ROTEIRO DO ESPETÁCULO MACUNAÍMA – TRAPALHADAS DE UM HERÓI Autora: Airô Barros
Macunaíma, herói de nossa gente, nasceu no fundo do mato-virgem, em plena floresta amazônica à margem do Uraricoera. Era preto retinto, filho de uma índia Tapanhumas e do medo da noite. Já de menino era safado e preguiçoso. Seu divertimento era decepar cabeça de saúva e mexer nas graças das cunhãs. Ele gostava mesmo era de brincar. Só foi falar com seis anos, depois de tomar água no chocalho. E advinha qual foi a primeira frase: - Ai! Que preguiça! Tinha dois irmãos: Maanape, o feiticeiro já velhinho e Jiguê na força de homem, que era muito bobo. O assunto preferido nas conversas das mulheres eram as peraltagens do herói. Elas tinham muita simpatia por ele e diziam que espinho que pinica, de pequeno já faz ponta. Até Rei Nagô numa pajelança fez um discurso dizendo que o herói era muito inteligente. Macunaíma queria passear no mato, mas a mãe nunca que nunca o levava. Na sua malandragem dormiu com um olho só e encontrou uma maneira de convencer Sofará, companheira do seu irmão Jiguê, a acompanhá-lo. Foram muitos os passeios. Quando chegavam no mato, ele virava um príncipe lindo e fogoso. Eles brincavam muitas vezes, fazendo festinhas um para o outro. Apesar de Jiguê ser muito bobo, acabou descobrindo o motivo de tantos passeios no mato, e teve muita raiva do herói. Devolveu Sofará para o pai dela, pegou um rabo de tatu e bateu com vontade na bunda do herói. O berreiro foi tão imenso que encurtou o tamanho da noite. Muitos pássaros caíram de susto no chão e se transformaram em pedra.
Passeando um dia pela mata, o herói viu a cotia farinhando mandioca. Pediu um pouco de aipim pra comeu. A cotia deu e avisou que ia igualar o corpo dele Pegou na gamela cheia de caldo envenenado de aipim e jogou a lavagem no piá. Macunaíma fastou, mas só conseguiu livrar a cabeça. Todo o resto do corpo se molhou. O herói botou corpo, foi desempenando, crescendo, fortificando e ficou do tamanho dum homem taludo. A cabeça, que não foi molhada, ficou pra sempre rombuda e com carinha enjoativa de piá.
Numa manhã, Macunaíma apareceu de cara amarrada e falou pra sua mãe: - Mãe... sonhei que caiu meu dente. - Isso é morte de parente.
No outro dia Macunaíma atravessou o reino encantado da Pedra Bonita, em Pernambuco e quando estava chegando na cidade de Santarém topou com uma viada parida. - Essa eu caço! E flechou a viada. Ela caiu e ficou rija estirada no chão. O herói cantou vitória. Chegando perto da viada deu um grito e desmaiou. Percebeu ter sido uma peça do Anhanga. Não era viada não, era a sua mãe tapanhumas que Macunaíma flechara. Jejuaram o tempo que o preceito mandava. A barriga da morta foi inchando e virou um cerro macio. Então Macunaíma e seus irmãos partiram por esse mundo. Numa feita, iam seguindo por um caminho no mato e de repente Macunaíma parou riscando a noite do silêncio com um gesto imenso de alerta. Os outros estacaram. Avançaram cautelosos. Macunaíma topou com Ci, a Mãe do Mato. Cunhã que pertencia à tribo das índias Icamiabas, formada apenas por mulheres guerreiras que usavam os homens somente para procriar. Quando Macunaíma com suas artimanhas e malandragens conquistou a Mãe do Mato, vieram então muitas jandaias, araras vermelhas, tuins, periquitos e papagaios saudar Macunaíma, o novo Imperador do Mato. O herói então passou a viver sossegado na rede, matando formigas taiocas, enquanto Ci ia guerrear. De noite ela se aromava tanto que até deixava o herói tonto. Sempre inventavam novas maneiras de brincar. Ci era insaciável. O herói ficava com muita preguiça, chegando a dormir no meio. A companheira fogosa insistia. Pegava no mato a folhagem de fogo da urtiga e sapecava no chuí do herói e nas graças dela. Macunaíma ficava que ficava um lião querendo. Ci também. Depois de muito brincar a Mãe do Mato pariu um filho encarnado. Macunaíma ficou de repouso o mês de preceito, porém se recusou a jejuar. Todas as Icamiabas queriam bem a esse curumim, e lhe traziam muitos presentes. O pecurrucho tinha cabeça chata e Macunaíma inda a achatava mais batendo nela todos os dias e falando pro guri: - Meu filho, cresce depressa pra você ir pra São Paulo ganhar muito dinheiro. Uma feita jacurutu veio com sua presença agourenta e Macunaíma tremeu assustado. Então chegou a Cobra Preta e tanto chupou o único peito vivo de Ci que não deixou nem o apojo. O curumim sem ama chupou o peito da mãe e no outro dia deu um suspiro envenenado e morreu. Do túmulo do filho, nasceu a plantinha do guaraná. Ci toda enfeitada tirou do colar uma muiraquitã e deu para o companheiro. Depois subiu pro céu por um cipó.
É lá que Ci vive passeando toda enfeitada de luz, virada numa estrela. É a Beta do Centauro.
No outro dia bem cedo o herói padecendo saudades de Ci, a companheira pra sempre inesquecível, furou o beiço inferior e fez da muiraquitã um tempetá. Sentiu que ia chorar. Nas noites de amargura, ele trepava num açaizeiro de frutas roxas, como a alma dele. Macunaíma parava pensando na marvada. Chorava muito tempo. Então ele suspirava sacudindo a cabecinha: - Qual manos! Amor primeiro não tem companheiro, não! MÚSICA – PEDAÇO DE MIM – Chico Buarque No outro dia recomeçaram a caminhada através dos matos misteriosos. Macunaíma era sempre seguido pelo séquito de araras vermelhas e jandaias. Tomado de tristeza, Macunaíma despediu-se das Icamiabas e partiu rumo às matas misteriosas. No caminho, encontra Capei - monstro fantástico - que abre a goela e solta uma nuvem de marimbondos. Nas lutas contra o monstro, Macunaíma perde seu talismã. Depois de algum tempo, fica sabendo através de um uirapuru, que a tartaruga que engolira sua pedra tinha sido apanhada por um mariscador. Este vendera a muiraquitã a um regatão peruano, chamado Venceslau Pietro Pietra, que morava numa mansão na Rua Maranhão, em São Paulo. Macunaíma tinha opinião de sapo. Quando encasquetava com uma coisa agüentava firme no toco. Decidiu ir para São Paulo recuperar sua muiraquitã. Sabendo que o herói carecia de proteção, os manos resolveram acompanhá-lo. Desceram o Araguaia passando por caatingas, rios, corredeiras, gerais, corgos, corredores de tapatinga, matos-virgens e milagres do sertão, com sua esquadra de igarités cheias de cacau herdados de Ci, a Icamiaba estrela. Uma feita Macunaíma se lembrou de tomar banho. Enxergou uma cova cheia d’agua, que tinha a forma dum pé gigante. O herói entrou na cova e se lavou inteirinho, mas aquela água era encantada. Quando o herói saiu do banho estava branco, louro e de olhos azuizinhos. A água lavara o pretume dele. Ele não parecia mais um filho da tribo retinta dos Tapanhumas. Jiguê e Maanape também se banharam. Jiguê entrou primeiro e ficou da cor do bronze novo. Maanape conseguiu molhar apenas as mãos e os pés que ficaram vermelhos. E estavam lindíssimos na Sol da lapa os três manos: um louro, um vermelho e outro negro.
Chegando a São Paulo Macunaíma ficou muito contrariado. O cacau não era a moeda tradicional. E ter de trabucar... Ele herói? Murmurou desolado: - aí que preguiça! Naquela noite todas as estrelas tinham descido do céu branco de tão molhado de garoa e banzavam pela cidade. Macunaíma procurou Ci. A rede feiticeira que ela armara pros brinquedos, fora tecida com seus próprios cabelos. Isso torna a tecedeira inesquecível. As estradas e terreiros estavam apinhados de cunhãs alvinhas. Macunaíma murmurejou: “Mani, filhinhas da mandioca. Escolheu três e brincou com elas na rede estranha plantada no chão. Depois dormiu sobre o corpo das cunhãs. A noite custou pra ele quatrocentos bagarotes. A inteligência do herói estava muito perturbada. Tinha aprendido que o sagüim-açu não era sagüim não. Chamava elevador e era uma máquina. As onças pardas não eram onças pardas. Se chamavam fordes, chevrolés, dodges, e eram máquinas. Os tamanduás, os boitatás, as inajás de curuatás de fumo, em vez eram caminhões, bondes, auto-bondes. Anúncios-luminosos, relógios, faróis, rádios, motocicletas, telefones, gorjetas, postes, chaminés eram máquinas. E tudo na cidade era só máquina. Então resolveu ir brincar com a Máquina pra ser também imperador dos filhos da mandioca. Foi informado que com a máquina ninguém brinca porque ela mata. Máquina não era deus não. Nem possuía os distintivos femininos de que o herói tanto gostava. Jacaré acreditou? Nem o herói! O herói estava nostálgico. Até que uma noite concluiu que os filhos da mandioca não ganham da máquina nem ela ganha deles. Nesta luta há empate.
No outro dia se lembrou da muiraquitã. Resolveu agir logo: primeira pancada é que mata cobra. Macunaíma foi com Maanape na casa de Venceslau Pietro Pietra - o Gigante comedor de gente. O mano tentou mostrar as inconveniências dessa visita. Macunaíma não quis saber. Onde me conhecem honras me dão. Onde não me conhecem, me darão, ou não! Acabaram descobertos pelo gigante que tentou comer Macunaíma. Maanape fez várias trapaças para proteger o herói. Chegou a jogar para o gigante, de uma só vez: um macuco, um jacu, uma jacutinga, uma picota e uma piaçoca, gritando: - Toma seis. O gigante falou: Sai do caminho, porqueira! Jacaré não tem pescoço, formiga não tem caroço! Foi assim que Maanape com Piaimã inventaram o truco.
Maanape gostava muito de café e Jiguê muito de dormir. Macunaíma queria erguer um papirí pros três morarem. Como um passava o dia todo dormindo e o outro tomando café, não conseguia. O herói teve raiva. Pegou uma colher, virou-a num bichinho e falou: - Você fica sovertida no pó de café. Quando o mano Maanape vier beber, morda a língua dele! Então, pegando o cabeceiro de algodão, transformou numa taturana branca e falou: - Você fica sovertida na maqueira. Quando mano Jiguê vier dormir, chupe o sangue dele! E assim foi feito. Depois do ocorrido, os três finalmente foram se dedicar a construção do papirí. Os manos ficaram tiriricas com Macunaíma, e resolveram se vingar. O herói não maliciava nada. Durante o trabalho, Jiguê transformou um tijolo numa bola de couro duríssima. Passou a bola para Maanape que com um pontapé, mandou ela bater em Macunaíma. Vichi... Esborrachou todo o nariz do herói. Macunaíma teve raiva e atirou a bola com o pé bem pra longe. E foi assim que Maanape inventou o bicho-do-café, Jiguê a lagarta-rosada e Macunaíma o futebol. Três pragas. Macunaíma estava muito contrariado. Não conseguia reaver a muiraquitã e isso dava ódio. O melhor era matar Piaimã... Tomou um trem e foi para o Rio de Janeiro se socorrer com Exu diabo, em cuja honra se realizava uma macumba no outro dia. Era junho e o tempo estava inteiramente frio. A macumba se rezava no zungu da tia Ciata. Feiticeira como não tinha outra, mãe-de-santo famanada e cantadeira ao violão. Às vinte horas, Macunaíma chegou na biboca, levando debaixo do braço o garrafão de pinga obrigatório. Entrou na sala cheia e afastando a mosquitada foi de quatro saudar a candomblezeira imóvel sentada na tripeça, não falando um isto. Então a macumba principiou. Na ponta vinha o ogã, tocador de atabaque. Um negrão filho de Ogum, bexiguento e fadista de profissão, chamado Olelê Rui Barbosa. Atrás do ogã, vinha tia Ciata quase sem mexer, puxando a reza monótona. E então seguiam advogados, taifeiros, curandeiros, poetas, o herói, gatunos, portugas e senadores. Macunaíma e todos vieram botar as velas no chão rodeando a tripeça onde estava Tia Ciata Então veio a vez de beber. E foi lá que Macunaíma provou pela primeira vez o cachirí temível, cujo nome é cachaça. Provou estalando com a língua feliz e deu uma grande gargalhada. Nem bem a reza recomeçou, se viu pular no meio da saleta uma fêmea obrigando todos a silêncio. Com gemido, meio choro e puxando canto novo. Era Exu! Ogã pelejava batendo tabaque pra perceber os ritmos doidos do canto novo. Canto livre de notas afobadas.
Terminada a cerimônia o diabo foi conduzido pra tripeça, principiando a adoração. Depois que todos beijaram, adoraram e se benzeram muito, foi à hora dos pedidos e promessas. Muitos falaram e chegou à vez de Macunaíma. Como se chama? Perguntou Exu. principiado por “ma” tem má-sina!
- Macunaíma, o herói! Hum... O maioral... Nome
O herói pediu que Exu fizesse sofrer Venceslau Pietro Pietra que era o gigante Piaimã comedor de gente. Exu pegou três pauzinhos de erva-cidreira benta, jogou pro alto, fez encruzilhada, mandando o eu de Venceslau Pietro Pietra vir dentro dele Exu, pra apanhar. Exu mandou o filho dar a sova. O herói pegou uma tranca e bateu com vontade. Deu que mais deu. Exu gritava: - Me espanca devagar. Que isto dói, dói, dói! Também tenho família. E isto dói, dói, dói! Roxo de pancada, sangrando pelo nariz, pela boca e pelos ouvidos, acabou caindo desmaiando no chão. Macunaíma ainda não estava satisfeito: ordenou que o eu de Venceslau Pietro Pietra recebesse o guampaço dum marruá, o coice dum bagual, a dentada dum jacaré e os ferrões de quarenta vezes mil formigas-de-fogo. E Exu gemia: - Me chifra devagar. Que isto dói, dói, dói! Também tenho família. E isto dói, dói, dói! Lá no palácio da Rua Maranhão em São Paulo tinha um corre-corre sem parada. Vinham médicos, veio a Assistência e todos estavam desesperados. Venceslau Pietro Pietra sangrava. Mostrava uma chifrada na barriga, coice de potro na testa, queimaduras e mordidas de quarenta vezes mil formigas-de-fogo, além das manchas e galos da sova de pau. Na macumba continuava o silêncio de horror. E pra acabar todos fizeram a festa juntos comendo bom presunto e dançando um samba de arromba em que todas essas gentes se alegraram com muitas pândegas liberdosas. Então tudo acabou. Os macumbeiros, Macunaíma, Jaime Ovalle, Dodô, Manu Bandeira, Ascenso Ferreira, Raul Bopp e Antônio Bento, saíram na madrugada.
CARTA PRAS ICAMIABAS Macunaíma era realmente muito safado. O cacau que herdara de Ci – a Mãe do Mato, não valia muito em São Paulo. E trabucar. Ele herói? Nem pensar! Até pra brincar tinha que pagar? Lugar de doido esse de cá! Resolveu escrever pras Icamiabas. Se fosse hoje passaria um email, e tudo seria bem mais simples.
Usou todos os argumentos para impressionar. Mas o que queria mesmo, era dindin ganhar! Jacaré respondeu? Nem elas! Passado algum tempo..., num dia pela manhã, Macunaíma abriu a janela e enxergou um passarinho verde. O herói ficou satisfeitíssimo Resolveu então não ter mais contemplação com o gigante e matá-lo. Era noite fechada e tinha neblina sobre o mundo quando o herói chegou na casa do gigante. A casa estava sem ninguém e a escureza era total. Macunaíma ficou ali... Tocaiando, tocaiando. Venceslau Pietro Pietra logo chegou. Viu Macunaíma e o convidou para entrar. O herói estendeu os braços... - Ai!... Que preguiça!... Piaimã possuía orelhas furadas por causa dos brincos. Então carregou o herói nas costas de cabeça pra baixo, prendidos os pés nos buracos das orelhas. Macunaíma aprumou a sarabatana e assim de cabeça pra baixo, parecia um atirador malabarista de circo acertando nos ovinhos do alvo. O gigante tomou a sarabatana e jogou longe. Macunaíma pegou os ramos e continuou. - Que você está fazendo? Perguntou o gigante ressabiado. Não vê que os ramos estão batendo na minha cara? Por debaixo da escada tinha uma gaiola de ouro com passarinhos cantadores. Os passarinhos do gigante eram cobras e lagartos. Macunaíma pulou na gaiola e principiou comendo cobra. Piaimã convidava-o pra vir no balanço, porém o herói engolia as cobras, contando que faltava cinco. Afinal as cobras acabaram e o herói cheio de raiva desceu da gaiola com o pé direito. Piaimã insistia pro herói balangar que era fácil, mas nada conseguia. Finalmente Macunaíma fingiu aceitar. Pediu para o gigante balangar. Então Piaimã amontou no cipó. Macunaíma foi balançando cada vez mais forte e deu um arranco. Os espinhos ferraram na carne do gigante e o sangue espirrou. - Pára! Pára! Piaimã gritava. Macunaíma balançou até o gigante ficar bem tonto. Então deu um arranco fortíssimo na japecanga. Venceslau Pietro Pietra caiu no buraco berrando e cantando: - Lem... Lem... lem... Se desta escapar nunca mais como ninguém! Enxergava a macarronada fumegando lá embaixo e berrou para ela: -- Afasta que vos engulo!
Porém jacaré fastou? Nem tacho! Ele caiu na macarronada fervendo e subiu no ar um cheiro tão forte de couro cozido que matou todos os tico-ticos da cidade e o herói teve uma sapituca. Piaimã se debateu muito e já estava morre-não-morre. Num esforço gigantesco inda se ergueu no fundo do tacho. Afastou os macarrões que corriam na cara dele, revirou os olhos pro alto, lambeu a bigodeira: - Falta queijo! Exclamou... E faleceu Este foi o fim de Venceslau Pietro Pietra, que era o gigante Piaimã comedor de gente. O herói pegou a muiraquitã e partiu na máquina bonde pra pensão. E chorava gemendo assim: - Muiraquitã, muiraquitã de minha bela. Vejo você, mas não vejo ela!... Então os três manos voltaram pra querência deles. Todos contentes, porém o herói ainda mais. Só um herói pode ter uma satisfa imensa. Partiram. Quando atravessaram o pico do Jaraguá, Macunaíma virou pra trás contemplando a cidade macota de São Paulo. Maginou sorumbático muito tempo e falou: - Pouca saúde e muita saúva, os males do Brasil são... Macunaíma não possuía mais nem um tostão do que ganhara no bicho, porém balangando no beiço furado pendia a muiraquitã. O olhar do herói descia a pele do rio em busca dos pagos da infância. Vei, a Sol dava lambadas no costado, relumeando suor de Maanape e Jiguê, remeiros e no cabeludo corpo em pé do herói. Era um calorão molhado fazendo fogo no delírio dos três. Macunaíma se lembrou que era imperador do Mato-Virgem. Riscou um gesto na Sol, gritando: - Eropita boiamorebo! Logo o céu se escurentou de supetão e uma nuvem ruivor subiu do horizonte entardecendo a calma do dia. A ruivor veio vindo, veio vindo... Era o bando de araras vermelhas, jandaias, todos esses faladores, tuins, periquitos. O cortejo sarapintado de Macunaíma imperador. Formaram uma tenda de asas e de gritos, protegendo o herói do despeito vingarento da Sol. O mundo ficava mudo não falando um isto, e o silêncio vinha amulegar a mornidão da sombra na igarité. E se escutava lá no longe, baixinho o ruidejar do Uraricoera. Depois a boca-da-noite engoliu todas as bulhas e o mundo adormeceu. Então Macunaíma teve saudades do sucedido na taba grande paulistana. Viu todas aquelas donas de pele alvinha com quem brincara de marido e mulher. Foi tão bom! Sussurrou docemente: “Mani! Mani! Filhinhas da mandioca!”.
Deu um tremor comovido no beiço dele que quase a muiraquitã cai no rio. Então pensou na dona da muiraquitã. Na briguenta, na diaba gostosa que batera tanto nele. Ci - Mãe do Mato. (pág11) Afinal ficou tudo conhecidíssimo. Se enxergou o cerro manso que fora a mãe um dia, no lugar chamado Pai da Tocandeira. Se enxergou o pauê trapacento malhado de vitórias-régias, escondendo os puraquês e os pitiús. Pra diante do bebedouro da anta, se viu o roçado e a maloca velha. Agora uma tapera. Macunaíma chorou. Não passou muito tempo da volta para os pagos da sua infância, quando aconteceu que os manos de Macunaíma foram devorados por uma sombra leprosa. Macunaíma se sentiu completamente abandonado A partir daí, o herói passava os dias deitado numa rede, atada a dois cajueiros no alto da barranca, junto ao rio. Foi abandonado até pelas aves. A única exceção foi um papagaio, para quem Macunaíma contou suas histórias. O mês era janeiro e o calor infernal. Macunaíma acordou tarde com o pio agourento do tincuã. Vei, a Sol, escorregava pelo corpo de Macunaíma, fazendo cosquinhas, virada na mão de moça. Era malvadeza da vigarenta só por causa do herói não ter amulherado com uma das filhas da luz. Que vontade nos músculos pela primeira vez espetados depois de tanto tempo! Macunaíma se lembrou que fazia muito não brincava. Água fria diz que é bom pra espantar as vontades... A lagoa estava toda coberta de ouro e prata. Macunaíma enxergou, lá no fundo das águas, uma cunhã lindíssima, alvinha e padeceu de mais vontade. Só que a cunhã era Uiara. Vinha chegando como quem não quer nada, com muitas danças e piscando pro herói. Deu uma vontade tão imensa nele que alargou o corpo e a boca umideceu. Macunaíma queria a dona. Botava o dedão n’agua e num átimo a lagoa tornava a cobrir o rosto com as teias de ouro e prata. Foi assim muitas vezes. Se aproximava o pino do dia e Vei estava jangadíssima. Torcia pra Macunaíma cair nos braços traiçoeiros da moça do lagoão. Só se mostrava pro herói de frente e por isso ele não via o buraco no cangote por onde a pérfida respirava. E o herói indeciso, vai-não-vai. A dona mostrou as graças. O herói sentiu fogo no espinhaço, fez pontaria e se jogou em cima dela. Vei chorou de vitória. As lágrimas caíram na lagoa num chuveiro de ouro. Era o pino do dia. Quando Macunaíma voltou pra praia estava sangrando com mordidas pelo corpo todo. Sem perna direita, sem os dedões, sem os côcos-da-bahia, sem orelhas, sem nariz, sem nenhum dos seus tesouros.
O herói deu um grito que encurtou o tamanho do dia. As piranhas tinham comido também o beiço dele e a muiraquitã! Ficou feito louco. Arrancou uma montanha de timbó, de assacú, de tingui, e de cunambi e envenenou pra sempre o lagoão. Macunaíma campeava, campeava. Soltava gritos de lamentação: - Lembrança... lembrança da minha marvada! Não vejo nem ela, nem você, nem nada. Então Macunaíma não achou mais graça nessa terra. Cismou inda meio indeciso, sem saber se ia morar no céu ou na ilha de Marajó. Tudo o que fora sua existência, apesar de tantos casos, tanta brincadeira, tanta ilusão, tanto sofrimento e tanto heroísmo. Afinal não fora sinão um se deixar viver. Decidiu: Ia pro céu viver com a marvada. Ia ser o brilho bonito, mas inútil de mais uma constelação. Plantou uma semente do cipó matamatá. Enquanto o cipó crescia agarrou numa itá pontuda e escreveu na laje que já fora jaboti: NÃO VIM NO MUNDO PARA SER PEDRA A planta já tinha crescido e se agarrava numa ponta de Capei. O herói capenga foi subindo e cantando: – Vamos dar a despedida, taperá – Bateu asa foi-se embora, taperá
– Talequal o passarinho, taperá – Deixou a pena no ninho, taperá...
Macunaíma então se transformou na constelação Ursa Maior. E só o papagaio, no silêncio do Uraricoera preservava do esquecimento os casos e a fala desaparecida. Só o papagaio conservava no silêncio as frases e feitos do herói. Tudo ele contou pro homem e depois abriu asa rumo de Lisboa. E o homem sou eu, minha gente, disse finalmente Mário de Andrade. Eu fiquei pra vos contar a história. Por isso que vim aqui. Me acocorei em riba destas folhas, catei meus carrapatos, ponteei na violinha em toque rasgado e botei a boca no mundo cantando na fala impura as frases e os casos de Macunaíma, herói de nossa gente. Tem mais não. MÚSICA – CRUZEIRO DO SUL – Jean e Paulo Garfunkel
Bibliografia: roteiro totalmente baseado no livro Macunaíma de Mário de Andrade e com a preocupação de ser fiel nas falas e na linguagem do autor.