Retratos da Comunidade São Benedito

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Priscila de Oliveira Ribeiro

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Retratos da Comunidade São Benedito


Professor Orientador Silvio da Costa Pereira Textos e fotos Priscila de Oliveira Ribeiro Projeto gráfico e diagramação Priscila de Oliveira Ribeiro Tratamento das fotografias Steffany Aparecida dos Santos Projeto Experimental elaborado como requisito parcial para obtenção do grau em bacharel em Comunicação Social, habilitação em Jornalismo, sob orientação do professor Msc Silvio da Costa Pereira Campo Grande – MS 2013 RIBEIRO, Priscila de Oliveira Retratos da Comunidade São Benedito/ 2013. Projeto Experimental (Graduação em Comunicação Social com habilitação em Jornalismo) – Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, 2013. Orientação: Prof Msc Silvio da Costa Pereira.


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Priscila de Oliveira Ribeiro



Sumário Agradecimentos

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Introdução

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A comunidade

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A Festa de São Benedito

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Fé e religião

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Identidade quilombola

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Viver em comunidade

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Urbanização

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Trabalho e educação

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Momentos de lazer

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Entrelaços

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Bibliografia

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Agradecimentos Muito obrigada a todos os moradores da Comunidade São Benedito, que me acolheram tão bem e tanto contribuíram para o trabalho, que não seria possível realizar sem a ajuda de vocês. Agradeço também ao meu orientador Silvio da Costa Pereira pela dedicação e paciência com a qual me ensinou e me ajudou a superar minhas dificuldades técnicas. O apoio da minha família também foi fundamental para a realização deste fotolivro. Obrigada por todo amor que me dedicam, que é recíproco, bem como pelo auxílio financeiro. Meu carinho, em especial para minha mãe Lidinalva Silva de Oliveira, meu pai José Alves Ribeiro, meus avós maternos Lindaura Silva de Oliveira e Cacildo Belchior de Oliveira e minha irmã Camila de Oliveira Ribeiro. Meus agradecimentos de coração ao meu namorado Vinícius Vaz de Moura Oliveira por tanto amor e companheirismo. E um abraço a meus amigos que tanto me incentivaram, especialmente à Alline Ribeiro de Gois e à Steffany Aparecida dos Santos, que tratou as fotografias.



Introdução O ensaio fotográfico “Retratos da Comunidade São Benedito” apresenta, por meio de fotos e texto, o cotidiano dos moradores dessa Comunidade Remanescente de Quilombo localizada em Campo Grande, Mato Grosso do Sul. Fundado em 1905 pela ex-escrava Eva Maria de Jesus, o núcleo familiar abriga os descendentes dela, conhecidos por realizar todos os anos a Festa de São Benedito. Em homenagem ao santo padroeiro foi construída no local uma igreja, tombada como patrimônio público estadual e municipal. Este fotolivro também é uma forma de contar e divulgar a história da comunidade e da celebração religiosa - que sofreu modificações com o passar do tempo - bem como de tentar compreender como após tantos anos eles ainda conseguem manter a família unida e repassar a tradição para as novas gerações.

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A comunidade Reconhecida como Remanescente de Quilombo pela Fundação Palmares, a Comunidade São Benedito está localizada em Campo Grande (MS). Trata-se de um núcleo familiar onde vivem os descendentes da ex-escrava Eva Maria de Jesus. Herdeiros da fé católica, os moradores organizam todo ano uma tradicional festa religiosa. No local há uma igreja, construída em homenagem ao santo padroeiro, que foi tombada como patrimônio público estadual e municipal em 2007. A fundadora da comunidade, Eva de Jesus, nasceu na cidade de Mineiros, interior de Goiás. O ano era 1848. Mulher, negra, escrava, passou boa parte da vida trabalhando na fazenda Ariranha, onde aprendeu a fazer doces. Ficou conhecida na região por ser benzedeira. Era procurada por negros e brancos, ricos e pobres. Assim conquistou espaço social e solidificou os laços com os outros escravos. Todos a chamavam de “tia”. Ainda no cativeiro, deu a luz às três filhas: Sebastiana, Joana e Lázara. Mesmo após a escravidão ser abolida pela Lei Áurea, em 1888, Tia Eva continuou trabalhando na fazenda, pois não tinha recursos suficientes para sair em busca de novas oportunidades, como fazia a maioria dos ex-escravos. Somente em 1904 migrou para o Mato Grosso, acompanhando um grupo de negros libertos. Com ela vieram as filhas e também o companheiro Adão.

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Como não havia fotografias da Tia Eva, o busto foi esculpido com base no rosto de uma das bisnetas, que segundo a família parecia com ela

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“Tia Eva veio devido à necessidade de um lugar para começar a vida. Ela teve a notícia, lá onde ela estava, de que aqui tinha terra. Várias comitivas já tinham vindo”, conta a tataraneta Lúcia da Silva Araújo, 50 anos. A viagem demorou alguns meses. “Não tinha outra condução a não ser o carro de boi e o cavalo. Foi assim que ela chegou aqui”, explica o bisneto Sérgio Antônio da Silva, conhecido como seu Michel, 78 anos. Devota de São Benedito, a ex-escrava trazia na mala a imagem do santo entalhada em madeira. No caminho, fez uma promessa. “Caso ficasse curada de uma ferida que tinha na perna, ela iria fazer uma festa pra homenageá-lo, agradecer pelo feito, e construir uma igreja”, conta Vânia Lúcia Baptista Duarte, 37 anos, tataraneta de Tia Eva. Ao cruzar a fronteira entre os Estados, os viajantes tiveram que se cadastrar em um posto de fiscalização. Sem sobrenome, Eva Maria, as filhas, e outras mulheres que não possuíam laços consanguíneos adotaram “de Jesus”. O grupo chegou a Santo Antônio de Campo Grande em 1905. Naquele tempo Campo Grande, que hoje é Capital, ainda era um vilarejo. Escolheram as terras de Olho D’Água, próximas ao córrego Segredo, para se instalar. O local já era habitado por ex-escravos da região, que se dedicavam às atividades rurais.

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Trazida de Goiás por Tia Eva, a imagem de São Benedito permanece guardada dentro da igrejinha


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Logo a matriarca ficou conhecida nas redondezas. “Ela se tornou uma grande liderança porque naquele tempo aqui não tinha padre. E ela então fazia o trabalho como se fosse um sacerdote. Quando morria alguém, vinha atrás da dela, que ela sabia rezar muito. E também não tinha maternidade. Então quando nascia e quando morria só dava Tia Eva”, conta seu Michel. Além de fazer as celebrações religiosas e realizar partos, ela continuou a produção de doces, que vendia no centro da vila. Foi assim, com muito trabalho, que a matriarca conseguiu comprar os terrenos onde morava com a família. As terras eram devolutas, pertenciam ao Estado. Eva Maria de Jesus pagou 85 mil réis, equivalentes a três sacos de 60 kg de farinha de mandioca, pelos cerca de oito hectares onde hoje se localiza a comunidade. Na nova propriedade e com a ferida na perna curada, Tia Eva cumpriu a promessa. Construiu a igrejinha, feita de pau a pique. Logo começaram as celebrações em homenagem a São Benedito. “Acredita-se que em 1908 ela iniciou essa festa”, fala Vânia Lúcia. Os festejos, realizados com o auxílio de doações, arrecadaram fundos para substituir a construção por uma igreja de alvenaria, que ficou pronta em 1919 e está na comunidade até hoje.

A Igreja de São Benedito é a segunda mais antiga de Campo Grande

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Os católicos da comunidade são devotos do protetor dos negros e dos cozinheiros, São Benedito


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A Festa de São Benedito A manifestação religiosa em homenagem ao santo acontece todos os anos na comunidade, no mês de maio. A data marca a libertação dos escravos e o dia de São Benedito. Missas, terços, procissão, apresentações culturais, torneio de futebol e almoço integram a programação. Para os descendentes, é a oportunidade de renovar a fé, manter viva a memória da matriarca e estreitar os laços familiares. A tradição continua graças a um pedido da líder à família. “Ela falou que enquanto tivesse um descendente vivo, queria que continuasse a festa”, conta o bisneto Otávio Gomes de Araújo, conhecido como seu Tuti, 78 anos. Atendendo o desejo, os moradores da Comunidade São Benedito continuaram a realizar o evento mesmo após a morte da matriarca, ocorrida em 11 de novembro de 1926. Nem sempre, porém, os familiares de Tia Eva ficaram responsáveis pela realização da festividade. Durante 15 anos a Missão Salesiana de Mato Grosso tomou para si a administração do evento. Por algum tempo, essa também era a função dos festeiros, que como explica a tataraneta Neuza Jerônima Rosa dos Santos, 63 anos, “são as pessoas que faziam a movimentação da festa”. Sem relações de parentesco com a matriarca, eram escolhidos por sorteio. Como não deu certo, os próprios descendentes voltaram a ser responsáveis pela organização.

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Dança apresentada em noite cultural relembra as raízes africanas


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Neste mais de um século, a festividade passou por várias outras mudanças. “Antigamente a gente fazia festa embaixo dos pés de manga. E o pessoal dançava no chão bruto a noite toda”, lembra dona Neuza. Hoje os bailes são realizados em um salão, ao lado da igreja, que dispõe de toda a infraestrutura necessária. O que tornou o evento mais caro. Por isso em algumas atividades o ingresso é cobrado. Os músicos também não são como antes. “Tinha muitas pessoas da família que tocavam. Às vezes também tinha gente de fora que vinha pra tocar”, fala dona Neuza. Agora os artistas são contratados e o cachê é pago por meio de parcerias com a Prefeitura Municipal e o Governo do Estado. “Antes dançava com sanfona pé-de-bode. Hoje para o público ou até mesmo a comunidade vir tem que ser um cantor de nome”, explica Lúcia Araújo. As noites de baile acontecem ao som do sertanejo e, mais recentemente, do pagode. A comunidade conta com dois grupos de pagodeiros profissionais, que às vezes também são contratados para apresentações em dias de festa. Preferência musical dos jovens, o ritmo é visto com ressalva pelos mais antigos, que optam por manter a tradição. As atrações também se modificaram. “Tinha os grupos de Catira, a Dança da Fita, o pessoal de Furnas que dançava Engenho de Maromba, várias coisas diferentes”. Em 2013 a noite cultural teve dois grupos de Capoeira, que contaram com a participação de alguns jovens da comunidade, além de Dança Afro e Street Dance, apresentadas por convidados de outras regiões.

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O churrasco conta com a ajuda de fieis que doam a carne, o arroz e a salada. Parte desse apoio é oferecida como forma de pagar uma promessa a São Benedito. Os donativos, aliás, sempre estiveram presentes no evento, embora tenham diminuído muito. Nos tempos de Tia Eva tudo que era servido na festa vinha de doações. Por isso nada era cobrado. Meses antes da celebração, a matriarca e alguns parentes visitavam as fazendas mais próximas em busca de contribuições. Cada um dava o que podia: uma galinha, um novilho, uma leitoa. Eles levavam um mastro com a bandeira de São Benedito, violão, sanfona, e cantavam algumas músicas. As mulheres se reuniam para preparar a comida, servida nas tradicionais barraquinhas. Até hoje elas ainda permanecem na festa, porém, os quitutes agora são vendidos. Os comerciantes são os próprios moradores da vila ou então parentes que mudaram para outros locais e voltam para a celebração. Outra mudança é o número de participantes. Cada vez mais pessoas de outras vilas vêm confraternizar. Por outro lado, a participação dos descendentes está diminuindo. Um dos motivos relatados pela comunidade é o número crescente de evangélicos, como seu Tuti. “Já ajudei na organização, mas não participo mais porque tenho dificuldade pra caminhar e porque a bíblia proíbe”, explica.

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Ginga e ritmo da Capoeira, trazida pelos escravos, embalam a comunidade durante apresentação na festa

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Nas noites de baile o ingresso é cobrado para custear as despesas do salão

O pagode é o som preferido dos jovens, que já montaram dois grupos musicais na comunidade

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Assim como ele, muitos parentes também não comparecem às celebrações religiosas, que incluem a procissão, uma forma de demarcar o território católico. “É uma coisa que enfraqueceu bastante a promessa da minha vó, da família toda participar”, fala Neuza. Para ela a solução é realizar um culto ecumênico, do qual todos participem. A parte religiosa também não atrai muito os jovens da comunidade. Fato que aflige Lúcia Araújo, presidente da Associação Beneficente dos Descendentes de Eva Maria de Jesus. “A gente já está preocupado com quem vai manter a festa. Vamos tentar dar uma responsabilidade maior pra eles, mostrar que não podem parar. Porque se deixar do jeito que está, eu não sei até que ano a gente vai levar isso”, diz ela. Os mais novos preferem as atrações culturais. E têm gostos musicais específicos. Muitos não se animam com os tradicionais bailes sertanejos. Cleiton Alves, 21 anos, da quinta geração de descendentes de Tia Eva, afirma que “o jovem não participa mais porque quase não tem pagode. É mais baile. Aí o pessoal fica do lado de fora curtindo funk no carro”. Ritmo musical que não agrada muito os mais velhos, devido às letras incompatíveis com teor religioso da festa.

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Antes dos shows musicais, fiéis rezam o terço da novena para São Benedito


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Os parentes que moram em outras comunidades também não aparecem tanto hoje em dia. “Quando eu era criança, chegava a época da festa vinha um monte de gente da família. A casa da minha vó ficava cheia de gente”, lembra dona Neuza. “Hoje você vê que não tem mais isso. O pessoal vem pra dançar. Mais as pessoas de fora. A família mesmo já não se junta mais como juntava”, ressalta. Embora a celebração tenha um caráter familiar, sempre foi aberta a pessoas de outras regiões. Algumas acabam inclusive ficando na comunidade, como dona Luzia de Arruda Silva, 71 anos. “Minha mãe foi festeira aqui, ela trazia a gente pra dançar nos bailes. Aí eu conheci o Michel e começamos a namorar. Depois casamos eu vim morar aqui. Temos 13 filhos, 23 netos, e cinco bisnetos”, conta ela, que casou há mais de 50 anos. Pessoas de outros bairros também interagem com os descendentes durante o tradicional Torneio de Futebol Tia Eva, realizado nos dias da festa. Além de times formados pelos moradores, o campeonato conta também com a participação maciça de equipes de outros locais. E recebe patrocinadores da comunidade e de fora. Este clima de confraternização também está presente no último dia da festa. O almoço é o momento onde todos se reúnem. Os descendentes que mudaram da comunidade voltam para rever a família. É oferecido um churrasco a todos os convidados, descendentes ou não.

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As missa nos dias de festa acontecem no salão paroquial, que comporta mais pessoas


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Almoço reúne famílias dos descendentes e visitantes interessados em conhecer a comunidade

Depois que o cemitério da Vila foi considerado ilegal e fechado, o túmulo de Tia Eva foi transferido para dentro da igreja


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Fé e religião Da matriarca, os familiares herdaram o hábito de benzer. De geração em geração, a prática foi passada de Tia Eva até a tataraneta dona Neuza, que afirma: “a benzição é um dom que Deus dá pra gente”. Além dela, apenas José Antorildo Baptista de Arruda, bisneto, ainda benze as pessoas da família. No entanto, ambos só benzem hoje em caso de necessidade. Também herança de Tia Eva, a fé católica dos descendentes é reforçada pela Festa de São Benedito. Contrariando o estereótipo de que um núcleo familiar de afrodescendentes esteja ligado apenas a religiões de origem africana. No entanto, não há padre na igrejinha. Apenas o terço é realizado por fiéis toda sexta-feira à noite. Missa, só nos dias da festa ou na igreja Nossa Senhora do Rosário e São Benedito, da Missão Salesiana de Mato Grosso. Proprietária de vários terrenos dentro e fora do sítio de Tia Eva, a instituição católica sempre exerceu forte influência no local. Na época em que ficou responsável pela organização da Festa de São Benedito, de 1960 a 1975, a Missão Salesiana também queria administrar ininterruptamente a igrejinha.

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Religião católica é predominante na comunidade

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No entanto, os moradores se recusaram. “Os padres queriam que a gente doasse a igreja pra eles. Eu reuni todo mundo e o pessoal não concordou”, conta seu Michel, que na época era presidente da Associação dos Descendentes. A diocese então construiu, em 1967, ao lado das terras de Tia Eva, a igreja para a qual foram transferidas as celebrações religiosas. E para onde os católicos migraram. Hoje ela é frequentada não apenas pelas pessoas da comunidade, como também por fiéis de outros bairros.

Igreja que os descendentes frequentam foi construída na vila após desentendimentos com a Missão Salesiana

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Embora a maioria dos descendentes seja adepta do catolicismo, o número de evangélicos cresceu consideravelmente no local. Alguns atribuem essa expansão às desavenças. Ainda neste período de disputa, em 1975, faleceu Catarina Rosa da Cruz, neta de Tia Eva e mãe de seu Michel. “Minha mãe morreu e o padre não quis benzer o corpo. Minhas filhas, tem algumas que são evangélicas por causa disso”, conclui ele, que é católico. Depois de um tempo, porém, o padre pediu desculpas e a situação foi amenizada. Nem todos, porém, tornaram-se evangélicos pelos mesmos motivos. “Eu vejo que a religião não é tradição. É onde você se sente bem. Muitas destas pessoas, que são evangélicas hoje, não conviveram neste período da divisão”, fala Vânia Lúcia. Há também, em menor proporção, adeptos do espiritismo, do candomblé e da umbanda. E se várias religiões convivem na comunidade, é porque embora haja divergências, a fé e o respeito prevalecem entre os descendentes. Seu Michel afirma que “o que vai nos aproximar de Deus é a obra que nós fazemos”. Dona Neuza também entende que “Deus é um só, não existe Deus evangélico, Deus católico,

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Toda sexta-feira à noite são rezados terços na Igreja São Benedito


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Otávio Gomes de Araújo é um dos muitos descendentes que se tornaram evangélicos e afirmam que religião é escolha pessoal e apenas festa é tradição

Igreja evangélica construída na comunidade. Embora frequentada pelos moradores, é administrada por pessoas de outros bairros

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Identidade quilombola Os descendentes de Eva Maria de Jesus herdaram o legado deixado por ela. Fazem parte de uma família numerosa, que mora na Comunidade São Benedito, continuam a tradição da festa em homenagem ao santo padroeiro e assumem a identidade de remanescentes de quilombo. No entanto, esta nem sempre é tarefa fácil. Principalmente em um país onde a cor da pele ainda é motivo de discriminação. “Todos nós aqui já sofremos preconceito. Na primeira vez eu fiquei bem mal, mas passa. Só que geralmente fica uma mágoa na gente, uma coisa estranha, que eu não sei explicar”, fala Lúcia Araújo. Segundo ela, muitos jovens da comunidade já foram procurar emprego e, mesmo com bons currículos, não conseguiram as vagas. Sobre situações como essa, dona Neuza afirma: “se eu perceber que estou sendo discriminada, eu não vou abaixar a cabeça, ficar com vergonha. Eu ando de cabeça erguida. Eu vivo direito, graças a Deus, sou honesta, sou trabalhadeira, tenho força de vontade. Eu tenho dignidade”.

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Dona Neuza Jerônima Rosa dos Santos, 63 anos. Tataraneta de Tia Eva


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Eurides Antônio da Silva, apelidado de Bolinho, 50 anos. Filho de seu Michel e tataraneto de Tia Eva


Retratos da Comunidade São Benedito Sérgio Antônio da Silva, conhecido como seu Michel, 78 anos. Bisneto de Eva Maria de Jesus

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Valorizar a si mesmo e à própria história é um sentimento comum entre os descendentes. “Eu gosto principalmente de como a comunidade surgiu. Com uma ex-escrava, mulher. Em 1905 a mulher não era dona da sua vida. Então imagina como deveria ser Tia Eva. À frente do seu tempo”, fala Vânia Lúcia. “Tenho orgulho de ter essa igreja, que representa a comunidade desde quando começou Campo Grande. Ela que tá sustentando a documentação disso aqui”, diz seu Tuti. E este sentimento é passado para as gerações atuais. “Quem é descendente tem que se orgulhar e aprender também essa história tão linda, tão maravilhosa. Para que ela não se perca. Eu procuro mostrar para os meus filhos a importância da Tia Eva. E o que eles representam nesse contexto todo”, conta o tataraneto Eurides da Silva, apelidado de Bolinho, 50 anos. Um marco para a preservação da identidade local foi o reconhecimento como Comunidade Remanescente de Quilombo, pela Fundação Palmares, em 2008. Título dado a “grupos étnico-raciais com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida”, de acordo com o Decreto 4887/2003.

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Gabriel Santana dos Santos, 13 anos, da quinta geração de descendentes

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Lúcia da Silva Araújo, 50 anos. Filha de Otávio Gomes de Araújo, seu Tuti. Tataraneta de Tia Eva.


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Vânia Lúcia Baptista Duarte, 37 anos. Tataraneta de Eva Maria de Jesus

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Viver em comunidade Na Comunidade Remanescente de Quilombo São Benedito, morar em uma vila com praticamente toda a família tem suas particularidades. “Eu verifico que o que tem de diferente é essa coletividade. Porque por sermos parente nós temos uma proximidade muito grande uns com os outros. E morando aqui, tem certas responsabilidades que acabam sendo divididas ou a gente assume pelo grau de parentesco”, diz Vânia Lúcia. Pelos vizinhos serem a própria família, a segurança local é maior. Dona Luzia conta que “em muito bairro por aí o pessoal reclama da violência. E aqui graças a Deus não tem nada disso. A roupa posa no varal e nunca sumiu, nunca houve roubo. Acho que é porque a maioria é parente e ninguém mexe”. No local que define como tranquilo, a esposa de seu Michel criou os dez filhos, dos quais seis hoje moram em casas vizinhas à dela. “Mora todo mundo perto. Chegou sábado e domingo já fica aquele piseiro aqui de criançada. Mas sabe que dia de semana eu sinto falta. Criança dá uma alegria na casa”, fala dona Luzia. A vida comunitária é um privilégio para os descendentes de Tia Eva. “É uma benção de Deus quem consegue ainda ter a família unida. Por ter sido implantada por alguém que veio, construiu, acho que nunca vai perder o vínculo da comunidade e das famílias. Há algumas que se desentendem, se separam, mas a maioria consegue se manter”, conclui dona Neuza.

Os netos de dona Luzia e seu Michel moram perto, brincam juntos e aprendem desde cedo a vida comunitária

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Os conflitos podem ser gerados pela convivência diária, no entanto, são amenizados pelos laços consanguíneos. “A gente briga, fala as coisas, porque é tudo parente. A gente pode falar né. Mas se for preciso dar a vida por eles, a gente dá”, desabafa seu Tuti. Além destas relações de parentesco entre os moradores, os descendentes também possuem laços consanguíneos e de compadrio com outras comunidades. Entre elas está a Chácara Buriti, localizada a 31 quilômetros de Campo Grande. Ela foi formada pelos sucessores de Sebastiana Maria de Jesus, filha de Tia Eva. Sebastiana e o marido, Jerônimo da Silva, foram morar e trabalhar na fazenda “Buriti Escuro”. Lá tiveram nove filhos, entre eles João Antônio da Silva. Conhecido como João Vida, ele se casou com Maria Theodolina de Jesus e os dois compraram as terras às margens do Córrego Buriti, onde está localizada esta comunidade.

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Os filhos de seu Michel e dona Luzia moram nas casas ao lado. Nem o muro separa a família


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Outra comunidade que possui laços de parentesco com a São Benedito é Furnas do Dionísio, fundada por Dionísio Antônio Martins, ex-escravo que veio de Goiás em comitiva, junto com Eva Maria de Jesus. Ele morou na Comunidade São Benedito até conquistar as próprias terras, no município de Jaraguari (MS). Quando estava formando a nova comunidade, Dionísio convidou a filha de Tia Eva, Lázara Maria de Jesus e o esposo dela, Luis José da Silva, para acompanhá-lo. O casal aceitou e lá criou os filhos, que cresceram, casaram com o pessoal de Furnas e constituíram família. Muitos destes descendentes moram hoje na Comunidade São Benedito, nas terras que herdaram. A Comunidade Furnas da Boa Sorte, que fica no município de Corguinho (MS), também possui descendentes de Eva Maria de Jesus. Isto porque a formação dela é composta por pessoas vindas de Furnas do Dionísio. Há outros descendentes de Tia Eva fora da Comunidade São Benedito, que mudaram para outros bairros ou até mesmo outras cidades, para trabalhar ou porque se casaram. Também há pessoas que moram na comunidade mas não tem relações de descendência com a família. Elas integraram-se ao local por meio de casamentos ou pela compra de lotes. Para administrar essas e outras questões que interferem na vida social dos moradores, foi criada em 4 de julho de 1984 a Associação Beneficente dos Descendentes de Eva Maria de Jesus. Ela representa legalmente os familiares que moram dentro e fora da comunidade.

Os parentes de Furnas do Dionísio animam a família com moda de viola durante visita à Comunidade São Benedito

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O primeiro presidente foi seu Michel. “Eu coloquei Associação dos Descendentes porque eu pensei assim, se colocar uma pessoa que não é descendente pode mudar essa história da Tia Eva, essa promessa que ela fez”, conta ele. A promessa à qual ele se refere é a da Festa de São Benedito, que a Associação ficou responsável por realizar, contando com a ajuda dos moradores. Desde 1996, um novo grupo assumiu o trabalho na Associação. A presidente Lúcia Araújo afirma que o papel da entidade é melhorar a infraestrutura do local, trazer cursos de qualificação para os moradores, oferecendo novas oportunidades, e também manter a união da família. Para isto a diretoria não recebe salário e tudo funciona por meio de parcerias e trabalho voluntário, como explica a vice-presidente, Vânia Lúcia.

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A proximidade das casas mantém as famílias dos descendentes unidas


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Urbanização Inicialmente construída em área rural, a comunidade urbanizou-se juntamente com o município de Campo Grande. Quando Tia Eva chegou, a cidade era ainda um vilarejo no então Mato Grosso, que foi rota de tropas imperiais durante a Guerra do Paraguai. Hoje a Vila São Benedito está inserida no Jardim Seminário, e dentro de uma das capitais do país. As transformações ocorridas no local mudaram o modo de vida dos moradores. “Quando eu era criança, a gente tomava banho no córrego se não tinha água no poço. Porque tem períodos que seca a água. As mulheres também lavavam roupa lá”, lembra Vânia Lúcia. Ela também conta que não tinha energia elétrica na comunidade. “Eu morava ali na minha vó, e ou era lamparina ou era lampião”, diz. Ainda de acordo com Vânia, tanto a água encanada como a eletricidade chegaram à vila na década de 80, a partir da luta da Associação Beneficente dos Descendentes de Eva Maria de Jesus, na época coordenada por seu Michel, e também da Associação de Moradores da Vila São Benedito, São Roque, Saraiva e Portal do Gramado, cujo presidente era seu Tuti. Deste segundo grupo a comunidade não participa mais.

Área rural ao redor da comunidade deu lugar a bairros da Capital

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Seu Michel afirma que “a infraestrutura aqui graças a Deus melhorou. Tinha muita pessoa aqui com casinha de tábua que você olhava dava do outro lado, essas casas podres mesmo”. No entanto, mesmo com as benfeitorias, ainda há reivindicações dos moradores, como a rede de esgoto, que ainda não foi implantada no local. Algumas melhorias são recentes, como o Posto de Saúde São Benedito, construído nas redondezas do bairro. Outra é o asfalto, que hoje facilita o acesso das linhas de ônibus à região. Em 2000, foi inaugurada na vila a Escola Estadual Antônio Delfino Pereira e também o Centro de Educação Infantil Eva Maria de Jesus. Embora não atendam apenas ao pessoal do bairro, grande parte dos descendentes, que antes frequentava colégios de bairros vizinhos, estuda hoje na comunidade. O terreno da escola foi comprado do bisneto de Tia Eva, Otacílio Antônio dos Santos, e doado à prefeitura por Irany Pereira Caovilla. Antônio Delfino era o nome do pai dela. Seu Michel lembra que “ela estava doente e viu uma entrevista minha na televisão falando de milagres da Tia Eva. Aí fez um voto de que se ficasse boa ia comprar um lote e dar pra construir um colégio aqui”.

A maioria das casas foi reconstruída com alvenaria, assim como a igreja

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Além deste, vários outros terrenos foram vendidos. Entre os motivos estão os casamentos com pessoas de fora do núcleo familiar, a falta de trabalho, a migração para trabalhar em fazendas, a falta de espaço no lote para construção de novas casas para os filhos casados e o alto valor do IPTU. Assim, pessoas que não são descendentes mudaram-se para a comunidade. O imposto é, aliás, um dos maiores problemas dos moradores hoje. “Tem muita gente que está atrasado com o IPTU e não tem condições de regularizar isso. Tem gente aí devendo R$ 50 mil de IPTU. Vai pagar como?”, questiona seu Michel. A esperança de muitas pessoas para conseguir quitar as dívidas é a possível isenção de imposto para territórios quilombolas. Após a comunidade ser reconhecida como Remanescente de Quilombo, em 2008, foi dada a entrada no processo de demarcação das terras, feito pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA).

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O asfalto chegou em 2001. Na época, as crianças estavam acostumadas a brincar na rua e muitas sofreram acidentes


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O direito à demarcação de territórios quilombolas é estabelecido pelo artigo 68 da Constituição Brasileira: “Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos”. Segundo o técnico agrícola do INCRA, Geraldo Pereira, após a demarcação do território quilombola será emitido um título de propriedade de toda a área da comunidade, que ficará em nome da Associação dos Descendentes. “Depois é ela quem escolhe o que vai fazer com as terras, e como vai dividi-las. O trabalho do INCRA é apenas fazer a demarcação e entregar o documento”, explica. Quem não for da família tem que devolver as terras e em contrapartida receberá uma espécie de indenização do governo. No entanto, Geraldo afirma ainda que todos têm direito à defesa. “Às vezes a pessoa está morando ali porque comprou o terreno de boa fé, uns 20 anos atrás. Neste tempo não tinha esse negócio de quilombola. Podia comprar. Assim como quem vendeu também nem imaginava o que está acontecendo hoje”, diz ele.

Reivindicação antiga dos moradores, o posto de saúde começou a funcionar em dezembro de 2004

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Por isso, em casos especiais, o proprietário do lote pode entrar com recurso e pedir para ficar, mesmo não pertencendo à família. Embora seja dif ícil ele conseguir parecer favorável, a decisão cabe à Justiça. E alguns terrenos, como o da escola, por exemplo, não podem ser desapropriados. A área total reconhecida como quilombola não se limita às dimensões da comunidade atual. “É a porção de terra que eles usavam para subsistência. Porque não é só ali onde você mora. Você também precisa de um lugar pra plantar, extrair os recursos naturais”, explica Geraldo Pereira.

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Linhas de ônibus em frente à escola da comunidade facilitam o acesso dos moradores ao centro e a outros bairros


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Após a demarcação, no entanto, Geraldo não dá garantias de que haverá a isenção do IPTU ou a anistia das dívidas de impostos por parte do poder público. “Cada caso é um caso. Teve comunidade que depois de conseguir os títulos entrou na Justiça, teve apoio de vereador, e conseguiu ficar isenta de pagar o imposto. Vai da prefeitura fazer isso”, explica ele. A demarcação ainda está em uma das fases iniciais. “O processo de titulação de terras quilombolas é moroso. Nós achávamos que seria rápido. Mas Furnas do Dionísio e Boa Sorte levaram cerca de dez a quinze anos”, conta Vânia Lúcia.

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A creche e a escola oferecem desde a educação infantil até o ensino fundamental


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Seu Michel exibe com orgulho a carteira de motorista da época em que trabalhou como carroceiro


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Trabalho e educação Antigamente, como Campo Grande ainda não estava urbanizada, o trabalho desenvolvido pelos moradores da Comunidade São Benedito era rural. “Uns trabalhavam na colheita de café, em canaviais, outros trabalhavam nas lavouras das fazendas. Era lavrador mesmo, no duro. Não tinha nem estudo nenhum”, conta seu Tuti. Desde muito jovem o pessoal da comunidade já iniciava a labuta. “Eu comecei a trabalhar com 10 anos de idade. Nós saímos daqui pra tocar carvão lá na furna do Inferninho. Os mais velhos iam queimar carvão e eu e meu irmão limpávamos o quintal e plantávamos arroz e feijão pra gente comer”, lembra seu Michel. À medida que o município foi adquirindo características urbanas, as profissões se adaptaram. Os homens passaram a trabalhar na construção civil. “Fui mestre de obras, ajudei a construir o Colégio Dom Bosco, ajudei a fazer o seminário”, conta seu Tuti, que também já trabalhou como motorista.

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Seu Michel já teve emprego na construção civil, trabalhando como servente de pedreiro. Ele também trabalhou como carroceiro na praça Ary Coelho, no fim da década de 50. Até que decidiu mudar de ramo. “Montei uma fábrica de doces. Aqui em casa mesmo. Foram 35 anos, até aposentar. Eu saía de bicicleta pra entregar as encomendas”, fala ele, que na mesma época também criava porcos e vendia-os na feira. As mulheres eram empregadas em casas de família. “Toda vida eu trabalhei como doméstica. Quando fiquei viúva, fui trabalhar de faxina porque dava mais dinheiro”, fala dona Neuza, que também já desempenhou várias outras atividades: “vendi roupa, vendi calçado, trabalhei trançando cabelo, fui manicure, costureira”. Ela também fez parte de projetos universitários, chegando a apresentar um programa de rádio na comunidade e participar de um documentário sobre a Comunidade São Benedito. Além disso, ela fez várias oficinas na Associação dos Descendentes. “Eu fiz curso de artesanato, de argila, bordado, de cozinha”. Hoje dona Neuza diz ser artesã.

Dona Neuza, assim como outras descendentes, aprendeu uma nova profissão com os cursos oferecidos para a comunidade

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Dona Luzia fez cursos na Associação e se apaixonou pela pintura. Até confeccionou panos de prato para vender. Ela, que também trabalhava em casa de família, reclama que não teve oportunidade de estudar tanto quanto gostaria. “Não tive tempo de fazer essas coisas. Com nove anos de idade eu já trabalhava”, diz. Dona Neuza também compartilha a mesma situação. No entanto, os filhos puderam ter mais oportunidades. “Meus filhos, quase todos são formados, estudados”, fala dona Luzia. Viúva, dona Neuza criou sozinha as três filhas e afirma: “o maior prazer que eu tenho hoje é todas as três estarem formadas”. Vários descendentes tiveram acesso ao ensino superior por meio do Projeto Negra Eva. Ele foi inscrito pela filha de dona Neuza, Sandra Martins dos Santos, e por Vânia Lúcia em um edital da Fundação Ford. Como foi selecionado, os participantes ganharam recurso financeiro para pagar a universidade particular. Esta parceria aconteceu entre os anos de 2002 e 2004. Depois os alunos continuaram a se manter com bolsas das próprias instituições.

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Costureira, dona Neuzita Maria da Cruz, 61 anos, irmã de dona Neuza, também integra o grupo dos autônomos


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De acordo com entrevista que Sandra concedeu a Carlos Alexandre dos Santos, na tese “Fiéis descendentes”, 27 pessoas foram contempladas com bolsas universitárias e 350 com o cursinho pré-vestibular aberto na comunidade. Quando parou de receber verba do projeto, o cursinho foi mantido por algum tempo com investimentos do Governo do Estado. Segundo Vânia, ainda são poucos os descendentes que conseguiram concluir o ensino superior. No entanto, com a construção do colégio na comunidade, muitos adultos se sentiram motivados a voltar a estudar e terminaram o ensino médio na Escola Estadual Antônio Delfino Pereira, que ofereceu curso supletivo nos anos de 2003 a 2012.

Vânia Lúcia Baptista é formada em História pela Universidade Católica Dom Bosco

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Momentos de lazer Para que os moradores da comunidade tenham um espaço para se divertir e praticar esporte, uma das principais reivindicações é por uma praça. “Antigamente eles não pensaram nisso. De deixar um lote pra fazer uma área de lazer. Isso eu sinto que os jovens, todo mundo sente falta”, fala a presidente da Associação dos Descendentes, Lúcia Araújo. “Necessitamos, em especial, de um campo de futebol”, afirma Bolinho. Ele é quem organiza os campeonatos dos quais a comunidade participa. Os jogos acontecem aos domingos e os descendentes de Tia Eva sempre marcam presença em campo e na torcida. Bolinho também é o responsável por organizar o Torneio de Futebol Tia Eva, que acontece durante a Festa de São Benedito. Em 2003, a taça ficou com um time da comunidade. “Hoje eu intitulo esse campeonato como o torneio histórico mais antigo de Campo Grande. Começou na década de 60, na época do seu Tuti”, diz orgulhoso.

Time “Tia Eva“ se concentra para oraçào antes do jogo

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Os jogos começaram a ser realizados dentro da comunidade, que dispunha de campo de futebol. “Arrancamos o mato com a mão e criei um campo. Já teve vários campos. O primeiro foi em frente àquela igreja grande que tem lá. Já fizemos ali em frente às freiras e também onde hoje é o bolixinho, em frente à casa do Sérgio”, conta Seu Tuti. O bar ao qual seu Tuti se refere é o ponto de encontro dos moradores. Assim como o salão social da comunidade, onde são realizados eventos, como shows de pagode, que reúnem principalmente os jovens. Aos fins de semana, principalmente, as pessoas também costumam ficar em frente as casas, tomando tereré e conversando com os parentes. As crianças se divertem na rua, brincando de bety (jogo com tacos e bola), vôlei, com passeios de bicicleta e empinando pipa. As confraternizações sempre reúnem um grande número de familiares, principalmente os almoços e as conversas no fim da tarde. Tudo regado a muita música, como conta dona Luzia: “domingo fica cheio, aqui em casa, lá no barzinho. Ficam tocando violão, tocando sanfona. O pessoal é muito divertido aqui”.

As partidas são disputadas no campo ‘Poeirinha’, na avenida Tamandaré

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O bar é movimentado aos fins de semana, com direito a sinuca, cerveja, conversa e descontração

No fim do dia, a brincadeira das crianças é soltar pipa na comunidade

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Entrelaços A Comunidade São Benedito tem muitas características que a tornam singular. Começando pelos moradores. Habituados a receber jornalistas e curiosos, eles são acolhedores e têm prazer em compartilhar suas histórias. Essa é uma marca do local que, há um século, estava isolado da vila central, mas foi aos poucos abraçado pela urbanização. Hoje, a própria Festa de São Benedito está inserida no calendário de eventos da cidade. Dentro do ritmo de uma sociedade que se reinventa e incorpora novos costumes e concepções, também a comunidade foi se adaptando. Se antes a fé católica - e não o sincretismo afro-brasileiro que muitos esperam ver em comunidades de origem negra - dominava o local, agora o espectro religioso é dividido com a crença evangélica. Esta e outras mudanças, no entanto, não alteraram boa parte dos costumes da pacata vila, que ainda mantém a proximidade entre os vizinhos e o clima de segurança como uma de suas principais marcas. Pois se novos laços familiares e de amizade são criados, a identidade de Remanescente de Quilombo é reafirmada a cada dia. Passado e presente, mudança e tradição, andando juntos em uma comunidade que têm orgulho da própria identidade, e luta para preservar viva a memória da matriarca e do santo protetor que lhes deram origem.

Os dias na comunidade são tranquilos e em clima familiar

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Bibliografia CERUTTI, Aline Sesti; LEAL, Amanda; VIRUEZ, Nelly Stéfani Cano. Descendentes de uma promessa: a festa de São Benedito na Comunidade Tia Eva. Campo Grande: Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, 2010. 8p. CHIAD, M. O uso do vídeo por grupos populares: a influência de um instrumento de poder em uma comunidade. 1993. 25 f. Trabalho de Conclusão de Curso (Bacharelado em Comunicação Social com habilitação em Jornalismo) – Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Campo Grande, 1993. [Orientador: Prof. Edson Silva]. EVA. Jornal Comunitário da Vila São Benedito. UFMS: Campo Grande, julho e novembro de 2001. HEDGECOE, John. O novo manual de fotografia. São Paulo, SP: Senac São Paulo, 2006. 416 p. MATTOSO, Katia M. de Queirós. Ser escravo no Brasil. 3. ed. São Paulo: Brasiliense, 1990-2003. 267 p. SANTOS, C. Fiéis descendentes: redes-irmandades na pós-abolição entre as comunidades negras rurais sul-mato-grossenses. 2010. 477 f. Tese (Doutorado em Antropologia Social) – Instituto de Ciências Sociais, Universidade de Brasília, Brasília. 2010. VALENTE, Ana Lúcia E F. Ser negro no Brasil hoje. São Paulo: Moderna, 1994. 64p. (Coleção polêmica). WILLIAMS, Robin; [tradução Laura Karin Gillon]. Design para quem não é designer: noções básicas de planejamento visual. 2. Ed. São Paulo: Callis, 2005. 188p.

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Esta reportagem fotográfica retrata a Comunidade São Benedito, de Campo Grande, Mato Grosso do Sul. O núcleo familiar foi fundado em 1905 por Eva Maria de Jesus. Com muito trabalho, a ex-escrava comprou as terras nas quais hoje vivem diversas gerações de seus descendentes. A comunidade foi reconhecida com Remanescente de Quilombo em 2008, pela Fundação Palmares, título é concedido a grupos étnico-raciais com ancestralidade negra e história própria. Devota de São Benedito, Tia Eva construiu uma igreja em homenagem a ele, a qual foi tombada em 1997 como patrimônio público do município e do Estado. Nela, todos os anos é realizada a tradicional Festa de São Benedito.


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