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MARTIM SOUSA TAVARES, MIGUEL LOUREIRO E MIGUEL PEREIRA
criadores de In the Penal Colony / Na Colónia Penal
Como se juntou este trio de criadores?
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Miguel Loureiro (m.l.): O projeto começou com a ideia de pôr em cena O Burguês Gentil-Homem, texto de Molière e música original de J.B. Lully, com a Companhia Nacional de Bailado. A mim e ao Miguel Pereira já nos interessava trabalhar neste cruzamento entre a ópera e a dança, mas faltava-nos a parte essencial, da música. Na altura, conheci o Martim e fomos falando destas coisas e fui seguindo o trabalho dele. Tudo isto antes da pandemia e depois esse projeto acabou por não se concretizar. Mas foi assim que nos juntámos os três e a vontade de colaborar ficou. Ao Miguel já conheço há milhares de anos, somos os dois dos anos 30 do século XX [risos] e sempre trabalhámos juntos e nos entendemos muito bem, seja nos espetáculos seja nas conversas. Com o Martim também fui descobrindo uma grande empatia e tenho aprendido muito com ele. E foi o Martim que insistiu que continuássemos, mesmo depois do projeto do Molière ter caído, propondo-nos outras óperas.
In the Penal Colony / Na Colónia m.l.: Sim, chegou a estar anunciada no São Luiz a ópera de John Adams I Was Looking at the Ceiling and then I Saw the Sky / Estava a Olhar para o Teto e de Repente Vi o Céu. Mas esse projeto também acabou por não avançar, por dificuldades com o elenco. E acabámos por ir para um compositor emblemático, o Philip Glass.
Penal nem foi a vossa segunda escolha.
Martim Sousa Tavares (m.s.t.): Já estávamos a pensar no John Adams, por isso era importante substituí-lo por outro compositor contemporâneo. Se, de repente, fizéssemos Mozart seria muito estranho. Já tínhamos parte da equipa constituída, incluindo nós os três, e esta ópera de Philip Glass acabou por ser a obra certa, porque dá para nós os três trabalharmos. Tem duas personagens que não têm texto e toda a sua expressão vem através dos movimentos – e aqui o Miguel Pereira tem campo para fazer o seu trabalho. O libreto de Rudolph Wurlitzer é muito sólido – afinal, parte de um texto de Kafka. Por isso, partimos de uma base muito boa, o que nos ajuda porque vamos fazer récitas pensadas para escolas, num formato diferente, e tem esse lado pedagógico, porque o texto estan- do editado em língua portuguesa, as escolas podem fazer um trabalho muito mais a montante também. Acabou por ser a conjugação perfeita. Quase é melhor este plano C do que ia ser o plano A e o B, porque esta é mesmo uma ópera extraordinária, com uma intensidade como poucas que conheço – sentimos sempre que estamos com uma mão à volta do pescoço. E há aqui uma certa audácia porque é uma ópera para dois cantores, com um quinteto de músicos a tocar, aquilo que se diria uma ópera de câmara, e normalmente essas óperas são relegadas para salas-estúdios, black boxes, e levá-la para uma sala grande, como fazemos, pôr o quinteto no fosso como se fosse uma orquestra, dá-lhe uma monumentalidade que já tem. Vai fazer muito bem a esta ópera que é tão intensa e tão negra estar num palco grande. Fico muito contente que possa ter aqui esta patine de grande ópera. m.s.t.: Sim, mais grave. A subtração dos muitos elementos que poderíamos ter concentra a nossa atenção. Isso vê-se também aqui na cenografia: há apenas um totem, que é a máquina, à volta do qual anda tudo. A libertação do supérfluo acaba por nos levar exatamente para onde queremos. E a nível de personagens são aqueles dois que conduzem toda a narrativa com mais dois que nunca falam e é tudo o que temos. m.s.t.: Gosto muito de trabalhar no teatro, é um meio onde sinto que aprendo sempre muito e faz-me crescer enquanto músico. Sinto também que o facto de falarmos linguagens diferentes pode enriquecer muito uns e outros. Eu, 90% do tempo, estou só a olhar para a partitura, a dirigir com os braços, portanto há coisas que não vejo e os Miguéis podem vê-las, e há coisas que eu estou a ler na música e os Miguéis não sabem que lá estão. Por isso, às vezes paramos e vamos ao encontro de ideias e de significados onde cada um pode contribuir com a sua área. Isso é muito gratificante no trabalho, porque sentimos que há diferentes especialidades que estão a construir um espetáculo. E quando se junta a luz, os figurinos, os cenários, mais rico ainda se torna. Essa é a grande beleza de se juntarem diferentes disciplinas artísticas. m.p.: Exatamente, abre-se aí outro espaço. O Miguel Loureiro trabalha mais a ideia do texto e para mim é outro tipo de linguagem. Isso é que é fascinante: mesmo dentro da parte mais teatralizada, encher a cena com outro tipo de temporalidade e de imaginário. m.s.t.: O espetáculo abre com um momento de cinco ou seis minutos de dança sobre uma sonoplastia, o que fez com que ganhasse aqui muito mais do que um apêndice. Se não tivéssemos o Miguel Pereira a criar o movimento se calhar íamos diretos para a ação e para a música. Ganhámos um espaço muito interessante. m.l.: Há encenadores que trabalham com coreógrafos que fazem o desenho da peça de teatro e isso, às vezes, fica um bocadinho postiço, porque os atores têm um movimento natural, fica um pouco afetado. Aqui isso não acontece, porque este espetáculo pede mesmo três linguagens diferentes. Eu não tenho como fazer com que corpos que vão estar calados durante uma hora respirem e existam significativamente na peça. O Miguel tem esse olhar clínico, mesmo com o movimento dos dois cantores também. Este entendimento entre nós foi sendo construído ao longo das nossas colaborações e da nossa amizade. E tudo isto é também uma aprendizagem para mim. É uma felicidade ver um movimento que o Miguel inventa ou ver uma suspensão que o Martim faz que ajuda na estrutura geral do espetáculo e isso vem deste entendimento que conseguimos os três. Penso, cada vez mais, que, muito mais do que tensões, interessa esse entendimento que nos dá chão para criar um espetáculo. E numa ópera ainda mais, dada toda a complexidade. O mecanis- mo aqui é diferente e tem de ser tudo potenciado em menos tempo. O que me fascina é este sítio e este momento onde acontece o clique de existir – parece – outro país no palco. A natureza da cena. m.l.: Sim, esses elementos estão mais até a favor do teatro do que da pureza da música. m.s.t.: Isto é mais do que uma sonoplastia, é quase uma composição de música concreta, porque há esta presença da máquina, a música também é muito didascálica nesse sentido. Quando ligam a máquina, entra ali uma música muito frenética, parece que vai nas engrenagens, mas nós queremos dar a isto uma cama também com sons de maquinaria. A abertura de portas da sala coincide com o início deste som e as pessoas ouvem o ruído de uma máquina, que parece que respira e que vai libertando uns gases sob pressão e, ainda sem verem nada, já entraram neste mundo através do som. O primeiro desenho coreográfico é feito sobre isso e só depois é que entra a música. É muito interessante ter este recurso. Se calhar outro maestro seria mais purista e quereria fazer a ópera apenas com o que está escrito. A verdade é que a música poderia contar a história toda, mas acho interessante acrescentá-la com isso e há até momentos em que à música se sobrepõe esta composição que fiz com o Pedro Baptista pesquisando sons.
Isso torna-a provavelmente mais intensa ainda.
O que vos atrai neste cruzamento das vossas três áreas – teatro, dança e música – nesta ópera?
Miguel Pereira (m.p.): É a primeira vez que estou envolvido num projeto como este, uma ópera. Gosto muito de trabalhar a dança de uma perspetiva mais teatral, por isso gosto tanto de trabalhar com o Miguel Loureiro e por isso temos colaborado tanto. E juntar a isso a música permite-me olhar para a dança e para o movimento de uma perspetiva mais dramatúrgica e não só coreográfica. Isso, para mim, é também a riqueza desta experiência: perceber o que se acrescenta àquilo que a música nos dá e pensar o que aqueles atores sem texto, que são dois performers e não apenas dois bailarinos, acrescentam.
Esse trabalho de movimento acaba por dar um peso maior àquelas duas personagens, não é?
Além da parte orquestral, há uma sonoplastia criada para o espetáculo. Porquê essa opção?
É bom brincar com isso e não deixar a ópera num sítio intocável?
m.s.t.: Claro que sim. Para esbater fronteiras e para ser mesmo esta forma de arte total, que convoca aquilo que já havia no tempo do Wagner, que assim chamou à ópera, e tudo aquilo que se inventou depois: a luz elétrica, a projeção, os tules e também a sonoplastia.
m.p.: Nessa ideia de precisão, dos tempos da música e das indicações que estão no libreto, gosto daqueles momentos em que por alguma dificuldade ou porque há um adereço a mais ou por algum impedimento, temos de encontrar outras soluções. Gosto de ter essa margem e esse lado mais elástico de poder alterar qualquer coisa ali, gosto desse espaço de liberdade dentro da precisão que tem uma ópera. m.l.: Não esquecer que, dentro da ópera contemporânea, a utilização de banda magnética com orquestra é uma coisa comum. m.s.t.: Até já antiga. m.l.: Quando penso na ópera do século XX penso sempre nessa liberdade. m.s.t.: Penso que está para a ópera como o vídeo está para a cena: não o substitui, mas é um complemento. E acredito honestamente que as pessoas nem vão reparar nisso. Vão sentir que estão no cinema: sentadas numa plateia, às escuras, a olhar para um ecrã, de onde vem uma banda sonora.
A existência de vídeo, que não estava
pensada inicialmente, surgiu como?
m.s.t.: Se não tivéssemos vídeo, tínhamos de furar a cabeça do André Henriques… [risos] Para evitar isso, recorremos ao vídeo… m.l.: Por acaso, cumpre a tradição teatral. Já no teatro grego se relatavam os horrores, sem se mostrarem. No li- breto e na didascália diz que deve existir um mecanismo que está num buraco e não é visível para o público. Aqui, em vídeo, está o trabalho artístico e autoral da Beatriz Tomaz e da Armanda Claro. O que se vê são pormenores de pele nua, corpos, sangue, esgares de sofrimento… Quando a cena é mais intimista, a projeção é feita no tule, à frente. E depois, ao fundo, no ciclorama são projetadas as imagens mais realistas, como o retrato do Antigo Comandante gigante, uma espécie de Deus ex machina que ali está e que é a caução do comportamento bizarro do oficial. Acredito que o vídeo ajude no entendimento também, porque o espetáculo é no palco grande, que, ainda assim, está afunilado, e é falado em inglês. m.s.t.: A música também é muito monódica, não há um momento em que a ação pára para todos ouvirmos a beleza do canto, ao estilo de Mozart ou de Verdi. E isso ajuda a que o texto seja muito inteligível. Vê-se que Philip Glass tinha como preocupação vestir aquele texto. A prosódia bate toda certo, não há ritmos nem acentos que nos façam ler as coisas mal, percebe-se que a música é um veículo de expressão dramática. m.s.t.: Primeiro houve, de facto, o trabalho de adaptação do livro para libreto feito por Rudolph Wurlitzer, em que tem de se transformar um conto em discurso direto. Os libretos são sempre mais curtos do que o original, tem de haver uma economia de meios na escrita, sabendo já que, com música, tudo incha bastante. Depois, Philip Glass é fiel à sua estética: o minimal repetitivo. Mas, ao contrário de todas as outras óperas dele que conheço – e ele escreveu muitas óperas e são todas muito boas – aqui, como é uma música sobre opressão e estamos à volta desta máquina, é como se a música fossem as engrenagens sempre a funcionar. Portanto, sinto que quando a música não vai a lado nenhum não nos causa estranheza porque, ao olharmos para a máquina, imaginamos uma roldana e as rodas dentadas. É uma sensação de claustrofobia muito interessante. Quando a música não evolui, sentimos as paredes a encolherem à nossa volta. Esta música nunca nos dá perspetiva, tem muito pouco momentos de abertura, há ali sempre qualquer coisa de pulsação. Aqui, como maestro, tenho os comandos da máquina e é como se tivesse ali nas minhas mãos os tempos dos cantores, transformando também as personagens em peças desta engrenagem. Sendo que isto é tudo subconsciente, claro, quem ouve a música não pensa nisto. Mas é um efeito interessante. m.s.t.: Sim, aqui não há um bom nem um mau. Quanto mais vejo esta ópera e sobretudo quanto mais testemunho o brilhantismo do André que faz de oficial, mais me apaixono por aquele personagem. O meu momento preferido é uma coisa incrível, que é quando ele acabou de contar aquele plano sádico e horrível e diz “Isto é o meu plano, queres ajudar-me?”. Naquele momento, estou com ele, porque acho aquilo tudo apaixonante, a paixão que ele tem por aquilo, a saudade e a tristeza perante um mundo que avançou e que deixou para trás aquelas práticas antigas… mas é claro que, à luz da lei e do nosso bom senso, aquele homem é um facínora que tem que ser posto atrás das barras. m.p.: E no visitante há uma ambiguidade sempre presente, que ainda reforça mais isso. m.l.: Esse visitante está ali a pedido do novo comandante, que, apesar de não concordar, não anulou a máquina… Mas adoro esta música, quanto mais a ouço. Há momentos em que parece que estou a ouvir romantismo alemão, noutros reconheço esse minimal repetitivo, ainda noutros parecem aquelas experiências de início do século XX ou música antiga. E o que gosto nesta história é mesmo este universo claustrofóbico e negro, sem esperança. Porque acho que no pessimismo é que há caminho para seguir e não no otimismo e na utopia. Esta ópera é magnífica nisso, cheia de contrastes, com tudo isto a passar-se nos trópicos. m.s.t.: É o Tarrafal… m.l.: É negra, negra, tudo é negro, o verde é escuro, o verde das folhas da palmeira é atravessado pelo luar… Faz-me lembrar o colonizado e o colonizador, mas sem esta ganga super desinteressante da justiça social que há agora nos nossos palcos… não é isso, é a prova que se podem tratar estes temas com elegância artística, não é teatro documental, não é ópera documental. E isso é maravilhoso. m.l.: Tudo o que seja contra o que se pensa agora dá-me sempre um gozo especial. Sinto-me livre, sinto que o elástico pode ir ainda até aí. Sem acrescentar nada para satisfazer ninguém. Isto convence pela beleza do canto, pela mestria de quem faz esta ópera. m.s.t.: Isto é sobre a natureza humana, é sobre o que as pessoas fazem perante as situações de conflito interior. m.l.: Mas é um negro poético, lírico – e não é por ser ópera. m.s.t.: O interessante disto é que, como dizia há pouco, não há o bonzinho e o mau. Conseguimos facilmente olhar para esta situação, entender a atrocidade, a complexidade e as razões daquelas pessoas. Percebemos que tudo aquilo é horrível, mas ninguém é propriamente culpado de nada, tudo isto está humanizado e isso é muito credível e faz-nos pensar, cada um pode fazer a sua própria catarse disto: “O que faria na posição deste? E o que faria na posição do outro?” m.s.t.: Por um lado, gosto da ideia de ir direto aos momentos-chave, por outro, tenho pena que não possam ver o arco todo da ópera. Nessas sessões, vou buscar algumas secções e falar mais daquilo que pode ser uma ópera do que propriamente descortinar esta do princípio ao fim. Não vai ser a exegese de Na Colónia Penal, será mais a exegese da ópera usando Na Colónia Penal. O que também é interessante, porque a ópera tem sempre morte e declaração de amor e esta tem morte e também uma declaração de amor, só que é de um homem para uma máquina. m.l.: E aqui esses estudantes vêm falar de temas de que normalmente não falam: a morte, o sofrimento e o castigo. É uma liberdade imensa poder falar disso a miúdos de 16 e 17 anos. m.s.t.: Tenho ideia de que todas as tentativas de entrada na ópera são feitas com uma fórmula fácil, com uma cenourinha, e aqui o que me interessa é dizer: “Vão ver uma coisa extrema, o pior do que existe.” E usar isso para chamar as pessoas. Mesmo sabendo que, se depois comprarem um bilhete para irem a outra ópera, vão ver a Traviata e achar uma seca… Se calhar vão ao engano porque esta foi incrível – e isso é ótimo. Mas esta é muito mais fixe do que a Traviata, aqui entre nós… [risos] m.l.: … do que a Traviata poderá ser, mas do que a Tosca não é. m.s.t.: E não podemos esquecer que o Kafka é o ponto de referência desta ópera e penso que é muito gratificante para os leitores de Kafka, se ainda os houver, encontrarem aqui a satisfação que há na leitura de uma narrativa kafkiana, que para mim é uma satisfação profunda. Desde que estou a fazer esta ópera pus-me a fazer uma leitura furiosa de tudo o que tenho dele e é fantástico, Kafka é um mestre na narrativa do desconforto, do dúbio, das periferias frágeis. E é um alívio sair da narrativa convencional e entrar neste mundo de Black Mirror, que é um pouco o que isto é. Por isso, estou muito agradecido, porque há uma frase na ópera que, para mim, é a personificação do Kafka: “A culpa está sempre além de qualquer dúvida”. Isto ajuda-nos a explicar que muitas coisas aqui não são questionáveis. Quando começamos a ler A Metamorfose, por exemplo, e o Gregor Samsa acorda em barata, o Kafka não está interessado em explicar como é que isso aconteceu, isso está “acima da dúvida”, o que interessa agora é o que ele vai fazer enquanto barata e a narrativa vai daí para a frente. É esse desconcerto da lógica que é profundamente libertador. m.s.t.: Sim, isto torna o leitor num faquir. A pessoa vai deitar-se numa cama de picos e tem de lidar com isso. Para nós é muito interessante, seja enquanto leitores, seja enquanto artistas. Também tem de existir espaço para isto. Mas, na verdade, até os adolescentes já viram muito pior na Netflix [risos].
O que se destaca neste trabalho de composição de Philip Glass para um libreto escrito a partir de um livro de Kafka? O que acrescenta a essa escrita que já muitos leram?
Mas o sufoco sentimos. Em todas as personagens. Nem o visitante consegue deixar de estar condicionado.
Há um gozo especial em apresentar isto agora?
E esta história continua a comunicar connosco hoje.
Nas sessões para escolas, o Martim vai estar a comentar. O que tem pensado para fazer chegar esta ópera aos adolescentes?
E esse desconforto não é um lugar habitual para o leitor ou o espectador de uma ópera.
Entrevista realizada em março 2023, por Gabriela Lourenço / Teatro São Luiz