Revista Dossiê SuperInteressante "OS SEGREDOS DA TURMA DA MÔNICA - Como a linha de gibis mais famosa

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OS SEGREDOS DA TURMA DA MÔNICA

Como a linha de gibis mais famosa do Brasil consegue abordar cidadania, respeito e diversidade com tanto sucesso Escute a revista


CARTA

A

A Turma da Mônica já faz parte da infância dos brasileirinhos há mais de 60 anos, são quatro gerações que tiveram contato com o universo de Mauricio de Sousa durante o processo de alfabetização e construção da cidadania. Nesta fase a criança estabelece a própria relação com o mundo e faz dos personagens um modelo de comportamento social. Fato que consolida o trabalho da Mauricio de Sousa Produções (MSP) ao trazer para as histórias figuras e situações relacionáveis que apresentam - com muito humor e leveza - valores morais e representações de diversos grupos da sociedade, especialmente minorias, criando uma conexão especial entre a obra e os leitores. Este contexto, além de refletir a infância de milhares de brasileiros, conversa diretamente com a meninice dos jornalistas que trabalharam nesta revista. Ao relembrar nossa infância, nos deparamos com a Turma da Mônica marcando presença desde as primeiras atividades escolares, quando os gibis educativos

da turminha eram utilizados em sala de aula na jornada de aprender a ler e escrever, até o início da adolescência, ocasião que houve o lançamento da Turma da Mônica Jovem que acompanhava a evolução de algumas discussões sociais, como o bullying e a gordofobia. Não há como negarmos a influência que os personagens de Mauricio de Sousa exerceram sobre a instrução e formação de determinados princípios destes graduandos em Jornalismo, que sempre prezam pelo respeito ao próximo e valorizam a diversidade, abraçando os principais ensinamentos das revistinhas até hoje. Tais características das narrativas da Turma da Mônica que nos estimulam positivamente, ganharam mais força à medida que novos debates surgiram na sociedade. A Turma vem discutindo pautas como feminismo, racismo, capacitismo, machismo, xenofobia, entre outras formas de preconceitos, com o intuito de gerar mudanças para as próximas gerações. Nas páginas a seguir, contamos um pouco sobre os impactos deste posicionamento da Mauricio Produções e quais os benefícios dessa abordagem em histórias infantis. Boa leitura!

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6 CIDADANIA, RESPEITO E DIVERSIDADE: OS SEGREDOS DA TURMA DA MÔNICA

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A NATURALIZAÇÃO DAS DIFERENÇAS TURMA DA MÔNICA EM:

TURMA DA MÔNICA EM:

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MÔNICA E MILENA: SÍMBOLOS DE PROTAGONISMO FEMININO

TURMA DA MÔNICA EM:

ECOETÉ, CURUMIM TURMA DA MÔNICA EM:

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VALORIZAÇÃO DA REPRESENTATIVIDADE NEGRA

A MULHER QUE NÃO SE CALA TURMA DA MÔNICA EM:

TURMA DA MÔNICA EM: 62

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ÊTA VIDA BOA!! TURMA DA MÔNICA EM: ENTREVISTA MÔNICA SOUSA: 14

AFINAL, QUAL É O FUTURO DA TURMA DA MÔNICA LINHA DO TEMPO: 66

TURMA DA MÔNICA EM:


TURMA DA MÔNICA EM:

Cidadania, respeito e diversidade: os segredos da Turma da Mônica O universo fictício mais famoso do Brasil começou a partir de uma tirinha semanal e hoje é um exemplo de educação e formação cidadã de crianças TEXTO João Vitor Araújo IMAGENS Reprodução

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A A Turma da Mônica é, sem dúvidas, um dos exemplos mais fortes da literatura infanto-juvenil brasileira e um sucesso em todas as áreas onde atua. Seja pelas produções audiovisuais ou pelos clássicos gibis, a “turminha” é reconhecida internacionalmente pela qualidade e por ter se mantido estável todos esses anos. O universo criado por Mauricio de Sousa, 85 anos, no final da década de 1950 conviveu um Brasil flexível e transformador, que enfrentou desde a ditadura militar até o processo de redemocratização e o encontro com a modernidade. As crises também fizeram parte desse caminho e, como se não bastasse, uma pandemia chegou para abalar as estruturas mundo afora. Nascido em Mogi das Cruzes, SP, Mauricio sempre foi uma daquelas crianças criativas e que gostam de desenhar de tudo. De origem humilde, já aos 14 anos garantia o aluguel da

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família ilustrando informes publicitários, importantíssimos à época e, após um job, pensou que o futuro de sua vida poderia ser trabalhando em jornais. Anos depois, aos 19, mudou-se para São Paulo onde iria trabalhar em um dos maiores jornais impressos diários do país, a Folha da Manhã (atual Folha de S. Paulo). Lá, descobriu um mundo totalmente novo e que seria essencial para a criação do primeiro personagem de suas tirinhas da Folha da Tarde, o cãozinho schnauzer Bidu, que pertence ao personagem Franjinha hoje em dia. Entretanto, a menina baixinha e de dentes salientes já nasce em 1970, após Mauricio receber críticas e ser chamado de misógino por um colega do jornal. A partir dali, foi só sucesso pela frente. De 1959 até hoje, muita coisa mudou, mas a principal é a forma como os gibis passaram a ser entendidos como importantes instrumentos de potencialização do conhecimento. Antes vistas apenas como um passatempo e entretenimento, atualmente as revistinhas compõem o Programa Nacional Biblioteca da Escola (PNBE), criado em 1997 pelo Ministério da Educação e são instrumentos utilizados em salas de aula e recomendados ofi-

cialmente pelo PCN (Parâmetros Curriculares Nacionais) como agente-auxiliador de aprendizagem, porque o alfabetizando consegue ter uma compreensão mais rápida e concreta dos textos por causa das figuras e imagens mais simples, remetentes ao cotidiano. Outra mudança importante enfrentada pela turminha foi a transição do universo analógico para o digital. Antes, o único contato do público com os gibis era por meio da leitura e por troca de cartas. Não era suficiente. A Mauricio de Sousa Produções (MSP) providenciou um site, mas que também não dava conta da demanda, até que chegaram as redes sociais e milhares de possibilidades que elas proporcionam, como maior interação com o público e a chance de atingir muito mais pessoas de vários lugares. Todo o universo de mais de 400 personagens, além dessa formação educacional, atendem diferentes nuances de nossa sociedade, explorando de forma singular pautas de raça, gênero, sexualidade e condições específicas, como o autismo e deficiências físicas. Todas essas narrativas - antes apenas presenciadas de forma impressa - são traduzidas em filmes e vídeos disponibiliza-

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dos em diversas plataformas e para diferentes públicos, atingindo cada vez mais pessoas e colaborando para debates essenciais dentro da comunidade. As histórias da Turma da Mônica apresentam temas que são necessários para o desenvolvimento social da criança e trazem debates importantes para o enriquecimento da visão de mundo e, também por isso, os gibis são referência dentro do PNBE. As produções se adaptam aos diferentes públicos e discussões na sociedade. Essas abordagens são sutis, bem construídas, responsáveis e conscientes. Assim, as crianças conseguem entender a mensagem de inclusão, respeito às diferenças e representatividade dessas obras. Hoje, a Mônica não bate mais no Cebolinha nem nos meninos, eles precisam aprender com os seus erros; não há mais cenas explícitas de agressão e nenhum personagem fica de bumbum de fora nas tirinhas. E, por isso, temos não apenas uma, mas várias gerações que podem dizer que foram alfabetizadas e educadas de forma cidadã com gibis, em especial pelos da Turma. Para Antônio Araújo, leitor e antigo colecionador de quadrinhos, a Turma da Mônica teve um papel crucial

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em sua formação porque lhe deu acesso à leitura e aos símbolos do cotidiano. “Quando eu estudei, havia as cartilhas escolares, uma espécie de regras que os professores tinham que seguir para educar e ensinar os alunos a ler e escrever. Porém, nem todo mundo tinha esse acesso. Em casa, éramos muitos irmãos e não dava para comprar para todo mundo. Uma professora ensinava na sala de aula e emprestava os gibis pra gente ler. E foi só assim que eu consegui aprender, porque eu via nos quadradinhos das tirinhas algumas situações que eu passava em casa, na comunidade”, diz. Na Era da Informação, o meio impresso foi perdendo cada vez mais espaço para os meios digitais, de forma que jornais, revistas e demais veículos impressos passaram a ter cada vez menos espaço no cotidiano das pessoas, em especial dos brasileiros - segundo o Instituto Verificar de Comunicação (IVC), só a circulação de jornais impressos caiu 12% nos primeiros cinco meses do ano. Essa transformação, sem dúvidas, atingiu em cheio o mercado - nunca foi tão comum ver passaralhos (demissões em massa em redações) acontecendo. Entretanto, como Charles Dar-

win escreveu em sua teoria sobre a evolução, quem sobrevive é aquele que melhor se adapta às mudanças. E se tem uma coisa que a Turma da Mônica fez, foi se adaptar e, por sua vez, sobreviver. E os números impressionam, o império de Mauricio, desde a fundação, vendeu mais de um bilhão de exemplares de seus gibis, de acordo com apuração da Superinteressante. Segundo o roteirista Edson Itaboray, responsável pelos textos das historinhas da Turma, as coisas mudam muito rapidamente hoje e algumas publicações já não seriam publicadas como era no início de sua carreira: “Há um cuidado muito maior com alguns setores e também procuramos dar mais espaço para representatividades. Existe uma preocupação em adequar os personagens ao cenário atual, com personagens que representam as minorias, por exemplo. Também não mostramos mais as crianças com namoradinhos porque, de fato, não cabe a personagens de sete anos”. Antes, por exemplo, era comum ver brigas, xingamentos e tirinhas violentas e preconceituosas (machismo, gordofobia e cenas envolvendo

armas) nos quadrinhos, distanciando alguns leitores-chave do universo que, em tese, deveria fazer com que todo mundo se sentisse incluído de alguma forma. Ainda se tratando sobre o mercado e as várias mudanças ocorridas desde o século passado, a MSP conseguiu ser pioneira em um debate que ainda não é totalmente compreendido. O Mercado de Nicho, como é entendido a economia direcionada a públicos e usuários conforme suas particularidades e necessidades, foi uma das apostas mais valiosas do estúdio, pois potencializou as narrativas da Turma da Mônica. Além disso, o Mônica Toy, canal de vídeos infantis, se tornou um dos maiores sucessos já visto na indústria audiovisual para crianças e agrega 17,3 milhões de inscritos, sendo a Rússia o maior consumidor de todos. Lançado há nove anos, o selo Graphic MSP reúne alguns dos principais personagens do universo a partir de traços e roteiros jamais vistos - e com a essência individual de cada um respeitada. Outro destaque importante para as graphics novels é a sensibilidade com que assuntos muitas vezes considerados “pesados” são tratados. “Elas são um canal muito poderoso porq

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porque o Mauricio empresta pra mim e para os autores os principais personagens de quadrinhos do país. E eles podem, sim, falar de causas sociais que estão aqui e que são urgentes. E o resultado tem sido isso, o Jeremias adotado em escolas, Tina, adotada em escolas, os dois sendo reimpressos, o Jeremias ganhando o Prêmio Jabuti, sabe? Porque primeiro, são histórias boas e segundo, elas têm relevância social, elas tocam em temas de verdade, não é só a ficção que está ali. Assim, basta saber abordar que o resultado vem e toca os leitores da maneira que a gente queria tocar”, explica Sidney Gusman, editor das Graphics MSP. O público também ama o selo e viu nele a oportunidade de redescobrir novas histórias com os personagens de sempre. ‘’O [Sidney] coloca autores nacionais para escrever os quadrinhos, mas dentro do seu próprio traço, dentro da sua própria forma de contar histórias. Dá um pouco mais de liberdade para os autores escreverem os personagens e isso é bom em dois sentidos: primeiro porque esses quadrinhos não são necessariamente voltados para

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o público infantil - ele resgata pessoas como eu, de 20, 30 anos a lerem mais quadrinhos com personagens que são sedimentados na cultura popular - e serve também para vitrine de autores nacionais’’, conta Daniel Miranda, Criador de Contéudo. Entretanto, assim como qualquer história de sucesso, contradições também podem existir. Embora a Turma da Mônica sempre tenha sido adicionada aos espaços de diversidade pelo seu apoio à representatividade de personagens PCD (Pessoa Com Deficiência), seu pecado está na falta de interseccionalidade de raça e gênero, além da falta de incentivo a pluralidade de vozes ligadas à pauta LGBTQIA+. Se não fosse pelo nascimento de Milena, em 2019, a primeira personagem negra do núcleo principal, Jeremias continuaria sendo o único, como acrescenta Raphael Pedra, criador de conteúdo e especialista no universo TDM: “O Jeremias foi o único personagem negro por anos e, se eu não me engano, desde os anos 1970. Ele é um personagem que veio desde antes da Mônica, e passou todos esses anos sendo o único personagem negro e sem característica alguma. Todo

mundo tem uma personalidade, uma caracterítisca engraçada para ser lida nos gibis e o Jeremias era negro’’. Apesar dos esforços da MSP para se fazer mais diversa, inclusiva e tolerante, como o relançamento de edições sem linguajar violento e opressor - em algumas histórias, há personagens armados, dizendo palavrões e investidas de bullying entre as crianças do Limoeiro. Revisar pontos estratégicos é essencial para que o sucesso e o diálogo com o presente seja mantido e dessa forma, educar mais uma geração com as pre-

missas de combate ao preconceito e às violências. Segundo a empresa, para que as narrativas da Turma da Mônica façam sentido, também é necessário que seja feito um trabalho de “dentro” para “fora”, isto é, a partir de políticas internas que possibilitem esse diálogo. Segundo a MSP, todos os funcionários se comprometem com o Código de Ética e Conduta da empresa, que repudia todo tipo de preconceito e reitera o compromisso com o respeito à diversidade. Entre os valores do código estão a diversidade, a

inclusão, honestidade, ética, diversidade e inclusão. Além disso, a empresa conta com um canal de ouvidoria terceirizada e sigilosa, que pode ser acionado caso se verifique qualquer conduta ou prática que aponte para práticas nocivas que não atentem para as boas práticas de conduta da empresa, impactando positivamente no que diz respeito a um ambiente de trabalho mais saudável e que traga para a realidade aspectos da narrativa da Turma da Mônica. Essas medidas, além de serem uma estratégia da MSP de não ser “cancela-

da” na internet e enfrentar o hate dos internautas mais novos, são revolucionárias porque não tratam tais assuntos com superficialidade e objetivando o lucro, mas com a dignidade e importância na qual eles merecem ser tratados.

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TURMA DA MÔNICA EM:

Como Mônica Sousa saiu dos gibis e se tornou um ícone de empoderamento mundial A filha 01 do cartunista Maurício de Sousa serviu de inspiração para a personagem mais famosa do Brasil TEXTO João Vitor Araújo e Victória Gomes IMAGENS Reprodução

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A Se fosse da nobreza, Mônica Sousa, diretora executiva da Mauricio de Sousa Produções (MSP), teria mais títulos que a falecida Duquesa de Alba. Sozinha, a empresária ganhou espaço pelo país e ao redor do mundo por ser um exemplo de empoderamento feminino, sendo signatária dos Princípios de Empoderamento das Mulheres, Conselheira do projeto Winning

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Women, Mulher-Cidadã Carlota Pereira de Queirós, criadora do projeto Donas da Rua, com apoio da ONU Mulheres, que reforça a presença das personagens meninas da Turma da Mônica para empoderar e estimular a autoestima das futuras mulheres, que recebeu menção honrosa no Prêmio WEPs Brasil, realizado o Programa Ganha-Ganha: Igualdade de gênero significa bons negócios – uma parceria entre a ONU Mulheres, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) e a União Europeia (UE)... Ufa! Você já percebeu que a “baixinha” de boba não tem nada? À Super, Mônica falou sobre sua carreira profissional, gênero, diversidade

e expectativas para o futuro da Turminha mais amada do Brasil e adjacências.

“Assim como nós, como pessoas e sociedade, os personagens passaram por uma evolução. Essa foi uma das mudanças significativas. Por meio de um debate com a equipe, identificamos a necessidade de imprimir que todas as personagens são fortes, que elas se amam e se respeitam. Focamos nos bons exemplos, que refletirão positivamente na sociedade”Mônica Sousa

Como foi a sua trajetória profissional até ser Diretora Executiva na Mauricio de Sousa Produções (MSP)? Meu primeiro emprego foi trabalhando na Lojinha da Mônica como vendedora. Ali, comecei a descobrir o mundo da Mauricio de Sousa Produções, a força que ela tinha e tem até hoje! A loja foi onde eu comecei a ter contato com os licenciados e com os fãs da marca, acompanhando seus pedidos e feedbacks. Depois da loja, passei a ser gerente de produtos. Foi o início da minha carreira comercial. Eu queria mostrar que era capaz e ir ganhando espaço pelas minhas conquistas. Hoje, sou diretora executiva da parte comercial. Lido diretamente com os licenciados, empresas que nos procuram para associar nossos personagens aos seus produtos. Novos negócios, presença digital da marca, estratégia audiovisual e institucional ficam sob minha direção também.

Sofreu alguma dificuldade por ser mulher e, claro, filha do Mauricio? Não eram todos que sabiam que eu era filha do Mauricio de Sousa. Alguns faziam cara feia e desconfiavam de que eu pudesse estar infiltrada com algum outro objetivo. Eles pensavam que, por ser filha do Mauricio de Sousa, eu estava lá para tirar o lugar deles, mas eu nunca fui me queixar sobre isso. Eu optei por conquistar a confiança de todos. Em alguns momentos, sentia que não confiavam em mim para falar de números ou contratos por eu ser mulher. Uma vez pediram para chamar o diretor financeiro, a pessoa que cuidava dessa parte. Respondi que podia falar comigo, porque era eu que decidia. Como se sabe, você foi uma das principais responsáveis pela introdução de diálogos sobre diversidade e combate ao preconceito para a MSP. Quais foram os esforços para que esse tipo de diálogo pudesse ser incorporado à empresa e às narrativas do universo da Turma da Mônica? A questão da diversidade faz parte da obra do Mauricio de Sousa desde o início. Meu pai cresceu em um ambiente diverso e trouxe isso para as histórias. Um de nos-

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sos primeiros personagens, antes mesmo da Mônica, foi o Jeremias. Em certo momento, meu pai percebeu que faltavam crianças com deficiências, que também fizeram parte da infância dele, e criou o Luca, a Dorinha... Vieram também a Tati e o André, inicialmente ligados a projetos institucionais, mas que depois passaram a integrar as histórias de linha, entre outros. A Mônica já surgiu empoderada, nos anos 1960. Mais recentemente, coloquei em prática um projeto pessoal de empoderamento e conscientização, com apoio da ONU Mulheres, o Donas da Rua. Não apenas a Mônica, mas por meio das histórias e personagens da Turminha, passamos a mensagem de que o importante é sermos quem nós somos e como é importante sermos respeitados da forma que somos. Entre outras mensagens que o projeto Donas da Rua busca reforçar é a conscientização de que as meninas são capazes de fazerem tudo o que querem, terem orgulho e que ninguém pode tirar isso delas. Dentro do projeto, sentimos a necessidade de ter mais representatividade, e então foram criadas a Milena e sua família. Meu pai tinha o projeto de produzir uma família negra há um tempo, e o

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Donas da Rua ajudou a acelerar esse processo. Assim como nós, como pessoas e sociedade, os personagens passaram por uma evolução. Essa foi uma das mudanças significativas. Por meio de um debate com a equipe, identificamos a necessidade de imprimir que todas as personagens são fortes, que elas se amam e se respeitam. Focamos nos bons exemplos, que refletirão positivamente na sociedade.

“Um dos primeiros resultados é que tiramos os aventais das mães, e os pais passaram a assumir muito mais as tarefas de casa, enquanto as mães começaram a aparecer exercendo atividades profissinais” Mônica Sousa

Para além da representatividade nas produções gráficas e audiovisuais, houve alguma mudança dentro da estrutura de política interna da MSP, de modo que mais discussões sobre diversidade nos espaços de trabalho pudessem ser abordadas? Desde o início do Donas da Rua, nos tornamos signatários dos WEPS (Princípios de Empoderamento das Mulheres, plataforma da ONU Mulheres e do Pacto

Global da ONU). Trouxemos a discussão para dentro da empresa, com palestras e oficinas da ONU Mulheres. Um dos primeiros resultados é que tiramos os aventais das mães, e os pais passaram a assumir muito mais as tarefas de casa, enquanto as mães começaram a aparecer exercendo atividades profissionais. Tornamos treinamentos, com palestras e dinâmicas sobre temas ligados ao empoderamento, igualdade

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de gênero, diversidade étnico-racial e inclusão de pessoas com deficiência, uma constante na empresa. Acredito que estamos no início de uma jornada que ainda trará outros impactos para a organização da empresa. De volta às publicações, como o público recebeu essas novas propostas de narrativas dentro do universo Turma da Mônica, já que eles passaram a ler histórias com mais personagens negros, PCDs e indígenas? Diversidade e representatividade são dois pontos que fazem parte do DNA da Mauricio de Sousa Produções. A busca por levar essa mensagem a todos os leitores, direta ou indiretamente, é constante. Assim como o mundo em que vivemos, nossa Turminha é plural e temos o objetivo de conscientizar a todos que podemos conviver com respeito e harmonia. A recepção, em geral, tem sido muito positiva. As crianças se sentem representadas e quem não faz parte desses grupos sente que está aprendendo sobre eles. Há pessoas que se queixam um pouco do protagonismo que damos à Milena, por ser uma personagem nova. Mas sentimos que é importante que as crianças negras se sintam

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“A Turma da Mônica sempre esteve onde o público está e, hoje, um dos principais pontos de contato são as redes sociais” Mônica Sousa

representadas na Turminha e vamos em frente. A atuação da Turma da Mônica nas redes sociais é um exemplo de linguagem e de compreensão de mídia e público. De que forma ela é pensada, já que os seguidores são dos mais variados nichos, idades e classes sociais? A Turma da Mônica sempre esteve onde o público está e, hoje, um dos principais pontos de contato são as redes sociais. Temos uma equipe que conhece profundamente a Turminha e está muito atenta ao que acontece na sociedade. Um exemplo recente foi o acompanhamento que fizemos das Olimpíadas: os brasileiros que estavam acompanhando encontraram homenagens aos nossos atletas e alguns que ainda não estavam engajados nos jogos passaram a acompanhar motivados pela Turminha. Temos uma

proximidade grande com o esporte, inclusive temos o Soccer Camp Donas da Rua, em parceria com o Pelado Real, incentivando as meninas no futebol. Nossas redes usam muito a linguagem dos memes, com bastante humor. Desenvolvemos conteúdos exclusivos, como a websérie da Denise, que foi um grande sucesso. Com a Turma Baby, temos conversado com pais e mães de bebês. Nossa audiência nos canais digitais é muito engajada. Durante a pandemia, disponibilizamos animações da Turma da Mônica gratuitamente e tivemos mais de 80,5 milhões de horas de filmes assistidos, por exemplo. Hoje, a Mônica é embaixadora de grandes instituições brasileiras e internacionais, como a ONU Mulheres, por exemplo. Como você avalia a dimensão da personagem nesse sentido? A Mônica é embaixadora do Unicef, e temos o apoio da ONU Mulheres no projeto Donas da Rua. Dentro da parceria com o Unicef (Fundo das Nações Unidas pela Infância), começamos, em abril de 2005, a publicar uma página mensal das revistinhas, falando sobre

os direitos das crianças de maneira divertida e lúdica, com uma linguagem que a Turma da Mônica costuma ter em suas historinhas. Entre os temas estavam o direito à educação, ao aleitamento materno, à inclusão das crianças com deficiência, o combate ao racismo e a importância da prática de esportes. A partir de 2007, Mônica empresta sua força e se torna a embaixadora do Unicef para defender os direitos das crianças e adolescentes. Mais recentemente, publicamos uma série de HQs falando da Convenção sobre os Direitos da Criança, que completou 30 anos. No ano passado, em parceria com o Unicef, desenvolvemos diversos materiais com informações sobre a prevenção da covid-19. Foram distribuídos mais de 500 mil folhetos e cartazes nas comunidades, com informações sobre o uso de máscaras, por exemplo. O Cascão lavou as mãos para ajudar nessa conscientização! A ação com o Cascão impactou milhões de pessoas. Também desenvolvemos postagens conscientizando os pais sobre a importância de vacinar os filhos. Nossa sensação é a de que, se o assunto conta

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de STEM (ciência, tecnologia, engenharia e matemática). Vamos trabalhar cada vez mais Milena: os licenciados têm demandado muito a personagem. Em alimentícios, a ideia é ampliar cada vez mais o nosso portfólio de produtos in natura. Hoje já temos de melancia à alface.

com a atenção da Turma da Mônica, as pessoas param para ler/ver/ouvir e se sensibilizam. Contamos com a confiança dos brasileiros, o que é uma grande responsabilidade, além de um imenso orgulho. Agora, sobre o futuro. Consegue me dizer quais serão os próximos passos da MSP e, claro, da Turma da Mônica? Pretendem atingir novas mídias? Existem planos para o pós-pandemia? Queremos estar cada vez mais presentes no ambiente digital e nas plataformas de e-commerce. A pandemia só reforçou como isso é importante. O filme Turma da Mônica - Li-

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ções estreará em breve, assim que houver mais segurança em relação à pandemia, provavelmente no fim do ano. E queremos levar ainda mais brasileiros aos cinemas (Turma da Mônica – Laços atraiu 2 milhões de pessoas). Queremos trabalhar bastante a nova Turma da Mônica Baby, ligada a conteúdos e produtos para a primeira infância e a Turminha em sua versão Vamos Brincar!, com conteúdo para a faixa etária de 2 a 4 anos de idade. Teremos novidades com o Chico Bento, que acaba de completar 60 anos, além de seguirmos com o Donas da Rua, incentivando os esportes e as meninas a se interessarem pela área

“Para mim é uma honra ter sido a inspiração para o desenvolvimento da personagem Mônica, que tem conquistado a admiração do público feminino desde a sua primeira aparição, em 1963” Mônica Sousa

Qual a importância de trazer temáticas de diversidade e representatividade para os quadrinhos? Meu pai sempre conviveu com crianças com deficiência na infância e começou a sentir falta de tê-las representadas nas histórias da Turma da Mônica também. No início dos anos 2000, foram criados vários personagens para suprir essa lacuna e enriquecer a Turma da Mônica com mais diversidade, já que todos aprendemos com as diferenças. Em 2003, veio o André, com autismo; em 2004, a Dorinha, que é cega, e o Luca, cadeirante. Em 2009, foi criada a Tati, personagem com Síndrome de Down inspirada na hoje atriz e autora teatral Tathi Piancastelli, que, além de tudo, também é uma influencer digital sobre temas de inclusão. Mais recentemente, nasceu o Edu, dentro do projeto Cada Passo Importa, em parceria com a Sarepta.

O personagem tem distrofia muscular de Duchenne, uma doença rara que afeta principalmente meninos. Também foi criado o Haroldo, que tem epilepsia. Alguns desses personagens surgiram inicialmente em projetos de conscientização, como no caso do André, que apareceu na HQ Um Amiguinho Diferente, num projeto do Instituto Mauricio de Sousa, e em animações para esclarecer sobre os sinais do autismo. Os personagens foram sendo levados para as HQs de linha e para as animações e sempre foram muito bem-recebidos pelo nosso público. As histórias da Turma da Mônica refletem a realidade das crianças, em que a diversidade está presente. É importante para que convivam com as diferenças e também para que as crianças se sintam representadas. Como o protagonismo dessas duas personagens influencia na vida de meninas do mundo todo? Para mim é uma honra ter sido a inspiração para o desenvolvimento da personagem Mônica, que tem conquistado a admiração do público feminino desde a sua primeira aparição, em 1963. Ela surgiu em um momento em que as mulheres começavam a ter um pou-

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co mais de espaço e a lutar cada vez mais para sua voz ser ouvida na sociedade. Ela tem um papel muito importante no empoderamento das meninas desde os anos 1960! Recebemos muitos depoimentos de mulheres que dizem ter se inspirado na Mônica para lutar pelos seus sonhos. Hoje, essas mulheres nos incentivam a continuar com o Donas da Rua, para inspirar mais gerações com todas as personagens da Turma da Mônica. Além de representar as meninas nas histórias em quadrinhos, vocês possuem também o projeto #DonasDaRua. Qual o intuito dele e como ele funciona?

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Em uma palestra da ONU Mulheres, eu fiquei muito tocada quando explicaram que, conforme as meninas vão crescendo, suas referências deixam de ser femininas e seus heróis são todos masculinos. A sociedade tem a história contada por homens. As figuras masculinas que marcaram época ganham destaque, mas as mulheres que fizeram a diferença não têm visibilidade. Eu voltei para empresa e reuni o time para fazer algo a respeito, e assim nasceu o Donas da Rua. O projeto tem o apoio da ONU Mulheres e foi pensado para mostrarmos para as meninas que elas podem ter as mesmas oportunidades, os mesmos direitos que os meninos e vi-

ce-versa, pois entendemos que eles também sofrem ao não poder demonstrar tanto seus sentimentos, por exemplo. Fazem parte do projeto o Soccer Camp Donas da Rua, em parceria com o Pelado Real, para incentivar as meninas à prática do esporte, a exposição Donas da Rua da História, que homenageia mulheres que podem inspirar as meninas, também o apoio a projetos de incentivo ao interesse pela ciência, como o Mergulho na Ciência USP, além do Donas da Rua do Empreendedorismo, em parceria com Sebrae Delas, entre outras iniciativas. Costumo dar palestras em empresas, universidades e escolas sobre o tema do empoderamento das mulheres.

mundo com mais gualdade desde a infância.

O compartilhamento do protagonismo das mulheres é essencial para o desenvolvimento da igualdade de gênero, como a Turma da Mônica auxilia nisso? Acredito que é nosso papel mostrar que meninos e meninas podem conviver respeitosamente desde cedo. Para isso, precisamos colocar o tema em discussão e empoderar as nossas meninas, tanto quanto a sociedade faz com os meninos. Dessa forma, alcançaremos um

“ Com essa mudança, os pais começaram a realizar tarefas domésticas e as mães desenvolveram seus lados profissionais e, hoje, possuem um emprego, e são, inclusive, donas do próprio negócio”

Como é produzir conteúdo para promover o empoderamento feminino? O projeto Donas da Rua representa a nossa força e nosso papel na luta por uma sociedade igualitária. Por meio do entretenimento, buscamos um mundo melhor, no qual meninos e meninas, homens e mulheres, tenham as mesmas oportunidades. Na empresa, o projeto tem mobilizado toda a equipe desde o lançamento. Os roteiristas não só tratam frequentemente do tema do empoderamento nas histórias como têm trabalhado na redefinição de papéis dos personagens, incluindo os pais e as mães da Turminha,

Mônica Sousa

com divisão das tarefas dentro e fora de casa. Com essa mudança, os pais começaram a realizar tarefas domésticas e as mães desenvolveram seus lados profissionais e, hoje, possuem um emprego, e são, inclusive, donas do próprio negócio. Como é o caso da mãe da Milena que é dona e veterinária do pet shop do bairro do Limoeiro. Outro exemplo é uma tirinha da época em que ainda vigorava a proibição de as mulheres praticarem esportes considerados “pouco femininos” e a Mônica aparece carregando um par de luvas de boxe, presente de Dia das Mães para dona Luísa! Dentro do Donas da Rua temos o Donas da Rua da História, em que homenageamos mulheres que fizeram e fazem a história na figura de nossas personagens. Já são quase 70 mulheres e vamos continuar. Aprendemos muito ao pesquisar sobre a história delas. É muito inspirador. Temos uma parceria com o Sebrae Delas, com apoio da ONU Mulheres e da Rede Mulher Empreendedora e publicamos HQs que procuram levar valores como: iniciativa, trabalho em equipe, autoconfiança para as meninas, sempre mostrando que os estereótipos também prejudicam

os meninos, que devem ter o direito de expressar seus sentimentos e praticar os esportes que quiserem, por exemplo. Como e por que Milena foi idealizada? Qual a sua importância? Percebemos todos os dias como é importante para as crianças terem personagens com quem se identifiquem. Há dois anos, por exemplo, lançamos a Milena, uma garotinha negra empoderada, e sua família. O lançamento foi em uma corrida que realizamos no Ibirapuera. A personagem foi lançada no formato ao vivo, antes mesmo de entrar nas HQs. Foi emocionante ver meninas negras apontando e dizendo: “Olha, ela é igualzinha a mim!”. Vários estudos mostram a importância dos personagens para as crianças. Se elas precisam fazer uma tarefa de escola, por exemplo, e se vestem como seu herói favorito, elas persistem mais. Por outro lado, sei que as meninas, aos 6 anos, começam a identificar os protagonistas das histórias como meninos e não meninas. Por isso a importância de uma personagem forte como a Mônica, mas também como a Milena, a Dorinha ou a Tati. esse reconhecimento. É

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emocionante, fico muito feliz com essa acolhida que a personagem vem tendo. Acho que a principal mensagem é que todas as meninas são fortes à sua maneira, têm capacidade de lutar pelos seus sonhos e devem ser respeitadas.

Como você definiria o legado da Turma da Mônica? Qual é o maior ensinamento? Falando diretamente com as famílias e as crianças há mais de seis décadas, as histórias da Turma da Mônica transmitem valores como amizade, justiça e respeito à diversidade. Acredito que as crianças nos ensinam muito, tenho vivido isso novamente com meu neto. Meu pai sempre escutou as crianças com interesse genuíno e aprendeu com elas. A Turma da Mônica traz muito dessa visão dele, que é o grande legado.

Como você definiria o legado da Turma da Mônica? Qual é o maior ensinamento? Falando diretamente com as famílias e as crianças há mais de seis décadas, as histórias da Turma da Mônica transmitem valores como amizade, justiça e respeito à diversidade. Acredito que as crianças nos ensinam muito, tenho vivido isso novamente com meu neto. Meu pai sempre escutou as crianças com interesse genuíno e aprendeu com elas. A Turma da Mônica traz muito dessa visão dele, que é o grande legado. Mônica e Milena são personagens cheias de personalidade, qual a principal mensagem que elas nos deixam? A Mônica inspira meninas e mulheres desde os anos 1960, por ser uma das poucas personagens mulheres protagonistas que fogem de estereótipos. Um dos principais retornos que recebemé em relação à Milena. Mui-

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tas crianças, ao ver a personagem, percebem-se parecidas com ela. É muito comum vermos fotos nas redes sociais com mães citando esse reconhecimento. É emocionante, ficomuito feliz com essa aco-

lhida que a personagem vem tendo. Acho que a principal mensagem é que todas as meninas são fortes à sua maneira, têm capacidade de lutar pelos seus sonhos e devem ser respeitadas.

“A Mônica inspira meninas e mulheres desde os anos 1960, por ser uma

das poucas personagens mulheres protagonistas que fogem de estereótipos. Um dos principais retornos que recebemos é em relação à Milena” Mônica Sousa

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TURMA DA MÔNICA EM:

Mônica e Milena: símbolos de protagonismo feminino TEXTO Victoria Gomes IMAGENS Reprodução

A mais influente história de quadrinhos do Brasil tem um papel social inegável. Por isso, a existência dessas duas personagens é fundamental

A A criação do maior grupo de personagens da história dos quadrinhos no Brasil é um dos mais importantes legados da Turma da Mônica. Com cerca de 400 personagens de diferentes etnias, personalidades e culturas, Mauricio de Sousa oferece a seu público a oportunidade de se reconhecer e se imaginar em seus papéis. “Vários estudos mostram a importância dos personagens para as crianças. Se elas pre cisam fazer uma tarefa de

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escola, por exemplo, e se vestem como seu herói favorito, elas persistem mais. Por outro lado, sei que as meninas, aos 6 anos, começam a identificar os protagonistas das histórias como meninos e não meninas. Por isso a importância de uma personagem forte como a Mônica, mas também como a Milena, a Dorinha ou a Tati”, afirma Mônica Sousa, inspiração para a protagonista das histórias de seu pai, Mauricio de Sousa. Um universo infantil repleto de diversidade é hoje a realidade da Turma da Mônica, mas nem sempre foi assim. Bidu, Franjinha, Horácio, Jeremias, Cebolinha: todos os personagens das histórias de Mauricioeram homens, algo que o fez ser acusado de mi-

soginia. Eis que em 1963, inspirado em sua própria filha, o autor quis mudar esta visão. Nascia Mônica, a protagonista dos gibis. “Para mim, é uma honra ter sido a inspiração para o desenvolvimento da personagem Mônica, que tem conquistado a admiração do público feminino desde a sua primeira aparição. Ela surgiu num momento em que as mulheres começavam a ter um pouco mais de espaço e a lutar cada vez mais para sua voz ser ouvida na sociedade. Ela tem um papel muito importante no empoderamento das meninas desde os anos 1960! Recebemos muitos depoimentos de mulheres que dizem ter se inspirado na Mônica para lutar pelos seus sonhos”,

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conta Mônica Sousa, diretora-executiva da Mauricio de Sousa Produções (MSP). Exemplo de força e liderança feminina, Mônica foi se tornando cada vez mais uma referência para meninas. “Eu aprendi a ler com os gibis da Turma da Mônica. Sempre me achei parecida com a Mônica, não só pela aparência mas também pelo jeito divertido dela. Acho legal ela se aceitar como é e não ficar triste se falam do visual dela, isso me ajudou a também ser assim. A Mônica ensina que meninas podem ser o que quiserem e fazer o que quiserem”, comenta Ana Clara Silva, estudante de 12 anos que se identifica com a principal personagem de Mauricio de Sousa. É por esse e outros motivos que, em 6 de novembro de 2007, a Mônica foi nomeada embaixadora do UNICEF no Brasil, única personagem de histórias em quadrinhos do mundo a receber este título. Além disso, a pedido dos próprios leitores, ela virou “dona da rua”. Os quadrinhos ficaram ficaram pequenos para isso e em 2016, Mônica Sousa e a MSP, com apoio da ONU Mulheres, desenvolveram o projeto Donas da Rua, que reforça a presença das

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personagens femininas da Turma da Mônica para empoderar e estimular a autoestima das futuras mulheres. Em uma palestra da ONU Mulheres, Mônica Sousa ficou tocada ao explicarem que, conforme as meninas vão crescendo, suas referências deixam de ser femininas e seus heróis passam a ser masculinos, devido a sociedade ter a história contada por homens. Durante o evento, a diretora executiva da Mauricio Produções participou de um debate que discutiu a questão de figuras masculinas, que marcaram época, ganharam destaque, e a invisibilidade de mulheres que fizeram a diferença. Ao voltar para a empresa, ela reuniu o time e decidiu fazer algo a respeito, e assim nasceu o Donas da Rua. “O projeto tem o apoio da ONU Mulheres e foi pensado para mostrarmos para as meninas que elas podem ter as mesmas oportunidades, os mesmos direitos que os meninos. E vice-versa, pois entendemos que eles também sofrem ao não poder demonstrar tanto seus sentimentos, por exemplo”, explica a idealizadora do projeto. Fazem parte do projeto o Soccer Camp Donas da Rua, em parceria com

Ana Clara, estudante de 12 anos que se identifica com a personagem Mônica

o Pelado Real, para incentivar as meninas à prática do esporte; a exposição Donas da Rua da História, que homenageia mulheres que podem inspirar as meninas; o Mergulho na Ciência USP, para apoiar projetos de incentivo ao interesse pela ciência e o Donas da Rua do Empreendedorismo, em parceria com Sebrae Delas, entre outras iniciativas. Além disso, a Mônica costuma dar palestras em empresas, universidades e escolas sobre o empoderamento das mulheres. Recentemente, uma importante e necessária adição foi feita ao quadro de personagens da turma: Milena, a primeira menina negra a fazer parte do time de protagonistas. Em relação a sua chegada, Mônica Sousa reflete: “Percebemos todos os dias como é importante para as crianças terem personagens com quem se identifiquem. Há dois anos, por exemplo, lançamos a Milena, uma garotinha negra empoderada, e sua família. O lançamento foi numa corrida que realizamos no Ibirapuera. A personagem foi lançada no formato ao vivo, antes mesmo de entrar nas HQs. Foi emocionante ver meninas negras apontando e dizendo: “Olhaela é igualzinha a mim!”,

Cheia de personalidade e filha de uma veterinária, Milena se relaciona com os animais de estimação da turma e acolhe aqueles que estão abandonados. “Sempre quis parecer com alguém da Turma da Mônica, pois desde criança leio os gibis. Graças a Milena, eu consegui. Ela é linda e gosta de animais, assim como eu. Fiquei feliz quando ela começou a aparecer nas histórias”, relata Laura Fiuza, estudante de 12 anos, mostrando que a chegada de Milena fortalece identidades. A identificação criada com os personagens mostra a relevância que os gibis da Turma da Mônica possuem na vida das pessoas. Por isso, a diversidade representada nos quadrinhos é tão importante. “A Mônica inspira meninas e mulheres desde os anos 1960, por ser uma das poucas personagens mulheres protagonistas que fogem a estereótipos. Um dos principais retornos que recebemos é em relação a Milena. Muitas crianças, ao ver a personagem, percebem-se parecidas com ela. É muito comum vermos fotos nas redes sociais com mães citando esse reconhecimento. Acho que a principal mensagem é que todas as

Laura Fiuza, estudante de 12 anos que se identifica com a personagem Milena

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Mônica Sousa, diretora executiva da MSP, filha e inspiração de Maurício de Sousa para sua principal personagem

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meninas são fortes à sua maneira, têm capacidade de lutar pelos seus sonhos e devem ser respeitadas”, pondera Mônica Sousa. Unindo pessoas de diferentes classes e idades, a Turma da Mônica marcou e segue marcando a vida de gerações e gerações de brasileiros. “Acredito que é nosso papel mostrar que meninos e meninas podem conviver respeitosamente desde cedo. Para isso, precisamos colocar o tema em discussão e empoderar as nossas meninas, tanto quanto a sociedade faz com os meninos. Dessa forma, alcançaremos um mundo com mais igualdade desde a infância”, finaliza Mônica Sousa, acerca da contribuição da Turma da Mônica para o compartilhamento do protagonismo das mulheres e desenvolvimento da igualdade de gênero.

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TURMA DA MÔNICA EM:

A MULHER QUE NÃO SE CALA TEXTO Nathalia Ribeiro IMAGENS Reprodução

TEXTO:

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Por que o exemplo de Tina vai além da ficção e pode influenciar comportamentos mais adequados perante às mulheres

N No apartamento de nº 41, localizado na Rua Jardim dos Cedros, 110, Cristiana Lima e Sousa, mais conhecida como Tina, vive sozinha e com muita autonomia. Aos 22 anos, é jornalista e autora da newsletter “Falando nisso…” com 52 artigos publicados e 87 mil assinantes. Está prestes a começar seu primeiro dia de trabalho em um jornal o qual sempre sonhou ingressar e, finalmente, poderá trabalhar lado a lado com os maiores ídolos do jornalismo. É assim que a encontramos nas primeiras páginas da graphic novel escrita e ilustrada por Fefê Torquato, intitulada Tina - Respeito, lançada em 2019 pelo selo Graphic MSP. Tina foi uma das poucas personagens no universo de

Mauricio de Sousa que acusou a passagem do tempo. Criada em 1970 com o espírito da juventude setentista pós Woodstock, a adolescente, que surgiu como uma representante do estilo hippie nas tirinhas, cresceu, envelheceu e amadureceu, tendo diversas fases ao longo dos anos. No entanto, a essência da personagem esteve presente em todas as versões, Tina sempre se apresentou como uma jovem mulher autoconfiante e determinada, inspirando pequenas garotas a conquistarem o próprio espaço. “Quando eu era criança, a Tina sempre foi o meu personagem favorito da Turma da Mônica. Para mim, ela sempre foi um exemplo de liberdade, de mulher que fazia o que queria, porque ela era repórter independente, morava sozinha e tinha as coisas dela”, conta Kika Ernane, ilustradora, colunista do GeekBlast Brasil e fã da personagem Tina. Durante a década de 1980, a garota se formou em jornalismo pela Facul-

dade São Paulo, narrativa que presta homenagem ao passado profissional do seu criador, já que Maurício possui no currículo experiência como repórter. Esta face jornalística de Tina foi o gancho para a autora, Fefê Torquato, ambientar a história de Respeito em uma redação de jornal. Tina pede respeito Na obra, Tina encara o assédio sexual no local em que trabalha e se vê obrigada a passar pela jornada de lidar com todos os medos, traumas e inseguranças que essa situação desencadeia. O enredo de Tina - Respeito, como o próprio título diz, pede respeito a todas as mulheres e as diversidades, contemplando o discurso da luta contra injustiças sociais. Apesar de a maior parte da história se passar no jornal, Fefê explora a onipresença das opressões cotidianas em diversos contextos, seja voltando do trabalho sozinha durante a noite, seja em conversas casuais nas quais alguém solta uma piada machista, ou até mesmo ao fazer um simples pedido para o garçom. “A Tina é vítima de assédio e ver ela passando por isso pode impactar e despertar o leitor mais novo para essa situação horrível.

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Serve para impedir que a criança ou adolescente não cometa assédios, e também pode evitar que ela seja a vítima no futuro, porque terá base para compreender essas violências”, aponta Barbara Krauss, jornalista e produtora de conteúdo literário para o canal B de Barbárie no Youtube. Segundo dados compilados pela consultoria de inovação social Think Eva e divulgados pelo LinkedIn, 47% das brasileiras já foram vítimas de assédio no meio corporativo, porém, apenas 5% delas dizem te-

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rem, de fato, reportado o ocorrido. Além disso, Kátia Magalhães Arruda, ministra do Tribunal Superior do Trabalho (TST), disse a Uol Universa, durante uma entrevista em maio deste ano, que mais de 90% das ações movidas na Justiça por assédio sexual são de mulheres que relatam inumeros episódios, desde comentários de cunho sexual, piadas, insinuações, convites para sair, toques inapropriados, tentativas de beijo e até estupro. “A Tina da Fefê é contida nas vestimentas, com

óculos grandes e corpo magro. Ela não tem nada pra ser assediada, mas ela é assediada mesmo assim, porque, essa é a questão, ninguém é assediada por causa da roupa ou pela forma do corpo, é assediada por ser mulher. E, infelizmente, muitas se calam”, afirma Cristiane Lemes, autora do artigo “Feminismo dentro do quadrinho Tina - Respeito. Cerca de 33% das respondentes da pesquisa feita pelo Think Eva dizem não denunciar assédios. Para 78% dessas mulheres, a impunidade é o maior obstá-

culo para a denúncia. Muitas têm medo de perder o emprego e serem prejudicadas na carreira, além de sofrer com a falta de apoio e enfrentar pessoas minimizando tais casos, às vezes, até colocando a culpa na vítima. Nojo, raiva, medo, vergonha, culpa, impotência, humilhação, são apenas alguns dos sentimentos que as participantes do levantamento disseram sentir por serem vítimas de assédio sexual no ambiente de trabalho. Abordar esta situação através do lúdico, como a Fefê Torquato faz

em Respeito, utilizando histórias que formam uma conexão com os jovens, aproximando-se da linguagem e realidade diária na qual estão inseridos, pode auxiliar na instrução de condutas, no fortalecimento da empatia, resultando na quebra de ciclos violentos. Com isso, evita a criação de possíveis assediadores, além de impedir que experiências traumáticas façam parte das vivências femininas. “É uma prevenção para essa sociedade que é violenta com as mulheres. Quando uma menina

lê isso, desde cedo ela aprende que não precisa se submeter a situações violentas ou degradantes para ser reconhecida como ser humano, como mulher”, salienta Amanda Oliveira de Morais, doutoranda em análise do comportamento pela Universidade Estadual de Londrina. Ao longo da narrativa, mulheres que trabalham na redação do jornal comunicam à garota sobre as ações que o assediador em questão costuma cometer, tentando evitar que ela seja mais uma vítima e, fazendo da confidência e sororidade, um cordão de isolamento e proteção entre mulheres. No entanto, o personagem assediador cria um pretexto para ficar a sós com Tina e, assim, apresenta seu comportamento inadequado, convidando-a para sair, tocando-a fisicamente sem consentimento, insinuando-se sexualmente e coagindo a personagem ao ameaçar sua carreira dentro do jornal. Assim, é negado à Tina o direito fundamental de dignidade humana nas relações de trabalho. O homem ataca a completude da trabalhadora colocando em risco a integridade física e psicológica dela.

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Devido a falta de suporte institucional, Tina é acolhida pela mãe, amigos e pelas colegas de trabalho, apresentando ao público leitor a ideia de que mulheres precisam apoiar mulheres, pois a carência de medidas políticas eficientes contra assédio leva mulheres a montarem uma resistência coletiva própria como um modo de estratégia de sobrevivência. Levantar o debate sobre assédio com meninas novas tem o propósito de fazê-las enxergar desde cedo que possuem o direito à liberdade de não sentir medo a toda hora, além de evidenciar que elas podem fazer o que quiserem, como quiserem e ocuparem quaisquer espaços que desejarem. Dessa forma, o quadrinho se torna um recurso para encorajar meninas a falarem e responderem abusos. “Podemos pensar em diversas frentes de ação para transformar de alguma forma essa sociedade patriarcal. O modelo social através das mídias culturais e da educação é um dos caminhos que vai levar a alguma mudança dessas práticas para as próximas gerações”, completa Amanda. Após o episódio traumático, Tina é incentivada a não se calar por meio de um discurso da mãe. Ela

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Ela decide não ser silenciada; ela se impõe e revida, fazendo com que respeitem o direito dela de existir no mundo sem passar por violações. “As histórias são uma ferramenta de luta contra as opressões. Eu, como professora, trabalho com histórias diariamente na escola e é uma forma de debater esses temas e gerar transformação social. Trazer essa pauta para a educação das crianças é um modo de construir mais equidade de gênero, de raça”, pontua Vivian Colella Esteves, pedagoga infantil. Nesta plataforma massiva como a Mauricio Produções, a história da Tina pode gerar discussão até mesmo entre meninos, pois o combate ao assédio vai além do manto feminino, a sociedade no geral também desempenha um papel nesta luta, que vai desde construir políticas para barrar esses ciclos de violência a estruturação de redes de apoio às vítimas, além de ser necessário trabalhar a conscientização entre os homens, uma vez que o problema da violência contra mulher envolve a todos. “Enquanto lia Tina, me questionei se, em algum momento, falei algo quesoou de outra forma. Talvez eu tenha falado alguma coisa de maneira inadequada, mesmo não sendo

o que realmente queria dizer. Porque nós somos criados em um mundo tão machista e, às vezes, temos comportamentos que achamos normais quando, na verdade, não é nada normal. É preciso reconhecer isso e buscar mudanças”, diz Davi Trindade Ramos, criador do canal sobre quadrinhos, Bidu Comics, e leitor do selo Graphic MSP. Mauricio de Sousa salienta no prefácio do quadrinho que “Fefê escancara um problema gravíssimo que acontece no Brasil e no mundo com muita fre-

quência. E que precisa acabar”. O quadrinista frisa a importância de tratar do assunto com o seu público. Muitos, inclusive, estão passando pela fase na qual tudo absorve e reproduz o que consomem. Desse modo, histórias viram modelos e parâmetros sociais. Mauricio utiliza da influência que detém para dar voz a autores como Fefê Torquato, que, por sua vez, leva uma

mensagem de luta, poder e resistência por meio da independente Tina, mostrando que as práticas feministas podem transformar positivamente a sociedade como um todo e para todas as pessoas.

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TURMA DA MÔNICA EM:

ÊTA VIDA BOA! 40

TEXTO Beatriz Contelli IMAGENS Reprodução

Desde sua criação, em 1961, até os dias atuais, Chico Bento contempla o discurso de valorização da vida rural e joga luz às particularidades da Educação do Campo

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“ “O que eu visto não é linho. Ando até de pé no chão. E o cantar de um passarinho é, pra mim, uma canção. Sou, sou livre feito um regato, eu sou um bicho do mato, me orgulho de ser caipira.” Quando a dupla sertanejaChitãozinho & Xororó lançava seu primeiro álbum no início da década de 1970, o Instituto Brasileiro de Gegrafia e Estatística (IBGE) registrava que já éramos 72 milhões de brasileiros, sendo

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pouco mais de 38 milhões residentes da zona rural. Enquanto a dupla emplacava sucessos, Chico Bento já completava nove anos de existência. Conhecido como o caipira - palavra de origem tupi que significa ‘morador do mato’ - da Turma de Mauricio de Sousa, o personagem é, talvez, o que melhor expressa traços de simplicidade, humildade e admiração à vida. De chapéu de palha e pés descalços, o universo de Chico Bento - retratado a partir da ótica de um autor citadino - expõe ao leitor uma diversidade tipicamente associada à vida no campo. Sempre ao lado dos animais da fazenda, o protagonista adora se aventurar pelas possibilidades que o campo lhe

apresenta: nadar no ribeirão, roubar goiaba do vizinho, participar de festas, aproveitar uma boa moda de viola e, claro, ouvir com atenção as histórias do nosso folclore que a Vó Dita tem para contar. Com um dialeto próprio - que já criou muita polêmica na educação infantil - o caipira é amplamente defendido por aqueles que já trabalharam com ele. “Chico Bento fica maravilhado com qualquer coisa, ele enxerga a parte boa daquilo que está acontecendo. Se a criança se conectar com o Chico, eu não tenho dúvidas que ela passará a ver a vida da mesma forma. Personagens com essas características são muito bons para a sociedade, principalmente pelo seu olhar ‘suave’ para o

mundo”, conta Walmir Orlandeli, roteirista e ilustrador da graphic novel Chico Bento - Arvorada.

“Uma escola ética é aquela que entende que o saber do educador não é mais importante do que o do educando, é aquela que respeita suas vivências” Franciele Fabris

Escola para álem da sala de aula Se você acha que uma das maiores características do Chico Bento é a preguiça, não se preocupe, você não está sozinho. Essa preguiça do nosso caipira se reflete principalmente quando o assunto é estudar. Com diversas histórias que se passam na escola, é um verdadeiro sufoco para o personagem prestar atenção nas aulas e fazer as lições de casa. Mas se engana quem acha que Chico consegue se safar das responsabilidades escolares. Não faltam exemplos: ao não

entregar as tarefas solicitadas pela professora, o protagonista é obrigado a fazer a tabuada do um ao nove, enquanto os demais alunos já foram para casa; ao tentar colar em uma prova e ser pego pela professora; ou quando fica de castigo e todos seus amigos dão risada. Além de explorar essas artimanhas do personagem, a narrativa mostra a importância de um bom professor. Personificação dos educadores do campo nas histórias de Chico Bento, Dona Marocas ao mesmo tempo que é rígida, também é complacente com os alunos. Como afirma Franciele Fabris, professora do assentamento José Maria, do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) de Abelardo Luz (SC), a base da Educação do Campo é o pensamento coletivo. “A Educação do Campo considera os saberes da comunidade, das famílias, dos educandos. Uma escola ética é aquela que entende que o saber do educador não é mais importante do que o do educando, é aquela que respeita suas vivências”. A afirmação vai de encontro com o pensamento do educador Paulo Freire (1921-1997), ao expor que a escola deve ser um espaço

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de ensino-aprendizagem, um centro de debates de ideias, soluções e reflexões, não apenas o lugar de transmissão de alguns conhecimentos, cuja valorização se dá à revelia dos interesses populares. Chico Bento não só aprende com seus erros, como também ensina todos ao seu redor, incluindo Dona Marocas. O protagonista da Vila Abobrinha sabe bem como é a vida na roça e os trabalhos que esta demanda. Ele pode até não gostar de fazer redação ou tabuada, mas arar a terra e cuidar dos animais é com ele mesmo. A diversidade que vem do campo Do lançamento do primeiro álbum da dupla Chitãozinho & Xororó até o último Censo Demográfico realizado pelo IBGE em 2010, a população do campo diminuiu para 29 milhões de indivíduos. Desse contingente, 16,5% são crianças de até 12 anos de idade. Crianças essas que não passam despercebidas pelas mudanças e peculiaridades do modo de viver no campo. Assim como Chico, que divide seu tempo entre trabalhar na roça e se entreter com brincadeiras ao ar livre, as crianças do campo têm um contato íntimo

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com a natureza, produzem muitos de seus brinquedos e ainda valorizam a ancestralidade e os laços familiares. De acordo com a pedagogia Waldorf, a infância deve visar adultos livres, com pensamentos criativos e sensibilidade social e pela natureza. “Nós precisamos mostrar à criança que o mundo é bom e que quanto mais ela se afastar da natureza, mais ela irá se afastar de si mesma. Próxima da natureza, a criança dá valor às coisas mais simples, a cada sementinha que nasce. Se a criança ama e respeita todos os seres vivos, ela também amará e respeitará as outras pessoas”, explica Elaine Posso, professora e coordenadora pedagógica da escola Objetivo Terra (MG), de viés antroposófico. Em constante aprendizado e interação com o mundo em que vive, Chico Bento sempre encerra suas histórias com mensagens de empatia, respeito e estima pelas coisas simples. Curioso e aberto ao novo, o caipira tão querido dos quadrinhos de Mauricio de Sousa seguiu o ritmo dos outros personagens da Turma e também cresceu. Agora, moço, não tem mais preguiça de estudar, mas, mesmo vivendo na cidade, não se esqueceu de onde veio.

Suas histórias clássicas continuam abordando temas - de forma leve e descontraída - em defesa da natureza, contra o avanço do latifúndio e da modernização predatória do campo, e a importância dos jeitos de ser de cada criança. Roteirista de diversas HQs do Chico Bento, Edson Itaborahy reforça que a Mauricio de Sousa Produções (MSP) sempre procura se atualizar quando o assunto é diversidade. “No meu modo de ver, o jeito de mudar o mundo para melhor é através da próxima geração. As crianças nascem sem vícios ou preconceitos. O que a gente deixa neste mundo é uma mensagem para a geração futura, há muito o que consertar. A Turma da Mônica presta um serviço muito relevante nesse sentido”, completa. “Doutô, eu num tive estudo, só sei mesmo é trabalhar, nesta casa de matuto, é bem-vindo quem chegar”. E foi assim, que nesses 60 anos de vida, Chico Bento nos recebeu em suas histórias: de braços abertos e muitos causos para contar.

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TURMA DA MÔNICA EM:

A naturalização das diferenças TEXTO Nathalia Ribeiro IMAGENS Reprodução

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Com o intuito de promover a inclusão, Mauricio de Sousa criou personagens com deficiência para discutir sobre representatividade e respeito

Desde o início da carreira como cartunista, Mauricio de Sousa expõe retratos dos modos de viver, trazendo aspectos do cotidiano para os quadrinhos e inserindo crianças comuns em temáticas que abordam diversas questões sociais, especialmente, inclusão. O escritor e ilustrador criou um universo repleto de personagens carismáticos que povoam o coração de crianças e adultos, o que instiga os leitores a se identificarem com cada sujeito que aparece nas histórias. Ao longo da década de 1960, em uma época na qual a causa de pessoas com deficiência física ou cognitiva era ainda mais invisibilizada, a turminha

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demonstrar alguns dos sinais do autismo infantil e conscientizar pais e educadores da importância do diagnóstico precoce. A partir desse trabalho, Mauricio de Sousa inaugurou uma nova perspectiva sobre diversidade e inclusão nos próprios gibis, inserindo cada vez mais personagens com diferentes tipos de deficiência para elucidar o assunto ao público leitor. Mauricio de Sousa desenvolveu personagens como Dorinha, uma garota

deficiente visual inspirada na militante da causa de pessoas cegas, Dorina Nowill. Depois, houve o surgimento do Luca, personagem cadeirante que tem suas influências demarcadas pelo cantor e compositor Herbert Vianna, a Tati, que possui síndrome de down, inspirada na atriz Thati Piancastelli, e Edu, um menino que tem distrofia muscular de Duchenne, doença rara que leva a uma degeneração progressiva dos músculos.

Por meio de diálogos acessíveis a todos, explicativos e com o típico humor da turminha, o enredo dos personagens com deficiência sempre busca informar crianças, pais e educadores a respeito de deficiências e de como lidar com as suas características, estimulando comportamentos e valores que sejam inclusivos. As historinhas conversam, principalmente, com crianças no período escolar, estabelecendo uma relação com os conhecimentos de-

apresentou o primeiro personagem que contemplava o tópico da inclusão social: Humberto, um garoto deficiente auditivo. Após a primeira aparição de Humberto, o autor também criou Hamyr, um garotinho que precisa de muletas para andar. No entanto, foi um dos poucos personagens deficientes que teve uma única atuação nas histórias da turminha, sendo coadjuvante na edição Mônica Nº 27 em 1989, lançada pela editora Globo. Já em 2003, o personagem André, que apresenta Transtorno do Espectro Autista (TEA), foi criado a pedido da Associação dos Amigos dos Autistas (AMA), com o intuito de

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delas e mostrando um mundo sem discriminações, um exemplo que pode ser replicado no dia a dia com colegas ao redor. “A Turma da Mônica passa informações sobre a deficiência e dá suporte para a criança leitora saber o que é aquela deficiência, quais são os padrões, as características e como podemos lidar com isso e respeitar as diferenças” pontua Amanda Viana, psicóloga infantil. “As histórias em quadrinhos dão um grande modelo, porque a Mônica brinca normalmente com o Luca, a Dorinha e a Tati. O Humberto, por exemplo, sabe se comunicar em libras. Ou seja, a criança aprende a ter empatia, a ajudar e entender o outro e

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percebe que existe diversidade na humanidade, mas isso não significa que seja uma coisa ruim ou que seja algo limitante”, completa. Existe o estereótipo social de que pessoas com deficiência não podem fazer determinadas tarefas, reforçando o preconceito e a exclusão. Por isso, a naturalização das vivências e do cotidiano de pessoas com deficiência nos gibis facilita o entendimento de que estas podem participar normalmente de atividades na escola, em casa, nos espaços públicos e em qualquer outro lugar, assim como os personagens com deficiência da Turma da Mônica que possuem vidas plenas e comuns.

“Quando mostram o Luca jogando basquete e sendo o galã do bairro do Limoeiro, está fazendo com que as crianças, que não são deficientes, percebam que os seus amiguinhos que possuem deficiência são capazes de executar as mesmas coisas que eles e podem ser incluídos para compartilhar experiências. Além de dar visibilidade para crianças que possuem deficiência, porque elas conseguem se enxergar nesses personagens ”, observa Natália Luczkiewicz, pesquisadora na área de letras com foco no ensino de leitura e escrita a partir dos gêneros textuais, processos referenciais e argumentação. Assim, os gibis da Turma da Mônica, que envolvem

os personagens deficientes, não apenas cumprem a função de conscientização e auxílio na formação de indivíduos mais receptivos às diferenças, mas também contribuem para que milhões de crianças com deficiência se auto reconheçam nos quadrinhos e se sintam parte da sociedade que culturalmente e estruturalmente as exclui. Essas obras propiciam a integração sem barreiras de pessoas com deficiência no universo lúdico do Mauricio e, consequentemente, rompem alguns preconceitos construídos no mundo real. Para Sarah Santos, apresentadora do podcast Mãozinha Amiga, que nasceu com deficiência causada por um medicamento, as histórias da Turma da Mônica mostram que é possível uma pessoa com deficiência ser feliz e ter uma vida independente. “Muitas pessoas com deficiência não costumam conviver com outras pessoas com deficiência. Às vezes, elas crescem em contextos que são as únicas ali. Mas quando você abre uma revistinha e vê alguém que é como você, interagindo com outras crianças, é como se colocassem a mão nas suas costas e falassem ‘tá tudo bem’. Nós não nos sentimos mais tão diferentes, não nos sentimos

tão aleatórios ao mundo, é uma quebra de paradigmas”. As interações naturais e saudáveis entre personagens com deficiência e não deficientes mostram o quanto a inclusão e a representatividade, desde que bem feita, importam para aqueles que por um longo período foram invisíveis para as mídias culturais, mas que pela primeira vez têm a oportunidade de se enxergarem em um arquétipo nos gibis. E não só isso. Os personagens com deficiência da Turma da Mônica não são colocados nas historinhas apenas como a cota da diversidade para agradar o politicamente correto, mas são figuras que estão além das questões da deficiência, pois são complexos em suas personalidades, seus gostos singulares e possuem profundidade como qualquer outro personagem que não apresenta deficiência. “Nesse universo de deficientes e não deficientes todos acabam se equiparando, eles têmpotencialidades e têm pontos frágeis igualmente, porque cada um deles são baseados em pessoas reais, por isso é tão humanizado. O Mauricio não tem esse olhar fantasioso, pelocontrário, ele tira da realidade e leva pra fantasia”, afir

ma Michelle Silva de Mattos, pedagoga e autora do artigo Personagens com deficiência nos quadrinhos de Mauricio de Sousa: Diversão e respeito às diferenças Embora ainda existam muitos preconceitos para quebrar, este trabalho de naturalização e normalização das pessoas com deficiência ajuda a promover a equidade em relação a todos os cidadãos. Desde o desenvolvimento dos primeiros personagens com deficiência, Mauricio de Sousa joga luz para a importância da inclusão social na construção de uma sociedade menos intolerante, respeitando as diferenças com o intuito de romper barreiras excludentes.

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TURMA DA MÔNICA EM:

ECOETÉ, CURUMIM TEXTO Beatriz Contelli IMAGENS Reprodução

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* “Coragem, menino” em tupi-guarani

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Do cabelo em formato de tigela e o espanto diante dos centros urbanos, Papa-Capim ganhou um espaço próprio na MSP e hoje passa por um processo de reestruturação para representar de forma digna aqueles que eram maioria em nosso país e hoje são apenas 0,4% da população

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N Nas Terras Indígenas Cateté e na Trincheira Bacajá, situadas no Pará, os kayapó xikrin valorizam a formação de uma criança que emite opiniões e reage quando provocada. Na Serra do Roncador e leste matogrossense, o ritual para a fase adulta dos a’uwe (xavante) ensina sobre força, coragem e obediência aos mais velhos. Em ambas, o respeito ao espaço, tempo e natureza da criança. Quando Papa-Capim veio ao mundo , seu pai observava o voo de belos passarinhos. Seu nome não é só uma homenagem à ave, mas também sinônimo de liberdade. Corajoso, sonhador e comprometido com a proteção do meio ambiente, Papa-Capim é representado pela pele parda, o corte de cabelo em formato de tigela, o uso de arco e flecha e a oca como sua morada principal. Sem representar um povo indígena específico , sabe-se que o personagem vive em uma aldeia

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localizada na Bahia e brinca, experimenta, trabalha, descobre e aprende com os diversos seres que ali habitam: outras crianças, o pajé, seus pais, os animais, as árvores e as plantas. Apesar da tenra idade estima-se que assim como o restante da Turma de Mauricio de Sousa ele também tenha sete anos - Papa-Capim desfruta de uma permissividade quase sem limites, aventurando-se pela aldeia, pela mata e pelos rios. Cafuné e Jurema, seus fiéis companheiros, contribuem para sua valentia. O trio denuncia as ações do homem branco, constantemente retratado como o vilão e destruidor da harmonia entre os povos nativos e a natureza. A observação dos homens e das mulheres adultos é um dos princi pais modos de aprendizagem dos curumins e das cunhatãs. Durante a caça, a pesca, a escuta atenta às histórias do pajé, a confecção de adornos e o cuidado com os recém-nascidos, a aldeia se torna a própria escola. A infância de Papa-Capim longe dos centros urbanos, das regras impostas pelos mais velhos, da educação formal e dos brinquedos produzidos industrialmente, é apenas uma parcela da variedade

de infâncias indígenas. “A história do povo brasileiro é contada a partir de um ponto de vista único e a Mauricio de Sousa Produções (MSP) não escapa disso, por mais que haja um esforço. Temos que consumir autores indígenas, aqueles que vivenciam na própria pele. A literatura é importante para trazer essas vozes à tona e um bom instrumento de formação de consciência e de pertencimento”, explica Daniel Munduruku, escritor e professor paraense.

Por uma outra percepção da história Quando o filósofo Walter Benjamin (1892 - 1940) escreveu as Teses sobre o conceito da história, ele deixou claro que o dever de todo historiador - principalmente o materialista histórico - é escovar a história a contrapelo. Escovar a história a contrapelo significa buscar a contranarrativa dos vencidos, ou seja, contar a história do ponto de vista dos povos explorados. Em um estudo sobre as proposições de Karl Marx (1818 - 1883) e Friedrich Engels (1820 - 1895),

Benjamin expôs que a classe dominante não só exerce o poder pela economia, mas também pela produção cultural. “A empatia com o vencedor beneficia sempre os dominadores. Isso diz tudo para o materialismo histórico. Todos os bens culturais que o materialista histórico vê tem uma origem sobre a qual ele não pode refletir sem horror. A cultura não é isenta de barbárie, não o é, tampouco, o processo de transmissão da cultura”explica Benjamin nas Teses sobre o conceito da história.

1Hegemonia cultural é um conceito formulado por Antonio Gramsci para descrever o tipo de dominação ideológica de uma classe social sobre outra

A contribuição do penmento benjaminiano volta-se para o comprometimento na construção de horizontes interpretativos que privilegiem os saberes acumulados durante a longa luta dos povos oprimidos. O autor nos chama atenção para o processo de produção de cultura entre as classes antagônicas, em que a cultura dos vencidos é negligenciada e propaga-se o discurso hegemônico1. A própria educação formal pode ser um forte espaço de doutrinação da ordem hegemônica como ordem natural inalterável, como explica Daniel Munduruku: “A escola, por meio do Dia do Índio, continua reproduzindo a visão do colonizador. Não podemos ficar presos em pré-conceitos e enfeitar as crianças no dia 19 de abril. O Dia do Índio deve acabar e ser substituído por ‘Dia da Diversidade Indígena’. A representação do ‘índio’ evoca imagens racistas e levianas contra os povos indígenas”. O desafio encontra-se em escrever a história no sentido contrário para que a cultura dos vencidos não seja apagada e se desprenda do conformismo que as ameaça. Para escapar das amarras do determinismo biológico, personalidades

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indígenas têm demonstrado que os 305 povos e as 274 línguas indígenas existentes no Brasil não são homogêneos e muito menos vivem estagnados no passado. “Os educadores devem mostrar a verdadeira cultura indígena, para que a criança indígena que vive no centro urbano não seja excluída e para que a criança não-indígena não reproduza estereótipos. Nós estamos em todos os espaços e não podemos nos afastar da nossa ancestralidade”, lembra Ingrid Sateré Mawé, jornalista e professora. Sabendo que a história tem vencedores, mas que os ganhos históricos vêm dos vencidos, o que diriam as crianças indígenas se pudessem escovar a história a contrapelo?

uma das edições do projeto Graphic MSP e exploraas essências dos personagens em outro patamar. Além do hábito de tomar banho, talvez pudéssemos aprender a respeitar nossas crianças com os povos originários. “Trate os povos indígenas com respeito. Nós conhecemos muito pouco das suas culturas e vejo que nosso papel como autores e ilustradores é utilizar as histórias em quadrinhos para ampliar a visão dos leitores e apresentá-los ao novo”, analisa Renato Guedes, ilustrador da graphic novel Papa-Capim - Noite Branca2.

Influenciados pelo histórico de dominação, intolerância e incentivo ao preconceito, muitos povos indígenas passaram a ocultar suas identidades étnicas e migraram para os centros urbanos, sendo relegados às periferias. Enquanto não há avanço nas políticas públicas destinadas a esse grupo, cabe - muitas vezes - à classe artística denunciar o descaso destinado àqueles que chegaram aqui muito antes de nós. “Eu acredito na função social da literatura e das artes no geral. Eu tive a oportunidade de trabalhar

com um personagem que me possibilitou abordar assuntos que devem ser tratados. Se você tem um dom ou uma oportunidade, use-os para tentar tor nar o mundo um lugar melhor”, conta Marcela Godoy, roteirista de Papa-Capim - Noite Branca. Edson Itaborahy, roteirista da MSP, apontou que Papa-Capim está passando por uma reestruturação, com o objetivo de trazer uma visão atualizada sobre o personagem e os povos nativos e inspirar os leitores a se abrirem a novas diversidades e modos de ser. O represen-

tante dos indígenas na Turma agora terá contato com pessoas dos centros urbanos, automóveis e tecnologias, sem aquela típica imagem de estranhamento. Que assim como o passarinho Papa-capim-capuchinho entoa seu canto de liberdade no Brasil, na Bolívia, na Colômbia, no Equador, no Paraguai, no Peru e na Venezuela, a profecia de Eduardo Galeano não se desfaça: que as crianças latino-americanas continuem nascendo e reivindicando seu direito natural de ter um lugar ao sol nessas terras esplêndidas.

Deixai-me viver A lua brilhava imponente no céu quando os Noites Brancas chegaram na al deia. De arco e flecha na mão, Papa-Capim clamou ao Pai Titiriwe, espírito protetor da noite, que fizesse de si um guerreiro. Em mais uma história ao lado de Cafuné e Jurema, o inimigo continua o mesmo. Adaptado para uma narrativa de terror, o quadrinho compreende uma

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2 A fala da entrevistada relaciona-se com o pensamento de Gramsci ao demonstrar que os intelectuais devem se organizar para a libertação das classes exploradas

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TURMA DA MÔNICA EM:

VALORIZAÇÃO DA REPRESENTATIVIDADE NEGRA

TEXTO Gabriela Ferreira IMAGENS Reprodução

Jeremias, o primeiro personagem negro na Turma da Mônica, e seu importante papel para as crianças no cotidiano escolar

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H Há mais de 50 anos, o legado de história em quadrinhos criado por Mauricio de Sousa, traz histórias de diversão, ensinamentos, educação, respeito, igualdade, questões raciais; podendo até proporcionar a experiência das crianças se identificarem e se imaginarem dentro dos contos. Hoje em dia, é frequente e crescente a divulgação de informações sobre a questão racial, e de ideias sobre a valorização do negro e da cultura negra. Conflitos raciais são presentes nas escolas, geralmente tratados no dia a dia como casos isolados, mas podem até mesmo atrapalhar relações dentro de casa com familiares e no trabalho. Em uma das primeiras histórias criadas por Mauricio de Sousa, em 1960, na revista Zaz-Traz, o primeiro personagem negro e um dos um dos amigos mais antigos da Turma da Mônica foi criado; o Jeremias. Um personagem

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talentoso, sonhador, conhecido por sua perspicácia e fome de aprender. Famoso pelo seu boné vermelho, pois, tem vergonha de mostrar sua quase falta de cabelo e os fios crespos, é um dos personagens mais velhos do grupo, fazendo parte da Turma do Bermudão, junto com o Titi, Manezinho e Franjinha, que se acham os descolados por estarem na pré-adolescência. A origem de Jeremias aconteceu em 1980, na quinta edição, quando seu tataravô, Jeremim, um príncipe africano que vive em liberdade é sequestrado e feito de escravo, mas que continua lutando por sua vida livre. O personagem de Jeremias usava as características de Blackface, para retratar negros de forma exagerada, iniciada no teatro com o foco de mostrar a clara diferença racial. O termo surgiu das maquiagens adotadas por atores caucasianos que interpretavam personagens pretos. Atualmente, isso é visto como uma caracterização racista. Com o passar dos anos, portanto, Jeremias perdeu essas características, assim como outros personagens pretos, e foi aparecendo mais nas revistas da “Mônica”, demonstrando o poder de sua histó-

ria, ganhando mais espaço e mantendo o rostinho fixo até hoje. Em 2018, foi lançado o Jeremias - Pele, que mostra sua forma de lidar contra o racismo, a dor, a superação, a preparação para a vida e a luta contra este preconceito. Nos desenhos, ele é um dos melhores alunos da classe, tem vários amigos e é muito feliz ao lado dos pais. Até que Jeremias encara pela primeira vez o preconceito racial,

que acontece em um dia na escola quando sua professora apresenta para os alunos a atividade de pesquisar sobre certas profissões designadas em aula e apresentá-las. Aos colegas, a professora define profissões como médica, ator e advogado; para Jeremias, a de pedreiro. Jeremias sugere pesquisar sobre astronautas. Enquanto os colegas de sala riem, a professora não tenta intermediar a situação e ainda completa

que astronauta é uma profissão muito incomum. Vendo essa representação nos quadrinhos, crianças negras podem criar uma auto imagem positiva, desenvolver sua personalidade e autoestima; é uma questão fundamental perante a possibilidade de preconceitos e discriminações em ambientes escolares. “Quando pequeno, na minha sala, sempre a maioria eram colegas brancos, nunca me maltrataram, mas de começo não me sentia totalmente confortá-

tavel. Quando comecei a ler a Turma da Mônica gostava bastante, mas realmente não me sentia retratado, quando vi o Jeremias nos quadrinhos me senti mais acolhido”, comenta Arthur Ataíde, estudante de 15 anos. Jeremias, o personagem, tenta lidar com este tipo de conflito enquanto vivencia situações de racismo tanto na escola, da parte dos colegas, quanto nas ruas, da parte de conhecidos e desconhecidos. Não se pode, no entanto, menosprezar a im-

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portância do único apoio que ele recebe, dos familiares. “A maioria dos brasileiros são negros, ter essa representatividade com este personagem em um dos livrinhos mais lidos é muito legal. É bem delicado quando uma criança sofre algum preconceito, muitas vezes de começo ela nem entende o que está acontecendo e o porquê daquilo. E quando ela entender pode não saber lidar, pode guardar para si mesmo e não comentar, ficando ali sozinho e sofrendo. Crianças se baseiam muito em desenhos, livrinhos, brinquedos, etc., ter ali o personagem negro pode com certeza ter acolhido muitas crianças fazendo-as pensar ‘não sou o único’ e, mostrando o apoio dos pais, também pode dar um estralo para a criança conversar com quem ela confia” ,finaliza Louise Dias, psicóloga.

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TURMA DA MÔNICA EM:

Afinal, qual é o futuro da Turma da Mônica?

Mudanças, expectativas e pandemia de Covid-19 marcam um novo capítulo no universo de gibis mais famoso do Brasil

TEXTO João Vitor Araújo IMAGENS Reprodução

A Nos últimos anos, a Turma da Mônica tem se mobilizado bastante para se encaixar nos contextos do tempo presente. Um desses esforços, por exemplo, é a introdução de uma linguagem não-violenta, ou melhor, a retirada de palavras que incitam braveza, nudez e criminalidade. Hoje em dia, ninguém mais se depara com os vizinhos mirins do bairro do Limoeiro xingando uns aos outros, muito menos pichando os muros da cidade com termos preconceituosos e nem com o bumbum de fora. Mesmo em relações quase que sempre estabelecidas a partir de brigas, como era o caso do Cebolinha e da Mônica, até

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as provocações estão mais “carinhosas”: ninguém mais bate em ninguém e como castigo, o menino que troca o “R” pelo “L” tem que refletir sobre o que aprontou. Essas mudanças, é claro, afetaram a liberdade criativa dos autores, porém, João Marcos de Mendonça, roteirista da MSP, diz que isso é previsível e comum: “[...] Uma coisa que o Mauricio sempre fala e outras pessoas falam também é que um dos segredos da longevidade do sucesso da Turma da Mônica é que a turminha sempre fala a língua do dia e da hora. Eles sempre estão vendo o reflexo do seu tempo. Na década de 1970, era um tipo de história; na de 1980, outro, os 1990 e os anos 2000… eles seguem acompanhando essas mudanças da sociedade e as histórias acabam refletindo isso. Eu considero os quadrinhos como uma forma de expressão artística e ela acaba refletindo o tempo que a gente vive”, explica. De fato, não se sabe até que ponto tais feitos influenciam no tato das crianças e suas comunidades, porém bons exemplos sempre serão bem-vindos. Mas ainda há expectativas a serem atendidas, essencialmente as que foram criadas pelos fãs. Com os sucessivos lançamentos

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de novas mídias, tais como a Turma da Mônica Jovem, as Graphics MSP e os filmes, os admiradores e consumidores do universo não param de sonhar e buscar terem suas vidas cada vez mais representadas. Um dos maiores sonhos do criador de conteúdo Daniel Miranda (Negro Geek), é de que a identidade negra seja mais explorada. Entretanto, essa sondagem precisa ser consciente. “Por exemplo, me incomodaria muito uma pessoa branca falando sobre racismo do ponto de vista da Milena. [...] Óbvio, não estou dizendo que só pessoas negras podem escrever sobre a Milena e só pessoas com deficiência podem escrever sobre um personagem cadeirante ou sobre a

Dorinha. Não é isso. Quando eu digo que precisa ter cuidado, estou dizendo que tem que ter pesquisa, ter consultores que consigam ajudar a trazer uma história que esteja conectada com a realidade”, opina. Pandemia, expectativas e realidade Descoberto no final de 2019, a mutação genética do vírus Sars abalou o mundo. Planos que antes haviam sido feitos foram adiados devido à pandemia de Covid-19, que muitos no início acreditaram ser apenas uma gripe, mas que se provou muito mais perigosa - ainda mais com a facilidade na qual o vírus consegue ser transmitido Como se não bastassem os adiamentos de

alguns lançamentos, os profissionais responsáveis por entregar, de fato, as histórias para o público passaram a enfrentar um grande bloqueio criativo movido pela falta de interação com o público. Para João Marcos, cartunista independente e roteirista no MSP, o contato físico, especialmente com as crianças, faz muita, mas muita falta. Acarar essas incertezas trazidas pela crise ainda é uma batalha em que tenta abstrair e tirar o melhor dessa situação. “A gente (roteiristas) já trabalha em home office mas a gente sempre se encontrava em São Paulo, na medida do possível, nas reuniões. Isso faz muita falta. Ao mesmo tempo, eu tinha que tentar abstrair isso tudo e tentar pen-

sar nesse mundo lúdico da criança e escrever as histórias”, completa. Outra parte prejudicada pelo atual contexto foi o braço de espetáculos, a MSP Ao Vivo, por exemplo, fundou o Parque da Mônica e administra shows ao redor do mundo, com sucesso nas principais bilheterias. A aposta mais recente, intitulada Brasilis, é uma apresentação circense que se inspira em contar a história do Brasil de uma maneira única, apoiada nos pilares da diversidade do país. Infelizmente, essa e as mais de 80 exibições precisaram ser adiadas, pelo menos até o fechamento desta reportagem. Os fãs da criançada do Limoeiro vivem de sonho muito bem atendidos pelos

colaboradores da MSP, obrigado. As expectativas mais discutidas nas redes sociais dos estúdios permeiam entre a série live-action estrelada por Jeremias, personagem principal das Graphics MSP Pele e Alma, elaboradas por Rafael Calça e Jefferson Costa e sucesso de vendas, além de reedições que exploram personagens e sub-universos secundários da turminha e também retratação de temas cujo debate ainda são vistos como tabus - sexo é um deles. Todas essas esperanças são essenciais para o futuro que Mauricio de Sousa e sua equipe continuem a traçar o melhor dos planos infalíveis já feitos.

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EXPEDIENTE

Beatriz Contelli, 21 anos, graduanda de Jornalismo na Universidade Anhembi Morumbi e tão comilona quanto a Magali

Gabriela Ferreira, 22 anos, graduanda de Jornalismo na Universidade Anhembi Morumbi, animada e aventureira como Milena

João Vitor Araújo, 21 anos, graduando de Jornalismo na Universidade Anhembi Morumbi e ama traçar planos infalíveis como o Cebolinha

Nathalia Ribeiro, 22 anos, graduanda de Jornalismo na Universidade Anhembi Morumbi e com um temperamento tão complicado quanto o da Mônica

Victória Gomes, 21 anos, graduanda de Jornalismo na Universidade Anhembi Morumbi, atenciosa e carismática como a Rosinha

Ilustrações da equipe - Wiliiam Ianeri Projeto gráfico e diagramação - Raul Galetti Arte do sumário e linha do tempo- Victória Gomes

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