EXPEDIENTE Milton Carlos de Mello (Tupã) Prefeito Marcos Vinha Vice-prefeito José Fábio Sousa Nougueira Secretário Municipal de Cultura e Turismo Sueli Pereira de Castro Assessora Seleção de Textos Arlette Piai Carlos Francisco Freixo Organização / Revisão Gilmara Cristina de Almeida Oliveira Coordenação Geral Telma Aparecida Mendes Capa Cláudio Wieser Diagramação Cláudio Wieser
V Concurso Literário de Presidente Prudente Pres. Prudente, Impress, 2011 200 páginas Tiragem 2.000 1. Pres. Prudente - Literatura Brasileira 2. Pres. Prudente - Poesia 3. Pres. Prudente - Prosa
CDD 869.9
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V CLIPP CONCURSO LITERÁRIO DE PRESIDENTE PRUDENTE
Prefeitura Municipal de Presidente Prudente
Secretaria Municipal de Cultura e Turismo Biblioteca Municipal Dr. Aberlardo de Cerqueira César
Presidente Prudente 2011
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PREFÁCIO
Nós, da Secretaria Municipal de Cultura e Turismo de Presidente Prudente, acreditamos em várias formas de promover cultura, seja na música, dança, cinema, teatro, artes plásticas ou literatura. Formar público talvez seja nosso maior desafio. Na literatura, mesmo sabendo que podemos fazer melhor sempre, temos tido um crescimento considerável quando nos referimos à palavra escrita. Nosso CLIPP, uma forma de antologia poética ou de crônicas comprova o aumento a que nos referimos. Triplicou-se o número de autores inscritos. Outra prova é a realização do 2º Salão do Livro. Sucesso de público, crítica e um evento que nos deu uma enorme satisfação. São ações pequenas mas que tem o objetivo de despertar no indivíduo o prazer da literatura. Mas isso não basta, além de tentar fazer melhor, podemos também fazer mais e fizemos em 2011, nossa mais nova idealização, a Biblioteca Móvel, desejo de muitos anos enfim realizado estará aberto à visitação durante o Salão do Livro. Há muito ainda o que fazer. Queremos fazer. Não para deixar o nome na história como era o pensamento na Grécia antiga, mas para termos uma qualidade de vida que proporcione cultura em todos os níveis, para todas as classes e agora, para todos os bairros. Se queremos deixar algo na história que seja a marca de nossa cidade: “aqui, cultura é coisa séria”. José Fábio Sousa Nougueira Secretário Municipal de Cultura e Turismo
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Esta obra é resultado de um projeto de grande importância, executado com dedicação por todos os envolvidos. Ratifico a necessidade de estimular o cidadão, não só a consumir literatura mas, também, a produzí-la. Não há a pretensão de descobrir um novo Drummond ou Pessoa, mas revelar indivíduos com talento na escrita e que em outros tempos não tiveram a oportunidade de ver seus textos publicados. Projetos como esse ajudam a escrever a história de uma cidade. Melhor do que todas as palavras que possam ser ditas, é ler, apreciar, viajar... Verão que este livro vale a pena, sobretudo porque foi escrito por nossa gente, escritores daqui e de outras terras.
Milton Carlos de Mello Prefeito
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ÍNDICE EXPEDIENTE...............................................................................................Pág. 02 FICHA TÉCNICA........................................................................................... Pág. 03 PREFÁCIO..................................................................................................Pág. 05 V CLIPP.................................................................................................... Pág. 06 Em tempo............................................................................................... Pág. 147
CRÔNICAS E POESIAS: A COR DO SONHO - Ana Cristina Mendes Gomes.................................................... Pág. 11 A ESPERA- Fatima Soares Rodrigues...................................................................Pág. 12 A FARSA - Paulo Franco..................................................................................Pág. 13 Pág. 14 A GAIOLA - José Rubens Shirassu............................................................................ A QUANTO O AMOR OBRIGA- Tiago Ferreira da Cunha Marcondes................................Pág. 17 A RUA DO DIA SEGUINTE - Paulo Franco.............................................................. Pág. 18 A VIDA É BELA - Camões Ribeiro do Couto Filho.................................................... Pág. 19 ABRE-TE SÉSAMO - Tchiago Inague Rodrigues....................................................... Pág. 20 AFRODITE - Tiago Ferreira da Cunha Marcondes....................................................Pág. 21 ALMA DE DIADORIM - Perpétua Conceição da Cunha Amorim..................................... Pág. 22 Pág. 23 ALMAS GÊMEAS - Dirce Meira França Caldeira............................................................. AMEI SÓ- Davi Thomaz de Aquino Raimundo.........................................................Pág. 24 AMOR - Carlos Eduardo Pereira Theobaldo...........................................................Pág. 25 AMPLIAÇÃO - Gisele Galindo do Vale................................................................. Pág. 26 ANDARILHA - Dirce Soares de Macedo................................................................ Pág. 27 AO TELEFONE - Klaison Gustavo Simeoni............................................................ Pág. 28 AS GAIVONDAS - Roque Aloisio Weschenfelder...................................................... Pág. 29 AS MÃES DA PRAÇA DE MAIO - Eder Quirino Cavalcante........................................... Pág. 30 BALALAICA - Tatiana Alves Soares Caldas............................................................ Pág. 31 Pág. 32 BENJAMIN RESENDE, RAIZ FORTE - Vanessa Resende................................................. BUSCA FRENÉTICA - Geraldo Trombin.................................................................Pág. 33 CASA COM SOL - Sérgio Bernardo......................................................................Pág. 34 CASA DE PECADO - Reginaldo Costa de Albuquerque...............................................Pág. 35 CASA VAZIA - Antonio Carolino Bezerra...............................................................Pág. 36 CAVALINHO DE ARGILA - Juca Macedo................................................................ Pág. 37 CHAPÉU DE PALHA- Luis Carlos do Amaral........................................................... Pág. 38 CHOVE,CHUVA! - Alzira Negri Costa.................................................................. Pág. 40 CICATRIZES - Cleusa Cardoso.......................................................................... Pág. 41 COMPANHIA DE UMA LÁGRIMA - Daniel Alves da Silva.............................................. Pág. 42 CONTANDO ESTRELAS - Tatiana Alves Soares Caldas............................................... Pág. 43 CONTRAPONTOS - Edelson Rodrigues Nascimento.................................................. Pág. 44 COTIDIANO - Robson Yokota............................................................................Pág. 45 COVARDIA ALEGÓRICA - Sarah Nadim de Lazari..................................................... Pág. 46 CRIANÇAS NO CAMPO - Elieni Cristina da Silva..................................................... Pág. 47 CUIDAR DA VIDA É UMA FANTASIA - Paulo Eduardo Mauá.......................................... Pág. 48 CUPIDO - Maria Apparecida S. Coquemala.......................................................... Pág. 50 DE TUDO QUE HÁ - Silvanilda Thethe da Silva...................................................... Pág. 52 DE TUDO UM POUCO - Áurea Aparecida da Silva................................................... Pág. 53 DEFENESTRO - Davi Thomaz de Aquino Raimundo.................................................. Pág. 54 DEPRESSÃO - Maria Apparecida S. Coquemala...................................................... Pág. 55 DESAGUOU - Geraldo Trombin......................................................................... Pág. 56 DESENHOS - Davi Thomaz de Aquino Raimundo.....................................................Pág. 57
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DESORDEM - Valdir Catarino Pessoto..................................................................Pág. 58 DESPEDIDA DESNECESSÁRIA - Gabriela da Cruz Evangelista....................................... Pág. 59 DESPREZO - Paula Renata Hanke da Silveira.........................................................Pág. 60 DESTINO - Sérgio Edvaldo Alves........................................................................Pág. 61 DESVENTURAS - Juliana Rizzo Gerbasi................................................................Pág. 62 DEUS EXISTE - Tacito Cortes Carvalho e Silva........................................................Pág. 63 DIA DE FEIRA - Aparecida Gianello dos Santos.......................................................Pág. 64 DE FAST-FOOD AO FAST-TUDO - Geraldo Trombin................................................... Pág. 65 DOCE AUSÊNCIA - Nathalia Germiniani Silva.........................................................Pág. 66 DOCES LEMBRANÇAS - Iracema Caobianco........................................................... Pág. 67 DÓ-RÉ-MI - Roque Aloisio Weschenfelder.............................................................Pág. 68 ELE HÁ DE VOLTAR - Leonícia Aleixo Mussa..........................................................Pág. 69 ENCONTROS ROMÂNTICOS - Marcia Teixeira.........................................................Pág. 70 ENFIM, AS LETRAS - Jussara Athayde Albertão...................................................... Pág. 72 ENTRE OLHOS E CELAS - Júnior Cesar Santiago..................................................... Pág. 73 EPITÁFIO AOS OLHOS DELE - Danielle Martins Santos.............................................. Pág. 74 ESCRITA - Fátima Soares Rodrigues................................................................... Pág. 75 ESMERALDAS - Plínio César Giannasi..................................................................Pág. 76 ESPELHO DO TEMPO - Jussara Athayde Albertão....................................................Pág. 79 ESTRO - Ana Claudia de Souza Oliveira...............................................................Pág. 80 FELICIDADE - Tacito Cortes Carvalho e Silva.........................................................Pág. 81 FIQUE ATENTO - Sebastião Emidio Ferraz.............................................................Pág. 82 FLOR DE AÇO - Pedro Gomes Nogueira Filho.........................................................Pág. 83 HOMENS - BOMBA - André Kaires.......................................................................Pág. 84 IMAGEM BUCÓLICA - Jussara C. Godinho..............................................................Pág. 85 IMPACIÊNCIA - Pedro Felippe Bernardi Menossi......................................................Pág. 86 INEXISTÊNCIA INSISTENTE - Paula Renata Hanke da Silveira...................................... Pág. 87 JÁ QUE ESTAVA NO CONTRATO - Violeta Ayumi Teixeira Araki.....................................Pág. 88 JUDEU - Emanuele Pires Canela da Silva.............................................................Pág. 90 KRETEK - André Telucazu Kondo.......................................................................Pág. 91 LACUNA - Ana Cristina Mendes Gomes................................................................Pág. 93 LEITE EM PÓ - Alzira Negri Costa.......................................................................Pág. 94 LIÇÃO DE AMOR - Isolda de Moraes Braga............................................................ Pág. 95 LUTAS URBANAS - Sérgio Pereira de Souza...........................................................Pág. 97 MÁGICO DESPERTAR DE PRIMAVERA - Jussara C. Godinho..........................................Pág. 98 MEDONHO - Tatiana Alves Soares Caldas..............................................................Pág. 99 MEU GRANDE AMIGO... - Rosimeire Domingues Carrasco........................................ Pág. 100 MULHER EM DESCANSO - Carlos Bruni Fernandes..................................................Pág. 101 MUSA - Juca Macedo................................................................................... Pág. 102 NAS ASAS DA INOCÊNCIA - Danielle Martins Santos.................................................Pág. 103 NATAL NA MANGUEIRA - Maria Aparecida Girotto Rodrigues..................................... Pág. 104 NATUREZA MORTA - Fatima Soares Rodrigues...................................................... Pág. 105 NEANDERTHAL - Sérgio Bernardo.................................................................... Pág. 106 NEM TUDO O QUE RELUZ É OURO - Joachim Neander............................................ Pág. 107 NO CANTO DIREITO - Robson Yokota.................................................................Pág. 109 NOSTALGIA DOS TRENS DA SOROCABANA - José Carlos Daltozo................................. Pág. 110 NUNCA MAIS - Aurélio Gimenez...................................................................... Pág. 112 O ASSASSINATO DO ÍNDIO PATAXÓ - Umberto Catarino Pessoto..................................Pág. 113 O HOMEM DE COSTAS AO ESPELHO - José Rubens Shirassu...................................... Pág. 114 O HOMEM DO REALEJO - Camões Ribeiro Couto Filho............................................ Pág. 116 O IRMÃO DA VELHINHA DE TAUBATÉ - José Carlos Botelho Tedesco............................ Pág. 117 O JOGO DA PACIÊNCIA - Aparecida Gianello dos Santos.......................................... Pág. 118 O MUNDO PERFEITO - Luís Carlos do Amaral....................................................... Pág. 119 O TEMPO (OU A FALTA DELE) - Bianca Crepaldi Mendes......................................... Pág. 120
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OBRIGADO A SER FELIZ - Carlos Bruni Fernandes...................................................Pág. 121 PARALELAMENTE - Éder Quirino Cavalcante....................................................... Pág. 122 PATCHWORK - Perpétua Conceição da Cunha Amorim.............................................Pág. 124 PÉS DESCALÇOS - Bianca Crepaldi Mendes......................................................... Pág. 125 POESIA DO CAMINHO - André Telucazu Kondo......................................................Pág. 126 REENCONTROS - Ruth Campos........................................................................Pág. 127 Pág. 129 REINO DA POESIA - Roque Aloisio Weschenfelder......................................................... REJEIÇÃO - Tatiana Alves Soares Caldas............................................................ Pág. 130 REMINISCÊNCIAS - Suley Mara Rodrigues............................................................Pág. 131 SAUDADES ESTRANHAS - Paula Renata Hanke da Silveira........................................ Pág. 132 SER POETA II - André Luiz Alves Caldas Amora..................................................... Pág. 133 SOBRESSALTOS - Áurea Aparecida da Silva......................................................... Pág. 134 SOU- Bianca Crepaldi Mendes........................................................................ Pág. 135 TRANSE D’ALMA - Sinézio de Souza................................................................. Pág. 136 TRÊS DIMENSÕES - Camões Ribeiro Couto Filho................................................... Pág. 137 TRÊS PESSOAS FELIZES - Jussara Athayde Albertão............................................... Pág. 138 TRINTA E QUATRO - Sérgio Edvaldo Alves...........................................................Pág. 139 TU AMAS - Luiz Aparecido de Lima.................................................................. Pág. 140 TURBULÊNCIA - Tatiana Alves Soares Caldas....................................................... Pág. 141 UM DIA NA VIDA DE G PRADO 2 - Luís Fernando Nogueira....................................... Pág. 142 UM DIA SEM SOL - Jussara Athayde Albertão....................................................... Pág. 143 VOCÊ - Claudia Maria Mungo......................................................................... Pág. 144 ZÉ CASMURRO - Sarah Nadim de Lazari............................................................ Pág. 145
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Ana Cristina Mendes Gomes
A COR DO SONHO É uma aliança virgem que convida ao enlace áureo que a batalha esquece Perde terreno quando a guerra aquece a desbotar o viço que é da vida... A cor do sonho é a humanidade unida É claridade que nunca anoitece... Seres serenos onde o azul trepida são luzes brancas em eterna prece Quando as nações se unirem, ai quem dera! Sem pesadelos, sem qualquer quimera... Terá o planeta Terra a cor capaz! Se de insônia o mundo está doente, alvo é o sonho de toda essa gente... Que despertemos pra viver em Paz!
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Fátima Soares Rodrigues
A ESPERA
Silenciar interno Dos desejos de ímpeto Que nos arremetem Ao nada e Frustram a resposta Ao tudo. Gestar sereno Do combate Às aflições Que adiam As explicações. Vitória sobre o tempo Que nos devora voraz E nos faz compreender O que é eternidade.
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Paulo Franco
A FARSA Em meu silêncio imaginário o incômodo de alguma coisa que se quebrou por inteiro violando as aparências que adornavam os fatos. No coração o tempo dói como em tortura o prisioneiro alucina-se e delata o que não viu e delator assume pelo crime que não cometeu. E de ilusões desilusões são fomentadas. Desvencilho-me dos sonhos e sonolento esqueço das sobrevivências incompartilháveis que me detiveram no que nunca fui. Falácias poéticas que deterioram metáforas invisíveis nas figuras das palavras que não foram ditas. Sonhos de vidro que se rendem à normalidade do dia enquanto que parafernalhas metafísicas determinam a cada verso a poesia necessária que jamais traduz o indizível do que dói no coração que é delator por dentro enquanto que por fora pela face em farsa ri.
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José Rubens Shirassu Júnior A GAIOLA Noite entre arestas das grades mas viva espremida noite vida entre barras ferros, mágoas, mas viva Noite do medo escorregando a coluna vertebral e sangrando como um nó cortado de carne mas viva. Noite de meta-fora da jaula precisa é corpo de lembranças a noite aninhada gaiola da noite de linhas retas, das entrelinhas noite que absorve noite flechafechada A gaiola é pesada ao cair na noite grande. A gaiola da noite no espelho e sua aventura espessa a noite na gaiola sobre as pálpebras, acesa. A gaiola da noite devoradora da forma. Inteira noite gaiola para sempre e para sempre estilhaçada. Noite em giro círculo fechado e mais que fechado, fechado, até os extremos da parede
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se tocarem para celebrar e lembrar, ecos dos gritos parados no ar. Noite na gaiola marcada a ferro, lado esquerdo das coisas. Noite com a medida e peso, Simétrica noite vinculada forjada nos metais, braseiro da alma de pássaro, impressa em alto relevo em carne viva, a identificação acesa rápida mordida dolorida voraz do tempo, noite flechafechada, dentes de chumbo da noite grande, face do medo de ontem, no obscuro desfiada, e afiada no silêncio das lâminas, e nas urdiduras da noite afiada da fala. Dentro da noite da gaiola o rosto se recolhe dentro da noite da gaiola o corpo se assume onde o precário coração palpita entre grades. Noite do corpo da gaiola não da imagem do corpo. Do corpo exposto às tatuagens de viver do azul da cor do mar, das ruas, avenidas, ao livre espaço ao sereno. E as quimeras e a cela de estar sem identidade, as leis, os códigos, as regras, limites do institucionalizado cativeiro. As asas abertas a língua solta a semente da fala a língua serpenteia o salto
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o buraco da história, ilumina a quem se cala. A língua celebra a asa da lavagem da palavra até o osso. A língua lambe os cortes das asas na cartilagem da palavra. Mas a língua lembra o âmago corpo, o amargo verbo voar das asas dos pássaros. A língua se bifurca na estória desta gaiola Fundo poço do calabouço. E rasteja antes e depois das trevas, das frestas, entre colunas amareladas, da alta noite. Habita cada momento que existe dentro do cubo. Ao pássaro preso se nega A condição acabado. Não é um pássaro que voa: é um pássaro incubado sobra-lhe uma roupa enjeitada que lhe decepa as asas. O pássaro preso é um pássaro recortado em seu domínio: não é o dono de onde mora, nem mora onde é inquilino.
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Tiago Ferreira da C. Marcondes
A QUANTO O AMOR OBRIGA? Para Gabriel Garcia Marquez
Obriga a navegar por mares incógnitos; A visitar territórios transitórios, e desabitados, A travar relações com seres esplêndidos, Para resistir à febre nas dunas de Cingapura. E sobreviver à pelagra na Pérsia, Ao escorbuto na Malásia, Aos terremotos na Sicília, Ao beriberi no Japão, À peste bubônica em Madagascar, À lepra em Alexandria, E aos naufrágios no estreito de Magalhães. É preciso iluminar os territórios escuros da imaginação Com um perfume tênue de manjericão. Para conviver com o espanto da insônia, e do medo; Da ânsia aturdida de fugir, e ao mesmo tempo de ficar, Num silêncio exasperado, De um sentimento repousado e profundo, De uma felicidade arrebatada e momentânea, Da solidão aterradora das noites secretas. Para que o coração, de hermético e hostil, Se transforme, em cúmplice e feliz, E se mantenha num estado de inspiração seráfica, Desbaratado num manancial de obscenidades ternas. Para que o coração guarde para todo o sempre, Desde os tempos imemoriais, uma só certeza: Que até para as estirpes condenadas a cem anos de solidão O amor não obriga a nada.
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Paulo Franco
A RUA DO DIA SEGUINTE A rua morna, a madrugada fria. No peito o apetite voraz de um coração que queima vitimado por aquilo que não vê. A procura, a alimentar a emoção caminha na velocidade das luzes que iluminam e não aquecem a ilusão, que tenta, mas nem sempre crê. Olhares estanques desfilam e não se olham entre os muros que cerceiam o porvir a algum lugar nenhum. Homens e coisas que se agrupam na cidade sonolenta que em desespero já não pode dormir. A rua do dia seguinte é a metamorfose do nada equivocadamente não se transformando em coisa nenhuma. O instante medieval, da pedra ao apocalipse, parece que se eterniza em uma internet de nerds e niilismos. A evolução sempre a um passo da bestialidade. E a poesia insiste insossa a sistematizar no metafísico o que é real de uma história que não pode ser descrita.
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Camões Ribeiro do Couto Filho
A VIDA É BELA Cada dia aumenta mais a legião dos estressados, dos nervosinhos que passam o sinal vermelho, furam fila, esbravejam com os caixas e atendentes. Esse tipo de gente lembra muito aqueles cães vira-latas, que perseguem os carros, latindo junto aos pneus e quando o veículo para, ele não sabe o que fazer. Se você faz parte desse tipo de gente, é melhor começar a mudar seu paradigma. Conheço um fato bastante interessante sobre isso. Uma pessoa ia todo dia a pé para o seu serviço, mas estava sempre apressada e todo santo dia chegava atrasada. Um sábio lhe deu o seguinte conselho: a partir de amanhã diminua a velocidade de seus passos pela metade. Ande devagar, olhe para as fachadas das casas, cumprimente as pessoas. Sinta o perfume das flores. Procure ouvir o pio dos passarinhos nas árvores. Essa pessoa fez o que o sábio mandou. Viu casas e lojas para as quais nunca notara, na sua pressa cotidiana. Não acreditou que passara a vida toda por aquelas ruas e nunca notara aqueles prédios, aqueles letreiros, aquelas fachadas. Percebeu que no topo de uma árvore havia um ninho e um passarinho orgulhoso cuidando de sua ninhada. Encontrou com um amigo que há anos não via e trocou um dedo de prosa. Ficou sabendo de um monte de novidades, que à noite contaria tudinho para a patroa. Teve tempo ainda de levar o filho até a porta da escola. Foi com ele caminhando, conversando, dando risada de besteirinhas, coisas sem importância. De repente, percebeu que há anos não ria tanto. E foi assim que essa pessoa, andando mais devagar, chegou mais depressa ao seu trabalho. Cumprimentou o porteiro, sorriu para as atendentes, ouviu o chefe educadamente e perdoou seu modo ranzinza de ser. Faltando uma hora para o fim do expediente ele já tinha terminado todas as tarefas do dia e teve tempo para organizar a agenda do dia seguinte. Voltou a pé para casa, feliz com o seu dia. Além do pão e do leite, comprou meia dúzia de rosas para a patroa. Ao chegar em casa, beijou a mulher, limpou a gaiola do passarinho e ajudou o filho nos deveres escolares. Depois do banho, convidou a mulher para sentar-se no portão de casa, tomando a fresca. Foi quando olhou para o céu e viu a mais bela lua cheia que jamais seus olhos avistaram. E aí percebeu que havia muito tempo que não olhava para o céu, que não contava estrelas como o fazia quando menino. Pegou a mão da mulher e sorriu o mais terno sorriso, dizendo para si mesmo: “Deus existe e a vida é bela”. E você aí, continua estressadinho ou como na velha canção, anda devagar por que já teve pressa?
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Tchiago Inague Rodrigues ABRE-TE, SÉSAMO Antes de iniciar esta crônica, posso dizer que ela já nasce de um modo diferente. Não tem como casa, meio de publicação, o jornal. Tem muita sorte, pois está inserida em uma antologia, dialogando com as diversas vozes em verso e prosa que aqui se encontram, nas páginas anteriores e posteriores da qual eu narro, compondo assim, uma unidade da obra, no intuito de cumprir com aquilo que se propôs. Como afirmei logo acima, é sortuda, porque seu destino final não é forrar o piso para pintar paredes, usá-la como papel de embrulhar produtos ou servir de local onde o cachorro da dona Maria faz xixi. Sina quase certa para as crônicas que diariamente são veiculadas nos jornais e que lá disputam espaço com matérias jornalísticas e publicidades de todos os gêneros e gostos, e que ao final do dia estão mortas, Tadinhas! E claro, as heroínas sobrevivem, guerreira olimpianas, lutam contra todos os desafios impostos pelos periódicos, mercado, autores e crítica e ganham como santuário o livro. Estas poucas estão investida sob o manto da Literatura e podem ser chamadas de arte. Genuinamente brasileira, mistura os fatos do dia a dia com a ficcionalidade . Pois as primeiras crônicas estão desde o descobrimento do Brasil, com os portugueses que para cá vieram. Querem um exemplo? A carta de descobrimento redigida por Pero Vaz de Caminha ao então rei de Portugal, Dom Manuel em 1500. Mas, é meu dever alertar que estes textos tupiniquins foram se transformando com o passar dos tempos e adquiriram este formato que nós conhecemos em meados do século XIX, com influência direta do folhetim. Leia as crônicas de Machado de Assis, é um dos grandes cronista daquele época, vale a pena. Posteriormente, ao entrar no século XX, surgiram outros, muitos outros cronistas que carregavam o binômio de jornalista-escritor. Entre eles destaco Rubem Braga, capixaba, tem sua obra literária marcada quase que exclusivamente por textos deste gênero, tecendo verdadeiras poesias em prosa. O atrativo da crônica é a possibilidade de extrair fatos do cotidiano, de objetos simples e comuns, falar sobre animais de estimação, descrever pessoas anônimas, ou seja, da vida rotineira, ordinária e dar uma importância significativa a elas através da escrita. E uma modalidade textual curta, subjetiva, não adota a impessoalidade, carrega embutida a crítica social e tem o intuito de afastar o leitor dos problemas cotidianos por alguns minutos em uma leitura agradável sobre os “causos” da vida ao correr da pena, bem aos termos de José de Alencar. A cada segundo todos nós somos consumidos. Em um sentido mitológico, Cronos é o tempo, aquele que devora os seres e as coisas. O termo crônica, do grego Khronos, como já foi dito, sofreu alterações, mas nunca se afastou de sua etimologia, pois ao escrever sobre o passado ou viajar para o futuro, este gênero resgata o tempo, o engana por um átimo e consegue, mesmo que de modo tímido, apreender o instante, é o flash das coisas simples do homem, em outras palavras, é o momento da vida pulsando, algo de mais humano que podemos carregar conosco; nossas pequenas histórias. E você deve estar se perguntando: e a bendita história? Cadê?
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Tiago Ferreira da C. Marcondes AFRODITE “ ... porque é assim mesmo, amor dói, é lindo e fodido e difícil e maravilhoso e extasiante e cansativo, exaustivo, agônico e longe de feliz para sempre.” Clarah Averbuck Para Agnes Não tens sono, também não tens versos. Só te lembras que ontem fizestes ficção com a boca, E tudo ainda está embaçado. És a que clamas vir a ser, a que manca por fraqueza, a fingida flor. Não és de agradecer, e, não sabes como, és feliz. Voltastes a ter 19 anos e tua juventude será para ti como veneno diluído em champagne. mas acima de tudo obrigado por existires! Hoje faz quinze anos que fostes violentada debaixo daquela escada. Fingias ler Oliver Twist, quando na verdade, sangravas pelos olhos. Sobraram apenas letras em tons de cinza, Cacos que junto aqui e ali e não dão um livro. Foi a dor de ser o que és que me tirou as cores dos dedos. E passei a deixar rastros escritos a carvão pela casa, na tua ausência. E teus trajes lunares sempre caíram como uma manta nesta minha casca rugosa. Nem sempre fostes pura; sempre escreves com serifas refinadas, Nascestes para ser artista plástica. - Mãe, quero ser artista. Pediu a menina... A bofetada não demorou nem dois segundos. Tinhas seis anos! Nem toda dor faz mal à pele. Um arcanjo me mostrou teu corpo, o mais harmonioso que ele já viu. Te chamam Afrodite e gostas de idolatrias, como uma divindade. Em retribuição por que então não me tocas com tuas asas?
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Perpétua C. da Cunha Amorim
ALMA DE DIADORIM Durmo sobre dumas Em paisagens lunares Amanheço em qualquer estação Levada pelo vento da noite Minhas vestes são de seda e sisal Nos cabelos prateados Trago adornos de penas de pardal Durmo nas veredas Em qualquer braço de rio Minha rede é tecida com embira Lavo-me em águas cristalinas Com uma toalha de vento Enxugo a minha sina Festejando secretamente Uma liberdade quase divina Corto meus desejos a foice Escondo-me em trincheiras de vidro Se me tocas lentamente Desmoçando os meus sentidos O sertão que desconheço revela-se aos olhos meus Sem temor desnudo o céu Arranco lua e estrelas E me perco nesse breu.
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Dirce França ALMAS GÊMEAS Num só momento Um único momento Eu te invento Te domino, te ensino A caminhar contra o vento Se a angústia é grande E te acalento Te cubro, te descubro Eu te domino Dominado estático Eu te fascino Se cai no abismo, eu caio contigo Sou teu amante Sou teu melhor amigo Se estás longe, me sinto em perigo se estás por perto, és o meu abrigo. Se dois corpos, não podem Um mesmo espaço ocupar O nosso amor contradiz, o que a ciência diz Somos um só corpo Não importa o tempo e o lugar Rompemos as barreiras Atravessamos fronteiras Fora da lei... Sem preconceitos, eu sei... Sem razão, sem noção... Eu me perco, nesta paixão. Somos um só corpo. Somos dois elos, que vivem, num duelo. Somos vencidos, pela dor amena. Somos a alegria plena Sou a sua vida. És a minha vida Somos almas gêmeas.
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Davi T. de Aquino Raimundo AMEI SÓ Meu amor, que foi tanto Meu amor que te amou tanto Foi meu... só meu... Tentei te dar, Te entregar Era amor maduro demais pra você Que tão imatura se iludia com o ar Foi tudo tão unilateral Tão interno o que parecia eterno Amei uma ilusão Alguém que criei Amei a imagem que fiz Que construí... Inventei olhos que me olhavam Inventei bocas que me queriam Inventei que os beijos te ardiam Inventei que o amor existia Tanto inventei que ainda existe em mim Guardo ainda essa ilusão Mas como a ilusão que é Pra nunca mais cair Nunca mais mentir pra mim Não mais sofrer assim Até me amou Mas, trancada em si, Amou inerte Com fugas internas confusas Internou seu coração Imaturo coração Agora e sempre estará lá Isolado na ala pediátrica
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Carlos Eduardo P. Theobaldo AMOR Havia momentos em que nossa relação era perfeita. Uma grande parceria. Eles sabem dos meus pensamentos mais íntimos, dos meus gostos. Passamos muitas madrugadas juntos. Mas nem sempre foi assim. No início, foi duro. Travar contato com uma nova realidade, novos pontos de vista, é muito difícil. Escolhia sempre temas do meu interesse, mas, às vezes, me escapava uma palavra, uma expressão – ia ao dicionário. Descobria um novo sentido da palavra. A palavra! Foi por sua causa que tudo começou. O que me fazia procurar mais e observar tudo. Ficava atento. Queria aprender, e o interesse aumentava. Procurava outro, e outro. Era uma busca insana, como a procura de um tesouro perdido – e era. Eles me ensinaram, com o tempo, a ter paciência. À medida que fui envelhecendo, passei a apreciar os mais velhos. Tive contato com eles e suas ideias; envolvemos-nos muitas vezes, durante horas, dias. Os estrangeiros apareceram, e o círculo de amizades aumentou. Filosofia, religião, literatura, tudo era motivo de estudo. Vivíamos felizes. Mas a busca é infinita. E sempre há algo novo para estudar. Um assunto leva a outro, uma referência... Em pouco tempo me vi acolhendo novos companheiros. Com eles, aprendi que o ser humano não muda; suas paixões, ideais, se repetem. Eles foram chegando, se apossando de mim. São tantos, já perdi a conta. Hoje, cansado das injustiças deste mundo, volto a me refugiar dele com os meus amigos. Ou seriam meus filhos? Ou melhor, meus professores, pois fui “educado” por eles. E eles não cansam de chegar, sempre com algo novo a dizer. Novo como a vida. Hoje, pela manhã, vi meu velho amigo doente. Também velho, nos reconhecemos, mesmo após muitos anos. Ao vê-lo, amarelado, rosto pálido, fiquei triste. Então, é só isso? Tentei segurá-lo, mas uma parte do seu corpo caiu no chão, esfarelando-se. O coração apertou. Afinal muito do que aprendi devo a ele. Saí decidido, vou às livrarias procurar um substituto.
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Gisele Galindo do Vale AMPLIAÇÃO Sugado pelas mãos do descaso Ignorado pelo cangaço Punido pelo cansaço Preso pelo acaso Foge pelos becos da cidade Nas dimensões alcançadas Pensavas ser ela Da prece cigana indicada Coçou a mão Mas nada mudou se não o chão De terra capim, cinza cimento Paralelepípedo, espelho do céu Sincronizou a vida com o relógio da morte Na ajuda financeira encontrou o desespero Passou assim sem importar a sorte Simbologias registradas no bueiro De milênios atrás massacrados e desvendados Pela metade supondo corretos os significados Fracassaram Infiéis crédulos no amanhã do dia seguinte Buscam incansavelmente o contido na caixa de Pandora Conteúdo coleção de Fênix Defendida com os próprios dentes.
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Dirce Soares de Macedo ANDARILHA Do mundo onde venho não trago bagagens Só trago mensagens e uma canção Tão cheia de sonhos, de beijos na boca E com voz quase rouca te chama ao amor Te canta a canção, aponta o caminho Te serve de vinho embriagador Adoça tua boca brindando à vida Curando a ferida que insiste na dor Colhida na aurora, nos jardins cativa Bela flor nativa eu trago nas mãos E a ti ofereço com carinho intenso A mirra, o incenso de tão puro olor Adorno teu corpo, também teus cabelos Sou toda desvalos, me ponho a teus pés Conheço-te a alma e o sentimento Te sinto por dentro, te provo o sabor Me tomas o peito e o pensamento Num breve momento me dei só pra ti Contudo, meu Eros, sou eu andarilha Nas trilhas da vida sou como o condor Eu quero voar, correr livremente Seguindo em frente sem desanimar Buscando as alturas, vivendo meus sonhos Num mundo risonho de luz e de cor Vem, se faz tarde, vem partir comigo Sê mais atrevido e invista em ti mesmo Aposte nos sonhos, viva intensamente E encare de frente o que a vida propor.
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Klaison Gustavo Simeoni AO TELEFONE _ Alô? _ Alô, Carlos? Sou eu. Está ocupado? _ Muito. Fala rápido. _ É o seguinte. Estou aqui numa loja, tentando pagar com esse... _ Ainda está gastando? Você não cansou de torrar meu dinheiro? _ Fique quieto e escuta. Estou tentando pagar com esse cartão de débito e não está dando certo. _ Por quê? _ A senha não está conferindo. _ Mas você não anotou em um papel e colocou na bolsa? _ Sim, mas não está dando certo. _ Qual senha que você está usando? _ Como assim qual a senha que estou usando? _ Fala para mim qual é a senha que está usando. _ Estou numa loja, na frente do vendedor e tem um monte de gente perto. Você não quer que eu declame a senha para todos, não é? _ Tá, fala o começo que eu te falo o final. _ 987... _ 654. É essa aí. Pode tentar que vai dar certo. _ Mas eu já tentei. _ Tenta de novo. _ Já tentei duas vezes. Se eu tentar a terceira e não der certo, bloqueia o cartão. _ Mas esse negócio de bloquear cartão não é só no caixa eletrônico do banco? _ Não sei. _ ... _ E agora? _ Dá cheque. _ Ficou na outra bolsa. _ ... _ E agora? _ E agora o quê? Você não está digitando a senha direito. Esqueceu o talão de cheques. O que quer que eu faça? _ Nada, só estou te ligando pra te falar. _ Ah, só me ligou para me falar? _ Sim, só liguei para te falar... Tu, tu, tu, tu.... _ Credo, que stress...
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Roque Aloísio Weschenfelder AS GAIVONDAS a onda anda ou desanda o vento sopra no mar e a onda sonda outras ondas as gaivotas veem as ondas e sondam outras gaivotas sobre outras ondas e sobem aos ares incensos dos altares das auras estelares mas os atores rendem aos autores preitos de ventos e bramidos de ondas no voo das gaivotas e jorros de espumas nas quebradas das enseadas e no deslizar sobre as areias das praias
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a onda anda encanta o silêncio de água e ar a gaivota paira sobre o peixe do fundo do mundo e vive a vida em seu alimentar jeito elementar de ser ator e de ser autor do quadro sentido do dia vivido no mundo inserido
a onda anda brota do eterno mover no ansioso querer do não acômodo no penoso cansar da gaivota ave a pomba dos mares e dona dos ares gases airosos no sobrevoo dos gases aquosos
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Eder Quirino Cavalcante
AS MÃES DA PRAÇA DE MAIO As mães da Praça de Maio Geraram protestos viris Em calados gritos amplificados Filhos, netos, irmãos e maridos roubados: Sem qualquer explicação Por vezes, chamadas de loucas! Mal abriam suas bocas Mas não pouparam manifestação As mães da “Plaza” de Maio Resistiram agarradas à esperança Quantos maios e junhos passaram... Notícias não chegaram Em meio à tristeza restaram os viços A força de demonstrar suas indignações O desprezo às maquinações À injustiça, a tantos sumiços! As mães da Praça de Maio Mulheres de coração dilacerado Levantaram retratos, indignadas! Não, não eram almas penadas E sim, a nobreza; a seiva feminina Do governo, exigiram decência O fim de tanta violência Quando se foi tão triste, a Argentina
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Tatiana Alves Soares Caldas
BALALAICA Toca a balalaica Ressoa o bandolim E ela baila, laica, Em um triste folhetim. Toca a balalaica As cordas ressoam, afins, E ela baila, laica, Como um grotesco arlequim. Toca a balalaica Em fracassado motim E ela baila, laica, Como quem jรก chega ao fim.
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Vanessa Resende BENJAMIN RESENDE, RAÍZ FORTE Benjamin Teodoro de Resende nasceu em Lavras, Minas Gerais, em 21 de maio de 1933. Filho de Giovanna Gayo, italiana, e de Antônio Teodoro de Resende, mineiro, descendente de portugueses. Herdou da mãe a força do trabalho e de “ressuscitar”, como ele diz. Do pai o gosto pela terra, pelos animais, pelas plantas e pelas coisas simples da vida. Quando criança, o “Nego”, como era chamado, andava pelas ruas de Minas segurando na orelha de seu cachorro, comia os quitutes e as quitandas na casa da avó, ajudava o padre na Igreja. Uma infância cheia de sabores e de cheirinho bom, que só em Minas tem. Na adolescência viveu experiências de fé e muita curtição na vida estudantil do I.E. “Fernando Costa”. Já em São Paulo cursando a tão almejada Faculdade de São Francisco, na USP, se embriagou de conhecimento e cultura. E, pelas ruas da cidade grande, conheceu a boemia e o glamour da vida. Conviveu com pessoas ilustres e com pessoas singelas e, de cada uma delas, tirou o seu melhor. Estudava e trabalhava com ânimo num acreditar que só os versos de Fernando Pessoa, seu poeta preferido, podem definir: “Tudo vale a pena quando a alma não é pequena”. Ajudou os irmãos a estudarem. Sempre foi arrimo de família. Aliás, palavra essa que ele sempre soube honrar com amor. Com o diploma na mão voltou para Presidente Prudente, no interior da Alta Sorocabana, advogar e lecionar, trazendo consigo os pais e os irmãos. E, como a vida é cheia de magia para quem sabe ver, num dia avistou pela janela uma linda moça, cercada de crianças, e naquele momento nasceu o amor, o companheirismo e a cumplicidade com Hebe. Foi assim, como dizia Fernando Pessoa: “Navegar é preciso, viver não é preciso”. Filhos crescidos, muda para Santos, para ficar mais perto do mar e de Deus. Volta à Presidente Prudente, após quinze dias de aposentado, mas como o trabalho é a força que move o ser humano encara novos desafios. Neste momento nasce um olhar sobre a cidade, agora não mais com a vida tacanha do dia-a-dia, mas com o olhar de nostalgia de tempos que se foram e não voltam mais, tempos de alegria, de construção, de beleza. Escreve os livros Raízes Prudentinas 1 e 2 e com eles resgata muito mais que nossa simples história, resgata a nossa alma, a nossa juventude, o nosso sentido maior de vida. Este é o Benjamin Resende que todos conhecem, mas agora eu gostaria de falar sobre o meu pai. Meu pai é a pessoa mais correta e honesta que conheço. Por isso, às vezes, parece muito sério, mas é cheio de generosidade em seu coração. Meu melhor amigo nos momentos mais difíceis de minha vida. Ele não é de falar demais, mas falar aquilo que preciso ouvir. Meu pai é uma pessoa ímpar, é forte e doce ao mesmo tempo. Pai, obrigada por me ensinar a sonhar e a me ajudar a realizar os meus sonhos. Por me dar uma família maravilhosa, por ser minha segurança, meu porto seguro, por me ensinar o significado de palavras tão importantes e tão raras: respeito e amor. Você me deu as maiores heranças que uma filha pode querer: a cultura, o conhecimento e, principalmente, o orgulho de ser filha de Benjamin Resende. Pai, obrigada por tudo! Com todo meu amor.
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Geraldo Trombin BUSCA FRENÉTICA Percorreu cada pedaço de chão, Procurou no meio da multidão, Só encontrou “não”. Cafunchou na densa escuridão, Sequer achou um facho de luz, Muito menos um clarão. Saiu por essa terrena vastidão, Deparou-se com árida solidão. Que decepção! Caçou insistente pelas matas, Viu traiçoeiras armadilhas, casamatas. Quanta prepotência, que bravata! Olhou em tudo que era canto E para seu espanto, Seu triste desencanto, Nada! Campeou, campeou, campeou. Não sossegou, Lutou contra a lassidão. Sabia que sua busca Não seria em vão. Até que um belo dia, Com a maior naturalidade, A solidariedade apareceria Bem ali, à sua frente, No infinito, magnético e fértil Campo imaginário da poesia.
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Sérgio Bernardo
CASA COM SOL A luz atravessa os vidros da janela, apaga as sombras nos móveis, a penumbra que cobre o piso da casa. E o vento, ao entrar, limpa os cacos da tristeza ontem quebrada por descuido. Agora já não foge dos espelhos nem das fotos — antes, até nelas envelhecia. As cores do ar tingem a cinza que havia ultrapassado a lareira e revestia seu vulto e seus pertences. Na sua próxima faxina, além do pó acumulado, espanará a dor de cima das coisas. A luz varando os vidros projeta na sala a claridade do horizonte e agora, nas paredes, nenhum outro quadro é mais bonito. A casa com sol, reconstruída de repente, reinaugura o dia.
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Reginaldo Costa de Albuquerque
CASA DE PECADO Deixei a praça quando a noite dava o tom... Sigo adiante e paro ao portão do sobrado ainda conservando o mesmo aspecto bom dos tempos em que fora a “casa de pecado”. No jardim pisca ao poste um globo avermelhado, iluminando o novo endereço em neon... E a dona sensual do corpo ali mostrado, só virtualmente. A casa hoje é uma pontocom. A lua cheia aclara um quarto entreaberto... E eis que a dama da vez primeira lá me espia: “Vem garoto!...” Ninguém mais havia por perto... Um passado feliz volta na trama rubra de uma hóstia vertical, que então desconhecia. Tímido, perguntei: – Pecado?... Riu: “Descubra!...”
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Antonio Carolino Bezerra CASA VAZIA De repente, tão de repente a casa ficou vazia... Parece que a morte entrou por ela E fechou a porta e a janela Para guardar só as lembranças. Casa vazia, sem esperanças Sem a voz da campainha e o sorriso da criança Que chegou surpreendente fazendo-me sentir gente Naquele mês de outubro Casa que hoje descubro e vejo um vácuo imenso Que ainda guarda os natais, vividos nos vendavais Entre abraços e beijos, e um carinho intenso E recorda aniversários repletos de emoções e amor E ouve a canção do amigo sorrindo e chorando consigo Para não sentir a dor E na parede o calendário que marca datas importantes Que fizeram de um instante um eterno e doce folguedo Casa que era um brinquedo para o menino rapaz Que vinha todos os dias e a enchia de alegria Também de sonhos e de paz Casa triste de saudade Onde nasceu a amizade cultivada como uma flor Que ainda tem o espelho com aquela moldura parda Onde o jovem sonhador, orgulhoso decepou Os primeiros fios da barba Casa vazia, triste e abandonada... Que guarda fotografias, o choro e a gargalhada Do menino homem que um dia aqui viveu E que sonha acordada Não achando graça em nada Porque tudo se perdeu... Casa vazia que hoje acordou tão cedo Tão cheia de medo e de solidão Trancada por fora, por alguém que foi embora Casa vazia...Meu coração
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Juca Macedo CAVALINHO DE ARGILA Certa vez, com muito zelo e carinho, moldei com argila um cavalinho, ficou mesmo uma beleza, era a miniatura do cavalo do papai que eu achava o mais belo de todos. Ficou uma gracinha, faltando apenas alguns retoquezinhos para aquela perfeição que o artista gosta. Coloquei-o ao sol para secar, afastei-me por alguns instantes e depois voltei a admirá-lo. Oh! Qual foi a minha tristeza ao vê-lo achatado sobre o cepo onde fora erigido. Meu irmão ( o assassino) ora olhava para mim, ora para o cavalinho, rindo das minhas lágrimas, me disse a debochar: “queria apenas montar seu cavalinho, que pena, ele nem sequer aguentou o peso do meu pé!” Ele ria e eu chorava; para mim não foi apenas o cavalinho que tinha sido pisado mas, também, minha alma de artista. Chorei a morte do cavalinho por todo aquele dia. Sua beleza e encanto ficaram gravados em minha mente e jamais pude esquecê-lo de pé sobre o cepo. Como poderia passar pela minha mente que aquele episódio iria se transformar em realidade nos dias atuais, mares e rios poluídos com sua fauna morta e o desrespeito pelas matas e animais, ver o homem achatar a natureza com os pés, sorrindo de suas lágrimas, junto a sua ganância de ter, varre da consciência o entendimento de que esses seres são a essência da vida da terra. Talvez, a atitude do meu irmão não chegou a ser por maldade; talvez, apenas uma inconsequência pueril, contudo, me fez chorar naquele dia as lágrimas dos que hoje choram pela destruição da natureza. A sã consciência nos ensina que, quem despreza a natureza, despreza a si mesmo e quem odeia a obra, odeia também o seu criador e por Ele será destruído. (AP. 11:18b)
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Luís Carlos do Amaral CHAPÉU DE PALHA Resgato na memória Um pouco da história De amados Prudentinos Um conhecido por Nhô Nico E o outro Celestino Artistas cantores Exemplo de trabalhadores Que com muita dignidade Demonstraram ao campo e à cidade Na rádio local Faziam programa sem igual: O “Chapéu de Palha” E diziam: - Que não falha nem atrapalha! Música caipira era a atração Variada distração e diversão Ao som de viola e violão A embalar a programação Audiência mais que conquistada Com sucessos da parada Convites não faltavam E eles não os recusavam Um vindo da “Globo” Logo o aceitaram Seus talentos apresentaram Na telinha os esbanjaram O motivo do convite: Serem do Brasil os primeiros Entre as duplas os pioneiros A comunicar-se pelo rádio com o ouvinte
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No “Som Brasil” daquele dia sim Dos titulares: Ranchinho e Boldrin Receberam todo o espaço Homenagens, aplausos e abraços Todos ganharam E muito se encantaram Com as melodias que cantaram Falaram e sapatearam E mais distribuíram alegria E de sobra simpatia Para o público do auditório Global E o da sintonia no canal Tenho na mente e coração Viva a recordação Das manhãs e das tardes Que deixaram saudades Em versos e rimas de exclusiva marca Que hoje vasculho na arca Por vezes ouvia ao acordar E com prazer um deles eu vou reprisar “O até à tarde do Nhô Nico Minha mão você aperta Na Comercial você sempre se diverte Porque vem aí o jornal das sete Com o Brendá e o Laerte”.
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Alzira Negri Costa
CHOVE, CHUVA! A chuva cai, Lentamente... Ouço os pingos Baterem no telhado. Penso... Devem estar gelados... Não tanto quanto os meus ais. Que deste peito não sai! Num gesto, Abro a janela. A noite se antecipou, E aquela tarde, antes bela, Com a chuva se transformou Numa infinita espera Pro meu coração... Sofredor! Volto pro leito, sem jeito. Como esquecer aquele amor? Se a chuva, que cai à tarde Pudesse com suas águas, Desbotar toda saudade... Do meu peito sonhador! A chuva cai, Lentamente... Ouço os pingos Baterem no telhado. Penso... Devem estar gelados... Não tanto quanto os meus ais. Que deste peito não sai!
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Cleusa Cardoso
CICATRIZES Quando a tempestade assola o arbusto Estremece suas raízes e mutila os galhos Silencioso o caule suporta o jugo Não dobra, não reclama e nem lamenta... Quando um galho se despedaça... atenciosa a seiva curativa, cicatriza os cortes no júbilo da providencial natureza os debruns se fortalecem... E novos brotos se formam! Fixada a boa terra que a alimenta Mesmo que os ventos a assolem Há em teus frutos, as sementes Para a vivenda permanente E o mestre tempo que ameniza Cuidadosamente as folhas miscigena Desenvolve novas orlas e novos bulbos. E, na primavera! Acontecem as flores...
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Daniel Alves da Silva
COMPANHIA DE UMA LÁGRIMA Desculpe-me, mais uma vez estou em prantos, sinto saudades de você, e a saudade é tamanha que mesmo não querendo uma lágrima me acompanha. Sinto na alma o imenso vazio que ficou e as lágrimas é o único jeito de preencher este espaço para que eu continue a viver. Às vezes me sinto culpado por não ter conseguido te fazer feliz, num impulso te deixei ir embora, ficou só a lembrança de você agora. Tudo lembra o teu jeito, o cheiro do teu corpo, uma cortina esvoaçante, um abajur, um arranjo de flores que só magoam, entristecem ainda mais meu mundo sem cores. Mais uma vez, vazio e lágrimas tomam conta de mim suas lembranças se vão com o vento tirando de mim até mesmo este momento. E desesperado procuro motivos para criar em meu mundo uma realidade que possa te trazer de volta, transformando meu sonho em verdade.
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Tatiana Alves Soares Caldas
CONTANDO ESTRELAS Quando era criança, Contava estrelas com os olhos E sonhava em conhecê-las. Quando era jovem, Fui estudar Astronomia Para, como Bilac, Poder ouvir e entender estrelas. Cresci. Muitos dos meus já partiram E conto histórias aos filhos Mostrando as estrelas que os avós se tornaram. Hoje continuo buscando as estrelas E desafio Bilac: Quem ama não é capaz somente de ouvir e entender estrelas, Mas de formar constelações.
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Edelson Rodrigues Nascimento
CONTRAPONTOS Se bomba se míssil se revólver se espada se granada se bala se ódio se vingança se insânia se anátema se fanático se cadáver
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o poema a estrofe o verso a palavra a sílaba a letra o hiato a vírgula a semântica a metáfora o anacoluto a linguaviva
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Robson Yokota
COTIDIANO Pedrinho brincava no quintal com os robôs que ele mesmo criara, enquanto sua mãe preparava-se para bater mais um recorde mundial de salto em distância. Enquanto isso Paulo lia o jornal do dia, com seus chinelos gastos, seus óculos de armação grossa e sua inseparável caneca de café. Astronautas descobrem vida inteligente fora do Sistema Solar – dizia a manchete na primeira página do jornal. Foi criado o primeiro aparelho de teletransporte capaz de transportar seres vivos a uma distância maior do que dez mil quilômetros, dizia a notícia seguinte na outra página. Na televisão toda a comunidade de cientistas agradecia a Paulo, pela descoberta da cura para a AIDS, entretanto Paulo pouco se importava, apenas continuava lendo o jornal sem nenhum interesse aparente pela notícia. Na rua ao lado um super-humano passava voando carregando três homens encapuzados com uma das mãos e carregava o que parecia ser um tanque de guerra na outra, enquanto uma nave extraterrestre pousava no quarteirão ao lado e que em algumas horas seria conhecido como o primeiro contato entre humanos e alienígenas no bairro das Pitangueiras. Já o rádio transmitia os relatos da primeira mulher a fazer uma viagem no tempo e como ela conseguiu prevenir que a Terceira Guerra Mundial tivesse início. Na Internet o assunto era a descoberta de uma ilha em que dinossauros ainda viviam e como foi realizado o processo para retirar Atlândida do fundo do mar. Quando Paulo estava prestes a desmaiar de tédio o telefone tocou e seu filho avisou que era o gênio da lâmpada perguntando se ele havia decidido qual seria o seu terceiro desejo. Nessa hora ele fez o que qualquer homem sensato na sua posição faria. Desejou por um dia normal. Um dia em que não acontecessem coisas extraordinárias.
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Sarah Nadim de Lazari COVARDIA ALEGÓRICA Sabe do que eu tenho medo? De covardia. Morro de medo de quando as pessoas fogem dos riscos, das dificuldades e optam pelo caminho mais curto. Medo porque é por aí que moram as maiores monstruosidades com as quais podemos nos deparar no futuro. Ali está o Arrependimento. Bicho peçonhento. Tem origem na tentação, na simplificação das coisas, na esquiva dos males, na fuga dos problemas, e na bendita covardia. É que quando surge uma oportunidade de burlar as intempéries do acaso, ainda que através de meios nada éticos, Fulano vai lá e pronto: “supera” o problema. Acontece que problema que é problema, não brinca de esconde-esconde com o destino, e invariavelmente, na sua sagacidade feroz de achar o caminho de volta pra casa, retoma seu interlocutor com um afinco de saudade e vingança por ter sido enganado, e vem correndo pela areia da praia, cabelos ao vento e vestido de branco . E aí, “pimba”: a lástima; o choro; um nhenhenhém digno de um dramalhão mexicano; uma coita que só por Deus. O danado se arrepende. No caminho mais curto mora a Injustiça também. Não se percebe que para driblar qualquer pedra no meio do caminho mais longo, a gente toma posse do caminho alheio. Invade-se, quase sempre, um pedaço de terra carpido, adubado quiçá e desocupado de outrem. Aí, se você é mais forte, tem um sobrenome bonito, ou uma conta gorda no banco, tudo bem, mas se for um Ninguém, ladrão de galinha, ou Zé Ruela, mirrado, vai se danar. A vida sempre cobra de quem não tem com o que pagar. A covardia finge que manipula o Tempo também. O medo de envelhecer ou de morrer faz correr atrás de uma aparência jovial, ou de uma pseudo-saúde comprada, manipulada na farmácia da esquina, ou adquirida em um canal de televendas. Quando for covarde o suficiente pra temer o espelho, quando as rugas soarem como sinais de um tempo que passou gratuitamente, ou quando a fantasia de possuir o mesmo corpo quando em tempos de nudez manifestar-se, não tema: orgulhe-se. A indiferença diante da experiência é medo de não ter usufruído todas as possibilidades. Morro de medo da Inveja, que é a covardia que o Cicrano tem de elogiar. Custa alegrar-se com a roupa bonita da colega? Qual o problema com o carro novo do vizinho? Vai mesmo procurar todos os dias um novo defeito para o patrão? A inveja que te assombra e corrói por dentro é um câncer na sua autoestima. Um tumor de três quilos, que lhe aproxima sempre mais do fundo do poço, da depressão, do ópio que talvez seja a solidão. O Arrependimento, a Injustiça, o Tempo e a Inveja dão medo. São ou já foram medo. Carregam na essência o pé atrás, o oportunismo, uma razão angustiada e cansada de pensar, a privação de prazeres por juros a ser retirado sabe-se lá em qual vida. Se antes a fé, agora, a certeza do fim. Se antes um futuro, agora, um passado. Se antes o medo, agora, a dúvida.
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Elieni Cristina da Silva
CRIANÇAS NO CAMPO Nos pés de jabuticaba mangavas afiam o bote, E a criança engole o susto da escuridão que chegou. Todos descem do pé doce, Que exala de longe o cheiro forte de fruta caída e pisoteada – Licor acidental que encharca a terra e a sola dos pés. A noite então cobre as frestas do telhado. As crianças, Embaladas pelo próprio cheiro, Impregnado no travesseiro Em noites suadas e frias, Dormem ao som da ave-maria.
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Paulo Eduardo Mauá CUIDAR DA VIDA É UMA FANTASIA A fila imensa. Sensação ambígua: perder tempo e satisfazer a alegria da minha filha. Ser pai é conjugar o emocional e o racional sem lógica. A recompensa: a euforia estampada nos olhos da menina que um dia carregamos no colo e agora cresce escapando entre os dedos da mão. - Pai, por que o chão é tão limpo ? Enquanto o Pateta não dá o autógrafo no meio do parque temático, minha filha surpreende com a pergunta inusitada. Em vez de questionar a cor da roupa do personagem ou o tamanho da orelha dele, repara em algo que não havia percebido. Nenhum papel de bala, folha solta, absolutamente nada macula o chão do parque norte-americano. Não consigo responder de imediato. Observo tentando encontrar um papel solto para mostrar a ela que o mundo não é tão diferente no hemisfério norte do planeta. Sem sucesso. Os americanos não são melhores do que nós e que ninguém. Mas há algo diferente no ar. E a limpeza do parque me incomoda inconsciente e consideravelmente. Uma das razões da cena inusitada é a rapidez com que os profissionais limpadores agem? Segunda opção: a multa por tal infração é altíssima e a impressão de zelo e limpeza puro reflexo da repressão punitiva? Castigar para ensinar. Obedecer apenas sob o chicote da autoridade instituída. Observo que em plena torre de babel das famílias entre as ruas harmoniosas do parque, as pessoas não se preocupam e involuntariamente mantem o local asseado. Nenhum aviso estampado nos postes solicita que “é proibido jogar papel no chão.” A evolução do homem está ligada diretamente à passagem de um mundo externo real para a ilusão ? Evoluímos apenas quando passamos a entrada do parque sob as imagens de personagens de nossa infância deixando para trás o mundo do trânsito dos carros, dos celulares e notebooks, dos escritórios e da corrida contra o tempo ? - Ai, estou tão emocionada. O êxtase da minha filha é estar ao lado ao seu personagem predileto e não pela limpeza do lugar. Além da alegria esfuziante dela sentia em cada olhar estrangeiro e desconhecido ao meu lado, o sorriso de satisfação em estar entrando em um mundo utópico em forma de concreto e luzes: paredes coloridas, chão sem buracos, funcionários educados e satisfeitos em trabalhar, músicas perfumando o ar, cheiro de pipoca, flores multicoloridas em cada esquina, o barulho das montanhas russas e das xícaras malucas. Chega o momento. Ela abraça as pernas do Pateta com tanta força que quase que ambos vão ao chão. O personagem passa as mãos no cabelo loiro da menina. Segundos naquela posição. Perplexo, esqueço-me de tirar a foto. Ele autografa Goofy no caderninho e posam para a foto. Perpetuo o instante independente do registro fotográfico
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e conservo-o em minhas gavetas cerebrais. Quando quero, abro-a durante o dia de trabalho. Pode ser que no futuro, a foto ao lado do Pateta seja substituída pela do namorado ou de uma viagem com a turma da faculdade. Nós, quando nos tornamos adultos, transformamo-nos em outros personagens sem sentir dor. A escala de valores muda com a pressão da sociedade e a perspectiva de uma vida melhor em termos financeiros. A maioria dos adultos vive assim. Ao final do dia cavalgando ao lado dela no grande carrossel iluminado desperto: a possibilidade de que permaneçamos crianças, sem precisar da vara de condão da fada, está e sempre esteve em nossas mãos. É o único recurso de prosperar e prospectar a vida em emoção e alegria. Cuidar de si para cuidar da humanidade.
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Maria Apparecida S. Coquemala CUPIDO Entrou voando pela janela, de paraquedas, vinda talvez de longe, trazida pelo vento, ou pela sorte, como saber? Pequenina, frágil, pousou suave sobre o teclado, interrompendo meu trabalho. Bastava que a tirasse dali, a soprasse no cesto de lixo, para que se interrompesse seu destino, vítima de um mísero sopro meu. Ou não? Melhor um sopro à janela, o vento a levaria, continuasse sua aventura em outras paragens. Refleti, me contive, afinal, todo um programa estava escrito nela, que se cumprisse tal como certamente desejara seu Criador. Um programa que começara (ou melhor seria dizer, continuara?) por emanciparse da árvore-mãe. Depois, voar com o vento, aterrar, vencer pequenos inimigos circunstanciais, resistir às inclemências do tempo, crescer, transformar-se em árvore, onde passarinhos cantassem e fizessem ninhos e insetos a rodeassem buscando o néctar das flores. E de suas sementes, outras árvores, mantendo a espécie. Mas, o vento brincalhão, ou cruel, a desviara para dentro do meu escritório, interrompendo seu programa. Coloquei-a sobre a palma da mão, senhora agora do seu destino. Mas destino que, independente da minha vontade poderia ser outro, bem outro. Salva e posta em lugar adequado, provavelmente germinaria e cresceria, porém como descartar a possibilidade de ser arrancada e morta por mãos inconscientes ou derrubada, retalhada, transformada em lenha nos lares pobres, ou madeira para o pequeno comércio, e assim interrompido seu ciclo vital? Pois, como os humanos, também elas estão sujeitas a imprevistos, a crueldades, a necessidades econômicas... Minha ajuda, qualquer que fosse, não poderia garantir que não tivesse tal sina. Contudo, dentro das minhas possibilidades, a ajudaria a sobreviver. E o salvamento de uma mísera sementinha me pareceu naquele momento o mais importante a fazer. Coloquei-a sobre uma folha, cuidadosa a embrulhei e levei ao parque da cidade. Lá, teria uma grande chance. Soprei-a entre pequenas mudas, em fase de crescimento. Espaço não lhe faltaria. Desejava-lhe boa sorte, quando o guarda se aproximou. - Pode me dizer o que jogou ali entre as plantas? Lixo? - Na verdade, apenas coloquei no seu habitat uma sementinha que me procurou. - Como é que é? - Bem, estava digitando um texto, a janela aberta, o vento trouxe uma sementinha, salvei-a e a trouxe aqui pra que cresça entre as suas iguais. - Ora, ora, deve ter jogada alguma casca, algum lixo, ou pensa que sou bobo acreditando nessa história pra boi dormir? - Mas é a verdade, Senhor, me ocorreu que ela tem todo um programa inscrito nela, que deve se desenvolver, manter a espécie...
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- Nome e endereço, moça. Fiquei perplexa. Voltei desejando que não faltasse sorte à sementinha, que não se interrompesse seu ciclo de vida, porém admitindo como tudo de certo modo começa e acaba neste mundo, malgrado nossos cuidados. Ou, melhor seria dizer nada começa, nada acaba, tudo se transforma, só o processo é eterno? Convocada a prestar declarações junto à autoridade pertinente, procurei a Justiça Gratuita para que me orientasse. Surpreendi-se com o interesse do advogado atendente. - Tudo que é raro, diferente, mesmo que por sua beleza e razão, mesmo que para o Bem, pode provocar reações adversas, ensinava ele. Gosto da natureza. Entendo perfeitamente seu gesto. Cuidarei do seu caso. E cuidou tão bem que, casados e felizes, visitamos com frequência a mesma parte do parque tentando adivinhar qual daquelas arvorezinhas floridas foi o nosso Cupido.
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Silvanilda Thethe da Silva DE TUDO QUE HÁ tire o melhor de tudo que há do sol, a energia solar, da lua, o beijo ao luar. da praia, a areia, as ondas do mar, das graciosas conchas, o colar. da semente, o fruto, do fruto, o sabor. e tudo se faz lindo, e tudo tem gosto de amor. da música, a dança, cante, dance, viva a bailar. a vida é pra quem sabe viver a vida é pra quem sabe amar. tire o melhor de tudo o que há. da Bahia, o carnaval, o swing, o axé. de São Paulo e do Rio de Janeiro, o pop rock, rap, funk, o pagode e samba no pé.
da escola a nota azul que tirou a vermelha que escondeu, o sorriso de que tudo valeu. do cinema , o escurinho, os tantos beijinhos. do primeiro namorado, a emoção de um coração acelerado. da vida, tudo o que viveu, a coragem de ser personagem da passagem de uma longa viagem. tire o melhor de tudo o que há, do amor, a base. do amor, a raiz. do amor, a estrutura. da mente sã, a loucura.
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Áurea Aparecida da Silva
DE TUDO UM POUCO O Cheiro que exala do teu corpo, esse eu sinto daqui. Um cheiro de mato, de bicho, de coisa escondida. De tudo um pouco. O gosto da sua boca esse eu sinto daqui. Um gosto de pera, de cio, de coisa molhada. De tudo um pouco. O toque das suas mãos esse eu sinto daqui. Um toque de cetim, de pétalas, de coisa evasiva. De tudo um pouco. O som da sua voz, esse eu ouço daqui. Um som de violino, de prosa, de coisa que inflama. De tudo um pouco De tudo e mais um pouco Porque você se foi, pra ficar... Definitivamente.
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Davi T. de Aquino Raimundo DEFENESTRO Eu toco o chão como quem dorme Sinto o vento que bate em meu rosto E sinto um cheiro novo no escuro De olhos fechados, abro a mente Espero e anseio uma nova era Vejo crianças passando em minha frente Vejo crianças me olhando nos olhos Vejo crianças com choro nos olhos E vejo o amor que era da gente De toda gente do mundo, mas que os livros roubaram Livros que eram da gente do mundo, mas que não devoraram Por que não sabiam ler Por que não tinham escola Por que tinham TV Vejo minha vida toda E solto a dor em gotas Abraços que não recebi Momentos distante do amor Poemas que não escrevi
Aos grandes e poderosos me oponho Espalho tudo ante suas torres Se virá em seu planalto e em seu palácio
São dias vivendo na dor
Só sei que não suporto mais E só no chão encontro cais
Espalho tudo pelo chão e exponho E que todos saibam minhas dores Não mais servirei pra ninguém de lastro
Me aproximo da imagem covarde, Me aproximo da atitude de mártir Agora vento, gritos, choro... Eu toco o chão como quem morre... E acordo no mesmo mundo que quero mudar Levanto-me Piso o chão como quem marcha Olho a frente como quem muda
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Maria Apparecida S. Coquemala
DEPRESSÃO Sou o anti-homem, o antimatéria ou matéria escura se assim preferirem. Sou o que existe dentro do nada. Vivo, ninguém vê. Morto, ninguém sabe. Sou o anti-homem, o anti-energia, ou energia escura se assim preferirem. Sou o apagado no meio do brilho de toda gente. O que nada ilumina. Aceso, ninguém vê. Apagado, ninguém sente. Vivo ou morto, aceso ou apagado, ninguém sabe, ninguém vê. Então me pergunto: viver para quê?
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Geraldo Trombin
ecretada a sua falência.
xtinguiu-se devagar a sua afluência. em consciência, seguiu o Homem o curso natural da sua ganância.
ssumiu rios e mais rios de indiscriminada extravagância;
erou ao planeta inconsequentes vertentes de inconstância;
sou e abusou do seu leito até a sua plena abstinência. Que negligência! que aconteceu com o líquido vital na sua essência?
ltimou! Pura falta de sapiência, providência! De nada adianta pedir clemência. Água: agora, só na reminiscência!
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Davi T. de Aquino Raimundo DESENHOS Cresci demais E não enxergo mais desenhos nas nuvens, Nem tenho mais os olhos curiosos Cresci demais E agora enxergo o amarelo dos sorrisos, Tenho olhos tristes, Mas ainda carinhosos com aquilo que me afaga Cresci e sei que não existem monstros debaixo da cama Mas às vezes me escondo lá Às vezes jogo lá meus problemas Abria os braços a um abraço de afeto cego e intenso Agora abro meu peito E grito ao mundo a dor muda que me corrói Danço com lobos Na busca faminta de continuar vivendo E são leões todos os dias Tinha o rosto seco Tenho agora uma chuva particular Antes sonhava em viajar no tempo Agora projeto voltar a ser aquele Mas nem é pela dor, Pela tristeza ou amargura Crescer é necessário! Só queria enxergar desenhos nas nuvens
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Valdir Catarino Pessoto
DESORDEM Trancafiado na liturgia da solidão Recolho os cacos dessa efêmera existência. Os sábados e os domingos sumiram na falência Da alegria de viver. Tudo virou podridão. A esperança nas humanas futuras gerações Foram sucateadas, terceirizadas e vendidas Nas feiras fashions globais e nas carcomidas. Dos antigos revolucionários só ouvimos lamentações E dos atuais o discurso de tudo o que já foi dito. O caos não se previne com orações à São Benedito. A capacidade de sonhar penetrou pelos eternos Labirintos da desilusão e dilui-se nos desejos fraternos. Vasculho as minhas memórias deprimidas E destilo um imenso vazio decorado Com a melancolia e o sofrimento de vidas oprimidas, Oriundas do acaso. Quero me livrar da morte Mas sinto o meu cérebro amarrado. Quero acordar desse pesadelo, enlouquecido e forte.
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Gabriela da Cruz Evangelista DESPEDIDA DESNECESSÁRIA Preguiçoso o Sol vai se aproximando Da linha do horizonte... Seus fracos raios não são capazes de me aquecer, Mas transluzem a negritude de meus olhos... Até as lindas sombras que criava, Na parede ao meu lado, estão sumindo... E enquanto tudo vai desaparecendo, O dia se finda, levando consigo Trezentos e sessenta e cinco dias de lembranças Que hão de se juntar no meu velho baú – Velho, mas guardado no fim do arco-íris, Como um pote de ouro dos duendes. Amanhã é um novo dia. Hei de ter somado mais um ano De primaveras, verões, outonos e invernos vividos... Sim, orgulho-me de ter uma vida que contenha Todas as estações possíveis... É isso que me permite a felicidade. Meu coração se aperta como se estivesse Diante de uma despedida, o que não deixa de ser... Como se tudo fosse radicalmente mudar e Nada do que houve nesse ano de minha existência Fosse existir neste que se principia... Mudanças... Quanta insegurança não nos trazem? Estou preste a dizer que essa melancolia, Que agora me consome, É fruto desta tarde de domingo. Tardes de domingo costumam ser assim... Não, não há motivos para toda essa morbidez. Não se trata de um fim, a vida continuará amanhã - com um ano a mais de idade... Ou, quem sabe, um novo começo Cheio de páginas novas em branco...
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Paula Renata Hanke da Silveira
DESPREZO Poderia conceder-te minha amizade Se, de teus poros, a pobreza de espírito Não exalasse num perfume acre Que desconhece a sutileza de palavras. Poderia tomar-te como esposa Se a luz jamais tivesse, as tuas faces, tocado E me revelasse este tom tão presente De orgulho e amargura. Poderia enxergar-te como imortal Se teus grosseiros pensamentos permitissem A profundidade e a carícia De uma linha sentimental. Poderia buscar as palavras mais belas E casá-las com as estrelas mais brilhantes Que, ainda assim, teu desprezo sinistro Nos separaria como amantes.
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Sérgio Edvaldo Alves
DESTINO vem e pousa em minhas mãos. olha-me como quem pede silêncio e silêncio é tudo o que sou – minto. minhas escolhas falam por mim quando casulo sonhos...
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Juliana Rizzo Gerbasi DESVENTURAS Quando restou- me o vazio, e ali, nada ficou... Quando buscava, em vão, agarrar- me a alguma esperança de não te deixar... Arrancou- me do peito a alegria infantil de viver um lindo sonho que eu mesma criei... Fantasiando assim, acordada mesmo, sem dar- me conta de que o sonho era só meu... Quando eu te quis, tanto e tanto, que já nem importava as convenções que nos eram impostas... Quando quis me desprender de mim, das minhas mais frágeis perspectivas daquilo que era considerado como aceitável... Quando eu me rendi, vencida, a ti, já não importando nada que não fosse tua presença, tua mão junto a minha... Tive que aceitar e entender que minha felicidade seria tua ruína... Que todos os meus planos, calculados de forma tão insana, não caberiam em tua vida... Então percebi, que de tão egoísta, estivera esperando por uma resposta que não estivera nunca em teu poder me dar... E tua felicidade então, de certa forma e descuidadamente, tornou- se minha chaga e minha alegria, tão doloroso o viver deixando aquilo que se ama partir...
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Tácito C. de Carvalho e Silva DEUS EXISTE DEUS existe! Não quero falar que ELE existe no sorriso da criança, na asa da borboleta ou na suavidade da pétala de uma flor. Nem vou dizer que ELE está presente no amanhecer, na chuva, no sol, no anoitecer... Todos dizem isto e se você tiver um pouco de paciência vai encontrar milhares de citações em livros, revistas e na internet que falam da existência de DEUS! Interessante como a percepção de DEUS muda em nossa vida! Quando criança acreditava que ELE devia ser um velhinho com barbas brancas e cajado na mão e mamãe nos dizia para sermos bonzinhos para não entristecê-lo. Aos Domingos íamos à missa e, devotos, rezávamos para agradecer as bênçãos que tínhamos recebido durante a semana; era um olho no altar e outro no pátio da igreja para as brincadeiras com a turma. DEUS era esta figura distante, meio paternal que alcançávamos através da igreja e das orações. Na juventude ficamos rebeldes e nos afastamos do PAI; não íamos mais à Igreja, pois preferíamos os bailes e as baladas. Só orávamos e pedíamos quando tínhamos algo muito importante para resolver. O vestibular, por exemplo, nos fez ir à missa e orar durante mais de mês; depois que fomos aprovados esquecemos as orações e tudo voltou como antes. Assim, o relacionamento com DEUS nesta época era só de interesse. A faculdade de medicina nos trouxe novos conhecimentos e aprendemos fisiologia, anatomia, bioquímica e cada vez mais passamos a acreditar que tudo era biológico e natural; que Darwin tinha razão. O velho professor Ladosky, de neurofisiologia, nos dizia que DEUS fazia parte das fantasias necessárias do homem. Então, médicos, nos consideramos infalíveis e conhecedores de tudo. E a vida foi passando e DEUS sempre se apresentando aos nossos olhos que, cegos, não O viam... A madrugada fria nos apanhou ansiosos na sala de parto. O recém-nato estava cianótico e não manifestava qualquer reação. Todas as manobras de recuperação feitas sem sucesso; uma vontade de gritar... Um pedido mudo a DEUS e de repente o vagido, o respirar ofegante, a recuperação... Hoje vejo passar na rua aquela criança, um ótimo advogado, cheio de vida e sucesso. Talvez ele nem saiba disto, mas foi importante para me mostrar a presença do PAI. Pronto Socorro lotado e a menina de 20 anos entra na maca chocada com pressão zero. Diagnóstico de gravidez tubária rôta. Emergência... Vida que se esvai por entre nossas mãos e novamente ELE ao nosso lado e a vida salva... O milagre do sorriso e da recuperação! DEUS existe! Sua Grandiosidade é que não conseguimos alcançar! Hoje, maduro, volto meus olhos para a vida que passou e O encontro em cada instante de minha existência. E O vejo na simplicidade das coisas e dos dias; no aperto de uma mão, no carinho de uma atenção, no despertar, no adormecer. E imagino que não se pode viver sem SUA presença constante em nossas vidas. Como disse: DEUS existe! Nós é que não conseguimos alcançar o valor de sua presença e a magnitude de sua Graça!
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Aparecida Gianello dos Santos DIA DE FEIRA Ontem enfiei o pé na jaca. Falei abobrinha. Aliás, a horta toda. Resultado: minha moral foi pros quiabos, e a coisa ficou mais preta que jabuticaba madura. Meu chefe me mandou embora só porque eu o mandei catar coquinho. Carambola! Não podia me dar um desconto? Minha mulher, meu chuchuzinho, está um verdadeiro limão. Disse que minha batata está assando. Agora, vê se pode, eu com esse abacaxi e a galera só manga. Ninguém faz nada. É como diz o ditado: “pimenta nos olhos dos outros...”. Quer saber? Às favas todos os problemas. Como os morangos. Ficar chorando pitangas é que não vou. Eu quero é mamão com açúcar, e banana pra todo mundo. Além do mais, o pepino não é só meu. Cana ao verdadeiro culpado: Zé das Couves. Foi ele quem inventou a manguaça!
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Geraldo Trombin DE FAST-FOOD AO FAST-TUDO Hoje vivemos no mundo da velocidade, que prega a urgência de viver. Levantamos, tomamos banho, escovamos os dentes, nos vestimos, engolimos café e saímos para os afazeres diários sempre correndo. Contra o tempo, contra nós mesmos, contra tudo e todos. Fora de casa, o anda-que-anda, a pressa, o depressa, o corre-corre continua acelerado: as pessoas correm, os veículos correm, a vida corre, numa busca frenética de “não sei o quê” em uma corrida sem fim. A fórmula 1 dos tempos modernos é a habilidade que temos em fazer tudo com muita rapidez, como se o tempo estivesse escorrendo por entre os nossos dedos: refeições rápidas e, às vezes, em pé nos balcões; reuniões rápidas; falas e discursos rápidos; sempre preocupados com os ponteiros do relógio que regem apressadamente, e cada vez mais, o nosso dia-a-dia. Quando estamos na fila do banco, do supermercado, na sala de espera do médico ou do cabeleireiro, nos estressamos porque queremos ser atendidos prontamente; se o semáforo fecha à nossa frente ficamos nervosos porque queremos passar rapidinho; nem nos momentos dedicados ao nosso lazer e entretenimento, no cinema ou barzinho, desligamos “os nossos motores”. Tem que ser tudo assim: pá-pum, vapt-vupt! Estamos na era FAST, que reflete em pessoas apressadas, neuróticas e até infelizes, que se esquecem da família, dos amigos, dos vizinhos, dos amores. Para chegar aonde? Por que viver a mil por hora e tornar o seu tempo tão enfastiante? Esse realmente é o estilo de vida que quer? Se a pressa é inimiga da perfeição, se o apressado come cru e quente, então, tire o pé do acelerador, respire fundo, recupere a calma e reflita sobre o que disse o conferencista, consultor e educador Eugênio Mussak: “Ser veloz não é a mesma coisa que ter pressa, fazer as coisas rapidamente não é o mesmo que terminar no menor tempo e sair na frente não garante chegar primeiro”. Tendo melhor compreensão e discernimento será possível saborear com qualidade e tranquilidade os bons momentos que a vida tem a oferecer!
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Nathalia Germiniani Silva
DOCE AUSÊNCIA Saudade... Saudade daquele olhar puro e sincero. Daquele sorriso doce e singelo. Saudade de ver aquela força,aquela coragem presente em você. Tal fé e coragem que foi me ensinando a viver e assim me fez crescer. Era mágico o seu abrigo, o seu abraço. Suas palavras eram como açúcar, também como a água. Davam sabor a vida e eram capazes de alterar todo um espaço. Saudade... Saudade da sua voz, do seu caminhar. Do suave toque, da cor azul de seus olhos. Saudade de ouvir o som, som do seu canto de ninar. Saudade da minha infância...Lembranças. Travessuras, risadas, carinhos e brincadeiras. Pode isso ou pode aquilo? E a resposta era sempre sim. Mas depois arruma isso ou arruma aquilo? E a resposta era sempre sim. Sim de amor, sim de respeito. Uma pena que não tem replay, Aquele tempo foi perfeito, e uma alegria plena alcancei. Saudade... Saudade dos dias frios, dos dias de chuva. Ou melhor, saudade daqueles deliciosos bolinhos de chuva! Sinto sua falta, mas sei que onde está é melhor do que onde estou. Com sua sabedoria aprendi a caminhar, ver o mundo com mais amor. Sei que está feliz, e se depender de mim feliz vai continuar. Saudade sinto, sinto saudades. Mas sei que hoje vive a me iluminar.
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Iracema Caobianco
DOCES LEMBRANÇAS Na doce música ouço, Acordes ternos e tristes. Lembram-me quando me vistes De olhos longes, distantes, A relembrar dias idos Daqueles que nunca voltam. Sonhos alegres e tidos Pra todos os cantos benditos, Sorrio só de lembrar Das brincadeiras da infância, De cada qual a criança, Que em nós há de perpetuar... Brinca de estar bem sorrindo, Quando se quer só chorar...
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Roque Aloísio Weschenfelder DÓ, RÉ, MI, FÁ... Venho do fundo dos tempos, eras confusas da memória, louco por descortinar os inícios. Sou o ser humano perplexo por ter adquirido consciência e procurar por sempre o havido antes do nunca. Nas andanças e angústias me espalho e tento o encontro de algo possível no talvez, para sempre impossível. Passeio pelas ruínas do mundo, esses vestígios de cultura e sinais de violência de minhas existências históricas. Fico triste pelo fato de, em nome do amor, se combater; em nome do poder, se matar e em nome da fama, se corromper. A vida, bem recebida do universo, evoluída em sua máxima possibilidade na Terra, é o dom disponível à matéria a me constituir nas peregrinações passadas e presentes. Não sei como será no futuro. Apenas sei ser possível, caso a consciência, de sua existência, de seu imenso valor, da única razão de minha presença no planeta azul, aparecer qual o lume a nortear a toda coletividade. É a vida a razão de vulcões lançarem suas lavas, os ventos soprarem seus ares, as águas evaporarem, condensarem e congelarem e o sol repetir eternamente dias e noites para trabalhos e descansos do meu corpo e fazê-lo sentir a vontade de amar e procriar. Para bendizer a vida eu preciso cantar. Espalho meu canto pelas planícies, faço ecoar nas montanhas, que desejo repleto de florestas. Sinto este canto, algumas vezes, interrompido pelas incompreensões encontradas, outras, perturbado pelos ares poluídos, pelos rios assoreados, pelas catástrofes enterrando sonhos e esperanças. Não desisto, porém, de cantar, não esmoreço no intuito de mostrar ao mundo o bem dos valores morais, a beleza presente no olhar inocente das crianças, na revoada dos passarinhos, no nadar livre dos peixes em águas cristalinas. Sintonizo os tons para fazer a todos ouvir as notas, ora suaves, ora fortes de meus elogios e das minhas críticas. Neste cantar empolgo os poetas, entusiasmo os ecólogos, perturbo os corruptos e persigo os assassinos. Meu canto eu queria somente poesia, somente certeza de vida, silêncio de crimes. À vida dedico os versos de amor, as toadas no sertão, baladas nas noites, as viagens pela paisagem, os voos nos céus e o sono do restauro no leito. À vida entrego meu Dó e meu Fá, em Sol de um Si, por Ré de Lá que em Si mesmo se completam. Em nome da vida a seresta. Lua, estrelas, meteoros vêm assistir ao ritual do meu cantar e ouvir as notas de louvor à beleza da musa que teima em abrir sua janela e seus braços para receber meus afagos. Em nome da vida as letras desta crônica. Leitores, alguns curiosos, outros temerosos, uma parte de vaidosos e, todos, sedentos de eternizarem a existência, verão as palavras que meu canto não pode lhes transmitir pela limitação etérea da voz. Em nome da vida uma prece agradecida. “Deus, obrigado por conceber a vida. Amém”.
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Leonícia Aleixo Mussa
ELE HÁ DE VOLTAR Estás tão longe de mim... Em que pensas agora, meu amor? Eu penso em ti a todo momento, sim Sinto falta de teu carinho e do teu calor. No meu peito tenho ansiedade. Tenho uma grande solidão. Uma angústia que me tortura o coração. Pois só perto de ti sinto felicidade. Olho para o céu cheio de estrelas. E meus olhos enchem-se de lágrimas ao vê-las. Tenho a impressão de que elas pairam no além a me espiar, parecendo dizer-me: - Tenhas calma, ele há de voltar.
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Márcia Teixeira ENCONTROS ROMÂNTICOS (08:38:46)flor entra na sala... (08:38:47)flor fala para todos: olá (08:38:57)Seuvizinho fala (reservadamente) para flor: oi querida, d onde vc tc? (08:39:03)engenheiro fala (reservadamente) para flor: boa noite (08:39:04)Paulinha fala para todos: olá gente (08:39:15)flor fala (reservadamente) para Seuvizinho: sp, zona sul, e vc? (08:39:15)Menina Loira sai da sala... (08:39:18)Kzadonoescritorio fala (reservadamente) para flor: oi gata qtos anos? (08:39:20) flor fala (reservadamente) para engenheiro: olá (08:39:23)Seuvizinho fala (reservadamente) para flor: zona sul, tbm (08:39:26) flor fala (reservadamente) para Seuvizinho: idade? (08:39:28)Seuvizinho fala (reservadamente) para flor: 28 e vc? (08:39:32) flor fala (reservadamente) para Seuvizinho: 35, moreno/loiro? (08:39:41) Seuvizinho fala (reservadamente) para flor: moreno, 1,75 e 70 kg? E vc? (08:39:42) flor fala (reservadamente) para Seuvizinho: loira, 1,68 e 62 kg (08:39:43) Seuvizinho fala (reservadamente) para flor: kzada? (08:39:46) flor fala (reservadamente) para Seuvizinho: sim e vc? (08:39:56) Seuvizinho fala (reservadamente) para flor: kzado tb, filhos? (08:40:07) flor fala (reservadamente) para Seuvizinho: ainda não, e vc? (08:40:16) Seuvizinho fala (reservadamente) para flor: tbm não, o q procura aki? (08:40:25) flor fala (reservadamente) para Seuvizinho: um pouco de companhia, meu marido trabalha muito, fico só em ksa, procuro gente pra conversar, e vc? (08:40:45) Seuvizinho fala (reservadamente) para flor: hum, em busca de aventura pela net, conhecer gente nova... (08:40:52) flor fala (reservadamente) para Seuvizinho: o q faz? (08:40:55) Seuvizinho fala (reservadamente) para flor: empresário e vc? (08:40:59)flor fala (reservadamente) para Seuvizinho: dona de ksa, faço alguns cursos para preencher o tempo (08:41:01) Seuvizinho fala (reservadamente) para flor: legal, o tempo é importante, gosta de dançar? (08:41:03)flor fala (reservadamente) para Seuvizinho: adoro, mas faz tempo q não saio, fiko mais em ksa (08:41:06)Seuvizinho fala (reservadamente) para flor: q tal marcar um encontro? A gente ta perto msm... (08:41:10)flor fala (reservadamente) para Seuvizinho: não sei, nunca fiz isso, preciso te conhecer melhor...pegar confiança... (08:41:16)Seuvizinho fala (reservadamente) para flor: passa seu msn (08:41:20)flor fala (reservadamente) para Seuvizinho: acho melhor não, tem muito
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engraรงadinho por aki, preciso me reservar, passa o seu primeiro (08:41:25)Seuvizinho fala (reservadamente) para flor: to passando eduardo_silvaguerra@rotmail.com (08:41:30) Seuvizinho fala (reservadamente) para flor: me add aeh (08:41:35) Seuvizinho fala (reservadamente) para flor: oi gata kd vc? (08:41:40) Seuvizinho fala (reservadamente) para flor: adicionou? (08:41:46) Seuvizinho fala (reservadamente) para flor: vc sumiu (08:41:52) Seuvizinho fala (reservadamente) para flor: oi (08:42:06) Seuvizinho fala (reservadamente) para flor: ta aeh (08:42:20)flor fala (reservadamente) para Seuvizinho: kxorro, to te esperando pro jantar... (08:42:23) Seuvizinho fala (reservadamente) para flor: como assim? (08:42:25)flor fala (reservadamente) para Seuvizinho: marialuizaguerra@rotmail.com (08:42:26)Seuvizinho sai da sala... (08:42:26)flor fala (reservadamente) para Seuvizinho: brincadeira, demorei pq tava vendo seu perfil kkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkk
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Jussara Athayde Albertão ENFIM, AS LETRAS!!! Nunca acordara tão cedo. O pessoal de casa, como em dia de festa, aguardavame à mesa com aquele café da manhã: -Bom dia bela estudante!!! As moças cantarolavam: -Estudante do Brasil, é hora de aprender...Acho que não expliquei quem eram as moças: duas primas e uma tia viúva, italianas, que moravam conosco. Havia café, pão, leite, biscoitos e até meu bolo predileto: chocolate. Preguiçosa tentava rir sobre o rosto amarfanhado, sonolento demais. Pela primeira vez minha mãe não perguntou se lavara mãos e escovara dentes. Tudo natural e artificial demais. A ansiedade estampava o rosto dos familiares. Desconfiada, sentei-me à mesa. O estômago antes faminto, não aceitava resíduo algum. Dia desconhecido, bem mais que todos os outros. Era hora de saber os fatos, aprender as letras, uma nova etapa! Com caderno e lápis na mão, embornal com pão e manteiga, rumei à escola. O suor corria fino, mais medo que calor. O pai orgulhoso seguia ao meu lado. Silêncio total. Uma casa comum, beirando a estrada de terra batida, exibia seis letras: e s c o l a!!! Muitas crianças barulhentas aguardavam o toque da sineta. Grudei na calça do pai. Queria voltar pra casa, meus campos, meu mundo encantado. Não havia mais esse tempo. A sineta tocou. Os mestres chamavam seus alunos. De repente, meu nome. O pai beijou-me a testa. Apertei o caderno no peito, respirei profundo e subi os degraus do futuro.
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Junior César Santiago ENTRE OLHOS E CELAS Quando entrei pela primeira vez na prisão, algo me fez ver que eu havia feito uma grande burrada e agora pagava por isso. Deram-me um uniforme esquisito. Disseram-me que agora deveria andar na linha ou acabaria ‘me arrastando’. Não entendi bem o que significava, mas mesmo assim, quase que por instinto quis saber o que deveria ser obedecido, como seriam as revistas, as ‘blitz’ surpresas e tudo mais. Quando os grandes portões bateram atrás de mim, meu estômago embrulhou, o ar era diferente. Pesado. Tenso. Os paredões eram altos e as caras muito mal humoradas. A maldade tinha cheiro e eu nem pensava que pudesse ser assim. Eu não poderia carregar nada, deveria fazer o que me mandassem fazer e existia uma hierarquia que passei muito tempo para conceber, aceitar e obedecer. Nesse meio tempo apanhei um pouco, é claro. De manhã, tinha a contagem, algo sagrado, ai de todos se faltasse um só preso. Logo tive que me habituar à língua local: ‘marrocos’ é pão com manteiga, banana é ‘macaca’ e ‘funça’ é funcionário, às vezes também chamado de ‘verme’, algo não tão educado. O almoço, ou ‘bóia’ é entregue cedo, lá pelas dez e meia e são os ‘faxinas’ que recebem e os ‘boieiros’ os que distribuem. Aos poucos vou guardando os nomes. Todo dia a ‘bóia’ é diferente, tem vez que é carne com batatas e salada, outra vez, abobrinha refogada e carne moída. Sempre tem um que reclama quando o almoço ou a janta se repete por mais vezes na semana. Dizem que os ‘funça’ estão ‘tirando’, sei lá, acho que isso é só manifestação de desagrado. Fico pensando em quantos estão comendo arroz puro ou apenas um ovo requentado que lhe servirá de nutrição para um dia inteiro de trabalho braçal. À tarde, tem futebol, fico só olhando, sempre tem um que chuta a canela do outro e sai pedindo enfermaria. Lá pelas quatro são todos trancados, é hora em que os presos assistem à novela e esperam nova contagem. Fim de Semana tem visita, só se vê feijoada, macarronada da mamãe, salgados e sobremesas passando. O rádio toca um rap dentro das celas enquanto alguns estão fazendo amor com suas respectivas amásias. Penso em quanto tempo vou ter que ficar aqui. Meses, talvez anos. Uma sensação de frustração e tristeza me invade. Eu sei que está tudo quieto... por enquanto. Já ouvi comentários de que quando fica quieto demais é por que a coisa vai ficar feia, muitos já morreram assim. Não posso fazer nada. Sou obrigado a ficar aqui. Tenho que sustentar minha família. Sou concursado, eu escolhi viver assim, entre olhos e celas.
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Danielle Martins Santos EPITÁFIO AOS OLHOS DELE Os dias que se passaram deixaram um buraco em meu peito. Se olho ao longe o passar apressado dos anos, percebo que tudo caminha para o fim. Não tenho em meus olhos o olhar juvenil de outrora, nem tanto vejo as mesmas coisas. Lembro-me vagamente dos dias bonitos, bastava o brilho do sol para que a felicidade me tocasse, mas hoje apenas a tristeza me acompanha. Lembro-me da intensidade de seus olhos, opacos, escuros, profundos que me liam, decifravam segredos desconhecidos por mim, mas apenas me lembro dos olhos, o resto apenas posso supor. A mente humana se gasta e sozinha apaga as lembranças mais doces. Como era o restante de seu rosto? Seu cabelo? O corpo que tive junto a mim por inúmeras vezes? Pergunto-me torcendo para que algo me ocorra, mas nada vem. Agarro-me então ao vazio que me restou, apenas uma cadeira ao lado da janela, sei que em pouco tempo abandonarei este lugar, logo não terá mais nada e não levará muito tempo para que eu me torne uma lembrança, os olhos irritadiços na mente de alguém. Viro o olhar para a mesma estrada e quase posso ver-me apoiada na cerca, o corpo colado ao do dono dos olhos, os cabelos que voavam me fizeram rir, hoje me tornam um pouco mais melancólica, paro a lembrança quando ele se inclina para beijar o meu eu adolescente, bela e feliz. Distraio-me com o caminhar solitário da morte, ela não parece ter pressa, embora eu a tenha. Sei que vem me fazer uma visita única e se os músculos da face já não estivessem tão fracos eu me esforçaria para sorrir, como se fôssemos amigas de longa data. Não tive medo, não senti dor, foquei-me uma última vez nos olhos negros que me acompanharam pela longa vida e se houvesse outro lado eu sabia que ele estaria lá a minha espera. Apenas senti um ar gélido tocar meu corpo e uma paz branca. Então tudo acabara.
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Fátima Soares Rodrigues ESCRITA Escrevo para libertar a palavra que está presa em minha mente. Escrevo para criar ambientes na imaginação do leitor. Escrevo para me deleitar na leitura do que escrevi e rever disputas interiores pelo texto enxuto. Escrevo para transformar em livro os capítulos de tudo que vivi. Estou reclusa para escrever. Tal qual uma parturiente, encontro-me de resguardo para as palavras. O silêncio me contempla e me completa. Necessito dele para dar vez às letras e, juntas, invadir espaços em branco, povoar a folha, a tela, a mente... Criar a unidade formando o todo. Guerrear com os pensamentos, tentando afastar a dicotomia, o que não se encaixa. Dar às pausas o merecido tempo: o respirar fundo na busca pela palavra certa; o olhar para cima, buscando a luz, para só então dar movimento aos dedos num frenético vai-e-vem de uma linha para outra, preenchendo os vazios do papel enquanto esvazia-se a mente da enxurrada de palavras que ocorrem. E como num parto, parir o texto, dar vida às letras e cuidar para que não se contaminem com a doença da falsidade, da pieguice, do plágio... E, finalmente, como Manuel Bandeira, limpar, desbastar o texto e apresentá-lo vivo ao mundo!
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Plinio Giannasi ESMERALDAS O velho golpe da vítima caída na pista... Alguém estaciona para prestar socorro e é assaltado. Nestes dias de violência gratuita, é preciso estar atento a novidades do crime e deixar de lado o seu conteúdo humano, em nome de uma sobrevivência necessária. Na velocidade que eu vinha, poderia pisar no freio com tranquilidade, desviar da pessoa “acidentada”, e seguir para minha casa, depois de um dia estafante de trabalho. E foi o que eu fiz, exceto pela porção tranquilidade, quebrada por um detalhe sutil. A mulher estendida no asfalto estava nua, e naquela curva de alta velocidade, sua vida (se estivesse viva) corria grande risco com alguém menos experiente ao volante. Apenas detalhes, que fazem a diferença quando a vítima escolhida é um homem. Fosse uma mulher, talvez causasse indignação ou a suspeita de que aquela outra estivesse ali, naquela situação, jogada de algum carro pelo namorado ciumento, algo assim. Sendo homem, grandes chances de êxito... Retomando a aceleração e os batimentos cardíacos, conferi pelo espelho retrovisor interno o que já havia suspeitado, ela levantou-se depois do fracassado golpe. Mas um cruzar de olhares, num átimo de segundo, ficou gravado em minha memória como uma tatuagem. Naquele relance rapidíssimo, pude perceber que os dois grandes olhos verdes, assustados, se assemelhavam a duas esmeraldas, e tive algumas certezas. Detalhes, certezas. A vida depressiva de um burocrata. Certeza de que ela temia ser reconhecida por esse detalhe, os olhos exageradamente verdes. Tanto que a fuga para dentro do matagal foi muito rápida. Certeza de que ela tinha mais medo do que qualquer possível vítima, que estava sendo usada naquele plano de crime, que lhe desconhecia o porquê. Tive certeza de que ela estava apavorada. A falha do golpe se deu porque nada me chamou a atenção naquele corpinho pequeno, muito branco, de andar desajeitado para dentro do esconderijo. Eu outra fase da minha vida, talvez chamasse. Mas aqueles olhos... E os dias se passaram lentos, com aquela visão a me perturbar as lembranças, e mesmo passando pelo mesmo atalho para fugir dos congestionamentos todos os dias, nunca mais a havia visto. Na certa a quadrilha, que me assaltaria quando em estacionasse, dissipou-se com alguma denuncia ou com a chegada da polícia, que outro motorista chamaria, e o fim de todo crime mal planejado. Algumas semanas após aquele ocorrido, revejo as duas enormes esmeraldas assustadas, num acampamento ao lado do aeroporto. Crianças brincando, adultos negociando, um mundo à parte. O táxi não conseguiu uma vaga no estacionamento oficial, e depois de algumas desculpas do motorista e de um belo desconto, desci ali mesmo, próximo daquelas pessoas. Pouca bagagem para uma viagem de dois dias até a capital, a prometida promoção
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enfim chegou depois de muitos anos de trabalho na repartição. Alguns se oferecem para carregar a minha única bolsa, seguiu-se a minha recusa e olhares furiosos deles, precisei apertar o passo. Mas alguém me seguia, e eu não conseguia olhar para trás e conferir quem vem ali. Não é adulto, mas também não é criança. No interior do aeroporto, aí sim me viro para ver quem me seguia, já abordada por seguranças que não permitem maltrapilhos num ambiente reservado aos bem nascidos. Era ela com suas esmeraldas, e nem precisou acenar. Pedi aos seguranças que a deixassem entrar apenas alguns metros, que me dissesse o que queria: - Tio, me dá uma moeda? Tio, ela me chamou de tio. Devo ter idade suficiente para ser pai, ou até avô dela, mas esta familiaridade me incomoda depois que os filhos se casaram, se foram, e a solidão aportou em mim como a nova companheira. Tio, era só o que faltava. - Para quê você quer uma moeda, menina? - Menina não, eu tenho quinze anos... - Pois parece uma menina, de bem menos idade. - Então, vai me dar uma moeda ou vai ficar de papo? - Diga para quê e eu dou. - Para um lanche. - Uma moeda não compra um lanche e... - Claro que não, tio. É só pra completar com as moedas que eu tenho. Então foi onde eu derrapei nas palavras: - Eu compro um lanche pra você... - Eu quero é uma moeda, tio. Eu preciso muito de um lanche. - E o que você precisa tem um nome? - Por aqui, no lixão, nós chamamos de “pedra”. Mas tem diversos nomes... Lixão, aquele aglomerado de pessoas de onde ela saiu. Nome sugestivo. - Se eu te der, você vai se prejudicar mais ainda. Não quer mesmo comer? Não tinha como desviar o olhar dos verdes olhos dela. A conversa de moeda, lanche, crack, tudo era coadjuvante para a minha perplexidade diante da presença dela, pois a sociedade esperava de mim um tratamento indiferente para com ela, que a ignorasse, e eu simplesmente não conseguia. Quando ela insiste na moeda, vejo que dois outros maltrapilhos do lixão tentam passar pelos seguranças, sem sucesso. Quiçá, os mesmos que me assaltariam naquela curva, ou outros que ela conheceu agora. Percebendo o que eu vi, ela completa: - Aqueles são meus amigos, eles também precisam de uma moeda, tio. - Eram eles que estavam com você naquela curva da rodovia? Relato brevemente o que aconteceu, com o detalhe da nudez, dos olhos... - Que curva? Que rodovia? Olha tio, eu não sei nem meu nome direito. Se isto tudo aí aconteceu mesmo, deve ser pra lá de um mês atrás, temos diversos esquemas pra conseguir uns trocados, mas... Eu estava nua mesmo? Esclarece que por uns trocados faz qualquer coisa, desde a participação em assaltos até prostituir-se. Mas preciso responder: - Sim, você estava sem roupas, mas eu consegui me desviar e não fui assaltado. Vi pelo retrovisor que você se levantou e entrou no matagal, cambaleante.
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- É, mas este esquema não tinha futuro, a polícia chegou e acabou com tudo. - E não pensa em sair desta vida, estudar, ter um emprego, um rumo? Ela responde com outra pergunta, no comando da conversa: - E você se lembrou, hein, tio... Gostou de me ver nua? Não sei como vou explicar que os olhos dela me fascinaram, que uma nudez não me tira a atenção. Com a minha demora, ela continua: - Olha tio, dá uma moeda aí e me deixa em paz, tá. Ela foi incisiva, tanto que peguei algumas moedas no bolso traseiro e entreguei àquela menina, que se dizia com quinze anos e aparentava menos: - Vá lá comprar o seu lanche, e se cuide, menina. - Falou, tio. Com as moedas caindo-lhe entre os dedos trêmulos, recuperando-as com dificuldade, correu em direção aos outros dois. Aos safanões, tiraram dela aquelas poucas moedas. Dois brutamontes agredindo aquela pequenina, que se deixa agredir e ainda os acompanha. Vá entender... E minha vidinha de burocrata de carreira continuou sem sobressaltos. Quando vidas tão diferentes se cruzam, pode resultar em catástrofes de ambos os lados, mas não foi o que aconteceu. Não naquele dia. Agora, dispensado pelo Diretor Executivo um pouco mais cedo, vou poder voltar para casa sem os atalhos dos dias comuns, o transito pesado fica para mais tarde. E novamente aquela lembrança me deslumbra, me pega pelos colarinhos, me esbofeteia. Incontrolável seguir pelo atalho de todos os dias, com a surpresa daquela curva. Ela está lá, no mesmo local, nos mesmos “trajes”, com o detalhe de estar ladeada por viaturas de polícia, bombeiros, e o carro do IML. Alguém não conseguiu frear a tempo, e tudo está terminado para ela. Estaciono um pouco à frente e saio com calma, para não ser confundido com um familiar da vítima, era ela mesmo. Corpinho frágil, de seus quinze anos que aparentam menos, diversas fraturas aparentes e o olhar espantado para céu, para o nada. Duas enormes esmeraldas que agora já não têm valor.
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Jussara Athayde Albertão
ESPELHO DO TEMPO Frente ao espelho do meu hoje penteio os cabelos do passado que caem lisos sobre os ombros de um talvez e que ondulam o corpo de uma certeza Espelho que marca as rugas do tempo; cabelos que cativam feições marcadas, refletidas no vidro laqueado-prata prateados pelo tempo refletindo em neve. Espelho, espelho meu...meu Deus! Repito de memória as frases sabidas tentando incutir juventude à imagem, imaginando a imagem em juventude. Espelho em que me vejo agora, penteando o amanhã entretanto, projeta uma lágrima rolando junto ao primeiro fio de cabelo branco.
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Ana Claudia de Souza Oliveira
ESTRO Abro as asas e cálida, Pouso em ti, Em teus olhos, sou águia, Em minha flor, és bandolim. Dou-te espaço, Não quero-te grato, Chato, casto, quero-te oblato, De minhas formas, iliterato. Você é meu compasso, Meu senhor, meu forasteiro, Ontem, sim, seu teremim, Nesse instante, meu mandarim. Envolvo-o em pistilos, vencido, Caído, caucásio, temendo abrigo, Tão perto quanto o momento, Urdido na teia de meu pensamento, E eu, de ti, fujo, ainda que abelha afro rainha, Antes que anoiteça a fantasia.
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Tácito C. Carvalho e Silva FELICIDADE A felicidade é um desejo de todos. O ser humano em todo o Universo busca prioritariamente para si a felicidade! O dicionário Michaelis define este termo como “estado de contentamento, bem aventurança”. Flavio Gikovate em seu livro “A busca da felicidade” enaltece as diferenças que podem ocorrer entre as pessoas no que diz respeito a este sentimento e a neurologia estabelece o papel das endorfinas na sensação de euforia. Quem pode explicar, no entanto, o que é felicidade? A manifestação objetiva da felicidade é a alegria, o júbilo, o contentamento com algo que ocorreu ou está ocorrendo e isto, este algo, tanto pode ser objetivo como subjetivo: alegria com o presente que recebeu ou com o fato ocorrido, felicidade com a ideia, com o sonho, com o planejamento, com a espera, com a conquista. Enfim, a felicidade é algo diáfano e, ao mesmo tempo, profundo que tem um poder sobre nossas vidas e sobre a vida de todas as pessoas, quase que impossível de se mensurar! Recentes pesquisas publicadas no “British Medical Journal”efetuadas pelos eminentes cientistas James Fowler da Universidade de San Diego e Nicholas Christakis de Harvard demonstram que a felicidade é contagiante, vale mais do que dinheiro e aumenta a expectativa de vida das pessoas em mais de 10 anos. Ou seja, quem é feliz vive mais e melhor! Quem tem amigos felizes aumenta muito as suas chances de encontrar a sua felicidade. Mais do que isto, somos felizes se transmitimos nossa alegria aos nossos semelhantes, ou, como dizia madre Tereza de Calcutá: “não podemos permitir que alguém saia de nossa presença sem se sentir melhor e mais feliz”. Assim, me parece, salvo melhor juízo, que todos queremos e buscamos a felicidade. Alguns consideram que a encontram na fortuna e nas coisas materiais e, assim, transformam suas vidas numa incessante busca do poder e do ouro. Outros acham que a felicidade se encontra na conquista e passam toda a vida lutando para este fim. Há aqueles que buscam a felicidade no trabalho, outros no ócio e até os que a procuram no vício e nas drogas. Poucos compreendem que ela pode estar dentro de nos mesmos... Nesta semana dois amigos estiveram comigo; os dois com o mesmo grave problema, ou seja, os dois com câncer de próstata. Um deles muito rico e poderoso fez seu tratamento no melhor hospital do Brasil, o outro se tratou aqui mesmo já que não tem recursos. Encontrei o mais rico muito amargurado e deprimido sentindo-se injustiçado. Ao contrário o pobre estava feliz por ter tido a oportunidade de tratar a doença. A felicidade está nas pequenas vitórias, há porém, quem não a encontre nem mesmo nas grandes conquistas como vencer um câncer. Olhar a natureza, sentir a brisa da manhã, ver uma criança brincando, encontrar os entes queridos, dormir no aconchego do lar são motivos que nos dão felicidade. Concluo que para ser feliz precisamos de muito pouco. Mas o mais importante é ter no coração a presença de Deus, pois Ele é que nos mostra o caminho da bem aventurança. Assim “feliz é a nação cujo Deus é o Senhor!”. Desejo a você toda a felicidade!
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Sebastião Emidio Ferraz
FIQUE ATENTO Quando Deus nos dá um sinal, estamos tão distraídos com as coisas do mundo, que não percebemos, mas quando ocorre algo errado em nossas vidas, aí lembramos, e a ele recorremos. Muitas vezes, pedimos a Deus um sinal, mas o sinal que pedimos, ele já deu, mas por causa das coisas do mundo, não enxergamos. Se ficarmos mais atentos às coisas de Deus, vamos ver que ele está nos alertando a todo momento, e quando achamos que ele nos abandonou, exageramos. Tudo o que acontece em nossas vidas, é um sinal de Deus, depende de nós interpretarmos, do nosso jeito, porque Deus é dono de tudo, e temos que ter respeito por ele. Deus é tão maravilhoso, que falamos: se Deus é por nós, quem será contra nós. Então parem de pedir um sinal. Vivam as palavras dele, e façam o pedido com fé que ele ouvirá nossa voz .
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Pedro Gomes Nogueira Filho
FLOR DE AÇO Pequena bolinha de aço cai na terra e mais um milagre da germinação acontece. Germina; saem duas folhinhas reluzentes de aço polido, logo sai um botão. E ali está ela, linda flor de aço. No meio do frágil reino vegetal , não se dobrando ao vento, nem murchando ao sol , nem sendo devorada por pragas . As abelhas logo veem que apesar de forte, ela e fria e sem néctar. Não há perfume em suas pétalas. Suas folhas pontiagudas cortam e furam os animais que nela esbarram. Mas... Veio uma chuva, outra, outra e outra. A ferrugem começou a carcomer, seu brilho é trocado pela cor forte da ferrugem. Ela vai se desmanchando, se misturando à terra, ficando só as plantas frágeis, e verdes ao seu redor. As plantas frágeis? A FLOR DE AÇO É FORTE? FELIZ AQUELE QUE DESVENDA MISTÉRIOS.
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André Kaires
HOMENS-BOMBA Há dias em que a gente perde o sentido das próprias pernas, e, aí, você olha para frente e vê coisas doidas, doentes, difíceis... Sentado em meu sofá, olho o globo para não ver a globo, mas o que vem a seguir é muito pior, enquanto há 50 mil pessoas comprando armas, há outras 200 mil, tomando coca-cola. O sistema é bruto e as amarras predatórias nos carregam para o fundo do seu jardim pestilento chamado neoliberalismo-capitalista burguês, freguês e burro. Lá fora, a chuva cai. Sorvo um pouco do café, ainda está quente e bom. A vida acontece, quando a gente menos espera! Ligo a TV... A solidão aumenta, e, no meio desse lixo todo, encontro homensbomba destruindo prédios, casas, egos, sonhos... E o pior nem são as bombas de artefatos, e sim, aquelas que eles colocam dentro do nosso peito, que nos machucam e calam nossa sede de projetar e viver intensamente cercados das pessoas que nos fazem bem. Homens-bomba que explodem e levam consigo tanta coisa... e como num quebracabeça, desfazem imagens, peças e o desejo de acreditar no amanhã. Ouço o soar da campainha: é o meu filho que veio me visitar... A vida acontece quando a gente menos espera, e o amanhã, sempre virá.
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Jussara C. Godinho
IMAGEM BUCÓLICA Repousa o lago suave entre os verdes olivais. As garças em passos leves dançam ao seu redor Os galhos balançam e abraçam suas águas que mansamente recebem seu acarinhar. Repousa o lago suave entre o azul do céu e o verde a resplandecer! Majestosamente eternizado em matizes multicores pelos dedos mágicos de Deus
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Pedro Felippe Bernardi Menossi
IMPACIÊNCIA Estava muito quente e já fazia meia hora que ela esperava o ônibus naquele ponto. Olhava para o relógio e ainda faltavam alguns minutos para passar. Impaciente começou a puxar conversa com o rapaz que estava ao lado dela, de um jeito bem brasileiro: - Acho que vai chover hoje. Mas ele nada respondeu. Ela pensou em como ele é sem educação. Não fez nenhum comentário, mas estava aflita. Precisava falar. E começou falando sobre a previsão do tempo que passara na TV no dia anterior. Ela não deixava o assunto morrer, começou a falar sobre a moça que apresenta o jornal e de uma amiga que se parecia muito com ela. O rapaz olhava para um lado e para outro e não sabia com quem a mulher estava falando. Por mais que ele quisesse tentar dizer algo, ela não deixava. Quando ela se viu já estava chorando falando sobre o namorado que a traiu com a ex-melhor amiga. Disse sobre como ficou mal, mas que agora estava tudo bem. Estava predeterminada a viajar o mundo, conhecer novos lugares e novas pessoas. Volta e meia dizia que ele era muito quieto, que não falava nada. Mesmo com esses comentários ele não dizia nada. Apenas olhava assustado para a moça. Ela falou sobre tudo. Sua vida particular, moda, esporte, religião e política. E por incrível que pareça, o rapaz não abriu a boca uma vez se quer. Ela já estava se apaixonando por ele, afinal, qual homem conseguiria ficar uma hora e meia ao lado de uma mulher apenas a ouvindo falar. Sim, já estavam ali há uma hora e meia, quando começou a falar, até se esqueceu que estava esperando o ônibus. Quando ela realmente cansou, virou para ele e disse: _ Agora me fale sobre você. Naquele instante o ônibus que ela esperava estava chegando e ela foi ficando de pé. Ele a segurou pelo braço e fez sinal para que ela esperasse um instante. Tirou um caderninho sujo do bolso e uma caneta azul, e escreveu em letras garrafais: EU SOU SURDO.
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Paula Renata Hanke da Silveira
INEXISTÊNCIA INSISTENTE Olha nos meus olhos E diz mudamente Que nada mudou Porque nada existiu Que você não desistiu Porque nunca quis. Olha nos meus olhos E diz mudamente Que você não partiu Porque nunca chegou Que, de mim, não se cansou Porque, por mim, nunca se preocupou. Olha nos meus olhos Olha firme Olha decidido Olha profundamente E diz sem palavras Que eu não posso ser segundo plano Porque nunca fui um plano. Olha nos meus olhos Ei! Psiu! Ao menos Olha nos meus olhos!
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Violeta Ayumi Teixeira Araki JÁ QUE ESTAVA NO CONTRATO Ela me enchia a paciência pela décima quarta vez em menos de quatorze minutos. Dizia que era totalmente contra a Copa do Mundo no Brasil, e gritava que as obras estavam todas atrasadas, ficando vermelha de raiva a cada vez que o fazia. Eu não tinha escapatória, me via sempre no meio do falatório inacabável daquela mulher que um dia fora a que eu amei. Havia papéis espalhados por toda a parte em minha mesa sempre bagunçada, porque eu nunca fui mesmo muito organizado e, depois de ter me tornado jornalista, a contragosto de meu pai e de todos os políticos do mundo, a coisa piorou ainda mais, a tal ponto de eu não saber mais onde começava a tela do computador e onde terminava a conta de luz que ainda não fora paga. Nesse olho de furacão no qual me perdia cada vez mais, minha mulher continuava falando, falando, às vezes parecia que falava por séculos a fio, ininterruptamente, só parando mesmo pra retocar o batom. Estava sufocado. Precisava sair pra clarear as ideias naquele fim de tarde cuja última luz crepuscular reluzia nas janelas do prédio vermelho, tudo muito poético, pois quando a gente se sente infeliz sai por aí dizendo este tipo de abobrinha pitoresca, talvez querendo se passar por Balzac ou Guy de Maupassant. Anoitecia com rapidez e logo a madrugada viria me pegar pelo colarinho. Entretanto agora só podia sentir o vento congelante nas esquinas do bar, as conversas tolas pela noite de sábado, as cervejas sem glória em cima das mesas amarelas, os risos e a embriaguez, e o maldito “coffe cream” sem álcool nem nada de especial. As horas passando, os uísques rodando, não por mim, as contas, os petiscos aromáticos, os carros sem chegar a lugar nenhum, os desejos longe... Mas nada disso fazia sentido, nem deveria fazer, porque eu já estava pra lá de ébrio. Não sei bem como consegui pagar a conta e voltar para casa. Mas no domingo a situação voltava a ser exatamente a mesma. Minha mulher acordava, fazia um café bem fraco, mais parecido com água da chuva misturada à terra do quintal de casa. Em seguida principiava a reclamar novamente. Senão da Copa, das Olimpíadas no Brasil. Ela sabia de cor quanto ia custar cada obra, dava detalhes sobre que tipo de cimento imprestável iriam usar para baratear as construções. Devia ser fiscal de obras ao invés de manicure. Não desejava mais ouvi-la. Queria mandá-la pra um lugar bem longe, sem passagem de volta. Ou então eu mesmo dar um jeito de escapulir dalí. Era por essas e outras que, àquela altura da manhã, eu ligava a TV e assistia às corridas de fórmula 1, torcendo sempre pra quem estivesse na frente, pois desse modo me privava da frustração de ver o piloto do meu país perder mais uma vez. No meio de uma grande ultrapassagem na chuva, minha mulher, num rompante, aparecia na sala, desligava a TV e mandava-me assar a carne do almoço. Não sem antes dar a sua finíssi-
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ma opinião sobre a corrida que estava ótima, até ela ter interrompido. “Esse paspalho vai ganhar de novo? Pra mim aí tem coisa. Devem fazer maracutaia... como você ainda consegue assistir a essa roubalheira?”. “Tá bom, vou fazer uma matéria sobre isso”, era o que respondia para ela. Esse era o método mais eficaz para fazê-la ficar quieta por um tempo. Ela tinha pavor das minhas matérias. Achava que eu era um fracasso em termos de jornalista. “Papai tinha razão. Devia ter me casado com um advogado”, repetia sempre que eu chegava em casa anunciando ter sido despedido mais uma vez. A primeira matéria que escrevi tinha esse nome: Obcesssssssssssão apocalíptica. Escrito assim mesmo, com tantos esses (s) quanto possíveis, só para tornar ainda mais obcecada a palavra. Era para uma revista científica especializada em psicopatia. Na época era moda essa coisa de psicopata. Tinha um monte deles estourando nos noticiários. Psicopata que mata criança em escola, psicopata que mata filha e joga o corpo pela janela, tudo isso. É claro que minha mulher não gostou nada quando leu. Caiu matando em cima da matéria. Fez desabar um temporal de críticas a respeito. Saí ensopado de reclamações e perdi 98% da minha confiança literária. Os 2% que sobraram uso atualmente para escrever receitas de bolo na coluna culinária do jornal. Ao entardecer de domingo, lembro-me de gostar de ver o futebol anos atrás. Não hoje. Nunca mais ousei gritar gol quando aquela mulher está em casa. Coisas terríveis acontecem. Objetos da cozinha passam a voar quando ela se enfurece. A enxaqueca dela é desencadeada misteriosamente pelo campeonato brasileiro de futebol. E piora muito com a liga americana de basquete. Pode até virar um câncer se eu não levá-la ao shopping nesta linda tarde de domingo perfeita para se fazer qualquer coisa do mundo exceto as coisas que ela me pede. Onde foi que eu errei, afinal? Por vezes, penso que não posso seguir adiante nesse sistema carcerá...digo, nesse casamento. O contrato matrimonial era claro: ela devia fazer-me feliz na alegria e na tristeza, para todo o sempre. Caí que nem um pato nessa lorota. Pego a certidão de óbi..., digo, de casamento, e hesito em rasgá-lo. Mas então ouço pela porta dos fundos minha mulher se esgoelando ao gritar com nosso vizinho, defendendendo como nunca a minha honra depois dele ter dito que eu nunca arrumo a infiltração da parede. Apesar de tudo, deve me amar ainda. Ela entra furiosa, despejando seus reclames direto na pia do meu ouvido. Curiosamente, é exatamente nessas horas quando ela fala demais e retoca o batom que eu a descubro como sendo novamente a mulher que um dia eu amei.
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Emanuele Pires Canela da Silva
JUDEU Por que, judeu, você chorou, o seu lábio secou, e sua voz se calou? Por que, judeu, o beijo parou, quando aos seus braços morreu, a quem vida prometeu? Por que, judeu, agora está nu, o corpo está frio, os trapos um rio e o vermelho inundou? Por que, judeu, a judia gritou, seu feto abortou, sobre ele morreu e a fé pereceu? Por que, judeu, a vida cessou e o poder cedeu ao homem ateu criado por Deus? Digas a mim... Por que, judeu, Foste tu e não eu?
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André Telucazu Kondo
KRETEK – Da Índia? – Sim, acabo de voltar desse país tão exótico, incrível... – Tanto assim? Júlio olha para o amigo como se o repreendesse de algo gravíssimo. Retira um Gudang Garang de um maço amassado e se põe a fumar. A fumaça exalada não possui odor desagradável, pelo contrário, o aroma de cravo, como incenso queimando em um templo sagrado de Bali, constitui, por si só, uma viagem ao distante Oriente. – Que cigarro é esse? Júlio balança a cabeça, desolado pela ignorância do amigo Ricardo. “Ah! Como somos diferentes agora. Houve um tempo em que bastava um olhar para que nos compreendêssemos. Agora, esse ignorante me enche de perguntas néscias”, remoia Júlio, censurando um amigo que começara a definhar em seu peito. A infância ingênua dos dois, os passeios ao Horto Florestal... Ficaram ambos excitados com a visão de um macaquinho que saltava entre as copas das árvores. Que besteira, pois, agora, Júlio já havia visto gorilas na África! E Ricardo? Continuava com os macaquinhos da Zona Norte. – Isto não é cigarro, é um kretek – respondeu Júlio, soltando rude baforada no rosto do amigo, melhor, quase amigo agora. – Que treco? – Não, amigo. K-R-E-T-E-K. Kretek. – Trouxe esse treco da Índia? – Não sabe que os kreteks são cigarros de cravo da Indonésia? Ricardo não sabia. E Índia e Indonésia não eram a mesma coisa? O amigo diz que está voltando da Índia e volta fumando cigarro da Indonésia? Não faz sentido. Kretek. Ele acabou de dizer que kretek é cigarro de cravo. E cigarro não é cigarro, seja de cravo ou tabaco? Júlio poderia evitar tal constrangimento, bastava dizer que comprara os kreteks ali mesmo, na padaria em que bebiam café. Se estivesse fumando um cigarro preto Djaram, ainda poderia pleitear um ar de superioridade, mas um Gudang Garam encontra-se em qualquer padaria de São Paulo. O balconista pede para Júlio apagar o cigarro. Com um suspiro, Júlio tenta ensinar ao ignorante que aquilo é um kretek. Aproveita para reclamar do café: – O gosto disso está horrível. Acaso foi coado em meia suja? Que saudades do sabor inigualável do Kopi Luwak... Ricardo não sabia o que era Kopi Luwak, mas não se animou em perguntar. Sentiu que o amigo não queria ser aborrecido com perguntas e por isso ficou calado. Mas Júlio queria que Ricardo perguntasse. Ah, como queria! Assim poderia exibir a sua sabedoria, o seu conhecimento adquirido no mundo lá fora. Um mundo diferente de tudo o que o simplório amigo havia visto no mundinho em que vivia preso. E imaginar que o mais longe que o amigo chegou foi ao Rio
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de Janeiro. Um carnaval esquecido da juventude. Na verdade, esquecido apenas por Júlio, que havia passado o carnaval do ano passado em Veneza. Mas, para Ricardo, aquele carnaval ainda era uma de suas lembranças mais queridas. – Lembra-se da nossa viagem ao Rio? Júlio não respondeu. Mas que idiota era aquele sentado ao seu lado no balcão? Seria sempre um idiota, pois não procurava aprender coisas novas. Que viagem ao Rio? Que há de mais nisso? Agora, um Kopi Luwak! Um Kopi Luwak é o café mais caro do mundo! Raríssimo e por isso um quilo desse café vale mil dólares! E Júlio, sim, o grande Júlio havia tomado esse cafezinho em Nova York. Mas será que Ricardo não vai perguntar sobre o Kopi Luwak? E será que Júlio não se lembra mesmo da viagem ao Rio, em que ambos dormiram na praia de Copacabana e se enamoraram com duas cariocas de Ipanema? Júlio não queria saber de cariocas, muito menos de paulistas. Ele já havia namorado uma italiana, uma australiana... Como Ricardo não se importa em saber o que é um Kopi Luwak? Como Júlio não se lembra daquele carnaval no Rio? – Acaso sabe o que é Kopi Luwak? – Não sei... E você se esqueceu da nossa viagem? – Esqueci... Bem, Kopi Luwak é o café mais caro do mundo! Tomei em Nova York. Luwak é o nome de um animal que vive na Indonésia. Ele come os grãos de café e depois os defeca intactos. O processo digestivo desse animal enriquece os grãos, proporcionando um sabor... – O quê? Você está me dizendo que bebeu café cagado? – Ricardo fez uma careta, pior do que se tivesse tomado um café coado em meia velha. – Como você é ignorante – Júlio lamentou. – Eu? Ignorante? Você toma café cagado e me chama de ignorante? Não me faça rir – Ricardo se ofendeu. Júlio não disse mais nada. Não havia mais nada a dizer. Pelo menos, nada que Ricardo quisesse ouvir. Fosse outra época, ao fim do café naquela padaria, os dois estariam brigando para pagar a conta um do outro. Mas a briga agora era diferente e cada um pagou a sua conta. Antes de sair, Ricardo viu o tal do kretek sendo vendido ali mesmo, na prateleira acima da cabeça do Zé, dono da padaria. – Zé, qual é o nome desse treco aí? Os olhos do padeiro correram pela prateleira repleta de pacotes de cigarro. Estranhou a pergunta. – Como assim? – O que tem nesses pacotes? – Cigarros... Ricardo fuzilou o amigo com um olhar vitorioso. Saíram da padaria, sem trocar palavra.
Júlio não queria mais ficar no Brasil, ao lado de pessoas simplórias como Ricardo. Júlio queria voltar para os braços do mundo. Lá fora é que se vivia de verdade. Depois de experimentar a grandeza do mundo, não se contentava mais com pouco. Júlio sentiu pena de Ricardo, porque o mundo do amigo continuava tão pequeno... Ricardo lembrou da viagem ao Rio e sorriu sozinho. Antigamente, o velho Júlio elogiaria o café do Zé, fumaria feliz o seu Hollywood e sorriria também ao se lembrar daquele velho carnaval. Ele era tão alegre. Ricardo sentiu pena de Júlio, porque o mundo do amigo havia se tornado grande demais...
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Ana Cristina Mendes Gomes
LACUNA Café amargo, vidraça descortinada, jardineira deserta... Onde o sabor, o aconchego, a flor? A cama arrumada, a canção errada, o espelho sem batom... Onde o amor, a lembrança, a cor? Nossa antiga foto, de carícias, emoldurada, colhi e poli com esmero... Onde? À entrada da casa... Sentindo desespero... Sem ti, eu espero...
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Alzira Negri Costa
LEITE EM PÓ Belos dias da minha infância, vividos com a ingenuidade de uma criança pobre e feliz, num cantinho do mundo retirado da vida urbana. A rotina matinal era preenchida levantando cedo, tomando café, e com o embornal dos materiais escolares nas mãos, caminhar para a estrada rural para então seguir para a Escolinha onde conheci as primeiras letras. E com que alegria recebi minha primeira cartilha! Como era linda! Afinal era ela o único material escrito que tinha nas mãos. Porém, não pensem que fosse ela o que mais me atraía na escola; não era mesmo; o que eu mais gostava e pra valer, era do leite em pó. A professora, que também fazia o papel de merendeira, passava as nossas lições e ia para a cozinha colocar a sopa para cozinhar e pedia, ora para um aluno, ora para outro, que fôssemos mexer a sopa enquanto lecionava. Eu aguardava em êxtase a minha vez de mexer a sopa. Era a minha oportunidade de levar a colher na grande lata de leite em pó, encher a boca com aquele sabor, que para mim, era o verdadeiro sabor da infância. Depois correr para a “casinha” que ficava atrás da Escola, era o nosso banheiro que chamávamos de privada. Lá dentro, terminava de saborear o “leite em pó” grudado nos dentes. Hoje, quando me surpreendo pensando na minha primeira professora, entendo que ela, por muitas vezes, deve ter percebido minha boca com sinais do leite, mas com sua enorme sensibilidade, nunca em nada me questionou... Quem sabe até, propositalmente, me tenha mandado “mexer a sopa”.
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Isolda de Moraes Braga
LIÇÃO DE AMOR Dona Carmem era uma pessoa do interior mineiro, casada, tinha 6 filhos criados com certa dificuldade, pois o marido ganhava pouco e ela procurava ajudar como podia, fazendo pães e doces para vender e ajudar nas despesas. Mesmo com tantos afazeres D. Carmem ainda encontrava tempo para ajudar as pessoas carentes que precisassem de conforto e carinho. Ajudava a tratar de doentes e, apesar de não possuir muito, sempre tinha uma refeição, mesmo que singela, para dar a quem tinha fome. E assim levava a sua vida simples, mas honesta. Certo dia, estava em sua casa, quando ouviu batidas na porta. Prontamente foi atender. Ao abrir a porta deparou-se com um jovem sujo, maltrapilho mesmo, aparentando 17 a 18 anos de idade, que lhe disse: - Senhora, sei que sou muito jovem para pedir esmola, mas estou viajando a pé há alguns dias e o dinheiro que eu tinha para me alimentar acabou há três dias; estou bebendo água nos córregos e pegando pontas de cigarros nas ruas para tapear a fome. Mas agora não dá mais. Se a senhora puder me arrumar qualquer coisa para comer eu ficarei muito agradecido. - Está bem, espere só um momentinho – disse a senhora. Entrou e daí a pouco voltou com uma xícara de café com leite, pão e manteiga. Tadeu (esse era o seu nome) pegou e comeu com grande avidez. D. Carmem apiedou-se dele e perguntou: - De onde você vem? - Do norte de Minas. Eu morava com meus pais que trabalhavam em uma fazenda cuidando da lavoura de café. - E o que aconteceu? Você não trabalhava? - Eu não trabalhava na lavoura porque meu pai não queria para mim a vida que ele levava. Resolveu então que eu iria para a escola e eles trabalhariam para me dar um futuro melhor. Eles iam no caminhão de bóias-frias pela manhã e voltavam à tarde. Há quinze dias o caminhão caiu em um buraco, rolou por uma ribanceira e, entre muitos, meus pais faleceram. Fiquei desesperado e, após o enterro, me vi sozinho, sem saber o que fazer. O dono da fazenda me disse que eu poderia ficar lá, mas teria que trabalhar na roça. Pensei bastante e resolvi que não era isso que meus pais queriam para mim. Talvez, se eu fosse para São Paulo, seria melhor. Conversei com o fazendeiro, ele me deu muitos conselhos e disse que eu fizesse o que achasse melhor. Entregou-me um pouco de dinheiro e eu resolvi arriscar. Saí de lá em uma jardineira que passava todos os dias para a próxima cidade. Lá chegando, fui ver o preço da passagem para São Paulo e vi que, se eu comprasse a passagem, não teria dinheiro para comer. Saí andando, pensando no que fazer, andei, andei, meu dinheiro acabou e aconteceu o que a senhora já sabe. Comecei a me desesperar e resolvi pedir um prato de comida em algum lugar; e aqui estou. D. Carmem ouviu tudo em silêncio e perguntou: - Tudo o que você me disse é verdade? - Sim, senhora.
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- Então vou ajudá-lo. Espere um pouco. Entrou e voltou com algumas roupas, um par de tênis que pegou de seus filhos, uma toalha e um sabonete e disse: - Você está muito sujo. Ali no final da rua tem um rio com uma cachoeira, vá lá, tome um banho e vista estas roupas e depois volte aqui para almoçar. O rapaz foi e voltou. D. Carmem ao vê-lo disse: - Menino, você é muito novo e de boa aparência! Espere aqui que vou lhe dar o almoço. O rapaz almoçou, agradeceu por tudo e ia saindo, quando ela falou: - Não meu filho, espera! Vou lhe dar um dinheiro para fazer essa barba e cabelo que estão muito grandes e volte aqui novamente. E pensou: “será que ele volta?” O rapaz se foi e D. Carmem saiu à procura de um conhecido, dono de uma transportadora e perguntou-lhe: - Sr. João, o Sr. tem alguma viagem marcada para São Paulo? - Tenho sim, D. Carmem, a senhora quer que leve alguma coisa? Vou hoje à noite. - Se não for incomodá-lo, eu gostaria de lhe pedir um favor: tem um rapaz lá em casa querendo ir para São Paulo, mas não tem dinheiro. Seria muita ousadia minha pedir se pode levá-lo como seu ajudante? Eu recomendarei a ele que o ajude em tudo o que o Sr. precisar. O Sr. João pediu-lhe algumas informações sobre o moço e ela lhe contou tudo o que ouviu dele. Então o Sr. João falou: - Bem, se é assim como a Sra. me disse, eu o levo. D. Carmem agradeceu, foi à casa de algumas amigas, pediu uma ajuda para que ele pudesse se alimentar durante a viagem e voltou para casa. Daí a pouco a campainha tocou, ela foi atender e era o Tadeu. D. Carmem ficou muito feliz ao vê-lo retornar, contou-lhe o que tinha feito e perguntou se ele aceitava a carona que ela havia arranjado. Tadeu ficou muito alegre e prontamente aceitou. Ela o levou à transportadora, apresentou-o ao Sr. João e ele já ficou ajudando a carregar o caminhão. Ao sair, durante a despedida, Tadeu comovido agradeceu e beijou-lhe as mãos. D. Carmem voltou para sua casa satisfeita por ter ajudado aquele jovem. O tempo passou, D. Carmem continuou com sua vida de sempre. Um ano e meio depois do fato ocorrido, estava ela em sua casa na lida diária, quando a campainha tocou. Ela abriu a porta e deparou-se com um rapaz bonito, bem vestido e com um buquê de rosas nas mãos. Ao vê-la ele sorrindo perguntou: - A senhora me conhece? Ela olhou bem para aquele rapaz, tentando lembrar-se e respondeu: - Você é algum sobrinho meu que há muito tempo não vejo? O rapaz, entregando-lhe as flores, falou: - Eu sou o Tadeu, lembra? D. Carmem assustou-se com a resposta e alegre o abraçou. - Mas o que houve? Conte-me tudo o que aconteceu! Prontamente Tadeu lhe disse: - Ao chegar em São Paulo passei uma vida muito apertada, mas não desanimei. Qualquer serviço que achava eu fazia. Aos poucos fui me arrumando e agora estou em um emprego fixo, trabalho de dia e estudo à noite e devagar vou conseguindo me acertar. Agora estou de férias e resolvi vir aqui agradecer mais uma vez. Tadeu passou o dia na casa de D. Carmem, conheceu toda a família e agora D. Carmem ganhou mais um filho; e Tadeu uma nova família.
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Sérgio Pereira de Souza
LUTAS URBANAS Avenidas fechadas Engajadas na luta Moradores fardados hiperprecários de amor Lumpenproletários De afeto Urbanos sem teto Sem cobertura, tem ponte coberta Olhe na cara da miséria Sadia ronda sua porta Procura beleza Encontra fraqueza Olhe de lado, do lado de lá, Veja meus faróis Vizinhos sozinhos na noite De lutas urbanas Muros e grades Câmera a espiar A violência e morte Na rua da vida
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Jussara C. Godinho MÁGICO DESPERTAR DE PRIMAVERA Primeiros dias de setembro! Abro minha janela. Doce manhã de sol! Quase ouço o sussurrar do frio despedindo-se sorrateiro. No ar, o aroma adocicado das alucinantes pétalas coloridas. Inspiro... Expiro... Inspiro outra vez... O azul do céu invade meu dia, que mal começa a raiar, e inunda minh’alma de luz e de alegria. Milhares de gotas brilhantes escorregam pelo meu corpo, num banho refrescante e delicioso de primavera. E me transportam imediatamente para o mar. Chego a sentir o gosto forte do sal e o calor dos raios do sol, dourando minha pele. Sonho, viajo, devaneio... Afagada pela toalha macia, volto e, debruçada outra vez na janela, contemplo os jardins vizinhos. Tudo parece mágico. A brisa move lentamente as folhas que bailam, querendo viver. O aroma permanece no ar. E a alegria toma conta do meu ser. O cheiro quente do café me parece mais forte e mais gostoso. O pãozinho matinal, mais crocante do que nunca. Seu miolo abre-se para receber a manteiga sem nenhuma resistência. Nas entrelinhas do suco, sinto estampadas as flores brancas e perfumadas das laranjeiras. Há, em tudo, promessas de uma nova estação, esperanças de renovação! É a vida brotando bem devagar... Chegando quase sem avisar... E, assim, saio repleta de energia, para mais um dia que se inicia, com a doce magia de um suave e mágico despertar de Primavera!
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Tatiana Alves Soares Caldas MEDONHO Passando um dia destes por uma estrada sinuosa e deserta, com portais que em nada perdiam para os melhores cenários de filmes de terror, comecei a refletir sobre os medos que nos assolam. Um deles, plenamente justificável em um mundo como o nosso, é o da violência. O local, ermo e escuro, seria o pior pesadelo de quem por acaso tivesse de cruzar aquele lugar sozinho e a pé. Curiosamente, o local é conhecido como reduto de celebridades, que talvez optem por se isolar naquela estrada pouco frequentada. A aparente escuridão e as grades e muros altos devem apenas ocultar as casas luxuosas e as festas que ocorrem por trás de suas muradas. Mas, talvez em virtude do tamanho do terreno ou do desejo de privacidade daqueles que moram ali, o fato é que, aos olhos de quem passa pela rua principal, a impressão que se tem é a de que não há vivalma por ali. E por falar em vivalma, expressão largamente usada por minha avó, chegamos ao segundo tipo de medo: o do oculto, também conhecido popularmente por sobrenatural. Minha infância foi povoada por histórias de bruxas, fantasmas, além, é claro, de filmes de vampiro, numa época em que tais filmes, de fato, assustavam. Minha avó, de uma humildade enternecedora, contava histórias como causos, e sempre havia alguém que conhecia alguém diretamente envolvido na situação, aumentando a sua credibilidade. Até pouco tempo comentava com uma amiga que filmes que evocavam o oculto me aterrorizavam mais do que coisas reais, uma vez que não há chave ou arma capaz de deter o que está além de nossa compreensão cientificamente racional. Já o homem humano, como diria Guimarães Rosa, esse sempre pode ser controlado. Devo confessar que mudei de opinião ao verificar o aumento de criminosos em série, pedófilos, estupradores, pais que matam os próprios filhos ou os deformam e mutilam. Saber que seres como esses cruzam nossos caminhos e que alguém pode se tornar uma vítima apenas por estar no lugar e na hora errados é, definitivamente, muito mais assustador do que o dito sobrenatural. Há, contudo, um terceiro tipo de medo, e que talvez seja aquele que nos assola, pois assombra cada um de modo particular. Uma espécie de medo personalizado: é o medo dos nossos medos pessoais, numa medonha redundância: medo de perder aqueles que amamos, medo da solidão, do abandono, do vazio. Esse, inerente à humanidade, detecta os nossos pontos fracos e deles se apodera, marcando seu território e fincando ali uma bandeira permanente. Esse, por se alimentar de nossos maiores pavores, espreita, como um fantasma, assombrando nosso imaginário de um modo muito mais assustador do que o melhor filme de terror seria capaz de fazer.
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Rosimeire Domingues Carrasco MEU GRANDE AMIGO..... Pensei um dia que entre nós nunca haveria segredos, mas a vida me surpreendeu e colocou o pior de todos os obstáculos, intransponível, imaculável.... Ter você como amigo era mágico, diferente, clássico. Conviver com você era básico, plenamente satisfatório, era insubstituível. Conversar com você era verbalizar para mim mesmo aquilo que sentia e apenas pensava... Era cumplicidade... Era intensidade de emoções reveladas sem pudor algum, era falar pra minha versão masculina ideias e desejos, pra que pudor? Ver-te, meu querido, era olhar encantada, pro homem perfeito que alguém teria a sorte de conhecer e se apaixonar. Era desejar o que já era meu, só que “melhor amigo”. Sentir seu perfume era viajar por lugares exóticos e desconhecidos, inimagináveis, encantadores, suaves, perfeitos. Tocar você era ter nas mãos meu maior desejo, era sentir extasiada a sensação de carinho, afeto, atenção. Ouvi-lo era poder participar um pouco que fosse da sua vida, era se sentir parte dela, era sonhar vivê-la com você, era querer e não poder. Encostar um momento minha cabeça em seus ombros era sentir-me protegida, felicidade bandida que invadia meu ser, pois sabia que era tanto intensa, quanto dolorida. Muito rápida também era a deliciosa impressão de ser amada. E com o tempo fui descobrindo que aquele sentimento amigo era frágil, e que camuflado na sombra da amizade estava o maior de todos os sentimentos, incontrolável, insubstituível, indomável, impossível..... Sentimento sufocado, que se contorcia na dor de saber que nunca seria revelado, pois causaria danos irreparáveis e incorrigíveis. Desleal destino que fez uma grande amizade transformar-se em tão desesperador sentimento, que acalenta e ao mesmo tempo deprime. Falar tudo o que sinto seria humanamente impossível, como falar sobre aquilo que não se vê não se toca apenas se sente. E com que tamanha dor se sente...... Ah! Meu amigo, se eu pudesse..... Amigo? Amigo não, meu grande, imenso e eterno Amor. Se esse sentimento não pudesse nos afastar, se soubesse que nos uniria, correria agora mesmo pra te segredar. Mas é vã a vontade, o desejo, pois entre amigos não existe amor, não amor entre homem e mulher, entre Héros e Psique. Amor de amigos é amor de irmãos. E esse fugiu de meu coração e escondeu-se nas sombras da saudade. Então que morra comigo esse único segredo que não te revelei. A dúvida me consome e entre perdê-lo e ser eternamente sua amiga, podendo dividir momentos contigo, escolho sofrer calada a maldição de amar meu melhor amigo.
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Carlos Bruni Fernandes MULHER EM DESCANSO Ela entrou e bateu a porta da sala. O som da pancada ecoou pela casa vazia sem os filhos e sem o marido. Apenas uma mulher e seu cansaço desmesurado. Jogou as chaves do carro e da casa sobre a mesa, a bolsa sobre o sofá e largou-se nele como quem ascende ao trono de um reino sem reis, princesas e fadas. Que dia, murmurou. Fora mesmo um dia estafante. Nenhuma explicação seria suficiente para dar a entender aos mortais a rodearem-na por horas, o que era o seu cansaço, coroado por um suspiro de alívio ao largar-se por inteira nas almofadas do sofá. Balançou um dos pés e jogou longe o sapato que atormentava, destino seguido pelo outro que voou para debaixo da mesa de centro. Mexeu gostosamente os dedos libertos como se estes escapassem ao martírio de um bico fino, necessário para compor a figura da empresária bem-sucedida. As mãos procuraram os botões do tailleur, começando lentamente a decompor a figura até então certinha, cobrada no dia a dia pelas convenções que norteiam e riem da natureza humana. Curvou-se um pouco para tirar as meias, acessórios libidinosos quando para serem mostrados, mas um tormento como parte daquele artifício social. Largou-se novamente no sofá, com os braços sobre o encosto, pernas esticadas. Olhou para os pés agradecidos pela alforria conquistada a cada fim de tarde. E para as unhas. Deveria fazê-las, talvez no dia seguinte, pensou sem muita convicção. Olhou para bolsa, a seu lado, e lembrou-se do alicate de unhas perdido entre batom, porta-pó, celular, lenço e tantas outras coisas que nem saberia enumerar, mas que deveria sempre carregar. A mão desceu até a bolsa, abriu-a e pegou aquele acessório. Por que o carregava? Sabe-se lá. Difícil imaginá-la cortando as unhas entre uma reunião e outra. Mas fazia parte daquele mundinho de couro. Levantou uma das pernas colocando o pé sobre a almofada do assento. O joelho posicionou-se contra o peito, quase tocando o queixo. Nesse movimento, a saia escorregou fazendo aparecer a coxa redonda e perfeita, para deleite de uma platéia invisível. Os minutos seguintes foram de puro prazer, com o tic-tic do alicate cortando as unhas. Lembrou-se de algo que um poeta certa vez escrevera e, tal como seu personagem, imaginou-se solta no mundo.
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Juca Macedo
MUSA És a musa que inspira Os versos que faço És a sereia que canta Presa em meus braços, És bela e graciosa Perfumada como uma rosa Inserida em seu espaço.
Teus cabelos são como seda Sequer aceitam tranças És a rosa mais bela Que o vento do amor balança, Num galho alto, sozinho Cravejado de espinhos Onde outro não alcança.
Bom é cantar-te em versos Falando da tua beleza Essa estátua majestosa Obra prima da natureza, Eu sou um Juca qualquer Cantando versos a ti, mulher, Mas com amor e pureza.
És a mirra preciosa Que todos desejam usar És a água de uma fonte E o anseio de se banhar, És um templo de marfim Construído só para mim E sei que sempre vou te amar.
És a jóia mais rara Nem se pode avaliar És a pérola na concha Difícil de se encontrar, És encanto e beleza Que um dia a natureza Orgulhou-se ao criar.
És a onda que bate nas pedras Mas com amor e carinho A gaivota que vai e volta Jamais me deixando sozinho, És um por de sol que não findou És a águia em pleno vôo Retornando-se para o ninho.
És delicada, bela e pura És filha de boa gente Mansa, modesta, humilde, Altaneira e inteligente, Seu jeito cativa o povo Em ti tudo se faz novo És simples e prudente.
Lembras a grinalda Que o destino lhe reservou Ame muito esses versos E quem lhe os dedicou, E digas a teu cônjuge Essa poesia é de um monge Que um dia me conquistou.
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Danielle Martins Santos
NAS ASAS DA INOCÊNCIA Veja como são belas essas cores voantes, São puras, inocentes e amáveis. Apenas são belas, e não tem o menor conhecimento disso. Quando somos pequenos as vimos em todos os lugares, Dançamos com elas, viajamos milhas e milhas em suas asas, Mas então nós crescemos. Focamos nossa atenção em coisas desimportantes, em números, letras. Perdemos o amor que tínhamos pelas cores. Os desenhos que fazemos são preto e branco E bobamente os julgamos profissionais, Não gastamos mais tempo com giz de cera e papel sulfite. Qual foi a última vez que você viu uma borboleta? Eu não as vejo por um tempo, e isso me entristece, Talvez elas apenas pararam de voar perto de mim, Talvez eu tenha perdido a inocência do olhar. Mas eu permaneço amando-as, Esperando que elas venham me visitar, Venham em sonhos que seja, Que elas me deem um pouco de sua beleza. As borboletas amam tudo que tocam. São seres puros.
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Maria Aparecida G. Rodrigues NATAL NA MANGUEIRA Vamos, vamos! Corram! Senão a gente perde o ônibus! E olha que são dois quilômetros de caminhada! Lá vamos nós, quase correndo, pés cheios de bolhas, sapatos machucando! Então, o jeito era tirá-los e ir em frente levando-os nas mãos. Cansados chegávamos à estrada. E... lá vinha o ônibus! “Vamos crianças, vamos”, diziam meus pais. Pegávamos o ônibus e, mais ou menos uns sete quilômetros, aí sim, a cidade! Corríamos para a estação do trem, pois tínhamos ainda que percorrer mais um bom trecho de trilhos, passar por mais duas cidades e enfim a cidade da vovó. Mas que cidade que nada, a vovó morava no sítio também. Ah! Tínhamos que enfrentar mais essa estrada! Acho que... Mais ou menos, um quilômetro. Agora sim, a casa da vovó! Muitos abraços, muitos beijos! Que delícia! Mais um Natal! Todos inesquecíveis! Nem sei quantos foram. Mas vou condensar todos num só Natal. Era assim: Muita gente, muita conversa alta, muitas risadas; todos descendentes de Italianos. Oração do jeito da minha avó. Era muito engraçado! Ela rezando, catando verdura na horta e intercalando oração com conversa e não se atrapalhava! Ah! Não dá para esquecer! E aquele almoço então, naquela mesa enorme! Tinha de tudo! Macarronada, frangos e leitões assados, saladas, refrigerantes e é lógico que a tubaína não podia faltar! Era uma casa grande, sala grande, onde todos os quartos davam para a sala. E na frente da sala tinha um pé de manga; uma mangueira, com muitos galhos grossos e abertos, que até parecia preparada para a gente! Pois era lá que nós crianças íamos tomar mais um refrigerante, depois do almoço. Furávamos a tampinha com um prego, colocávamos um canudinho de margoso (um mato lá do sítio) e fazíamos a festa! Cada criança no seu galho. Sim, que delícia! Posso dizer, com certeza: - Que Natal inesquecível!!! Mas... ”Peraí”! Será que naquela época eu sabia que o mais importante de toda aquela festa era a Pessoa de Nosso Senhor Jesus Cristo?! Não sei! Só sei que era uma festa de muita união, de muita alegria e de muito amor!!! E com certeza Ele ali também estava num daqueles galhos e no sorriso de cada uma daquelas crianças! Que Natal! Quantas lembranças! Que saudade daquele Natal na mangueira!
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Fátima Soares Rodrigues
NATUREZA MORTA O banco da praça Envolto em árvores Evoca saudades. Do tempo em que o vento Ventila verdades, O assento é verde. Há séculos, o ar seco Domina a paisagem... Ausência e ferrugem.
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Sérgio Bernardo
NEANDERTHAL Um homem incomum: é dele a verdade dos pássaros contra o chumbo do céu (casa onde apenas cabem voos rasos dentro das paredes do vento). Tem a mesma certeza da pedra, que na aparente imobilidade testemunha a gravidez do tempo (entende o que está tatuado sobre a lisa epiderme de granito). Ouve o discurso da água levando longe a fluidez das palavras. Decodifica a língua do fogo nos cânticos que crepitam sob a lenha. Um homem incomum: não subestima a parte bicho que o habita.
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Joachim Neander NEM TUDO O QUE RELUZ É OURO Em vez de ouro, bandos roubam bijuterias e réplicas. Diário Extra, 11 de setembro 2010 A crise econômica no Brasil não tinha poupado ninguém, tampouco o setor «cinza» da economia nacional. Um dos ramos dela que estava sofrendo muito era o de Roubos & Furtos. Por exemplo, até há uns meses os batedores de carteiras cariocas podiam ganhar bem a vida pescando no metrô e nos trens de subúrbio superlotados, ou no meio da multidão nos centros comerciais, nas rodoviárias, nos aeroportos e nos cais de embarque. Mas há algum tempo, eles cada vez mais frequentemente, sacaram carteiras vazias dos bolsos e bolsas de seus clientes, e cada vez mais frequentemente, se verificou que o cartão de crédito capturado era sem valor: o verdadeiro proprietário já tinha sacado a descoberto sua conta bancária, e o caixa eletrônico recusou-se a cuspir as notinhas desejadas. Não só o simples assalto na rua—«Passa a grana, cara!»—se revelou cada vez menos produtivo, mas também o investimento na técnica sofisticada para a clonagem de cartões magnéticos já não valeu a pena. Os especializados no roubo de carros ou no furto de computadores e artigos eletrônicos, ou em assaltos a lojas de roupa de marca, também tinham problemas existenciais. Os receptadores estavam baixando os preços. Costumavam dizer que a demanda tinha diminuído — «ninguém quer comprar nada, vocês sabem . . . a crise . . . as pessoas não têm grana». Não foi de admirar que aqueles três ladrões que estavam sentados no seu botequim preferido, tomando uns chopes, estivessem de mau humor. Como ganhar a vida nestas condições? Um deles propôs fazer um assalto a banco. Podia-se ganhar uma bolada de dinheiro de uma vez, de verdade, mas os outros rejeitaram. Ultimamente nas sucursais dos bancos, as medidas contra assaltos tinham sido reforçadas. O número de seguranças tinha sido aumentado e o armamento deles melhorado. Um assaltante correria o risco de estar envolvido num tiroteio com aqueles caras fardados de preto e armados até os dentes. Esse tal de negócio era demasiado perigoso. Ponderaram também sobre o roubo de carros, de artigos eletrônicos ou de eletrodomésticos. Mas ao fim e ao cabo também rejeitaram a ideia. Como transportar os bens furtados e onde depositá-los até que um interessado aparecesse para os comprar? Por fim resolveram praticar roubo a joalherias em centros comerciais. Nessas lojas, regra geral, um segurança só, pouco armado, estava de plantão. Além disso, jóias e relógios de luxo eram pequenos. Transportavam-se discreta e facilmente. E vendiam-se bem, apesar da crise. Assim a quadrilha passou à ação. Esvaziaram as vitrinas de uma joalheria no Barra Shopping. Repetiram a ação em Campo Grande. Desta vez, no entanto, foram flagrados
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por câmera de circuito interno, cuja gravação fora transmitida on-line à delegacia. À saída do centro, dois policiais já estavam à espera deles. Atiraram-se para o ladrão com a sacola e detiveram-no. Os outros integrantes do bando conseguiram fugir. Na Delegacia de Roubos e Furtos, o delegado substituto deitou o conteúdo da sacola na mesa e examinou-o. Sacudiu a cabeça. — Você teve azar — disse ao ladrão. — Pelo jeito, os Rolex são réplicas made in China, e os cordões e pulseiras só banhados a ouro. — Pô, vou lá e, quando vejo, não é nada demais. É só folheado — disse o cara com a voz triste. Por pouco não caiu em pranto. Podia-se até ter pena dele. É que ultimamente as joalherias têm colocado nas vitrinas só réplicas e bijuteria. Já não têm as peças originais. Mandam fazer ou encomendam ao atacadista. Tudo por causa da crise.
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Robson Yokota
NO CANTO DIREITO Quatro horas da manhã, segunda-feira. Meu último cigarro acabou há meia hora e o café já esfriou. Eu fico parado olhando as pessoas na tela do meu computador. A minha esperança é que aquela pequena, minúscula e insensível janela comece a piscar em laranja. Um pequeno “oi” ou um “como vai você” já alegraria meu dia. Estou nesta espera há muito tempo. Meu orgulho me impede de dar um clique duplo sobre aquele nome. O que ela está fazendo acordada até agora? Não vai trabalhar amanhã? É madrugada, o Sol ainda não nasceu e as pessoas de bem deveriam estar dormindo. Será que você é tão cruel quanto eu, para não conseguir dormir tranquila ? Essa é a única resposta que encontro no momento. Fosse boa estaria dormindo, fosse boa me daria um “alô”, daria um motivo para gritar seu nome pela sacada e acordar essas pessoas de bem. Nunca foi um jogo fácil, e eu nunca fui um bom jogador. Quando eu blefo meus olhos focalizam o nada, meu sorriso sai por entre os dentes, minhas mãos não conseguem se controlar. Fico feliz de não ter uma câmera para conversar com você. Seria fácil se não fosse tão difícil, seria simples se não fosse você. Por que insiste em me torturar? Estamos a apenas alguns milésimos de segundo de distância. Eu pulo se você pular. Diga-me para gritar e eu gritarei apenas seu nome, diga-me para saltar e eu cairei sob seus braços, diga-me, apenas me diga. Desisto. Já não aguento mais. Vou comprar um cigarro no bar mais próximo, vou desistir de te esperar. Volto quinze minutos mais tarde apenas para ver aquela pequena janela brilhando no canto do monitor, perguntando se estou bem e desejando boa noite pois demorei demais para responder. Boa noite. Ótima noite.
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José Carlos Daltozo NOSTALGIA DOS TRENS DA SOROCABANA Oitenta e sete anos, uma idade em que o vigor e a energia de antigamente já lhe fugiam dia após dia, Antonio Batista acordou naquela manhã fria de junho com um desejo diferente. Era comum, nas conversas cada vez mais raras com os poucos amigos e vizinhos, recordar o passado. Ver fotos antigas, ouvir velhas canções na vitrola e ouvir conversas sobre os velhos tempos eram seus passatempos prediletos. Naquela manhã, acordou com o desejo de visitar a estação ferroviária de Presidente Prudente, cidade onde residia há muitas décadas. Fazia anos que não passava por aquela região da cidade e sentiu uma necessidade premente de visitar o local. Chamou o neto Vicente e fez o pedido: “me leva até a estação ferroviária?”. O neto, que vivia com os avós, estava acostumado a atender seus desejos, tinha se transformado em uma espécie de motorista particular, levando-o aos médicos, à padaria ou ao supermercado. Estranhou o pedido, mas não fez nenhuma pergunta, simplesmente obedeceu. Subiram no carro e foram até a estação, um trajeto de pouco mais de três quilômetros. Ao chegarem, o neto percebeu que o avô tinha os olhos lacrimejantes. Seria por causa da baixa temperatura ou era mais uma das costumeiras crises de saudade que ele já havia presenciado várias vezes? Sim, era pura saudade. Antonio olhou demoradamente ao redor da estação antes de entrar no recinto. Depois, com passos trôpegos, circulou pela plataforma agora deserta, viu os trilhos enferrujados e os dormentes carcomidos pelo tempo. Nenhum bilheteiro vendendo passagens, nenhum sinal de trem de passageiros, apenas alguns vagões de carga estacionados numa variante. Ninguém esperando parentes que iam embarcar ou desembarcar, nenhuma mercadoria a ser transportada, tudo estava bem diferente da rotina que ele havia presenciado na juventude. Lembrou quando a estação era o centro vital da economia de Presidente Prudente, por ela passavam pessoas, cargas, sonhos e esperanças. Para Antonio, a ferrovia tinha um significado enorme, estava impregnada em sua vida. Foi utilizando-a que, acompanhado dos pais e irmãos, desembarcou na cidade numa tarde de verão do longínquo ano de 1943. Tinha, na época, dezenove anos e a força da juventude saindo por todos os poros. Ele e a família vinham da região de Ribeirão Preto, após terem adquirido um sítio de dez alqueires, em plena mata virgem a ser desbravada. Eram sete irmãos, todos na força da juventude, vislumbravam uma vida de sucesso, plantando café e algodão. Estavam deixando de ser meeiros para trabalhar nas próprias terras, o que não deixava de ser um passo importante. Relembrou o movimento frenético da estação nos velhos tempos, gente chegando e partindo, vendedores ambulantes oferecendo salgadinhos e refrescos. Eles chegaram num período conturbado pela Segunda Guerra Mundial, com racionamentos de combustíveis e até de gêneros alimentícios. Mas ele e a família só queriam trabalhar em paz,
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ganhar o pão de cada dia. A vida não foi um festival de sorrisos, houve muitas tristezas, principalmente mortes de familiares por falta de assistência médica adequada, devido a distância do sítio em relação à cidade. Também houve muitas lutas contra as intempéries, com alguns anos de colheitas frustradas ora pela chuva excessiva, outras vezes por causa da seca, que atrapalharam ou adiaram alguns planos. Mas houve muitos anos de colheitas fartas, ganharam um bom dinheiro e até compraram dois sítios vizinhos, aumentando significativamente a propriedade. Era necessário ter mais terras, pois a família crescia com os casamentos, a chegada dos filhos e netos. Unidos, economizaram e conseguiram amealhar um pequeno patrimônio, inclusive compraram uma casa na cidade, onde ele residia atualmente. Os netos estudaram, dois são doutores, outros são professores e todos vivem felizes. Uma ou outra rusga familiar sempre existiu, mas ele como o patriarca, utiliza o bom senso que lhe é peculiar e dá a palavra final, solucionando satisfatoriamente as contendas. Lembrando tudo isso num relance, os olhos não paravam de lacrimejar nessa úmida manhã de inverno. Pobre ferrovia, pensou mais de uma vez, hoje todo mundo quer rapidez, asfalto, pista dupla, carros velozes. Não sabem como, naqueles velhos tempos, uma simples viagem de trem era plenamente satisfatória, mesmo demorando várias horas. Lembrou das viagens que fez para visitar parentes em outras cidades, ou até mesmo das poucas vezes que foi até São Paulo, para tratamento médico. Na juventude, acompanhando os pais na mudança, viajou em vagão de segunda classe, com duros bancos de madeira. Tempos depois, com a melhora financeira, passou a viajar em vagões de primeira classe, com bancos estofados. Viajar de trem era muito bom, pensou ele, tinha até um carro restaurante para fazer refeições, havia também os jornaleiros que passavam nos corredores oferecendo jornais e revistas. Os momentos de saudosismo se esvaneceram rapidamente. Pediu ao neto que o levasse para casa, não queria ver mais nada. Preferia ter na memória a estação ferroviária do seu tempo, cheia de gente indo e vindo, do que vê-la no estado atual.
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Aurélio Gimenez NUNCA MAIS Quantas vezes, quantas, Baixei meus olhos humilhados, Servi de riso ao ter chorado, A dor da dor de amar senti; Tantas vezes, tantas, Chorei no meu canto tão sozinho, Caminhei sem ninguém o meu caminho, Mais vezes levantei do que caí. Tive o sol lá no horizonte, A canção do vento de verão, A flor na relva enfeitou meu chão, A sombra da árvore me acolheu; Vi o vale, do alto, lá no monte, Dormi junto à cachoeira, Sendo a lua minha companheira, O mundo inteiro era meu. Ao som do silvo da tempestade, Assustadores relâmpagos e trovões, Trevas brutais, fulgurantes clarões, Chuva e mais chuva a me encharcar; Ausente até da minha verdade, Caminhei rumo a lugar nenhum, Senti-me todos sendo apenas um, Ultrapassei meu eu pra não voltar!
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Umberto Catarino Pessoto O ASSASSINATO DO ÍNDIO PATAXÓ Relatava Dee Brown em seu célebre “Enterrem meu coração na curva do rio” que certa vez, nos idos do século XIX, mais precisamente no ano de 1890 da graça de Nosso Senhor Jesus Cristo, houve um massacre de índios, mais comumente conhecidos como peles vermelhas pelos colonizadores ingleses e irlandeses que se instalaram no norte do nosso grande continente. Isso quando a “Renascença” já estava no “ponto máximo” da parábola. Em Chanpke Opi Wakpala ou riacho Wounded Knee mais de 350 indivíduos foram fuzilados - homens, mulheres e crianças. O motivo: a ignorância religiosa, histórica e antropológica. Esse o veredicto do autor, um índio, com nome de branco, mas índio. Índios de várias tribos, de várias línguas, de vários totens, muitos empreenderam a grande marcha até o riacho para dançarem a Dança dos Fantasmas, os fantasmas dos índios que ‘iriam voltar e habitar a terra’. Mas a dança era apenas a grande festividade preparatória do retorno do Messias. Sim, o Messias, o mesmo dos cristãos e dos judeus. O que estava em gestação era a grande conversão ecumênica dos índios à religiosidade branca e ocidental. Era o início do fim da diversidade religiosa e cultural histórica das tribos norte-americanas, e principalmente dos Sioux, a maior nação à época. A transformação do índio em homem branco, tentada a duras penas através da educação formal aos filhos dos antigos guerreiros, estava a um passo. A um passo de índio. A catarse da vinda do Messias, sincreticamente índio, no grande baile da Dança dos Fantasmas. Mas o homem branco não entendeu assim. A grande marcha interrompeu os negócios, tirou os filhos índios das escolas dos brancos e instaurou o medo atávico da dinâmica, inclusiva ou exclusiva. Foram mortos por serem índios, quase brancos, índios-brancos. Ano de 1997, dia 20 de abril. A penitência. No limiar do pentecostes cristão, o messias é queimado. Se a primeira vez acabou em água, na segunda será em fogo, diz o ditado popular cristão escatológico. Galdino Jesus dos Santos era um índio, pataxó, não de pele vermelha, mas um índio. Levava no nome o sincretismo interrompido nos idos de 1890. Mas agora, os pequenos homens brancos atentaram para o erro. A sociedade horrorizada também. Os jornais estampam “Índio Pataxó...”. No meio das manchetes, das páginas internas, nos quadrantes inferiores, uma nota. Na nota tomamos ciência que desde os anos da década de 1970 os mendigos dormem em bandos e que, mesmo assim, sistematicamente, mensalmente, dão entrada nos hospitais públicos das grandes cidades motivados por queimaduras criminosas. E as palavras dos assassinos denunciam... Denunciam que os índios já podem dormir em paz, mas que não cometam o erro de parecerem - na vaguidão do breu da noite - farrapos humanos, mendigos. “ - Não sabíamos que era um índio.” Deus salve os índios. Mendigos: à indumentária!
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José Rubens Shirassu O HOMEM DE COSTAS AO ESPELHO O sino dobra, são 20 horas, mostra o relógio da catedral. Os morcegos saem dos abrigos para o centro local, ali eles vão sonhar... Contentam-se com as ofertas do mercado. Quando a rotina bate, ao ponto de deixá-los impacientes, como num fim-desemana, soltam a arma infalível, a linguinha vermelha e a brancura dos caninos na sede desesperada em capturar uma presa. Mergulham em voos rasantes, de corpo inteiro, na caça ao broto da rosa na mulher. Atravessam lentos, conversando e observando o povo, que também fita-os, nessa marcha de duas mãos. Atrás, na avenida, em plena praça, a filarmônica faz o fundo, do desfile.. Um casal de namorados olha as vitrines das lojas. Cada um em seu ambiente e emite um guincho limitado: - Vou ficar por aqui para preencher o tempo... enquanto suportar, depois entro num bar e tomo umas cervejas. Um deles mexe com a menina que passa ao seu lado, não conseguindo sua atenção, seus colegas refestelados no banco, põem-se em gargalhadas. Era uma noite de verão, como todo dia de semana, o movimento do bar é regular. Entra porta adentro. Sentou-se na mesa do fundo, o velho trouxe a garrafa. Enquanto não acabasse o dinheiro (ficava tomando cerveja uma atrás da outra), o velho não deixava faltar cortesia. Ele trazia um talão de cheques no bolso e com os dedos colava os rótulos das garrafas na mesa. Vislumbrava a paisagem noturna e dava um gole. Erguia numa careta o copo e espremendo os olhos engolia seco. Abrindo a vista, enxerga no relógio da parede as horas. Por trás do balcão, o velho apoiava o corpo em cima dos braços, o qual colocava o queixo por cima das mãos. Ao lado, uma porção de petiscos em saquinhos com manchas de bolor. O velho esfregava no balcão um pano encardido de hora em hora. Quando o homem abriu a camisa e os braços como se fossem asas, deu a volta no balcão, contou as garrafas, chegou na mesa, pediu licença, encheu o copo e tirou os círculos úmidos naquele trapo. Podia ouvir uma música em FM. O homem não gosta de bar sem rádio. Nunca tinha frequentado aquele lugar, seria um prazer a mais... Espreitava a paisagem noturna antes de emborcar outro trago. Um morcego não gosta de ficar sozinho numa mesa, sempre chega com um bando. O banheiro era uma alcova escura. A primeira entrada logo que se atravessa a porta. Cada vasilhame acabado, ali entrava, não sentia o odor familiar de desinfetante, saía rápido. Olhar de peixe, a face em transe, bebendo sem medida. O único bar sem a marcação dos garçons, costurando entre as mesas, sem a tática da gorjeta, para morder a língua e esvaziar o bolso. O homem aprecia ficar no cheiro azul dos cigarros e no alarido das vozes. A casa, a esposa, abelhas pinicando a
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cabeça, quer o bar, colando nas mesas os rótulos das garrafas. Naquele antro, é o dono da mesa, teria bebida em fartura e nem voz de mulher, que a língua é uma faca no coração: - “Não ponha álcool na boca, homem, pelo amor de Nosso Senhor. Essa é a água do satanás, quando abrir os olhos estará arrastando no chão!” O medo jamais o habitara, pelas revelações malditas da esposa. Assim, o bar é uma estrela guia, um sopro de vida. Sem regras, sem limitações, sem jogo e, principalmente, não tinha espelho. Ali se sentia livre. Estava na hora de fechar, o velho ergueu o queixo, o peito do balcão, parou de rabiscar um caderno brochura amarelo, colocou a caneta na orelha e, sem olhar para as pessoas, somou o caixa. O homem levantou-se, contornou devagar por entre sua mesa, assim não fosse hora de sair do canto. Tentou desviar os olhos do relógio na parede. O velho retirou do corpo, o guarda-pó sujo e, bruscamente, desliga o rádio. Parecia acordar após um grande descanso, olhos semicerrados. Foi pagar a conta como quem perdeu o último ônibus. Pelo gosto de caqui verde na boca, soube que a casa era o calabouço. Ele soltou o primeiro botão da camisa, a dor igual a um grão de sal na garganta. Colou com a baba da cola os rótulos na mesa, os olhos vermelhos de tanto contar. Sai toda gente, cada uma com suas asas. À sombra dos postes, cambaleia na avenida de asfalto. Um cão uiva para a lua, perdido entre as construções de tijolo, grades altas em forma de lança. A cada passo, sentia os pés como num abismo de areia movediça. São 22 horas. Por estar bêbado, não podia andar a noite inteira. Era hora de ir para casa. As pessoas foram embora. Cospe na sarjeta a saliva pegajosa com sabor de caqui verde, o fio espumante no canto da boca: - - Já tomei a cota de hoje. Estou mais do que certo, vou esquecer o dia. Não podia olhar a fonte luminosa – no fundo azedo das entranhas floresce o cacto vermelho: Ter laços com alguma pessoa ou coisa, tomar o café que lhe traz a sogra na poltrona da sala, a noiva tecerá com as mãos um bordado e, aos domingos, as pessoas na cozinha falam em subir no topo da colina... até que o carretel de costura não role dos dedos e a cabeça tombe para sempre... Sentado na borda, distrai-se o morcego a ouvir lamúria na escuridão. Como um guarda-noturno, assovia a música que brota nos fios dos postes. Há muitas luas, os malditos olhos brancos sempre acesos nos postes. O homem de costas para o espelho d´água na fonte.
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Camões Ribeiro do Couto Filho O HOMEM DO REALEJO Na velha praça de minha cidade, Carregando penosamente sua idade, Segue jubiloso o Homem do Realejo. Com seu instrumento executa uma canção Que ternamente invade-me o coração, No mais belo quadro que na praça vejo. Nos ombros um papagaio do Norte, Tira com o bico o cartão da sorte, Que com cuidado o ancião preparou. Moleques vadios, pássaros humanos, Magricelos meninos de poucos anos, Rodeiam o velho que ora chegou. Eu fico ao longe, apenas olhando, A mocidade sorrindo, o velho cantando, Na pequena cidade em que fui nascer. De barbas brancas qual Papai Noel, Que passa longe, não desce do céu, É o velho a expressão do bem-querer. O velho não sabe, não sabe não, Que o menino descalço, pés no chão, Naquele momento é quase seu filho. De rosto sujo, com falta de amor, Numa procura atroz de calor, Pertence-lhe aquele ser maltrapilho. Mas o realejo não para de tocar, É preciso a vida conquistar, Levando música, sorte, alegria. A cidade continua em compasso lento, A música segue a brigar com o vento, E o velho já ganhou seu dia Mil, novecentos e noventa e dois, Uns trinta e poucos anos depois, O homem do realejo morreu. Eu, o menino maltrapilho de outrora, Volto a minha cidade e, agora, Choro ao rever o realejo que emudeceu.
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José Carlos Botelho Tedesco O IRMÃO DA VELHINHA DE TAUBATÉ A “Velhinha de Taubaté” foi uma personagem criada pelo escritor Luís Fernando Veríssimo na década de 80, e tinha como principal característica, além de ser de Taubaté, a irritante capacidade de acreditar em tudo que os governantes da época diziam. Após a morte da Velhinha, de desgosto ou suicídio, ainda não se sabe, correu a notícia de que ela tinha um irmão, embora nada tenha sido provado. Até agora. O Vanderleisson, desde pequenininho, ou melhor, desde quando começou a fumar aqueles cigarros de chocolate que sua mãe comprava no mercado, sempre perde o controle emocional quando alguém demonstra carinho e preocupação por ele. Provavelmente foi por isso que chorou no dia da formatura do ginásio ao ouvir, do banheiro onde sofria com uma diarréia incrível, a professora lhe chamar ao microfone – “Cadê aquele moleque estranho com nome esquisito?” Pois lá de dentro do mictório, mesmo com aquele fedor terrível, as lágrimas começaram a descer dos olhos e ele pensou, emocionado: “A professora lembrou de mim”. Já crescido, um pouco mais experiente e vivido, mas ainda assim facilmente emocionável, novamente os sentimentos do Vanderleisson ficaram a flor da pele, agora por ocasião do pedido de casamento que ele fez à Creuza Marinete, sua vizinha de parede e meia na pensão da dona Tiquinha. Aliança na mão, joelho no chão e coração ardente, tomou coragem, duas doses de menta com gelo e declamou “Creuza amor da minha vida, nunca mais quero ver a sua partida; Mulher do meu ex-amigo, quer casar comigo?”. Infelizmente para o Vanderleisson, nem a pureza do seu sentimento, nem sua cara de coitado e muito menos suas rimas pobres foram suficientes para convencer a Creuza Marinete de que eles formavam um belo casal. Mas pelo menos ela foi carinhosa ao rejeitar o pedido “Você é muito bom Vanderleisson; o pobrema sou eu”, respondeu. Foi então a vez do Vanderleisson falar com a voz embargada de emoção e contentamento – Ela disse que eu sou bom; Chupa essa manga ... As dúvidas quanto ao parentesco com a Velhinha de Taubaté, entretanto, ainda existiam, e só se dissiparam com a chegada do horário eleitoral gratuito. É que apesar de no início da campanha ter ficado um pouco ressabiado por não entender porque os políticos, que vivem reclamando que a vida de político é muito sacrificante, não deixavam a “profissão”, o Vanderleisson acabou acreditando quando eles disseram que se sacrificam “pelo bem do povo”.
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Aparecida Gianello dos Santos O JOGO DA PACIÊNCIA _ Pai?! Pode ir jogar play na casa do Betinho? _ Não. Esse menino mora muito longe. _ Então, posso jogar na net? _ Não. Nem conheço essa aí. _ Aff! Deixa pra lá... Posso pintar o cachorro? _ Claro que não! Ficou doido? _ Brincadeirinha! É só pra ver se o senhor tá ligado, entende? _ Brincadeira esdrúxula, entende? _ Não. Mas, posso jogar aqui, em casa, então? _ Nem... _ Por favor, pai! Deixa, vai? _ Já falei que não... _ Posso fazer a lição? _ Não. _ Ah, agora te peguei, heim pai?! _Pura distração. Não me pega mais. _ Então, vamos no shopping? _ Vamos ao shopping! _ Legal! Vou trocar de roupa. _ “Vamos ao shopping” é o jeito certo de se falar, e não “vamos no shopping”. Foi só o que eu quis dizer. E por que essa ideia de ir ao shopping, agora? _ Pra jogar, ué?! Vamos? _ Não me enrola moleque! Já disse que não. _ E jogar no seu cel., pode? _Não. Nada de brincadeiras virtuais por hoje. _ Então, posso fazer uma fogueira no meio da sala? _ Não. _ Descer a escada na tábua de passar? _ Não. _ Cortar meus cabelos? _ Não. _ Depilar o gato?... _ Hei! Que idiotices são essas? _ Hã... Nada. Fiquei sem ideias. O senhor disse: “nada de brincadeiras virtuais”, lembra? _ Mais uma e você vai ver, seu engraçadinho!... _ Quero ver, então! _ Ok. Está de castigo. _ Ah, não! Game over!
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Luís Carlos do Amaral
O MUNDO PERFEITO Quando Deus o mundo criou , Não havia sequer um defeito: Tudo era inteiramente perfeito. Natureza e animais os povoou O homem, à sua imagem, Com as mãos e o barro moldou. A vida nele com sopro ativou E não era uma miragem! Tarde e manhã, o ciclo do dia, Realizar quase tudo até que podia, Não comer o fruto era apenas uma ordem, O desobedecer trouxe toda desordem. A influência do mal aqui penetrou E com ela muito sofrimento chegou... Morte, dor, tragédias e mais... São consequências vividas nos dias atuais. O inimigo com a aparente vitória vibrou Pensou que a batalha tivesse vencido Mal sabia que seu golpe havia ruído Pois Deus um grande plano no Céu preparou Seu filho à Terra enviou Como um de nós o mandou Jesus, aqui, perdoou, curou, ensinou e anunciou O plano da salvação que a todos deixou
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Bianca Crepaldi Mendes O TEMPO (OU A FALTA DELE) Eu corri... Apressando-me em minha busca, Imaginando chegar mais cedo E desfrutar mais tempo da minha felicidade; Caminhei sem parar, Assim como o vento que sopra, Como a palavra que ecoa, Como o olhar que procura... Constantemente via a minha felicidade Em outras faces, Em outros sorrisos, Em outros abraços... Em mim ficavam as lágrimas, As lamúrias e o descontentamento, Pois a felicidade não me acompanhava... O meu tempo nunca chegava... Minha busca incessante Tornou-se o palco de minha vida, O tempo passou... E eu passei pelo tempo... Eu corri... Sem olhar para os lados E não vi a felicidade Que estava lá, a todo o momento... Agora não há mais tempo De retomar a marcha de seu início, Mas ainda há tempo De olhar ao redor...
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É tempo de esquecer a busca Que se perdeu no caminho, É tempo de plantar e de colher, De viver e ser feliz... Sempre haverá tempo De se iniciar algo que se deseja, Desde que se queira Verdadeiramente...
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Carlos Bruni Fernandes OBRIGADO A SER FELIZ Chico Buarque é um gênio. Chega a ser redundante dizer isso diante da poesia transmitida pelas letras de suas músicas, levando-nos a viagens diferenciadas. Digo isso porque ele transita com a mesma desenvoltura por múltiplas emoções, seja na ingenuidade da banda passando — seja no paradoxo mostrando uma face indisfarçável do conformismo de um povo, seja pela revolta desta vida Severina, ou ainda pela denúncia dos guris esmolando nos semáforos, entre um roubo e outro. Os vários retratos que ele pinta do Brasil têm lugar nas salas do povo ou das academias e não conseguimos ficar distantes do que ele transmite. Somos atingidos por essas ondas, não poucas vezes trazendo um dedo acusador. Felizmente, há também aquelas ocasiões em que somos tocados no mais profundo de nosso ser e nos deleitamos com amores, mesmo que com dores, pois sua sensibilidade pode trazer, ao mesmo tempo, o lenitivo necessário para curá-las. Contudo, a realidade que está aí na porta de nossas casas, mostra o áspero cotidiano onde sempre há alguém morrendo na contramão só para atrapalhar o sábado. E o que dizer dos meninos azuis do brejo da cruz insistindo em viver e tentando crescer neste sanatório geral? Pior, talvez, seja quando nos quedamos alienados diante das vitrines das galerias. Daí que, é essa uma realidade que não consegue saltar para dentro dos palácios. De seus corredores saem projetos que poucas vezes atendem as necessidades do povo. São os mesmos corredores de onde vazam denúncias anestesiadas a peso de um ouro que compra o que nos resta de honra e por onde nascem notícias que determinam o que e como devemos ser. Leio com uma frequência que chega a incomodar, estarem os governantes pretendendo lançar um pacote de otimismo para que o brasileiro volte a recuperar sua auto-estima. Concluo, então, que sábios mesmo eram João e Maria. Ele, mais oportunista, porque se investiu de rei, bedel e também juiz, obrigando todo mundo a ser feliz. Ela, mais esperta, porque sumiu no mundo sem nada avisar.
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Eder Quirino Cavalcante PARALELAMENTE Uma das muitas teorias que tentam explicar o nosso universo é a dos Muitos Mundos, lançada por Hugh Everett III, um jovem candidato ao doutorado da Universidade de Princeton, em 1954. A teoria de Everett, hoje estudada até pela NASA, mostra a possível existência de universos paralelos relacionados ao nosso, consumindo integralmente nosso conceito linear de tempo. Uma linha do tempo baseada na interpretação dos Muitos Mundos mostraria cada presumível desfecho de cada ato decidido. Imagine só: um outro você em outra terra, como num espelho da nossa, que poderia já estar morto, ou simplesmente, ter tomado decisões que teriam mudado por completo o rumo da vida. Em outra profissão, outro tipo de relacionamento, atividade, enfim, um você de outra forma e em outro contexto. Casamento ou namoro com outra pessoa, filhos que existiriam ou não, destinos por completo incompatíveis com o qual você conhece em suas diárias. É uma teoria assombrosa, principalmente ao nos depararmos com atitudes que tomamos no nosso percurso, que poderiam desencadear diversas situações diferentes. Todos os dias encaramos novos momentos onde nosso posicionamento repercute em resultados. Até mesmo em nossa inércia. Não agir também é posicionamento. Uma frase sábia que ouvi de um professor e guardei em minha memória diz: “você é o que é porque foi o que foi e será quem você será, porque foi que você é.” Isso então, se aplicaria a esses nossos outros “eus” desses mundos paralelos, que tiveram atitudes diferentes da nossa no percurso de sua existência. Fica claro, portanto, que sim, podemos ser melhores à partir de nossos atos, da consciência deles e da nossa percepção nesse planeta. E isso tem sido cada vez mais válido para a “terra” em que vivemos, já que, a nossa já deve estar bem mais destruída que possíveis outras, e nós que a habitamos somos quem sofremos com os efeitos de efeito estufa, tsunamis, mudanças de temperatura, fauna e flora deflagradas e outros regaços produzidos pelas mãos do homem e suas atitudes gananciosas e inconseqüentes. Aquele sorriso economizado ao próximo, frases que machucam, gestos impróprios; até mesmo o palavrão desferido no trânsito, trazem consequências no percurso e nos sentimentos dos próximos. Assim como um gesto de carinho, companheirismo, solidariedade e se colocar no lugar do outro, também. Não há como se plantar macieiras e colher morangos. Nós temos a mania de esquecer o quanto o nosso agir, o ser que representamos, perde-se na dimensão de tempo e espaço; e até mesmo na memória alheia. Não é um nome de rua que traduziria a nossa trajetória em nosso sistema ou nossa vida. O nosso valor está na percepção dos que nos rodeiam, nos conhecem ou nos conheceram. O genial Gonzaguinha traduziu em uma de suas composições: “toda pessoa sempre é a marca das visões diárias de outras tantas pessoas”... Jesus em sua plena sabedoria já tinha nos deixado a célebre frase “não faça ao
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próximo o que não gostaria que fizessem a ti”. Ou seja, nos vigiarmos em nossas relações é vital para desencadearmos evolutivas situações melhores. Anne Frank, em seu martírio imposto pelos nazistas, deixou registrado: “ainda acredito na bondade humana”. Sim, na nossa humanidade e neste mundo. Você, porém, não pode ter consciência de suas outras personalidades que existem nos universos paralelos, mas nesse que vivemos tem, ou pelos menos, deveria ter. Todavia, a grande e deliciosa mágica da vida consiste em progredirmos como ser a cada dia, com menos amarras ao passado e o livre arbítrio para construirmos nosso caminho. Tomar as rédeas dos nossos impulsos para agirmos com sabedoria, e sermos o ser mais feliz de todas as nossas possíveis existências.
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Perpétua C. da Cunha Amorim
PATCHWORK Cá com os meus botões Alinhavo sentimentos rotos Num emaranhado de cores Desafiando o tempo e as diretrizes Abarrotadas de promessas descumpridas Cinzas de um carnaval vencido Sem data Sem valia Com linha de cor forte Cirzo as emendas do ontem Num tecido fino de espera. Desenho arabescos E sigo o ponto atrás das correntes Sem nó Sem dó Cá com as minhas dúvidas Teço os dias e desfaço as noites Com agulhas impiedosamente cegas A rotina sangra-me as mãos Sangrando continuo Sem prumo Sem rumo
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Bianca Crepaldi Mendes PÉS DESCALÇOS A passos largos fui percorrendo A jornada inusitada da vida Vi um menino chorando, Mas era um caminho só de ida... Na vida não se pode voltar, Na vida não se pode parar, O dia anterior está no passado E você tem que continuar, Ainda que seja com os pés descalços... Sinta Sinta Sinta Sinta Sinta Sinta Não Não Não Não Não Não Não
a terra que pelos dedos passam... a brisa na face... a chuva cair... o coração bater... as lágrimas pelo rosto rolarem... o amor florescer...
deixe deixe deixe deixe deixe deixe deixe
a vida passar... a música parar... o amigo chorar... que lhe digam o que fazer... as palavras guardadas... o amor ir embora... de viver...
A vida se faz a todo instante, Amanhã será o hoje E o hoje no passado vai ficar... Lembre-se dos erros, Mas não tenha mais pesadelos Com os arrependimentos passados... Continue sua caminhada, Leve verdade e pureza no olhar...
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Lembre-se sempre de seguir adiante, Não se curve ao horizonte E não tenha medo de chorar... Lave a alma que hoje sofre, Mas esteja sempre forte Ao menor indício de um pesar; Seus pés, tão maltratados, O levarão para onde o seu coração indicar E você verá que sempre é possível caminhar, Ainda que seja com os pés descalços!
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André Telucazu Kondo
POESIA DO CAMINHO Se um dia quiser conhecer A verdadeira poesia do caminho Feche a rima e abra o mundo, Pois há palavras Que só são ditas pelo silêncio, Escritas pelo invisível, Sentidas apenas, enfim. Não há mil versos com mais lírica Do que uma única pedra do caminho.
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Ruth de Campos Santos REENCONTROS Tem acontecido comigo um fato interessante. Às vezes estou andando e percebo que alguém anda mais depressa, ou dá uma corridinha, se posta à minha frente e pergunta: “A senhora é D. Fulana?!”. Confirmo e começo a sorrir de ver o espanto e a fala: “Ontem me lembrei muito da senhora” e diz o motivo. Sinto que pensavam que já tinha morrido, pois foram meus alunos há muito tempo, quase meio século. Fico emocionada e agradeço não se esquecerem de mim e o carinho, o abraço do momento. O último encontro foi com a Edmea, num consultório e foi diferente, sabia que estou viva e lúcida, graças a Deus! Lembrou que era levada; e eu, viva curiosa, interessada. Lembrei. Se eles se lembram de mim e me comovem, tenho mil motivos para não esquecêlos. Vibro quando fico sabendo o quanto prosperaram na vida como cidadãos responsáveis, éticos, participantes da sociedade e da construção de um mundo melhor. Revivi fatos que deixaram marcas indeléveis e motivaram esta crônica. Estava de férias e fui ver o filme “Ao Mestre com carinho”. Gostei muito, Mal sabia o que me esperava. Naquele ano fui contemplada com a classe mais difícil, heterogênea, trabalhosa, desafiadora dos meus 30 anos de magistério. Mas foi também a que me deu alegrias inesperadas, me recompensou regiamente. Era o primeiro dia de aula do ano 1970, de muita emoção. Quem seriam os meus alunos? Como seriam? Como estariam no fim do ano? Depois da apresentação, boas vindas, chamada, escrevia na lousa quando ouvi: “O Macaco está acostumado a bater nas professoras.”Peguei a lista de alunos, corri os olhos e falei: “Aqui não tem nenhum Macaco!”. Os dedos duros gritaram: É o Edson!! Estava sentado na última carteira. Um rosto diferente das crianças da sua idade, com marcas de alguém que já sabia o que era sofrer. O cabelo desgrenhado, o olhar escabreado, uma triste figura. Falei: “Aprendi que não devo deixar para amanhã o que posso fazer hoje!” Precisava marcar posição, caso contrário estaria perdida! Por dentro tinha medo! Vamos ver?! E fui arregaçando mangas imaginárias, em sua direção, olhando firme nos seus olhos, fui chegando e coloquei suavemente a mão sobre a sua gadelha. Senti que se derreteu por dentro, não de medo, mas como um bichinho carente de afeto, de toque. E o milagre aconteceu. Ficamos amigos. Não me deu muito trabalho. Passou de ano, terminou o primário (antigo). Passado um bom tempo, numa visita ao Abrigo de Menores presos (de triste memória) levei o maior susto quando o vi, gritei: O que você está fazendo aqui? Ele abriu um sorriso e disse: “Sou pedreiro e estou consertando o piso!” Que alívio! Que alegria! Onde andará o Edson? Antigamente o culto à Bandeira era realizado nas salas de aula, aos sábados, na entrada da classe. Depois passou a ser realizado no pátio, com as classes juntas. Infelizmente há muito caiu no esquecimento. Ficou fora de moda e pagamos caro por isso.
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Numa manhã, quando os alunos se levantaram para a cerimônia, o que estava na primeira carteira, perto da janela, ficou sentado. Fui saber o motivo – doença, acidente. Nada disso, pura rebeldia e pouco caso. Expliquei o respeito que devemos aos símbolos da Pátria como cidadãos: ficar em pé, tirar o chapéu, muitos colocam a mão direita sobre o coração. Nada o convenceu. Então tirei-o da classe para o corredor e disse: “Aqui você pode até plantar bananeira”, e voltei para iniciar o ato com a saudação a Bandeira: “Neste templo de educação e ensino/Constantemente pensamos em ti/ Em teu passado de glória/ Em teu presente de realizações salutares/ Em teu grandioso porvir/ Possa tu, Pátria amada/ Te orgulhares um dia/ Dos filhos teus que agora te saúdam!” E palmas eram dadas! Então cantávamos o Hino à Bandeira, ou o Hino Nacional. Falávamos sobre o amor à Pátria, havia poesias. Terminado chamei-o de volta. No sábado seguinte ele se levantou e participou. Só então me lembrei do fato, mas não comentei: Na avaliação de setembro escreveu na redação: “ Passei na frente da catedral e os atiradores estavam cantando o Hino Nacional. Parei, fiquei firme e cantei com eles.” O meu cálice transbordou de alegria pela sua atitude quando ninguém cobrava. Li que há um grupo tentando resgatar o civismo nas escolas através de atitudes que despertem este sentimento que gerem cidadãos conscientes de que devem servir à Pátria e não se servir dela, como fazem políticos e outros que nos envergonham com propinas, superfaturamentos, mentiras, escândalos. Não posso me esquecer do Jorge, esperto, alegre, folgado: de vez em quando sumia. Esperava o circo na entrada da cidade e ficava grudado até a saída do mesmo. Função: Pegar gatos e cães para o almoço dos leões e outros carnívoros, para assistir os espetáculos. A Cleide preparou um bazar para o Dia das Mães, em benefício da Caixa Escolar que oferecia sopa e material escolar para os alunos carentes. O Jorge queria comprar uma lembrancinha para a mãe e não tinha dinheiro. Fiquei sua fiadora, arrisquei! Passados uns dias fui avisada que ele não quitara a dívida. Pedi dois dias de prazo. Ai dei uma baita de uma aula, com a alma e o coração. “Todos vocês são milionários”, comecei. Devem ter pensado que estava “lelé da cuca”. Um bom nome vale mais que ouro e prata e vocês, acho que têm bom nome, isto é, nome limpo, não tem ficha suja (como políticos de hoje). Podem comprar fiado porque o SPC (Serviço de Proteção ao Crédito) informa que vocês pagam o que devem. O dinheiro é bom, amar o dinheiro é ruim. Ele é ótimo servo, mas é um péssimo senhor quando manda em você. Nunca gastem mais do que ganham. Quem é inteligente sempre guarda um pouco, tem poupança! Gastei tempo com o assunto e com eles, fiz o melhor ao meu alcance. No dia seguinte Jorge entrou triunfantemente na classe: braço erguido e tinha entre os dedos duas velhas notas como hoje 1 Real e cantava. “Eu trouxe o dinheiro! Eu trouxe o dinheiro!” Estava vacinado! Valeu a pena e uma crônica com o título “SPC” que o jornal mensal da Associação Comercial publicou e fui conhecer pessoalmente o funcionamento do SPC. Estes relatos são água com açúcar, do tempo da escola “risonha e franca”. Como é a escola hoje? Assustadora pelo que sabemos através dos meios de comunicação. Uma escola pôs bem na frente uma placa: “Precisa-se de Professor” Que tenha: A paciência de Jô. A coragem de Davi. A sabedoria de Salomão. Quem se habilita? Se as autoridades e a sociedade não resgatarem o valor do Professor, a importância do aluno e da Escola, corremos o risco de termos mais uma profissão em extinção. “Uma Pátria se constrói com homens e com livros” não com obras faraônicas superfaturadas. Simon Bolívar já dizia: As nações marcham para sua grandeza ao mesmo passo que avança sua educação. Que Deus tenha misericórdia de nós!
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Roque Aloísio Weschenfelder REINO DA POESIA Céu oferece estrelas Da Terra brotam as flores À Lua dedicam poetas Versos singelos e amores Prado afora Braços dados Mãos e carícias Deleite de cores Estrelas, flores no Céu, Flores, estrelas na Terra, Amantes escolhem a Lua Confidente das noites O prado suspira Murmúrios de cascata Palrar de regatos Em fluir de versos Nos desenhos infantis O Mar espuma a praia Recheios de poesia enchem Conchas repletas de amor
Estrelas brilham sobre pecados Flores enfeitam cemitérios A poesia sopra no fim dos dias As trombetas do juízo final
A folha no chão Pede socorro Que não a pisem Os pés ignorantes
Ao prado o verde Resta de consolo Do lápis infantil O verso salvador
Poetas nunca choram Apenas lacrimejam as estrofes Versos dessilabados Ou rimas redescobertas Infantil inocência Rabisca os desenhos Da poesia de folha Branca de nascença
As eternas voltas universais Cometas, planetas, poetas, Perdidos anjos dos Céus Como crianças nos poemas Consteladas essências E um vinco demarca O primeiro rasgo Início do fim
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Tatiana Alves Soares Caldas
REJEIÇÃO Uma gota cor-de-rosa pinga agora no papel Cai, furtiva, da paleta, sem esperar o pincel. Não era a cor desejada pelo triste menestrel: Buscava ele o azul que vislumbrava no céu. Mas o rosa, cor teimosa, cavalga em bravo corcel E galopa, orgulhosa, com as madeixas ao léu. Pensa ser agora livre, mas é presa ao carrossel E lhe enfiam, boca adentro, ardentes gotas de fel. Pobre rosa, preterida, mantém-se ainda fiel Ao poeta que um dia a decantou no papel. Falam línguas diferentes, tons difusos na Babel, E o poeta ‘inda’ sonha com o azul da cor do céu.
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Suley Mara Rodrigues REMINISCÊNCIAS Sonho a cada minuto Lembrando o passado distante Como dá voltas o mundo Seres difusos e errantes. O Ser tem seus anseios Almeja felicidade absoluta A busca é incessante, Uma corrida constante, Luta que chega a ser bruta. Tão cego se torna o indivíduo Não distingue: esposo de marido Sua estrela brilha a frente, Mas está tão entretido Não vendo se fazer presente. Não vendo o esquecido pedido. Do obscuro a descoberta Contente fica por ter encontrado O globo não gira ao seu redor Passa a sentir-se rejeitado Faz suas reminiscências Ri do próprio comportamento Lamenta, chora, pensa e resolve Felicidade? Está em cada momento Absorve!
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Paula Renata Hanke da Silveira
SAUDADES ESTRANHAS Sinto saudades... Dos poemas que nunca escrevi E dos homens por quem não morri. Sinto saudades... Dos banhos de chuva recuados E, por desejo, não ter chorado. Sinto saudades... Do vento, que o meu rosto, jamais tocou E dos discos, que o tempo escasso, silenciou. Sinto saudades... Dos lugares que evitei visitar E de palavras não ditas, sem brilho e ar. Sinto saudades... Dos ideais que se ficaram por cumprir E do último olhar d’alguém especial que não vi partir. Sinto saudades Saudades estranhas... Saudades entranhas... Sinto saudades... Da vida, não da existência! Da tua companhia, não da carência!
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André Luiz A. Caldas Amora
Ser poeta II Ser poeta é ser mais alto, é ser maior Florbela Espanca
Sonho que meu parco verso Transforme a Dor na Alegria... Que junte o que está disperso, Que acabe com a Agonia. Sonho com o grito pleno, Que ilumine um coração, Que neutralize o veneno, Que me eleve à vastidão. Quero ser o poeta alto! Ter as asas de condor! Sei, porém, que sou incauto... Nem, ao menos, fingidor... Sonho, Poetisa, contigo! E vislumbro a plenitude, Mas vivo com o Castigo De me perder amiúde.
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Áurea Silva
SOBRESSALTOS Uma lembrança me desperta Um sentimento acostumado Vício na dor de te amar Na angústia de te esperar Alicerces de angústias. Abstinência de insônias e lágrimas E essa paz que tanto me incomoda agora É o lamento calado da tristeza que perdi. Esvazio a loucura E descubro afinal Que o que eu amava Não era você. Mas sim, os sobressaltos que me causava.
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Bianca Crepaldi Mendes
SOU... Sou rascunho inacabado, O papel amassado, Sou tinta colorida; Sou a boneca guardada, A fita rebobinada, Sou a saudade da partida; Sou alguém que cresceu, amou e chorou, Mas nunca desanimou Com os obstáculos do caminho; Sou alguém que viveu, amou, errou E sempre procurou Alguém que lhe desse carinho; Sou extremo descompensado, O viajante desorientado, Sou artista que não se pinta; Sou o diário remendado, O beijo roubado, Sou passagem só de ida...
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Sinézio de Souza
TRANSE D’ALMA Para ficar mais perto do que esta longe, me transmudo em monge na solidão do deserto... Para ficar mais distante do que existe de incerto, durmo e não desperto de um sonho mutante... Do transe do apagão de minh’alma, nem sei se quero voltar... Quando volto a despertar vejo na palma da minha mão, ao invés do “eme”, um coração...
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Camões Ribeiro do Couto Filho TRÊS DIMENSÕES Ontem eu era aquele moleque sonhador gerado na canícula do sertão. Meu umbigo quente a sangue cortado e jogado no mesmo pasto onde o tempo passava através das sombras de vacas magras. Um dia pendurado na longarina do caminhão-leiteiro eu mais meus pais e meus irmãos deixamos a roça dos anuns, rolinhas e seriemas. Minha mãe passava os dias inventando comidas e quitandas – doce alquimia – enquanto meu pai sentado no tamborete trançava relhos de oito pontos e fabricava porteiras que fechariam muitos sítios e fazendas de uma terra que já não era nossa. Eu menino-passarinho brincava com meus amigos caçando bandidos malvados na selva de mangueiras e abacateiros de nosso quintal. A vida seguia sem pressa com ar de inocência nas tardes de verão.
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Essa mesma vida traduzindo aquilo escrito nas estrelas traçou rumos acertos e desacertos para todos nós. Quando me dei conta a ampulheta do tempo estava quase vazia nossos destinos embaraçados e nada mais voltaria a ser como antes. Não havia mais mãe protetora sempre a nos receber com o mais terno abraço Não havia mais pai sentado no tamborete com a pureza de seus olhos azuis confundindo-se com a imensidão dos céus. Não havia mangueiras e abacateiros não havia mocinhos e bandidos não havia ninguém. Hoje fui em busca de meu umbigo mas não havia mais vacas pastando nem pássaros fazendo balbúrdia. A nossa velha casa fora demolida aquela mesma casa de portas largas janelas altas cercada por pés de tucuns e jataí flores e camomila. De repente me dei conta que minha vida é como uma biografia onde as mãos do destino já tecem as linhas finais...
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Jussara Athayde Albertão TRÊS PESSOAS FELIZES Três pessoas felizes – uma família Consciente desta felicidade: O pai, a mãe e a filha. Palavras , não muitas: carinhos nos gestos ou gestos de carinho... quem sabe! Três pessoas felizes, amor pairando no ar; Olhares repletos de dádivas; Lábios lacrados de paixão; Corpos eretos e discretos; No ar um mar de razões. Três pessoas felizes, o mestre ditando universo; As alunas ditando a sorte; A sorte fugindo à vida. A vida abrindo-se à morte. Duas pessoas sombrias – uma família Consciente desta sombriedade: apenas a mãe e a filha. Lágrimas vertendo dos olhos; Palavras jamais ditas Carinhos omitidos, muitos... Gestos, abraços, consolos. Duas pessoas apenas Passos, compassos do tempo; Tempo sem volta, sem espaço. Existência, a vida, oh vida! Arrebatada pela morte facilmente Deixando o vazio eterno; E as mãos estendidas, apenas saudades! Três pessoas felizes: a mãe, a filha e o pai Um encontro final, imortal Além, muito além das razões Nos jardins de um Édem soberano O reino dos que semearam amor!
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Sérgio Edvaldo Alves
TRINTA E QUATRO Hoje estou naqueles dias em que a palavra não tem tradução, dias em que as feridas estão penduradas no fio da esperança a esperar o sal da terra... Estou naqueles dias em que tudo é falso salvo a verdade dos que me criticam dos que me guardam na memória e me engolem no dia-a-dia... Estou naqueles dias em que a mulher sangra seu filho crucificado no ventre, dando-me luz pelo mal dos meus pecados. Hoje as feridas alheias à luz do mundo, dizem-me que eu fui naqueles dias o prego a mais na cruz.
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Luiz Aparecido de Lima TU AMAS? Tu amas? Amas ao ponto de suportares A ausência da pessoa amada, De teus amores? Tu amas? Ah! Por onde te guias A tua força do amor? Ela é o bastante Pra tu atravessares As pontes das diferenças Entre ti e teus amores? Tu amas? Na Igreja Tratas com cortesia Teus irmãos. Este trato é fruto do amor Entre ti e teus irmãos, Ou é mera formalidade? Tu amas? Ouças teu coração, reflitas. Entre ti e teus amores O que afloram São os momentos felizes, Ou são as decepções Que eles te causam? Tu amas? Amas a ponto de perdoar? Amas teu próximo? O que tens aprendido A respeito do amor? Tu amas? Onde estão teus amores? Onde está teu coração? Tu amas?
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Tatiana Alves Soares Caldas TURBULÊNCIA A solidão das misérias humanas vociferava no horizonte, anunciando-se qual temida tempestade. De narinas infladas, assustava até aqueles a ela acostumados e, por que não, afeiçoados. Atraiçoara-os, é verdade. Iludira-os, deixando que se pensassem a salvo, para irromper, absoluta, quando já a tinham por perdida. A solidão nunca morre. Nascemos e morremos sós, e camuflar isso apenas alimenta o velho embate do ser consigo mesmo. Buscar a verdade, talvez o único caminho. A única certeza. É no seu desconhecimento que reside a causa de todos os infortúnios. Como Pandora, que trazia em sua caixa de carne a pior das angústias, a esperança, lenitivo que prolongava a tortura. Depois contam a história da caixa, quando desde sempre a humanidade sabe onde se esconde a esperança humana: lá, onde o homem entra e de onde ele sai, nudez atemporal. O turbilhão que o suga reacende o velho desejo edipiano, oculto sob o véu do erotismo. Talvez por isso Parcas, Fúrias e Moira sejam femininas. Fonte e fim. Remédio e veneno. A solidão vociferava no horizonte, aguardando o momento do bote. E o homem, olhando-a nos olhos, sorvia, suplicante, seus últimos instantes de paz.
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Luís Fernando Nogueira UM DIA NA VIDA DE G PRADO (2) Após o almoço, finalmente aposentado do funcionalismo – da repartição que o aprisionava e ao mesmo tempo lhe fornecia subsídios – deitou-se para a sesta benfazeja; o cochilo demorou a vir, revisou mentalmente a crônica rematada, e concluiu que estava boa. Enquanto cerrava os olhos e desligava-se do consciente lembrou-se vagamente que alguém combinara de vir ao final da tarde: algum velho amigo ou assemelhado. A gata Risoleta da vizinha, em cio comovente e lascivo passou a entoar seu mantra perturbador, máxime porque não há nada que possa ser feito, até que algum exemplar disposto lhe faça às vezes, o que pode nem acontecer. Um sonho recorrente lhe tomou de assalto: em priscas eras, alguém lhe passava a administração de uma máquina de beneficiamento com um olhar irônico e via-se assoberbado com algo que não dominava, ante o olhar de empregados estáticos. Não havia sentido nisso, ou ao menos não tinha tal capacidade de interpretá-lo. O filme noir da noite anterior fez muito mais sentido. Não se faziam mais filmes como antigamente. Lembrava-se vagamente da noite em que estreou o Cine Ouro Branco “O ROLLS ROYCE AMARELO” e o assassinato do Prefeito justo naquele dia. Um pouco antes lançaram O BELO ANTONIO, e comparou-se com o SIMCA CHAMBORD “belo mas impotente”; o encantamento do cinema se fora, Shirley Temple, Errol Flynn, Burt Lancaster, Ava Gardner, Mickey Rooney, Fred Astaire e tantos outros, que agora curtia sem sair de casa, agora reinavam nos cines os westerns spaghethi, chineses de artes marciais, as comédias grosseiras e as pornochanchadas, de gosto discutível. Pelas 15:30 h sentia o enfado do ócio e espreguiçou-se; perscrutou a estante e deu com “Poetas de França” que não terminara, ao lado “Bugrinha” e um de LOBSANG RAMPA, coqueluche do momento que lia em doses homeopáticas; mais um pouco e um Herman Hess, Humberto de Campos e Coelho Neto, esses sim, lidos e relidos. Em devaneios, interrompeu-o a campainha, e deu com um velho amigo, o Borges, que tinha o hábito do alarmismo. Ouvira as notícias? Carestia com tendências de subida, surtos endêmicos e estranhas aparições nos céus noturnos em diferentes pontos do país. Ponderou que tais não eram novidade, umas por serem já costumeiras e sazonais, outras por não serem dignas de crédito......e ademais, tinham sobrevivido a tanta coisa, não era agora, em idade avançada que tais rumores lhe metiam medo. O Pinheiro? Não o via faz tempo, mas soube que estava amancebado alhures com uma viúva; Moisés? Esse lhe devia dinheiro há muito tempo, e temia perder-lhe a amizade, ironicamente por ter-lhe ajudado, mas as “baixas” ? continuavam a aumentar: morrera-lhe uma dúzia em pouco mais de 2 anos, e a velha guarda extinguia-se, em breve seria apenas uma nota de rodapé no periódico. Talvez uma homenagem dos colegas no obituário lhe enaltecessem os feitos em algumas linhas, e sua expressão estaria muda. Emocionaram-se lembrando de velhos feitos passados, suas pândegas e momentos antológicos agora apenas uma lembrança vaga e surreal. Despediram-se comovidos e o cronista viu no início da noite o amigo distanciar-se em seus passos lentos (outrora lépidos), e virar-se para um último aceno, como a imagem da própria juventude que se desvanece....e então lembrou-se que à noite.....
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Jussara Athayde Albertão UM DIA SEM SOL Um dia de chuva, moscas inquietas passeavam sobre o queijo quase curado. -“Passa bicho do diabo”! A mãe ia e vinha impaciente, sempre ocupada com a cozinha: -“Levanta menina; tire a mesa do café”. A preguiça consciente tomava conta do meu corpo. Queria voltar para cama e dormir um tico a mais. Os pingos pesados soavam longe... Os animais inquietos aguardavam a estiagem. O pai já fora longe. Era preciso cuidar da roça. Indolentemente tirei a mesa beliscando os farelos de pão. E agora, o que fazer? As moças limpavam os quartos: -“Sai daqui menina, não pise na sujeira!” Nada restava para mim. O campo alagado atraía como imã. Escondida, tirei os sapatos e corri para o campo. A água fria encharcava os cabelos e colava a roupa no corpo miúdo: eu pequeno ser, único, na imensidão do universo. Andei céus e terras. Sorvi o perfume das flores desabrochando. Senti a lama nos pés, acariciei animais encolhidos; percebi a maravilha da existência; esqueci que havia horas. Caminhei até não mais sentir o solo. De repente escurecera. O céu já não chorava. Com os sapatos alagados na mão, cabeça baixa, medrosa, retornei a casa esperando o castigo que viria. Fora-se a chuva, viria a tempestade.
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Claudia Mungo
VOCÊ Você que é luz e minha vida conduz Você que é fogo e aquece minh`alma Você que jamais encontrei nada igual Você sempre é companheira ideal Entre ventos e tempestades Entre sonhos e planos Meu presente fortalece Meu futuro ilumina Às vezes tão frágil às vezes tão forte Sabe da luta não espera a sorte É tão pequena quando quer colo Sinto em você minha criança grande Entre ventos e tempestades Entre sonhos e planos Em minha vida para sempre Dentro do meu coração.
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Sarah Nadim de Lazari ZÉ CASMURRO “- Depende!”. Sempre há quem exclame, sob qualquer ponto de vista, uma vertente contraditória àquilo que se afirma. Não é sobre ser casmurro. É humano questionar. A controvérsia independe do concretismo das coisas. Perspectiva é a “bola da vez”. É um termo melhorado para palpite, ou para esperança, onde tudo depende de módulo, direção, sentido, classe social, opção sexual e tantos outros “et ceteras”. Deparamo-nos aqui com várias (invariáveis) expectativas, por exemplo, de um ano novo onde as promessas, indiretamente ou não, são sempre as mesmas, renovadas pela esperança de que uma página arrancada do calendário vá levar consigo os problemas, as dúvidas e dívidas, os excessos de peso e o marido folgado que só come, dorme e late. Não tenha vergonha de afirmar, quando surgir um repórter especial da TV entrevistando na rua, movimentada com as compras de fim de ano, que os seus planos para dois mil e alguma coisa, são os mesmos de mil novecentos e noventa e tantos. A relatividade do que está por vir depende sim do (auto)questionamento. A confusão diária causada pelo sensacionalismo dos meios telecomunicativos ou pela clausura tradicionalista nos põe em pé de guerra com o senso crítico. É mais fácil encontrar uma opinião formada por outrem depois de dar um clique no controle remoto; difícil é remontar-se diante do que nos foi enfiado goela abaixo. Mais difícil ainda é desenvolver perspectiva de melhora diante do que, de negativo, nos foi propiciado ou habituado. O casmurro que lhe contradiz, é a salvação do ano que vem. “Perspectiva” é a menina dos olhos do Coitado, que sempre espera chegar o pósNatal para se lamentar sobre o que passou, fingindo encontrar na esperança da “meia noite, meia noite e um”, sensatez. “Perspectiva” é o gozo do Saudosista, que zomba do futuro, engrandecendo o passado. É Ela a queridinha da televisão, que ludibria, com cores quentes e mesas fartas a criança que passa fome e frio. O homem, que se contempla através da posteridade, - essa distância espiritual que dá perspectiva eterna a seu frágil ser transitório – duvida; teme. Mas quando sonha, ameniza a vontade, digere a esperança só mais um pouquinho; acredita.
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Em tempo... Para sorte do Brasil, o número de consumidores de livros no país vem crescendo ano após ano, num ritmo superior ao crescimento da economia em geral. Basta ver o sucesso dos diversos salões, feiras e bienais de literatura, nas capitais e cidades do interior, que atraem público cada vez maior. Como seria de se supor, a quantidade de pessoas de todas as idades que, se rendendo à paixão pelos livros, querem se tornar escritores ou poetas aumenta em igual proporção. E a paixão aumenta pela poesia, pela crônica ou pelo texto simplesmente. Surge então o primeiro obstáculo: como fazer para ter sua obra publicada? A publicação de um livro requer muito trabalho, tempo, dedicação e, sobretudo, recurso financeiro. A resposta é simples: concursos literários. Atendendo ao anseio dos novos talentos por uma oportunidade de dar o primeiro passo na difícil, mas gratificante arte das letras, a Secretaria Municipal de Cultura e Turismo de Presidente Prudente promove o CLIPP – Concurso Literário de Presidente Prudente – agora em 2011 em sua 5ª edição, oportunizando aos amantes da literatura verem seus textos publicados e colaborando para o crescimento da leitura e da produção por puro prazer. Se você sente sob a pele uma veia literária, e gostaria de exibir e testar seus trabalhos, não perca a oportunidade para o próximo ano, inscreva-se! Ivan Sant’Anna
Ivan Sant’Anna foi corretor da bolsa de valores antes de se tornar escritor de sucesso. Dentre suas obras estão: Caixa Preta e Plano de Ataque, sobre acidentes aéreos no Brasil e o fatídico 11 de setembro; Em nome de sua majestade, sobre a morte do mineiro Jean Charles de Menezes em Londres; em 2011 lançou Perda Total, que conta as três últimas tragédias na história da aviação brasileira. Um mês após seu lançamento já listava dos mais vendidos da revista Veja. É também um dos autores convidados para o 2º Salão do Livro de Presidente Prudente.
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