O ser humano apresenta múltiplas facetas, sendo que todas contribuem para a construção de um todo que, geralmente, é a definição mais prosaica do conteúdo de cada um de nós. Não somos unicamente o que somos, o nosso conteúdo abrange também tudo aquilo que, por algum ou vários motivos, não somos – somos o não gostar de café e o só gostar de café às dez e um quatro, em chávena de plástico, por favor, vou agora para o átrio e depois é uma chatice. Somos, com frequência, mais o que nos aterroriza do que o que nos inspira. Somos mais os dias frios e longos do que as tardes de verão. Somos e não somos um vasto leque de coisas, em várias circunstâncias. Somos as duas da tarde e as duas da manha. E sabemos sempre quando sê-lo. Porém, despidos de máscaras e de horários, banho por tomar e a cafeteira estragada, quem somos, na realidade? A quem nos vendemos sem dar luta? Às duas da manha ou às duas da tarde? Efetivamente, às duas da tarde e com uns bons cafés e cinco despertadores adiados em cima, somos seres em transição – não gostamos de algo porque são duas da tarde e está a acontecer. Somos seres em projeto. Somos e não somos porque a vida está na sua hora favorita e a realidade existe e sente-se: são duas da tarde e tudo pode acontecer, os nossos sonhos estão em prática, porém, sempre sujeitos às circunstâncias – não queremos massa ao almoço porque é a única coisa que há e a empregada não veio hoje, está mau tempo e não somos o que fomos ontem porque o sol não nos sorri. São duas da tarde, a maldita chuva parece durar para sempre e o telefone sempre, sempre sem bateria. Às duas da tarde gostamos porque gostamos e não gostamos porque não gostamos e acabou. Sem motivos – são duas da tarde e estamos demasiado ocupados para raciocinar logicamente. Sim porque sim e não porque não – e não há nada tão encantador: o ser humano na hora de ponta da sua construção emocional e psicológica. Às duas da tarde somos uma luta constante entre todas as personalidades de habitam em nós – travam guerras a troco de nada. Fazem de nós verdadeiros campos de batalha. Às duas da tarde somos as nossas boas e más ações. Somos casos práticos – somos, existimos, sentimos dor e angustia. Dói porque está a acontecer e está a acontecer porque são duas da tarde e a vida é um carrossel. Noutra perspetiva, às duas da manha somos os nossos verdadeiros, e por esse motivo piores, inimigos – somos tudo o que deveríamos ter sido e as duas da tarde não o permitiram. Não somos somente as duas da manha, somos as três da manha, as quatro, as sete e até onde os sonhos se prolongam. Somos livros por abrir empilhados na secretaria, somos o que ficou por fazer e por dizer. Somos o que foi dito e não pode ser retirado, as nossas más e boas escolhas. Somos os casamentos que acabaram e os filhos que são a lembrança disso. Somos, e é as duas da manha que o mostramos, as feridas por lamber e as cicatrizes que parecem mais visíveis a essa hora. Somos o dia com horas a mais e tempo a menos. Encarnamos os nossos monstros – somos e estamos na nossa plenitude. Somos verdadeiras agendas – planeamos viagens, carreiras de sucesso, somos assolados por uma repentina necessidade, que raramente se concretiza, de resolver todos os assuntos pendentes da nossa existência fácil e simples: despachar os papéis da mesa, encerrar amores que nos consumiram, dizer aos nossos país o que
realmente sentimos e enterrar, sem cerimónias nem piedade, tudo o que nos atormenta e viola a alma. Às duas da manha somos as crianças que sobreviveram aos adultos e ao mundo, somos os gatinhos assustados com medo da caixa de adopção – tudo é possível pois são duas da manha e a realidade picou o dedo na roca amaldiçoada e parece adormecida. São duas da manha, é de noite e a noite é dos artistas, dos apaixonados e dos que são sozinhos. Como se os que amam não estivessem sozinhos… São as duas da tarde que fazem as duas da manha. Somos seres mutáveis mas honestos – às duas da manha somos o resultado da sequência de acontecimentos à qual chamamos vida, somos o que resta das guerras emocionais que travamos e dos jogos psicológicos que alimentamos. Às duas da manha, somos o que realmente existe em nós – o que sobra do papel que desempenhamos na vida, o que resta do que gostávamos de ser mas não somos. Somos as partes de nós que resistiram à vida que levamos e, por esse motivo, somos, inexplicavelmente, danificados. Porém, inteiros.