso

da

Comunidade

São

Benedito,

a

Associação

Beneficente

dos

Descendentes de Eva Maria de Jesus. E o título de toda a terra fica em nome desta Associação, que possui CNPJ. Como a Associação fica como administradora do título geral das terras, é ela quem escolhe o que vai fazer com elas, e como vai dividi-las. O trabalho do INCRA é apenas fazer a demarcação e entregar a ela o título. Quem não for descendente tem que devolver as terras para a comunidade. Em troca, ela recebe uma espécie de indenização do governo. As terras são avaliadas (especialistas analisam quanto elas valem, tanto pelo terreno em si quanto pelas


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benfeitorias construídas nele). O valor desta avaliação pode ser questionado e renegociado a partir de uma decisão judicial. Geraldo afirma que os não-descendentes também podem contestar as decisões judiciais que os obrigam a deixar as terras. “Às vezes a pessoa tá morando ali porque comprou o terreno de boa fé, uns 20 anos atrás. Neste tempo não tinha esse negócio de quilombola. Podia comprar. Assim como quem vendeu também nem imaginava o que está acontecendo hoje”. O território da comunidade é definido de acordo com a porção de terra que eles usavam para subsistência. Porque não é só ali onde as pessoas moram, pois elas também precisam de um lugar pra plantar, extrair os recursos naturais. É toda a área que eles utilizavam antigamente. Não tem nada a ver com as terras que foram compradas (Tia Eva comprou oito hectares de terra). Até porque outras comunidades não compraram, mas ocuparam estes lugares. Por isso a demarcação da Comunidade São Benedito envolve um território maior do que estas oito hectares. O processo na Comunidade São Benedito ainda está na fase inicial, segundo Geraldo. E não tem como prever em quanto tempo o processo será concluído. O técnico agrícola também afirma que, como a pesquisa não foi concluída, ainda não há dados oficiais, como o número de moradores por exemplo. Sobre a isenção do IPTU, Geraldo afirma que cada caso é um caso. Normalmente não, eles têm que continuar pagando. Neste caso é IPTU, já nas outras comunidades, como não são urbanas, é o Imposto Territorial Rural. “Teve comunidade que depois de conseguir os títulos entrou na justiça, teve apoio de vereador, e conseguiu ficar isenta de pagar o imposto. Mas depende. Isto não é mais com o INCRA. Vai da prefeitura fazer isso e perdoar os IPTUs atrasados”. Além da Tia Eva, há outras 17 comunidades quilombolas com processos abertos aqui no INCRA. Algumas já estão na fase final de demarcação. Outras ainda estão no começo. Tem umas que ainda nem receberam a certificação da Fundação Palmares. Mas nenhuma está com o processo concluído. Sobre a política demarcação de territórios Remanescentes de Quilombo, o técnico explica que a escravidão acabou, mas o Estado não adotou nenhuma política para incorporar os ex-escravos à sociedade. Então ele ficou com uma dívida com essa parcela da população. Mas o compromisso com essa reparação só começou lá na década de 80. Na Constituição de 88, o ADCT 68, e a OTI 169 garantem esses


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direitos. Assim como uma lei em 2003, o Decreto 4887. E esta divis茫o do INCRA que cuida exclusivamente de territ贸rios quilombolas s贸 come莽ou a funcionar em janeiro de 2004.


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Apêndice 8 - Entrevista com Vânia Lúcia Baptista Duarte – 20 de outubro de 2013

Faça uma apresentação sua. Eu sou Vânia Lúcia Baptista Duarte, sou tataraneta de Tia Eva. Tenho 37 anos. Tenho um filho. Sou professora. Faço assessoria parlamentar e participo aqui na diretoria da Associação e também no movimento negro. Como é viver aqui na comunidade? Assim, eu nunca vivi em outro lugar, então eu não tenho um paralelo. Mas, assim, o que eu verifico de diferente é muito essa coletividade. Porque por sermos parente nós temos uma proximidade muito grande uns com os outros. E morando aqui, tem certas responsabilidades que elas acabam sendo divididas ou a gente assume pelo grau de parentesco, né. Se tiver faltando um sal na minha casa, eu não tenho, eu pego no vizinho, não tem problema nenhum. Se eu não quiser almoçar em casa, eu chego, vou ficando, almoço na casa de alguém. Então, esse eu vejo que é o espírito da coletividade que aqui é muito presente na comunidade. Se alguém ficar doente, um vai lá visitar, tenta conversar. Então isso eu vejo que é vantagem, morando nessa coletividade de uma comunidade. Tem uma parceria com a escola pra passar a história de Tia Eva para os alunos? Esse ano eu não estou trabalhando nessa escola. Eu trabalho em uma escola municipal que não fica aqui na comunidade. Mas até o ano passado eu trabalhava na escola como professora de história e arte. Então na minha disciplina eu procurava trazer essa história da comunidade. Tirar os alunos da escola, trazer pro espaço da comunidade. Conhecendo a igreja na questão da disciplina de arte, trabalhando arquitetura. Trazer pra mostrar a igreja da comunidade porque a igreja São Benedito é a arquitetura mais antiga da cidade de Campo Grande. Então a gente trabalhando isso na disciplina de artes eu trouxe eles pra ver né esta arquitetura, aliando o conteúdo à história da comunidade. Até porque é o espaço que a escola está inserida. Esse ano eu não posso falar como tá, porque eu não tenho amis essa participação dentro da escola.


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Eu não me lembro, acho que oficialmente não teve nenhum convênio. A escola é como todas as outras não têm só alunos da comunidade. Quando ela foi construída, o que eu me recordo da discussão é que seria um espaço para contar mais a história da população negra, a história da comunidade Tia Eva. Mas hoje nós verificamos que é uma escola da rede estadual, que a sua dinâmica de ensino é igual à escola da rede mesmo. Não traz um diferencial. E eu vejo que isso é uma pena. Porque ela está dentro de uma comunidade quilombola e ao mesmo tempo isso não é presente verdadeiramente dentro da escola. Isso eu vejo como uma pena. Você pode contar um pouco melhor do Projeto Negraeva, que ofereceu à comunidade acesso ao ensino superior? Bom, eu fiz parte do Projeto Negraeva como bolsista e também como uma das organizadoras, coordenadora. Eu fiquei responsável pela coordenação do acesso. Então foi um projeto que beneficiou muito a população negra, principalmente aqui da comunidade. Porque muitas vezes nós não verificávamos uma possibilidade de entrar na universidade. Primeiro, na universidade pública, pelo menos eu já tinha tentado por mais de uma vez, não tinha conseguido entrar. Porque a gente sabe que o nível da escola pública ainda ele não é igual da escola particular. E também aquela questão que nós temos que sair pra trabalhar e estudar. Então eu vejo que a aprendizagem, acaba faltando alguns componentes que contribui para passar no vestibular. Isso dificulta. E aí a universidade privada, muitos de nós não víamos como possível, pelo valor dos cursos. A maioria recebendo um salário mínimo e os cursos, o valor que tem de se pagar de mensalidade é bem superior. Com o projeto, pelo menos eu fui beneficiária, nós ganhávamos uma bolsa em recurso financeiro que nos ajudava a pagar a universidade. Na época que eu fiz, eu fiz na UCDB o curso de história, de 2002 a 2005. Tinha bolsa social também. Eu tinha que provar a minha pobreza pra ter acesso à bolsa social. E na época eu trabalhava como doméstica. Então consegui provar a pobreza com todos os documentos necessários. Aí eu tive a bolsa da universidade e do projeto. Com o que eu também me liberei do trabalho pra poder estudar. O meu primeiro semestre foi difícil porque algumas disciplinas eu nunca tinha visto. Então fiquei de exame de quatro disciplinas e eu falei: bom, então vou ter que tirar férias do serviço pra poder me dedicar, porque se não vou perder a bolsa. Graças a Deus passei, não peguei nenhuma dp durante os quatro anos. Mas eu tive que


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mudar a minha vida pra conseguir o meu objetivo. Tive que estudar. E graças a Deus deu certo. Quantas pessoas foram beneficiadas pelo projeto? Não lembro com exatidão, mas acho que foram 22 bolsistas com essa bolsa financeira. Mas aí cada um na universidade tinha que articular outras bolsas. Alguns estavam na Uniderp, outros na UCDB, na Anhanguera, em todas as universidades, e cada um tem um sistema de bolsa interno. E aí alguns conseguiram outras bolsas, outros não. Aí no grupo de acesso nós tivemos umas 200 pessoas que participaram do cursinho pré-vestibular, oferecido aqui na escola da comunidade. O projeto era Associação dos Descendentes de Tia Eva em parceria com a Universidade federal, governo do estado e com recursos da Fundação Ford. O que é Fundação Ford? É uma fundação internacional que abriu um edital. E nesse edital nós inscrevemos o nosso projeto. E o nosso projeto foi o único aprovado a nível do estado de Mato Grosso do Sul pra sermos beneficiários desse projeto. E aí esse projeto era, digamos assim, alocado na UERJ, a Universidade Estadual do Rio de Janeiro. Isso foi de 2002 a 2006, eu não me lembro com exatidão. Com o recurso ele funcionou por um período. Depois nós tentamos andar sozinhos, fazendo outras ações. Ele continuou depois sem o recurso. O projeto com a Fundação Ford, ele teve recurso pra dois anos. E depois a gente procurou andar sozinho. Bastante gente da comunidade já tem o ensino superior? Assim, pelo quantitativo de pessoas na comunidade, ainda são poucos. Mas eles vão lutando. Graças a Deus com a escola na comunidade muitos voltaram para a escola. O número de pessoas com ensino médio, depois que a escola veio pra dentro da comunidade aumentou muito. Então esse é o saldo positivo da escola. A escola que nós tínhamos era o Instituto Imaculada Conceição, que funcionava até a sexta série na época. Nós tínhamos que ir pra outras escolas. Isso desmotivava muito as pessoas a continuarem os seus estudos. Até porque já estávamos na fase da adolescência, já tínhamos que começar a trabalhar. E aí nem todos conseguiram organizar sua vida pra continuar os estudos. Então quando a escola veio pra comunidade, muitos que tavam fora da escola e não tinham o ensino médio tiveram essa oportunidade de concluir seu ensino aqui dentro


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da própria comunidade. Mas ainda são poucas as pessoas que tem o ensino superior dentro da comunidade. No geral, a situação melhorou bastante? Sim. É porque a nossa comunidade é uma comunidade urbana. Então a gente tá em todos os espaços da sociedade. Tem a questão do poder público, que nós ainda temos algumas características rurais. Mas temos legislação que nós temos que obedecer. O poço que a gente tinha aqui pra tirar a água, no próprio quintal, não pode ter mais, se não recebe uma multa. A galinha que a gente criava não podemos criar mais. O porco que a gente tinha no quintal. Então o poder público ele contribui para que as nossas características mudem. Pra atender as legislações. Então isso acaba interferindo sim na dinâmica da comunidade. Em que ano a Associação foi criada e qual o papel dela? A associação foi criada no ano de 1984. O tio Michel é que foi o primeiro presidente. Assim, a Associação tem a sua diretoria. Mas as pessoas que moram aqui são membros da Associação, porque ela é familiar, não de bairros. Então ela administra esse espaço. E também, de certa forma, as coisas que interferem na vida dos descendentes da Tia Eva. Tanto dos que moram na comunidade quanto dos que não moram. Então nós falamos que a Associação é a entidade que administra e representa a Comunidade Quilombola Tia Eva. Aí fazemos reuniões. Convocamos os membros da Associação para deliberações. Pra ver quais são as interferências que precisam serem feitas. O que nós dependemos do poder público. Algumas coisas que não estão a contento, o que nós podemos fazer para melhorar. É mais ou menos essa dinâmica. Temos a parceria com o governo do estado, com a prefeitura de Campo Grande. Isso é muito positivo. Vocês têm um horário de trabalho? Recebem salário? Não, não temos salário, nada disso. A coisa, ela funciona muito no voluntariado. Eu estou na vice-presidência, eu não recebo nenhum recurso financeiro. Eu acabo digitando alguns ofícios, então eu digito na minha casa. A impressão eu faço na minha casa. Aí quando a coisa fica puxada você tem que tirar muitas coisas, cópias, a gente vai até o órgão público. Se vira. Ou a gente faz ali uma arrecadação e paga algumas coisas que temos que pagar. Tudo funciona em parceria e no voluntariado mesmo.


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Como a Associação organiza a festa? Então, a festa, no início do ano a gente já pensa qual vai ser a data. Normalmente o início da festa é na segunda sexta-feira no mês de maio. Então é uma construção coletiva. Aí a gente tem que atender toda a legislação, todo o trâmite, pedir alvará. E da comunidade a gente precisa que eles venham participar dessa organização prática no dia, no momento da realização da festa. Porque a festa ela é muito grande. Tem torneio de futebol, tem pagode, tem dança, tem miss, tem almoço. A gente precisa que a comunidade venha trabalhar pra que essa festa aconteça. Então é uma parceria voluntária da festa. Aí a gente conta mais uma vez com a parceria com o governo do estado e com o governo municipal. Qual a importância da festa para a comunidade? Para Campo Grande? Bom, a festa ela está no calendário oficial de eventos, tanto do governo do estado quanto da prefeitura municipal. Então aí por isso que justifica essa parceria e aí todo ano a gente vai atrás. Então nós verificamos que é algo esperado da sociedade. As pessoas quando chegam no mês de maio perguntam quando vai ser a festa, quem vai tocar. Então já é algo esperado, né. Pra comunidade é um espaço de integração, de rever muitas pessoas que a gente não via há algum tempo. Em que ano a festa começou? Não, a festa ela iniciou com Tia Eva. Ela chegou aqui em 1905, então acredita-se que em 1908 ela iniciou essa festa. Porque foi quando ela chegou com a enfermidade, foi quando ela fez a promessa. Aí ela colocou como condição, caso ela ficasse curada, ela iria fazer uma festa pra homenagear São Benedito, agradecer pelo feito, e construir a igreja. Então a primeira igreja que houve foi a de pau-a-pique com alvenaria. E depois, em 1919, é que foi construída essa igreja. Então eu não sei quem é que condicionou o início da festa à construção da igreja de alvenaria. Sendo que inicialmente tinha-se a igreja de pau-a-pique na comunidade, quando iniciou a festa. Então é bem anterior. Quando ficou pronta a igreja de pau-a-pique? Eu não sei te precisar. Porque a festa ela começa sempre na casa das pessoas. Essas festas familiares elas iniciam nos lares. Depois que se sente a necessidade de construir um altar, um templo, e aí é que foi esse processo.


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As festas eram realizadas embaixo das mangueiras da comunidade. Então o salão foi bem depois. Então é igual a maioria dessas festas religiosas, que iniciam nos lares das pessoas. Depois faz a capelinha, depois faz o salão, e depois que vem a organização dessa festa mesmo. Em que ano foi construído o salão? Então, esse também não é o primeiro. Eu ano sei precisar a data do salão. Porque o que eu conheci era de madeira. Mas parece que já teve outro anterior ao de madeira. Começa pequenininho, vai aumentando, aumentando. Aí foi demolido e acho que em 2001 foi construído esse atual. O pessoal da comunidade ainda participa das atrações culturais da festa? Nós tivemos um grupo de funk, que foi dos meninos aqui da comunidade, na noite cultural de quinta-feira. Eles eram meninos daqui. Aí nós tínhamos a Capoeira, que não é daqui, mas com meninos da comunidade fazendo a apresentação com o grupo de Capoeira. Foram dois grupos de Capoeira. O outro ensaiava aqui na comunidade e aí fez a apresentação também dessa dança. Teve dois grupos de Capoeira. O primeiro só fazia o ensaio na comunidade. É que são dois tipos de Capoeira. E os meninos têm mais atração pelo segundo, que mistura maculelê, é mais agitado. Então aí alguns estavam nesse segundo grupo. E aí tem o grupo de pagode que fez apresentação, o Grupo Introdução, que tem alguns meninos que são da comunidade também. Como é a participação dos jovens na festa hoje? Eles participam. Não dessa organização. Alguns vêm, contribuem, ajudam pra realização da festa. Mas a maioria vem é pra se divertir, no pagode, no futebol, participa do almoço. É mais a participação nos eventos. Tem alguma preocupação a respeito de quem vai continuar a festa? Eu, no caso, penso não só na festa. Porque a festa ela dura um mês, mas a comunidade continua os outros dias. Então nós temos que pensar a Associação pro ano inteiro e não só pra festa de São Benedito. Porque se não a gente fica só com um evento, com uma preocupação. Nós temos que pensar na saúde, no transporte, na segurança. Então eu penso, pelo menos a minha preocupação não é só a festa. É a geração de renda, é como que nós vamos nos manter juntos. Aqui nós tivemos um curso de bordado, que eu participei, eu achei que foi riquíssimo. Porque ali as mulheres, principalmente as mais idosas, estavam junto


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com as mais novas, e elas contavam os causos de antigamente. Então o bom não foi nem assim pela aprendizagem do bordado, mas pelo momento de estarmos juntos. E foi o espaço pra estar conversando sobre a nossa realidade, sobre a nossa história, e geração de renda. Então eu penso mais nesse dia a dia nos mantermos em comunidade e suprirmos as nossas necessidades. Pelo menos a minha visão é essa. Aqui são realizados terços todas as sextas-feiras, às 19h30. Tem o pessoal que é responsável pelo terço. Pra realizar missa aqui na comunidade nós temos que solicitar pra igreja, mandar ofício. Aí ele só vem aqui na abertura da festa, no encerramento da festa. Algumas vezes no mês de novembro. Então não tem missa dentro da comunidade. A missa é realizada na igreja ali de cima, Nossa Senhora do Rosário e São Benedito. E aí é uma outra organização. Antigamente eram nove dias de festa ou sempre foram dez? Eu acho que essa conta tá errada, é dez. As pessoas elas falam nove dias. Eu falo não, essa conta tá errada, são dez. Começa na sexta e termina no segundo domingo. Eu acho que é a questão que eles não contam direito. Porque desde criança, que eu vi, sempre foi assim. Começa na segunda sexta-feira de maio e encerra no segundo domingo. Então a minha conta sempre deu dez. Mas as pessoas: “não, são nove”. Falo essa conta tá errada. O pessoal de fora que vem pra comunidade causa alguma mudança na festa? Olha, a nossa comunidade não é fechada. Nós temos até uma situação na comunidade, que nós temos vários negros, que não são descendentes de Tia Eva, mas vão se aproximando da comunidade, por várias questões, e eles se sentem membros da comunidade. E nós nunca vetamos isso. Porque a nossa comunidade ela quer agregar, ela não quer separar. A nossa a luta, a nossa dinâmica sempre foi essa: agregar. E não separar, nem fazer restrição, nada. Quem quiser vir, sinta-se à vontade. Vem conhecer a nossa história, o nosso povo. E é assim que funciona. Os carros de som na festa são do pessoal da comunidade? A maioria dos meninos da comunidade e as meninas conhecem essas pessoas que tem o carro de som. E acho que nós não podemos esquecer o espaço que a comunidade está inserida. Infelizmente ou felizmente, o carro de som não está presente só na comunidade Tia Eva. Em todos os bairros, vilas, tem carro de som. Então por que na comunidade seria diferente?


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Aí o que é difícil é eles respeitarem o que algumas pessoas pensam, diminuir o som, porque não é hora. Mas os jovens da comunidade estão lá com eles, dançando, se divertindo. Então é o olhar que cada um dá pra questão, pra situação. E esses olhares é que muitas vezes gera o conflito. Porque eu quero uma coisa e o outro quer outra coisa. Mas vejo que o carro de som está presente em todos os espaços dessa cidade de Campo Grande. Eu não gosto muito, mas. Qual sua religião? Sou evangélica. Você sempre foi evangélica? Não, eu quando era criança era católica. Até porque fui criada pela minha vó. Minha vó me levava pra missa, desde que eu me entendo por gente, minha vó era muito católica. Toda noite rezava ali o terço. Ela fazia na casa dela, não lembro a data de dezembro, mas ali a novena pra Santa Luzia. Então essa questão da religião católica, na vida dela sempre teve presente. Mas eu vejo que a religião é algo individual. É cada um que escolhe o caminho que vai seguir. É onde se sente melhor é que vai ficar. E eu vejo que a religião não é tradição. É onde você se sente bem, é uma escolha pessoal. Bastantes pessoas da comunidade terem se tornado evangélicas tem alguma coisa a ver com as desavenças com o pessoal do seminário? Não, é onde eu me sinto melhor. É a questão do que é pregado naquele espaço. Muitas destas pessoas, que são evangélicas hoje, não conviveram neste período da divisão. Ele é bem antigo já. Alguns dizem que é em 74, 75. Eu nasci em 75. A maioria dessas pessoas nem participaram desse processo. E também eu vejo que essa história poucos contam. Por ter a ligação com a igreja católica, com a instituição. Então eu vejo que tem pessoas que elas não contam esse lado da história. Pela sua ligação com a instituição. E se perguntar pros mais novos na comunidade, eles não sabem dessa divisão que houve aqui. Os acontecimentos que a igreja católica fez. A questão de se apropriar da festa e não haver divisão nos lucros. A história como surgiu a igreja lá de cima. A maioria não sabe. Então não foi isso que levou as pessoas pra igreja evangélica. Há quantas igrejas evangélicas na comunidade? Tem aqui nos fundos de casa, na casa de uma prima minha, a igreja. Tem a assembleia de Deus, mas ela não é daqui, de pessoas da comunidade, mas as pessoas da comunidade vão lá. Temos a igreja batista ali no vizinho. E temos


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também uma outra igreja na outra rua que as pessoas vão. E elas vão em outras localidades também. Mas aqui da comunidade só tem uma. Quando chegou a urbanização? A água e a luz chegou com essa organização em Associação. Foi na gestão do Tuti. Porque aqui tinha a Associação de Bairro e dos descendentes de Tia Eva. Então o Tuti, o pai da Lúcia, era da Associação de bairro e o tio Michel da Associação dos Descendentes. Aí eles lutaram pra que houvesse a luz e a água aqui. Não me lembro se foi em 83 ou 84 que chegou essas duas questões aqui na comunidade. Quando eu era criança, eu me lembro que a gente tomava banho no córrego. Se não tinha água no poço, porque tem períodos que seca a água, elas lavavam roupa nesse córrego que passa aqui, que naquela época era córrego, hoje em dia não é mais. Então a gente usava muito a água desse córrego. E cada casa tinha um poço. Luz não tinha. Morando ali na minha vó, ou era lamparina ou era lampião. Depois quando chegou a luz, ainda não chegou o padrão automaticamente. Foi todo um processo. Eles faziam gambiarra, um rolo danado. Até que depois veio a legalização. Isso na década de 80. Quando foi criada a Associação dos moradores? Não, essa Associação era dos moradores da Vila Saraiva, São Roque, São Benedito e Portal do Gramado. Depois parece que houve um entendimento, que eles acharam comunidade nos beneficiávamos de várias situações dos órgãos públicos. E pra eles não chegavam. Mas aí eles desconsideraram a nossa história. Que isso é que faz a diferença e que muitas vezes a gente acaba sendo atendido primeiro. E aí eles nos tiraram da Associação. Então nos fomos convidados a sair. E o asfalto? O asfalto foi em 2001. Na última gestão do André na prefeitura. No mesmo período que saiu o asfalto, saiu a escola e saiu o salão. O posto de saúde São Benedito, ainda é dentro da comunidade? Ainda tá no mesmo espaço. Havia uma discussão pra tirar. Porque a casa é alugada. E a pessoa queria vender a casa e a prefeitura não tinha como comprar naquele momento. Mas parece que entraram em acordo e continua lá o posto de saúde. Ele é mais recente, não sei se uns quatro anos. É mais recente o posto. E o que falta aqui na comunidade em questão de urbanização? Falta uma praça. Falta um espaço de lazer. Eu vejo isso. Isso não aqui e necessita com urgência. E esse posto, ele funciona, mas ele também não atende do jeito que


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a gente precisa. Então ele precisa ser melhorado, ser ampliado. Eu vejo assim. Eu fui algumas vezes no posto. Mas algumas vezes que eu tô de férias, porque eu trabalho na escola. Aí a médica também tá de férias. Então, assim, nem sempre a minha agenda e a da médica é compatível. Como está a situação da comunidade no INCRA? O que eles passaram pra vocês? Então, foi feito o laudo antropológico. Eles já notificaram as famílias que não são descendentes da Tia Eva. Mas o processo de titulação de terras quilombolas é moroso. Nós achávamos que seria rápido. Mas furnas do Dionísio, Boa Sorte, levaram cerca de dez a quinze anos. Então o nosso é desde 2008. Eles precisam publicar no diário oficial, se ninguém se manifestar eles continuam. Então tem todo um trâmite burocrático que eles têm que respeitar. E precisa de orçamento. Às vezes não tem orçamento. Então é muito moroso. Mas já tem o levantamento de quantas pessoas moram aqui na comunidade? Sim, isso eles já fizeram. Vieram aqui na comunidade, casa por casa, fazer o cadastramento, verificar quem e descendente, quem não é descendente, o grau de parentesco. Isso já foi feito. As famílias que não são descendentes já foram notificadas. O laudo antropológico foi entregue dois, três meses atrás. Então essa parte já foi feita. O laudo é um livro que foi entregue pro INCRA, que fica com essa documentação. Não passaram os dados pra gente, porque como são questões legais, eles não podem ser abertos. É um processo. Você já sofreu preconceito? Ixi, e muitos. Mas hoje em dia eu aprendi a lidar mais. Mas vários, vários. Do que você tem mais orgulho na comunidade? Eu gosto principalmente da história da comunidade, como ela surgiu. Surgiu com uma ex-escrava, mulher, que em 1905 a mulher não era dona da sua vida. A mulher veio votar já recentemente. Então imagina-se como deveria ser essa mulher. À frente do seu tempo. Com três filhas, mãe solteira. Hoje em dia a gente vê os documentos, sem pai, sem mãe, sem identidade, sem nada. Conseguiu comprar essas terras e pensar: eu quero formar minha família, quero que minha família tenha um local pra morar e estejam unidos. Porque o escravizado, ele não poderia nem constituir família. Muitas vezes as mulheres tinham filho, mas elas não tinham marido, porque não era permitido isso. Não era permitido ter o marido, ter terra, ter casa, não era permitido ter nada. Então ela lutou pra isso. Saiu lá da


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terra dela, de Mineiros, viajou por longas datas. E veio pra cá e fez história. E tá fazendo até hoje. Essa mulher é uma guerreira.


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9 – ANEXOS Anexo 1 – Título de Cidadã Campo-grandense de Eva Maria de Jesus


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Anexo 2 – Árvore genealógica parcial da família de Tia Eva

SANTOS (2010: 309).


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Anexo3 – Divisão do Sítio de Tia Eva (Década de 1980)

SANTOS (2010: 312).


116

Nome dos propriet谩rios dos im贸veis (herdeiros de Tia Eva)

SANTOS (2010: 313).


117

Anexo 4 - Lotes Adquiridos por pessoas de fora da comunidade (1985 a 2007)

SANTOS (2010: 320).


118

Lotes adquiridos por pessoas de fora da comunidade

SANTOS (2010: 321).

Terras que restaram para os descendentes das filhas de Tia Eva

SANTOS (2010: 321).


119

Anexo 5 - Lotes dos descendentes de Tia Eva (2009)

SANTOS (2010: 327).


120

Relação dos proprietários de cada um dos lotes da comunidade (2009)


121

(SANTOS, 2010; 446)


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