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CUCHA CARVALHEIRO

Desafiou a Sandra Faleiro a encená-la neste texto. Porquê agora estes Lindos Dias, de Beckett?

Vejo este texto como uma reflexão sobre a vida. Por redução ao absurdo, convoca-nos a refletir sobre o que andamos aqui a fazer. Para mim, nesta altura da vida, é um confronto com o envelhecimento, com o que significa viver e envelhecer. Além disso, adoro Beckett e nunca tinha feito nenhum texto dele. Pensei: é agora ou nunca.

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O que admira mais em Beckett?

Beckett é um génio, foi um dos maiores dramaturgos do século XX ou até mesmo da história do teatro. Todas as peças dele convocam uma reflexão profunda sobre a condição humana. E fá-lo escrevendo de uma maneira extremamente musical. Não é um teatro nada psicológico, confronta o ator com uma série de movimentos precisos indicados na dramaturgia. As didascálias têm tanto valor como o texto. Chegam a dizer quantos segundos tem de durar uma pausa. Uma vez falei sobre isto com o Mário Viegas, quando ele estava a fazer o Final, a partir do Fin de Partie/End Game, e ele disse-me: “Tentámos fazer diferente do que o Beckett indicava e não resulta!”.

Perante um texto destes, já tão trabalhado, o que ainda se pode acrescentar de novo?

Qualquer intérprete quer deixar a sua marca na encenação de um texto, quer diferenciar-se pela sua maneira de ser e interpretar. Acredito que isso marca sempre uma diferença qualquer, seja ela melhor ou pior. O nosso objetivo aqui foi trabalhar a farsa. Gostaríamos que o público se risse e que esse riso pontuasse a peça. Já vi espetáculos com este texto em que essa componente não estava marcada, eram espetáculos mais crepusculares, e não é isso que queremos. Gosto muito da ironia e a minha maneira de ser e de trabalhar poderá contribuir para que isso se sublinhe. Tanto eu como a Sandra já trabalhámos o clown e gostamos muito desse registo, por isso, também quisemos pegar nisso. Até porque acredito numa coisa muito simples que parece uma verdade de La Palisse: o homem é o único animal que ri e ri porque tem consciência da morte.

Revê-se

nesta protagonista?

Sim, a Winnie é um personagem que, apesar das circunstâncias limites em que está – é aí que Beckett gosta sempre de colocar os seus personagens, é uma otimista. Por muito que também se ironize em relação ao otimismo na peça. A Winnie está sempre a querer dar a volta à fatalidade e eu sou um bocadinho assim.

Onde é que ela vai buscar essa alegria? Onde é que a Cucha vai buscar essa alegria?

C.C: Lá está: vai-se buscar à inevitabilidade da morte. A Winnie vai buscá-la aí e eu, na minha vida, todos os dias, também tento dar sempre a volta perante as coisas mais difíceis que acontecem e encontrar um lado positivo. Este texto faz-nos pensar em todas as coisas que nos puxam para baixo e às quais temos de dar a volta se não queremos morrer mais cedo. A Winnie tem muito de criança, uma certa candura em relação às coisas, a descobrir tudo aqui e agora. Está sempre a dizer: “É isso que acho maravilhoso…”. Esse deslumbramento com as pequenas coisas que temos ao nosso alcance é maravilhoso. Embora o Beckett ironize… E isto, na minha cabeça, faz uma ligação a outro texto que já trabalhei, Cândido, ou o Otimismo, de Voltaire. É óbvio que também se ironiza sobre o otimismo aí, acredito que Beckett, homem culto, também lá tenha ido beber.

Tem feito boas descobertas no texto agora que começou a interpretá-lo?

C.C: Beckett é de uma cultura incrível, embora não seja uma cultura exibicionista. Nas suas peças vamos descobrindo que existem referências múltiplas a Dante, a Shakespeare, a Victor Hugo… Há vários estudiosos da sua obra e através deles descobri uma série de coisas menos evidentes.

No outro dia, por acaso, descobri mais uma: estava a repetir o texto em voz alta e a Cristina Carvalhal [produtora deste espetáculo, atriz e encenadora] estava a ouvir e reparou: “Eu já disse isso!”. E descobrimos que era uma referência às Ondas, de Virginia Woolf. Quando um texto é muito bom, todos os dias há uma ou várias descobertas, e isso é maravilhoso.

Uma das indicações dadas por Beckett nesta peça é que o cenário tenha um telão com um céu e uma paisagem vazios, mas não com a imagem de um teatro em ruínas como acontece aqui.

C.C: Esta é uma peça que reflete também sobre o teatro, existem muitas referências a isso no texto, embora subtis. Resolvemos levar isso um bocadinho mais longe e pensamos que faz todo o sentido. Tem a paisagem que ele exige, só que quisemos sublinhar o facto de estarmos num teatro. Pareceu-nos que podíamos fazer essa leitura, porque, na verdade, a Winnie está num teatro. A certa altura, quando a sombrinha se incendeia, ela diz: “Amanhã a sombrinha vai estar aqui, outra vez, ao meu lado, intacta, para me ajudar a passar o dia.” Isto é a personagem/ atriz a dizer que “não aconteceu nada, amanhã repetimos…” Por outro lado, quisemos falar sobre o que se está a passar atualmente no teatro.

Está em ruínas?

C.C: Claro que o teatro nunca vai acabar… acho… porque já se fala em crise do teatro desde que o teatro começou... mas gostávamos de falar um bocadinho do estado em que estamos todos aqui e agora em Portugal e também no resto da Europa. Daí o cenário ter essa brincadeira… O teatro, tal como o conheci, está muito diferente. As carreiras das peças duram muito pouco, as companhias estão a desaparecer, já existem poucas que funcionem como uma família com um projeto próprio e peças em repertório que vai gerindo. Esta voragem dos mercados e da preocupação com as audiências e com o dinheiro mais do que com a cultura preocupam-nos.

E o que fazer? Espicaçar

o espectador para sair do seu monte de areia e se mexer?

C.C: Nunca gosto de passar mensagens, porque nem sequer sei se essa é a mensagem do espetáculo, acho que cada um vai interpretar esta metáfora como lhe aprouver. Em Beckett é tudo muito concreto, quem quiser filosofar que filosofe. A Winnie diz: “Estamos sempre a adiar abrir a sombrinha. E a campainha toca para dormir e não se abriu um bocadinho que seja” ou “Não sei se já são horas de cantar a minha canção. Cantar cedo demais é perigoso, mas, atenção, não se pode deixar passar a hora, porque se não a campainha toca e ainda não se cantou”. Essa noção de que a campainha vai tocar um dia e o que se fez? O que se deixa aqui? E será isso importante? Não sei… E assim voltamos ao início da nossa conversa.

Entrevista realizada em março de 2018, antes da estreia em abril de Lindos Dias! (Happy Days, de Samuel Beckett), por Gabriela Lourenço/Teatro São Luiz

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