TERESA MARIA SIEWERDT
PAISAGEM EM ANA MENDIETA: DISTÂNCIA, FISSURA E VESTÍGIO.
FLORIANÓPOLIS 2007
TERESA MARIA SIEWERDT
PAISAGEM EM ANA MENDIETA: DISTÂNCIA, FISSURA E VESTÍGIO.
FLORIANÓPOLIS 2007
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UNIVERSIDADE DO ESTADO DE SANTA CATARINA – UDESC CENTRO DE ARTES – CEART DEPARTAMENTO DE ARTES PLÁSTICAS CURSO: BACHARELADO EM ARTES PLÁSTICAS
TERESA MARIA SIEWERDT
PAISAGEM EM ANA MENDIETA: DISTÂNCIA, FISSURA E VESTÍGIO.
Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Departamento de Artes Plásticas do Centro de Artes da Universidade do Estado de Santa Catarina. Acadêmica: Teresa Maria Siewerdt Orientador:Professora Dra Rosângela Cherem.
FLORIANÓPOLIS-SC
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TERESA MARIA SIEWERDT
PAISAGEM EM ANA MENDIETA: DISTÂNCIA, FISSURA E VESTÍGIO.
Este trabalho de Conclusão de Curso foi julgado adequado e aprovado em sua forma final como requisito parcial para obtenção do grau de Bacharel em Artes Plásticas da Universidade do Estado de Santa Catarina.
Apresentado à Banca Examinadora integrada pelas professoras:
____________________________________________________________ Rosângela Cherem Orientadora
____________________________________________________________ Anita Koneski Membro ____________________________________________________________ Nara Milioli Membro
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Em memória de Maíra Silveira, que o silencio infinito se abra para acolhê-la.
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AGRADECIMENTOS
Agradeço à minha mãe Lia pela literatura e por sempre me abrigar em seus jardins tão lindos quanto vertiginosos; ao pai César, por haver despertado em mim a paixão pela arte e nunca me abandonar; ao pai Mauricio pelas conversas profundas. Agradeço à professora e orientadora Rosângela Cherem, por sua contribuição e paciência. Ao companheiro Pedro, seu apoio e ternura que tanto me ajudaram a enfrentar momentos difíceis. A todos os professores que me abriram tantas mais possibilidades de pensar o mundo, especialmente à Regina Melin e à Raquel Stolf. Meus amigos e parceiros de reflexão e afeto, Priscila Zaccaron, Dennis Radünz, Gustavo Meneguin, Leandro Vidal, Mariana Fonseca, Álvaro Diaz, Antonio Cabanillas e tantos outros.
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Rose, oh reiner Widerspruch, Lust, Niemandes Schlaf zu sein unter soviel Lindern Rosa, ó pura contradição, alegria de não ser o sono de ninguém sob tantas pálpebras
Raine Maria Rilke
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SUMÁRIO INTRODUÇÃO ........................................................................................................................... 10 1
INSTANTE: DISTÂNCIA.................................................................................................. 15 1.1 Arcádia................................................................................................................................. 17 1.2 Locus Amoenus. .................................................................................................................. 22 1.3 Propagações. ........................................................................................................................ 28
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INSTANTE: FISSURA ....................................................................................................... 34 2.1 Abismo ................................................................................................................................ 34 2.2 Exterioridade. ...................................................................................................................... 39 2.3 Vertigem .............................................................................................................................. 46
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INSTANTE: VESTÍGIO..................................................................................................... 49 3.1 O molde e o vazado. ............................................................................................................ 50 3.2 Grutas e fendas. ................................................................................................................... 54 3.3 Teleplastia............................................................................................................................ 61
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REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICAS................................................................................. 69
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LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Figura 1 - Ana Mendieta. Silueta, Iowa, 1973. Figura 2 – Nicolas Poussin. Les Bergers d'Arcadie. Museu do Louvre, Paris. 1638-40. Figura 3 – Ana Mendieta. On givin life. Gallery lelong, New York. 1975. Figura 4 – Ana Mendieta. On givin life. Gallery lelong, New York. 1975. Figura 5 – Ana Mendieta. Sem Título, Série Siluetas. Silueta de hierba y flores. Iowa, 1978. Figura 6 – Ana Mendieta. Sem título. Série siluetas: silueta de hierbas y flores amarillas. Iowa, 1979. Figura 7 – Ana Mendieta. Sem título. Série Siluetas, silueta de musgo sobre roca. Iowa, 1979. Figura 8– Ana Mendieta. Flowers on body. El Yagul, Oaxaca, México, 1973. Figura 9 – Caspar David Friedrich, mulher a beira do abismo, 1803. Figura 10 – Ana Mendieta. Rape Scene, 1973. Figura 11 – Rahotep e Nofret. Escultura egípcia, 2575-2467 AC. Museu do Cairo, Egito. Figura 12 – Giovanni Bellini. Crucificação, óleo sobre tela, 1465. Louvre, Paris. Figura 13 – Caspar David Friedrich. Frau vor untergehender sonne, 1818. Figura 14 – Ana Mendieta. Sem titulo. Série Siluetas, silueta de tierra y hierba. Iowa, 1978. Figura 15 – Ana Mendieta. Sem titulo: serie siluetas, silueta de hierba. Iowa, 1978. Figura 16 – Ana Mendieta. Cueva del Águila, Parque Jaruco, La Habana. 1981. Figura 17 – Ana Mendieta, Guanaroca (Primeira mulher), Cueva del Águila, Parque Jaruco, La Habana, 1981. Figura 18 – Gustave Coubert. L´origine du Monde.1866. Figura 19 – Gustave Coubert. La grotte de Source. 1864. Figura 20 – Giovanni Bellini. São Jerônimo no deserto. 1480-87 Figura 21 – Caspar David Friedrich, Das Friedhofstor, 1825. Figura 22 – Caspar David Friedrich, Friedhofseingang, 1825. Figura 23 –Caspar David Friedrich, Friedhof im Schnee, 1826. Figura 24 – Ana Mendieta. Sem titulo. Série arbol de la vida. Old Man`s Creek, Iowa, 1979. Figura 25 – Ana Mendieta. Sem título. Série arbol de la vida. Old`s Man`s Creek, Iowa, 1977. Figura 26 – Genius loci e Lares. Afresco, Pompéia. 60-79.D.C Figura 27 – Genius loci e Lares. Afresco, Pompéia. National Archaeological Museum. 100.D.C. Figura 28 E 29 – Sacro Bosco –Villa Orsini, Bomarzo, Italia. 1552. 8
RESUMO
O presente trabalho busca explorar a partir da obra plástica da artista Ana Mendieta a questão da aparição do corpo na paisagem, compreendendo a paisagem como exterioridade com a qual estabelecem-se relações que oscilam entre distância e proximidade, presença e ausência, morte e erotismo, intimidade e inacessibilidade. Os três capítulos que compõem este trabalho abordam esta questão em forma de instantes, sendo eles o instante da distância, o da fissura e por último o do vestígio.
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INTRODUÇÃO O termo ou o conceito de paisagem desenvolveu-se na Europa por volta do século XVI, originalmente na Holanda, mas não se generalizou na linguagem cotidiana até o século XVIII, quando a jardinagem e a pintura tornam-se paisagistas. No momento em que a paisagem deixa de ser apenas fundo, sendo lançada para frente até assumir o primeiro plano, a presença da figura humana já não mais é considerada necessária para que se lhe atribua valor à pintura. Este momento coincide com o sucessivo interesse pela reflexão a respeito da exterioridade do mundo no pensamento estético, como por exemplo, nas Indagações filosóficas sobre a origem das idéias do sublime e do belo de Edmund Burke, nas quais a natureza aparece como potência capaz de suscitar os mais variados sentimentos. Seguindo este raciocínio, a arte dota a paisagem de caráter e animosidade, mostrando estados emocionais possíveis de serem representados pelas forças da natureza: vulcões, abismos, tempestades, a superfície do mar encarnando sentimentos de terror, vertigem, solidão, medo. Espécie de combinação do corpo humano com a vastidão da natureza, paisagem interior referente tanto ao sentimento quanto ao pensamento, “o artista de hoje recebe da paisagem a linguagem para suas confissões”1, escreve Rilke em um breve texto sobre a paisagem. Com esta leitura entrevê-se a importância que este gênero chega a possuir, ao oferecer a possibilidade de encarnar precisamente o mais íntimo e próprio do indivíduo. Paisagem e retrato, as duas formas da modernidade, a dissolução do ser na paisagem, como resultado de um conjunto de relações e de distâncias entre um e outro. Sendo então associada a um tipo de pintura no qual o mundo natural se situava em relação à interioridade daquele que olha e à exterioridade daquilo que é olhado, a paisagem, em tempos de valorização da arte, prolifera em impressos e através da circulação de mapas. Quando os filhos de Adão começavam a se expandir para além da distância entre o paraíso e o inferno, criando e desdobrando o mundo que lhes fora destinado e reconhecendo-se como empreendedores da vida terrena, engendrava-se uma nova noção do espaço. Dos corpos celestes ao globo terrestre, incluindo o mundo das jóias e adornos, a noção de paisagem associava-se ao esforço em que o caótico e o irrepresentável do universo eram domados pelo enquadramento. 1
CASTRO, Fernando; COPON, Miguel. Paisajes en ninguna parte. Revista del occidente, Madrid, n. 189, p. 49. 10
Emergindo do fundo dos retábulos e afrescos, destacava-se uma temática pictórica associada ao vocábulo latino mundi, considerada como um ponto de vista, cuja perspectiva era alcançada pelo olho humano. Bem verdade que tal compreensão era concomitante à valorização de novos objetos apreciados e acumulados como parte dos relicários profanos e coleções modernas, estando revestidos de elevado investimento afetivo e científico. Assim, implicando novas e dessacralizadas geografias que iam do cósmico ao doméstico e do longínquo ao íntimo, uma nova atribuição espacial despontava associando-se aquilo que, sendo mais humano que divino, podia ser pilhado e empilhado pelo olhar ou registrado e abarcado pela imaginação artística. A natureza exterior se transforma em paisagem somente quando é percebida por um expectador enquanto tal, passando por uma relação de interioridade que confere a um fragmento selecionado certa unidade. Nesta relação a paisagem é capaz de transmitir ao espectador diferentes estados de ânimo. A experiência da emoção ao contemplar-se um território e dele desvelar algum mistério. Mas, ainda a apreciação do entorno depende em grande medida da sensibilidade de cada pessoa, dos mecanismos de percepção assim como de categorias culturais de interpretação, da mesma forma não se pode negar que o espaço atinge e afeta a cada um de maneira diferente, escapando e indo além a lógicas que o possam definir e delimitar de maneira única. Desse modo, o tema geral deste trabalho trata do espaço como exterioridade que se apresenta como paisagem de um jardim e sua interação com o corpo na produção artística de Mendieta. Também gira em torno do problema do ser na exterioridade do mundo, o sentido oculto e abismal entre as coisas, as passagens secretas e as fendas obscuras que a arte é capaz de mostrar. Os três capítulos que compõem esta monografia, denominados por uma licença poética como instantes, apresentam-se como uma refração de tais questões. Constituem também como uma espécie de deslizamento através dos diversos sentidos da ausência e da presença do corpo na paisagem nos trabalhos fotográficos de Ana Mendieta. Nascida em Cuba em 1948 e morrendo prematuramente em 1985, Mendieta logrou de forma única unir o sentimento mais íntimo sobre a angustia da morte e da desaparição, assim como o da fecundidade e da vida através de suas experiências na paisagem. Em sua obra está presente tanto a abordagem da presença quanto a da
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ausência no espaço, o estar próximo e simultaneamente distante de algo, quando olhar para fora é manter-se diante de si mesmo, uma espécie de limitação da qual não é possível separar-se. A artista parece volta-se para o inacessível da exterioridade ao cultivar na paisagem a intimidade de sua forma com o fora, seu trabalho na paisagem propõe uma espécie de interiorização do espaço exterior. Essa interiorização não deixa de ser um movimento de despossessão tanto do volume carnal quanto espiritual do ser que os contornos esvaziados presentes em sua obra deixam escapar, a abertura do vazio parece ser o ponto de interseção entre o fora e o dentro. Assim, no primeiro capitulo - instante, a questão da distância decorre da relação de descontinuidade entre o corpo e o espaço. No primeiro item o tema da Arcádia encontra na arte o lugar privilegiado para se pensar o jogo paradoxal entre o jardim e o caos, bem como a presença da ausência fantasmática na paisagem. O Lócus amoenus, por sua vez evoca a paisagem em relação com a morte e o erotismo. E por fim a distância entre o corpo e a terra, o lugar das proliferações por onde o vazio retorna e é cultivado como jardim. No segundo capitulo – instante chamado de fissura, desdobra-se a questão da derradeira queda corporal sobre um determinado lugar. A paisagem exalta o mistério que se abre pela imagem do corpo abandonado, sem consciência e furtado pela morte, nada há para ver e nem para dizer, o que resta é o abismo, ou seja, o espaço onde o corpo se ausenta e se torna um oco que desafia o olhar. Questão que por sua vez, desdobra-se como exterioridade, uma vez que a queda do corpo leva consigo a dimensão do destino que, inapreensível, sempre nos escapa. Eis a vertigem provocada pela ausência e que corresponde ao irrepresentável. E por último, o terceiro capitulo – instante intitulado vestígio, quando o sentido da obra repousa na ausência que ela suscita. O vestígio mostra esse mundo enigmático do oculto na obra de arte. Assim são desdobrados três problemas a partir desta compleição: A questão da ausência como uma relação entre o Molde e o Vazado, a questão do ocultamento de algo que permanece recôndito nas Grutas e Fendas e, por fim, a questão do que sobrevive na forma que se altera: teleplastia. A escolha geral do conjunto de imagens incide sobre a concepção “deleuziana” de diferença como repetição, encontrando diante das repetições a possibilidade de extrair delas pequenas diferenças, variantes e modificações. Inversamente, também são encontradas repetições secretas, disfarçadas e ocultas. Deleuze ao tratar o conceito como o objeto de um encontro
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particular e único, que sempre se apresenta deslocado do aqui – agora, afirma, “Eu faço, refaço e desfaço meus conceitos a partir de um horizonte movente, de um centro sempre descentrado, de uma periferia sempre deslocada que os repete e os diferencia.”2 A leitura das imagens encontra também uma interlocução bastante próxima com Blanchot, no que diz respeito a experiência artística frente a estranheza e o fascínio pelo espaço da morte explorados em sua obra A conversa infinita, a palavra plural, a partir do qual a concepção de fora ligada com a impossibilidade, o neutro, a negação e o imaginário, são clave para a reflexão que trata da relação entre o corpo e o exterior da paisagem nas fotografias de Ana Mendieta, tanto como em seu outro livro O espaço Literário, ao retratar a experiência poética no momento em que nos retira do mundo e nos coloca novamente nele. Bataille comparece para se pensar a distância que vive entre um ser e outro, nesse sentido seu livro O Erotismo ao abordar a passagem da vida á morte associados pelo erotismo coloca em questão a descontinuidade abismal que separa os seres e as coisas. Há ainda uma aproximação com o texto de Didi Huberman, O que vemos, O que nos olha, que parte da premissa de que a obra de arte é um paradoxo, havendo sempre algo que está explícito e algo que, embora presente, não é visto por nós. Tal pensamento mostra-se essencial por levantar a dialética do visível e do invisível na obra de arte. De um modo geral foram se intercalando afinidades e singularidades na leitura das imagens, procurando circunstâncias nas quais a sobrevivência das formas se descobre como fragmento-persistência tanto daquilo que antecede como também sucede ao vivente, revelando-se através de um jogo de casualidade que se infiltra para confrontar a própria existência através dos indícios por ela deixados e que a ela remetem. Imagens que quando pensadas assinalam a evidência do mundo como um enigma do inapreensível, matéria da qual a arte se constitui e que jamais cessa de se reformular e retornar. Ironia sobre a verdade imparcial, a leitura que aqui foi feita admite a opacidade ou as zonas onde o chão escapa na obra, procurando os sons que voltam da obscuridade como uma inquietante e longínqua aparição, problematizando aquilo que funda e solapa o fenômeno do olhar. Daí decorre a noção de sintoma como algo que interroga a imagem em sua relação com o tempo e interrompe o fluxo regular das coisas, destacando-se como uma latência que recusa submissão à clave meramente biográfica e cronológica. Tal questão, por sua 2
DELEUZE, G. Diferença e Repetição. Disponível em: <http://netart.incubadora.fapesp.br/portal/Members/tete/DifRep.doc> Acesso em 20/11/2007. p.9. 13
vez, remete à constante apropriação de tempos descontínuos e heterogêneos. É quando o pensamento artístico se afirma pelo anacronismo, tornando-se adverso aos procedimentos iconológicos e historicistas, enquanto reconhece a figuração como algo que recusa a ilustração, buscando o fundo a que as figuras enviam o olhar3. Esta pesquisa não é acabada, a obra segue aberta e solitária, permanecendo como espaço aberto ao qual se pode regressar infinitamente, de modo que se encontra em sua intimidade sempre algo errante do lado de fora. Entre o poder e a impossibilidade, entre a decisão e a indecisão que é o diálogo com a obra de arte.
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DIDI-HUBERMAN. Ante el tiempo. Buenos Aires: Adriana Hidalgo editora, 2006, p. 12 e seg. 14
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INSTANTE: DISTÂNCIA
“Entre um ser e outro há um abismo, uma descontinuidade”.4
A pupila permite ao olho adaptar a distância focal para tornar preciso o enfoque do plano que se deseja observar. Assim, quando o olhar se dirige a um objeto muito próximo, aquilo que se encontra ao fundo torna-se embaçado e, vice e versa, quando se contempla o que está distante. Há sempre um ponto remoto, lugar que não é possível ver claramente, algo que se torna difuso. Este fenômeno fisiológico, conhecido desde a antiguidade, foi assimilado pelos pintores do Renascimento, que ao destacarem os contornos ou formas daquilo sobre o que trataria o tema do quadro, tratavam de desenfocar sutilmente o espaço situado ao fundo, concebendo-o como na qualidade de cenário próprio para ressaltar a narrativa. Na metade do século XVI, não havia ainda uma palavra específica que servisse para mencionar os fragmentos paisagísticos que apareciam num quadro, esses espaços recebiam o nome de “fundos”, ou distâncias. Com estes termos, resolvia-se na pintura o problema de nomear tais fragmentos pictóricos, que não necessariamente eram executados pelos mestres. A experiência da paisagem brota de um espaço vivenciado que se adere ao olhar e relaciona-se ao corpo através dos sentidos e do movimento, dado o posicionamento, a paisagem forma-se através de distâncias, que, por sua vez, ajudam a orientar o corpo no espaço e a observar as diferentes relações entre o que está próximo e longe. Tanto o termo pais quanto o termo paisagem surgiram, de certa forma, da comparação entre lugares, da constatação de diferenças visuais e também da saudade da terra que é deixada para trás. Curiosa distância física que abarca o termo, como se para definir a existência de um lugar e sua imagem, fosse necessário recorrer à lembrança, a algo distante. A existência do mundo a ser resgatado pelos sentidos precisa ser rememorada pelo pensamento através de uma fotografia, um poema, um desenho ou pintura. A experiência do olhar tornou-se trágica no Romantismo, porque os artistas ao dirigirem sua atenção à paisagem já não mais sustentavam o privilégio do sujeito da visão e do 4
Bataille. Georges. O erotismo. Porto Alegre: L&PM, 1987.p. 12. 15
conhecimento utilizado no Renascimento. O mundo torna-se desafiante e ameaça destruir a plenitude de pensamento e dos corpos, estas sensações eram proporcionadas pelo olhar da contemplação, quanto mais o sujeito se adere ao espaço e toma consciência de sua fragilidade mais imóvel permanece. O mundo devolve-lhe o olhar. A paisagem possui algo de assombroso, a contemplação produz no corpo um efeito de congelamento da mobilidade, resta ao pensamento deslocar-se com o desejo de alcançar a profundidade do mundo. No entanto, ao procurar aprofundar-se no incomensurável, o sujeito encontra algo de perturbador na inacessibilidade do que se lhe apresenta indecifrável, o mundo e ele próprio tornam-se misteriosos. O destino da morte refugia-se na paisagem e, se a paisagem está no olho, portanto, o olho também está na paisagem. Àqueles que se integram também haverão de sentir a desintegração. Neste capítulo são abordadas três series fotográficas de Ana Mendieta que remetem a questão da distância como uma descontinuidade. Assim a Arcádia como um lugar privilegiado da arte permite pensar o jogo paradoxal entre o jardim e o caos, bem como a ausência da presença fantasmática na paisagem. Em relação ao Lócus amoenus, contrapondo-se ao lócus horribilis, o lugar da morte e do terrífico, é suavizado como cenário erótico. Esta questão se desdobra para depois da fecundação da semente, é quando o corpo humano se desintegra no ambiente permitindo que outra coisa brote e floresça em seu lugar. Eis a distância entre o corpo e aterra, o lugar das proliferações por onde o vazio retorna e é cultivado como jardim.
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1.1 Arcádia.
Fig. 1. Ana Mendieta. Silueta, Iowa, 1973.
O trabalho realizado por Ana Mendieta em Iowa no ano 1973 em meio a um bosque, onde se aprecia um pequeno jardim cuja forma perfila
um corpo esvaziado. Esta frágil
composição coloca em jogo o perto e o distante, o ritmo de entrar e sair da imagem, que se alterna entre o cheio e o vazio, presença e perda. Quando o corpo desaparece a paisagem se apodera do seu conteúdo, assim, por ele abrir essa dimensão do vazio para os olhos, a imagem desabitada por ele deixa uma estranheza escapar, força perturbadora advinda deste espaço subtraído de carnalidade, sem o sujeito a preencher sua forma. Por sua vez, este oco desapropriado adquire um outro preenchimento, através dele o conteúdo da morte é interiorizado e engendra na paisagem um pequeno e estranho jardim. Os seres humanos tentam na medida do possível melhorar os espaços que habitam, cuidam de jardins, perseguem o sonho de lugares não contaminados pela presença do homem.
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Inventam imagens do mundo, elaboram um universo de impressões. Os jardins carregam a idéia que faz brotar neles o desejo do paraíso na terra e, neste sentido, o desejo de estar próximo do belo e do agradável encontra suas raízes no mito original do Éden, o paraíso terreno. O eco etimológico da palavra paisagem determina de certa maneira um diálogo entre o que lhe é interior e exterior, sua raiz indo-européia pak, aquilo que ata, fixa, que define por limitação um território, descreve este estado limite e complexo entre o que é incluído e o que não. A primeira paisagem coincide com a contemplação de um jardim, e se percorremos esta mesma tendência etimológica, gard, a cerca, veremos novamente esta divisão entre um mundo agradável e integrado dentro do tranqüilizador, e o selvagem e inóspito enquanto exterior ao espaço habitável. Não é de se estranhar, portanto, que A idéia de jardim que habitualmente contemplamos remete a um desejo de habitar um lugar melhor, reinado pela tranqüilidade e felicidade e afastado de todo mal e o vicio das cidades. Recuperação de um estado inabalável cuja pureza remeteria àquela inocência primeira e incorrupta dos habitantes do éden. Um lugar externo ao mundo, e uma vez estabelecido o limite, o trabalho se volta à manutenção que o manterá a salvo. Contudo, não se pode ignorar que deste mesmo jardim das delícias o homem foi expulso. O jardim, por conseguinte, é o lugar delicioso que encarna a felicidade, porém, também se transforma no lugar das proibições, lugar de onde se pode ser excluído. É por assim dizer tão frágil o jardim que ao se passear através dele se medita a respeito do caráter efêmero da vida diante da natureza transformada pelas regras da jardinagem. O caráter melancólico dos jardins tangencia-se com a memória de um jardim perdido. “A meditação essencial que acontece no jardim é a que remete ao jardim perdido, fazendo lembrar a capacidade autodestrutiva do homem”.5 Com o avance da modernidade, a cidade fora do jardim era considerada como um deserto, talvez por isso foi crescente a necessidade de se construírem jardins públicos, lugares para se respirar e se afastar da sujeira e do excesso do meio urbano. Assim, os jardins apareciam dentro dos novos projetos urbanísticos e cumpriam o papel higienista e civilizatório. O desenvolvimento da cultura da jardinagem ao abordar o tema da perda, engendra espaços propensos ao sentimento comum de melancolia, desde a montagem de verdadeiros 5
CASTRO, Fernando. El Jardín como arte, La Pasión del olvido. Huesca: Disputación de Huesca.1997.p.19. 18
cenários teatrais no Renascimento, passando pela tradição paisagística inglesa da alegoria moral. Já na França, o cultivo da imagem elegíaca da morte representada no jardim da Arcádia remetia ao sentimento de nostalgia, jardim por onde a figura solitária do ser humano rodeado pela paisagem é levado até os limites da tristeza, ou do prazer na contemplação: elevação e enraizamento se entrecruzam quando um se abandona à dissolução de seus pensamentos no espaço de um jardim. Imbuído de melancolia, o mundo é visto sob o prisma da perda, os jardins, por sua vez, ao serem capazes de rememorar o caráter efêmero e frágil das coisas são excelentes pontos de encontro entre sentimento e pensamento. No jardim a natureza é subjetivada, submetida à condição da palavra, onde o interior e o íntimo dos sentimentos afetam-se com a composição do lugar. É na paisagem, assim como no jardim, que os seres humanos são possuídos pela sensação do irremediável, pelo irreparável. Na inter-relação existente entre o território paisagístico de um jardim e um cemitério, as flores equivalem a adornos, plantadas com o propósito oculto de remoer e destilar a tragédia da perda dos entes queridos, assim, ao se passear através de um jardim, a mente se aprofunda e se distancia na pátria dos mortos. Cumpre entender que esta aproximação representa uma experiência um tanto pavorosa, distante da alusão aconchegante e prazerosa do jardim, revela-se como canteiro que acolhe a consciência terrena da morte. A Arcádia, como produto da mente organizada dos homens, evoca a natureza a fim de corrigi-la, eliminando o feio e o desagradável e aquilo que faça relembrar a morte. Embora esta operação artificiosa atinja seu espaço distanciado e protegido no campo da imagem ou da palavra, mesmo ali na imagem o fundo ao qual se escapa acaba por retornar como manifestação do reprimido. A Arcádia como o lugar de dois paradoxos: um se refere ao caos junto de um jardim, contradição onde comparecem a experiência artística de domar o indômito, e o outro que se refere a ausência e a presença abordadas conjuntamente como materialização fantasmática. A Arcádia era uma província antiga na Grécia, que com o tempo se converteu em nome de um país imaginário, criado e descrito por artistas e poetas. Vindo de Tróia em direção a Ítaca, quando estivesse próximo de Delfos um viajante poderia atingir a Arcádia, área primitiva e agreste, repleta de planícies e riachos, habitada por animais e pastores, cujo guardião, uma divindade meio pastor meio cabra costumava atemorizar quem adentrasse seus domínios, mas também costumava agradar seus eleitos e ninfas tocando-lhes flauta, seduzindo-os naquela
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paisagem com a imagem do idílio e ócio bucólico. Também poderia encontrar-se com Pan num lugar com planícies e acidentes rochosos, e ouvir tocá-lo sua flauta com sons que lhe produziriam pânico. O que aparece para estes viajantes tão remotos é o encontro de um lugar ao mesmo tempo divino e animal, mas humanizado pela presença do artista. Segundo o autor de Paisagem e Memória, sendo a natureza uma compreensão cultural, a Arcádia seria sempre o lugar das projeções urbanas, vista pela lente dos civilizados que se voltavam para os lugares perdidos ou ameaçados, onde procuravam uma humanidade intacta. Desse modo, Simon Schama lembra que embora para Heródoto e Pausânias os primitivos da Arcádia comessem glande e criassem cabras6 e que para os gregos clássicos a Arcádia não passasse de um ambiente inóspito, para os latinos ela aparece drasticamente enfatizada como consolo face a uma Roma decadente e caótica. Por sua vez, a Arcádia seria reinventada no renascimento como imagem sobreposta às repúblicas italianas independentes, graças à imprensa que tornaria mais conhecidos os livros de Virgílio. Na corte dos Médici, por exemplo, eruditos e artistas, discutiam e se inspiravam nas leituras daquele antigo escritor, particularmente nas que antecederam as aventuras de Enéias e sua heróica viagem de Tróia para Roma. Revisitando o antigo Império romano os descendentes latinos de Roma e Florença leram daquele remoto escritor romano, urbano e nostálgico da natureza os dez poemas pastoris chamados Bucólicas (42 a 39 aC) e também os quatro livros de poemas didáticos sobre a vida rural, intitulados Geórgicas (36 aC), além do famoso Éclogas. Possivelmente foi assim que compreenderam que se na literatura antiga a Arcádia era um lugar que não ficava muito longe da cidade, agora poderia ser refeita no ambiente da própria corte florentina ou romana e de suas villas mais aristocráticas. Na Veneza do século XVI Arcádia seria o nome de uma publicação de Jacobo Sannazaro, cujas imagens do espaço sombrio foram disfarçadas pelo agradável retornando nas telas de Ticiano, Giorgione e Domenico Compagnola, além das gravuras, estampas em porcelana e tapeçarias de períodos posteriores7.
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SCHAMA, Simon. Paisagem e Memória. S.P.: Cia das Letras, 1996, p. 518 Idem, p. 527 20
Fig.2. Nicolas Poussin. Les Bergers d'Arcadie. Museu do Louvre, Paris. 1638-40.
No quadro de Poussin, “os pastores da Arcádia” um grupo de pastores, em trajes particulares da Grécia antiga, contemplam um túmulo onde se lê –Et in Arcádia ego -, cuja tradução, segundo Panofsky, diz “a morte existe mesmo na Arcádia”. Nesta Arcádia que nos apresenta Poussin comparece a lembrança da morte, cujo sentido faz estremecer a paz de qualquer lugar. Até mesmo na Arcádia, a morte coloca sob suspeita a felicidade, paradoxal contraponto ao unirem-se as mais belas e paradisíacas paisagens com emoções sombrias. Os pastores se detêm em face ao túmulo, voltados para o espaço da ausência e do terrível onde nada mais existe no presente. Esta imagem da Arcádia, relacionada com a reflexão sobre a morte, serve de apoio para se pensar a aparição do invisível no espaço, assim como a questão do terrível e do indômito domesticados e dissimulados na paisagem de um jardim, acolhendo um fantasma. Mendieta, em sua série de Siluetas realizadas diretamente na paisagem, dá a ver a presença fantasmagórica de contornos esvaziados, cujo interior perdeu sua carne, a substância de preenchimento de um corpo humano. O vazio do contorno por onde vaza a paisagem é simultaneamente um jardim e a distância da morte. Obtendo dentro do mesmo espaço uma dupla distância. A lonjura que evoca está diante e dentro daquele que olha. Em sua composição, o espectador, assim como os pastores da Arcádia, é confrontado com a paisagem vazia da distância e da perda da carne, que a todos tanto corrói.
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Porém, se o pastores em meio a sua paisagem idílica se deparavam não exatamente com um cadáver, mas, em vez disso, com o túmulo que antepara a visão direta com os ossos, em Mendieta tão pouco se pode dizer que o que aterroriza é o espetáculo da putrefação. Entretanto, se sabe que o conteúdo repulsivo do cadáver retorna, no caso de Mendieta, em forma de Jardim fantasmagórico. 1.2 Locus Amoenus.
Fig.3. Ana Mendieta. On givin life, 1975. Gallery lelong, New York.
Suavizar o cenário da morte relacionando ao cenário amoroso, ou seja, se copular é semear, permitir que a imagem jorre é uma experiência de criação. O olhar amoroso sobre a paisagem encontra nos jardins o mais belo recanto e recôndito espaço para as histórias de amor. No final do século XV na Itália, são lançados quase que simultaneamente dois livros diferentes, mas que tratam em comum do tema do amor unido à fantasia de paisagens exuberantes e agradáveis para os sentidos, uma segunda natureza perfeitamente domesticada, na qual é possível viver despreocupado e onde se sofre apenas por amor. Estes dois livros eram Hypnerotomachia Poliphilli, atribuído a Francesco Colonna, e Arcadia de Jacopo Sannazaro, as paisagens que emolduram as histórias são como verdadeiros Locus Amoenus. 22
A construção lingüística Locus Amoenus, adaptação do termo antigo Loca Amoena, utilizado pelos romanos para descrever lugares agradáveis, ressurge no Renascimento para designar qualidades que fazem com que um lugar seja belo e formidável, graças a sua vegetação, tanto se referindo ao meio rural da poesia pastoril, como para nomear lugares reais, configurados para expressar tranqüilidade e prazer aos que ali estivessem. Este tipo de lugar devia estar afastado dos olhares alheios, este seu, por assim dizer, caráter oculto fazia dele uma espécie de jardim secreto. Além disso, o termo locus amoenus, no que se refere ao ideal da poesia idílica, remete a uma natureza mágica e fantástica, terra ideal e propensa ao amor, ao encantamento sensorial e espiritual do homem, que se integra na perfeição e na plenitude do lugar. Enfim, trata-se de um paraíso terrestre desenvolvido pela imaginação do ser humano que busca a satisfação dos sentidos e o afastamento das impurezas e da perversão que tanto lastima na cidade. O locus amoenus, não obstante, possui seu oposto, o locus horribilis. Em contraste com o primeiro, carrega uma concepção totalmente divergente por se qualificar como ambiente onde as forças do selvagem e do imprevisível espreitam o humano, ameaçando sua tranqüilidade e sua felicidade. O locus horribilis é um cenário altamente assustador e inóspito, de devastação e calamidade, antítese do lócus amoenus. A transição do Locus Amoenus, o lugar do olhar amoroso, ao Locus Horribilis, o lugar da devastação, surge de forma complementar no trabalho de Mendieta, intitulado on givin life (trazendo, ou dando a vida). Este trabalho constitui-se numa seqüência fotográfica de um enlace amoroso na paisagem, na qual a artista consegue unir o sentido do olhar amoroso, do locous amoenus, ao sentimento de terror do Locus Horribili , obtendo através do entrelaçamento de suas qualidades o lugar ideal para o encontro das forças do amor e da morte. On givin life, título que pode ser lido de forma ambígua, no sentido de referir-se tanto ao ato mágico ou de natureza divina de dar vida a algo, tanto como ao ato fisiológico e feminino de parir. Os dois contidos um no outro se complementam, tanto na ordem transcendental como na do natural e fisiológico. A narrativa amorosa em On givin life joga com esta dualidade entre o carnal e o espiritual através do ato sexual do corpo da artista com o esqueleto. Seria como se por meio do erotismo seu corpo fosse capaz de apreender o inapreensível, atraindo-o para sua carne, e vice
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e versa, como se ao lançar-se a esta experiência seu corpo se diluísse em direção ao transcendental, um erotismo sagrado.
Fig. 4. Ana Mendieta. On givin life, 1975. Gallery lelong, New York.
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Francesco Colonna lançou em Veneza no ano de 1499 o livro Hypnerotomachia Poliphilli, segundo o pesquisador espanhol Javier Mederuelo: “La trama es uma especie de viaje amoroso que se realiza en sueños, (...). El protagonista, Polífilo ( el que ama a Polia), se ve obligado a recorrer una serie de lugares fantásticos en busca de su amada de cabellos de oro, afrontando peligros y recorriendo parajes insólitos”8. O comentário de Maderuelo ressalta o elemento fantástico que se encontra no aspecto dos lugares que ornamentam a narrativa. O autor da a entender que o espaço no qual se desencadeia a narrativa desperta o maravilhoso, unido ao terror, trata-se de um locus amoenus, entretanto proliferam também os elementos de um locus horridus, plantas espinhosas e arbustos selvagens, despertando estados emocionais que revelam uma sensibilidade particular com a paisagem, como no fragmento transcrito pelo pesquisador: “Y así mi viaje sin meta me llevó a una espesa selva, em la cual, apenas entré, perdí mi camino no sé como. Mi corazón en suspenso fue invadido de repente por un súbito temor que se difundió por mis pálidos miembros junto con los apresurados latidos, y mis mejillas perdieron su color ”9 Polífilo enfrenta o terrível da paisagem ao querer alcançar sua amada. Angustiosa distância que separa os dois encontra sua expressão na atrocidade da natureza. Nas três fotos que compõem On givin Life observa-se uma seqüência narrativa, na qual é possível ler três momentos diferentes de interação entre o corpo da artista e o esqueleto sobre a paisagem – primeiro acaricia, depois o posiciona e por último se joga no ato fecundo do amor. Tudo se passa em forma de curta narrativa sobre a relva verde, esta cor engloba o curto episódio erótico. Cabe ressaltar que o vermelho é a cor complementar do verde, ou seja, o verde por extrema oposição ao vermelho o ressalta ainda mais em sua máxima expressão ao estarem uma sobre a outra. O carnal da cena acentua-se ao se servir do verde como fundo.Estranha visão, o esqueleto, do qual a carne já retirada abre para a visão dos ossos, duplo estado de repulsa e atração, o oculto e o distante (deslocado), manifesta-se diante dos olhos. Mendieta, através de sua relação erótica com o esqueleto sobre a relva, coloca a reflexão sobre a impossibilidade de tocar o extremo, de atingir a distância do outro, que, no caso, também é a distância da morte. Quando se quer pensá-la, a morte coloca obrigatoriamente a questão de sua inacessibilidade, quando se ama sente-se a falta do outro. 8 9
MADERUELO, Javier. El paisaje: génesis de um concepto. Madrid: Abada, 2006. p.184. Ibidem. Apud COLONNA, Francesco. Sueño de Polífilo. Barcelona: El acantilado, 1999.p.81. 25
Blanchot escreve a respeito da grande recusa do ser humano, a recusa de ficar junto do enigma que é a estranheza do fim singular. Mendieta, mesmo compreendendo a caveira como uma estrutura esvaziada que remete ao fato angustiante da morte, evoca sua presença como um parceiro erótico e põe em questão a profundidade inatingível frente à morte, ela consegue, por meio do ato amoroso, revestir com carne e vida o espaço vago e sagrado da morte. A narrativa pode associar-se ao Locus horribilis,, mas, no entanto, o ato erótico acaba por fecundar o espaço vago e angustiante da morte, convertendo-o em Locus Amoenus. Mendieta, através do erotismo, liga-se à morte. Interpenetra através de seu ato dois espaços poéticos, que em realidade sempre coexistiram, respondendo a necessidades distintas, a fecundidade e o repulsivo se unem como a vida e a morte. O Lócus amoenus, assim como a Arcádia, é lugar do sonho e do amor, contudo, o que podem eles chegar a esconder e dissimular? O ser atingido pela angústia da morte não se afasta desses lugares, ali os amantes também perecem e sofrem por se darem conta do quão distantes estão um do outro. E ainda, o ato amoroso também evoca o abismo entre os corpos, vive do desejo de continuidade, de durar para além do perecimento. A artista acaricia o esqueleto, sua forma esvaziada e inatingível, toca sua estrutura de ausência. A perda da carne traz aos olhos a imagem dos ossos, sobre eles a visão do destino comum e inevitável a todas as pessoas. Ao tentar tocar o esqueleto, insiste no que lhe é visível, talhado no tangível. Só então entra em contato com a perda, quando ver é tanger algo que morre, algo que se afasta e que escapa ao olhar. Há então uma cisão: o inevitável afastamento do ver para que a imagem possa nascer. Relação entre o próximo e o distante, articulada com regiões de proximidade e afastamento. A angústia do sublime, na impossibilidade de alcançar o que está distante, reside no espaço do inalcançável, aquilo que se perde é também o irremediável que vive no exílio do passado e torna-se melancolia. A angústia na impossibilidade de aceitar a perda. Durante o século XVIII e XIX, período que abrange a ascensão e a queda das tipologias Neoclássica e Romântica, o 'sublime' foi um dos conceitos centrais em torno do qual o discurso da arte e da estética se articulou. O sublime como o difícil de agarrar, o inapresentável, ou o inimaginável. O sublime, enquanto categoria estética, desenvolve-se para pensar a sensação do
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terrível na paisagem, ou nos objetos. A sensação de medo provoca um transbordamento e a forma escapa, essa experiência pode estar associada ao sublime. Na seqüência narrativa de On givin life, o assunto erótico e amoroso se entrelaça à morte sobre um fundo verde, a paisagem recebe o terrível. O sublime encontra seu espaço na cena, no abismo entre a carne e o inapresentável da morte, quando a carne parece se agarrar àquilo que não pode preencher, surgindo assim apenas a vertigem da distancia profunda. On givin life proporciona ao olhar esta visão da relação amorosa unida pela distância, a partir da imagem da morte perfila-se o caráter terrível de um lugar. A relação erótica que se dá entre a artista e o esqueleto mostra momentos de carícias, até a ocasião em que joga seu corpo sobre o dele e depois reencontra o fecundo que possa existir na contraposição de vida e morte. Mostra uma possível maneira de lidar com o vazio do outro, não obstante, começa no vazio e termina quando atinge o sentido do vazio da morte. A paisagem, nesta seqüência, revela-se como fundo distanciado que alberga a experiência do absolutamente longe entre a carne e o osso. A caveira sem expressão recebe o olhar e a carne inquieta de Mendieta que lhe acarinha e lhe cobre os ossos, como um ornamento. Segundo Bataille: “O que chamamos de morte é em primeiro lugar a consciência que temos dela. Percebemos a passagem da vida à morte, isto é, ao objeto angustiante que é para o homem o cadáver de outro homem. Para cada um daqueles que ele fascina, o cadáver é uma imagem de seu destino. Ele é testemunho de uma violência que não só destrói um homem, mas que destruirá todos os homens”. 10
As palavras de Baitaille alicerçam essa interpretação, vida e morte são os extremos da existência. No entanto, cada um deles imbuí-se de sentidos e sentimentos, como o oco e cheio, que, por sua vez, também podem expressar sensualidade, um enlace erótico.
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BATAILLE, Georges. O erotismo. Porto Alegre: L&PM, 1987.p. 41. 27
1.3 Propagações.
Fig. 5. Ana Mendieta. Sem Título. Série Siluetas. Silueta de hierba y flores. Iowa, 1978.
Neste conjunto de obras de Ana Mendieta pode-se dizer que o corpo humano se desloca á condição de vegetal, integra-se a terra, o lugar que lhe oferece as condições para que sua forma possa medrar, a artista faz brotar a paisagem ao multiplicar o corpo fazendo dele próprio o jardim, pelo qual prolifera sua ausência, eis a imagem que repete o gesto da criação artística. O jardim que propaga seu esvaziamento serve também de ponto de partida para se refletir sobre a paisagem, ele próprio comporta a idéia que demarca a atividade de dar forma à natureza, transformando a paisagem através de uma relação que é simultaneamente de continuidade e exclusão. Ao trabalhar sobre a paisagem com a terra, Mendieta transfere a forma do seu corpo para o espaço exterior, explorando a relação entre o ser, a terra e a arte, produzindo uma imersão do humano no território da germinação. Na série de siluetas que realiza entre 1978 e 1979 observa-se que do espaço da ausência do corpo a artista faz brotar um jardim. Trabalho onde o corpo se separa e propaga-se na paisagem. Há o movimento de ser retirado de dentro de si para ser levado a outro lugar. Mendieta, na adolescência, sofreu o ato de haver sido arrancada, expatriada de seu país natal, esta experiência individual, embora não justifique a obra, sempre lhe acompanhou em seu discurso. Segundo a artista: 28
La exploración de la relación entre mí misma y la naturaleza que he realizando en mi producción artística ha sido un claro resultado del hecho de que fui arrancada de mi patria em la adolescencia. Hacer mi silueta em la naturaleza mantiene (establece) la transición entre mi patria de origen y mi nuevo hogar. Es um medio de reclamar mis raíces y unirme a la naturaleza.11
Mendieta estabelece relações com a multiplicação dela mesma, com a questão da presença e da ausência na exterioridade ao disseminar seu corpo na paisagem, não só marca uma presença, mas perder-se na terra e a deixa como marca de sacrifício um jardim.
Fig. 6. Ana Mendieta. Sem título. Série siluetas: silueta de hierbas y flores amarillas. Iowa,1979.
Abandonar um lugar e ao mesmo tempo cultivar um jardim representa um paradoxo que suas siluetas mostram ao apresentarem o movimento conjunto de um corpo abandonado em cujo interior proliferam plantas. A artista abandona seu corpo onde deseja cultivar e fazer proliferar sua presença. Do Cultivar ao cultuar:
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Centro Galego de arte contemporânea. Ana Mendieta. Santiago de Compostela,1996.p.109. 29
Cultus – o verbo latino colere - designou a princípio simplesmente o ato de habitar um lugar e de ocupar-se dele, cultivá-lo. É um ato relativo ao lugar e à sua gestão material, simbólica ou imaginária: é um ato que simplesmente nos fala de um lugar trabalhado (...) Uma terra ou uma morada, uma morada ou uma obra de arte. Por isso o adjetivo cultus está ligado tão explicitamente ao mundo do ornatus e da “cultura” no sentido estético do termo.12
Mendieta cultiva o próprio abandono dentro da forma de seu corpo, a vegetação se alimenta de sua ausência. As plantas ornamentam a falta e a distância de algo. Um Jardim para interiorizar sua ausência, para que no lugar do que se perdeu a vegetação possa reencarnar e fazer visível o que já não mais se pode ver. Decomposição imediatamente recomposta. O corpo que renasce na paisagem em forma de jardim possui ainda o sentido de indicar a presença da morte. Este pequeno canteiro serve de reconforto à violência ameaçadora da natureza, nada mais violento do que a morte. Ao cultivar o jardim a artista reconforta nele a própria morte. O exterior é a ausência do corpo, a morte está preenchida na paisagem, por isso, quem sabe, Mendieta prepara um espaço que lhe serve de ponto de permanência, onde possa vir a ressuscitar seu contorno. A terra é muito mais do que uma oportunidade de multiplicar-se, sua profundidade desloca seu ser com voracidade para fora dela mesma. A germinação de sua presença deslocada. Para ela, não resulta problemático este movimento em direção à exterioridade ou à morte, Mendieta cede seu corpo ao estado de abandono, para que ali, pela ausência, pela morte, ou pela distância cresça um jardim. A artista domina a arte ligada à possibilidade de fazer os objetos aparecerem, assim como de se interiorizar no exterior, obceca-lhe profundamente o limite de seu corpo, parece sempre querer fazer com que seu contorno escape e se libere da forma fechada, empenha-se em alcançar sua própria ausência, ter acesso ao que há de mais distante e íntimo no ser, sua forma jorra ao exterior, dilacera-se e propaga-se nessa conversão do interior para o exterior. Assim, essa conversão voltada para o exterior introduz um desvio para idéia de perda. Como suportar uma perda? Na brincadeira da criança solitária que sente a falta da mãe, joga fazendo desaparecer algum objeto e logo faz com que ele retorne, como na cena que Freud descreve no Fort-Da ao observar discretamente seu neto de 18 meses brincado, quando a criança faz um carretel desaparecer e logo reaparecer puxando-o pelo fio. Freud nota como a criança
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HUBERMAN, Didi. O que vemos, O que nos olha. São Paulo: Ed 34, 2005.p. 155. 30
acompanha vocalmente o movimento de desaparição com um invariável o-o-o-o prolongado, depois saudando seu reaparecimento com um alegre Da! Didi Huberman, para pensar a dialética do visual, escreve sobre este episódio que se encontra no livro de Freud Além do princípio de prazer(1920) .O autor considera esta brincadeira infantil com a perda, o Fort-Da, uma maneira de repor através do jogo a ausência, pois através dele a criança produz ela mesma a experiência de abandono e consegue lidar com a falta da mãe. Da mesma maneira, Mendieta joga com a sua própria ausência na paisagem. Só o jardim (a arte) preenche a distancia, ou a ausência, suavizando a angústia do artista diante da possibilidade de sua desaparição.
\ Fig.7. Sem título. Série Siluetas, silueta de musgo sobre roca. Iowa, 1979.
Rilke em seu conto Uma fábula da morte apresenta ao leitor a imagem de um jardim que se cultiva para receber a morte. A fábula, curiosamente, é narrada em meio a uma conversa entre um caminhante e um coveiro que trocam suas idéias particulares sobre a morte e o que se sabe dela. Ela é algo inconcebível, algo tremendo. O caminhante conta ao coveiro sua versão da fábula: Havia um homem e uma mulher que se amavam profundamente e decidiram abandonar o ruído e a impureza da cidade. Foram para o campo e lá construíram uma linda casa com um belo 31
jardim. A casa possuía duas portas, uma a da direita e a outra a da esquerda. A porta da direita era a do homem e a da esquerda a da mulher. Todos os dias os dois abriam suas respectivas portas para receberem as mais variadas visitas, o vento perfumado, a paisagem, a luz, e muito mais ainda. Até que um dia, a morte bate na porta direita, a do homem, mas este logo a reconhece e não a deixa entrar. A morte tenta então entrar pela outra porta, a da esquerda. A mulher lhe abre sem nada suspeitar. A morte então lhe diz : entregue este presente ao teu esposo, são sementes e se distanciou sem dizer mais nada. A mulher pensou que as sementes eram feias de mais, e preferiu plantá-las no jardim e esperar delas algo futuro, depois contaria a seu marido como havia obtido as sementes. O homem, sem esquecer ainda daquela visita, continuava um tanto inquieto, mas, como via sua mulher tão feliz e despreocupada, acabou também por esquecer e seguir o ritmo de sempre. Aconteceu que ao chegar a primavera cresceu no canteiro entre os lírios um estranho arbusto. Suas folhas eram magras e de tom enegrecido, um tanto pontiagudas, e sobre sua escuridão um brilho resplandecente. O homem achava aquela planta muito curiosa, mas nunca tinha coragem de perguntar a sua esposa de onde havia ela surgido, a mulher, por sua vez, frente a um sentimento parecido, calava dia trás dia a explicação. Os dias seguiam, a reprimida pergunta de um lado, e a resposta nunca ousada de outro, enquanto contemplavam calados o obscuro arbusto no jardim. Dedicaram a ele igual atenção que as outras plantas, mas se entristeceram ao verem o jardim todo em flor enquanto o arbusto permanecia inalterado e mudo. Então, sem revelarem-se mutuamente, resolveram dedicar especial atenção ao arbusto na próxima primavera. E assim foi, o jardim se tornou agreste, as flores pareciam mais pálidas. Depois de uma noite escura e pesada, saíram os dois ao jardim e descobriram tudo: “De lãs hojas negras y agudas del extraño arbusto había salido, intacta, una flor de color azul pálido y, aquí y allá, se veian capullos por reventar. Y los amantes estuvieron allí delate, unidos y callados, sin saber qué decirse. Porque pensabam: Ahora floresce la muerte, y se inclinaram al mismo tiempo para oler el perfume de la nueva flor.Pero desde aquella mañana todo se torno distinto em el mundo.” 13
13
BATRA, Agustí. Antologia. Relatos maetros de terror y mistério. Barcelona: Fontana Rústica, 1977.p.63. 32
Esta fábula de Rilke ilustra o tema da morte no espaço de um jardim, é nele que a morte é cultivada pelo casal, não renunciam cuidar da estranha planta que lhes é presenteada, da mesma maneira, Mendieta não recusa cultivar e proliferar a ausência na forma do corpo como jardim, dedica sua própria forma às plantas, criando um canteiro que lembre sua ausência, preenchendo o espantoso e remoto espaço do intangível. Maurice Blanchot em seu livro O espaço literário, escreve sobre a experiência do poeta Rilke com o insondável da morte que aparece em seus escritos, revelando que para o poeta o espaço da morte corresponde-se com o espaço da criação artística. Desta maneira Blanchot descreve a busca de Rilke por tornar íntima e pessoal a experiência da morte, compara a aproximação com ela á aproximação com a obra de arte, cada um contém a sua morte como o fruto seu caroço, há que se cultivar com paciência o crescimento deste fruto invisível, a paciência é essencial, “porque é inevitável a impaciência neste espaço (o da aproximação da morte e o da aproximação da obra) onde não há limites nem formas, onde há que se sofrer o desordenado chamado do longínquo”.14 Nesta relação com o espaço da criação e o espaço da morte, está o movimento de despossessão que faz com que a artista se despoje dela mesma e cultive em sua própria ausência o invisível espaço da morte. O jardim propaga o abismal de seu ser.
14
BLANCHOT, Maurice. O espaço literário. Rio de Janeiro: Rocco, 1987. p.124. 33
2
INSTANTE: FISSURA
“Dar a ver é sempre inquietar o ver, em seu ato, em seu sujeito. Ver é sempre uma operação do sujeito, portanto uma operação fendida, inquieta, agitada, aberta. Todo olho traz consigo uma névoa”.15
Neste capítulo são abordadas duas fotografias de Ana Mendieta que remetem ao abandono do corpo. Em ambas, ele está caído e o rosto não pode ser alcançado pelo olhar. Enquanto um corpo parece ter sido violado e esta sobre um tronco cortado, noutra foto ele aparece depositado amorosamente numa cova. O que se repete em ambos os trabalhos é a questão da derradeira queda corporal sobre um determinado lugar. Dali jamais se levantará e tudo resta para sempre inalcançável. Cena perdida da morte, corpo cujo rosto nos escapa, cenário da contingência que conduz à nadificação. E posto que nada há para ver e nem para dizer, o que resta é o abismo, ou seja, o espaço onde o corpo se ausenta e se torna um oco que desafia o olhar. Questão que por sua vez, desdobra-se como exterioridade, uma vez que a queda do corpo leva consigo a dimensão do destino que, inapreensível, sempre nos escapa. Eis a vertigem provocada pela ausência e que corresponde ao irrepresentável. Contudo a questão enfrentada pela artista no interior da obra afeta também ao expectador, na medida em que esta ausência lhe afeta em sua condição de exterioridade, provocando-o a realizar uma fissura ali onde seu olhar não consegue tocar. Assim, a fotografia de Ana Mendieta ao mostrar a paisagem em relação ao que há de enigmático nela, aciona o olhar vertiginoso da morte como a sensação que se sente diante de uma fenda. 2.1 Abismo
A operação de fissura ocorre quando se dá no olhar do espectador o encontro diante daquilo que se mostra como inapreensível. “O inapreensível é aquilo a que não se escapa”16, fala Blanchot a respeito do inacessível que a todos obceca. A obra fotográfica de Mendieta aponta uma ausência na paisagem, sugerindo por essa via que o espectador faça uma fissura ali onde seu próprio olho falta, na dimensão do inapreensível. Esta ausência pode ser observada na imagem do 15 16
HUBERMAN, Georges Didi. O que vemos, o que nos olha. São Paulo, ED 34, 2005.p.77. BLANCHOT, M. O espaço literário. p.260. 34
corpo estendido na paisagem, abandonado nela, essa imagem também se encontra na figura da mulher de costas no quadro de Friedrich, em postura de entrega, eclipsando-se na paisagem. Trata-se de um ponto que abala a razão. Tomar conhecimento do desconhecido, do que se descobre como uma fenda obscura, cuja profundidade é inaccessível e desestabiliza a razão, pois revela o espaço que não se pode tocar. Na imagem do abismo, alegoria Romântica do inacessível, ou do profundo ligado com a morte e com o sacrifício, impressiona os sentidos e excita o imaginário, gerando o sentimento de angústia. A experiência da contemplação da paisagem como sendo profundamente ligada com este “inacessível” do abismo. O abismo como o espaço profundo, território de privação, encontro com aquilo que ameaça e assusta o pensamento. Ana Mendieta desafia o olhar do espectador ao colocá-lo perante uma situação catastrófica na paisagem. A paisagem que figura em sua fotografia como um cenário trágico desperta o obscuro, o lugar onde o corpo cai e se ausenta. Ali o olho aprofunda-se através deste oco esvaziado, que o recebe como uma fenda, o lugar negro onde cai. Se por um lado este corpo absorve o olhar fazendo com que se olhe para a paisagem através de uma fissura abismal, por outro lado, o abismo também se refere à relação dilacerada entre o humano e a natureza. A razão precisa enfrentar a delicada sensibilidade e tomar consciência do final que lhe aguarda, a carne desaparecerá engolida pela terra. Já em outra imagem, intitula flowers on body (Flores sobre o corpo), Mendieta completa o sentido abismal da relação entre o corpo e a paisagem ao se colocar no espaço idêntico a um sarcófago, palavra do grego, σαρκοφαγος - sarx = carne, phagos = comer, significa literalmente "comedor de carne". No entanto, este significado não é sugerido pelo título, mas pela composição da obra, ou seja, o corpo estende-se dentro de uma cóva de pedras. Não é um buraco que se parece a uma cova, a cova é construída, por isso, idêntifica-se a um sarcófago.
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Fig. 8. Ana Mendieta. Flowers on body. El Yagul, Oaxaca, México, 1973.
Este trabalho foi realizado em uma de suas viagens ao México, nele se personifica a vida orgânica em seu amplo aspecto de morte e renovação. Seu corpo se confunde entre as flores que dele parecem brotar.A artista dentro da cova explora uma maneira de se decompor sobre a paisagem, expressando assim seu desejo de escapar à sua forma, aos seus limites, e unir-se a ela, nem que para isso tenha que entregar seu corpo. Esta aspiração associa-se ao desejo de morte,
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porque se abandona a terra. A artista em seus escritos revela o desejo de unir-se à natureza, dizendo que sua arte é o caminho e o meio de afirmar os vínculos emocionais com ela17. O corpo de Mendieta se abandona, entrega-se ao chão da cova. Aceita unir-se a terra como personagem trágico, aceitando a função criadora e aniquiladora da natureza. Criadora porque do corpo parecem brotar as flores. A cova suscita outra vez a idéia de abismo presente na alegoria romântica da entrega do artista ao seu trabalho, como um lançar-se ao abismo. Neste sentido, o abismo pode ser compreendido como um anseio obstinado pela vida, vida como abandono de si mesmo, a arte, o artista, deve entregar sua obra a natureza, sacrificar-se por isso. A obra de arte como o momento em que o artista desaparece, morre. A existência como aniquilação do ser e afirmação da obra. A artista precisa destruir sua morada, viver um posicionamento extremo. Aceitar o desaparecimento, aceitar ser aniquilado, devorado pela terra. Para Mendieta, seu corpo ao ser conduzido à dissolução da morte, eleva ao máximo o sentido daquilo que só pode ser realizado nesta desaparição. A artista transforma seu corpo em oferenda. A paisagem abismal de Mendieta integra o enterro do corpo, momento no qual o sujeito se funde à natureza e perde a consciência. Sua posição é, portanto á de quem está dentro do abismo. O quem não existe mais, a morte abre outro abismo e dele brotam as flores. Friedrich realiza em 1803 realiza a xilogravura chamada “Mulher a beira do abismo com corvo”, desta vez, a figura dirige seu olhar diretamente ao espectador, o último olhar antes da queda. Sem dúvida um instante de suspense na iminência de um desastre. Mas ela, a figura da imagem, seguirá sempre ali, perfurando o espectador com seu olhar intensamente enigmático e intransponível, tanto quanto o abismo enigmático que está diante de seus pés. O corvo completa a cena conferindo-lhe o significado da morte, ele está tão próximo à mulher que parece exercer sobre a imagem certa sedução, pois o corvo é o pássaro que devora a carne morta.
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Centro Galego de arte contemporânea. Ana Mendieta. Santiago de Compostela,1996. p.108. 37
Fig. 9. Caspar David Friedrich, mulher a beira do abismo, 1803.
Friedrich e Ana Mendieta fazem coincidir nos seu respectivos trabalhos aqui referidos, elementos de sedução e fascínio, apresentando uma tensão que confronta a figura humana na tênue linha de vida e morte, tensão irresoluta, presente tanto como condição da existência humana como da experiência da criação artística.
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2.2 Exterioridade.
Fig. 10. Ana Mendieta. Rape Scene, 1973.
Sobre o fundo de uma paisagem, repousa inativo um corpo entregue ao abandono. Os olhos de quem observa a cena precipitam-se sobre o corpo caído, desejando caminhar até lá.Um lugar Ermo recebe o acaso do esmo. Ana Mendieta dá a esta obra o título de rape scene, ou seja, cena de estupro, uma fotografia na qual o espaço e o corpo ultrapassam o próprio lugar, desafiando o espectador na procura do que há de visível na imagem. De que modo a ação deste registro fotográfico propõem a reflexão da paisagem? Este registro abre e mostra a paisagem relacionada à idéia de perda, pois Ana Mendieta constrói esta obra como um desafio ao olhar, colocando em dúvida a garantia de um encontro com o que ali está. Assim, a obra parece que clama para ser perfurada, para que o olho se precipite neste espaço e possa por meio do olhar 39
acessar o que nela há de distante, correspondendo-se com o que nela há de ausente. A abertura está ai, a morte antepara o desejo de atravessar, ausência que há nesta imagem ameaça o espectador, a ponto de não se saber mais o que está e o que não está ali. Esta fotografia se parece muito com as de registros policiais, retiradas no local onde ocorreu um crime. O observador é atraído pelo desejo mórbido de olhar profundamente para a cena, como que buscando detalhes, vestígios, marcas de sofrimento e ao mesmo tempo tenta reconstruir o passado. No entanto, não interessa acometê-la com a intenção de encontrar sua história, neste aspecto, a tarefa investigativa não poderia dar conta de resolver o que nela há de enigmático. A ação perdida desempenha aqui um caráter que é o de levar a morte à posição de atuar na paisagem. A cena revela a retirada do humano. Resta um corpo desnudo e desfalecido, indiferente, entregue à consumação. A obra não faz mais do que pedir para que se escave nela, as pernas abertas completam a imagem da própria fissura pela qual a artista convida a contemplar a paisagem. Na altura da cintura, o corpo se dobra de costas sobre um tronco caído, ao fundo e bem próximo, há mais alguns troncos espalhados sobre a rala vegetação desordenada; não há nenhuma árvore ereta nesta paisagem, parece um descampado, ou talvez uma clareira, as árvores cortadas reforçam o sentido de horizontalidade, de queda. As sombras anunciam o fim de tarde, o crepúsculo. A luz amarelada ilumina a vagina, recebendo assim o mórbido e erótico pelo calor do sol. Bataille, em seu estudo sobre o erótico, reconhece o ato de destruição associando-o à aproximação erótica dos corpos, “A passagem do estado normal ao do desejo erótico supõem em nós a dissolução relativa do ser (...) toda a concretização erótica tem por princípio uma destruição da estrutura do ser fechado”18 Talvez o que Mendieta queria dizer ao escrever “a paisagem parece estar morta”seja idêntico ao que Bataille reconhece como erótico, é na fissura da morte do corpo que a paisagem adquire sentidos. Nesta fotografia, corpo e paisagem associam-se, contudo, ambos aparecem como assassinados, neste sentido, o domínio do erotismo se associa à violência através desta penetração, um se perde no outro. A fotografia, com a paisagem de um lugar destruído, com árvores cortadas, espalhadas pelo chão, marca o sentido destrutivo da cena. Um clarão no espaço proclama o amplo reino da 18
BATAILLE, Georges. O erotismo. Porto Alegre: L&PM, 1987.p. 17 40
morte.O nada faz a paisagem estremecer, não há movimento, não acontece nada, a não ser a inquietação da ausência. A figura estendida não oferece resistência e rompe a linha de contenção que a definia enquanto sujeito, ela mostra-se esvaziada, como vítima de um sacrifício. Seguindo esta idéia, a paisagem e a morte se fecham, fundem-se numa espécie de erotismo sagrado, pois vai além da realidade imediata. A imagem desta obra de Mendieta discute a posição de quem está diante da paisagem, e pode se pensar, que capta o olhar para dentro dela. A cena de abandono opõem-se à idéia de existência, acaba com a singularidade de um possível sujeito e assim gera o questionamento a respeito da descontinuidade que há entre os seres e a exterioridade. O desejo de passar, atingir o ausente, inquieta os vivos e os instiga a criar fissuras, quando se sente a impossibilidade de tocar o distante. A obscuridade latente na relação entre aquele que desde um lugar observa algo que lhe é exterior, a paisagem, abre-se diante de seus olhos, e eis que, espantado, percebe que entre ele e aquilo que está diante, um vazio abismal, algo se abre, um enigma. Quando algo se mostra enigmático é porque algo falta, o que não se pode ver, por isso, faz-se inquietante, logo, desejando acessar esta distância que é o enigma, a pessoa que olha é impelida a escavar a imagem, e obtém através desta operação uma fissura no lugar da ausência. A fissura se realiza na contemplação. Curioso momento de arrebato que coloca o observador na postura de falecimento, daí resulta este olhar longínquo e solitário, que ao querer acessar o que se mostra como ausente, acaba por aliar-se ao domínio do além. Morte e inércia paralisam o futuro e força o sujeito da visão a contemplar a exterioridade do mundo. Blanchot, no entanto, adverte que o repouso dos que dormem, da mesma maneira que o repouso da morte, mantém a vigília. O olhar do sono não é uma negação do mundo, a afirmação dele. “Onde durmo, fixo-me e fixo o mundo”.19 Algumas esculturas funerárias dos antigos egípcios glorificavam o rei defunto em posição sentada, como se contemplassem todavia o mundo dos vivos, sem perder a vigília. Estas esculturas que ficavam dentro dos túmulos ou na entrada dos mesmos representavam o morto da maneira mais fiel possível, para que depois sua alma não encontrasse dificuldade na busca do corpo. 19
BLANCHOT. Maurice. O Espaço literário. Rio de Janeiro: Rocco, 1987. p. 267. 41
Fig. 11. Rahotep e Nofret. Escultura egípcia, 2575-2467 AC. Museu do Cairo, Egito. Fig. 12. Giovanni Bellini. Crucificação, óleo sobre tela, 1465. Louvre, Paris.
Contudo, se as esculturas egípcias apresentam olhos abertos e salientes que, contemplam a eternidade como um ponto infinito onde o espaço e o tempo são imutáveis, seu olhar não pertence a este mundo, nos afrescos góticos como nos retábulos renascentistas, comparecem o espaço divino e o espaço humano. Assim, por exemplo, em Bellini pode se reconhecer o lugar da crucificação como sagrado, visibilizado por um chão rochoso e lunar, constituído não pelos quatro elementos da natureza, mas pertencente ao domínio do supra-terreno. A paisagem mundana é caracterizada como cenário do transitório e do profano colocado ao fundo. O desprezo em relação ao mundo e aos sentidos que se acentua com o início do Cristianismo fomenta o que se pode caracterizar como um olhar interior, desinteressado em aceder às coisas mundanas. “O cristianismo via demônios no lugar da paisagem, assim, a doutrina cristã instituía três inimigos capitais da fé, estes são, o mundo, o demônio e a carne”.20 É, portanto, o mundo, antes mesmo da carne, que atormentava o espírito cristão da idade média. Em Ana Mendieta o que se apresenta é uma combinação entre o infinito mais remoto e um fundo que retorna e atormenta até alcançar o primeiro plano, onde o corpo sucumbe. Enquanto na estatuaria faraônica o corpo seria preservado em sua integridade física, no mundo
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Maderuelo, Javier. El Paisaje, gênesis de um concepto. Madrid: Abada, 2005. 42
cristão o corpo seria transfigurado e no pensamento plástico de Mendieta o corpo será incorporado na paisagem pela sua informidade. Esta operação não aparece, ela se faz suspeita e se deslinda por uma suposição do olhar, eis a fenda, eis a fissura. Na cena de estupro aqui observado, no corpo abandonado, abre-se a fissura para contemplar a exterioridade, o corpo é a via de acesso à paisagem. Mendieta parece incutir nesta imagem, através da representação a idéia do sacrifício do corpo, equiparando-o com a mesma destruição que há na composição da imagem. Assim, ao considerar o corpo como um despojo, a cena sugere que o expectador faça uma fenda, que, no caso, não é acesso a lugar algum, não há sentido em seu interior, funciona, mais bem, como espaço esvaziado pela morte, que recebe o olhar e o remete como se fosse a um estojo. O sentido da fenda pode estar no sentimento de perda e distância que há na troca de olhares entre o observador e a cena de estupro. Esta forma de compor a fotografia sugere uma maneira de pensar e refletir a paisagem a partir da solidão e da distância que há entre o corpo e a terra. O que será do cadáver quando seu olhar se volte para dentro dele mesmo? Nas palavras de Rilke21, o mesmo questionamento aparece quando ele, tomado pelo medo diante da morte, indaga a Deus o que será dele, Deus, quando já ele como poeta estiver morto: Que farás tu, meu Deus, se eu perecer? / Eu sou o teu vaso - e se me quebro? Eu sou tua água - e se apodreço? /Sou tua roupa e teu trabalho/ Comigo perdes tu o teu sentido.Depois de mim não terás um lugar/ Onde as palavras ardentes te saúdem. Dos teus pés cansados cairão/ As sandálias que sou. / Perderás tua ampla túnica. Teu olhar que em minhas pálpebras, /Como num travesseiro, /Ardentemente recebo, Virá me procurar por largo tempo/ E se deitará, na hora do crepúsculo, /No duro chão de pedra. Que farás tu, meu Deus?/ O medo me domina. De modo distinto, mas nem por isso em oposição, a produção artística do pintor alemão Caspar David Friedrich, dos séculos XVIII e XIX, coloca em questão o que se pode considerar como uma reflexão a respeito dos mecanismos de via de acesso à exterioridade do mundo, em suas pinturas, é interessante como apresenta a questão do estar diante e dentro da imagem. 21
Rainer Maria Rilke, Que farás tu, meu Deus, se eu perecer? Tradução: Paulo Plínio Abreu www.culturapara.art.br 43
Friedrich era apaixonado pela natureza, e sua obra está profundamente vinculada à apreciação da paisagem. Seu anseio de aproximação com a natureza estava de acordo com o projeto estético do romantismo. A arte carregaria assim a missão de conciliar homem e natureza. No entanto, Friedrich imprimiu em suas obras algo mais que a conciliação entre homem e natureza, foi além, provocando o sentido de tensão no encontro desses elementos, na paisagem e nas figuras ali situadas. O projeto de comunhão com a natureza, vinculado ao espírito Romântico, releva o sentimento de perda. O pensador Romântico moderno encontra em sua história o trágico momento de cisão entre homem e natureza, por isso é comum o ideal nostálgico de retornar a uma suposta pureza dos primórdios, a uma idade de ouro. Essa fascinação nostálgica de alguns pintores na procura por uma paisagem perdida vai fazer com que se afastem de sua cidade, de seu país, procurando restabelecer uma intimidade com o distante. Não obstante, estas viagens, ou retiros, os levavam ainda mais para dentro de si mesmos, e as paisagens que pintam acabam por tornarem-se o reflexo do que havia de mais intimo e inacessível no ser.
Fig.11. Caspar David Friedrich. Frau vor untergehender sonne, 1818.
A compreensão do sentido de fissura guarda relação com o estado de impossibilidade que certos artistas experimentam diante do mundo, presente do mesmo modo no anseio dos pintores paisagistas do romantismo, que através de suas obras discutiam a questão da presença e da ausência na paisagem. Friedrich pinta em 1818 o quadro Frau vor untergehender Sonne, cuja tradução seria “mulher diante do declínio do sol”. Neste quadro, ele posiciona a mulher de costas. 44
Essa posição possibilita ao olhar que rasgue uma fenda através da forma vazada da figura do centro do quadro. Assim, como no registro de rape scene, também nesta obra a presença do corpo revela uma ausência, o corpo como passagem, reflexão, inquietação, impossibilidade. A obra “Frau vor untergehender Sonne”, cuja figura humana isolada e solitária está de frente para a paisagem, produz ao olhar um efeito enigmático, ocultando o rosto da figura e permitindo que o espectador se identifique com a figura, que como ela, na mesma posição, contempla a natureza demarcada no interior do quadro. Do fundo da cena a dimensão do incomensurável afeta ao espectador e remete ao ponto para o qual os olhos se voltam, o vazio, o nada. A figura que contempla a paisagem no quadro de Friedrich difere-se da figura do registro de Ana Mendieta, primeiro porque sua postura diante da paisagem não é de abandono, ela contempla com uma atitude que oscila entre a adoração dedicada a um objeto de culto e a observação intelectual meticulosa e racional do declínio do dia. Sua postura lembra uma ação de entrega, quando em Ana Mendieta seria de abandono. Depois, se na obra de Mendieta a marca carnal mostra-se na vagina aberta, na de Friedrich o céu pulsa a intensidade da cor sangüínea. Ambos suscitam inquietação, tanto pela composição como pela ausência de algo. Se em Mendieta angustiava a morte, em Friedrich o que inquieta é a impossibilidade de ver a frente da figura e o fragmento central do pôr do sol, ocultado por ela. A questão do adentrar a exterioridade da obra corresponde à relação entre o corpo e a paisagem presentes nestas obras, diz respeito a uma operação individual do olhar. O ser que observa o mundo encara a impossibilidade de atravessar a distância que sente entre ele e o que tem diante de si, a paisagem, como o espectador ao deparar-se com a ausência inapreensível em uma imagem, ambos precisam criar uma fissura na qual possam lançar e abrigar o seu corpo, o seu olhar.
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2.3 Vertigem
“Entre um ser e outro há um abismo, uma descontinuidade”.22 Do visível para o invisível, do material ao espiritual, “porque todas as paisagens extraem sua vida de um êxtase visionário e porque nós, os que contemplam, em uma renuncia temporal, espacial, objetiva e subjetiva, tratamos de nos perder por entre os domínios do perceber e do sentir”.23 A reflexão de Milani citada a cima abre uma perspectiva de pensar sobre a cena de estupro de Ana Mendieta, o vazio deixado pela artista na paisagem, através do qual o olhar do espectador é levado a rasgar uma fissura ali onde o olho não conseguia alcançar. Esta operação põe em questão o movimento de transição entre o que se vê e o que não, entre o habitar e o desabitar as coisas, isso pode derivar de uma inadequação do olhar. Experiência vertiginosa, a fissura se identifica com a profundidade do abismo, diante do qual um se sente deslocado. A vertigem, sintoma descrito pela sensação de estar sendo empurrado ou arremessado ou girando em torno de si mesmo, quase uma sensação de desfalecimento, experimenta-se sobre tudo a ilusão de movimento, mesmo quando se está paralisado. A contemplação da paisagem e o sentimento de vertigem unem-se no momento em que a exterioridade suscita inquietação aos sentidos, e o que está diante insinua-se de maneira negativa. A sensação do indescritível está ai. O que fazer diante do indescritível? E do inimaginável? O corpo se paralisa na escuridão, emudece aterrorizado. Tais sensações desafiam o saber, por medo ao desconhecido o homem constrói sociedades com muralhas e fronteiras, mas não esquece da pálida presença do incompreensível. O terror nem sempre se agita sobre a evidência de uma aparição horripilante, como um cadáver e a podridão. O terrível escapa à definição, quando não existem palavras capazes de descrever o que se sente e, através desta impossibilidade, abre-se um vácuo perfeito para que habitem pesadelos.
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Bataille. Georges. O erotismo. Porto Alegre: L&PM, 1987.p. 12. MILANI, Raffaele. Estética del paisaje. Paisaje y Pensamiento. Org.Javier Maderuelo. Madrid:ABADA, 2006.p.70. 23
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O terror que se aloja no oculto desafia a razão, mas é algo que secretamente deleita a imaginação dos homens. A categoria do sublime surge com a intenção de incorporar à apreensão estética o universo do inapresentável. Em 1927 Christopher Hussey, baseando-se nas definições de Edmund Burke, atribuiu ao Sublime sete qualidades que o caracterizavam: “Escuridão, tanto física quanto intelectual; poder, entendido como domínio da natureza sobre o homem; privação, como a que se sente na escuridão; a solidão e o silêncio; imensidão, tanto vertical como horizontal; infinitude, tanto literal como induzida por estas características do sublime: sucessão e uniformidade, que são a origem da idéia da progressão sem limites”.24 No sublime, problematizase o inapresentável, o conteúdo ausente que escapa à claridade da razão, ao olhar, nele reside a contradição de ser algo que atormenta, mas que não se pode representar. Essa aflição do sublime encontrava-se, de certa maneira, na imagem do corpo abandonado de Mendieta, assim como no da mulher de costas de Friedrich. Quando ambos confrontam a visão com o poder de uma ausência na paisagem, inquietando e aterrorizando mediante a apresentação da imagem de um corpo abandonado ou entregue na exterioridade, para que se lhe contemple de maneira única e abismal, não é permitido encontrar o olhar, algo que se volte ao espectador. Da faculdade de absorção da vida exterior emana o sublime, a turbulência dos sentidos diante da fisionomia do mistério do inarrável. O terror é uma das causas mais elevadas do sublime. No corpo caído, ou na imagem do cadáver na paisagem coberto de flores, não parece ser importante definir o que se vê na paisagem(aspectos), é muito mais uma relação de um olhar que se enterra. O encontro com o corpo desfalecido na paisagem retira de quem olha o sentimento de vertigem no instante em que esse olhar recai sobre o aspecto mortal e intransponível da paisagem. Seguindo uma leitura Kantiana, o sublime, ao contrário do belo, se manifesta no objeto informe, sem limites. Se o belo faz que se experimente o sentimento de promoção da vida, o sublime, próximo do informe, provoca o sentimento de suspensão das forças vitais. Atuam no sublime as forças de atração e repulsa ao mesmo tempo, um objeto é sublime quando exerce extrema violência sobre a imaginação, impedindo que se reflita sobre qualquer forma. Portanto, a inadequação entre a razão e a faculdade de apresentação é o que suscita no ânimo o sentimento 24
MADERUELO, Javier. Arte y Naturaleza, actas:Earthworks – Land art: Una dialéctica entre lo sublime y lo pitoresco. Edicta.disputación de Huesca, 1995. p.101. 47
do sublime, “Nenhuma forma sensível pode conter o sublime propriamente dito, descansa unicamente na idéia da razão, que mesmo não podendo encontrar uma forma de exibição que lhe convenha, se retém e desperta no espírito por esta mesma discordância que encontramos entre ela e as coisas sensíveis”.25 O que Kant quer dizer, é que o sublime só pode estar em nós mesmos, enquanto disposição do espírito que dá à representação da natureza um caráter sublime. O ânimo, através da contemplação diante da natureza, vê-se alargado quando a natureza ou o que se vê mostra-se aterrador, mas esta qualidade, segundo Kant, não se acha no objeto, e sim em nós. O sublime, em vista disso, está no humano, em sua relação com o mundo, tudo se passa do ponto de vista de um espectador que reage a um certo estado do pensamento que se encontra afetado pela relação livre entre razão e imaginação. Se o sublime diz respeito ao que transborda, ele precisa buscar abalar os limites para realizar sua progressão ilimitada no espaço, necessita destruir a forma, escapar a ela para atingir o infinito. Nesse sentido, tanto Mendieta como o pintor Romântico Friedrich procuram abrir em sua obra a experiência da visão na paisagem como sendo a de um abismo vertiginoso que se encontra na inadequação do sublime. Mendieta realiza um sacrifício que conduz à germinação do indefinido na fissura que deixa para o público em suas obras. A lógica do desastre sempre escapa, mas não se escapa ao desastre. O sentido do sentimento do sublime vertiginoso é a passagem do visível para o invisível, do abismo que há entre um ser e outro, entre nós e o mundo/ objetos. É a potência do inacessível da própria morte, o abismo em cuja direção não é possível lançar-se, ali não se acaba de morrer. Inevitável, mas inacessível.
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KANT,Immanuel. Crítica del Juício. Traduzida para o espanhol por Alejo Garcia Moreno 1876. Arquivo eletrônico (pdf) p.55. 48
3
INSTANTE: VESTÍGIO
“Os deuses e Deus nos ajudaram antigamente a não pertencer a terra onde tudo desaparece, e, o olhar fixado sobre o imperecível que é o supra terrestre, a organizar, entretanto, esta terra como residência. Hoje, quando os deuses faltam, nós nos desviamos cada vez mais da presença passageira para nos afirmar num universo construído à medida do nosso saber e livre deste acaso que nos dá sempre medo, porque ele esconde a obscura decisão”
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É interessante correlacionar o conceito de vestígio na obra de Mendieta, suscitada como o vago por sua qualidade de expressar ou indiciar a falta de algo. Espaços onde algo falta e o sentido da obra repousa na ausência que ela suscita. Mancha vaga de distância que faz com que se tenha de ir além da superfície para se estabelecer a relação com algo que não se apresenta. O vago pode mostrar uma abertura sedutora para o olhar inquieto diante da ausência. O vestígio mostra esse mundo enigmático do oculto na obra de arte. Na artista cubana, o interesse pelo recôndito, tanto na paisagem como na profundidade do ser, surge esculpido nas formas femininas do interior de uma caverna, construindo assim a correspondência entre as características particulares do local e as formas ali situadas. O oco da caverna pode revelar a marca de um vestígio, como se daquele vazio surgissem as próprias imagens ali escavadas, vestígios de uma vaga presença ainda a ocupar o lugar. O escondido na paisagem seduz a imaginação dos que a contemplam, desejo de ultrapassar o próprio lugar com a fantasia e dele retirar o essencial. A artista aproveita-se dessas sensações e interrompe com seu corpo a imagem do lugar, convertendo-se a si própria em fragmento, vestígio de sua presença, transforma-se em espírito do lugar. A série de fotografias que comparece neste capitulo caracteriza-se pela problemática dos rastros como indícios do desaparecimento do corpo na paisagem. Assim são desdobrados três problemas a partir desta compleição: A questão da ausência como uma relação entre o Molde e o Vazado, a questão do ocultamento de algo que permanece recôndito nas Grutas e Fendas e, por fim, a questão do que sobrevive na forma que se altera: teleplastia.
26. BLANCHOT, Maurice. A conversa infinita, a palavra plural. São Paulo: Escuta, 2001.p.7. 49
3.1 O molde e o vazado.
Fig. 14. Ana Mendieta. Sem titulo. Série Siluetas, silueta de tierra y hierba. Iowa, 1978.
O molde é o oco no qual se verte o metal derretido, que quando solidificado há de formar um determinado volume, que, por conseguinte, toma a forma que constitui o vazio do molde, sua matriz. O molde, como uma matriz, é aquilo que dá origem. Através de seu modelo escavado, pode-se obter um relevo ou um volume, vertendo algum líquido ou matéria pastosa em seu interior. O vazado, por sua vez, diz respeito aos volumes provenientes do molde, que saíram ou vazaram dali. O verbo vazar, além disso, refere-se ao ato de tornar vazio e abre um vão ao escapar do lugar onde estava contido, como no caso de uma peça fundida no interior do molde, logo retirada dali, desarraigada. Aquilo que vaza também pode ser entendido como algo que se esgota pouco a pouco, escapando ao se desfazer do lugar onde se encontrava.
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Fig. 15. Ana Mendieta. Sem titulo: serie siluetas, silueta de hierba. Iowa, 1978.
Há aqui duas instâncias para serem pensadas em conjunto, a do molde enquanto impressão que continha em seu interior um determinado volume, e o vazado como volume retirado de seu molde, caracterizando-se como preenchimento que escapa de sua origem. Nos registros fotográficos de Ana Mendieta, nos quais se pode ver a impressão de um corpo que já não está mais, observa-se a retirada, ou o desprendimento de um volume que interfere na paisagem por conta de sua ausência, causando um ponto de ruptura capaz de recordar uma ferida. A semelhança com uma ferida na vegetação reside na capacidade que a fenda possui de conduzir o observador a um estado de inquietação, pois dá a impressão de sangrar, surge o sentimento de consternação perante o que não está mais ali.
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Embora uma ausência, o lugar segue tomado pela presença de algo que persiste. Sabe-se, então, o quanto esta forma esvaziada tem o efeito de produzir um lugar, a partir da morte que fez vazar seu volume duvidoso. Existe no vestígio uma existência isolada na paisagem. Da mesma forma, o molde desencadeia e origina o vazado, o espaço vazio deste registro fotográfico, a medida de um corpo. O vestígio organiza uma espécie de molde na paisagem. Entretanto, o que em definitiva isto supõe é que o carnal que ali não se apresenta mantém, mesmo que deslocado e desaparecido, uma relação de vazado excluído e separado de seu molde, mas que, no entanto, para além do visível introduz no olhar, através desta fenda, um assombro que se desdobra do enigma por ela imposto. Os dois, distantes, Molde e Vazado, fundem-se na vontade de escapar um do outro. Este vestígio produz o lugar, sugerindo que a imaginação escave a partir da fenda deixada pelo molde e promove assim o jogo da morte no olhar: “O morto monopoliza seu lugar ciosamente e une-se até ao fundo, de tal maneira que a indiferença deste lugar, o fato de ser, no entanto, um lugar qualquer, torna-se profundidade de sua presença como morte, torna-se o suporte da indiferença, a intimidade escancarada de uma parte nenhuma”.27 A falta, portanto, pode fazer aparecer o lugar, assim como pode produzir uma imagem. Neste ponto, o corpo é exterior ao lugar onde se encontra seu vestígio. No registro fotográfico de Mendieta, o corpo ocupa o vago no vazio deixado por ele na paisagem, abrindo com sua ausência um fundo ameaçador, salientando seu desaparecimento. Mas, se o que se vê é apenas um vestígio da forma vazada, e o corpo não está mais ali porque desencarnou, o que se esconde por trás da profundidade deste vestígio? Esta ausência deixada pelo corpo, passagem para a indiferença da morte, mesmo que se diga que o cadáver não é mais deste mundo constitui uma presença ausente, pois “Permanecer não é acessível àquele que morre”.28 A estranheza do oco abandonado, algo que existe no interior em sua calmaria absoluta, como se o que não está houvesse encontrado seu lugar, comove o espectador. A morte é uma questão de lugar, apesar de suspender a relação com ele, nele se apóia. Mesmo assim, não está ali
27 28
BLANCHOT, Maurice. O Espaço literário. Rio de Janeiro: Rocco,. 1987. p. 258. Idem, ibidem. 52
onde poderia estar? Não, não está em parte alguma. Precisa amparar-se em algum lugar, “a presença cadavérica estabelece uma relação entre aqui e parte nenhuma”. 29 A solidão apodera-se em torno a este vestígio na paisagem, a sobra de algo que já não é mais, afastou-se do mundo, provocando uma relação de interrupção. A imagem pede a suspensão do mundo, por conseqüência o dramático desta situação encontra-se na aparição de um fundo vazio, que não se pode tanger, mas segue inquietando. Estas séries de ausências trabalhadas pela artista mostram aquilo que escapa ao domínio da visão, a presença como distancia em relação ao que se olha, o inapreensível da imagem. A distância, como a coisa presente em sua ausência, mostra-se como negativo que soçobra como eco que retorna de um abismo, trazendo consigo o volume do vazio, sua reverberação. Frágil posicionamento daquilo que não está mais, o lugar onde descansa a ausência assume sua freqüência lúgubre, confirmando que o lugar onde se morre não é um lugar qualquer. Este oco, como o deixado pela morte de algo, indica o volume de um corpo ausente, retirado da paisagem, e arremessado para fora da possibilidade da visão. O volume ausente perturba esta imagem, oferece ao espectador o paradoxo de que “Talvez só haja imagem a pensar radicalmente para além do princípio de superfície. A espessura, a profundidade, a brecha, o limiar e o habitáculo – tudo isso obsidia a imagem”.30 Nesta série de ausências, encontra-se a experiência de uma imagem que vem depois e em continuação do que se vê. Para que o corpo ausente reapareça, é preciso imaginá-lo em sua distância, somente assim é possível presentificá-lo ao lugar. Mendieta ultrapassa a concepção de volume, o faz no vazio, esta concepção torna a obra da artista ímpar, intrigante. Estes vazios desafiam o olhar, colocando sob suspeita a imagem como aparição.
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Idem, ibidem. HUBERMAN, Georges, Didi. O que vemos, o que nos olha. São Paulo: ED.34., 1998.p. 87. 53
3.2 Grutas e fendas.
Fig. 16. Ana Mendieta. Cueva del Águila, Parque Jaruco, La Habana. 1981.
Ao longo da história, várias populações usaram a caverna como seu primeiro abrigo, local de sepultamento e também para rituais religiosos. Caverna, do latim cavus, buraco, ou ainda, uma gruta, do latim vulgar grupta, corruptela de cripta. Cavidade natural, dentro dela a escuridão não permite que cresça vegetação alguma, quanto mais nela se penetra, o oxigênio se extingue. As cavernas serviram, em idades remotas, como ambiente seguro e moradia para o homem primitivo, fato comprovado pela imensa variedade de evidências arqueológicas e pela arte rupestre. Em 1981 Mendieta visita Cuba, sua pátria de origem, por primeira vez desde 1961, quando tinha doze anos e fora obrigada a deixar o país. Estando ali, voltou sua atenção justamente para o que poderia haver de mais íntimo e retirado na paisagem, as paredes de uma caverna, as Grutas del Aguila, situadas no Parque Jaruco. Ali, solitária, chegava muito cedo e somente voltava quando o sol se punha. Esculpia nas paredes da caverna figuras femininas, e para cada uma delas dava um nome relacionando-os com os de personagens de mitos de povos préhispânicos.
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Mendieta registrou cada uma em fotografias individuais, intitulando-as com nomes de deusas da criação no idioma taíno. São figuras nas quais o sexo foi marcado e escavado profundamente, produzindo de certa forma uma identificação entre o orifício na paisagem e o sexo feminino. Neste momento de sua produção, a artista trabalha com o contorno do corpo, uma relação com a profundidade diferente da que havia trabalhado nos vestígios esvaziados analisados anteriormente. É como se nesta caverna houvesse encontrado um lugar idôneo para relacionar-se com a profundidade do sagrado, esculpindo e escavando num espaço interior, num oco da terra.
Fig. 17. Ana Mendieta, Guanaroca (Primeira mulher), Cueva del Águila, Parque Jaruco, La Habana, 1981.
Ao trabalhar no interior da terra, estabelece uma correspondência com o interior do corpo. Se antes o molde era o espaço do qual o corpo saia esvaziado, agora, em outro momento de sua obra, faz surgir novamente a presença do corpo mergulhado e engolido pela profundidade da terra. No entanto, não somente o enterra, além disso, o situa neste lugar que lhe serve de receptáculo.As figuras femininas ali esculpidas aparentam terem sido retiradas do próprio lugar, nascidas da escuridão e da experiência solitária e particular da artista. A obra quer reabrir uma brecha, tangenciando a ela a intimidade do corpo, sua profundidade secreta, o interior de uma caverna como a abertura da vagina. No interior da caverna, acha-se a paz do retiro e do ocultamento, assim como o tumulto e o desespero da solidão e da morte. As cavernas, o orifício de uma gruta e também as fendas propagam o mistério do inexplicável, do invisível. O que se oculta em seu interior? O enigma do 55
nascer e do morrer, aparecer e desaparecer do mundo. Estamos sós, cada um de nós entre estes dois momentos de nossas vidas enquanto “indivíduos que morrem isoladamente numa aventura ininteligível”.31 No espaço da caverna, aliam-se os sentimentos de angústia do perecimento e o regozijo de um abrigo natural para os corpos. A Fenda parece ser o ponto crucial que une toda a questão, ela está presente nas vaginas que Mendieta escava e esculpi nas paredes internas do orifício da terra. A fenda sendo um fundo e um destino, dela o ser humano sai e a ela retorna em sua morte. O ato de criação une-se à experiência da morte, fendas da sexualidade, do nascimento e da desaparição. Ao tirar proveito da formação natural do lugar, remete ao espaço interno e sagrado do corpo, e assim cria correspondências entre o oculto na natureza e o íntimo do corpo. O pintor francês Gustave Coubert (1817-1977) dedicou também grande atenção ao tema da paisagem. O intrigante em algumas de suas obras mostra-se na constante aparição do orifício, que toma a forma de grutas, cavernas, e inclusive a vagina, como no quadro intitulado L´origine du mond.(a origem do mundo).
Fig.18.Gustave Coubert. L´origine du Monde.1866.
Fig.19. Gustave Coubert. La grotte de Source. 1864.
A caverna também é o espaço do horrendo por seu aspecto viscoso e úmido que repugna os seres humanos. É a mesma viscosidade da putrefação que enoja e angustia nossos corpos. “A 31
BATAILLE, Georges. O erotismo. Porto Alegre: L&PM, 1987. p.15. 56
vida é sempre um produto da decomposição da vida. Ela é tributária, em primeiro lugar, da morte, que desocupa o lugar; em segundo, da corrupção, que acompanha a morte, e repõem em circulação as substâncias necessárias ao incessante aparecimento de novos seres”.32 Esta cavidade natural, oca, abriga o ermitão, personagem que se retira e se distancia do mundo. O tema do retiro espiritual figura no quadro que Giovanni Bellini dedicou ao tema de São Jerônimo no deserto. Trata-se de um entorno cuja relação de distância com a cidade, e com a cultura é adequado a quem deseja separar-se do convívio humano. Assim, todos os elementos do quadro não são aleatórios, a caverna como casa, mas também oratório; a árvore descascada assemelha-se à roupa que se desgarra do peito magro, suplício da carne entregue à paisagem atroz. Mas, se o que consta neste quadro é o personagem de um santo, torna-se importante lembrar que a vida para ele é trânsito, um caminho para outra, que é morada. Sua paisagem, a caverna que habita, lhe servirá certamente como tumba, receptáculo de seu corpo, que mesmo que vivo prepara-se para a morte.
Fig.20. Giovanni Bellini. São Jerônimo no deserto. 1480-87.
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BATAILLE, Georges. O erotismo. Porto Alegre: L&PM, 1987.p.52. 57
A imagem da caverna transita entre sentidos diferentes, do acolhedor, ligado ao nascimento, transborda para o sentido da cova, casulo da morte, orifício onde se deposita o cadáver, onde se cultua a morte. Caspar David Friedrich (1774-1840) em 1825, depois de se curar provisoriamente de uma doença que futuramente o levaria a morte, pinta dois quadros nos quais identifica-se a entrada de um cemitério. O artista mostra a fenda e a cavidade através da imagem do portão, conduzindo e seduzindo o observador a apreciar desde fora a paisagem do cemitério. No fundo destes portões, cuja passagem somente é possível através da imaginação, avista-se a inacessibilidade da morte. Friedrich pode querer expressar nestas telas a aproximação com a fatalidade da morte, encontrando uma maneira de lidar com ela, tornando-a mais suportável. Este encontro não deixa de ser angustiante, horror que congela, mas que ao mesmo tempo atrai.
Fig. 21.Caspar David Friedrich, Das Friedhofstor, 1825.
Fig. 22. Caspar David Friedrich, Friedhofseingang, 1825.
A força que possuem estes orifícios nas duas telas causa espanto frente à ameaça que representa o lugar da morte. Quando ali chega, a imaginação se sente destruída, a fenda se mostra como um acesso ao impossível.
Bataille debruçava-se sobre temas semelhantes e sobre a 58
angústia frente à morte escreveu: “Recusamos ver que a vida é a armadilha feita ao equilíbrio, que toda ela significa uma situação instável, desequilibrada, para onde nos conduz.”.33
Fig. 23. Caspar David Friedrich, Friedhof im Schnee, 1826.
A fenda que se faz nos portões do cemitério dos quadros observados acima, reaparece num outro do mesmo pintor, porém, neste a fenda se duplica, uma no portão e a outra na abertura da cova que ocupa o primeiro plano da tela. No cemitério enterram-se os mortos, enterrar e ocultar o corpo alivia a dor da perda física do ente querido. O sepultamento, além do mais, evita que os vivos vejam e cheirem o cadáver em decomposição, “ o horror à morte não está ligado somente à destruição do ser, mas à putrefação que devolve a carne morta à fermentação geral da vida(...) O horror imediato conserva – pelo menos vagamente – a consciência de uma identidade do aspecto aterrador da morte, de sua fétida corrupção, e dessa condição elementar da vida, que repugna”.34 O quadro mostra uma cova recém aberta, com a pá ao lado, o cadáver não está ali, mas recordá-lo povoa a zona obscura da imagem. Esta fenda, mesmo sem o morto, carrega de antemão o seu vestígio. A ausência da morte abre uma cova.
33 34
Ibidem.p.56. Ibidem, p.53. 59
Na caverna Mendieta escavava formas femininas lembrando cavidades vaginais, vestígios de sua passagem através de uma fenda natural, antro sulcado que abre e abraça suas figuras. Residência e sepulcro na mesa fissura encerram o sentido da morte e da ausência em seu interior, memória da passagem do corpo e do pensamento por onde o espectador adentra e percorre com seu olhar, no entanto, indaga-se a respeito do transitório, da fragilidade que constitui a existência no instante em que seu olhar se perde na obscuridade funesta do buraco. Mendieta, Coubert, Bellini e Friedrich exploram as cavidades como elemento determinante na composição do sentido e da forma para intensificar a ausência e afirmar algo enigmático. A artista cubana busca as cavernas para rememorar sua origem perdida, nela escava figuras femininas e reforça a presença do sexo, talvez queira afirmar a sexualidade e o nascimento, ao mesmo tempo a intimidade e a solidão da existência. Depois, as telas de Coubert também procuram na imagem da fenda o enigmático e o lúgubre, ao mesmo tempo, sedução e abrigo, orifício original na carne e na terra. Elementos semelhantes aos de Mendieta, terra, sexo, nascimento e desaparição. Bellini trabalha a paisagem da caverna em relação ao corpo entregue à destruição na imagem do ermitão, a cavidade natural lhe serve de morada, oratório e tumba, lugar afastado da civilização e próximo ao sagrado, onde o corpo encontra asilo para extinguir-se na terra. Friedrich, por outro lado, pinta os portões de um cemitério, a entrada conduz o olhar a terra dos mortos, sua fenda, os portões e a cova aberta, convida o espectador a tentar descobrir a feição enigmática da morte. Esses componentes criam um diálogo entre as obras, no momento em que as múltiplas fendas abrigam o que há de mais profundo e convulsivo em nossa lembrança, o fim. . “Coveiro: Quem é que constrói mais solidamente do que o pedreiro, o carpinteiro e o construtor de navios? (...) Quando te fizerem de novo essa pergunta, responde que é o coveiro, porque a casa que ele constrói dura até o dia do Juízo”. (Shakespeare, Hamlet).35
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SHAKESPEARE, W. Hamlet. Disponível em: http://www.scribd.com/doc/29967/shakespeare-hamlet. Acesso em: 17 novembro 2007. 60
3.3 Teleplastia.
Fig. 24. Ana Mendieta. Sem titulo. Série arbol de la vida. Old Man`s Creek, Iowa, 1979.
Em duas fotografias realizadas entre 1977 e 1979, pertencentes à série Arbol de La vida, Mendieta enfatiza mais uma vez a relação do corpo com o espaço exterior, excedendo os limites corpóreos a fim de deslocá-lo para o lugar do outro, o exterior, colocando em evidência um processo de despersonalização pela assimilação do espaço. Roger Caillois escreveu sobre o perturbador fenômeno da psicastenia. Abordando a homocromia como o fenômeno em que a imagem retiniana é transposta para a pele através da ação automática produzida pela excitação luminosa nas células cromóforas, o que por sua vez resulta na produção de similitude de certos animais com o outro e com o meio, procurou pensar sobre esta circunstância também conhecida como telefotografia, recusando-se a simplificá-la, quer pela explicação finalista da religião quer pelo mecanicismo científico. Uma vez que restos de animal mimetizado podem ser encontrados nas vísceras do animal predador, tal fenômeno deveria ser considerado menos como uma defesa para fins de preservação e mais como um instinto de abandono, posto que o olho animal pode ser pensado como um 61
veículo de fascinação que ultrapassa as soluções dadas tanto pelo acaso como pela adaptação. Ainda que sofisticada, a imitação não deixaria de ser uma armadilha e a distinção do organismo em relação ao meio estaria comprometida por um distúrbio da percepção espacial que poderia ser sintetizado pela afirmação sei onde estou, mas não me sinto no lugar onde me encontro.36 Nesta tendência à imobilidade e ao inorgânico o que se confirma é uma economia de dispêndio, verificando-se o mesmo no conhecimento e na arte, cujos movimentos mais atraentes acabam por agir como força final, resultando numa espécie de uniformidade ou anulação que conduz ao inanimado.
Fig. 25. Ana Mendieta. Sem título. Série Arbol de la vida. Old`s Man`s Creek, Iowa, 1977. 36
CAILLOIS, Roger. Mimetismo e psicastenia legendária. Revista Che Voui, ano 1, nº, Cooperativa Cultural Jacques Lacan, Porto Alegre: 1986. 62
O corpo que se observa em ambas as fotografias de Mendieta parece mimetizar-se ao tronco de uma árvore, a paisagem e o corpo incorporam-se num só movimento. Para tanto, o corpo se despoja de sua ação, acoplando-se ao fluxo do entorno e constituindo com ele uma continuidade, assim, a teleplastia com o espaço requer a entrega total do sujeito. Este, por assim dizer, transportar-se até o outro corresponde a um momento de fascinação do olhar sobre as coisas, mergulho do olho na imagem para poder produzir este intervalo mimético com o corpo. Oculto na paisagem, o corpo se confunde com a superfície do ambiente, renunciando a si mesmo, sua carne apenas sobrevive enquanto vestígio estático adornado pela superfície do outro. Assim como o fenômeno da Teleplastia o conceito de Genius Loci, ou espírito do lugar, corresponde-se com esta tendência de imersão na imagem de um lugar. O Genius Loci foi um termo amplamente usado para designar as características particulares de um determinado lugar e também o conteúdo oculto e invisível dele. Sua invenção remonta à Inglaterra do século XVIII, no âmbito do paisagismo inglês, e retoma o que os Romanos chamavam de Genius Loci, segundo o qual, entendiam que um edifício só deveria ser construído se o lugar a ele destinado estivesse sob a proteção do genius loci, divindade que em alguns casos era representada com alto-relevos ou pinturas em murais com a forma de serpente. Seu culto estava associado a Lar (s.), Lares (pl.), divindades domésticas romanas. Inicialmente associados a Mane - Divindade proto-romana dos mortos - os Lares passaram a ser cultuados no culto doméstico primitivo como personificações de seus antepassados. A dimensão do invisível do genius loci comparece portanto, como um vestígio do corpo desaparecido que permanece no mundo, desta maneira, a teleplastia enquanto fenômeno de aparição materializada de alguém em local de onde está ausente37, perfila-se nesta transferência do morto e a desintegração de seu olhar recomposto na dimensão oculta do espaço .
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HOUAISS, Antônio. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. 1. ed. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. 63
Fig. 26. Genius loci e Lares. Afresco, Pompéia. 60-79.D.C Fig. 27. Genius loci e Lares. Afresco, Pompéia. National Archaeological Museum. 100.D.C.
A jardinagem inglesa do século XVIII promoveu a imitação da natureza com o desejo de tornar as paisagens com a aparência de naturais. Para construir esses espaços, onde a natureza parecesse ilimitada, era preciso estar atento a algumas regras, como escrevia o poeta Joseph Spence em uma carta ao seu vizinho, – “a primeira regra e a mais essencial é consultar o gênio do lugar”.38 No entanto, ao contrário do que se pode imaginar, a construção do jardim paisagista supunha a transformação radical da paisagem original, mudando a geografia original com grandes movimentos de terra e, inclusive, se necessário, destruindo aldeias inteiras e assim, paradoxalmente, substituindo o caráter original do lugar. O genius loci, nestes jardins, poderia estar representado no buraco escuro de uma gruta, ou ainda em inscrições remetendo a uma existência mítica do lugar. Em todos os casos, trata-se de um jogo de distâncias, o espírito do lugar se aloja no que o olho não pode ver, ou ainda naquilo que já não está mais ali. Ele assegura sua existência relacionando-a à questão da presença do lugar e à manifestação do oculto. Ao expectador cabe a responsabilidade de invocá-lo, para tanto, deve ser capaz de submergir no caráter invisível do lugar, sua existência não está senão no olho daquele que observa. A invocação do espiritual do lugar aponta em direção ao caráter transcendental do espaço, àquilo que se apresenta sempre deslocado do lugar próprio onde se encontra. O espírito do lugar 38
REMÓN, Juan. El jardín como arte. La invención del gênio del lugar. Actas del III Curso, Huesca, 1997. p. 199. 64
como a essência do lugar dissimulado, expressão do que falta, do rosto desaparecido, levado pela morte. “Quando a morte se torna poder, começa o homem, e esse começo diz que, para que exista o mundo, para que haja seres, é necessário que o ser falte”.39 O olho ausente transferido ao genius loci identifica-se com as qualidades secretas e veladas da paisagem. Ali onde se camufla a morte. O espírito do lugar pode igualmente encontrar-se no aspecto silvestre, diz respeito às qualidades que foram perdidas com o tempo, os extratos históricos distanciados e que se rememoram como ausências. Unido às concepções Românticas do sublime, o espírito do lugar remete à apreciação de uma paisagem mais rústica, onde o oculto e o invisível podem aflorar. Sua apreciação conecta-se ao desejo de fazer aparecer o indômito da natureza, assim como localizar vestígios que sirvam de conexão com o caráter essencial e primordial do lugar. O genius loci estimulava a imaginação dos que passeavam pelo jardim e contemplavam a paisagem. Mas, oriundo do espanto, ou da surpresa, imaginar a possibilidade de se avistá-lo, por isso talvez fosse comum aos romanos, que, como já foi dito, representá-lo como uma serpente, animal terrestre e rastejante, cujo movimento sinuoso fascina e aterroriza a quem olha. O Sacro Bosco, jardim ou bosque situado na cidade de Bomarzo, província de Vitebro, na Itália, foi construído entre 1552 e 1560 por encargo do Duque Vicino Orsini com acompanhamento do arquiteto Pirro Logorio, reúne um conjunto peculiar e assombroso de maravilhas. Para entrar nele, há de se atravessar em primeiro lugar uma horta frutífera, até ai tudo é júbilo, mas eis que se tropeça. Desavisado diante de estátuas monstruosas de pedra, surge representado com figuras mitológicas uma cena de esquartejamento, depois um cavalo Pégaso coxo, em seguida sereias que esparramam sua cauda lasciva pelo solo, entre outras surpresas. Cada uma destas figuras monstruosas foi escavada e retirada das pedras que compunham originalmente o lugar. Elas encarnam o genius loci a brotar das pedras pelas mãos do escultor. O jardim de Bormazo afasta a sensação do descanso, ele suscita atenção com o entorno. O banco que serviria para o descanso porta uma inscrição chamando a atenção para o aspecto assustador do lugar:
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BLANCHOT, Maurice. O Espaço literário. Rio de Janeiro: Rocco, 1987. p. 254. 65
Voi che pel mondo gite errando, vaghi di vedere maraviglie alte e estupende, venite qua, dove son faccie horrende elefanti, Leoni, orsi, orchi e draghi. Trata-se da imagem da paisagem como reino do inesperado, do imprevisível, não só confirmando a liberdade do reino da fantasia, este jardim sinistro conduz o caminhante em direção à lembrança da morte ao alcançar a região mais alta do jardim o caminhante se depara com um pequeno templo - mausoléu, monumento funerário dedicado pelo proprietário como prova de amor à esposa falecida, a dor da perda surge nas figuras aterradoras das pedras, solidificando e experiência de uma dor, o que a princípio seria inapreensível. Embora a morte seja o tema central, pois o monumento funerário ocupa a parte mais alta do terreno, um enorme bloco de pedra destaca-se das outras, nesta pedra uma espécie de cabeça de monstro foi esculpida e a boca escancarada se faz gruta. Seus olhos são vazados, do lado de fora, estes orifícios não adquirem a força que advém deles quando se está dentro do lugar, porque estes orifícios, do lado de dentro, são olhos abertos e contemplativos ao espaço. Sobre a boca aberta do mostro conhecido como o Orco se lê: Ogni pensiero vola (Todo pensamento voa), em seguida, quando se entra pela boca, tem-se a sensação de estar sendo devorado, ou adentrando num lugar secreto.
Fig. 28 e 29. L’orco. Sacro Bosco –Villa Orsini – Itália
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O fantástico se abre para a visão quando menos se pode imaginar, desde ali de dentro da cabeça contempla-se a paisagem através destes furos, tanto o da boca quanto o dos olhos, eles servem de janelas, neste momento, quem está ali dentro incorpora-se à cabeça-caverna e observa o jardim de dentro de um estranho esconderijo. Território da imaginação, em seu interior, o sujeito torna -se ele mesmo o oculto na paisagem, interior de uma cabeça que é a de um mostro, o visitante associa a figura a si mesmo. A experiência sugere que o que ali esteja se torna o próprio espírito do lugar, o Genius loci, o sonho do ser sonhado. A dor da perda se refaz na expressão do monstro, sua face sugere uma misteriosa resposta do lugar à indagação da morte. O sofrimento indescritível do amante vive neste oco oculto, um vestígio de sua dor. O desfecho da história do conde que fez um jardim para sua amada morta termina com seu suicídio dentro desta cabeça. Por outro lado, quando se volta a pensar a obre de Mendieta, ao buscar mimetizar-se à paisagem, ela interrompe com seu corpo a imagem do lugar, provocando um distúrbio ao unir-se à natureza. O Genius Loci do paisagismo presente em Mendieta em sua condensação oculta com a paisagem. O corpo camuflado se une ao espaço ao esvaziar seu conteúdo, sua presença se vê desmanchar-se na aparência do outro. O vestígio é o que sobra e o que sobrevive da ação intencionada, ação que se une ao desejo de modificar uma imagem para colocar outra em seu lugar. O espírito do lugar se faz do próprio corpo da artista, convertido em vestígio ao esvaziar seu conteúdo com a aparência encarnada do lugar. Por fim, a Teleplastia e o Genius loci, entre um aquém - além tumular e a atração pelo abandono e dispêndio que se torna ornamento, apontam ao enigma do inapreensível que a arte pode apenas tangenciar e que jamais cessa de retornar. Na obra de Mendieta é recorrente a tendência do corpo a perder-se no meio ambiente. O espaço parece ser uma potência devoradora para o seu corpo, persegue e apreende sua pele, seu olho, seu movimento, então, o pensamento abandona o corpo e atravessa a fronteira da pele para habitar o outro. O espírito do lugar, ou Genius loci, descansa na crença sobre um aspecto, ou aparência oculta que se tentaria alcançar com o olhar da intuição, é um além mundo, diz respeito ao que ainda permanece como lastro do que foi perdido. Na teleplastia, a imitação é uma armadilha, um distúrbio que afetas as definições do sujeito com o espaço, a ponto de levá-lo a inércia e ao abandono á medida que se assemelha com o inanimado.
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Em Mendieta, a busca pela indeterminação das fronteiras entre a força do exterior e a intimidade do interior acaba por fazer do próprio corpo um habitáculo que se abre sem reservas no desejo de alcançar a pureza das relações com o outro. Blanchot ao escrever sobre a poesia de Rilke encontra no poeta a vontade de atingir pela poesia o livre acesso entre os espaços da interioridade e da exterioridade. Ao deparar-se com a idéia de uma consciência fechada sobre si mesma, o poeta quer olhar para fora como o animal, que está onde olha, pois seu olhar não o reflete nem reflete a coisa, mas abre-se para ela, e desta maneira deslocar a consciência para fora dela, no êxtase desse movimento: “Através de todos os seres para o único espaço: espaço interior do mundo. Silenciosamente voam as aves através de nós. Ó eu que quer crescer, olho para fora e é em mim que a árvore cresce! ”. 40
Entre este poema de Rilke datado de 1914 e a série de fotografias de Mendieta Arbol de La vida corresponde-se o desejo de interiorização do exterior a fim de ingressar fora dos limites divisórios que os separam das coisas. O artista busca sobre a superfície das imagens o espaço do imaginário, sonhando em perder-se e fazer com que o inapreensível se volte para o interior da obra. Contudo, a experiência do artista, como escreve Blanchot, é uma experiência estática e, como esta, uma experiência de morte: “Ver como se deve é essencialmente morrer, é introduzir na vista essa volta que é o êxtase e que é a morte”
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. Eis então a questão essencial, o olhar
indefeso na teleplastia, quando o espaço requer a entrega total do sujeito e ele então ao se abrir para acolher o outro corre o risco de desaparecer, pois seu movimento o volta para o invisível.
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IBID. P.133 IBID. P.150. 68
4. REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICAS BATAILLE, Georges. O erotismo. Porto Alegre: L&PM, 1987. BATRA, Agustí. Antologia. Relatos maetros de terror y mistério. Barcelona: Fontana Rústica, 1977. BLANCHOT, Maurice. A conversa infinita, a palavra plural. São Paulo: Escuta, 2001. BLANCHOT. Maurice. O espaço literário. Rio de Janeiro: Rocco, 1987. CAILLOIS, Roger. Mimetismo e psicastenia legendária. Revista Che Voui, ano 1, nº, Cooperativa Cultural Jacques Lacan, Porto Alegre: 1986. CASTRO, Fernando. El Jardín como arte, La Pasión del olvido. Huesca: Disputación de Huesca.1997 CASTRO, Fernando; COPON, Miguel. Paisajes en ninguna parte. Revista del occidente, Madrid, n. 189, p. 49. Centro Galego de arte contemporânea. Ana Mendieta. Santiago de Compostela,1996. DELEUZE, G. Diferença e Repetição. Disponível em: <http://netart.incubadora.fapesp.br/portal/Members/tete/DifRep.doc> Acesso em 20/11/2007. DIDI-HUBERMAN, O que vemos, o que nos olha. São Paulo: Ed 34, 2005. DIDI-HUBERMAN. Ante el tiempo. Buenos Aires: Adriana Hidalgo editora, 2006
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