Teatro Performativo: Manifestações do Presente

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Dezembro de 2021

Manifestações do presente

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Nota de entrada

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Autores | difusores

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Teatro Performativo

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Texto e Voz no Nevoeiro do Performativo

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O Tempo e o Espaço

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O Corpo no Teatro Pós-dramático ou o Corpo em Performance

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O Uso das Mídias no Teatro Pós-dramático

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/ sí nu dmi ác rei o


Manifestações do presente

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Nota de entrada Esta revista é resultado de estudo de cinco artistas que buscaram no conhecimento acadêmico, e fora dele, ideias para pensar o teatro performativo. Não se trata de um manual de como fazer um teatro performativo e nem muito menos tem a intenção de definir algo, mas aqui se pretende debater ideias que cercam esta linguagem teatral. Cada pesquisador e pesquisadora teve liberdade para escrever seu texto da forma que quisesse, o que resultou em diferentes formas de falar em cada sessão da revista, o que causa desvio do molde acadêmico. Os textos são breves mas muito ricos em informações para quem pretende começar a estudar o teatro por um viés performativo, mas mesmo aqueles ou aquelas que já tem um conhecimento na área encontrará novas informações referente ao assunto. Boa leitura

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/ Notas de entrada


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autores / digressores Eduarda Fernandes (22) é atriz, formada pelo Centro de Formação Artística e Tecnológica (CEFART) - Palácio das Artes (2018) e pela Escola de Artes Capitão Carambola (2014). Atualmente, é cofundadoraintegrante do grupo Quartatela, e transita entre práticas do cinema, teatro, dança e educação. Nesta última categoria, coordena e compõe o corpo docente da Iniciativa Caminante – projeto de arte-educação voltado para a educação básica.

Mateus Viana (22) é estudante da graduação em Teatro da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Atualmente orienta grupo de pesquisa em dramaturgia e performance no teatro, e na mesma linha produz monografia sobre Dramaturgia no Teatro Performativo Brasileiro.

Julia Campos quando era criança, sonhava em ser artista de teatro hoje, atua e produz. Ela tenta estar com a terapia em dia e faz análise quase toda semana. É contra um tanto de coisa, mas principalmente é contra todo tipo de prisão e acredita na sensibilidade como estratégia de luta. Como boa neta de Dona Maria, reconhece o poder da educação e daqui a pouco se forma psicóloga social.Tem atendido umas crianças e dado aula de teatro para crianças autistas. Inventou de pesquisar e fica tentando entender a relação de teatro e loucura

Dê Jota (22) é ator formado pelas escolas de teatro da ZAP18 (2013) e Teatro Universitário da UFMG (2017) onde formou-se com as peças “Escola de Opressão” e “Os Negros”, respectivamente. Exerceu a função de estagiário junto à Fundação Municipal de Cultura da Prefeitura Municipal de Belo Horizonte – Arena da Cultura. E é ator convidado do Grupo Maria Cutia de Teatro no espetáculo "Auto da Compadecida" com concepção e direção de Gabriel Villela.

Matheus Cunha (21) é licenciando em Teatro pela Universidade Federal de Minas Gerais. Foi membro do Grupo Primeiro Ato (Patos de Minas, MG) entre os anos de 2017 e 2018, onde desempenhou as funções de atuação, escrita dramatúrgica e composição musical. É pesquisador vinculado à Faculdade de Letras (UFMG), lá explorando as construções dramatúrgicas do Teatro Contemporâneo. É membro do Estúdio Fisções (Escola de Belas Artes – UFMG), debruçando-se sobre atuação nas vias da ação-física stanislavskiana e da teoria do alvo de Declan Donnellan.

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Caderno de Leitura N. 1

Caderno de Leitura N. 1

Teatro Performativo

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Mateus Viana

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Teatro Performativo

Caderno de Leitura N. 1

Este texto terá um caráter breve. Quando eu citar A Poética, estarei me referindo ao livro que Aristóteles escreveu sobre um apanhado de ideias que poderiam ser usadas para criar, segundo ele, a mais bela de todas as tragédias. Porém, também uso o termo “poética” muitas vezes com significado similar à “linguagem”. A partir do contexto, você será capaz de identificar os significados. Drama e Teatro por muito tempo significaram a mesma coisa. No passado, aprender uma poética, ou linguagem artística, era considerado algo meramente técnico. A Poética de Aristóteles é, portanto, o ensinamento da estrutura trágica. Contudo, é importante dizer que a noção de poética como estrutura foi compartilhada pelo Renascimento até ser questionado pelos filósofos no final do século XVIII, para que se entendesse poética também como estrutura filosófica: Pois nas últimas décadas do século XVIII e nas primeiras do XIX constituiu-se, com grande diversidade, um outro gênero da poética, que não poderá ser abolido. Trata-se da poética filosófica, que não busca regras a serem empregadas na práxis, nem diferenças a serem consideradas na escrita, mas um conhecimento que se basta a si mesmo. Assim, a poética constitui uma parte da estética geral, pensada como filosofia da arte. Na época de Goethe, ela se torna cada vez mais um domínio dos filósofos. (Szondi, 2004, p.16) Então, até o período Iluminista, “poética” era forma preestabelecida, atemporal; ao seguir tais regras, um escritor chegaria a um produto com maior valor artístico ao fim do processo de criação. Essa maneira de pensar foi utilizada nas artes que utilizavam o conceito de mímese da realidade, que é a arte representando a vida. Para que a vida fosse representada, era preciso a verossimilhança, e assim o público se identificaria com o ocorrido na obra.

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8 Após o Renascimento, quem não seguia a chamada Lei das Três Unidades estava fadado ao fracasso. Porém, a lei das três unidades não foi criada por Aristóteles, mas pela burguesia francesa. As ideias da tradução renascentista de A Poética, assimiladas com o Classicismo Francês, deram forma ao Drama: uma tragédia com traços de ética dos burgueses. O drama é então criado para que os burgueses pudessem se ver em cena e, consequentemente, também criassem uma cultura que fosse moldada pelo que era representado – a representação sendo, naquele tempo, uma duplicação do real. Nesse período, a ideia de peça bem feita seguia apenas as convenções do chamado “gênero alto”, que são referentes à tragédia; já as ideias de “gênero baixo”, que são referentes à comédia, não poderiam ser aplicadas ao drama burguês. Essa lei fez com que Shakespeare, por exemplo, não fosse considerado um grande poeta, já que o dramaturgo misturou em suas obras questões referentes à tragédia, à comédia e também ao lirismo. Acontece que no fim do século XIX começa a surgir a “Crise do Drama”, que foi nomeada por Peter Szondi, em Teoria do Drama Moderno, como o momento em que a estrutura do drama clássico começa a ser questionada. Szondi observa que houve uma ruptura do teatro com o drama clássico no fim do século XIX, e que no século XX deu abertura para que houvesse outras formas de se pensar o teatro. Surgem, então, diversas linguagens – como o Teatro Épico Brechtiano, o Teatro do Absurdo, o Teatro PósDramático, o Teatro Performativo e outros. No fim deste texto, eu deixarei referências bibliográficas para que você possa pesquisar sobre essas linguagens, como A Poética de Aristóteles, o estudo de Crise do Drama de Peter Szondi e outras. Este texto fará um recorte, e falará da relação do teatro com a performance.

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O campo do teatro no século XX foi marcado por uma grande fluidez de outras artes para dentro das artes cênicas. O cinema, as artes plásticas, a performance e outras artes foram fundamentais para a ideia de teatro contemporâneo que vemos hoje. A presença da Arte da Performance dentro do teatro mudou a forma de se pensar a presença do ator ou atriz no palco, vistos também como performers. Então, o ator ou atriz, em um espetáculo performativo, busca não representar uma ação, mas fazer uma ação através da experiência com o tempo presente. O performer da cena buscará uma relação do seu corpo conectada ao tempo e ao espaço, e não mais será movido pelas emoções através das intersubjetividades dos personagens em cena. O teatro deixa de ser baseado em “Tempo, Espaço e Ação”, e passa a ser “Tempo, Espaço e Corpo”. Já que o corpo não é movido pelas ações como no Drama, ele pode ser considerado um corpo solto no tempo e no espaço, que promove uma experiência do tempo parecida ao funcionamento do inconsciente ou dos sonhos, podendo caminhar temporalmente e espacialmente no passado, no presente e no futuro, exatamente como funciona a mente humana. Porém, a diferença é que o corpo está presente mostrando o sonho ou o inconsciente, já que o espetáculo é considerado agora uma experiência compartilhada do presente que visa abrir portas perceptivas para outros tempos e lugares. Isto significa, também, que o cenário em um espetáculo ligado a este campo não precisa representar a realidade: ele pode ser simplesmente um fundo totalmente branco, ou mesmo um palco em que não há nada, dando ao público espaço de pensamento para preencher o vazio – já que esse espetáculo não tem a intenção de mostrar aquilo que já é conhecido pelos espectadores.

ESPETÁCULO OUTROS DO GRUPO GALPÃO EM PARCERIA COM O DRAMATURGO MARCIO ABREU. FOTO DE NEREU JR

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10 “O que será, no fundo, essa história de encontrar um reino milenar, um éden, um outro mundo?” Julio Cortázar – Jogo da Amarelinha. Há no teatro contemporâneo a materialização de um novo mundo através da relação com o presente, buscando abrir novas percepções para o real. Com sua falta de linearidade, essa estrutura aberta possibilita a criação de novas maneiras de pensar o mundo dentro da cena – ou mesmo o mundo que é criado através da cena. O espectador toma o lugar de vislumbrar um novo mundo. A imediatidade de toda uma experiência compartilhada por artistas e público se encontra no centro da “arte performática”. [...] O teatro experimental se encurta sob a influência de ritmos de percepção mais acelerados: não mais se orientando pelo desdobramento psicológico das ações e dos personagens, ele pode se contentar com apresentações de uma hora ou menos. Do ponto de vista das Artes Plásticas, a arte performática se afirma como expansão da representação da realidade em imagem ou objeto por meio da dimensão temporal. Duração, instantaneidade, simultaneidade e irrepetibilidade, se tornam experiências temporais em uma arte que não mais se limita a apresentar o resultado final de sua criação secreta, mas passa a valorizar o espaço-tempo da constituição de imagens como um procedimento “teatral”. A tarefa do espectador deixa de ser a reconstituição mental, a recriação e a paciente reprodução da imagem fixada; ele deve agora mobilizar sua própria capacidade de reação e vivência a fim de realizar a participação no processo que lhe é oferecida. Disse o pesquisador HansThies Lehmann em O Teatro Pós-Dramático.

Se o teatro clássico tinha a necessidade de contar uma história com começo, meio e fim, aqui não há esta necessidade. A peça pode ser erguida a partir de diversos eixos condutores. Um desses eixos podem ser as imagens, pois elas morrem no tempo e espaço e não deixam rastro do seu passado ou futuro, elas estarão sempre presentes. Com isto, este teatro torna-se um fenômeno de “nascimento e morte” constante. Não se tem a necessidade de contar uma história, mas de partilhar o tempo presente. Neste teatro, “forma” e “conteúdo” fazem parte de uma mesma unidade. Quando acontece de serem apresentadas peças sem sentido pré-definido, o público é convidado a uma viagem pelo próprio inconsciente, buscando o sentido dentro de si. Aos artistas constituintes da obra, cabe o papel de criar uma matéria no espaço-tempo através de imagens e dos signos criados através delas. O contato do público com a obra acontece de forma energético-espacial. A construção dramatúrgica, por sua vez, instaura realidades outras, desconhecida da lógica comum da sociedade, muitas vezes. Então, o que poderia ser a criação de realidade compartilhada com o público?

ESPETÁCULO FAUNA DO GRUPO QUATROLOSCINCO – TEATRO DO COMUM. FOTO GUTO MUNIZ

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11 A realidade ou o real não pode ser apenas o que está escrito no jornal, disse Marcio Abreu em uma aula realizada durante o confinamento; Tudo é real, tudo existe. Espetáculos que exploram o viés performativo constroem novas realidades através de ideias que promovem o encontro do público com os performers. Esse teatro sempre se reinventa, então não é possível nomear o que está sendo feito pelos teatros do mundo. É uma criação teatral sem regras, que surge a partir do olhar de quem o cria. E, como dito no início deste texto, o século XX foi um período em que diversos campos artísticos e tecnológicos invadiram e se acomodaram no teatro. Isto fez com que novas tecnologias e linguagens fossem sempre levadas e testadas em cena, explorando códigos da sociedade que limitam sujeitos e não permitem-nos serem inteiros de si. Essas novas linguagens geram um teatro que mostra em cena aquilo que poderia ser um caminho para se pensar a(s) humanidade(s). Podemos observar que o que está no centro do teatro performativo é a imediatidade de toda uma experiência compartilhada por artistas e público. Esse teatro, então, tem uma aproximação muito forte com a Arte da Performance, arte da qual falarei brevemente neste mesmo texto. O acontecimento teatral performativo se aproxima dos gestos de auto-representação, isto é, o ator performando a si mesmo, e não representando outrem. Usar “auto-representação” soa paradoxal, já que durante o texto expliquei que não se trata de representação; mas, aqui, uso este termo pois ele serve de imagem para aqueles que têm dúvida sobre o que é que este ator/performer apresenta em cena. Um dos caminhos, então, é pensar o ator performando a si mesmo. Na arte da performance, o artista propõe um acontecimento presente ao público. Este acontecimento tende a ser evidente aos que assistem. Vou citar a performance de Marina Abramovic chamada RHYTHM 0 (RITMO 0). Nesta obra, o corpo da artista foi o objeto. A artista diz:

“Meu plano era ir à galeria e simplesmente ficar ali, de calça preta e camiseta preta, atrás de uma mesa da qual haveria 72 objetos. Um martelo. Um serrote. Uma pena. Um garfo. Um vidro de perfume. Um chapéu-coco. Um machado. Uma rosa. Um sino. Umas tesouras. Umas agulhas. Uma caneta. Um pote de mel. Um osso de cordeiro. Uma faca de trinchar. Um espelho. Um jornal. Um xale. Uns alfinetes. Um batom. Um pote de açúcar. Uma câmera Polaroid. Vários outros objetos. E uma pistola, com uma bala ao lado dela.” Abramovic em sua autobiografia “Pelas Paredes”. RYTHM 0 [RITMO 0] Instruções Há 72 objetos sobre a mesa que podem ser usados em mim, como quiserem. Performance Eu sou o objeto Durante esse período, assumo plena responsabilidade. Duração: 6 horas (20h00 - 02h00) 1974 Stúdio Morra, Nápoles

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12 Nesta performance, se o público quisesse colocar a bala no revólver e matar a performer, Abramovic estava disposta a arcar com as consequências. Em RYTHM 0, o público foi possuído por uma energia antiética, levando a artista a sair do instante performativo sem roupas e com vários cortes pelo corpo. Durante a performance, um homem colocou a bala na arma e mirou diretamente na artista; o gatilho, porém, não foi efetuado. Neste dia, a artista percebeu que o público pode matar. O que aconteceu ali pode ser nomeado de performance: uma obra criada por artistas e público. Porém, a partir disso, geram-se certas questões, como a de que se deve haver um limite entre os espaços. O teatro performativo propõe também uma experiência do real, ainda que com traços teatrais. Há uma concepção de dramaturgia que pensa que ela, muitas vezes, pode ser criada em gabinete – o dramaturgo sozinho em seu espaço. Muito ocorre nessas criações contemporâneas, contudo, uma criação feita em laboratório, com todos os artistas juntos pensando a relação com o real, mirando uma dramaturgia que explore a presença do performer. Quando eu digo dramaturgia, estou me referindo a tudo que constitui a cena. Se te ajudar, posso dizer palavra-texto, palavra-corpo, palavra-luz, palavra-cenário, palavra-música e outras. A dramaturgia está intrínseca a tudo que constitui a cena e cabe aos artistas contemporâneos, que pretendem se aprofundar nesta linguagem, estar sempre atentos e atentas à vida de forma ativa, buscando uma relação com o tempo presente. Parar e observar o presente pode ser importante para que se ache rupturas do real, ou mesmo para que se tome consciência do que é imposto como real. E, claro, como também é importante estar atento ou atenta ao que acontece à sua volta, é preciso sempre estar lendo o espaço, coisas e livros para que a investigação vá ganhando personalidades múltiplas. Portanto, não existe uma cartilha de métodos; o caminho para criar é estar sempre experimentando suas ideias, e colocando-as em prática fará com que novos caminhos criativos surjam.

Referências bibliográficas e indicações: ANDRADE, Eduardo. O espaço encena: teatralidade e performatividade na cenografia contemporânea. Doutorado, Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro. p. 281. Rio de Janeiro. 2019 ARISTÓTELES. Poética. Tradução e comentário de Eudoro de Souza. São Paulo: Ars Poética, 1993. FÉRAL, Josette. Por uma poética da performatividade: o teatro performativo. In: Sala Preta – Revista de Artes Cênicas da USP, São Paulo, v. 8, 2008 LEHMANN, Hans-Thies. Teatro pós-dramático. Trad. Pedro Süssekind. São Paulo: Cosac & Naify, 2007. PAIS, Ana. O discurso da cumplicidade: dramaturgias contemporâneas. Lisboa: Colibri, 2004 SARRAZAC, Jean-Pierre (Org.). Léxico do drama moderno e contemporâneo. Tradução de André Telles. São Paulo: CosacNaify, 2012. SZONDI, Peter. Teoria do drama moderno [1880 – 1950]. Trad. Luiz Sérgio Repa. São Paulo: Cosac & Naify , 2001.

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Caderno de Leitura N. 2

Texto e voz no

nevoeiro do performativo Matheus Cunha

/Texto e Voz


14 “Teatro” é o nome que se convencionou dar a uma manifestação tão antiga quanto a própria raiz humana. O desejo pela compreensão da realidade crua do mundo sempre foi traço nosso; através da linguagem, das simbolizações e das representações, nós responde- mos ao que sobre nós se apresenta. O mundo empírico rodeia a humanidade em seu estado bruto, lugar a-significante e asignificado aguardando decodificação. O ser humano, por in- termédio da linguagem, procura estabelecer sentidos e explicações para a fenomenalidade observável que o devora. A linguagem, enquanto forja do real – forja enquanto “criação” e “trama” e, ao mesmo tempo, enquanto “imitação” e “fingimento” – nomeia, descreve e in- terpreta o universo ao redor. O Teatro surge daí. Surge como rito, como representação coletiva de um mito com- partilhado, como reunião de pessoas num estado de suspensão e transe, como simbolização e procura do sagrado. Através do ritual, um povo pode atualizar sua narrativa de fé, corpo- rificar o imponderável, dar nome ao divino e, enfim, viajar para além do “humano”. A história do Teatro, desde os primeiros passos do Homo sapiens (seja na Grécia, no Egito, no Ex- tremo Oriente, no coração das Américas), é a história de uma cerimônia compartilhada em que se cultiva a presença em busca de uma conexão extra-cotidiana. Essas festividades primevas, muitas vezes cheias de embriaguez e inconsciência, foram a origem do que se convencionaria chamar “Teatro” dali a milênios.

A partir desse longo começo, o ser humano iria conhecer novas formas de pôr em seu corpo a realidade simbolizada; nalgum anfiteatro do Ático, uma resposta dada ao Corifeu faria Téspis se tornar o “primeiro ator”; por lá também surgiriam a tragédia e a comédia, a partir de um tipo específico de poesia – e Aristóteles escreveria sobre isso tudo; as ruas das cidades medievais seriam tomadas por cortejos sagrados – e por festivais profanos!; as improvisações nas praças ganhariam grande apelo popular; longos espetáculos narrativos coordenados pela Igreja tomariam forma; lá em Portugal, Gil Vicente escreveria os primeiros textos dramatúrgicos em português; no Brasil, os jesuítas tentariam catequizar os nativos com seus espetáculos pedagógicos; dramaturgos seriam contratados pelas cortes reais; o palco italiano surgiria no século XVI como uma caixa cênica cheia de geringonças e labirin- tos. Agora, é importante dizer que este último Teatro citado, este dos Anfiteatros gregos e dos tablados do século XVI, já não era mais igual àquele primeiro. No caminho por códigos, linguagens e convenções próprias, surge uma Arte Cênica desvinculada dos objetivos sa- cros daqueles primeiros anos – ainda que os temas da fé continuem a aparecer, bem como alguns de seus legados formais. O Teatro foi ganhando aporte institucional, estruturas in- ternas próprias e, por fim, o prenome de “arte”. No século IV a.C., por exemplo, Aristóteles já havia registrado as principais características da escrita, da atuação e da apresentação teatral – já entendendo, portanto, o Teatro como arte e linguagem. Assim, a função principal de rito logo se transformou, através dos tempos, num momento ficcional dramatizado – sim, ainda coletivo; sim, ainda cheio de procedimentos próprios; sim, ainda em contato com uma dimensão extracotidiana e, de certa forma, imponderável.

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Há um grande momento de ruptura, contudo, quando os tijolos da Bastilha atingem o chão de Paris em 1789. A série de Revoluções Burguesas, testemunhadas a partir de então, modificariam a forma como o Teatro era percebido. A ascensão da burguesia en- quanto classe dominante nos séculos XVII e XVIII significou o declínio da lógica aristocrática de produção artística: era necessário que os novos líderes se espelhassem na arte produ- zida, assim como era imprescindível que essa arte servisse como reforço e firmamento ideológico para a lógica da classe burguesa. O Iluminismo, buscando retomar as concepções estéticas da Antiguidade Clássica, fez uso daqueles pioneiros trabalhos de Aristóteles para impor um processo de enrijeci- mento formal do Teatro em sua nova sociedade. As observações de Aristóteles, cuja pre- tensão era apenas descritiva, passaram a ser enxergadas como código normativo para a elaboração de bons espetáculos teatrais. Por mais que seja importante observar que tal forma burguesa de enxergar o Teatro trouxesse imperativos formais para a arte como um todo – desde a encenação até a atuação –, o principal foco dessa “normatividade” era o texto dramatúrgico.

Cabe aqui outra observação importante para que sigamos em frente: a essa altura, a dramaturgia escrita era compreendida como alicerce principal para o acontecimento cênico. Pelo menos naquele Teatro mais institucional, presentificado em edifícios próprios, o texto escrito era o ponto de partida para todo o resto. Era função do dramaturgo propor todo o suporte simbólico para aquilo que se realizaria sobre o palco, determinando tal aconteci- mento cênico em sua totalidade cognitiva e narrativa. O texto indicava tempo, espaço, características físicas do ambiente e, principalmente, as personagens a serem materializadas enquanto papéis. O papel central do texto nas dinâmicas do Teatro fazia com que, objetiva- mente, os ditames estéticos da burguesia atingissem todo o restante da cena – em suas dimensões éticas, estéticas e políticas. Ainda que as formas dramatúrgicas utilizadas pela burguesia nos séculos XVII e XVIII tivessem tido origem na Renascença (junto com a origem do palco italiano), foi apenas com as Revoluções Burguesas que esse modelo de dramaturgia passou a se tornar forma in- questionável. A essa dramaturgia burguesa, fruto de uma nova perspectiva sobre as pontu- ações de Aristóteles, dá-se o nome de “dramaturgia aristotélica” – é a ela que os termos “drama” e “drama burguês” se referem.

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16 As leis básicas do drama são fiéis aos registros do pensador grego, pregando prin- cipalmente: observância às unidades de tempo, espaço e ação; causalidade, ou seja, à es- trutura direta de causa e efeito; necessidade de um clímax que conduz a uma resolução com efeito catártico alicerçado na identificação dos espectadores com as figuras em cena. Esses eram os critérios básicos para que um texto dramatúrgico fosse legitimado; dessa forma, escritos que não seguissem tal estrutura-base não eram apenas tidos como “textos ruins”, mas eram absolutamente invalidados em sua “deficiência formal”. O drama burguês partia do princípio de que é possível uma plena separação entre os gêneros básicos da literatura: os famosos épico, lírico e dramático. Havia a ativa procura por uma pureza formal que, em sua perfeição, não admitiria a mistura entre os traços esti- lísticos de cada gênero. Trata-se aqui de uma busca estética pela eliminação de todo traço não-dramático no Teatro, ainda que isso significasse uma limitação dos conteúdos suportados por essa dramaturgia. Há nesse drama um terreno fértil para temas familiares, privados e psicológicos calcados no diálogo intersubjetivo; contudo, não havia, espaço ou justificativa para prólogos, epílogos, coros, narrações, intervenções musicais, comunicações entre palco e plateia ou referências extra-teatrais. Em miúdos, o Teatro do drama é um Teatro de duelos verbais orientados por uma fábula nítida e onipresente, sintetizados em forma de significado a ser comunicado por meio da interpretação de papéis. O drama é fechado, absoluto, movido pela ação e pelo diálogo; caberia aos atores a função de representação verossímil e fidedigna das dinâmicas sociais; cabe ao teatro ser uma espécie de janela imperturbável para exposição do conflito humano.

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CRISTIANO – Ei! O que está fazendo aí? GATUNO – Procurava uma luva... CRISTIANO – (agarrando-o) Eu acabo com você, seu bandido! GATUNO – Não, por favor, solte-me! Em troca, posso contar-lhe uma coisa importante. CRISTIANO – (continuando a segurá-lo) Não quero saber! GATUNO – É sobre seu amigo Lignière... CRISTIANO – O que tem ele? GATUNO – Corre sério perigo! EDMOND ROSTAND, “CYRANO DE BÉRGERAC” – TRAD. ISABEL DE LORENZO (P. 17-18) Essas informações ditas acima tem grande relevância neste texto, já que aqui se pretende falar sobre um Teatro “de oposição” ao drama tradicional. Mais especificamente, este texto fala sobre as experiências em dramaturgia que buscaram romper com certos parâmetros dramáticos – se não com todos, pelo menos com alguns deles. Está aqui pre- sente também a vontade de comunicar “a hora e a vez” da palavra falada num Teatro que busca superar o pesado legado do drama. Para isso, vai aparecer em breve uma rápida linha do tempo para o texto dramatúrgico, narrada com a intenção de deixar menos turva uma história nada linear. Depois disso, aparecerá um quadro-geral sobre esse movimento de superação do drama, bem como as perspectivas particularidades dele quanto às noções de “texto” e “voz”. Não sendo necessários mais preâmbulos: comecemos. Peço que estejam aqui comigo.

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18 Primeira consideração a ser feita: o drama, por maior que fosse seu valor institucio- nal, não era uma unanimidade. Os valores de uma sociedade burguesa centrada nos con- flitos do homem e da família parecem se encaixar muito bem na grande caixa cênica ilumi- nada; entretanto, conteúdos outros para além do “núcleo familiar” eram passíveis de mani- festação – ainda que sem legitimidade ou chancela dos pensadores da arte. O Teatro medi- eval, por exemplo, apresentava uma estrutura muito diferente daquela que seria imposta pelo drama séculos depois: os “Mistérios” da Idade Média eram espetáculos litúrgicos que narravam trechos da vida de uma figura importante para a cristandade de uma forma abso- lutamente anti-dramática, repleta de narrações, sem unidade de tempo ou espaço e pertur- bada por elementos extra-teatrais. Nesses espetáculos, a relação entre as cenas não era de causalidade – como no drama burguês –, mas de contiguidade, o que garantia relativa au- tonomia a cada uma delas. Apresentados em vias públicas, os Mistérios possuíam uma estrutura formal que não era absoluta como o drama, nem permitia a imersão total do es- pectador naquele mundo narrado. Os teatros profanos na Idade Média também não apresentavam nenhuma estrutura formal próxima ao drama. A Commedia Dell’Arte, que surge pela Europa já no fim do medi- evo, traz em seu formato um roteiro de improviso absolutamente aberto e incapaz de for- matações absolutas. Na Inglaterra Elisabetana, Shakespeare (se é que ele existiu!) escrevia tragédias históricas nas quais o gênero épico se “intrometia” por dentro da estabilidade dramática – para completo espanto dos futuros teóricos do drama (a ponto de estes consi- derarem o Bardo um “bárbaro desviante”, um “erro de percurso”). Mesmo durante a época de maior força do drama (ou seja, durante a era das Revo- luções Burguesas), alguns experimentos dramatúrgicos menos fechados foram praticados. Bom exemplo disso é a estranha peça “Woyzeck” do alemão Georg Büchner, escrita em 1837. Nessa dramaturgia, o uso do princípio de contiguidade e o desrespeito às unidades dramáticas foram tão profundamente chocantes que até hoje se pensa que o texto é, na verdade, um trabalho inacabado – tamanho seu desvio em relação à formapadrão do drama fechado.

A desobediência ao drama burguês, entretanto, ganha outras proporções na transi- ção do século XIX para o século XX. Nesse meio tempo, alguns experimentos dramatúrgicos passaram a causar rachaduras no tecido dramático rígido, trazendo para o texto conteúdos que foram aos poucos fraturando as formas de um “drama absoluto” – instaurando um estado de crise nos textos de Teatro. Escritores como Anton Tchékhov & a ausência de ação; August Strindberg & o abalo das unidades dramáticas e Maurice Maeterlinck & seu Teatro simbolista não-absoluto juntaram-se numa espécie de esforço coletivo para testar os limites do drama. A fina película da perfeição dramática era, então, rasgada e exposta. Posteriores ex- perimentos do século XX, como o Teatro Épico-Dialético de Bertolt Brecht e os complexos experimentos rotulados sob o título de “Teatro do Absurdo” deformaram ainda mais um drama que, a essa altura, já estava descaracterizado. Neste momento, podemos perguntar: “O que fica depois disso?”, “O que sobra?”; ou ainda: “Como fica o drama depois de ser deformado pelos experimentos do último século?”. Há várias respostas para essas pergun- tas – mas vamos guardar conclusões por enquanto, porque a coisa fica ainda mais embolada daqui para frente. Eu tô te explicando Pra te confundir Eu tô te confundindo Pra te esclarecer' Tô iluminado Pra poder cegar TOM ZÉ, “TÔ”

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19 Antes de tudo, é preciso dizer que o último comentário de três parágrafos que eu chamei de “Primeira consideração a ser feita” tentou mostrar que o drama, apesar de sua força e diligência, nunca impediu que fossem criadas dramaturgias “desviantes”, “bárbaras” e “abertas”. Os princípios formais impostos pelo drama e pelas chamadas “dramaturgias fechadas” foram desafiados ao longo de toda a história do Teatro no Ocidente. A escolha da palavra “Ocidente” ali em cima é proposital: os diversos Teatros que o Oriente testemunhou em sua história nunca foram adeptos às ideias do drama fechado. Indo da Ópera de Pequim, passando pelo Teatro Balinês, velejando sobre o Kabuki e desaguando no Nô, as formas orientais da arte cênica não faziam (nem fazem!) uso das noções dramá- ticas de “fábula”, de “conflito”, de “personagem” ou mesmo de “ação”. A propósito, não é coincidência que uma das grandes fontes de inspiração para o Teatro Épico brechtiano foi, justamente, a perspectiva oriental frente àquilo que nomeamos “Teatro”. Há outros Teatros possíveis e há outras respostas para essa pulsão por ficção tão naturalmente humana. Termina aqui a parte que tenta esboçar uma linha do tempo para o texto dramatúrgico. Daqui em diante, o assunto desta nossa conversa será outra tentativa, embora de outra natureza: tentar falar sobre aquilo que acontece com o Teatro a partir das décadas de 1960 e 1970.

Esse é o ponto fulcral do nosso trabalho. Gosto da palavra “fulcral” porque parece transmitir um sentimento de gravidade e urgência muito exagerado – que eu acho adequado para essa nossa conversa. Os experimentos no campo do Teatro da metade do século XX até aqui merecem atenção porque demonstram uma radicalização estética e ética. Tudo parece refletir um Teatro distorcido, retalhado, vazio demais ou demasiado repleto, muito abstrato ou apenas concreto atrás de concreto, ausente de personagens e de histórias e de sentidos. De fato, as formas contemporâneas da arte teatral parecem, em suma, uma grande mancha poluída sem nome. Essas estranhas formas recentes foram alvo de muitas teoriza- ções e estudos ao longo dos últimos 50 anos, acendendo e apagando disputas no mundo do pensamento artístico. Não cabe aqui falar sobre toda a rinha de galo existente no meio dessas teorizações, mas é importante dizer que existem duas correntes mais importantes para explicar esses fenômenos contemporâneos. Antes de falarmos mais sobre essa disputa conceitual, vamos trazer aos holofotes algumas características desse Teatro tão controverso – seja nas discussões acadêmicas, seja nas plateias do mundo todo. Primeira coisa imprescindível: a partir de agora, esse curioso Teatro da contempo- raneidade será chamado de “Teatro performativo” ou apenas de “Performativo” (as razões para isso eu explico em breve, mas fiquemos acordados quanto aos termos por enquanto). Isto posto, é preciso dizer que o Teatro performativo apresenta uma estrutura dramatúrgica “aberta”. Isso apenas significa dizer que esse Teatro não segue os preceitos aristotélicos para o drama, mas em vez disso procura caminhos alternativos e mais porosos para se estruturar. Não há formas fixas fechadas, mas possibilidades amplas e diversas para fazer o acontecimento... bem, para fazer o acontecimento acontecer. Essa “abertura” característica do Teatro performativo tem grande importância neste texto que você está lendo, já que nada dito aqui com respeito às características dessa nova estética tem intenção exaustiva ou totalizante – quero dizer que não é possível falar sobre todas as características observadas no Performativo, uma vez que elas são muito diversas e encontram inúmeras possibilidades de variação. O possível a se fazer aqui neste texto é citar e comentar certos traços mais evidentes desse novo Teatro, bem como buscar saber como fica o conceito de “drama” depois de tantas transformações.

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20 Segunda coisa imprescindível: o fenômeno do Teatro performativo é em grande parte uma resposta política. Pode parecer estranho falar sobre política no Teatro para fora das bolhas do Teatro Épico de Brecht, do Teatro Documentário de Erwin Piscator ou das práticas de Augusto Boal, mas não é exatamente dessa forma de “Teatro político” de que se trata nossa conversa aqui (embora esses nomes citados tenham tido um papel importantíssimo na abertura de caminhos para o Performativo). Brecht, por exemplo, inverteu práticas do drama tradicional em nome de uma arte que propiciasse a conscientização crítica dos espectadores e uma futura transformação da sociedade capitalista. A finalidade máxima do Teatro Épico brechtiano se encontrava na abertura para a provocação ativa do público ao longo do espetáculo, tentando dar fim a uma postura passiva da plateia – postura essa muitas vezes gerada pelo drama burguês. É exatamente nessa tentativa de “ativar o público” que o Performativo ergue sua ética, ainda que essa prática se dê agora num contexto social ligeiramente diferente daquele vivido por Brecht, Piscator ou Boal.

Vera Tenschert. Disponível em: https://live.staticfli ckr.com/2463/3926 080902_425d8e5dd2 _b.jpg.

Foto: EFE. Disponível em: https://www.telesurenglish.net/__export/1408109663653/sites/telesur/img/2014/08/1 4/a_scene_of_mother_courage_and_her_sons_with_brecht_xcenterx_with_his_wife_hel ene_weigel_xleftx_xphoto_efex.jpg_1718483346.jpg;

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21 Com o advento das mídias de massa – como o cinema no começo do século e a televisão na sua última metade – o drama passou a ocupar outros espaços fora dos tablados. As narrativas ficcionais desses meios midiáticos capturaram para si alguns dos princípios mais básicos do drama tradicional. Dentre eles, podemos citar a existência de: 1. um enredo dinamizado pela lei da causalidade; 1. uma estrutura que favorece a imersão do público na narrativa exposta, e para isso fazendo uso dos recursos da ilusão dramática; 2. um público espectador que, mergulhado inteiramente na fábula que se passa, adquire um papel passivo e não-crítico; 3. uma clara intenção de mobilizar o público através do envolvimento emocional, do clímax dramático e da catarse final; 4. uma estrutura geral – desde atuação/interpretação até a cenografia e a montagem das cenas – que se baseia na mimese de uma ação, ou seja, na criação de um cosmos fictício, na representação do mundo ficcional; 5. um evento encenado/filmado quase inteiramente baseado num texto escrito ou numa totalidade cognitiva e narrativa apreensível, capaz de sintetizar e veicular sentidos definidos. A completa dominância do drama através do século XX, quando este foi posto à serviço das mídias de consumo seguindo a lógica de produção em larga escala, justifica a luta política empreendida pelo Performativo. Cabe a esse Teatro novo, portanto, gerar ins- tantes cênicos que fujam do modo hegemônico de compreender a cultura e a arte; para isso, ele inverte quase todos os paradigmas do drama, propondo uma via alternativa ao turbilhão homogeneizante da indústria cultural. Justamente por isso, é totalmente justificável que o Performativo seja recebido pelo grande público com grande estranhamento e hostili- dade.

Em geral, as expectativas do público teatral estão muito vinculadas àquelas entregues pelo drama mergulhado nas mídias de massa. O público majoritário espera que o Teatro entregue uma fábula compreensível, inserida num contexto ficcional que “faça sentido” e que transmita sentimentos tocantes e discursos morais nítidos. É muito comum, inclusive, que o Teatro performativo seja interpretado apenas como uma “negação dos traços típicos do drama”, e nunca como prática teatral justificada em si mesma. Esse pensamento é, até certo ponto, compreensível; mas não se justifica. O Performativo, apesar de sua variedade de formas e de sua resistência a enquadramentos, possui traços e lógicas de operação muito próprias. Isto posto, então, vamos tentar falar sobre algumas características dramatúrgicas do Teatro contemporâneo. Inicialmente, salta aos olhos o combate ao “primado do texto”. O Performativo reco- nhece que o legado do drama é, sobretudo, um legado do “textocentrismo” – ou seja, do papel protagonista do texto literário em relação a todas as outras construções cênicas. No drama, cabe ao texto escrito a função de propor o que seria criado em cena, conduzir e direcionar tudo a ser estruturado pelo espetáculo. A dramaturgia textual era o “coração pulsante” do drama, uma espécie de fonte e referência para praticamente todas as informa- ções simbólicas do espetáculo.

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22 Você já consegue perceber, portanto, que essa dramaturgia escrita – conhecida tam- bém como “texto linguístico” – resumia as significações a serem comunicadas por todos os outros componentes. A iluminação, a cenografia, os trabalhos de atuação, as músicas, o figurino e a até mesmo a atmosfera geral criada pelo espetáculo eram tributárias diretas do texto literário, elaboradas de acordo com as proposições linguísticas da dramaturgia escrita. Tratava-se de um regime de “hipotaxe”. Esse termo complicado que eu acabei de usar apenas significa que havia uma hierarquia entre os componentes cênicos, ou seja, alguns eram sobrepostos enquanto outros ficavam em segundo plano, subordinados. O Teatro performativo procura, então, romper com esse legado textocêntrico, bus- cando outras vias de criação que não considerem o texto literário um definidor de toda a experiência cênica, permitindo que o texto goze de maior liberdade – já que, destituído da função de “grande orientador do espetáculo cênico”, o texto adquire autonomia para ser simplesmente o que ele é: apenas texto, um produto linguístico, um material de palavras que podem funcionar da forma que bem entenderem sem a preocupação de organizar toda a experiência teatral. A partir de tudo o que foi falado, é possível dizer que pertence à linguagem do Performativo uma atenção horizontal a todos os aspectos constitutivos do espetáculo. Essa “atenção horizontal” também pode ser chamada por outro nome, mais técnico e “sério”: parataxe. Heiner Goebbels, um dos grandes nomes por trás desse “novo Teatro”, costumava dizer que o Performativo pretende criar uma realidade cênica em que todos os recursos “conservem suas próprias forças e, no entanto, ajam juntos”. Isso apenas significa dizer que, por mais que haja maior autonomia para cada componente e uma menor hierarquia entre eles, todos os recursos interagem uns com os outros em cena. Outros aspectos específicos e relevantes da dramaturgia performativa são: a nega- ção da representação mimética, a vacuidade de significados, a diluição da personagem ficcional, a fragmentação do tempo e do espaço, a não-linearidade e a intrusão do real. Imagino que dizer tudo isso assim, de forma disparatada, ajude muito pouco. Por isso, comecemos pelo “ponto fulcral” antes de nos enveredarmos por outros caminhos; existe um termo que, de alguma forma, é síntese e chave para a compreensão do texto no Teatro performativo (e também para o Performativo como um todo), operando de certa forma como um grande norteamento para todo esse Teatro novo. Esse termo tão fundamental é “não-representacionalidade” – isso mesmo, são dez sílabas. De forma bem grosseira e resumida, podemos dizer que esse conceito se refere à resistência do Performativo em “gerar significados”, em “contar uma história”, em “fazer sentido”. O foco deixa de ser a “história” a ser contada ou os “significados” a serem transmitidos pelos componentes dramatúrgicos do texto e da encenação; o foco, então, recai nos componentes em si, no valor que eles têm por eles mesmos. É válido já ir dizendo por agora que o Performativo, enquanto resposta ao drama, valoriza a concretude dos significantes. Em vez de toda a atenção cair sobre “o que as formas postas no palco representam”, ela passa a se concentrar nas formas mesmas, naquela materialidade que é percebida ins- tantaneamente pelo espectador. O Teatro é exposto por si mesmo, não mais pelos sentidos que ele pode veicular; trata-se de uma prática teatral que busca esvaziar os significados ao mesmo tempo em que carrega o palco de significantes.

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23 Esse pensamento tem um tremendo efeito sobre a forma como o texto é entendido. Em termos gerais, pode-se dizer que, no Performativo, a palavra perde sua dimensão lógica. As letras, sílabas e sons de uma palavra não mais buscam comunicar um significado para o espectador. Aquele texto, que antes servia como base significativa de tudo que era cons- truído em cena, passa a não conduzir sentidos e semânticas, não tenta transportar enunci- ados lógicos. No lugar disso, o interesse passa a ser justamente a já mencionada “concre- tude dos significantes” – ou seja, o interesse passa a se direcionar mais para os timbres, para as intensidades e volumes, para as diferentes qualidades sonoras, para os silêncios, para os ecos e repetições, para os murmúrios e balbucios, enfim. A função poética da língua, com seus ritmos e ressonâncias, ganha mais destaque que a função simbólica e ilustrativa. Interessante perceber que, desde a primeira metade do século XX, já se tentava reduzir o significado linguístico das palavras de um texto teatral. Antonin Artaud, um com- plexo e incompreendido teatrólogo nascido nos anos finais do século XIX, propunha em seu Teatro uma linguagem verbal que valesse por si mesma enquanto forma, enquanto expres- sividade sonora e sensorial – não mais como veículos de sentido e significado. Alguns outros dramaturgos cuja criação precedeu o fenômeno do Teatro performativo – nomes como Sa- muel Beckett e Harold Pinter –, apresentavam em seus textos diálogos totalmente esvazia- dos do sentido lógico esperado. Nesses escritos, percebe-se que as palavras perdem sua função típica: a ênfase se encontra precisamente nas falhas da comunicação, na deficiência dos significados lógicos, nas lacunas dessa nossa linguagem caduca e imprecisa.

revista/teatro/performativo:início

Estou consciente de tudo o que sei não posso dizer, só sei pintando ou pronunciando sílabas cegas de sentido. E se tenho aqui que usar-te palavras, elas têm que fazer um sentido quase que corpóreo, estou em luta com a vibração última. Para te dizer o meu substrato faço uma frase de palavras feitas apenas dos instantes-já CLARICE LISPECTOR, “ÁGUA VIVA” (P. 29)

Já que falamos ali em cima nos diálogos, cabe aqui uma observação. Falei algumas páginas atrás que o diálogo era a grande espinha dorsal do drama burguês – o diálogo como troca verbal entre as personagens do palco, enquanto debate e discussão, enquanto ação verbal que gera e solucionam conflitos. As personagens dialogam entre si e, dessa forma, passam a mover o enredo dramático. Esse papel central dado ao diálogo é questio- nado e invertido pelas experimentações teatrais das últimas décadas do século passado: aquele mundo interno em que personagens debatem é modificado, dando lugar a outras configurações. Muitas vezes, em vez de fazerem uso do diálogo, espetáculos Performativos fazem uso de monólogos ditos diretamente para o público, rompendo assim a “quarta pa- rede” do mundo ficcional e revelando o “eu real” daquela pessoa que está falando sobre o palco. Outras vezes, os diálogos são transformados em coros, em vozes que se juntam para a criação de um grande som coletivo e variado – não para entrarem num conflito dramático.

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24 JANAINA – (fala pausadamente) Bom. Vocês estão aqui para... Eu preciso dividir com vocês... É tipo um segredo. Acho que é um segredo, que eu tenho... Eu precisaria contar agora. Mas eu não sei direito. [...] eu não sei direito se isso que eu tinha para contar para vocês realmente aconteceu, e aí fica tudo um pouco mais complicado [...] Mas isso também não é tipo uma história de detetive em que a gente vai e descobre uma coisa lá na frente. E também não é para vocês terem qualquer tipo de dúvida em relação à veracidade das coisas que eu estou dizendo. ALEXANDRE DAL FARRA & JANAINA LEITE, “CONVERSAS COM MEU PAI” (P. 29)

Foto: Milton Dória. Disponível em: http://adrianabalsanelli.com.br/wpcontent/uploads/2020/05/Conversas-com-meu-pai_-cre%CC%81ditoMilton-Do%CC%81ria_MG_0920.jpg;

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Foto: André Cherri. Disponível em: https://ambrosia.com.br/wpcontent/uploads/2019/11/Stabat-Mater-Janaina-Leite-foto-de-Andre-Cherri-n-12-743x496.jpg;

Foto: André Cherri. Disponível em: https://teatrojornal.com.br/wp-content/uploads/2020/09/stabat-mater-_foto-andre-cherri-_-capa.jpg.

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26 Depois de tantas palavras ditas, imagino que fique mais ou menos evidente a pro- posta performativa de assumir e sustentar as imperfeições da língua, os problemas e estra- nhezas da comunicação. Para conseguir dar luz a esse projeto de discussão dos limites da linguagem, desponta nesse Teatro uma enorme valorização dos aspectos físicos da voz. Nas diversas materializações do Performativo, as palavras ditas podem ser distorcidas, mo- duladas, sobrepostas, musicalizadas, repetidas à exaustão, mecanizadas, arranjadas con- forme vários formatos e propostas, enfim: a palavra se torna mais um “objeto” sob as luzes da ribalta, apenas outro corpo no espaço – um corpo sem formas ou significados definidos, mas capaz de formar uma espécie de “paisagem textual e sonora” sem limites visíveis. Poucas linhas atrás, quando eu tentava nomear as características do drama que estão entremeadas nas mídias de massa, disse que tanto o “texto escrito” quanto uma “totalidade cognitiva e narrativa” dão toda a base apreensível para esse tipo de conteúdo midiático dramático. Pois é justamente contra essa “totalidade cognitiva e narrativa” que o texto performativo se levanta. Nesse novo Teatro, não é instaurado um mundo ficcional unificado sobre o palco. A proposta performativa dá preferência à criação de um momento de partilha em que a presença física vale por si mesma, num acontecimento cênico grandemente ins- pirado pela teatralidade dos rituais coletivos que estão na origem das Artes Cênicas. Hans-Thies Lehmann, um dos corajosos teóricos que tentou apreender as caracte- rísticas desse novo Teatro, gosta muito de afirmar que, no Performativo, não há síntese. O que Lehmann quer dizer com isso é que, nos trabalhos cênicos filiados a essa proposta, existe uma ativa busca pela não-uniformização – ou seja, uma tentativa de não “somar 1 + 1 e gerar 2”, uma luta estética contra os “resultados finais” de um quadro dialético. O acon- tecimento cênico não quer mais ser apreendido como “um todo”, como informação que transporta uma mensagem definitiva a ser veiculada por sentidos pré-determinados e fechados. É exatamente por isso que o Teatro Performativo é um “Teatro da não-representacionalidade”, porque ele se constitui justamente enquanto arte da não-significação, da não- síntese e do não-resultado.

Tudo isso é especialmente interessante se levarmos em conta a experiência do es- pectador. Colocando-se nessa posição, é quase impossível não se questionar: “O que eu faço com um Teatro que não significa nada?”. Ora, a resposta é um tanto simples (e quase cínica!): “Você faz todo o resto”. Como dito, o Performativo, de forma geral, não oferece síntese ou contexto para que o público conclua entendimentos e compreensões imediatas. Há, em lugar disso, algo como uma “compreensão parcelada”; em vez de orientação, pro- duz-se um efeito de desorientação; em vez de totalidades significativas miradas para um sentido central, há uma vastidão de significantes cuja função, ainda que incerta, cabe ao espectador tentar encontrar. Certamente, uma experiência receptiva de angústia e frustra- ção. Apesar dos desconfortos que essa recepção caótica pode causar, é preciso dizer que o Teatro Performativo se constrói, precisamente, na instauração proposital desse caos. Trata-se objetivamente do cultivo de uma “poética da nãoorientação”. Alguns mecanismos do Performativo visam, a propósito, intensificar o processo de desnorteamento – práticas como a acumulação hiperbólica de significantes ou, de forma oposta, a diluição radical de matérias em cena. Muitas vezes, essas proposições estéticas que deslocam e desestabili- zam o papel do espectador fazem parte da proposta ética mais profunda do Performativo, já discutida anteriormente: a ativação do público. Tratase de ato político estruturado sobre um caos de forma e conteúdo: quando se abandona a síntese totalizante orientada pelo texto, abre-se espaço para que o espectador se insira ativamente no acontecimento. Ao participar de um acontecimento cênico dessa natureza, o espectador se depara com sua própria ação de buscar entender “afinal, o que está acontecendo aqui?” – seja para tentar completar as lacunas deixadas, seja para eleger ou criar um caminho frente ao caos posto em cena. Deparando-se consigo mesmo em seu esforço corporal de busca por res- postas, o espectador acaba tropeçando na sua própria presença real. Assim, elementos do “mundo real” passam a invadir a cena, interferindo na percepção e na condução daquilo que está acontecendo cenicamente. A partir daí, o acontecimento deixa de ser regulado pelos padrões da imersão passiva num mundo ficcional com significados apreensíveis.

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27 Aliás, o “real” é uma área de grande interesse do Performativo. Essa dimensão, tão combatida pelo drama e pelas poéticas teatrais baseadas no ilusionismo e na criação do “mundo ficcional”, entra nas práticas textuais contemporâneas de várias formas distintas. Em certas situações, o real aparece no conteúdo linguístico do texto (geralmente em peças documentais ou autobiográficas que trazem fatos e ficções para a cena, frequentemente deixando em aberto os limites entre “realidade” e “liberdade criativa”); outras vezes, o real é percebido na presença mesma dos atores em cena, naquela ideia já mencionada de um “ritual compartilhado” entre aqueles sob um mesmo tempo e espaço. Seja como for, o Teatro performativo gosta de deixar em evidência a dimensão essencialmente teatral da cena, tanto através dos aspectos reais e concretos quanto por um combate aos elementos ilusórios de um “mundo dramático ficcional”.

HOMEM BOMBA – Morri. Agora eu sou apenas um cadáver. Um morto atingido pelos estilhaços de uma bomba amarrada ao corpo de um fanático religioso. O dia em que as mídias sociais e os jornais do mundo inteiro publicaram a foto do menino sírio – Alan Kurdi – afogado numa praia na costa da Turquia, o mesmo dia em que houve um princípio de arrastão num espetáculo que nós fizemos em praça pública [...]. (Todos se sentam para ouvi-lo) Nesse dia eu me perguntei: para que tudo isso? Por que continuar? Por que insistimos em seguir em frente? [...] Fui explodido sem sen- tir. E eles fazem isso como se te... como se te... como se te... moa a carne. Remexa tudo por dentro. Como se te... como se te... moa a carne. EDUARDO MOREIRA & MÁRCIO ABREU, “NÓS” (P. 49-50)

Tendo-se comentado sobre os modos como o texto escrito toma forma sonora na cena performativa, é preciso falar um pouco mais sobre esse material dramatúrgico propriamente dito. É possível observar uma forte tendência, que ganhou vigor nos últimos 60 anos, em que o aspecto literário da dramaturgia textual foi, praticamente, desprezado. JeanPierre Sarrazac, outro nome relevante nas discussões teatrais contemporâneas, aponta que vários autores dramáticos passaram a preferir a expressão “autores de teatro” para nomear sua prática – repelindo termos como “dramaturgo”, “dramaturga”, “autor” ou “autora”, certamente numa tentativa de diminuir o aspecto literário para valorizar o cênico. Peguemos de exemplo a peça “Dias Felizes”, escrita por Samuel Beckett em 1960. Esse pequeno texto nos apresenta uma estrutura dramatúrgica em que tempo, espaço e expressão corporal têm o mesmo valor que o material linguístico das palavras. É possível ver aqui um primoroso exemplo desse “viés cênico” mencionado acima. Trata-se, contudo, de um texto abarrotado de direcionamentos, rubricas e indicações extremamente precisas a ponto de ele se tornar, inevitavelmente, textocêntrico. Em “Dias Felizes”, apesar do relativo equilíbrio hierárquico entre cena e palavra, a dramaturgia pré-existente é ainda fundamental.

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28 Foto: Blenda Souto Maior grupo Galpão nos espetáculos NÓS e OUTROS com direção de Marcio Abreu.

Foto: Blenda Souto Maior

Foto: Guto Muniz Nas proposições do Performativo, a dramaturgia escrita procura dar um passo além na autonomia entre texto e acontecimento cênico. Nesse Teatro, a dramaturgia textual mui- tas vezes surge como um “apanhado” das palavras a serem proferidas em cena. Em tal contexto, o material linguístico aparece sem grandes preocupações literárias por parte dos autores. É notável, inclusive, o fato de que a simples leitura de uma dramaturgia textual performativa não possibilita uma “visualização” satisfatória do espetáculo. Muitas vezes, a parte propriamente cênica não pode ser apreendida ou percebida apenas tendo contado com o texto escrito – seja pela defasagem de descrições, seja pelo regime de parataxe empreendido, seja pela não-veiculação de sínteses e sentidos, enfim. Tanto o registro textual da peça “Medeamaterial” do alemão Heiner Müller, quanto de “Fluxorama” do brasileiro Jô Bilac, são tão curtinhos que podem causar no leitor a errô- nea impressão de que refletem cenas igualmente curtinhas. Há, na verdade, uma pegadinha: nas breves páginas de cada uma dessas dramaturgias textuais esconde-se lacunas e espa- ços vazios nos quais a cena, em todas as suas dimensões indizíveis e intraduzíveis, toma frente. Perceba, também, a expressão que eu utilizei logo acima: “registro textual” é uma das formas sob a qual a dramaturgia escrita pode ser percebida no recorte do Performativo. Perde-se, portanto, a dimensão de “grande direcionador” dada ao texto pelo drama; este passa a operar como transcrição linguística a ser complementada pela performatividade viva da cena.

Viaduto do Chá Rua Líbero Badaró Largo de São Francisco Av. Brigadeiro Luiz Antônio Viaduto Brigadeiro Luiz Antônio Av. Paulista, Gazeta Esportiva (e o cheiro da chuva ácida que tá pra cair. ) /Pensa no mar/ (Tá puxado) Tá acabando Tá na reta final Tá pra fechar com chave de ouro Tá pra entrar na história Tá com fé de que vai ser melhor > o ano tá começando amanhã Tá tranquila, vai sem pressa... Tá tudo bem Tá tudo certo Tá diferente, mas é isso aí... JÔ BILAC, “FLUXORAMA – VALQUÍRIA” (P. 22-23)

Se um espetáculo performativo fizer uso do texto dramatúrgico (uma vez que nem sempre isso acontece), não é incomum que estes sejam longamente modificados durante os processos de construção e ensaio do acontecimento cênico. Diferentemente da concep- ção clássica – certamente aristotélica – de um material dramatúrgico “dado” ou “proposto” previamente, o Performativo frequentemente conta com textos que se constroem como “trabalho em progresso”, ou seja, continuamente alimentados pelos processos de criação e pela própria experiência da cena. Grosseiramente, é possível afirmar que o trabalho textual no Teatro performativo faz com que o texto seja, pelo menos em parte, uma consequência do trabalho cênico – e não tanto o oposto, como prescreve o drama.

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29 Ainda é necessário reforçar que nesta conversa são privilegiadas certas facetas do Performativo, certas abordagens deste em relação ao texto. Acima de qualquer generalização, é preciso relembrar que esse Teatro opera com o conceito de “dramaturgia aberta” – o que torna possível uma imensa quantidade de manifestações éticas e estéticas, pois ilimitados são seus recursos. Nem sempre o texto se apresenta totalmente como “trabalho em progresso” ou apenas enquanto um “registro linguístico”; é possível reconhecer aqui, ao menos, a tremenda influência da cena sobre o processo de forja e execução material do texto no Teatro que tomou forma nas últimas décadas. Já estamos próximos do fim; em breve me despedirei de você. Antes disso, preciso arrematar algumas pontas soltas que foram deixadas ao longo desta conversa. A primeira delas diz respeito à forma pela qual optamos nomear as manifestações contemporâneas do Teatro aqui tematizadas: nós escolhemos “Teatro performativo”, mas poderíamos ter escolhido pelo menos outras duas possibilidades de igual força teórica. A segunda, tem a ver com a seguinte pergunta: “Como fica o drama depois de ser deformado pelos experimentos do último século?”. O primeiro termo possível, cunhado já há vinte anos pelo alemão Hans-Thies Leh- mann, é “Teatro pós-dramático”. Perceba que o termo “pós” é aqui usado com o sentido de “superação” e “ultrapassagem”; em linhas gerais, Lehmann sugere com esse nome que o drama, em sua concepção clássica, tornou-se uma coisa obsoleta e defasada, aniquilada por algumas iniciativas teatrais contemporâneas que se livraram de seu duro legado. Neste caso, segundo as teorizações de Lehmann, uma possível resposta para “Como fica o drama depois de ser deformado pelos experimentos do último século?” seria: “Ele não fica. O drama agonizou e morreu nas mãos de tais recentes inovações e reinterpreações”. As contribuições de Lehmann foram fundamentais para o entendimento do Teatro contemporâneo – e, olha só, para a elaboração desse papo do qual você participa agora. Apesar disso, já foi possível perceber que eu não optei pelo nome “pós-dramático” neste texto; aqui prevaleceu o termo “Teatro performativo”, criado pela pesquisadora francesa Josette Féral em trabalhos críticos extremamente relevantes para os estudos atuais da arte teatral. Féral é uma das intelectuais mais críticas ao nome “pós-dramático”: ela não compartilha do pensamento de que o drama se tornou hoje apenas um esqueleto enfraquecido e ultrapassado. Seguindo uma linha diferente, Josette Féral propõe que a maior influência para o Teatro das últimas décadas foi a “viragem performativa” – o momento em que os estudos da Performance, iniciados por nomes como Richard Schechner e Andreas Huyssen, toma- ram protagonismo no cenário mundial das Artes Cênicas. Para Féral, o Teatro atual se for- mou exatamente sob a interferência de conceitos como “performance” e “performatividade” (ambos utilizados nas suas mais diversas significações). “Performar”, no sentido de “executar uma ação” ou de “exibir uma ação”, passa a ser uma palavra-chave num Teatro inspirado, justamente, pela performance: no Teatro contemporâneo, assim como na Performance, a ação em si vale mais do que uma “ação como representação”. É por isso que me identifico com termo que Féral cunhou, porque acredito que os conceitos-chave da Performance influíram de forma decisiva para o estado atual do Teatro.

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30 Finalmente, poderíamos também ter nomeado o fenômeno teatral contemporâneo de acordo com os trabalhos de Jean-Pierre Sarrazac, que usa o termo “drama-na-vida” para situar as mudanças específicas desse Teatro da “viragem performativa”. Antes de tudo, salta aos olhos uma coisa: apesar de Sarrazac perceber e levar em conta as diferenças significativas entre o drama clássico e as formas do “novo Teatro”, o teórico decide ainda chamar estas últimas experiências cênicas de “drama” (ainda que seja “drama-na-vida”). Para Sarrazac, o drama não foi superado ou aniquilado: ele ainda existiria, mas sua tradicional forma teria sido modificada pelos adventos sociais, midiáticos e teóricos das recentes décadas. Nessa perspectiva, a resposta para a pergunta é: “O drama permanece, embora reinventado e transformado, adaptando-se a novas iniciativas éticas e estéticas”. Depois de dizer tudo isso, sou obrigado a falar que existem várias respostas possí- veis para as perguntas que deixei ao longo desta conversa. Existem várias formas para compreender os rumos do Teatro e do drama no mundo contemporâneo, e eu faço questão de te convidar a ler e se aprofundar mais sobre esse assunto tão vasto (exatamente para que você crie suas próprias respostas ao longo desse processo – mesmo que sejam respostas provisórias). Por isso, quando acabar aqui, pode ser muito proveitoso dar uma passada de olho nas sugestões e referências.

Existem várias críticas fortes à ideia de um “Teatro performativo”: vários autores e autoras acusam o Performativo de ter perdido seu potencial político, ou mesmo de nunca ter tido realmente uma capacidade de problematização social. Há quem questione o caráter realmente inovador das Artes Performativas e da produção artística contemporânea. No fim de tudo, apesar de tudo, acima de tudo, eu só posso contribuir até certo ponto: depois dele, você continua. A partir daqui você se encontra com o momento presente – e é assim, habitando seu próprio corpo, que você pode traçar seus caminhos autônomos. Filosofia de boteco? Desculpa, é o que tinha. Hora de nos despedirmos. Agradeço muito você ter ficado; agora eu vou ao banheiro, depois vou dormir um sono impreciso. Lembre-se de que esta porta está sempre aberta. Boa noite.

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31 Sugestões de leitura: Duas leituras sobre “origens”. Na primeira (1), a autora trata da origem da linguagem e da necessidade humana de simbolizar o mundo concreto que o rodeia – para quem gostou dos primeiros parágrafos deste texto aqui. Na segunda (2), a escritora fala sobre a história geral do Teatro – incluindo sua origem como linguagem ritual. 1. PETTER, Margarida. Linguagem, língua, linguística. In: FIORIN, José Luiz (Org.) Introdução à linguística. São Paulo: Contexto, 2002, p. 11-24. 1. BERTHOLD, Margot. História mundial do teatro. Tradução de Maria Paula V. Zurawski, J. Guinsburg, Sérgio Coelho e Clóvis Garcia. 1. ed. São Paulo: Pers- pectiva, 2010. Agora, leituras que tem mais a ver com as teorias do texto dramatúrgico. A primeira (3), é um texto clássico de Aristóteles sobre a escrita das tragédias gregas. Depois, dois livros de um autor muito relevante para a compreensão da origem do drama burguês (4) e de sua crise (5). Seguem, após, um livro sobre o Teatro Épico de Brecht (6) e um ensaio teórico muito curtinho sobre dramaturgias “abertas” e “fechadas” (7). Por fim, o livro básico para compreender o “Teatro do Absurdo” (8) e um trabalho muito interessante sobre as várias formas de entender a atuação e o texto teatral (9).

1. ARISTÓTELES. Poética: Edição Bilíngue. Tradução de Paulo Pinheiro. 2. ed. São Paulo: 34, 2015. 1. SZONDI, Peter. Teoria do drama burguês: (século XVIII). Tradução de Luiz Sér- gio Repa. 1. ed. São Paulo: Cosac & Naify, 2004. 1. SZONDI, Peter. Teoria do drama moderno: (1880 – 1950). Tradução de Luiz Sérgio Repa. 2. ed. São Paulo: Cosac & Naify, 2011. 1. ROSENFELD, Anatol. O teatro épico. 6. ed. São Paulo: Perspectiva, 2010. 1. BORNHEIM, Gerd. A dramaturgia não-aristotélica: a estrutura. In: BORNHEIM, Gerd. Brecht: a estética do teatro. Rio de Janeiro: Graal, 1992, p. 316-329. 1. ESSLIN, Martin. O teatro do absurdo. Tradução de Barbara Heliodora. 1. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2018. 1. BONFITTO, Matteo. O ator compositor: as ações físicas como eixo: de Stanis- lávski a Barba. 1. ed. São Paulo: Perspectiva, 2002. Por último, um grupo de escritos sobre o teatro contemporâneo e seus vários nomes: é pós-dramático? (10) É performativo? (11) Que raios é isso? (12) (13). Vamos tentar desco- brir. 1. LEHMANN, Hans-Thies. Teatro pós-dramático. Tradução de Pedro Süssekind. a. ed. São Paulo: Cosac & Naify, 2007. 1. FÉRAL, Josette. Por uma poética da performatividade: o teatro performativo. Tradução: Lígia Borges. Revista Sala Preta, São Paulo, Universidade de São Paulo, v. 8, p. 197-210, 2009. 1. SARRAZAC, Jean-Pierre. A reprise (resposta ao pós-dramático). Tradução de Humberto Giancristofaro. Questão de Crítica [S.l.], 2010. Disponível em: <http://www.questaodecritica.com.br/2010/03/a-reprise-resposta-ao-pos-dra- matico/>. Acesso em: 14 abr. 2021. 1. SARRAZAC, Jean-Pierre. Poética do Drama Moderno: de Ibsen a Koltès. Tra- dução de Newton Cunha, J. Guinsburg e Sonia Azevedo. 1. ed. São Paulo: Perspectiva, 2017.

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revista/teatro/performativo:início

Caderno de Leitura N. 3

O tempo e o Espaço*

revista/teatro/performativo:início

Julia Campos

/Espaço e Tempo


33 [Isso aqui leva para algum lugar. Constrói dois conceitos importantes: O T E M P O E O E S P A Ç O do teatro performativo. Ou como eu entendo esses dois conceitos. Por isso, peço que respire profundamente duas ou três vezes e siga comigo.]

Se puder, pegue um copo d'água. Pegou?

Oi. (primeiro eu vou me apresentar. depois faremos um pacto. para esse textoexperiência fazer sentido eu preciso que você tope esse pacto. no fim e no início e nas partes teremos eu e você)

Essa é a minha voz. uma página de colagens

Ouviu?

ISSO. É. ALGO. PARA. SENTIR. Se digital colocar um som ¿VOCÊ SENTE?

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34 Eu, ainda não ouvi a sua. Mas tem algo que nos conecta. Que nos une. O agora. Que por ora, está sendo materializado por esse texto e pelo seu corpo que vive esse texto. O agora é você. Preciso que saiba que nada está dado. Planejado. O que vai acontecer, vai acontecer. E depende de mim e de você. Você em especial. Por isso t a n t o e s p a ç o , o agora são os espaços a preencher. Te proponho um jogo. O nosso pacto é que você jogue do início ao fim. No fim, tem meu telefone e aí, se quiser, você me liga. Ou não. Tudo aqui são as suas escolhas. (talvez pagina pra preencher) Agora, me conta qual é o gosto que sente na sua garganta agora? É o mesmo da boca? Você tá sentindo o peso da roupa sobre sua pele? Ou você está sem roupa? Você se sente esvaziada ou preenchida? O que te esvazia ou preenche?

A minha garganta tem gosto de um café amargo que tomei para ver se rendia nas obrigações do meu dia. A minha boca tem gosto de manteiga de cacau porque o tempo esfriou e meus lábios racharam. Três cortes. Um pouco do gosto do sangue deles também. O vestido que visto, agora que reparei, sinto pesar e tocar a pele. É um vestido longo. Tem pesos que a gente se acostuma e nem sente mais, né? O meu cabelo está molhado e encosta na minha pele e essa é uma das sensações que mais me agoniam. Sinceramente, me sinto esvaziada. Esvaziada do amanhã. Como se o futuro tivesse sido me roubado antes mesmo dele existir. Você está com a água que falei lá no início? Bebe um gole então. Eu bebi aqui. Para recomeçar. Bebe mais um gole d'água e, dessa vez, de olhos fechados prestando atenção na textura do copo em seus lábios, na temperatura, na água invadido seu corpo e acompanha o percurso dela. Dedique todo o seu corpo, sua atenção, sua presença nesse beber de água e em como isso te afeta.

O que estou tentando evocar aqui é a sua presença. A experiência de viver o exato instante que se vive. Isso faz sentido para você? A ideia de que esse momento não está a parte da vida, da sua vida, mas que é um fragmento dela. Que a compõe. Essa sensação de estar no agora que eu espero que você sinta, que eu quero que você guarde. Convido também a lembrar de outros momentos que se sentiu presente. Um amigo me contou sobre um dia, como vários outros, que ele estava indo embora para casa, pegou ônibus e de repente foi atropelado por uma conexão abissal com a vida. Cheiros. Barulhos. Abrir e fechar das portas. Entrar e sair das pessoas. Luzes dos semáforos. Amarelo. Vermelho. Verde. Cores da cidade. Asfalto. Prédio. Cinza. Gente. Conversas atravessadas. Vermelho. Verde. Velocidades. A vida acontecendo. É isso, entende? Presença. Tento provocar algum tipo de experiência, porque o teatro performativo, para mim, é acima de tudo uma experiência. Não é imitar, reproduzir, retratar nada. É a vida em si. Ao começar a pesquisa que resultou nesse texto essa era minha maior questão: como fazer com que quem me lê e eu, existamos juntas? Como compartilhar um momento? Essas perguntas surgiram em plena pandemia do Corona Vírus. São questionamentos meus sobre essa revista, sobre esse fazer, mas, creio eu, que são também de todos aqueles que trabalham com as artes da presença durante uma pandemia. Como se fazer presente a distância, sem o físico? Eu tô aqui, com você. Você me sente? Aqui sou eu. Acredito que essas questões me atravessaram tanto por ter escolhido tentar explicar o tempo e o espaço do teatro performativo. As instâncias que constituem a presença, se compartilhadas; ou a ausência, se dissociadas. Gosto da estrutura da frase anterior, porque aponta como esse texto vai funcionar: para definir algo, preciso também definir sua antítese. Nesse texto, para falar do teatro performativo, preciso falar também do dramático.

Como é beber água consciente desse fazer?

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35 Então chega de digressões. A sua boca ainda tem o gosto da água que bebeu comigo? Se não tem, bebe mais um gole. Para recomeçar. Chegamos no momento em que eu tento conceituar o tempo. Seguindo a lógica dos antagonismos, existem dois tempos: o que é e o que não é. O primeiro é o da presença, o momento, o agora. O segundo é o que não cabe a vida, seja porque já passou, seja porque ainda não existe. (parte de mim quer agora construir uma crítica ao capitalismo que constitui existências voltadas para o tempo que não é, para uma vida que não chega a ser. outra parte sabe que isso seria um desvio de foco e opta por seguir com o teatro e bebe um gole de água). Quando você pensa em assistir uma peça, você pensa em qual tempo? Quando eu penso em assistir uma peça, penso no tempo que não é. Esse verbo, assistir, instaura uma relação de público e atores, na qual o primeiro é passivo e o segundo ativo. No Teatro pós-dramático, livro base dessa pesquisa (que se transformou nessa revista), Hans Thies Lehmann, o autor, argumenta que essa é a construção temporal típica do teatro dramático. A separação entre quem assiste e quem atua é um dos reflexos da separação temporal que se instaura: como se houvesse o tempo da vida, que está lá, fora do teatro, e o tempo da peça, que se impõe.

Essa dicotomia, permite ao tempo da peça eventos não cronológicos, horas que passam lentas ou depressa demais, ser dia em plena noite. Permite que o público se desloque da sua temporalidade. Há uma certa beleza nisso, você não acha? A construção de um tempo outro. A possibilidade de pausar a vida. Se não a propria vida, o que constitui esse tempo? O texto. Se entendi alguma coisa, o que constrói todo esse teatro é o texto. Fazendo uma metáfora biológica, o textopalavra é o dna do teatro dramático. Você sabia que a cor dos olhos é definida por mais ou menos 16 genes diferentes? O texto dramático faz isso também: une diferentes informações para transformá-las num inteiro uníssono. Ou seja, se tratando do tempo, por mais que a peça tenha tempos distintos:

“Essa decomposição, no entanto, permanece teórica para a recepção teatral, pois o que nela se dá é uma amalgama que funde as camadas de tempo heterogêneas da experiência teatral em um e apenas um tempo. Mesmo estruturas refinadas como o “teatro no teatro”, o anacronismo e a colagem de tempos têm uma importância muito menor para o teatro do que para o texto. O processo da representação viva põe em jogo seu tempo real de tal maneira que todas as camadas temporais teoricamente distintas são objeto de uma sobredeterminação.” (LEHMANN, p.239, O teatro pósdramático)

Quando você pensa no teatro como um encontro, você pensa em qual tempo? No tempo que é, eu espero. O encontro pressupõe a vida, o inesperado, o agora. Não há como saber o que será, porque será. Não há mais um que assiste e um que é assistido, existe uma relação à se construir. Eu dependo de você, assim como você depende de mim. A presença ou ausência de uma pessoa muda tudo. Por isso o tempo que é. O tempo do teatro performativo é esse.

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O teatro performativo é um encontro. um acontecimento. a própria vida. Está repetitivo? Uma respiração profunda. Duas. Gole d'água. Recomeçar. É que quais palavras ainda não foram ditas? Como estruturo isso aqui sem me repetir ou repetir a outrem? Como tentar alcançar alguma temporalidade real sem me repetir? Percebo que dei um passo maior que a perna, vou retroceder um pouco:

a p r ó p r i a v i d a , o u o a g o r a , não é o tempo do cotidiano. É O TEMPO DO INCONSCIENTE Que? Tá. Vou propor um exercício de lembrar e imaginar. Acho que vai ajudar a separar esses tempos. Você consegue refazer na sua cabeça tudo o que fez hoje desde quando acordou? Se quiser refazer com o corpo, a vontade. Deve até funcionar melhor. Fecha os olhos e refaz. Fez? Se hoje é um dia de trabalho ou com compromissos de trabalho, provavelmente o seu dia seguiu uma rotina. hábito. alguns padrões. rituais. Um corpo amortecido pelo automatismo. Automatismo é o oposto de presença. Quando a gente se deixa levar pelo dia-a-dia, tendemos naturalmente a não presença. E de forma nenhuma estou falando que isso é ruim, isso necessário e importante. Um mecanismo de sobrevivência eu diria. Mas existe uma outra forma de existir que alcançamos vez ou outra. A presença que tenho falado desde o início. Como se pudéssemos incorporar a vida em nós. Esse é o tempo da vida. Não cronológico. Não lógico também eu acho. O tempo do sentir e do se fazer sentir. Os buracos entre o cotidiano. As lacunas. O indescritível. Inpalavreavel. Como alcançar aquilo que a gente não é capaz nem de dizer em uma peça? Como construir essa temporalidade? Tem um pensador contemporâneo me ajuda a construir essa resposta. Jacques Rancière. Ele é um filósofo francês que estuda as relações da estética e da política. O que eu estou fazendo agora, citando-o, é uma tática de redação chamada argumento de autoridade: validar um pensamento usando de alguém importante da área. Torna o texto mais sério e, a depender de como é feito, acadêmico. Esse não é para ser um texto acadêmico. Gole d'água. Recomeçar. Rancière criou o conceito partilha do sensível e é através dela que eu acredito ser possível atingir o tempo da vida em uma peça.

Para que o parágrafo anterior faça algum sentido vou explicar o que é partilha do sensível agora. Esse francês, que está vivo e não tem instagram, chama as regras, as normas, o sistema, as estruturas sociais que se impõem de polícia. Sabe quando alguém diz “tudo é político”? Então, o que a pessoa se refere como política nessa frase, Rancière se refere como polícia. Se tudo é polícia, o que é política então? Política são os atos que provocam rupturas na polícia. É algo extremamente efêmero. Nasce e morre logo. São esses atos revolucionários de alguma forma. Há uns dias tentei argumentar com um professor que a tentativa de fazer teatro performativo é a tentativa de fazer política. O que sustentava minha argumentação era, principalmente, a partilha do sensível, pois é através dessa experiência que as pessoas envolvidas tomam certa consciência do seu lugar de margem e assim são capazes de promover ações disruptivas contra esse estado. Ou seja, é uma sensibilização que potencialmente política. Tá, tudo isso é efeito, mas o que é a partilha do sensível em si? De uma forma bastante simplista, como muito do que está escrito aqui, a partilha do sensível é o desvelar a existência de partes e de todo por meio de um compartilhamento estético de um momento no tempo e no espaço. Isso é também, para mim, a grande tentativa do teatro performativo. Através de uma experiência estética compartilhar um momento no tempo e espaço. Único. Irrepetível. Efêmero.

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Respira. Respira. Respira. Água. Gole d'água. Recomeço. Fez algum sentido para você? Eu acho difícil explicar essas coisas téoricas. Mas lembra que eu falei? ~Quando você acabar aqui não. Não.~ Quando nós acabarmos aqui, você vai ter meu telefone e aí podemos conversar sobre as confusões todas. Gole d'água. De toda forma estamos num ponto crucial agora: como compartilhar o agora? Como criar o agora? Como experienciar o agora? Gole d'água. Você está com a água que falei lá no início? Bebe um gole então. Eu bebi aqui. Para recomeçar. Bebe mais um gole d'água e, dessa vez, de olhos fechados prestando atenção na textura do copo em seus lábios, na temperatura, na água invadido seu corpo e acompanha o percurso dela. Dedique todo o seu corpo, sua atenção, sua presença nesse beber de água e em como isso te afeta.

Como é beber água consciente desse fazer? Como criar o agora? Evocar o agora? Como compartilhar o agora? Como experienciar o agora? Essa é a parte que acho mais difícil. Tento em teoria quanto em prática. (essa é a minha voz, você ouve?) Lehmann (o autor que estamos baseando, lembra?) diz que existem dois mecanismos principais: A duração e a repetição. A duração é o quanto de tempo dura o tempo. Pleonasmo, né? O performativo se enche tanto de pleonasmos que eles passam a ser outra coisa. Aqui por exemplo, quando a gente bebe um gole d'água acho que não dura mais que meio minuto. Bebe aí. Bebi e deu 7 segundos. Viu? Quanto deu aí? Imagine alguém bebendo um gole só por 7 minutos. Sabe esse contraste? Essa lentidão intencional? Faz sentido para você se eu falar que essa dilatação da duração esculpisse o tempo e tornasse ele real? Tornasse palpável. Concreto. O agora, sabe? Vou usar as palavras de Lehmann:

Fez algum sentido? Não se apega muito ao sentido também não. O que ficar ficou. É a nossa experiência, sabe? É isso que importa. Para seguir nos pleonasmos: a repetição é repetir. Repetir. Repetir. Repetir. Repetir. Repetir. A psicanálise fala que a gente se repete constantemente. Que a gente se repete sempre. O teatro performativo tem essa nossa estrutura inconsciente, sabe? Repetir. Repetir. Repetir. Repetir. Repetir. Até exaurir. Repetir. Repetir. Repetir. Repetir. Repetir Até ser outra coisa. A ideia é que se repetir o suficiente se torna outra coisa e aí nunca vai ter se repetido. A ideia é que se eu repetir o suficiente o que eu estou falando agora seja novo. A ideia é que se eu repetir o suficiente vai se encher de agora. Se a gente beber água o suficiente nesse texto (bebe aí, tô bebendo aqui), além de hidratados, cada gole vai significar algo novo. Cada gole será o agora em si e irrepetível. A repetição serve para desestruturar. Quebrar a lógica. Tornar efêmero. Agora. Experienciar o agora. Esse é o tempo. AGORA.

Espaço.

“Chega-se então a constatação de que aqui a duração não ilustra a duração. Não se pode dizer que a vagareza no palco se refere à lentidão de um universo fictício que estaria ligado ao nosso mundo de experiências, nem que ela remete por ironia ou antífrase à brutalidade ou á violência da vida “real”. O teatro se refere sobretudo ao seu próprio processo.” (LEHMANN, p.307, O teatro pósdramático)

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38 Para falar do espaço preciso falar de uma estrutura base do drama. O ESPELHAMENTOTNEMAHLEPSE O O teatro dramático gera identificação através de um espelhar a realidade. Você assiste a peça e o que está ali se parece com a realidade. Encena a realidade. Imita. Mas, se por um acaso, ao invés de sentar-se na plateia, você se sentar no palco o espelho vai quebrar. Porque teremos entrado num espaço muito íntimo onde sobressai o ator ao invés do personagem. Onde dá para ver que o cenário é falso. O momento se sobressai do todo. O instante. O mesmo vale se você assistir à essa peça longe o suficiente para perceber o montar e desmontar de tudo. O teatro dramático existe num espaço mediano. Antagonismo, lembra? Gole d'água. Recomeçar. O performativo só pode ser das miudezas ou gigantezas, do ator e não do personagem, do escancarar, do sentar-se no palco (inclusive em Vaga Carne de Grace Passo esse é o lugar do público). O dramatico exige distancia para olhar o espelho. O performativo quer proximidade para se fazer troca. Intimidade. “Quando o afastamento entre atores e espectadores é reduzido de tal maneira que a proximidade física e fisologica (respiração, suor, tosse, movimento muscular, espasmos, olhar) se sobrepõe á significação mental, surge um espaço de intensa dinamica centripeta em que o teatro se torna m moento das energias co-vivênciadas, e não mais dos signos transmitidos.” (LEHMANN, p.265-267, O teatro pós-dramático)

Outra coisa que eu acho difícil, além de explicar coisas teoricas, é finalizar texto. Abrupto, né? Sinto que meus finais são sempre assim. Meio de rompante. Acho que pela angústia que me gera o acabar. Te gera também? O desconhecido que vem depois. Sei lá. Mas enfim, não tem isso nesse texto. Lá no inicio prometi que no fim teria meu numero. O fim tanto não é desconhecido aqui, quanto não existe. Ou não existe se escolher me ligar. O teatro performativo é muito mais essa ligação (existindo ela ou não) do que tudo aqui. (31)98777-3035. (é Julia, viu? o meu nome)

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revista/teatro/performativo

Caderno de Leitura N. 4

O Corpo no Teatro

Pós-dramático ou o Corpo em Performance Dê Jota

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Autodescrição: Eu sou o Dê Jota, tenho 23 anos. Sou um homem negro de olhos castanhos e míopes, exatamente por isso, estou sempre de óculos ou lentes de contato. Tenho 1,73 de altura e gosto de dançar; faço ballet desde os 8 anos de idade e posso dizer que isso mudou completamente o meu corpo e o meu olhar sobre ele. Minha coluna sempre ereta e os ombros relaxados. Minhas panturrilhas, coitadas, gostaria que fossem mais grossas do que são. Me contento com elas. Gostaria de pedir para que você parasse o que está fazendo por um breve momento e começasse a perceber como está o seu corpo no agora. Usemos a imaginação. O Corpo no Teatro Pós-dramático ou o Corpo em Performance

O corpo “Somos todos iguais, estamos todos no mesmo barco” Eu aposto que você já escutou essa frase repetidas vezes durante sua vida, não é verdade? Pois eu sim, cresci com pessoas me dizendo que todos nós somos feitos da mesma matéria, do mesmo “barro”, e desde sempre contestei essa afirmação. Como podemos ser iguais sendo tão diferentes e vivendo vidas tão plurais? Quase todos os aspectos culturais são capazes de definir nossas condutas, gestualidades, gostos, pensamentos, personalidades e realidades sociais… Sendo assim, gostaria de iniciar este texto reafirmando a importância da diversidade e da pluralidade de corpos existentes no mundo e dizendo que: cada corpo é um e tão somente capaz de se expressar e criar sua própria realidade e visão de mundo. O corpo tem um papel fundamental na vida humana desde os primórdios, pois ele é o instrumento principal para estabelecer uma comunicação com outro, seja através da fala, ou de uma simples gestualidade, de um olhar… Os acontecimentos do cotidiano podem afetar diretamente o corpo e as pessoas não vivem a mesma vida. No entanto, é entendendo essas diferenças existentes em cada corpo que podemos nos abrir para as mais variadas possibilidades que cada um é capaz de gerar. Para Lehmann:

O corpo vivo é uma complexa rede de pulsões, intensidades, pontos de energia e fluxos, na qual processos sensóriomotores coexistem com lembranças corporais acumuladas, codificações e choques. Todo corpo é diverso: corpo de trabalho, corpo de prazer, corpo de esporte, corpo de público e privado. (Lehmann, p. 332, 1999)

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A ciência pode de certa forma nos dizer com detalhes sobre as características presentes em cada célula ou sistema do corpo humano e não é exatamente o que pretendo fazer aqui. Mas, partindo da ótica de que o corpo é um sistema de alto grau de complexidade, podemos imaginar que ele funciona como uma “máquina” capaz de receber e transmitir diversos estímulos todos os dias. E é através desses impulsos individualizados que cada um pode gerar suas próprias ações, que se manifestam pelas emoções, hábitos ou mesmo registros corporais que são acumulados desde a infância.

Eu e você Temos coisas até parecidas Por exemplo, nossos dentes Senhor cidadão Da mesma cor, do mesmo barro Senhor cidadão Enquanto os meus guardam sorrisos Senhor cidadão Os teus não sabem senão morder Senhor Cidadão – Tom Zé

Como esta é uma revista que aborda algumas características existentes na cena teatral performativa, foi dado a mim o desafio de escrever sobre um tema muito importante do qual tenho muito apreço: o corpo. Trarei, então, algumas possíveis reflexões baseando-me no livro “Teatro Pós Dramático” (1999) escrito pelo teatrólogo alemão Hans Thies Lehmann. O autor é reconhecido pelo estudo da cena performativa na contemporaneidade e é responsável por pesquisar e refletir sobre o termo teatro pós-dramático, que tem o intuito de dar conta das rupturas contemporâneas das estruturas presentes na cena dramática. Sendo assim, Lehmann escreve seu livro ao observar o drama como um gênero literário e teatral que pouco se modificou desde a sua formulação pois, para ele, as peças se mantinham em certas estruturas já pré-estabelecidas pelo autor ou diretor. A ideia de drama teve sua origem no século V a.C e foi teorizada pela primeira vez por Aristóteles em sua Poética. Assim, algumas de suas especificidades começaram a se desenhar naquelas peças teatrais em que os conflitos se desenvolviam através dos diálogos e das ações das personagens. O drama, além de tudo, é também composto por um enredo com início, meio e fim. A arte, de maneira geral, se manifesta de muitas maneiras e em diversas áreas (Artes Visuais, Artes Plásticas, Dança, Música, Literatura, Fotografia, Moda, Escultura, Pintura e Cinema). Podemos pensar que o ato de performar pode estar presente em todas essas formas artísticas. Mas aqui, neste texto, abordaremos o corpo em seu estado de performatividade dentro da cena teatral. E vale ressaltar que uma das tantas características encontradas na cena performativa dos dias atuais se dá na experimentação e exploração de novas maneiras de se estruturar um espetáculo cênico. Nessa nova forma teatral, o ator é um co-criador de todo o processo artístico e passa a ter mais “liberdade” para compreender e participar da obra, sendo, então, mais que um instrumento maleável do diretor. Portanto, o ator-performer está completamente ativo no processo de criação da peça e pode, de maneira quase livre, refletir sobre novas possibilidades acerca do tempo em que vive – neste caso, o tempo presente. Para finalizar esta introdução, devo dizer que o texto em questão apontará as principais características da construção do corpo pós-dramático, além de apresentar uma reflexão sobre a potência das corporeidades encontradas na cena performativa.

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Que lugar ocupa o corpo no teatro pós-dramático? De modo geral, é uma tarefa difícil abordar o corpo no teatro pois já existem muitos estudos e conceitos acerca deste tema que é tão vasto. Mas, quando se trata do termo “corpo”, não podemos pensar nele como algo isolado, algo único. Isso porque, para existir, ele precisa estar em relação a algo: ao tempo, ao espaço, ao texto, à estética, aos signos, às mídias, e etc. Por muito tempo, a corporeidade no teatro esteve em segundo plano e não era tratada com autonomia, pois o ator sempre esteve a serviço de um texto e das indicações presentes nele. A concepção de expressividade corporal não era necessariamente uma ideia independente no drama, apesar de existir. As personagens se definiam de maneira mais precisa através de sua ação dialética, que eram por sua vez pautadas no diálogo e na construção de personagens complexos, capazes de resolver os conflitos através do uso da palavra. E, mesmo assim, desde a antiguidade, o corpo teve um papel muito importante nas obras de teatro – mas não estava em foco. Com o passar do tempo, a forma dramática começou a ganhar força e se instaurar como modelo de um bom teatro. Para Lehmann: O teatro teve início quando um indivíduo se desligou do coletivo e fez algo notável de si mesmo: o impulsionador, que fantasia seu corpo, talvez expondo um corpo especialmente belo e forte, e relata atos heróicos (próprios); ou corajoso,que ousa sair da coletividade protetora e adentrar um outro espaço (LEHMANN, p. 331, 1999) É curioso imaginar uma fórmula para ser e fazer teatro em pleno século XXI, isso porque imagino que muitas barreiras foram rompidas nas artes (música, teatro, dança, circo, artes visuais, cinema, etc.) pelas importantíssimas vanguardas e que agora se misturam de forma consciente ou não consciente. Antes do dito pós-dramático, penso que os artistas de teatro se limitavam na assimilação do texto dramatúrgico, geralmente pensado por um profissional que fechava-se em seu gabinete para conceber uma obra prima que era, possivelmente, uma réplica da realidade e que seria ovacionada pela crítica e pelo público. Nesse texto e nesse teatro, as atrizes e atores seriam extremamente verborrágicos e atuariam de modo naturalista a fim de estabelecer uma conexão entre a personagem ficcional e o espectador – que, hipoteticamente, sairia do teatro emocionado e transformado. O drama seria esse lugar fechado em que o espectador teria que “espiar pelo buraco da fechadura” ou colocar uma “lupa” para conhecer uma história por vezes burguesa e doméstica, por outras uma imitação estereotipada da realidade. Considero que o texto no drama, é, sim o fio condutor que promove as reações no corpo da atriz ou do ator; nele, as suas ações são, por muitas vezes, essencialmente direcionadas como um volante guiado pelo diretor ou encenador.

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Um texto poderia ser dito de formas totalmente codificadas, através de partituras, gestos, sons, ruídos, etc. Os artifícios utilizados na caixa preta, como a luz cênica, o cenário, o figurino, o objeto cênico e a música ao vivo, não tinham maior grau de importância na cena: esses elementos estavam ali para somar, fazer coro com a(o) artista/performer em cena. Tento pensar de que forma os atores dramáticos se preparavam para entrar em cena, já que um termo como “expressão corporal”, e profissionais como os preparadores vocais e corporais, foram surgindo aos poucos a partir da década de 1950 com a bailarina argentina Patricia Stokoe. O ator, no teatro pós-dramático ou performativo, já estaria familiarizado com esses termos e profissionais? Tenho a sensação de que as mudanças foram acontecendo a passos lentos, pois, se existiram rupturas nas formas de se fazer teatro e, automaticamente, no corpo do ator em cena, é porque muitos artistas não se viam mais representados pelas criações tradicionais. Isso acontece ainda na atualidade, com o teatro contemporâneo, por exemplo. O corpo no teatro pós-dramático não é definido por uma ausência da corporalidade e da expressividade em cena, mas sim, pela criação de um corpo híbrido que pode experimentar e sair a qualquer momento do real e do ficcional, deixando o espectador mais próximo de si, com a exclusão da quarta parede, e deixando de lado formas canônicas do fazer teatral, como aquela que afirma que o artista em cena deve representar uma personagem. O performer pode assumir ambas as identidades sem oficializar uma apenas, permitindo-se “surfar”, pois, de acordo com Stephan Baungartel e Elisa Schmidt:

(...) não há arte sem esforço físico e articulação de energia pelo espaço. A arte pós-dramática poderia ser entendida como arte da fricção e não da ficção, pois é através das nuances de tônus corporal que se relaciona com o espectador a fim de comunicar, interagir, transformar. O trabalho é fundamentalmente do ator e é através dele que o público se constrói, por meio de uma ação essencialmente verdadeira, friccionando as presenças de atores e espectadores num ato libertário, funcionando como elemento curativo da alma, vivificando a presença de cada um. (BAUNGARTEL, Stephan; SCHMIDT, Elisa; 2008, p. 9)

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O diretor carioca Marcio Abreu (criador e integrante da Companhia Brasileira de teatro) é uma referência muito importante na cena teatral pós-dramática, tendo já dirigido diversos espetáculos como: “Preto”, “Por que não vivemos?” e, com o Grupo Galpão, “Nós” o “Outros”. Em “Nós”, por exemplo, os atores compartilham suas angústias e esperanças para com a atualidade do mundo enquanto preparam uma sopa. Nessa montagem, que é a 23º realizada pelo grupo mineiro, a plateia é convidada a vivenciar uma série de questões sociais, políticas e de opressão.

Foto: Blenda Souto Maior - Grupo Galpão, NÓS

Na cena teatral pós dramática, o corpo não está interessado em dar respostas – mas em criar novas perguntas. Ao assistir a uma performance, é muito comum pensarmos: Pra quê? Por quê? O que ele/ela quer dizer com isso? O corpo como parte de um sistema com alto grau de complexidade (psicofísicos) é o resultado de um acúmulo de experiências. Um corpo presente está cheio de passado, cheio de memória de futuro e se encontra desejoso por um porvir. Não é possível segregar corpo e mente. São coisas que andam juntas. E é a partir dessa junção que nasce o desejo de performar.

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Quando nos referimos à presença no teatro podemos também mencionar que ela se faz real quando o ator está em total estado de alerta, completamente aberto ao jogo e ao inesperado. Isto é, há no performer o desejo de estar sempre em busca de uma cumplicidade com seu público e com seus parceiros de cena, criando em si um estado sensível para entender exatamente o que se passa naquele instante. Seu corpo está sempre em busca de uma presença para, então, encontrar um estado de prontidão e disponibilidade para atender às necessidades da cena/performance naquele tempo e espaço. Aliás, a performance é considerada por muitos uma arte libertadora e democrática justamente por possibilitar um pensamento consciente e ativo sob o ponto de vista do público. O performer está em uma grande busca por seu limite à exposição. Ou seja, o risco de se colocar diante de pessoas e provocá-las. A cena performativa tem ganhado força em nossa atualidade, mostrando que o teatro pode ir além de suas estruturas tradicionais e caminhar em direção a um corpo expressivo e múltiplo. Acredito que o teatro pós-dramático veio para romper com as configurações artísticas tradicionalmente adotadas, assim como o movimento da Tropicália que surgiu no Brasil na década de 60 e que inovou as estéticas e as linguagens, atingindo em cheio diversas manifestações artísticas como a música, as artes plásticas, o cinema e o teatro brasileiro (com a importante presença de José Celso Martinez Corrêa). Ainda assim, a palavra “drama” não foi eliminada completamente do dito pós-dramático, já que, como sabemos, não é possível alterar as formas sem que tenha existido antes uma base, um terreno da tradição para se contestar. O drama e o pós-drama são retas paralelas, basicamente; duas linhas retas que, aparentemente, não apresentam um ponto em comum. Apesar de tudo, são duas formas teatrais cujas “linhas retas” têm, necessariamente, o mesmo sentido: o desejo da receptividade de um público – pois, na ausência dele, o teatro não existe. Restam as perguntas: Que tipo de receptividade quer o drama? Que tipo de receptividade consegue o drama? E, enfim: Essa receptividade é diferente daquela que o pós-drama quer e consegue?

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46 Performance, risco e presença. O Artista Arte. De Tudo Um

PERFORMANCE

Eu faço

E o corpo performa.

Faz Performance

(ou quase) Pouco.

Foto de Ismael Soares

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revista/teatro/performativo

Caderno de Leitura N. 5

O uso das mídias no teatro pós-dramático* Eduarda Fernandes

*

Texto baseado no capítulo de mídias do livro "Teatro Pós-Dramático" (1999), de Hans-Thies Lehmann.


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norte

Neste caderno, analisaremos o emprego das mídias no teatro pós-dramático, a partir de aplicações articuladas pelo teatrólogo alemão Hans-Thies Lehmann (1999) no livro "Teatro Pós-Dramático" (1999).¹ Sob o efeito dessas formas de mediação e articulação da linguagem teatral, será possível introduzir uma breve reflexão sobre o tema, sem a intenção de restringir conceitos, nem definir uma unidade estética cabível para o uso de tais formas, uma vez que a apropriação das mídias pelo teatro está submetida, entre tantas outras coisas, ao diligente avanço da tecnologia e à expansão do conceito de dispositivo² para a efetivação do fenômeno teatral; onde a relação entre público e performer ganha camadas significativas no espaçotempo comum do teatro através dos efeitos de presença e ausência; virtualidade e realidade física; ação e reprodução; projeção e memória.

¹ No teatro pós-dramático, ou as mídias encontram um uso ocasional, que não define de modo fundamental a concepção do teatro (mero aproveitamento da mídia); ou servem como fonte da inspiração para o teatro, sua estética ou forma em que a técnica midiática necessariamente desempenhe um grande papel nas próprias montagens; ou são constitutivas de certas formas de teatro. Por fim, teatro e arte midiática podem se encontrar na forma de videoinstalações. (LEHMANN, 1999, p. 377) ² Dispositivo, neste caso, é qualquer coisa capaz de apontar uma instância organizadora na cena, a fim de obter resultados mais ou menos imediatos frente a um "problema". Esses dispositivos podem ser acionados por qualquer agente da cena, em estruturas simples ou complexas, desencadeando comportamentos e estados.

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A clássica ideologia da presença inerente à linguagem teatral - é através do encontro entre pessoas, situadas em uma mesma coordenada espaço-temporal, que o fazer teatral se torna possível e efetivo em suas intenções - ganhou força nas últimas décadas por garantir ao teatro o seu lugar de especialidade frente a tendência de virtualização dos espaços de convívio. Para entendermos melhor essa condição ontológica, e, posteriormente, sua relação com “a onipresença das mídias na vida cotidiana desde o anos de 1970”, vamos circular dois movimentos importantes: o primeiro, eclode um pouco antes, na década de 1960, e é chamado por alguns autores de “virada performativa das artes”. Responsável pelo rompimento de diversos paradigmas estéticos predominantes até então, a “virada performativa” traz ao centro do debate a valorização da presença, do corpo e da ação, que, por suas vezes, se tornam elementos cada vez mais fundamentais e estruturantes da criação artística. É nesse momento também que surge a performance art³, propriamente dita, incidindo radicalmente sobre os corpos cênicos que, a serviço do drama, se mantiveram dentro de estruturas fabulares; distantes da realidade. Realidade essa que é artística, política, social, cultural, e, por fim, biológica: a realidade do próprio corpo-matéria. Como já mencionado em passagens anteriores, algumas vertentes de estudo consideram que à performance compete domínios antropológicos e interculturais, e não somente artísticos. Isso implicaria em ampliar nossos estudos para análise da ética - enquanto ser e estar no mundo da existência humana; o que as páginas desse estudo não comportariam. O que nos serve aqui é pontuar como a performance (performance como arte e performance como experiência e competência) contribuiu para que o teatro pudesse pensar novas configurações e, numa perspectiva multidisciplinar, afirmar sua potência como arte viva capaz de produzir materialidade. Na outra ponta do endereçamento, o público também sentiu mudanças na forma de consumir e experienciar as obras: a plateia, que antes se via alheia aos acontecimentos no palco, começa a ser considerada uma presença progressivamente irrecusável, e, em alguns casos, parte motora da estrutura dramatúrgica. É essencial lembrarmos que, até então, os traços tradicionais do drama burguês mantiveram esses dois territórios bastante distintos e nãoafetáveis. Como consequência dessa configuração, o público se detinha numa postura passiva, apenas contemplativa, do acontecimento cênico, enquanto os atores estavam resguardados pela ideia da “quarta parede”; um acordo prévio e silencioso apartava a realidade do palco da realidade do público. Os novos modos teatrais que surgem a partir da década de 1960-70, porém, passam a reconhecer o teatro como um catalisador do “real”, e, portanto, inapto a ignorar a realidade circunferente (seja ela a partilha de um espaço-tempo comum entre atores e espectadores, ou, em maior instância, a realidade política e social proeminente).

³ É importante ressaltar que a influência da performance (art) não se limitou somente ao teatro, recaindo também sobre todas as linguagens cujo o princípio é a copresença (dança, música ao vivo...). As artes visuais também se beneficiaram consideravelmente desses conceitos.

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O segundo [movimento] tem bases longínquas, e pode ser visto como uma das multifacetadas consequências do avanço tecnológico no campo das imagens produzidas por instrumentos e das novas dinâmicas de comunicação do séc. XX. Além das artes - visuais, cênicas, cinematográficas - outros campos vinham sendo transformados a partir da tendência de “delegar o olhar humano a aparelhos” desde o séc. XIX. Hoje, é possível oferecer um diagnóstico médico preciso através de exames de imagem, assim como é possível, na arquitetura, erguer edifícios inteiros através de softwares de projeção 3D. Ou ainda, dizer se amanhã faz sol ou chuva. Desde o final do séc. XIX, o cinema vinha causando fascínio por oferecer às pessoas a experiência das imagens em movimento. Muito diferente do teatro, a linguagem cinematográfica permitia irrupções no tempo e no espaço, por meio de narrativas fragmentadas que alteravam a percepção imediata da realidade. Em todos esses exemplos, a capacidade biológica de percepção e análise da realidade foi otimizada e, paradoxalmente, inibida. Ao delegarmos nossos sentidos a diferentes tipos de aparelhos, também nos afastamos do “corpo orgânico” e suas vitais limitações; nossos sentidos foram terceirizados e nosso desenvolvimento sinestésico condicionado a um constante estímulo induzido, extra-ambiente. Ao considerar o uso das mídias no teatro, não pretende-se desqualificar sua especificidade ontológica, baseado numa ideia substitutiva, mas, sim, criar um território interdisciplinar, onde os efeitos midiáticos estão dispostos a favor da cena. Ainda assim, devemos considerar que, em alguma instância não excludente, a presença das mídias desafia os fundamentos da linguagem teatral, à medida que transcende os limites da presença corporificada e materializada, “não-virtual”. Nota: vale ressaltar que o conceito de virtualidade não está restrito somente ao universo midiático ou cibernético, como comumente é relacionado. Etimologicamente, a palavra virtual vem do Latim virtualis, de virtus, que, por sua vez, significa força ou poder. Sendo assim, a virtualidade pode ser compreendida como um “espaço de ausência”, no qual forças intangíveis atuam sobre a realidade. O que isso significa? De forma resumida e simplificada, a virtualidade é aquilo que existe potencialmente, ou seja, como possibilidade iminente, não como ato. Está constantemente exposta a atualizações que podem - ou não - impedir que uma pessoa, uma coletividade, um ato ou uma informação (LÉVY, 1996, p.21) se torne “material”.

Quando uma pessoa, uma coletividade, um ato, uma informação se virtualizam, eles se tornam “não-presentes”, se desterritorializam. Uma espécie de desengate os separa do espaço físico ou geográfico ordinários e da temporalidade do relógio e do calendário. É verdade que não são totalmente independentes do espaço-tempo de referência, uma vez que devem sempre se inserir em suportes físicos e se atualizar aqui ou alhures, agora ou mais tarde. (LÉVY, 1996, p.21).

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O filósofo francês Pierre Lévy, autor do livro “O Que é o Virtual?" (1996), fala um pouco sobre esse conceito aqui, assista:

Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=sMyokl6YJ5U>

Como exemplifica Lévy, a virtualidade está presente também no campo semântico, nos signos da linguagem. É aquilo que não pode ser tocado, mas existe enquanto conceito, ideia e significado. Nesse sentido, o teatro também é capaz de criar e manipular zonas virtuais, através de recursos não computadorizados. Quando, por exemplo, assistimos um grupo de atoresperformers em seu exercício cênico, estamos diante da manipulação de uma ideia. Há, ali, a criação de uma esfera virtualizada, preenchida por signos imagéticos e/ou potências discursivas, não necessariamente restritos a uma abordagem temática ou ficcional.

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Inspiração nas mídias Nesta forma teatral, segundo Lehmann (1999), o aspecto midiático não é reconhecível a partir da aplicação da tecnologia em sua forma maquinal, mas está presente na estética das encenações. Diretamente ligado ao universo televisivo e à cultura pop, o teatro concebido dentro desses moldes parece evidenciar uma tendência comportamental de massa, representada e formatada segundo os interesses midiáticos vigentes. Entre as características mencionadas pelo autor ao categorizar as encenações, estão a/o: .vertiginosa alternância de imagens; .ritmo de conversação abreviado; .utilização de gags das comédias televisivas; .alusão ao entretenimento trivial da televisão, as estrelas do cinema e da TV; .predominância de um tom paródico e irônico; .adequação aos temas da mídia; .atmosfera de teatro pop; .fala dirigida diretamente ao público (como na TV); .citações da cultura pop, dos filmes de entretenimento e dos temas veiculados pela publicidade midiática; As características descritas acima definem os experimentos que, nas palavras de Lehmann, “são pós-dramáticos na medida em que os temas, gags ou nomes citados não são expostos nos moldes de uma dramaturgia coerente, mas servem como frase no ritmo musical, como elementos de uma colagem de imagens.” (1999, p.380). Durante a leitura do texto, destacam-se duas reações diante do discurso moldado pelas mídias, e, em ambas, a impossibilidade do escapismo. A primeira, pretende explorar a intensidade do teatro a partir da identificação do público com determinados produtos e temas que compõem um referencial coletivo de vida sob a ótica do comportamento midiático. A segunda, na tentativa de renúncia (e denuncia?), busca criar um distanciamento em relação às atitudes midiáticas, sua decadência, comicidade e contradição. No entanto, como veredita o teatrólogo, em nenhuma das circunstâncias um Eu “autêntico” parece ter poder genuíno sobre o império midiático e suas máscaras de comportamento - embora em alguns casos haja um jogo consciente com elas.

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Em tais encenações, evidencia-se um trabalho bastante rítmico, próprio dos modos de comunicação do universo pop, da publicidade e dos programas de TV, já citados aqui. Como num videoclipe, imagens e temas têm total liberdade para se deslocarem sem compromisso com uma linearidade narrativa, ou mesmo com uma coesão estética, deixando esta, uma tarefa para os filmes de cinema tradicionais. No videoclipe, a disposição dos quadros, as cores e os elementos técnicos seguem um padrão musical, que, como a própria música, são fáceis de consumir e acessar emocionalmente; os recursos de edição são levados a sua potência máxima, podendo gerar produtos mais ou menos estilizados.

"24 horas no ar! #MITspAoVivo faz transmissão ao vivo da performance A Gente Se Vê Por Aqui, de Nuno Ramos, com os atores Luciana Paes e Danilo Grangheia, que vão reproduzir na íntegra a programação da Rede Globo durante 24 horas, a partir da transmissão do Fantástico, no domingo à noite, até o final do Jornal Nacional, na segunda-feira. #MITsp2018 a partir do Galpão do Folias." Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=In2NDK7Vlec>

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Internet: a formação de uma nova consciência coletiva O que Lehmann não considerou (por não ser uma particularidade da época ou por simples dissociação) foi o papel que a internet poderia exercer nessas e outras formas teatrais, tendo em vista a tendência de substituição dos portadores midiáticos. Como é perceptível, a internet possui hoje uma abordagem mais incisiva que a televisão, que apesar de muito influente, oferece poucas possibilidades de interação e interlocução. A hegemonia televisiva, com seus padrões publicitários e seus modos didáticos de comunicação, foi, durante muito tempo, uma das maiores responsáveis pela formação da cultura de massa, lapidada e moldada pelo rigor das normas da indústria do entretenimento. Sem liberdade para propor formatos realmente inovadores, o dilema da indústria cultural se assemelha, preservada a natureza de cada um deles, ao dilema das grandes formas teatrais que perseguem o sentido e a síntese. Sentido porque tendem a minar o espectro de possibilidades interpretativas a partir de um mesmo conteúdo, evitando, desse modo, abrir espaço para a dúvida, deslizes de sentido e deslocamento de signos. E síntese porque seguem uma coordenada temporal que não permite digressões; tudo deve ser consumido rapidamente. Fascinante porque versátil e questionável porque arbitrariamente disponível, a internet se destaca pela capacidade de proporcionar o diálogo e a colaboração entre seus membros, podendo ser compreendida, portanto, como uma forma de poder em contraposição às grandes corporações midiáticas hegemônicas. Tal como o teatro, em um dado momento, se abre para a participação dos espectadores - cada vez mais impassivos - a internet converte o telespectador em usuário pelo princípio da interatividade, revelando, assim, a tendência geral de que as experiências, fora e dentro do campo cênico, sejam organizadas segundo a lógica de relação entre emissores e receptores e suas necessidades específicas. O telespectador, que antes era obrigado a seguir o fluxo de uma programação pré definida, navega hoje numa vasta gama de conteúdos que podem ser acessados quando ele quiser e, graças à evolução dos dispositivos móveis, onde quiser. Não demoraremos aqui sobre a extensa crítica à maneira como a internet impactou negativamente, mas sobre isso, vale observar: [...] caberia questionar, na contramão do otimismo empregado pela maioria dos teóricos e estudiosos do ciberespaço, se essas escolhas não seriam feitas com a perda da capacidade de avaliação das dinâmicas sociais mais amplas, de modo que elas, muitas vezes, não se dão no sentido de criticar e/ou recusar o mundo existente, mas de aprofundar-se nele, incorporando seus pressupostos teóricos e práticos, inconscientemente. Há que se levar em conta, ainda, até que ponto é mesmo possível falar em liberdade de escolha em um mundo em que as possibilidades de escolha já estão postas. (PERUCHI, 2014)

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O que cativa é a personalização da experiência de consumo. Nas redes sociais, os algoritmos trabalham vinte e quatro por dia para oferecer uma experiência de navegação baseada nos interesses do usuário. No entanto, se o que foi exibido hoje é baseado no que foi consumido ontem, o que será exibido amanhã não fugirá muito do que já foi visto hoje, e assim sucessivamente. Mesmo quando um conteúdo “novo” emerge no feed de notícias, este foi selecionado conforme um modus operandi que privilegia certos dados em detrimento de outros, tendo como base critérios bastante tendenciosos. Cabe a nós questionar: esses critérios de seleção estão a serviço de quais sistemas e corporações? O que constitui o que nunca é visto? Quais imagens e palavras estão me orbitando hoje? Esses conteúdos conduzem o meu desejo para um lugar já conhecido? Se a internet, atualmente, parece ser mais uma ferramenta a favor dos interesses hegemônicos, o que a diferencia das mídias de massa oriundas do séc. XX? Bom, não é surpresa para ninguém que, qualquer que venha a ser o meio de comunicação midiático emergente, este, em algum momento, será interpelado pelas ambições da indústria cultural e do comércio. À internet, contudo, resta um princípio de funcionamento anárquico e caótico que a mantém próxima de seus usuários.

Disponível em: <https://open.spotify.com/episode/3dHxZtJnuuAb8ZT0QZgAQU? si=Eo97b0rySl6p1s2IV0m14g>

O ciberespaço passa a ser o lugar onde os temas da mídia reverberam; o lugar onde nascem as comunidades e onde o universo de identificação da cultura popular ganha força. A internet permitiu que projetássemos nossos pensamentos para além dos horizontes pessoais, formando, assim, uma espécie de consciência coletiva - ramificada e sujeita a constantes atualizações. Dadas as circunstâncias, nos resta pensar quais são as possibilidades para as encenações que se inspiram na estética das mídias, já que agora o ciberespaço comporta grande parte do discurso e do comportamento midiático.

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Recorrentemente, identificamos em algumas encenações contemporâneas o uso de termos, temas e bordões provenientes da efêmera cultura cibernética. O que ocorre na maioria desses casos, é apenas uma menção a determinados comportamentos, não chegando a configurar completamente o espetáculo, nem definir seu [em breve] destino. Isso porque convivemos tão intensamente com essas estruturas, que chega a ser orgânica a forma introjetada pela qual afetam nosso comportamento, nosso vocabulário e nossas pautas diárias. Em outros casos, como é o da performance “Escapulário” (Belo Horizonte, 2017), a referencialidade ao comportamento inato das redes não se restringe à reprodução viral de falas e temas, mas define, de forma estrutural, a dramaturgia da cena. Criada e executada pel@ performer Bramma Bremmer Guimarães, a cena levanta "questionamentos que remetem ao nosso contexto sócio-político, abordando temáticas que abrangem desde sexualidade e religião, até uma reflexão sobre o próprio fazer artístico”. Em um determinado momento, como plataforma expositiva de questões que acometem a troca afetiva entre homens gays, o ator compartilha com os espectadores o perfil de alguns candidatos do Grindr - aplicativo de encontros voltado para a comunidade LGBT+, com atividade predominante entre o grupo mencionado. As mais diversas características, preferências e restrições revelam os candidatos que são avaliados em tempo real junto à plateia. Observemos que, neste caso, a internet permite atualizações concomitantes às atualizações da própria cena, o que não seria possível caso o ator estivesse avaliando os mesmos perfis numa página de revista, por exemplo. A ela [internet] pertence uma natureza imprevisível que tenciona a performatividade da cena - neste caso, a imprevisibilidade dos perfis que serão avaliados.

Foto: Ninguém Dos Campos | em cena, Bramma Bremmer Guimarães.

Em outros casos, a circulação de temas na internet tem o poder de promover acontecimento importantes, seja na mobilização de milhares de pessoas ao redor do mundo, como na manifestação #BlackLivesMatters, seja como instrumento decisivo na onda de manifestações que tomaram o Oriente Médio e o Sul da África no episódio que ficou conhecido como Primavera Árabe - e em tantos outros acontecimentos que nos circundam. E a partir do momento que esse instrumento tem poder decisivo nas esferas políticas e sociais, ele interessa também ao teatro.

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Disponível em: <encurtador.com.br/sxNX7>

A condição de isolamento social imposta pela atual crise pandêmica (Covid-19) fez com que os profissionais de teatro repensassem os modos de produzir e apresentar seus trabalhos para o público. Passado o período de assimilação dos fatos, o que vimos foi uma rápida tentativa de adaptação ao ambiente virtual por esses profissionais, que, diante da impossibilidade de promover encontros presenciais, foram condicionados a lidar com outras - e desconhecidas - ferramentas em seus processos criativos. Sob essa conjuntura, o diálogo entre o teatro e a linguagem cibernética se tornou ainda mais possível e aproximado. Mas muito antes de cogitarmos sermos surpreendidos por uma pandemia a nível global, a interlocução entre esses dois campos já era alvo de pesquisa de vários grupos e artistas E também, claro, campo de pesquisa no ambiente acadêmico.

Disponível em: <https://open.spotify.com/show/32OXBxjFU0BCbEDUtgCBgd?si=3895c050bbda459d>

Neste processo de adaptação, muito se questionou sobre a vitalidade do teatro perante a ininterrupta produção de conteúdos cênicos para sites e redes sociais. Estaria o teatro, nessas circunstâncias, mais vulnerável às manobras do capitalismo e passível de monetização, descartável? Enquanto alguns se mostraram resistentes à migração para as telas, outros viram nesta uma oportunidade para pensar novos - ou únicos possíveis - modos de operar criativamente. Seguem algumas criações e adaptações elaboradas durante este período:

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'Hoje no Teatro #EmCasaComSesc, Grace Passô apresenta "Frequência 20.20". A performance reúne trechos de espetáculos teatrais que a atriz, dramaturga e diretora escreveu e encenou antes da pandemia: Preto (coautoria com Márcio Abreu e Nadja Naira), Mata Teu Pai e Por Elise." Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=Yf4oVUJVqic&t=8s>

"Por que o Universo se deu ao trabalho de me criar? Esta é a pergunta que se faz a mulher interpretada pela atriz Luciana Paes em seu apartamento durante a quarentena. Para responder, a atriz responsável pelo texto e direção do solo, recorreu a obras de dois dos autores mais importantes no mundo hoje. A primeira é “Breve História de Quase Tudo”, de Bill Bryson, que saiu em busca de respostas sobre o funcionamento do planeta e do universo ao constatar que ignorava o porquê dos oceanos serem salgados e relata a história da origem do universo até os dias de hoje, tratando de assuntos relacionados à ciências como a física e a paleontologia. A outra obra é “Sapiens - Uma Breve História da Humanidade”, de Yuval Noah Harari, que relata a história da evolução do Homo Sapiens." Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=LNHmnrOxKSg>

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"Neste episódio do Desmontagem, o Sesc Pompeia apresenta a obra “Fauna”, idealizada pelo grupo Quatroloscinco. Entre depoimentos e trechos cênicos, o vídeo compartilha o processo de construção do espetáculo homônimo, que esteve em cartaz no Sesc Pompeia em 2019. Fauna é o sexto espetáculo do grupo mineiro, dirigido por Italo Laureano e Rejane Faria, enquanto Marcos Coletta e Assis Benevenuto assinam texto e atuação. Na peça, corpos e discursos se misturam e se confundem para desconstruírem identidades pessoais e coletivas, referenciada pela obra "O circuito dos afetos: corpos políticos, desamparo e fim do indivíduo", do filósofo Vladimir Safatle." Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=seUdK5NUxWw&t=1423s>

"A imagem de um garoto que sofreu traumatismo craniano é o ponto de partida para uma busca pela compreensão do funcionamento do cérebro como forma de dissecar as emoções humanas. Primeira incursão da atriz Mariana Lima como dramaturga, “Cérebro | Coração” é exibida no Teatro #EmCasaComSesc em uma versão gravada durante a pandemia, num contexto de “isolamento parcial, convulsão pessoal e social”, conforme descrição da atriz que também protagoniza o espetáculo-solo." Disponível em: <https://youtu.be/fOte-34083U>

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Foto: Desconhecido (a) | em cena, Julia Bernat e Rodrigo dos Santos

JULIA, de Christiane Jatahy - Sendo uma das maiores referências nacionais na pesquisa em questão, a encenadora Christiane Jatahy chama atenção pela forma majestosa pela qual as narrativas cinematográficas são empregadas no teatro. Em “Julia”, adaptação da obra “Senhorita Júlia”, de August Strindberg, o espectador acompanha a construção de uma dramaturgia ambivalente, que serve tanto à realidade virtual das lentes, quanto à materialidade do palco. O espetáculo conta com a presença de um cameraman para a produção das imagens que são projetadas simultaneamente numa grande tela, ao mesmo tempo em que são editadas ao vivo. É particularmente interessante quando a maquinaria do teatro, e, nesse caso, a do cinema, são expostas, configurando por si só uma espécie de espetáculo, sem perder de vista a história a qual estão a serviço. No âmbito na atuação, o exercício de observar como os atores se desdobravam para servir a esses dois territórios: se por um lado as enormes projeções garantiam a Julia Bernat e Rodrigo dos Santos (atores da peça) uma grandeza épica no teatro, por outro, a sutileza de suas ações também devem ter espaço no olhar íntimo da câmera. Além dos elementos citados, vale ressaltar a forma como a tecnologia, nesse caso, traz uma sofsticação estética/visual ao teatro. "Seus trabalhos desde 2003 dialogam com distintas áreas artísticas. Montou diversas peças que transitam entre as fronteiras da realidade e da ficção, do ator e do personagem, do teatro e do cinema." - Wikipédia Saiba mais sobre Christiane Jatahy em: <https://christianejatahy.com.br/about>

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Foto: Luiza Palhares | em cena, Bramma Bremmer Guimarães.

ECLIPSE SOLAR, de Ricardo Alves Jr. - O trabalho inova em sua pesquisa ao buscar conexões entre o teatro, o cinema e a música, levando a linguagem audiovisual e dos shows musicais também para os palcos de teatro. No início do processo de criação, o desejo era criar uma encenação que combinasse elementos teatrais e cinematográficos, e que se desenhasse num fluxo contínuo, assim como flui o nosso pensamento. A pesquisa partiu do filme “Asas do Desejo”, de Wim Wenders, com o objetivo de mergulhar em sua poética: aquele olhar sobre a cidade desencantada (Berlim, 1988), dividida pelo muro, onde anjos escutam os pensamentos de uma geração a lidar com anseios diante de monumentos destruídos, embalados por uma estética dark. O cineasta Ricardo Alves Jr foi convidado pelo elenco para dirigir a peça com a proposta de realizar uma troca entre cinema e teatro, em uma criação híbrida. Assim, a ação acontece de forma simultânea, com o público podendo acompanhar tanto as atuações no palco, quanto na tela. Entendeu-se que a materialização de uma atuação potencialmente afetiva é alcançada pelo trabalho no instante, no aqui e agora, na correlação entre corpo, emoção e intelecto com o espaço, o tempo, com o outro, com a palavra, com o movimento, a câmera e a musicalidade. Uma obra artística com reconhecida excelência técnica e artística, além de radicalidade em sua pesquisa de linguagem, sendo construída a várias mãos por artistas com diferentes vivências (mulheres, homens, negrxs e latinxs, LGBTQIs), no diálogo de seus olhares diversos, críticos e poéticos. "Ricardo Alves Jr., nascido em 1982 em Belo Horizonte, é cineasta, produtor e diretor de teatro. Começou dirigindo curtas-metragens que foram exibidos e ganharam prêmios em vários festivais internacionais, entre eles Semana da Critica do festival de Cannes, Berlinale, Locarno e Rotterdam." - Embaúba Filmes Saiba mais sobre Ricardo Alves Jr. em: <https://entrefilmes.com.br>

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Através do diálogo e da presença é possível criar novos caminhos para repensar tudo aquilo é visto como realidade, e é neste espaço de criação que pode estar um mundo que imaginamos mais ético e íntegro. Pensar um teatro performativo é pensar também quais novos mundos podem ser propostos para nossa sociedade. Nesta revista cinco pesquisadores e pesquisadoras se propõem a debater como essas novas realidades podem ser criadas pelo viés do performativo no teatro. A proposta aqui é mostrar caminhos sem intenção de definir algo.


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