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Douglas Mattos
from J3 NEWS EDIÇÃO 334
by terceiravia
Douglas Mattos, tem 37 anos, é casado há 15, tem dois filhos (um menino de 7 anos eoutro de 1 ano), nasceu e continua morando em Petrópolis, cidade na região serrana do estado do Rio de Janeiro. Douglas recebeu este jornalista para uma entrevista e conta a sua trajetória e drama por ser portador de paralisia cerebral:

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Douglas, você possui uma anomalia, relata para mim?
Eu tenho paralisia cerebral, o que afeta a minha parte motora, a minha locomoção, os movimentos das pernas e desencadeia também em movimentos involuntários, que eram bem maiores quando criança, mas agora são mais controlados.
Quando a paralisia cerebral se manifestou?
É de nascença. Os meus pais descobriram quando eu tinha um pouco mais de 1 ano, antes dos 2 anos de idade.
Como foi o seu início na escola?
Quando tive que começar a estudar, ninguém queria receber o Douglas na escola, foi uma dificuldade conseguir uma que abraçasse a minha causa. Depois de diversas tentativas, uma escola acabou me aceitando, fui o primeiro deficiente a estudar nela.
Sofreu preconceitos?
Sim, vários. Sentia que algumas crianças me tratavam com indiferenças, sentia restrições para ir a determinados lugares, não participava de eventos...
Quando você aprendeu a andar?
Já era grandinho, foi quando mudei de escola, pois na qual eu comecei não tinha o 6º ano.
Neste momentoeu me motivei para aprender a andar. Aprendi andando na minha casa, indo da sala à cozinha e voltando, várias vezes. Sempre fiz fisioterapia, é muito importante para a questão motora, para a questão da locomoção. Sempre tive muita força de vontade de querer fazer as coisas, de ser independente. Não tem explicação o sentimento da pessoa de dar o primeiro passo. É muito legal, é uma sensação de liberdade que a pessoa conquista.
Qual foi a importância da família no seu processo de desenvolvimento?
A minha família foi muito importante para me estimular, para o meu desenvolvimento. Não é fácil, é muito difícil. É o dia a dia. Você tem que lutar. Todas as conquistas que tive na minha trajetória, na vida, eu agradeço à minha família. Ela nunca desistiu ou desanimou, sempre acreditou no meu progresso, no meu desenvolvimento e potencial. Nesta trajetória da vida, conquistei a minha autonomia, de ir à academia para fazer musculação, de ir à fisioterapia sozinho, antes, quando criança, eu era dependente de tudo, eu nem andava. Hoje, sou casado, tenho dois filhos, constituí uma família, o que ninguém acreditava que isso um dia poderia acontecer.Também tenho alguns amigos, poucos é verdade, alguns desde criança, que sempre me impulsionaram para cima.
Você é habilitado para dirigir automóveis, como foi este processo?
Na época, conversei com o meu pai para que eu pudesse ter mais autonomia e ser menos dependente, com a aprovação dele, resolvi tirar a carteira de habilitação. Fiz autoescola e passei na prova de trânsito. Hoje, sou o primeiro deficiente no Brasil que tem paralisia cerebral e não tem observação ou restrição na carteira de habilitação. Fiz a perícia no Detran e fui aprovado, não precisando de nenhum tipo de adaptação no carro.Sempre dirigi carro manual. Hoje, já tem mais de 15 anos que sou habilitado.
Você chegou a fazer faculdade?
Sim, em 2005 me formei em Analista de Sistema, com ênfase em Sistema de Informação. Depois fiz alguns cursos, como Analista de Suporte e Rede de Computação, este no Senai.
Como foi o seu primeiro emprego?
Consegui o meu primeiro emprego na área de telecomunicações. Foi em uma grande empresa, multinacional, com base aqui na minha cidade, em Petrópolis. Trabalhei lá por 18 anos.
Em 2016 você desenvolveu o aplicativo BioMob, qual é a função dele?
Juntos com mais dois amigos, desenvolvi o BioMob, que é um aplicativo que tem como função trazer informações sobre lugares na cidade de Petrópolis acessíveis para pessoas com deficiência, como: restaurantes, bares, praças, supermercados, lojas, banheiros... Inclusive locais, em tempo real, com vagas livres para deficientes. Também temos balcão de emprego com vagas para pessoas com deficiência. Hoje o aplicativo tem mais de vinte mil usuários. Você já teve reconhecimento por causa do aplicativo?
Sim, pela Prefeitura e pela Câmara dos Vereadores de Petrópolis.Em 2019, ganhei o Prêmio Empresarial do Ano. Como surgiu o seu gosto por carro e pelo automobilismo? Sempre gostei de carro, sempre gostei de automobilismo. O meu avô me incentivava muito, ele era mecânico de automóveis. O meu primeiro carro, eu o tenho até hoje, é uma Brasília. Em relação ao automobilismo, a minha paixão começou com Ayrton Senna nos anos 80, ele foi um exemplo como pessoa, como ser humano,senti muito por perdê-lo, ele foi o meu maior motivador, pois a minha vida foi sempre uma superação a cada dia, provando para mim e para os outros que eu podia, que eu conseguiria, que eu iria chegar lá, como Ayrton Senna sempre afirmava.
Quais foram os seus piores conflitos internos devido à deficiência?
Eu não tinha oportunidade na minha vida e nem tempo para fazer o que eu gostava, porque eu tinha um preconceito muito grande da minha deficiência, eu não aceitava, queria viver a minha vida a mais normal possível, fazendo as coisas normais, trabalhando de forma normal e vivendo num ciclo de um mundo normal. Mas aí pensei: cara, eu tenho deficiência, ela está comigo, vou ter que levá-la para o resto da minha vida, só me resta aceitá-la. Aí eu comecei a dar mais prioridade à minha vida profissional do que à minha família e ao que eu gostava, que era o automobilismo. Comecei a pensar que, devido à minha deficiência, eu nunca poderia ser um piloto, um engenheiro e, que teria que usar a tecnologia para suprir a minha necessidade. Vi que eu estava num ciclo de trabalho-casa-trabalho. Família só nos finais de semana. Querendo que estes chegassem logo para eu poder me esconder. A gente não consegue viver assim, eu trabalhava de 12 a 13 horas por dia, até era bem remunerado, mas vi que ali eu não estava feliz. Chegou um ponto que eu entrei em depressão, comecei a fazer tratamento e decidi parar tudo, começar do zero. Não adianta a gente viver uma vida que não é àquela que a gente quer para a gente. A gente só tem uma vida!
Como você iniciou no automobilismo?
Assim redescobri a minha vida, pois sempre gostei do automobilismo, tenho um kart, sempre gostei da preparação, sempre gostei de motor a ar, tenho três Volkswagen antigos a ar, que cuido com o maior zelo, saio nos finais de semana com eles. No trabalho antigo eu não fazia por amor, como o meu maior ídolo (Ayrton Senna) falava, eu fazia por dinheiro.Descobri que o meu maior desejo era entrar no mundo do automobilismo. Assim, resolvi procurar a pessoa neste mundo mais perto de mim, procurei o Sr. Andreas Mattheis (dono da AMattheisMotorsport, equipe da Stock Car), aqui de Petrópolis. Cheguei para ele e fiz um pedido: Quero conhecer a equipe, quero fazer parte da equipe, quero fazer uma corrida com vocês e tentar ficar neste meio com vocês. Ele perguntou quanto que eu queria ganhar em troca. Falei para ele que nada, que eu queria apenas aprender, a ter o conhecimento. Ele abraçou a causa e eu fui. Hoje, estou treinando de kart, já consegui patrocínios, já sou piloto filiado à FAERJ - Federação de Automobilismo do Estado do
Rio de Janeiro,sou o primeiro do Brasil a ter esta deficiência a correr de kart em provas. Quero participar de alguns campeonatos, não pensando em vitória, mas para me capacitar para daqui um tempo correr na categoria de Turismo, como a Stock Car. Quando eu estou no carro, eu me concentro, esqueço a minha deficiência, a velocidade me dá um poder mágico, uma sensação incrível. No automobilismo, quero ser exemplo para outras pessoas que possuem deficiência também. Na vida, quero ser exemplo para os meus filhos, de fazer o que a gente gosta, de amar o nosso trabalho.
Hoje, como adulto, você ainda sofre preconceito?
Ser deficiente, além das limitações, é muito difícil, a gente não é respeitado, nem nas redes sociais.Ninguém respeita vagas para deficientes, sofremos preconceitos por todos os lados, temos que estar sempre provando a nossa deficiência a todo o momento para todo o Brasil, tanto por laudo como por uma série de exigências, para termos garantia dos nossos direitos.
Qual é o seu sonho?
Correr neste ano todo o campeonato carioca, o campeonato brasileiro e outros torneios importantes de kart. Um dia, quem sabe, correr na Stock Car. Também tenho o sonho de conhecer o Instituto Ayrton Senna e a Viviane Senna, pois como não conheci o Ayrton, a minha maior inspiração de vida, quero pelo menos conhecer a sua irmã, por quem também tenho uma grande admiração. Seria um sonho.


Uma mensagem?
Faça o que você quer e não o que a sociedade quer que você faça. Ouça a sua voz interior, não o que te dizem. Trabalhe naquilo que você ama. Você só tem uma vida. Todos nós conseguimos tudo, com determinação, força de vontade e tendo caráter. Estas três coisas são indispensáveis na vida das pessoas.