Visão 18 a 24dez2014

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CASO DOS SUBMARINOS FOI AO FUNDO A JUSTIÇA NÃO CONSEGUIU SEGUIR O RASTO DAS ‘LUVAS’ • NÃO TEVE A COLABORAÇÃO DOS ALEMÃES • DERRAPOU NOS PARAÍSOS FISCAIS • NÃO CONSEGUIU PROVAR QUALQUER CRIME DE CORRUPÇÃO • NUNCA CHEGOU A COLOCAR PORTAS COMO SUSPEITO ‘OFICIAL’ www.visao.sapo.pt N.º 1137 • 18 a 24 de dezembro de 2014 Continente e ilhas: ¤ 3,00 • Semanal

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O MUNDO DAS CRUZADAS

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SRI LANKA DEZ ANOS DEPOIS DO TSUNAMI

MOÇAMBIQUE ESTÁ LIVRE DE MINAS

A NOVA VIDA DO LINCE IBÉRICO

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SUMÁRIO

Ed. 1137 | 18 de dezembro de 2014

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Radar

Portugal

36 Submarinos História de um arquivamento 50 Perfil Mariana Mortágua, a nova estrela do Parlamento

Economia

58 Tecnologia O futuro já está aqui

PO

52 Urbanismo Geração Epul 60 Caso BES As contradições

Sociedade

62 Desporto Treinadores portugueses pelo mundo 74 Educação Balanço das aulas em atraso 76 Conservação Lince à solta 82 Saúde Gripe vai atacar forte 84 Entrevista J. Reid Meloy, consultor da série CSI

Mundo

86 Moçambique Nova era sem minas 94 Sri Lanka Esquecer o tsunami à beira do Índico

Cultura

100 Entrevista Jordi Savall 106 Música Planeta YouTube 110 Livros A estreia literária de um publicitário de sucesso 112 Pessoas

Opinião

12 Gonçalo M. Tavares 18 Luís Marques Mendes 18 Luís Amado 34 José Gil 48 José Carlos de Vasconcelos 98 Victor Ângelo 114 Ricardo Araújo Pereira

VISÃO Digital Leia a VISÃO, em versão para iPad e Android, com conteúdos exclusivos e multimédia, na véspera de a revista chegar às bancas. Saiba como assinar as edições digitais em www.assineja.pt 4 v 18 DE DEZEMBRO DE 2014

36 | História de um arquivamento Boas notícias para Paulo Portas: está decidido o arquivamento do caso dos submarinos. No momento em que o PS se debate com o facto de ter um dos seus ex-líderes em prisão preventiva, a direita pode respirar de alívio. Exclusivo VISÃO

52 | Geração Epul Criada em 1971 para ordenar o território, parar a desertificação da capital e rejuvenescer a população, a Empresa Pública de Urbanização de Lisboa será extinta no último dia deste ano devido a dificuldades financeiras

76| O regresso do lince A VISÃO acompanhou durante um mês os trabalhos de introdução do primeiro casal de linces-ibéricos nas matas portuguesas. Jacarandá e Katmandú representam a esperança de salvação do felino mais ameaçado do mundo

86 | O dia D para Moçambique Até ao fim do ano, torna-se no primeiro dos cinco países mais minados do mundo a ser declarado limpo

100 | Entrevista com Jordi Savall «Se a Cultura não é capaz de melhorar a vida das pessoas, não serve», diz o maestro e intérprete numa entrevista exclusiva à VISÃO

VISÃO SETE Destacável

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NORTE & SUL

Descubra connosco o maravilhoso mundo dos azeites

Atualização permanente da informação de Portugal e do mundo

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LINHA DIRETA VISÃO HISTÓRIA

No tempo das Cruzadas

O QUE MAIS ENCONTRA NAS BANCAS Uma série de livros e discos podem ser comprados a preço reduzido, nesta época natalícia, juntamente com a VISÃO. Pode também encomendá-los pelo telefone 214698801

HOBBIT: A DESOLAÇÃO DE SMAUG O segundo episódio da trilogia de Hobbit (€5,95)

‘O FACTOR HUMANO’ A obra-prima de Graham Green é o último título da coleção de policiais 'Calafrio' (€6,90)

D

esde o início do séc. XXI, a ideia das antigas Cruzadas tem aflorado de novo aos espíritos, à medida que um velho fantasma parece reaparecer no nosso subconsciente. Primeiro, foram as ameaças - verbais e físicas - que a Al Qaeda dirigiu ao Ocidente; depois, a invasão do Iraque, numa aventura a que não faltaram os Corações de Leão, Barbarruivas e Saladinos dos novos tempos; agora, é a ofensiva do Exército do denominado Estado Islâmico do Iraque e do Levante que nos faz evocar tempos idos. Foi esse o pano de fundo que levou à escolha do tema da VISÃO História, hoje posta à venda: as Cruzadas. Durante dois séculos, entre 1096 e 1272, partiram da Europa oito expedições militares rumo à Terra Santa. Assistiu-se, pela primeira vez, a uma expansão para fora dos limites do continente. Uma guer-

ra em larga escala, obrigando a uma enorme concentração de recursos. O choque entre o Islão e o Ocidente mudaria a vida na Europa: a época definiria muitos dos contornos do nosso quotidiano, desenhado através do intercâmbio de conhecimentos, gostos e hábitos. A sistematização dos conhecimentos médicos e a introdução de novos gestos de higiene, nos hospitais. são apenas dois exemplos. A realização deste número contou com a orientação e a colaboração inestimável de Hermenegildo Fernandes e José Varandas, professores da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e responsáveis pelo Centro de História. Eles coordenaram um painel de investigadores e especialistas em Idade Média, que abordam esse período da História sob diferentes perspetivas. Acompanhando os textos, uma série de mapas cheios de informação e de outros recursos

FILMES DE ALFRED HITCHCOCK Estão disponíveis quatro filmes, entre os quais Os Pássaros e Psycho (€4,95 cada) JÁ NAS BANCAS Além de um interessante conjunto de artigos sobre a época das Cruzadas, mapas e outros recursos gráficos permitem ao leitor fazer uma viagem no tempo

gráficos e visuais ajudam o leitor a compreender a época. Caso não encontre a revista nas bancas, pode encomendá-la através do telefone 214698801, recebendo-a, depois, em casa. É também através deste número (ou no site www.assineja.pt) que poderá assinar a VISÃO História: quatro números custam apenas €13,72, o que equivale a um desconto de 30% sobre o preço de banca.

FILMES DE LEONARDO DI CAPRIO Três longa-metragens, entre os quais O Grande Gatsby (€5,95 cada)

LIVROS DE VÁRIOS AUTORES Títulos de autores nacionais e estrangeiros, dos quais se destaca Um Dia de Cólera, de Arturo Péres-Reverte (€4,95 cada)

8 v 18 DE DEZEMBRO DE 2014 © Todos os direitos reservados. A cópia ou distribuição não autorizada é proibida. Ficheiro gerado para o utilizador 1911920 - carrasqueiran@gmail.com - 82.155.164.153 (18-12-14 07:38)


CORREIO Que é feito deles?

Lamenta-se que este e outros sinais de alerta não influenciem com mais eficácia os principais responsáveis mundiais JOSÉ CARVALHO CHAVES

O Papa e os extraterrestres O Papa Francisco admite celebrar o rito do sacramento do batismo, com outras formas de vida, ao declarar «se, por exemplo, amanhã chegasse uma expedição de marcianos verdes, com narizes compridos e orelhas grandes; e se quisessem ser batizados… Quem sou eu para colocar impedimentos?» O inovador discurso é uma lufada de ar fresco e colorido no cinzento mundo que nos querem impor. As palavras do servo de Deus dão-nos pistas para o caminho da fraternidade. O Papa tem deixado a sua marca nas Jornadas Internacionais da Juventude. Por onde passa, não deixa ninguém indiferente! A sua simpatia, o olhar cândido, as solidárias palavras de conforto, reafirmam a mensagem reconciliadora de Jesus Cristo. Esta nova forma de transmitir a vontade do Salvador está a ganhar adeptos em todos o mundo. O Papa Francisco espalha as estrelas da paz e da bondade. Ainda vamos ver o Papa viajar num «papadisco»! ADEMAR COSTA PÓVOA DE VARZIM

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Foi ao ler VISÃO e a reportagem intitulada A vida esquecida de Passos Coelho que dei comigo a pensar que este tipo de informação não pode «cair em saco-roto» e daí que valha a pena «rebobiná-la» para não se perder no esquecimento do tempo. E, daí a lembrar-me do caso do padre Zé Nuno e do bispo Carlos Azeredo, foi um passo. Que é feito deles? Imagino o padre no Hospital de S. João, a exercer, com o seu característico empenho, o múnus pastoral, mas… e o bispo? Provavelmente «bem escondidinho» na Cúria Romana, a mesma que, ainda há poucos dias, tanto «desiludiu» o Papa Francisco... FERNANDO CARDOSO RODRIGUES PORTO

A grande trapalhada Mais uma grande trapalhada está instalada (O grande chuto, VISÃO n.º 1136), porque a RTP comprou os direitos de transmissão dos jogos da Liga dos Campeões, por três anos e 15 milhões de euros. O futebol será serviço público? Os programas de cantoria e os entretenimentos em que, a cada cinco minutos, insistentemente, pedem para ligarmos para um número? Também serão serviço público? Ser ou não ser... CARLOS RAINHO VILA REAL

CORREÇÕES Na edição n.º 1133 da VISÃO, no artigo Como ser o candidato perfeito, a empresa de consultoria de gestão Hay Group surge erradamente identificada como Hays Group.

CONTACTOS COR­­REIO: R. Cal­­vet de Ma­­ga­­lhães, 242 – La­­vei­­ras, 2770­-022 Pa­­ço de Ar­­cos FAX: 214 698 547 EMAIL: vi­­sao@impresa.pt IN­­TER­­NET: www.vi­­sao.pt As cartas devem ter um máximo de 6O palavras e conter nome, morada e telefone, mesmo se enviadas por e-mail. A revista reserva-se o direito de selecionar os trechos que considerar mais importantes. Os originais não solicitados não serão devolvidos.

Proprietária/Editora: MEDIPRESS- Sociedade Jornalística e Editorial, Lda. NPC 501 919 023. Rua Calvet de Magalhães, n.º 242, 2770-022 Paço de Arcos Tel.: 214 544 000 - Fax: 214 435 319. email: ipublishing@impresa.pt Gerência da MEDIPRESS Francisco Pinto Balsemão, Francisco Maria Balsemão, Pedro Norton, Paulo de Saldanha, José Freire, Luís Marques, Francisco Pedro Balsemão, Martim Avillez Figueiredo, Raul Carvalho das Neves Composição do Capital da Entidade Proprietária Capital Social €74.748,90; Impresa Publishing, SA - 100%

v Publisher e Diretor: Pe­­dro Ca­­ma­­cho Di­­re­­to­­res Ad­­jun­­tos: Cláu­­dia Lo­­bo e Rui Ta­­va­­res Gue­­des Edi­­to­­r Exe­­cu­­ti­­vo: Fi­­li­­pe Luís Ga­­bi­­ne­­te Edi­­to­­rial: Jo­­sé Car­­los de Vas­­con­­ce­­los (Coor­­de­­na­­dor) e Da­­niel Ri­­car­­do (Edi­­tor Exe­­cu­­ti­­vo) Edi­­to­­res: Cesaltina Pinto (Porto), Fi­­li­­pe Fia­­lho (Mun­­do), Filipe Luís (Portugal), Gon­­ça­­lo Ro­­sa da Sil­­va (Fo­­to­­gra­­fia), João Car­­los Men­­des (Design), Ma­­nuel Bar­­ros Mou­­ra (vi­­sao.pt), Patrícia Fonseca (So­­cie­­da­­de),

Paulo Santos (Economia), Pe­­dro Dias de Al­­mei­­da (Cul­­tu­­ra) e Sara Belo Luís (VISÃO Sete) Re­datores Prin­­ci­­pais e Gran­­des Re­­pór­­te­­res: Ana Margarida de Carvalho, Emí­­lia Cae­­ta­­no (Editora adjunta Portugal), Fran­­cis­­co Ga­­lo­­pe, João Dias Miguel, José Plácido Júnior, Mi­­guel Car­­va­­lho, Paulo Chitas e Ro­­sa Rue­­la Re­da­ção: Ale­­xan­­dra Cor­­reia, Cla­­ra Car­­do­­so, Clara Teixeira, Flor­­be­­la Al­­ves (Coor­­de­­na­­do­­ra VI­­SÃO Sete/Por­­to), Ga­­brie­­la Lourenço, Inês Be­­lo, Inês Rapazote, Isa­­bel Ne­­ry, Joana Loureiro, José Pinto (Multimédia), Luí­­sa Oli­­vei­­ra, Luís Cáceres Monteiro, Luís Ri­­bei­­ro, Mário David Campos, Ri­­ta Mon­­tez, San­­dra Pin­­to, Sa­­ra Ro­­dri­­gues, Sa­­ra Sá, Síl­­via Sou­­to Cu­­nha, Só­­nia Ca­­lhei­­ros, Só­­nia Sa­­pa­­ge, Su­­sa­­na Lo­­pes Faustino, Su­­sa­­na Oli­­vei­­ra e Te­­re­­sa Cam­­pos Gra­­fis­­mo: Pau­­lo Reis (Editor adjunto), Te­­re­­sa Sen­­go (Coor­­de­­na­­do­­ra), Ana Ri­­ta Ro­­sa, Nuno Ricardo Silva e Fran­­cis­­co Ro­­dri­­gues (Webdesigner) In­­fo­­gra­­fia: Álva­­ro Ro­­sen­­do e Ma­­nue­­la To­­mé Fo­­to­­gra­­fia: Fer­­nan­­do Ne­­grei­­ra (Coordenador), José Carlos Carvalho, Luís Bar­­ra, Lu­­cí­­lia Mon­­tei­­ro (Por­­to), e Acá­­cio Ma­­da­­le­­no Co­­pydesk: Rui Car­­va­­lho Se­cre­ta­ria­do: Pau­­la Go­­di­­nho e Sofia Vicente (Se­­cre­­tá­­rias de Di­­reção), Te­re­sa Ro­dri­gues (Coor­­de­­na­­do­­ra Chefe), Ana Pau­­la Fi­­guei­­re­­do e Luís Pin­­to (Edi­­ção) Co­lunistas: An­­tó­­nio Lo­­bo An­­tu­­nes, Boa­­ven­­tu­­ra de Sou­­sa San­­tos, Dio­­go Frei­­tas do Ama­­ral, Eduar­­do Lou­­ren­­ço, Ger­­ma­­no Sil­­va, Gonçalo M. Tavares, José Gil, José Luís Peixoto, Luís Amado, Luís Marques Mendes, Má­­rio Soa­­res, Pe­­dro Nor­­ton, Ricardo Araújo Pereira, Victor Ângelo e Viriato Soromenho-Marques Co­­la­­bo­­ra­­do­­res Texto: Cla­­ra Soa­­res, Jo­­sé An­­tó­­nio Sal­­va­­dor, Ma­­nuel Vi­­las­-Boas, Manuel Gonçalves da Silva, Mi­­guel Ju­­das, Pedro Miguel Santos Foto: Bru­­no Ras­­cão (Espanha), Eduar­­do Ga­­gei­­ro, José Caria e Marcos Borga Ilus­­tra­­ção: João Fazenda (Boca do Inferno), Susana Monteiro (António Lobo Antunes) Cor­­res­­pon­­den­­tes: Ana Navarro Pedro (Paris), Helena Ferro Gouveia (Bona), e Nor­­ma Cou­­ri (Bra­­sil) Ex­­clu­­si­­vos: Le Nou­­vel Obser­vateur, El País e Time Ser­­vi­­ço de te­­le­­fo­­tos: As­­so­­cia­­ted Press, Reu­­ters e Lu­­sa Centro de Documentação: Gesco

Redação, Administração e Serviços Comerciais: Rua Calvet de Magalhães, n.º 242, 2770-022 Paço de Arcos – Tel.: 214 698 000 Fax: 214 698 500 Delegação Norte: Rua Conselheiro Costa Braga n.º 502 – 4450-102 MATOSINHOS Telefone – 220 437 001, PUBLICIDADE: Tel.: 214 69 8782 – Fax: 214 698 543 (Lisboa). Tel.: 220 437 030 – Fax: 228 347 558 (Porto). Pedro Fernandes (Diretor Comercial) pedrofernandes@sic.pt; Maria João Costa (Diretora Coordenadora) mjcosta@impresa.pt; Carlos Varão (Diretor) cvarao@ impresa.pt; Maria João Jorge (Diretora) mjjorge@impresa.pt; Luís Barata lbarata@impresa.pt, Miguel Teixeira Diniz (Contatos) mdiniz@impresa.pt; José António Lopes (Coordenador de Materiais) josea@impresa.pt Delegação Norte: Ângela Almeida (Diretora Coordenadora Delegação Norte) aalmeida@impresa.pt; Miguel Aroso (Contactos) maroso@impresa.pt ; Ilda Ribeiro (Assistente e Coordenadora de Materiais Delegação Norte) immribeiro@impresa.pt Publicidade Online: publicidadeonline@impresa.com.pt. Tel.: 214 698 970 MARKETING: Mónica Balsemão (Diretora); Ana Paula Baltazar (Gestora de Produto) PRODUÇÃO: Manuel Parreira (Diretor), Manuel Fernandes (Diretor Adjunto), João Paulo Batlle y Font e Nuno Gonçalves (Produtores) CIRCULAÇÃO e ASSINATURAS: Pedro M. Fernandes (Diretor), José Pinheiro (Circulação), Helena Matoso (atendimento ao assinante); Tel.: 707 200 350, 21 469 88 01 (dias úteis das 9h

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a reprodução, mesmo parcial, de textos, fotografias ou ilustrações sob quaisquer meios, e para quaisquer fins, inclusive comerciais ‘A Medipress não é responsável pelo conteúdo dos anúncios nem pela exatidão das características e propriedades dos produtos e/ou bens anunciados. A respetiva veracidade e conformidade com a realidade, são da integral e exclusiva responsabilidade dos anunciantes e agências ou empresas publicitárias’.

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Crónica

Gonçalo M. Tavares

Aprendizagem Básica

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virarmos. Não é, como vimos, façanha pequena. É a maneira que temos de perceber onde está o nosso corpo; e ele está exatamente aí, no meio, entre o solo e o céu. Depois, mais tarde, já somos capazes de decidir (quando já caminhamos ou gatinhamos) se avançamos para um ponto ou para o lado oposto. Decidimos e avançamos com o corpo em direção ao prazer e com o corpo afastamo-nos das dores. Começamos aí, a ser dois, a deixar de ser um. Começamos a saber cuidar de nós.

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Todos nós ficamos surpreendidos e assustados com aqueles animais que, quando virados ao contrário, com a carapaça para o solo, não se conseguem virar sem ajuda. Sem um toque exterior de outro ser vivo, aqueles seres ficariam ali para sempre, a pedalar contra o céu, sem apoio, num desespero inconsequente. Pois bem, um bebé recém-nascido, e até com alguns meses, se for colocado de costas também não se conseguirá virar. Um bebé, insistimos, nem sequer se consegue virar (gesto que representa o cuidar de si mais básico – o colocar-se numa posição prática, o gesto de conseguir ter o solo como suporte). Pensando no exemplo oposto: há animais que mal nascem não apenas se viram e reviram no solo, muitas vezes são logo autónomos nas situações mais extremas. Não se defendem apenas: alguns animais mal acabaram de nascer já caçam e matam. Estas espécies animais dispensam o cuidar do outro, pois são já muitíssimo compe-

Aprender: perceber melhor os perigos e a salvação: escolher melhor as dores e o prazer tentes, logo desde o início, nesse extremo cuidar de si. É a gigantesca incompetência no cuidar de si por parte do bebé humano que funda, como é evidente, a humanidade.

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Crescer é, pois, entre muitas outras coisas, aprender a cuidar de si. Ao fim de alguns meses já somos capazes de, quando colocados de costas, nos

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Aprender é depois aprender as técnicas e as maneiras desse cuidar de nós. Eu diria que se somos dois a partir de uma certa altura (uma parte que cuida e outra que é cuidada) é porque há uma das nossas partes que se mantém exatamente como nasceu. É a parte que vive – quer comer, tem prazeres e dores, etc. Esta parte é como que imutável: vivemos – em relação ao básico –, no limite, da mesma forma que vivíamos enquanto bebés. O que muda, o que cresce (a única parte que aprende, portanto) é essa segunda parte, essa parte vigilante, essa parte que cuida; essa parte de nós que diz: isto é bom, isto é mau. É a nossa parte cultural, a parte 2 de nós; a parte mais requintada, a que faz juízos de valor e a que decide sobre o mínimo. A parte um, essa, vive então biologicamente – e a biologia, diga-se, nem sempre ajuizou bem sobre os prazeres e as dores, sobre o que é alimento ou veneno, sobre o perigo e o que salva. A biologia, em suma, não é suficiente. Sem ajuda, ficaríamos de costas para o chão, sem conseguirmos virar, a mexer eternamente e sem sentido, as mãos e os braços. LUÍS MARIA BAPTISTA E TIAGO MENDES PIRES

Nascemos sem saber cuidar de nós; nascemos um. Nascemos sem aquela parte mais velha que diz: isto é bom para ti, isto é mau. Sem saber dizer Sim ou Não aos prazeres e às dores. O homem é alguém que nasce sem saber cuidar de si e só sobrevive porque o ser humano cuida de si e cuida do outro. Um ser humano (a espécie humana) só sobrevive porque está outro ser humano ao lado, mais velho, que não cuida apenas de si próprio. Sem isto já estaríamos extintos, como os dinossauros. O cuidar do outro (no nosso caso) é a base da humanidade – cuidar daquele que, por si próprio, não consegue defender-se, sobreviver.

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radar

PANORAMA Quem para esta greve? Os sindicatos da TAP recusam um acordo enquanto o Governo mantiver a privatização da companhia Vinte e um anos depois, os sindicatos que representam os trabalhadores da TAP regressam à contestação unidos, ameaçando com uma das maiores e mais prolongadas greves gerais de que há memória na companhia. A concretizar-se, a paralisação irá afetar cerca de 1400 voos e 130 mil passageiros da TAP entre 27 e 30 de dezembro, um dos períodos de maior tráfego do ano. Depois de terem acordado, a semana passada, com o Ministério da Economia, a constituição de um grupo de trabalho para encontrar um entendimento, os doze sindicatos recuaram e exigem agora a suspensão da privatização. Querem ter a garantia de que os acordos de empresa vão ser mantidos após a venda da transportadora, prevista para 2015. Já os pilotos reclamam a entrega de 10% a 20% do capital, prometida em 1999, pelo então ministro João Cravinho, mas que o Tribunal Constitucional declarou ilegal no ano passado. Apesar desta união, esta semana começaram a surgir alguns sinais de fratura entre os trabalhadores. Em causa está a defesa da contestação total à privatização ou, por outro lado, o seu avanço com certas condições. O sindicato dos pilotos, uma vez mais,

surge como o líder das reivindicações – as negociações têm, aliás, sido conduzidas pelo economista e piloto Paulo Rodrigues, figura polémica no sindicato por ter sido contratado, em 2009, como assessor da estrutura por 500 mil euros. No sindicato do pessoal de voo, a posição mais moderada do presidente levou, na terça-feira, 16, à sua demissão, depois da restante direção ter forçado a saída da plataforma sindical, por defender a suspensão definitiva da privatização. A mudança de posições provocou ainda o descontentamento junto do Governo, com o secretário de Estado dos Transportes, Sérgio Monteiro, a acusar os sindicatos de não estarem interessados na suspensão da greve. Está aberto, assim, o caminho para a requisição civil, que poderá ser aprovada em Conselho de Ministros já esta quinta-feira, 18. Desde que foi anunciada a greve, foram cancelados ou alterados 10 mil voos. Pedro Costa Ferreira, presidente da Associação Portuguesa das Agências de Turismo, explica que a greve pode custar 60 milhões de euros às agências de viagens, além dos prejuízos provocados aos hotéis e restaurantes, em particular na Madeira. RITA MONTEZ

VOO CANCELADO. E AGORA?

REEMBOLSOS As companhias são obrigadas a reembolsar o bilhete, providenciar o transporte alternativo para o destino final ou a reagendar o voo para outra data

INDEMNIZAÇÕES As greves e outras «circunstâncias extraordinárias» não dão direito a indemnização em caso de cancelamento

ALOJAMENTO Enquanto esperam pelo transporte alternativo, os passageiros têm direito a refeições, alojamento e chamadas telefónicas

RESERVAS Quando a companhia aérea aceita reservas, tendo já conhecimento de uma greve, pode ser responsabilizada por não cumprir o serviço

MUDANÇA DE DATAS

Privatização Processo negocial já fez uma baixa entre os sindicatos

A venda de bilhetes para os voos entre 27 e 30 de dezembro está suspensa. Sem qualquer penalização, pode ser feita a mudança para datas fora do período de greve ou o respetivo reembolso, caso a nova data não seja conveniente

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À sua maneira, João Araújo confirma os contributos de Sócrates no recurso da prisão preventiva que lhe foi decretada: «Não ia fazer 300 km para ficarmos a olhar um para o outro»

Como João Araújo quer tirar Sócrates da prisão • João Araújo atacou forte logo no primeiro

requerimento que apresentou ao juiz de instrução Carlos Alexandre, que determinou a prisão preventiva de José Sócrates: arguiu a nulidade de todo o processo. Um indeferimento do magistrado conduzirá a novo recurso para a Relação de Lisboa.

• Num segundo requerimento ao juiz Carlos

Alexandre, o advogado pediu a libertação imediata de José Sócrates, invocando nulidades dos termos em que a decisão de prisão preventiva foi tomada. Se o magistrado indeferir, segue-se recurso para a Relação.

• João Araújo confessa que ainda não sabe

ALBERTO FRIAS

No encontro que ambos tiveram na segunda-feira, 15, na cadeia de Évora, o advogado João Araújo recebeu contributos do seu constituinte José Sócrates para o recurso da prisão preventiva do ex-primeiro-ministro que deverá apresentar amanhã, sexta-feira, 19, no Tribunal da Relação de Lisboa. Os fundamentos serão extensos, mas com uma conclusão simples: o branqueamento de capitais apontado pelo Ministério Público (MP) a José Sócrates obriga à existência de crimes precedentes, e a acusação, alegar-se-á, não tem, na verdade, indiciadas a corrupção e a fraude fiscal de que fala. Após a entrega do recurso, o MP tem um mês para apresentar as contra-alegações. Depois, o processo será sorteado na Relação de Lisboa, encontrando-se assim o juiz-relator que, auxiliado por dois asas da respetiva secção, analisará o caso e proferirá a decisão. É possível que todos estes procedimentos demorem perto de dois meses.

bem o que há de fazer quanto à proibição de José Sócrates dar entrevistas à Comunicação Social, interdição anunciada pelo diretor-geral dos Serviços Prisionais, Rui Sá Gomes, que acatou os vetos do juiz Carlos Alexandre e do procurador Rosário Teixeira. Mas nota-se à evidência, no advogado, uma revolta quase incontida. Também aqui, adivinha-se, vai atacar forte. Aliás, o Conselho Consultivo do MP considerou, em 2004, que tal proibição só era justificada se constasse das medidas de coação – o que não sucedeu no caso de Sócrates.

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Luís Marques Mendes

Dois países

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que está silenciosamente a protagonizar mudanças relevantes e profundas. Esse é o país da economia real, onde as empresas se movem e do qual os cidadãos se alimentam, o único capaz de garantir o nosso desenvolvimento continuado e sustentável.

GONÇALO ROSA DA SILVA

Quase sem darmos por isso, estamos há praticamente meio ano a viver uma situação absolutamente atípica, para não dizer mesmo algo esquizofrénica. Desde o início do verão que as nossas atenções estão focadas em acontecimentos verdadeiramente invulgares e excecionais – o colapso do BES, a queda da PT, a prisão de José Sócrates, as investigações a altos dirigentes do Estado e a substituição do líder do maior partido da oposição, só para referir os casos mais emblemáticos. No espaço de seis meses apenas, aconteceu um pouco de tudo, de forma tão inesperada quanto surpreendente. O ruído mediático é de tal monta e propaga-se a tal ritmo que quase não nos damos conta que, a par deste país de casos, surpresas, broncas e acontecimentos invulgares, há um outro país que funciona, que mexe, que produz e

A par deste país de casos, surpresas, broncas e acontecimentos invulgares, há um outro país que funciona, que mexe, que produz e que está silenciosamente a protagonizar mudanças relevantes e profundas

E aí, quase sem disso nos apercebermos, há factos, números e realidades que, escapando à espuma dos dias, nos dão alguma esperança em relação ao futuro.

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O recente boletim do Banco de Portugal é, a este respeito, uma boa bússola. Vem de uma instituição que tem um histórico de credibilidade, funda-se em pressupostos técnicos e não se assemelha a qualquer prospeto propagandístico. E o que nos diz esse documento? Que em 2015 já vamos crescer 1,5% do PIB, apesar da debilidade da zona euro, da continuada austeridade orçamental e da enorme carga fiscal que

Existe também, entre nós, uma esquerda que procura conciliar a rejeição do Tratado Orçamental e a reestruturação da dívida com a permanência no euro. Uma ilusão que a experiência do Syriza se encarregará de desfazer

Luís Amado

A experiência grega

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JOSÉ CARLOS CARVALHO

atingida pela crise. A Espanha, a França ou a Itália são casos conhecidos mas, por exemplo, a Suécia viu recentemente a legislatura interrompida pela ação de uma pequena força populista e, pela primeira vez em meio século, vai ter de realizar eleições intercalares. No Reino Unido, a fragilidade da coligação de governo e da situação interna do partido conservador ameaça pôr em causa o seu futuro na União Europeia.

MARCOS BORGA

o contrário do que por aí se diz, tem sido notável a resiliência do sistema político português à crise económica e social. A relativa estabilidade das expectativas eleitorais, confirmada pelas últimas eleições e pelas mais recentes sondagens, é um facto digno de registo no contexto da profunda crise política europeia. Olhando à nossa volta, assistimos à fragmentação dos sistemas partidários, ao declínio das forças políticas clássicas e à emergência de novos movimentos e partidos políticos. Esta situação vem pondo em causa as tradicionais fórmulas de governo e forçando novos compromissos, só possíveis, muitas vezes, através de amplas coligações. Não se trata, ao contrário do que se possa pensar, de uma situação específica dos países do Sul ou da periferia mais

Catarina Martins, do Bloco

Rui Tavares, do Livre

Mas, mais atual, e porventura mais crítica, é a situação da Grécia, tendo em conta a instabilidade provocada pelo espetro de uma nova crise política, pela possível antecipação das eleições e pela vitória, provável desta vez, de um partido da extrema esquerda. Os acontecimentos das últimas semanas merecem, por isso, uma leitura mais atenta. Desde logo, pela reação dos mercados: a bolsa de Atenas teve a maior queda verificada num só dia nos últimos vinte e cinco anos, com grandes perdas também para as obrigações de dívida pública grega. Apesar de tudo, os investi-

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continuamos a suportar. Que vamos crescer da forma mais saudável que se conhece – não com base na despesa pública ou no endividamento mas sim com o enfoque na recuperação do investimento privado e no continuado reforço das exportações. Que, apesar de já ter terminado a recessão e de termos entrado na senda do crescimento, se mantém um saldo positivo das nossas contas externas, algo de impensável há anos atrás. Que, apesar das dificuldades e restrições que são conhecidas, as famílias e as empresas estão a reduzir os seus níveis de endividamento. Numa palavra, o que aquele texto oficial nos diz é que temos uma nova economia em construção – mais aberta ao exterior, mais exportadora, mais inovadora, mais virada para os bens transacionáveis, com melhor utilização do crédito e com uma lenta mas paulatina recuperação do emprego. Não é de nenhum oásis que falamos. Muito menos de qualquer ponto de chegada. Todo este processo de mudança de paradigma leva anos a consolidar. Em qualquer caso, é bom saber que o País não é só ruído, destruição e corrupção. Independentemente dos governos que saem ou que entram, há um Portugal que desafia o presente e que ambiciona vencer no futuro.

dores reagiram com relativa tranquilidade à eventualidade de um choque sistémico, menosprezando o efeito exterior da crise. Ao contrário do que se passou anteriormente, a estabilidade da zona euro não foi, aparentemente, perturbada pela possibilidade de uma vitória eleitoral de Alexis Tsipras que as sondagens indiciam. A reação controlada dos mercados, podendo suscitar diferentes interpretações, permite consolidar a ideia de que a zona euro está hoje mais bem preparada para absorver o impacto provocado pela eventual saída da Grécia. Situação que coloca uma outra questão, bastante mais interessante, relativamente ao futuro do partido Syriza e ao que ele representa para uma certa esquerda europeia. Existe também, entre nós, uma esquerda que procura afirmar-se como alternativa à hegemonia do modelo social liberal, espaço de compromisso entre as forças social democratas, conservadoras e liberais responsáveis pelos avanços da integração europeia depois do fim da Guerra Fria. Mas, ao contrário do PCP, que percebeu a contradição e passou a defender, coerentemente, a saída da moeda comum, o Bloco e as forças em recomposição que dele emanam pretendem conciliar a rejeição do Tratado Orçamental e a reestruturação da dívida com a permanência no euro. Uma ilusão que a experiência do Syriza se encarregará de desfazer no dia em que ganhar eleições na Grécia.

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radar em foco

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REUTERS/TOBIAS SCHWARZ

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ALEMANHA EM CHAMAS

Nas ruas de Dresden, como em muitas outras cidades alemãs, milhares de pessoas manifestaram-se contra a imigração. Um movimento contra a «islamização» do país, conduzido pela extrema-direita. Mas a imagem é dos manifestantes de extrema esquerda, que também organizaram protestos contra os da extrema-direita.

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UM MORTO, 18 CASAS SOTERRADAS

Uma estação televisiva dá conta dos danos causados pelo deslizamento de terras que deixou soterradas cerca de 18 casas, durante as chuvas torrenciais na Califórnia. A forte tempestade fez um morto, obrigou à evacuação de centenas de pessoas das suas casas e ao fecho de uma série de escolas.

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EM FUGA NA PENSILVÂNIA

Bradley William Stone, suspeito de ter morto pelo menos cinco pessoas na segunda-feira, 16, na Pensilvânia, era procurado pelas autoridades. A polícia concentrou as buscas nas redondezas de Pennsburg para encontrar o ex-militar, que combateu no Iraque. Os mortos eram seus familiares (ex-mulher, sogra, cunhado) e o ex-militar sofria de stresse pós-traumático.

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DESFILE MILITAR EM GAZA

Para comemorar os 27 anos da fundação do Hamas, a organização realizou um desfile militar com a participação de membros palestinos da Brigada de al-Qassam, em Gaza. Cerca de 2000 combatentes desfilaram junto a veículos militares. A demonstração de rappel foi realizada por membros do braço armado do Hamas.

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Brasil

Espanha

BACTÉRIA OLÍMPICA

RAJOY E A HISTÓRIA

Investigadores brasileiros revelaram ter feito uma perturbadora descoberta nas águas da praia de Flamengo, no Rio de Janeiro. Esta «superbactéria», normalmente encontrada nos resíduos hospitalares, é muito resistente aos antibióticos, podendo provocar infeções urinárias, pulmonares e gástricas. O anúncio tomou proporções internacionais porque é suposto as provas de windsurf e de vela dos Jogos Olímpicos de 2016 se realizarem naquelas águas. O presidente da Câmara do Rio comprometeu-se a diminuir a poluição na Baía de Guanabara em 80%. Em junho, anunciou que tal será impossível de concretizar.

Mariano Rajoy, primeiro-ministro espanhol, anunciou na segunda-feira, 15, novas medidas de apoio a quem não tem trabalho. A primeira medida consistirá numa remuneração mensal de 426 euros durante um semestre para aqueles que estão no desemprego há mais de um ano e que tenham uma família para sustentar. Os sindicatos congratularam-se com a medida, revelada quatro dias depois de Rajoy ter dito que a «crise já é história».

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Syriza à frente A Europa pode em breve ter um um governo de extrema-esquerda. Segundo uma sondagem do jornal To Vima, o Syriza é hoje o partido favorito dos gregos, com 25,5% das intenções de voto, enquanto o partido do governo, a Nova Democracia, tem 22,7%. Algo que parece não agradar aos mercados e à Troika. O líder do Syriza, Alexis Tsipras, denuncia as interferências nas presidenciais antecipadas que podem também ditar a antecipação das legisltativas.

Nada como uma iniciativa surpresa para desviar atenções e polémicas. O primeiro-ministro italiano, Matteo Renzi, nascido há 39 anos em Florença, fez saber esta semana que Roma é candidata à organização dos Jogos Olímpicos de 2024. Um anúncio feito na sequência da greve geral de dia 12 contra as reformas do Governo de centro-esquerda e convocada pelos principais sindicatos. A adesão rondou os 70%.

ABE CONQUISTADOR O Partido Liberal Democrata do primeiro-ministro Shinzo Abe obteve no domingo, 14, uma folgada vitória nas legislativas antecipadas, que corresponde a uma maioria de dois terços na câmara baixa do parlamento japonês. Com a mais fraca participação de sempre, o partido vencedor – juntamente com o seu parceiro de coligação, Komeito – conquistou 325 dos 475 lugares existentes. Com esta vitória, Abe poderá prosseguir, pelo menos até 2016, as suas polémicas medidas de estímulo à economia japonesa – as Abenomics. E alterar também a Constituição para reforçar militarmente o papel do arquipélago.

Tal como acontece um pouco por todo o lado, a quadra natalícia é sinónimo de compras. Incluindo na Rússia, onde o Rozhdestvo – o feriado de Natal – se cumpre a 7 de janeiro, devido ao calendário juliano e à Igreja Ortodoxa. No entanto, as famílias russas querem despachar quanto antes o quebra-cabeças das prendas por uma razão muito simples: os preços de praticamente todos os bens e serviços não param de aumentar devido à brutal desvalorização do rublo. Desde o início do ano, a moeda nacional já desvalorizou 42% contra o euro e 49% face ao dólar, uma tendência motivada pela crise na vizinha Ucrânia, as sanções internacionais ao país e ainda a acentuada baixa dos preços do petróleo e do gás. No início desta semana, o Banco Central russo teve de intervir para conter a inflação, impedir ainda mais a queda do rublo e evitar o colapso da economia, tal como ocorreu em 1998, quando Moscovo suspender os seus pagamentos internacionais. No entanto, a instituição reconhece que o pior ainda pode estar para vir caso o ouro negro se mantenha nos atuais níveis: em 2015, o custo de vida vai aumentar, o PIB pode A Praça afundar-se 4,7% e a fuga de capitais ascender aos 107 mil milhões de Vermelha, em euros. Resultado: tal como sucedia há duas décadas, após a implosão Moscovo, está da União Soviética, muitas lojas passaram a afixar os preços em enfeitada a dólares (uma prática ilegal) ou em «u.ye» (abreviatura de uslóvnaya preceito yedenitsa, unidade convencional, em russo).

REUTERS

Rússia A perversa corrida às prendas de Natal

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MARCOS BORGA

Ouro negro Especialistas admitem descida até aos 40 dólares por barril

RESCISÃO

Poderá Pinamonti continuar em Lisboa?

O regresso do petróleo barato

O PIB poderá crescer mais 0,5 a 1 pontos em 2015, apesar dos riscos de deflação O petróleo está mais barato é isso é sempre uma boa notícia para a economia portuguesa. Os preços da gasolina e do gasóleo descem, o custo dos fretes rodoviários e aéreos diminui, a fatura energética do País – Portugal importa 70% da energia que consome – fica mais leve e o PIB agradece. No início da semana, cada barril de petróleo Brent transacionava-se a valores próximos dos 60 dólares, algo nunca visto desde julho de 2009. Desde meados do ano, a cotação do crude do Mar de Norte – que serve de referência – recuou praticamente para metade. De quem é a culpa desta «escalada» (para baixo) do petróleo? Dos EUA, que estão a explorar intensivamente mais petróleo e gás de xisto (extraídos diretamente da

rocha-mãe), desafiando o estatuto de maior produtor mundial da Arábia Saudita, do arrefecimento económico na China e na Europa e, no limite, da própria OPEP, que se recusa a cortar a produção apesar do excesso de oferta. A manter-se este cenário, o PIB português poderá crescer mais 0,5 a 1 pontos percentuais que os 1,5% previstos no Orçamento do Estado para 2015 (construído com base numa projeção de 97 dólares por barril), enquanto os gastos com a importação de petróleo poderão reduzir-se de 13 mil milhões para 6,5 mil milhões de dólares anuais. Apesar dos riscos de deflação, não há dúvida de que são boas notícias para as contas nacionais, mesmo que não o sejam para o meio ambiente.

Papa popular Tem uma opinião favorável ou desfavorável do Papa? Na maioria dos 43 países inquiridos neste inquérito do Pew Research, Francisco é popular. Na maioria dos países europeus, mais de 80% dos inquiridos tem uma imagem positiva do líder dos católicos, assim como na América Latina, onde se situa o seu país natal, a Argentina.

% favorável 80 - 100 60 - 79 40 - 59 20 - 39 0 - 19 sem valor FONTE PEW RESEARCH

INFOGRAFIA VISÃO

O desejo de voltar a ter o nome do veneziano Paolo Pinamonti ligado ao Teatro Nacional de São Carlos (TNSC), manifestado em setembro de 2013 pela Secretaria de Estado da Cultura (SEC), parece condenado a não ser de fácil concretização. O seu trabalho como consultor artístico para a programação do TNSC começou a 1 de janeiro deste ano mas sem estar oficializado contratualmente (porque Pinamonti tinha uma dívida por resolver de mais de €14 mil à segurança social). Só a 5 de novembro foi possível assinar um contrato que unia o programador ao único teatro de ópera português. E foi esse documento que, na passada semana, originou um pedido de rescisão enviado por Pinamonti à SEC (que o confirma sem querer acrescentar qualquer comentário). Razão: esse contrato viola a Lei espanhola de incompatibilidades do pessoal ao serviço da administração pública uma vez que Pinamonti é, desde outubro de 2011, diretor do Teatro da Zarzuela em Madrid (com um contrato por cinco anos). Em declarações ao jornal online espanhol El Confidencial, o Instituto Nacional de las Artes Escénicas y la Música não põe totalmente de parte a continuação do trabalho de Pinamonti com o teatro português desde que se encontrem «novas formas de colaboração compatíveis com a legislação espanhola». O futuro depende agora de uma nova negociação entre a Opart, que gere o TNSC, e o programador italiano.

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Sara Vasconcelos 28 ANOS, GERENTE DE UM BAR

«Quero dar força a todas as mulheres violentadas» Alega ter sido agredida por um taxista, no Porto, pelo facto de ser lésbica P: Não tem dúvidas de que se tratou de um crime de ódio? R: Não vejo outra explicação. A pessoa [mulher] que me acompanhou até ao táxi disse que me amava e deu-me um beijo na boca. Entrei no carro e dei as indicações do caminho. Como não sabia o nome da rua, o taxista mandou-me sair. Estava já com um pé de fora e levo um soco. Quando tentei registar a matrícula, ele atirou-me ao chão com murros e pontapés e arrastou-me pelos cabelos. Outros taxistas assistiram e não fizeram nada. P: Porque é que quis denunciar publicamente o caso? R: Hesitei antes de falar com a comunicação social, mas não quero que mais ninguém passe por isto. Foi surreal. Quero dar força a todas as mulheres que são violentadas, para que não tenham vergonha de dar a cara. P: Teve manifestações de apoio, mas também questionaram a sua história… Como lida com isto? R: Aos que apoiam agradeço, aos outros não reajo. É difícil ler insultos nas redes sociais e digerir o que aconteceu. Tenho medo de sair de casa e penso recorrer a apoio psicológico.

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3 perguntas a…

Barbárie na escola Após atentar contra Malala, talibans paquistaneses vão ainda mais longe

Nasceu há cerca de 40 anos no seio de riar a Sharia e todos os preceitos islâmicos uma família humilde e chama-se Fazle Hayat. defendidos pelo homem que, há uma década, No entanto, parece ter já garantido um lugar se tornou também conhecido por «Mullah FM na história graças ao seu currículo como Radio» devido às suas prédicas radiofónicas no terrorista profissional. O seu nome de guerra Vale de Swat. Aliás, é nesta região que os seus é mullah Fazlullah, lidera o moviseguidores cometeram, em outubro TERROR mento taliban paquistanês (TPP, 2012, aquele que era até agora o mais EM SIDNEY de Tehreek-i-taliban Pakistan) e, mediático ataque do TPP – contra Man Haron Monis, dia 16, reivindicou o pior atentado Malala Yousafzai, a jovem agraciada um emigrante alguma vez ocorrido no país, de que iraniano de 50 anos este ano com o Nobel da Paz. Com o resultaram, pelo menos, 141 mortos. e simpatizante do sequestro desta semana, Fazlullah Estado Islâmico, No entanto, há um pormenor a despode assumir-se como um dos grantacar: 132 destas vítimas eram crian- protagonizou dia des líderes da Guerra Santa contra os 15 um dos piores ças e adolescentes que frequentavalores do Ocidente. As estatísticas sequestros de que vam um colégio público na cidade dão-lhe razão. Só no mês passado, os australianos têm de Peshawar, propriedade das segundo um relatório sobre o novo memória. Após 17 horas barricado forças armadas. Ou seja, tratou-se jihadismo global, divulgado pela BBC, de um ataque cirúrgico contra uma num café de Sydney, o TPP provocou 146 mortos em 32 foi abatido. No instituição que albergava muitos ataques. E escusado será dizer que vai incidente faleceram filhos de militares, onde se prestava ainda o gerente do bater um outro recorde de 2013, em um ensino laico e misto. Na prática, estabelecimento e que uma centena de escolas paquistauma advogada. um alvo «legítimo» por contranesas foram visadas...

Tudo em aberto, na Madeira

Assiste-se mesmo ao fim da era Jardim? Nas intenções de voto, o ex-edil do Funchal, Miguel Albuquerque, pode ser o preferido para suceder a Alberto João Jardim à frente do Governo Regional (GR) da Madeira. Mas se não alcançar 50% dos votos mais um, nas diretas de sexta-feira, 19, terá de haver segunda volta, a 29 – uma incógnita. As duas sondagens publicadas pelo Diário de Notícias da Madeira deram maioria a Albuquerque (na que foi publicada a 19 de novembro,

obteve 33%). Seguem-se Manuel António Correia (secretário regional do Ambiente, com 18%), João Cunha e Silva (vice-presidente do GR, 16,5%), Miguel de Sousa (vice-presidente da Assembleia Regional, 7%), Jaime Ramos (vice-presidente do PSD-M, 5,5%) e Sérgio Marques (ex-eurodeputado, 5%). Resta saber se, nas urnas, Manuel António mantém a vantagem sobre João Cunha e Silva e como se fará a transferência de voto para dois candidatos.

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RÉVEILLON

PROGRAMAS DE ÚLTIMA HORA

Indústria As torres de arrefecimento das unidades industriais são um dos principais focos de infeção por legionela

LUÍS BARRA

NA NATUREZA

Entre laboratórios e tribunais

A procura de análises para detetar legionela nas empresas aumentou 30% O pico da infeção pela bactéria que causou pneumonia a 375 pessoas e matou 12 desde novembro já passou, mas o medo continua. Isso mesmo tem comprovado o diretor executivo de uma das empresas que analisam a presença da bactéria em Portugal, a LPQ: «Depois do surto de Vila Franca de Xira, em menos de dois meses, os pedidos de análise aumentaram 30 por cento. As empresas estão a ser mais cautelosas.» No caso da bactéria do legionário, nota José Azenha e Silva, as cautelas podem mesmo fazer a diferença. «Nas empresas onde há prevenção, a probabilidade de terem casos de legionela é de 1 a 2 em mil, enquanto naquelas onde não se faz passa para 500 em mil.» O medo voltou na semana passada com a notícia de novas deteções da bactéria, na unidade industrial de Sines, Euroresinas, e nos balneários das minas de Neves Corvo, em Castro Verde. O resultado das análises de rotina levou as empresas a tomar medidas, como o encerramento dos balneários. Mas, até ao fecho da edição, não se confirmou nenhum diagnóstico. O caso inédito de Vila Franca de Xira – nunca tanta gente tinha ficado infetada na mesma zona e em tão pouco tempo – poderá ainda dar muito que falar. Já não tanto nos hospitais, mas na barra

dos tribunais. Vítimas e familiares poderão recorrer a um gabinete de aconselhamento que a Câmara Municipal de Vila Franca e a delegação local da Ordem dos Advogados acabam de criar especificamente para o efeito. A primeira consulta, explica o advogado Paulo José Rocha, será gratuita. A possível acusação de negligência contra a Adubos de Portugal, a ser investigada pelo caso, «poderá levar a pedidos de indemnização entre os 50 e os 100 mil euros, consoante se trate de danos de saúde ou de morte de um familiar». Mas o presidente da delegação da Ordem admite que ainda é cedo para saber como se vai desenrolar o caso, ainda em segredo de justiça. De acordo com o relatório final da Direção-Geral da Saúde sobre o surto, «do total dos casos notificados, 78% dos doentes residem em Vila Franca de Xira, 11% no concelho de Loures e 11% noutras freguesias. Todos os casos identificados tiveram ligação epidemiológica (residência, trabalho, permanência ou deslocação) ao concelho de Vila Franca de Xira ou freguesias limítrofes». Se for provada a existência de um foco único de infeção, os advogados poderão «avançar para uma ação conjunta». Paulo José Rocha estima que deverá envolver cerca de 20 advogados.

À descoberta de Nisa, a pé e em passeio de barco (Belver e Gavião), com alojamento, pequeno-almoço, jantar e brunch de Ano Novo no Hotel Monte Filipe. 31 dez-4 jan. €450 duplo. greentrekker.pt

CLIMA

As metas de Lima Não foi grande mas foi mais um passo para um entendimento

DAS ARÁBIAS Partida de Lisboa ou Porto até Algeciras e chegada a Marrocos via ferryboat. Visita a Tanger, Casablanca, Marraquexe, Erfoud (jantar Ano Novo) e Meknes. 26 dez-4 jan. €1295. pintolopesviagens.com

INSULAR Partidas de Lisboa dia 29 para Ponta Delgada (S. Miguel) com seis noites e pequeno-almoço desde €342. lojaonline.abreu.pt

NA NEVE Além do jantar de Ano Novo, o pacote do Hotel dos Carqueijais, a 15 km da estância de ski da serra da Estrela, inclui forfait e trenós para fazer ski. 30 dez–1 jan. €710 duplo. turistrela.pt

Não foi o encontro decisivo mas preparou o caminho para o de Paris, em 2015, onde se espera alcançar finalmente um acordo para domar o aquecimento global. Nessa altura, o Protocolo de Quioto será substituído por um novo documento que servirá de guia das nações no combate às alterações climáticas. Para já, todos os países terão de apresentar à Organização das Nações Unidas, antes de outubro de 2015, compromissos «quantificáveis», «ambiciosos» e «justos» de redução de gases com efeito de estufa. Ficou ainda acordado que «todos» os países se empenharão na luta contra o aquecimento do planeta, acabando com a divisão entre pobres e ricos. Esta foi uma imposição dos EUA, que defendeu que num mundo em mudança os países em desenvolvimento também têm de contribuir com a sua parte. Contudo, as nações com economias mais frágeis poderão contar com o Fundo Climático Verde, atualmente com 10 mil milhões de euros, para financiar as suas ações de combate ao aquecimento global. Até 2020, as nações mais desenvolvidas devem mobilizar 100 mil milhões de euros por ano para esse fundo de financiamento dos países em desenvolvimento.

18 DE DEZEMBRO DE 2014 v 27 © Todos os direitos reservados. A cópia ou distribuição não autorizada é proibida. Ficheiro gerado para o utilizador 1911920 - carrasqueiran@gmail.com - 82.155.164.153 (18-12-14 07:38)


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TECNOLOGIA

Um presente envenenado

Milionário aos 17

Filho de imigrantes arrecadou uma fortuna de 72 milhões de dólares investindo durante os recreios da escola Vive em Queens, Nova Iorque. Tem 17 anos. «O que faz o mundo mover-se? Dinheiro», É filho de imigrantes da região de Bengala, assegura Mohammed, que nas redes sociais na Índia. E poderá ser a nova aquisição para a divulga várias fotografias suas e dos amigos, lista de multimilionários da Forbes. Mohamem festas e em jantares glamorosos. «Se o med Islam, aluno do exclusivo Instituto dinheiro não flui, se os negócios não mexem, Stuyvesant, um liceu com um não há inovação, não há invesOUTROS CASOS programa de ensino avançado timentos, não há crescimento, Zuckerberg da Big Apple, amealhou 72 não há empregos», justifica. Fundador do Facebook, milhões de dólares investindo O rapaz diz que a sua grande em ações e em futuros durante aos 26 anos foi catapultado inspiração foi Paul Tudor para a lista dos mais os recreios das aulas. Jones, gestor de um hedge fund ricos do mundo com uma Apesar dos jantares com os e a 108.ª pessoa mais rica da fortuna então avaliada em 17,5 mil milhões de dólares seus amigos incluírem latas América, segundo a Forbes. de caviar de 300 euros, o adoQuando atingir os 18 anos, Robert Nay Um programador amador, lescente continua a viver com Mohammed pretende também aos 14 anos escreveu as os pais. Considera-se tímido e seguir as peugadas do seu ídolo, 4000 linhas de código modesto mas já comprou um constituindo um hedge fund. E necessárias para criar o BMW (que ainda não tem lino primeiro ano do negócio esjogo Bubble Ball. Colocou-o cença para conduzir) e alugou pera fazer mil milhões de euros. para download na Apple e, em duas semanas, ganhou um apartamento em ManhaNo seu perfil do LinkedIn, uma 2 milhões de euros ttan. Segundo o adolescente, rede social para profissionais, Dominic McVey que conseguiu a fortuna afirma que o segredo do seu Começou a importar investindo sobretudo em fusucesso se deve a «seguir o merscooters dos EUA onde turos de ouro e de petróleo, o cado, a caçar oportunidades e a eram mais baratas e a pai deixou agora de trabalhar, usar análise fundamental para vendê-las no Reino Unido, vivendo dos rendimentos do especular nos mercados.» aos 13 anos. Aos 15 já era um milionário filho. E com sucesso.

A Sony é a mais recente vítima de um ataque informático que deu origem a um enredo digno de filme. Num primeiro email, enviado aos responsáveis da Sony a 21 de novembro, avisava-se: «Fomos incomodados pelos vossos filmes, paguem ou serão atacados». Os executivos ignoraram a mensagem e o sistema parou, a 25. Foi então que a informação, roubada dos emails da companhia, começou a circular. Os hackers, que se autodenominam Guardiões da Paz, revelaram informação com comentários racistas sobre Obama, que Angelina era «uma mimada sem talento» e que o novo James Bond era o mais caro de sempre (€240 milhões). Seguiu-se a teoria da conspiração: era retaliação da Coreia do Norte contra The Interview, a estrear este Natal, e que retrata Kim Yong-Un. As autoridades do país já negaram qualquer envolvimento no ataque.

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«testes do pezinho» entre janeiro e novembro de 2014. Com base nestes dados, o número de nascimentos este ano deve ser equivalente ao do ano passado, registando-se assim uma estabilização da fecundidade

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Amo o meu corpo e sou feliz comigo mesma. Mostrando-me ao mundo posso ajudar outras mulheres

90 mil

toneladas de azeite produzidas este ano em Portugal, mais 43% face à média das últimas cinco campanhas

Candice Huffine, modelo XL, fotografada por Steven Meisel para o calendário Pirelli de 2015

Esta é uma greve patriótica e por isso admiro a coragem dos que a fazem. (…). Será que o Presidente da República vai promulgar um ato antipatriótico para agradar ao atual Governo?

polícias (PSP e GNR) no ativo, menos 1044 que em 2013

€64

Mário Soares, sobre a greve da TAP

milhões

Pedro Passos Coelho (…) seria sempre um excelente líder (…) quer à frente do Governo quer à frente, eventualmente, da oposição

BUUM!

poupados nos custos de 72 escolas

Aumento das tarifas reguladas de eletricidade, a partir de janeiro de 2015. Afetará 2,5 milhões de consumidores

Inês Castel-Branco, atriz

As irmãs de Ricardo Salgado ficam à noite em casa a fazer bolos para vender em restaurantes e ele nunca se preocupou em defendê-las Pedro Queiroz Pereira, empresário, na comissão de inquérito ao caso BES

42 643

3,3%

Com quem durmo, danço ou viajo não é da conta de ninguém

Ricardo Salgado mandava e José Maria Ricciardi não venha dizer que não sabia, porque sabia Marcelo Rebelo de Sousa

Maria Luís Albuquerque, ministra de Estado e das Finanças

Eu compreendo que o professor Marcelo Rebelo de Sousa tenha muita mágoa em não poder continuar a passar as suas habituais e luxuosas férias de fim de ano na mansão à beira-mar, no Brasil, do dr. Ricardo Salgado, mas essa mágoa não o autoriza a dizer mentiras a meu respeito e do banco a que presido, conforme fez no seu comentário de ontem» José Maria Ricciardi

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O amor é o que se passa entre um homem e uma mulher antes de casarem Homer Simpson, figura animada que celebra 25 anos na televisão

A história é cada vez mais um substituto da ficção Pedro Rabaçal, historiador

O ano passado tirámos o Porto da Taça de Portugal, da Taça da Liga e do Campeonato. (…) Comigo as coisas bateram no top. (…) É sempre dois a zero. Isso é que é mais importante. Jorge Jesus, treinador do Benfica

Não é normal estar numa relação em que alguém manda em nós. Isso não é amor, é doença Sandra Barata Belo, atriz

FONTES: DN, Observador, Expresso, Caras, TV7 Dias, Revista Época

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radar transições LIBERTAÇÃO De Armindo Castro, 29 anos, detido há dois anos e meio na cadeia de Paços de Ferreira, pelo homicídio da tia, crime que persistia em negar. A decisão do tribunal chega dois meses depois da confissão de outro homem, assumindo o crime, em Joane, Famalicão. Dia 16.

LUÍS BARRA

HOMENAGEM

PRÉMIO PESSOA

Henrique Leitão Galileu entre nós

«Foi um processo gradual e não planeado.» É assim que Henrique Leitão, hoje com 50 anos, Membro do explica a viragem que decidiu fazer na sua carreira há Centro de mais de uma década. Sempre pensara fazer da Física História da Ciência a sua vida profissional, tornara-se professor e seguira o percurso académico habitual até ao doutoramento. Séc. XV e VII Mas foi precisamente durante a investigação que teve As áreas de de fazer para o doutoramento que lhe veio ao de cima especialidade um antigo gosto por História. Deu consigo cada vez €60 mil mais mergulhado em arquivos e rapidamente viu que Valor do Prémio havia um período que lhe interessava mais do que Pessoa todos os outros – o do séc. XV ao séc. XVII. «Foi uma altura de grandes descobertas na área das ciências exatas, fosse a astronomia ou a matemática», diz Henrique Leitão, que hoje é professor de História da Ciência na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa. E de todas as suas viagens ao passado nada lhe dá mais prazer do que encontrar documentação nova, sobretudo quando é totalmente inesperada, como provas dos debates científicos que se faziam em Portugal sobre astronomia no início do séc. XVII. «Não imaginava que até em aulas se discutissem as novidades de Copérnico, Galileu e Kepler. Logo 4 ou 5 anos depois da descoberta de Galileu (1610), já se construíam telescópios em Portugal», como no Colégio de Santo Antão, uma escola dos jesuítas. Este investigador conta ainda que foram os portugueses a levar para a China a notícia das descobertas de Galileu. «Em 1614 já havia um português na China, Manuel Dias, a escrever sobre isso em chinês.» Se Copérnico é «muito técnico, e, por isso, sempre difícil de ensinar», Kepler representa para Henrique Leitão «uma personalidade de uma criatividade científica rara». Mas dos três a sua preferência vai para Galileu: «Pessoalmente acho-o o personagem mais fascinante.» De tal modo que criou um curso de mestrado baseado neste cientista italiano. Por todo o seu trabalho de divulgação da História da Ciência, Henrique Leitão acaba de tornar-se o 30.º vencedor de uma iniciativa anual do Expresso e da Caixa Geral de Depósitos – o Prémio Pessoa. 2003

O Yad Vashem, Memorial do Holocausto de Jerusalém, decidiu tornar o padre Joaquim Carreira o quarto português a ter o título de Justo entre as Nações, uma homenagem concedida a quem salvou judeus durante o holocausto. Falecido em 1981, este sacerdote foi reitor do Colégio Pontifício Português em Roma entre 1940 e 1954. Ali se esconderam vários judeus e também opositores de Mussolini durante a II Guerra Mundial. Agora irá juntar o seu nome aos de Aristides Sousa Mendes, Sampaio Garrido e José Brito Mendes.

DISTINÇÃO

1930/2014

Fernando Machado Soares

Na hora da despedida Chegou a juiz conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça e não tinha outra ligação a Coimbra que não fosse a de muitos outros da sua geração, que ali rumaram para se formarem em Direito. Nascera, aliás, bem longe, na ilha do Pico, nos Açores, filho do capitão-mor das Lajes. Mas foi em Coimbra que começou a cantar, ao lado de figuras históricas do fado de Coimbra, como Luís Goes, José Afonso ou António Portugal. Com alguns deles participou, em 1957, na gravação, em Madrid, do Coimbra Quintet, um disco que os músicos daquela geração consideram um dos mais importantes. Mas seria a balada que escreveu para o final do curso de medicina de 1958 que o perseguiria até ao fim da vida, sobretudo naquele verso «Coimbra tem mais encanto na hora da despedida». Já depois de acabado o curso, ainda acompanhou o Orfeão Académico de Coimbra numa digressão pelos EUA. Depois, iniciou a sua vida de jurista, tornou-se magistrado, atingiu o topo da carreira, sem nunca se desligar completamente da música. Ainda em 2006 recebera o Prémio Tributo Amália Rodrigues. Tinha, aliás, sido vice-presidente da Fundação Amália Rodrigues. Faleceu no passado dia 7, aos 84 anos.

O Movimento de Defesa da Vida (MD), uma instituição de solidariedade social, recebeu no dia 14 o Prémio Manuel António da Mota, pelo projeto que tem em curso para ajuda a famílias com crianças e jovens em risco. O valor pecuniário deste galardão é de 50 mil euros.

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Ensaio

José Gil

Justiça e opinião

JOSÉ CARIA

A

s tomadas de posição apaixonadas que a prisão preventiva de José Sócrates suscitou giravam à volta de surpresas e factos hipotéticos que ela parecia implicar. Uma dessas surpresas era a de ver «as instituições (em particular a da justiça) a funcionar». O ex-primeiro-ministro bem o compreendeu, pontuando a sua carta com essa expressão, sempre referida com ironia mordaz. De facto, os juízos opostos que clivaram a opinião pública, dependiam da verdade do enunciado «a justiça está a funcionar». Se fosse verdadeiro, com verosimilhança se passava dos indícios de crime à condenação antecipada. Se o não fosse, o arguido seria a vítima de um erro institucional, de uma enorme cabala – e depressa se transformava a presunção em afirmação de inocência. Foi, aliás, o que muitos fizeram, criticando ferozmente as fugas ao segredo da justiça e a consequente mediatização da detenção de José Sócrates. A justiça manifestava aí – também, com indícios – o seu ser corrupto, a sua essência disfuncional: não era a prova da injustiça daquela detenção? Quanto aos que acreditavam na culpabilidade do arguido, o seu juízo fundava-se no caráter extraordinário do acontecimento – jamais visto na história da justiça e da política portuguesas. Sobretudo quando as instituições pareciam mais desacreditadas. A prisão de Sócrates virava o mundo do avesso, a verdade vencia a mentira e o cinismo, a justiça castigava a corrupção, o bem sobrepunha-se ao mal. Foi, afinal, uma certa conceção maniqueísta da justiça que ditou a partilha radical das opiniões em campos opostos. Os que se esforçavam por adotar uma atitude «independente», «racional» e «imparcial» – tornando-se eles próprios sujeitos da Justiça, magistrados ideais – só entravam no espaço público para dizer que dele se retiravam, porque só à justiça cabia julgar, condenando ou absolvendo. O maniqueísmo está sempre errado, falha

Foi uma certa conceção maniqueísta da justiça que ditou a partilha radical das opiniões [sobre a prisão de José Sócrates] em campos opostos a realidade que é mais complexa e microscópica. A «justiça está a funcionar»? Que transformação estrutural sofreu para que passasse subitamente a «funcionar»? Nenhuma. Pode-se dizer apenas que a Justiça continua, estruturalmente, a funcionar mal – mas que, aqui e ali, em bolsas locais da instituição judicial, por razões talvez até circunstanciais, sucederam modificações no seu funcionamento habitual. Nomeadamente, no tratamento reservado até aqui a casos semelhantes, como o mostram os dos vistos gold e da crise do BES. O confronto subterrâneo das opiniões afetou a própria opinião pública. Porque a luta visava, fantasmaticamente, o domínio exclusivo da opinião, para que esta julgasse «na praça pública» a própria instituição da

Justiça. Quis-se influenciar, subliminarmente ou não, o juízo dos portugueses. Os defensores de José Sócrates, sobretudo, quiseram forçar a opinião a pesar decisivamente sobre a Justiça, absolvendo imediatamente o arguido. Também aqui o ex-primeiro-ministro o entendeu assim: a sua carta, escrita a vermelho, acusa a sociedade inteira, mas em especial os políticos, os magistrados, os jornalistas e «os professores de Direito». Quase autodestrutiva, ela destinava-se a provocar uma onda geral de protesto no País. O detido transformou-se em acusador e ergueu-se, sozinho, contra todo «o sistema». Curiosamente, os que o tinham por culpado separaram a presunção de inocência jurídica da sua convicção privada – expondo-a, todavia, no espaço público. Entretanto os espíritos acalmaram e voltaram-se para outros acontecimentos mediáticos. Qual o efeito de toda esta turbulência? Ao que parece, nenhum. Os portugueses – por atavismo ou sabedoria? – nada manifestaram de decisivo, nem sobre o funcionamento da justiça nem sobre o seu estado de espírito quanto à inocência ou culpabilidade de Sócrates. Esperam para ver. Se o acontecimento (a verdade) acontece.

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PORTUGAL

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EXCLUSIVO

S O N I R A M B U S O S S E C O PR ento idido o arquivam ec d tá es : as rt o P esa a Paulo -ministro da Def Boas notícias par ex o u ro b m so en a que rados do caso de Justiç mergíveis comp b su s o d o ci ó eg On ão a nos últimos anos. ia indícios não ir av h e u q e d s» va «lu com o aos alemães e as e o PS se debate u q em to en m o m meiros-ministros ri -p julgamento. Num ex s u se s o d – de ter um alívio facto – histórico pode respirar de ta ei ir d a , va ti n em prisão preve ÇÃO IVEIRA ILUSTRA LDER OL

PAGE TEXTO HÉ

POR SÓNIA SA

F

oram precisos mais de 460 mil carateres, espalhados por 336 páginas de tamanho A4, para encerrar o Caso dos Submarinos, sem sequer o levar a julgamento ou deduzir acusações. A VISÃO apurou que o inquérito, a correr no Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP), desde 2006, para investigar as circunstâncias da compra de dois submergíveis da classe 209 PN a um consórcio de empresas alemãs, já foi alvo de um despacho de arquivamento, assinado pelos magistrados Josefina Escolástica e Júlio Braga. No futuro, o inquérito será submetido a uma auditoria, a pedido do diretor do departamento, Amadeu Guerra. Os principais envolvidos – Hélder Bataglia, Luís e Miguel Horta e Costa, Pedro Ferreira Neto (únicos quatro arguidos), Ana Gomes e uma jornalista (ambas assistentes no processo) já todos deverão ter conhecimento da decisão. Paulo Portas não. O ministro que, durante dez anos, esteve no centro do caso mediático, nem sequer será notificado.

Numa altura em que o PS vê um dos seus mais importantes ex-governantes a atravessar um processo judicial histórico, a direita é aliviada do seu fantasma mais real. E o vice-primeiro-ministro de Pedro Passos Coelho, que publicamente foi tratado como suspeito, pode dizer, com segurança, que nunca passou de uma mera testemunha, para a Justiça. Dois pormenores curiosos: Portas só foi ouvido pela primeira vez em abril de 2014 e a Justiça nunca pediu levantamento do sigilo bancário ao ministro.

Prescrição eventual O despacho de arquivamento já é do conhecimento do procurador-geral adjunto Amadeu Guerra e faz uma súmula, extensa, dos 18 volumes que compõem o processo principal dos submarinos, começando no Conselho de Ministros de 31 de janeiro de 1998 em que se inicia o Processo Relativo à Aquisição de Submarinos, designado por PRAS. O texto é uma peça processual complexa que junta resumos das diligências efetuadas nos últimos oito anos, excertos relevantes de inquirições, diagramas sobre os 18 DE DEZEMBRO DE 2014 v 37

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SUBMARINOS

GONÇALO ROSA DA SILVA

PORTUGAL

TIAGO MIRANDA

Figuras O cônsul Jürgen Adolff (em cima), cujo envolvimento do negócio dos submarinos foi julgado na Alemanha; o ex-ministro da Defesa Nacional Paulo Portas e o administrador da ESCOM Hélder Bataglia estiveram no centro do circo mediático da trama dos submarinos

negócios, a cronologia completa dos factos, referências a resoluções de conselhos de ministros, correio eletrónico entre as partes, cláusulas contratuais sujeitas a alterações, memorandos e até recados para a hierarquia. No que diz respeito a conclusões, o despacho sugere que não terá havido intenção clara de beneficiar o consórcio alemão fabricante dos submarinos. Além disso, conclui que se tivesse havido corrupção, prevaricação ou outro ato criminoso precedente relacionado com a assinatura do contrato de aquisição dos submersíveis, esse facto já estaria prescrito desde junho de 2014. Ainda assim, o arquivamento é baseado no facto de nenhum dos crimes de que havia indícios ter sido dado como provado pela equipa do Ministério Público que «herdou» o caso há pouco mais de um ano. E herdar um caso destes não é coisa pequena. Diz-se que, se os 457 Giga Byte, os 902 871 ficheiros e as 39 990 pastas que ocupa em versão

informática fossem impressos, o processo não caberia nos cinco pisos do DCIAP.

Dificuldades de metodologia Se as provas foram difíceis de encontrar, há motivos para isso. As autoridades das Bahamas, por exemplo, não permitiram seguir o rasto do dinheiro entregue pela Ferrostaal e depositado em contas da ESCOM, através do Felltree Investiment Fund. Parte dessas comissões terá regressado a Portugal no âmbito dos vários Regimes Excecionais de Regularização

À INVESTIGAÇÃO FALTOU UMA EQUIPA MULTIDISCIPLINAR PARA AJUDAR A LIDAR COM A COMPLEXIDADE TÉCNICA, JURÍDICA, OPERACIONAL, LOGÍSTICA E FINANCEIRA DO CASO

Tributária, o que impede a sua investigação. Acresce que a justiça alemã sempre recusou os pedidos de cooperação enviados pela portuguesa. Além disso, os contratos de aquisição sofreram várias alterações clausulares, algumas ao nível da equação de cálculo dos preços, tornando-se blindados. E vários documentos que podiam esclarecer dúvidas nunca chegaram às mãos dos investigadores, como as cartas-convite enviadas tanto a alemães como a franceses. Em termos de metodologia, a equipa do Ministério Público contava, apenas, com o auxílio de uma perita para lidar com operações complexas – como, por exemplo, os oito contratos de financiamento (swaps) dos submarinos. Não houve meios para contratar um especialista em compras públicas, que pudesse esclarecer certas opções do Governo, quanto mais para formar uma equipa multidisciplinar que pudesse dar apoio técnico a este caso, considerado de al-

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PORTUGAL

tíssima complexidade jurídica, operacional, técnica, logística e financeira. Isto para não referir que muitas buscas foram feitas por «arrastão», sem serem direcionadas, o que significa que toda a informação encontrada nas casas ou nos escritórios alvos das ditas era trazida para o inquérito e colocada nos seus apensos, sem ser filtrada. Os magistrados que assinam o despacho dão conta de todas estas contingências com que se depararam desde que o processo lhes chegou às mãos, depois de ter passado pela tutela de vários investigadores, entre eles Carla Dias, Auristela Pereira e João Ramos.

Dúvidas que ficam Oito anos depois do início das investigações e uma década passada sobre o negócio há, porém, dúvidas que ficam por esclarecer. Uma delas é relativa ao que se passou na Alemanha. Os investigadores estranham que a justiça alemã se tenha recusado a colaborar, não fornecendo os elementos que foram pedidos em várias ocasiões, nomeadamente informações bancárias sobre indivíduos ou empresas que intervieram no processo negocial. Também não se apurou se o cônsul honorário de Portugal em Munique, Jürgen

SUBMARINOS

OS MILHÕES DE EUROS QUE A EMPRESA ALEMÃ FERROSTAAL ASSUMIU TER PAGO EM COMISSÕES PERDERAM-SE NUMA MIRÍADE DE FUNDOS, OFFSHORES E CONTRATOS LEONINOS

Dinheiro sem rasto

Adolff (condenado na Alemanha por ter sido «contratado» pela Ferrostaal para promover encontros com decisores políticos portugueses a troco de uma comissão) ficou com o dinheiro das «luvas» para si ou se o terá dividido com alguém. A sentença que condenou Adolff, na Alemanha, dá como provada uma «conversa a quatro olhos, a sós» entre o referido cônsul e Paulo Portas. Sobre o assunto, o vice-primeiro-ministro português disse, no Parlamento, que se tinha deslocado a uma conferência anual de segurança em Munique quando «esse senhor era cônsul honorário». E acrescentou: «Tinha, felizmente, um chefe de gabinete que me avisou de que o cônsul em causa era uma pessoa algo maçadora, que eu tinha de preparar o discurso para o dia seguinte e que, por isso, polida-

Outra questão tem a ver com o rasto do dinheiro, que se perdeu. Os cerca de 27 milhões de euros que a Ferrostaal assumiu ter pago, relativos a contratos com a ESCOM Limited perderam-se numa miríade de fundos e offshores e contratos leoninos. O Ministério Público não foi capaz de apurar o destino das comissões. Só recentemente, o jornal i revelou gravações de reuniões nas quais Ricardo Salgado assumia ter recebido parte das comissões, no caso dos submarinos. «Deram-nos cinco a nós e eles [administradores da ESCOM] guardaram quinze. (… ) Os tipos [da ESCOM] garantem que há uma parte que teve de ser entregue a alguém em determinado dia», disse Ricardo Salgado. O modo como os submarinos do consórcio alemão foram subindo de classificação nas preferências da Marinha e do Ministério – primeiro estavam em último lugar, depois em segundo – até serem escolhidos, tam-

mente, não aceitasse ir jantar, e foi o que fiz. Vi esse senhor no aeroporto e no carro a caminho do hotel, com o meu chefe de gabinete; não sei absolutamente mais nada.»

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SUBMARINOS

Uma polémica na maioridade A compra de submarinos para a Marinha iniciou-se há 21 anos. Já fez correr muita tinta e meteu muita água 1993 31 de agosto – É publicada Lei de Programação Militar prevendo um investimento até 1997 de 73,8 milhões de contos na «manutenção da capacidade submarina» 1996 24 de julho – O Grupo Coordenador do Programa de Manutenção da Capacidade Submarina sugere que se mantenham em aberto duas opções de aquisição: novos ou usados 24 de julho – Os alemães do German Submarine Consortium (GSC) e a Espírito Santo Commerce (ESCOM) estabelecem um contrato de cooperação para a criação de um modelo de financiamento e definição de um programa de contrapartidas, relacionados com o fornecimento dos novos submarinos 1998 30 de janeiro – O Governo aprova o Programa Relativo à Aquisição de Submarinos (PRAS) e inicia a seleção de um fornecedor.

1999 8 de abril – Despacho dos ministros da Defesa (Veiga Simão) e das Finanças (Pina Moura) cria a Comissão Permanente de Contrapartidas (CPC), cuja missão é acompanhar os projetos que os fornecedores de armamento se obrigam a desenvolver para beneficiar a economia nacional 24 de setembro – O ministro da Defesa Jaime Gama seleciona dois consórcios para a fase de negociações: os franceses da

Direction des Constructions Navales International (DCN-I) e os alemães do GSC 2000 6 de novembro – É assinado com os consórcios concorrentes um acordo relativo ao Enquadramento Contratual das Contrapartidas 7 de novembro – Dá-se por concluída a fase de negociações 23 de novembro – Os concorrentes apresentam as respetivas «Best and Final Offer» (BAFO, oferta melhor e definitiva) 2003 2 de junho – Os consórcios participantes apresentam «ajustamentos da Best and Final Offer» 6 de novembro – Por sugestão do ministro da Defesa, Paulo Portas, o Governo decide adjudicar o contrato aos alemães. No relatório técnico que acompanha essa resolução lê-se, quanto às contrapartidas, que a proposta alemã tem classificação de «fraco» enquanto a francesa tem de «médio» 12 de novembro – O consórcio francês recorre ao Supremo Tribunal Administrativo para anular a decisão do Governo de Durão Barroso 2004 30 de março – O Supremo Tribunal Administrativo rejeita um pedido de providência cautelar dos franceses 21 de abril – Portas assina o contrato de compra dos submarinos aos alemães 6 de agosto – Supremo Tribunal Administrativo chumba o recurso dos franceses e dá razão ao Estado português Final de dezembro – Numa conta bancária do CDS, partido de Paulo Portas, dá entrada um milhão de euros em notas, depositadas durante vários dias 2005 Março – No âmbito das investigações do caso Portucale,

Sentença Em fevereiro deste ano, todos os arguidos do caso das contrapartidas foram absolvidos em julgamento

Abel Pinheiro e Paulo Portas são escutados a falar sobre «acordos» com o «Luís das Amoreiras», que, segundo a imprensa, será Luís Horta e Costa, presidente da ESCOM

bém não ficou claro para os magistrados que assinam o despacho. Apesar disso, vingou a ideia de que não terá havido favorecimento. Finalmente, a questão do Valor Acrescentado Nacional (VAN), no que diz respeito às contrapartidas, especialmente as destinadas aos Estaleiros de Viana, também se mantém nublosa para o Ministério Público. Muitas pontas soltas, mas, aparentemente, nada que permitisse uma acusação sólida.

Regresso às origens

2009 29 de Setembro – A investigação dá origem a outro processo relacionado com suposta burla na realização de contrapartidas: o Ministério Público acusa três cidadãos alemães e sete portugueses, que terão lesado o Estado em mais de 33 milhões de euros

Nesta altura, é preciso recordar que o primeiro processo conhecido por Caso dos Submarinos teve origem numa certidão retirada do Portucale, um inquérito sobre a viabilização de um empreendimento turístico da empresa Portucale, na Herdade da Vargem Fresca, que obrigou ao abate ilegal de milhares de sobreiros. Uma das escutas realizadas no âmbito dessa investigação envolvia Abel Pinheiro e Paulo Portas, ambos do CDS, a conversarem sobre «acordos» com o «Luís das Amoreiras», que a polícia acreditava ser Luís Horta e Costa, então administrador da ESCOM, a empresa do Grupo Espírito Santo que deu consultoria ao consórcio alemão. Esse pormenor da conversa – ao qual acresce o facto de, no final de dezembro de 2004, ter dado entrada nos cofres do CDS €1 060 250 em numerário – acabou por ser fundamental para a abertura do Caso dos Sub-

2010 Março – Autoridades alemãs detêm um administrador do grupo Man Ferrostaal (que pertence ao consórcio GSC), num caso de corrupção relacionado com a construção de submarinos para as marinhas portuguesa e grega. Nesse

OS QUATRO ARGUIDOS A QUEM SERÁ COMUNICADO O ARQUIVAMENTO DO INQUÉRITO SÃO: HÉLDER BATAGLIA, PEDRO FERREIRA NETO E OS IRMÃOS LUÍS E MIGUEL HORTA E COSTA

2006 Julho – Nas investigações do processo Portucale aparecem ligações ao negócio dos submarinos e surgem suspeitas de corrupção. O procurador Rosário Teixeira abre um processo autónomo só para os submarinos

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PORTUGAL

SUBMARINOS

caso, aparece envolvido, Jürgen Adolff, consul honorário de Portugal em Munique 2 de Agosto – O Tridente, primeiro dos dois submarinos, encomendados chega à base naval do Alfeite. O segundo, Arpão, chegará no ano seguinte 20 de dezembro – A eurodeputada Ana Gomes, entrega uma queixa na Comissão Europeia contra os contratos de aquisição e contrapartidas dos dois submarinos 2011 15 de janeiro – Sabe-se que o submarino Tridente está em reparação por problemas de fabrico

25 de janeiro – O juiz Carlos Alexandre decide levar a julgamento todos os arguidos do processo das contrapartidas dos submarinos. Pela primeira vez, responsáveis da Man Ferrostaal irão a julgamento 17 de março – DCIAP pede informações sobre Paulo Portas ao Ministério Público de Munique que acusa dois ex-quadros da Ferrostaal de pagamento de mais de 62 milhões de euros em «luvas» para garantir encomendas de submarinos por Portugal e pela Grécia 30 de abril – Chega à base naval do Alfeite, o submarino Arpão 16 de dezembro – Em Munique, dois ex-gestores da Ferrostaal admitem ter distribuído subornos, em Portugal e na Grécia, para obterem as encomendas. Os ex-executivos da Ferrostaal são condenados a dois anos de prisão com pena suspensa e a pesadas multas. A Ferrostaal teve de pagar uma multa de 140 milhões de euros 2012 1 de outubro – Em Portugal, regista-se, pelo menos a partir de 2009, um violento braço de

ferro entre o GSC e o Estado, devido ao incumprimento das contrapartidas por parte dos alemães. Depois de anos a adiar a resolução do problema, o Governo e o GSC estabelecem um novo acordo sobre as contrapartidas, que assenta no projeto «Hotel Alfamar», no Algarve, que exige um financiamento direto de 150 milhões de euros. Muito aquém do valor das contrapartidas que ficaram por realizar. Mesmo assim, esse projeto também será abandonado meses depois 19 de novembro – Quase dois anos após ter sido pronunciada a acusação, inicia-se o julgamento do caso das contrapartidas 2013 Agosto – São constituídos três arguidos no processo em torno da compra dos submarinos: Hélder Bataglia, Pedro Ferreira Neto e Luís Horta e Costa, gestores da ESCOM 16 de setembro – A Comissão Europeia encerra a investigação desencadeada. A eurodeputada Ana Gomes acusa-a de «voltar as costas a um caso de fraude e corrupção», ao encerrar a investigação e lavar as mãos «de um contrato assinado sob a responsabilidade política do seu presidente [Durão Barroso], ao tempo em que era primeiro-ministro de Portugal» 1 de outubro – O consórcio alemão anuncia ao Governo que desiste da construção do Hotel Alfamar, no dia em que deveria ter sido assinado o contrato para a construção do hotel, no âmbito do acordo assinado um ano antes 7 de novembro – Numa reunião do Conselho Superior da família Espírito Santo, Ricardo Salgado confessa: os cinco clãs da família receberam, em 2004, cinco dos 30 milhões de euros pagos pelo consórcio alemão à ESCOM. Quinze milhões foram para os gestores daquela empresa: Bataglia, Ferreira Neto e Luís Horta e Costa. Mas Salgado fala ainda de uma sexta pessoa: «Os tipos [da ESCOM] garantem que há uma parte que teve de ser entregue a alguém em determinado dia»

2014 14 de fevereiro – O processo das contrapartidas termina com a absolvição, em primeira instância, dos dez arguidos. Março – O ex-cônsul honorário de Portugal em Munique, Jürgen Adolff, é condenado a dois anos de prisão com pena suspensa por corrupção. Adolff terá procurado a Ferrostaal, oferecendo à empresa uma «assistência decisiva» para influenciar o Governo português, na opção pelos submarinos alemães 24 de abril – Pela primeira vez, em oito anos de investigação, Paulo Portas é ouvido enquanto testemunha, no Caso dos Submarinos 7 de maio – Depois de um braço de ferro entre a maioria e a oposição, cria-se uma Comissão Parlamentar de Inquérito às aquisições militares, que não investigando somente a compra dos submarinos os têm como prato principal 1 de outubro – Em nome da maioria, a relatora Mónica

Ferro (PSD) coloca um ponto final à Comissão de Inquérito aos Programas de Aquisição de Equipamentos Militares, apesar do pedido da oposição de prolongamento dos trabalhos. Neste dia, é também tornada pública, pelo jornal i a conversa de Ricardo Salgado, a 7 de novembro, com o Conselho Superior da família Espírito Santo 7 de outubro – Concluída a Comissão Parlamentar de Inquérito às compras militares, a oposição (PS, CDU e BE) unese, num gesto inusitado, para denunciar a alegada falta de seriedade, coerência e consistência do relatório final, imposto pela maioria, que diz não ter encontrado sequer indícios de irregularidades, onde entre outros factos a oposição viu o favorecimento ao BES. FRANCISCO GALOPE

A EURODEPUTADA ANA GOMES, DO PS, ENVIOU VÁRIAS QUEIXAS À COMISSÃO EUROPEIA, CRITICANDO O MINISTÉRIO PÚBLICO POR NÃO PROCURAR A DOCUMENTAÇÃO DESAPARECIDA

marinos, em 2006. Os investigadores desconfiaram que a proveniência do dinheiro do CDS/PP pudesse ser esse negócio e acreditaram ter identificado contas bancárias, no estrangeiro, que teriam sido usadas para esconder as «luvas» pagas pelos alemães a portugueses, através da ESCOM. Mais tarde, deu-se também a abertura de outra investigação às contrapartidas da compra dos submergíveis. Nesta última, e depois de buscas a vários escritórios de advogados, três alemães e sete portugueses foram acusados de burla qualificada e falsificação de documentos. Acabaram julgados e absolvidos, já este ano. Manteve-se o inquérito à compra dos dois submarinos, por quase mil milhões de euros, ao German Submarine Consorcium. E é sobre esse que agora temos a novidade do arquivamento.

Suspeitos e envolvidos Paulo Portas era ministro da Defesa quando foi adjudicada a compra do Tridente e do Arpão. Ainda assim, só em abril deste ano foi ouvido como testemunha, no âmbito do inquérito ao negócio, como já se explicou. O Diário de Notícias foi o primeiro a publicar que Paulo Portas era visto como suspeito pelo Ministério Público. O jornal referia, em setembro de 2012, que os investigadores estavam de olho em duas situações: uma delas relativa ao pagamento de 30 milhões à ESCOM, e a outra

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PORTUGAL

SUBMARINOS

Os casos do caso

O MISTERIOSO SEXTO ELEMENTO A notícia foi dada, em primeira mão, pelo jornal i, mas foi recentemente recuperada pelo deputado socialista Pedro Nuno Santos, no âmbito da Comissão Parlamentar de Inquérito do BES/GES. Afinal quanto dinheiro recebeu o BES ou foram pagos a elementos da família Espírito Santo em comissões relativas ao negócio dos submarinos? «E se nenhum responsável político recebeu uma parte, alguém que não era político recebeu?», questionou o deputado. Na resposta, Ricardo Salgado acabou por não ir tão longe, na Assembleia da República, como nas gravações da reunião do Conselho Superior do GES, a 7 de novembro de 2013, episódio que aquele jornal já havia noticiado em outubro. «Tive a garantia da ESCOM de que não foram pagas comissões a ninguém da área política. O que lhes posso dizer é que eles tiveram encargos muito grandes com pareceres e em termos de estruturas e o valor que ficou era menor que o inicial», disse agora. Então, havia confessado que os cinco clãs da família tinham recebido 5 milhões dos 30 milhões de euros pagos pelo consórcio alemão à ESCOM. «Deram-nos cinco a nós e eles [os administradores da ESCOM] guardaram quinze.» Ficariam a faltar 10 milhões. Enigmático, Salgado deixava, há um ano, a pista para um sexto elemento: «Os tipos [da ESCOM] garantem que há uma parte que teve de ser entregue a alguém, em determinado dia.» Já esta semana, o deputado do PS José Magalhães, questionou, na Comissão de Inquérito, outro elemento do clã Espírito Santo sobre este sexto beneficiário das comissões. «Quem é a sexta pessoa que ganhou uma comissão pelos submarinos? Tinha que fazer esta pergunta, senão ficava gago», questionou Magalhães. «Não sei quem era o sexto homem», afirmou Manuel Fernando Espírito Santo. Escusado será dizer que o rasto desse dinheiro perdido não foi encontrado pelo Ministério Público.

relacionada com uma tranche de 1,7 milhões de euros entregue a Rogério d’Oliveira, ex-consultor do German Submarine Consortium. «Resultam suspeitas de que parte do dinheiro pago pelo GSC à ESCOM tenha sido utilizado para pagamentos indevidos e como contrapartidas a decisores políticos e a grupos políticos envolvidos nas negociações», lia-se num documento judicial citado pelo DN. O primeiro Caso dos Submarinos (56/06.2TELSB) originou um arguido em 2009: o advogado Bernardo Ayala, que coordenava a equipa de assessores jurídicos do negócio. Durante dois anos, até o inquérito ser arquivado, Ayala manteve a condição de arguido. Do arquivamento saiu, porém, uma nova certidão que originou o segundo Caso

Desde 2006, este inquérito gerou os casos mais curiosos. No verão de 2010, soube-se que a procuradora-adjunta Carla Dias, uma das magistradas que tinha o Caso dos Submarinos à sua responsabilidade, mantinha uma relação amorosa há mais de um ano com José Felizardo, um perito do processo, presidente da Inteli – Centro de Inteligência em Inovação. Logo se escreveu que os advogados dos arguidos usariam esta informação para atacar a validade das perícias, mas Cândida de Almeida, diretora do DCIAP, foi rápida a garantir que o romance não comprometia a investigação. Nessa altura, foram instaurados inquéritos disciplinares a todos os magistrados titulares do inquérito. A Inteli, que, entretanto, abandonou o processo sem cobrar honorários, concluiu pela falsidade das contrapartidas oferecidas pela Ferrostaal e pela Acecia. E as perícias acabaram por ser validadas pelo juiz Carlos Alexandre. Porém, Carla Dias, assim como a procuradora Auristela Pereira, foram substituídas na investigação. Em agosto de 2012, outro caso ensombrou o inquérito. O novo procurador do processo, João Ramos, admite o sumiço de vários documentos relativos ao negócio, que deveriam estar no Ministério da Defesa. «Apesar de todos os esforços e diligências levadas a cabo pela equipa de investigação, o certo é que grande parte dos elementos referentes ao concurso público de aquisição dos submarinos não se encontra arquivada nos res-

dos Submarinos (222/11.9TELSB), na verdade um prolongamento do primeiro. Neste inquérito, conhecido por 222, outros quatro indivíduos foram constituídos arguidos por fraude fiscal qualificada, corrupção ativa e branqueamento de capitais, em 2013: os gestores da ESCOM Hélder Bataglia, Pedro Ferreira Neto e Luís Horta e Costa, e o empresário freelancer Miguel Horta e Costa.

EM 2012, O PROCURADOR JOÃO DIAS ASSUMIU QUE VÁRIOS DOCUMENTOS RELATIVOS AO PROCESSO DE AQUISIÇÃO DOS SUBMARINOS DESAPARECERAM DO MINISTÉRIO DA DEFESA

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SUBMARINOS

Números No DCIAP, diz-se que se o inquérito fosse todo impresso em papel, os cinco pisos do departamento não seriam suficientes para o arquivar

222/11.9TELSB

Identificação do processo, no DCIAP

4 8

Indivíduos constituídos arguidos

Os contratos de financiamento do negócio dos submarinos a que os investigadores tiveram acesso

336

número de páginas A4 do despacho de arquivamento

467 671

carateres gastos para justificar o fim do inquérito

18

Volumes do processo principal, em papel

457 GB

O espaço virtual ocupado pelo processo

902 871 39 990

Número de ficheiros informáticos

As pastas informáticas em que está dividido o caso

21

Os anos que passaram desde que se falou, pela primeira vez, na compra de submarinos

949

milhões de euros Preço dos submarinos alemães, que consta da Best Final Offer (BAFO) de 2003

845

milhões de euros Preço dos submarinos franceses, de acordo com a mesma BAFO

21/04/2004

Data de assinatura do contrato de aquisição dos submergíveis

petivos serviços, desconhecendo-se qual o destino dado à maioria da documentação.» A eurodeputada Ana Gomes, que, entretanto, se constituiu assistente no inquérito, enviou também várias queixas à Comissão Europeia, criticando o Ministério Público por não procurar a documentação que se queixa ter desaparecido. «Quanto tempo vai demorar o MP a ir procurar – se não os originais, pelo menos as cópias – os documentos que Paulo Portas digitalizou antes de sair do Ministério?», questionou a socialista. «Com certeza que esses papéis que o ex-ministro tratou de levar consigo não estavam relacionados com barquinhos de papel.»

O processo longe de casa A Comissão Europeia nunca se pronunciou sobre o caso, o que levou Ana Gomes a dizer que aquela instituição estava a lavar as mãos «de um contrato assinado sob a responsabilidade política do seu presidente, Durão Barroso, ao tempo em que era primeiro-ministro de Portugal». Curiosamente, a compra de submarinos aos alemães não foi alvo de investigações apenas em Portugal, mas só cá é que não houve condenações. Na Alemanha, dois ex-gestores da Ferrostaal – Johann-Friedrich Haun

NA SEQUÊNCIA DO ARQUIVAMENTO, SÓ SE ALGUM DOS ASSISTENTES PEDIR A ABERTURA DA INSTRUÇÃO DO INQUÉRITO É QUE ESTE CASO PODE CHEGAR A SER ANALISADO POR UM JUIZ

Grécia O ex-ministro da Defesa grego, Akis, Tsochatzpoulos, chegou a ser detido, no âmbito de um inquérito à compra de quatro submarinos ao mesmo consórcio alemão

e Hans-Peter Muehlenbeck – foram julgados e condenados por suborno de funcionários públicos estrangeiros, na venda de submergíveis a Portugal e à Grécia. Os próprios admitiram ao tribunal terem pago «luvas» e o ex-cônsul honorário Jürgen Adolff, estaria entre os beneficiários (1,6 milhões de euros). Ambos os gestores alemães, que estiveram cinco meses em prisão preventiva, foram condenados, em 2011, a dois anos de pena suspensa, assim como ao pagamento de coimas, no total de 54 mil euros. Já a Ferrostaal, acusada do crime de obtenção de vantagem económica, teve de pagar 140 milhões de euros de multa, em três prestações, até 2014. Na Grécia, o alvo dos tribunais foi o ex-ministro da Defesa, Akis Tsochatzpoulos. O governante socialista, responsável pela compra de quatro submarinos à Ferrostaal, pelo preço de 2,85 mil milhões de euros, chegou a ser detido, no âmbito deste processo, mas foi condenado a oito anos de prisão, em 2013, por não ter declarado bens e por ter falsificado as declarações de IRS entre 2006 e 2009. Independentemente destes desenvolvimentos internacionais, em Portugal ninguém chegou a ser condenado. No caso das contrapartidas, todos os arguidos foram absolvidos pelo Tribunal Criminal de Lisboa e, no Caso dos Submarinos, sabe-se agora, nem sequer haverá julgamento. Uma prenda de Natal antecipada para os arguidos. E para Paulo Portas.

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Comentário

José Carlos de Vasconcelos

Do BES à TAP: voos ‘baixos’...

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As audições na Comissão de Inquérito ao BES/GES, transmitidas em direto pelos canais televisivos de informação, se, por um lado, são propícias a um certo voyeurismo que não aprecio, por outro, muito mais importante, permitem aos cidadãos ter relativo acesso a um mundo para o comum dos mortais sempre desconhecido, por encoberto pelo manto nada diáfano do dinheiro, do poder e do privilégio. E, neste caso, em que os deputados intervenientes estão a mostrar, melhor ou pior, trabalho de casa – com destaque para a pertinência e concisão das questões postas pela jovem Mariana Mortágua, do BE –, têm ainda outra vantagem: valorizar, aos olhos dos portugueses, a instituição que, por definição, encarna a própria democracia e cujo prestígio tem andado bastante por baixo, o que é mau, em boa parte por culpa própria, o que ainda é pior. Para lá do respeito sempre devido às pessoas, em especial quando estão em queda, e do esforço para jogar todas as responsabilidades ou, pelo menos, todo o dolo para cima dos outros, parece óbvio que Ricardo Salgado tinha de saber, se não estar na base, dos factos mais graves deste indecoroso caso. E que os seus colaboradores diretos de mais alto escalão também não os deviam ignorar. E que a supervisão foi débil

e demorada – talvez devido ao que, no Direito, se chama(va)m «os hábitos da comarca»... E que o Governo, lavando ou fingindo lavar as mãos, também não esteve à altura do que se lhe exigia. E que é incompreensível a forma como a «solução» Vítor Bento foi acolhida e abandonada. E que... E que... E que... Creio, porém, que do principal, como de hábito, não se tirarão as devidas ilações. Porque se foi possível chegar-se onde se chegou, tal se deve a um sistema que, aparentando apertar algumas malhas para impedir a criminalidade económica, a fraude e fuga ao fisco, etc., continua a permitir o que, no essencial, as possibilita ou potencia. A começar pelos offshores e paraísos fiscais e a acabar na miríade de empresas, incluindo as fictícias, com participações cruzadas e recruzadas, holdings, subholdings, sedes em países diversos, etc. Para quê?... E, depois, ou a culpa não é de ninguém ou os «reguladores» é que passam a ser os maus da fita!

2

A greve da TAP é polémica? É. Mas isso não pode constituir pretexto para se falar apenas dela, greve, e ocultar a questão de fundo, a privatização da companhia. Contra a qual os seus trabalhadores fazem a greve. Que reúne, o que diz tudo, os seus

Privatizar a TAP a nove meses de eleições, contra toda a Oposição, os seus trabalhadores, a opinião maioritária dos portugueses, constitui um ato lesivo para o País

12 sindicatos, os quais não podem ser acusados de fazer política contra o Governo. Ao Governo estão, sim, a dar uma lição: a defender a empresa e, sobretudo, os interesses dos portugueses. Do continente, das regiões autónomas e espalhados pelo mundo. Não há, hoje, uma só razão válida para privatizar a TAP, quando muito pode-se admitir a alienação de uma parte minoritária do seu capital. E a nove meses de eleições, tendo (é minha convicção) a generalidade dos portugueses, toda a Oposição, os seus trabalhadores, contra essa privatização, além de mostrar a costumeira teimosia e autossuficiência, privatizá-la quase configura um abuso de poder. E constitui um ato lesivo para o País, demonstrando bem a quem serve o Governo e a seriedade dos seus apelos aos «consensos»!...

3

Os deputados do PSD pela Madeira votaram contra o Orçamento de Estado, decerto por muito boas razões. Mas a verdade é que infringiram a chamada «disciplina de voto». Numa das raríssimas situações que mesmo eu, talvez entre nós o mais antigo e acérrimo defensor da liberdade de voto dos deputados, admito poder ser uma exceção a esse princípio, de par com as moções de censura e confiança. Assim, um deles foi afastado da presidência de uma comissão e tem um processo disciplinar. O extraordinário foi ouvir Guilherme Silva, outro deles, há mais de 20 anos, insurgir-se contra esse facto, defender aquela liberdade e fazer outras excelentes «proclamações». Ele desde sempre um grande apaniguado e apoiante de Alberto João Jardim, advogado do seu círculo, até, se bem me lembro, em processos contra jornalistas, etc. Pelo que importa perguntar: quando é que se opôs, quando é que votou contra as orientações e decisões de Jardim?; quando levantou um dedo ou a voz contra alguns dos seus atos, para não dizer mais, discricionários e prepotentes?

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PERFIL

Mariana Mortágua A vice-presidente da comissão de inquérito ao BES é também a deputada mais nova do Parlamento

LUÍS BARRA

do Bloco e intervinha sempre com muita competência. Algumas das qualidades que faziam dela uma boa assessora estão agora à vista, na comissão BES: tem uma grande capacidade de trabalho e de investigação, é muito metódica», desfia.

De Alvito para a ribalta Aos 26 anos já escrevia um livro com um Nobel da Economia, mas só aos 28 Mariana Mortágua se tornou na deputada de quem se fala POR INÊS RAPAZOTE

B

astava-lhe ser filha de Camilo Mortágua – o revolucionário que participou no assalto ao paquete Santa Maria em 1961 e no desvio do avião que espalhou por Lisboa milhares de panfletos antifascistas – para ser conhecida. Mas Mariana não é de se encostar a louros alheios. Tem os seus, conquistados tão discretamente que até quando ultrapassou nove candidatos (da lista às legislativas) para substituir Ana Drago, no Parlamento, tornando-se a deputada mais nova do Bloco de Esquerda (BE) e do hemiciclo, a polémica deixou rapidamente de se fazer ouvir. Mas a discrição tem limites e, um ano depois, o nome Mariana Mortágua (filha do revolucionário, não do PIDE, como gosta de referir) saltou mesmo para a ribalta. De há um mês para cá, foi numerosas vezes cara da semana e figura em alta, nos vários termómetros mediáticos. «É aproveitar, porque há de durar pouco», sorri. Foi dela a voz que se levantou contra a reposição das pensões vitalícias dos deputados e aquela que mais se tem destacado (pela pertinência e estudo das questões, Ricardo Salgado dixit) nas audições ao caso BES. É ela também a face do BE, nas questões económicas, desde a TAP à energia. Mariana nem sempre foi de dar a cara – na infância, passada em Alvito, preferia pedir à irmã gémea, Joana, dois minutos mais nova mas igualmente bloquista, que fizesse isto ou pedisse aquilo; e chegava a ficar enjoada quando tinha de falar em público. Mas a he-

rança genética é forte e a contestação corre-lhe nas veias. Aos sete anos, já mobilizava tropas para pedir ao presidente da Câmara de Alvito que resolvesse o problema da passadeira junto da escola, recordou a sua mãe ao Expresso. Aos 15, inscrevia-se na ONG Ação para a Justiça e Paz e, pouco depois, mandava comida para o «Barco do Aborto», ancorado ao largo da Figueira da Foz. Foi a melhor média a entrar em Economia, no ISCTE, a melhor do curso e do mestrado. O doutoramento, vai ter de se ir fazendo, nos intervalos de tudo o resto. Confessa sofrer, ao pensar nos prazos, mas não consegue deixar de fazer mil coisas ao mesmo tempo. Sempre foi assim. Acabou o curso a trabalhar num centro de investigação do ISEG, fez o mestrado a trabalhar numa consultora (de onde se despediu por não acreditar no que estava a fazer) e no Parlamento. E, depois, ainda acumulou o trabalho parlamentar com umas aulas que deu no ISCAL. José Gusmão nem a conhecia bem, mas não hesitou quando, recém-eleito deputado, precisou de uma assessora para as questões financeiras. «Ela já era militante

Soube pela VISÃO que ia ser «vice» da comissão de inquérito do BES

‘New kid of the Bloco’

Foi na AR que Mariana conheceu Francisco Louçã. Hoje são bons amigos, trabalham bem juntos e até escreveram dois livros a quatro mãos. Mas não se considera sua «pupila» ou «delfim», como se diz por aí. «É exagerado», afirma, mas é coisa que não a incomoda. Ao lançar-se no doutoramento, não foi à porta de Louçã (professor de Economia no ISEG) que bateu. Desviou-se, antes, para Londres, para a SOAS (School of Oriental and African Studies, «a universidade mais de esquerda da Europa»), para ir atrás da orientação de Jan Toporowski, para a sua tese sobre Desequilíbrios macroeconómicos da União Europeia. É rigorosa, exigente consigo própria, segura, focada, ponderada. Foi habituada a argumentar e a justificar cada posição e o seu empenho foi sendo reconhecido, embora ela justifique o seu percurso com as «oportunidades» que foram aparecendo. Ao chegar aos 26 anos, por exemplo, escrevia, a convite do jornalista financeiro Tony Phillips, um capítulo para o livro A Europa à Beira do Abismo, no qual também participavam um prémio Nobel da Economia (Joseph Stiglitz) e um ex-ministro das Finanças (o argentino Roberto Lavagna). Hoje, entre o trabalho parlamentar, a comissão de inquérito ao BES, o doutoramento e a carta (faltam-lhe três aulas práticas para ir a exame de condução), Mariana não tem tempo para escrever livros… nem para ler. No pouco tempo livre que arranja, passeia («esta cidade é linda!»), vai para os copos (cerveja, de preferência) com os amigos ou limpa a casa. A bicicleta está parada há meses (até já tem os pneus em baixo) e a equipa de futebol lá vai esperando pela sua avançada. Sabe que, quando pressionada, mais faz, e por isso vai-se inscrevendo em conferências e obrigando a fazer papers, que, depois, aproveita para a tese. Assumidamente workaholic (embora tenha descoberto, recentemente, que «ser workaholic não é uma coisa boa e que não há

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PORTUGAL

problema em tirar um tempo para mim»), é do género de se fechar em casa a estudar dossiês. Foi, aliás, pela VISÃO que soube que ia ser vice-presidente da Comissão de Inquérito ao BES. Estava há horas a ler sobre o assunto que nem deu por ela… Deita-se tarde e começa muito cedo. Vive a café e no medo de acabar a fazer qualquer coisa de que não goste. «Nunca precisei de trabalhar em call centres (como muitos dos seus amigos). Mas não sei o que o futuro me reserva.» Faz parte da geração que cresceu a ouvir que era a mais educada, que havia «meritocracia» e a sentir na pele o que era a «competitividade». Mas que é também a

Família Do pai, Camilo Mortágua, herdou a contestação e da mãe a ponderação. À dir. com a avó Laura, por quem as gémeas têm uma «imensa adoração»

mais «angustiada e frustrada. Por mais que se faça, nunca é suficiente». Sente que tem sorte, por estar orientada. Tem, pela função que desempenha «por cidadania», um bom ordenado ao fim do mês, o que sabe bem, depois de ter sido «tão pobre», em Londres. Passa pelas comissões e pelo hemiciclo com ar simpático, sorridente, mas seguro. E com a responsabilidade de ir desconstruindo a linguagem mais técnica e

PERFIL

o economês, para que todos os eleitores percebam do que se fala, naquela casa do poder. Quer acabar a legislatura «a fazer um bom trabalho» e com forças para se empenhar na campanha, por um Governo de esquerda. Com o PS? «O BE tem um projeto muito concreto. Não estou disposta a abdicar dele por um lugar no Executivo», diz, apontando os exemplos do Syriza ou do Podemos. «Votem em nós!», diz, convicta que é esta a vida que quer. O seu lugar na política (no BE) está conquistado. Há de acabar o doutoramento, para poder seguir (também) uma vida académica. Depois, é esperar pelas oportunidades e que a vida não a leve a emigrar.

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ECONOMIA

GERAÇÃO EPUL Dificuldades financeiras e incapacidade de cumprir o pagamento dos empréstimos ditaram a extinção da Empresa Pública de Urbanização de Lisboa (Epul), que ocorrerá no último dia deste ano. Criada em 1971 com o objetivo de ordenar o território e impedir a desertificação da cidade, chegará a Epul ao fim com a missão cumprida? Histórias das primeiras e das últimas famílias que compraram casa através da Epul Jovem POR SÓNIA CALHEIROS 52 v 18 DE DEZEMBRO DE 2014 © Todos os direitos reservados. A cópia ou distribuição não autorizada é proibida. Ficheiro gerado para o utilizador 1911920 - carrasqueiran@gmail.com - 82.155.164.153 (18-12-14 07:38)


S

urpreendida pela «luz fantástica», Susana Costa apaixonou-se pela casa, quando nela entrou, pela primeira vez, em outubro passado. Um momento com onze anos de atraso a que ela e Nuno Oliveira resistiram, de forma estoica, juntamente com outros 44 resistentes do imbróglio das Residências Martim Moniz. Com a escritura inicial marcada para dezembro de 2003, só assinarão os papéis em janeiro de 2015, data em que receberão as chaves do seu T2, sorteado, em 2001, no concurso da Epul Jovem. O programa da empresa, constituída em 1971 – como um instrumento de ordenamento do território ao serviço da Câmara Municipal de Lisboa –, nascera em 1996, com a intenção de combater a desertificação de Lisboa, colocando no mercado habitacional fogos a preços competitivos e exclusivamente para jovens, em zonas centrais. De uma lista de 12 empreendimentos, dos quais o Martim Moniz é o oitavo, a Epul Jovem foi responsável pela construção de 2 425 casas, em zonas como Paço do Lumiar, Telheiras, Vale de Santo António, Alto da Faia, Quinta dos Barros, Graça ou Entrecampos.

Fotografias para mais tarde recordar

Bairros Epul

MARCOS BORGA

Os primeiros O T3 sorteado no programa Epul Jovem foi decisivo na união de Luís Simões e Cleia Cunha, a morarem há 15 anos no Paço do Lumiar

A2/Sul

Algarve Alto da Faia Paço do Lumiar Entre 1996 50 248 Encosta de Telheiras e 2014, Quinta do Castanheiro 216 o programa 520 Epul Jovem Vale de comercializou Santo António Quinta dos Barros 2425 casas Alvalade 384 Parque das a preços mais 304 Nações baratos do que os de mercado Entrecampos vigente. Uma 612 TOTAL forma de combater Saldanha Graça DE FOGOS a desertificação 46 da cidade e de fixar Martim Moniz jovens em zonas 45 centrais da capital

2 425

Rio Tejo

INFOGRAFIA VISÃO

Amigos desde a adolescência, Susana e Nuno andavam juntos, de bicicleta, na terra dos avós dela, na Murgeira, perto de Mafra, onde os avós dele também tinham uma casa. Começaram a namorar em outubro de 1999, «no dia em que a Amália Rodrigues morreu», recordam. Aliciado pelos boatos de que o eixo da Avenida Almirante Reis ia ser melhorado e que um dos centros comerciais da Praça do Martim Moniz seria demolido, Nuno, 38 anos, viu no concurso da Epul e nos anúncios de «casas, a bons preços, no centro da cidade», uma oportunidade de se mudar de Odivelas para Lisboa. A sorte bateu-lhe à porta com o número 65 e inscreveu-se nas categorias T2 duplex e T3. A sua primeira escolha recaiu num T2 com 76 metros quadrados e vista para o Castelo de S. Jorge por 22 900 contos (114 mil euros). Deu 500 contos de entrada e, até 2007, amortizou 75 mil euros. Falta-lhe pagar cerca de 50 mil euros de uma casa que só será sua onze anos depois. «A boa parte do negócio» é o metro quadrado ao preço de 2001 (€1 487). Em setembro de 2002, alguns meses antes de casar, o atual auditor interno numa empresa do setor energético recebeu uma carta da empresa municipal a anunciar a «suspensão da obra por não se enquadrar na envolvente histórica e urbana da zona», dando uma previsão de mais um ano e três meses para reformularem o projeto. Nuno e Susana suspenderam também as subidas regulares ao Castelo de S. Jorge para tirar fotografias às obras com a intenção de registar a evolução da edificação dos prédios. «Até o meu avô andava, de vez em quando, a rondar as obras… faleceu sem ver o prédio de pé», lembra Nuno. «Começámos a ficar nervosos com a falta de comunicação por parte da Epul, não partilhan18 DE DEZEMBRO DE 2014 v 53

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ECONOMIA

URBANISMO

JOSÉ CARIA

MARCOS BORGA

do o estado real da obra. Tínhamos a possibilidade de rescindir mas não quisemos. Não gosto de desistir e continuava a acreditar que, um dia, viria morar em Lisboa.» Para Susana, 37 anos, enfermeira no Hospital D. Estefânia, morar naquela casa era ideal, «assim ia a pé para o trabalho». Com o novo projeto arquitetónico, em 2006, o casal teve a possibilidade de rever a tipologia da casa e a sua localização. Em janeiro, entrarão à mesma num T2, com mais nove metros quadrados e um pátio interior do lado das traseiras, mais resguardado do bulício das ambulâncias e dos carros de bombeiros. «Foi uma escolha consciente, para se conseguir dormir.» Entretanto, já nasceram dois filhos, com 7 e 5 anos, e estão bem instalados num T4, em Odivelas. Para já, não pensam em vender a casa da Epul e, apesar de exaustos e sem grandes motivos para festejar, querem abrir uma garrafa de champanhe. «Agora, é rentabilizar o negócio. O sonho passou a investimento.»

Os últimos Onze anos depois, Nuno Oliveira e Susana Costa vão fazer a escritura do seu T2, no Martim Moniz. A obra, em 2002, e a fachada atual

Onze anos a valorizar Para Luís Osório nem chegou a existir a ilusão de morar na sua casa com um quarto e uma sala com kitchnet. «A vida não é de sonhos.» Pouco agradado com alguns acabamentos como os estores de manivela, a placa de gás ou o pavimento, vê a casa do Martim Moniz como um investimento: «É para alugar a estrangeiros, para estadas de curta duração», conta. Só não desistiu da compra, em homenagem à sua mãe, falecida em 2006, que sempre lhe disse que uma casa na Baixa da cidade era um investimento melhor do que no Alto da Faia. Aos 25 anos, quando se inscreveu no Epul Jovem escolheu um T1, com 55 metros quadrados, «um dos mais baratos», por 16 mil contos (80 mil euros). À medida que o projeto foi sofrendo alterações, Luís mudou de um T1 nas traseiras, para um T1 central e agora, finalmente, vai escriturar um T1 com vista para a renovada Praça do Martim Moniz. «Onde antes havia droga e prostituição, agora há esplanadas, cafés e bom ambiente.» Valorizada a zona da cidade, Luís diz não vender a casa por menos de 200 mil euros. Nesta delonga de onze anos, foi ao banco uma mão cheia de vezes, para renegociar o

empréstimo, cujos juros estão a ser pagos pela Epul desde junho de 2002 (18 meses antes da data inicial marcada para as escrituras). Nascido em Lisboa, aos 7 anos mudou-se, com a família, para o Brasil, de onde só voltou aos 21. Lá morou numa dezena de casas e passou por oito escolas, razões para se ter tornado num homem pragmático e desapegado. Aos 38 anos, gere a sua empresa de próteses dentárias, a Biofisa Osstem Implant, e as diversas viagens de trabalho realizadas todos os anos fazem com que a casa onde mora, na Quinta do Lambert, funcione como hotel.

Uma casa sempre em festa Terão alguma vez os arquitetos da Epul Jovem projetado uma casa com três quartos (T3) para um casal com sete filhos entre os 15 e os 2 anos?

Martim Moniz Casas vão ser entregues 12 anos depois da compra

Provavelmente, não. «Um quarto ao lado da cozinha foi pensado, obviamente, para ser um escritório. Não pensaram em famílias grandes. O maior erro deste projeto foi fazer casas de tipologia pequena [39 T0 e 95 T1]», aponta Ricardo Roque Martins, 41 anos, arquiteto e professor de Artes Visuais e de Religião no colégio Planalto, onde também estudou. Outras «soluções menos académicas» de uma das primeiras 164 casas construídas, em 1999, no Paço do Lumiar, são a ausência de hall e o facto de o corredor passar pela sala, fazendo com que a zona social não seja autónoma. «Esta é uma casa muito utilitária. Para viver em condições ótimas teria de ter um quarto para cada criança. Mas, com sete filhos, tivemos de fazer adaptações.» Arranjar uma mesa redonda para a sala, por exemplo. «É a única solução que deixa tudo à mesma distância de todos», explica o patriarca. Ricardo já namorava havia sete anos com Marina, 41 anos, educadora de infância, quando se candidatou a uma das casas dos seis primeiros blocos de habitação da Epul Jovem, nas ruas Professor Alfredo de Sousa e Professor Manuel Viegas Guerreiro. Bas-

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URBANISMO

Casas baratas Aliciados por anúncios com preços baixos, os Roque Martins mudaram-se, em 1999, para o primeiro empreendimento da Epul Jovem, no Paço do Lumiar. Ricardo e Marina moram com os sete filhos num T3

MARCOS BORGA

tava ter entre 18 e 30 anos e aceitar o ónus de não a vender nos cinco anos seguintes. Tendo a família como único e grande projeto de vida, Ricardo e Marina escolheram um T3 com 99 metros quadrados por cerca de 20 mil contos (100 mil euros). «Lembro-me de visitar a obra, com o terreno em lama, ver as fundações e as primeiras lajes a subirem», conta. Em 1999, Ricardo e Marina casaram-se, foram morar para a casa nova e nasceu o Bernardo. «Durante alguns meses ainda tive um escritório só para mim, com estirador e tudo. Agora, é o quarto da Maria [10 anos], da Leonor [8 anos] e do Vicente [5 anos]». «Quase todos os meses há uma festa de anos, só quando vão cinco dos sete para os escuteiros é que a casa fica mais sossegada». Quinze anos depois de comprar a casa, Ricardo e Marina assumem que, sem o programa jovem da Epul, talvez morassem numa moradia, em Loures ou Odivelas. «Somos o paradigma de que a habitação social não é só para os pobres. Não é uma questão de dinheiro, é uma questão de existirem as condições mínimas e aqui existem. Porque é que em Portugal a casa é considerada um luxo e não um bem de primeira necessidade como o leite e o pão?»

CAMPISO ROCHA

ECONOMIA

Um compromisso para a vida Há um mês, terminaram as primeiras pinturas exteriores do prédio roxo, vizinho do lado do edifício azul, onde moram os Roque Martins. O jornalista desportivo Luís Simões, 41 anos, conheceu Ricardo logo em 1999 quando integraram o primeiro grupo de moradores a tratar da administração do condomínio dos seis blocos habitacionais. Tal como Ricardo, também Luís já conhecia Telheiras/Paço do Lumiar desde os tempos em que vinha de autocarro visitar a namorada Cleia Cunha. Numa das suas incursões românticas por Telheiras passou por um cartaz que dizia: «Até que enfim! Habitação para jovens a partir de 7 900 contos» (perto de 40 mil euros). «Lembro-me perfeitamente dos panfletos a preto e branco com as diversas tipologias», conta Luís que ficou em 25.º lugar, em cerca de 300 candidaturas ao primeiro concurso da Epul Jovem, enquanto Cleia era a 90.ª dos suplentes.

Epul, falência adiada? Os lucros de 5 milhões de euros, em 2010, foram um bom prenúncio da recuperação de uma situação de falência técnica da Epul, anunciada em 2007, devido a má gestão contabilística, que assumia as vendas ainda não realizadas. Mas, dois anos mais tarde, em dezembro de 2012, teve início o processo de liquidação, no prazo de 24 meses (cumpre-se agora), com o objetivo de amortizar a dívida de 45 milhões de euros. Esse valor é o que faltava pagar de um empréstimo de 60 milhões feito em 2004 a dois bancos estrangeiros, Dexia (Bélgica) e De Nederlandsche Bank (Holanda). A Câmara de Lisboa pagou 22,5 milhões de euros e os restantes 22,5 milhões entraram no processo de liquidação. Além disso, os liquidatários Luís Natal Marques e Jorge Alves de Oliveira reuniram todos os restantes pequenos empréstimos existentes em bancos nacionais e consolidaram-nos num só, de 48,6 milhões de euros. Três hastas públicas de lojas e apartamentos, realizadas entre julho e novembro, renderam pouco mais de 28 milhões de euros. Agora, todas as dívidas passam para o erário camarário.

«As pessoas tinham medo de comprar em planta. Mas, no segundo projeto, na Quinta do Castanheiro, também em Telheiras, chegaram às dez mil inscrições», referem. «Na planta da casa víamos o atual Eixo Norte-Sul tão perto que parecia estar à nossa janela», recorda Cleia Cunha, 37 anos, zooarqueóloga desempregada. Juntos, escolheram um T3 com 95 metros quadrados por 20 mil contos (100 mil euros). Hoje, falta-lhes pagar perto de 30 mil euros e têm a noção de que se não tivessem adquirido casa através da Epul Jovem teriam ido morar para fora de Lisboa. Assustados com o compromisso a que a casa obrigava nos próximos anos, dois de obras mais cinco sem a possibilidade de vender, Cleia e Luís resolveram casar em agosto de 1998. «O compromisso de só dentro de sete anos nos vermos livres da casa, se alguma coisa corresse mal, foi o fator de união.» Em quinze anos, viram chegar mais gente ao bairro, permitindo o convívio entre pessoas de diferentes estratos sociais, abrir creches, escolas, parques infantis e o «jardim mais bonito da cidade», a Quinta Nossa Senhora da Paz, nas traseiras do templo Radha Krishna. Tudo pronto para quando Luís e Cleia tiverem o primeiro filho.

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ECONOMIA

TECNOLOGIA

O futuro já está aqui Do papel digital aos relógios inteligentes; das objetivas para telemóveis aos minidrones. Eis algumas das estrelas tecnológicas deste Natal

GOLF 3D SWING ANALYZER

Para os amantes do golfe

SONY DSC-QX30

Objetiva/câmara para telemóvel

PAULO M. SANTOS

Blocos de notas que dispensam o papel, minidrones ao alcance de qualquer bolsa, objetivas para fotografias tiradas a partir dos telemóveis, relógios inteligentes que permitem fazer navegação, chamadas telefónicas e obedecem à sua voz. Bem-vindo ao fantástico mundo novo dos aparelhos que estão a marcar o final deste ano ou que irão ser a grande tendência da tecnologia do futuro.

Após a voz e as mensagens, a fotografia foi uma das primeiras funções que os fabricantes de telemóveis disponibilizaram para estes aparelhos. Nos dias de hoje, existem milhões de pessoas que apenas usam o seu smartphone para registar momentos únicos. No entanto, o telemóvel ainda é um aparelho algo limitado, tratando-se de fazer as melhores fotos. Foi por essa razão que a Sony lançou a DSC-QX30. Trata-se de uma câmara que transforma o telemóvel ou um tablet numa máquina fotográfica potente. Tem um zoom ótico de 30x e estabilização de imagem. A objetiva vai de uma grande angular de 24 mm até aos 720 mm. Pode também efetuar gravações vídeo em full HD. Disponível por €299.

A grande maioria dos golfistas tem como único objetivo manter um swing consistente que permita melhorar o seu jogo. Mas, muitas das vezes, não conseguem perceber o que estão a fazer mal nesta ou naquela jogada. Foi para colmatar essa falha que a Zepp criou o Golf 3D Swing Analyzer. É um dispositivo pequeno, que se coloca na mão ou no taco e que, através de uma aplicação no telemóvel, mede o tempo, a velocidade e o ângulo de rotação, entre muitos outros dados, do seu swing. Ainda não está disponível em Portugal, mas o seu custo, sem portes de envio, ronda os €125 nos sites da especialidade.

HUAWEI TALKBAND B1

Uma pulseira muito ativa PANONO PANORAMIC CAMERA

A CÂMARA REDONDA É um projeto alemão que nasceu graças ao dinheiro angariado através de crowdfunding. Trata-se da primeira câmara capaz de filmar imagens esféricas panorâmicas. O aparelho usa 36 pequenas câmaras ligadas em simultâneo, criando uma única imagem panorâmica com 108 megapixels. Quando apresentadas numa televisão retangular, o utilizador pode rolar a imagem para a esquerda e para a direita, ou para cima e para baixo, o que proporciona uma imagem de 360 graus de toda a cena. Vai ser lançada na primavera de 2015 com um preço de venda ao público de €549.

Um daqueles dispositivos que é, simultaneamente, um acessório de moda. Trata-se de uma pulseira com um centímetro e meio de espessura e um ecrã 1,4 polegadas. Efetua a monitorização do seu dia a dia, medindo as pulsações, as calorias queimadas, a qualidade do sono, etc. Através de ligação Bluetooth ao seu telemóvel pode também fazer chamadas. Para falar, basta pressionar uma tecla que separa o auricular da pulseira. Disponível em várias cores, o preço de venda ao público é de €119,90.

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ECONOMIA

TECNOLOGIA

CHROMECAST

DIGITAL PAPER

O seu computador na TV

Um bloco de notas (quase) infinito

Já está à venda o dispositivo da Google que permite passar facilmente vídeos ou fotos do seu computador para a televisão. O aparelho liga-se a uma porta HDMI do seu televisor e não necessita de cabos. A partir de um telemóvel, de um tablet ou de um qualquer computador, pode ver e ouvir tudo o que é multimédia, no grande ecrã lá de casa. Para tal, basta fazer o download das aplicações que a Google disponibiliza para este aparelho. Pode ver os vídeos do YouTube ou quaisquer outros vídeos, nos mais variados formatos. Pode, igualmente, ouvir música ou ver as fotos que tem nos seus dispositivos móveis. Disponível por €35, este aparelho pode ser uma boa alternativa de prenda de Natal para os amantes da tecnologia.

MOTO 360

MAIS PARECE UM RELÓGIO CONVENCIONAL Mas não é. Muito pelo contrário. A Samsung inaugurou o mercado e a Apple tarda em lançar o seu modelo há tanto esperado pela comunidade fiel à marca da maçã. No entretanto, a LG, a Sony e a Motorola tentaram a sua sorte neste novo mundo dos relógios inteligentes. O Moto 360, da Motorola, é um bom exemplo da transformação deste aparelho secular. É elegante e mantémse fiel ao design dos tradicionais relógios de pulso. Com um ecrã de 4 cm e uma resolução de 320 por 290 pixels, está dotado de um sistema de navegação pioneiro nos smartwatches. Vibra quando recebe uma chamada, sms ou email. Muitas das suas funções podem ser ativadas através de comando de voz. Tem uma memória RAM de 512MB e um disco interno de 4 Gigas. Está disponível por €249. A Motorola deu o passo seguinte neste nicho de mercado, mas, segundo informações recentes, o fabricante suíço Tag Heuer já celebrou um contrato para a Intel lhe fornecer processadores para os seus relógios, o que poderá dar origem aos smartwatch de luxo.

PARROT DRONE

Chegaram os minis Num espaço muito curto de tempo, o mundo viuse invadido por drones. São muitas as empresas que os usam para realizar, em poucos minutos, tarefas que anteriormente demoravam dias a fio. São utilizados, também, em eventos, para fotografia, filmagens, etc. A Amazon está a ponderar utilizá-los para entrega de encomendas. Com a massificação deste produto, os preços caíram a pique. Mas, agora, ficaram ainda mais acessíveis, devido a várias empresas que estão a lançar os minidrones. Uma delas é a Parrot, cujos aparelhos já estão à venda em lojas especializadas, com custos entre os €99 e os 159 euros. Saltam, rolam, voam e são comandados a partir de uma aplicação em qualquer telemóvel ou tablet.

A Sony apresentou, recentemente, o Digital Paper, um equipamento que pretende acabar com os blocos de notas e com as toneladas de papel de fotocópias usadas, todos os dias, nos escritórios ou em casa. É uma espécie de tablet, com formato A4, que permite ler documentos, escrever notas, sublinhar frases, desenhar, entre muitas outras funções que usamos hoje com o papel. Além disso, pode ainda adicionar ficheiros pdf com documentos, seja um contrato, seja um decreto-lei, uma minuta, etc., isto é, aqueles de que hoje em dia nos vemos obrigados a tirar fotocópias. Com cerca de meio centímetro de espessura, o dispositivo tem capacidade de armazenar cerca de 2 800 ficheiros pdf, mas admite a possibilidade de aumentar a memória através de cartão SD. Tem ligação wi-fi e porta USB. A bateria pode ter uma duração de cerca de três semanas e o contraste elevado permite a leitura dos documentos mesmo em condições extremas de luz.

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ECONOMIA

INQUÉRITO AO BES

AFINAL QUEM MANDAVA NO GRUPO?

«Eu não era responsável pelo GES como um todo. A delegação de poderes era a única forma de funcionar. Num mundo como o BES é impossível saber-se tudo. Todos os ramos da família tinham responsabilidades paritárias e ninguém tinha a supremacia de voto nas reuniões do Conselho Superior. Eu era responsável pela área financeira.»

As contradições disto tudo Quando, no próximo dia 22, se encerrarem os trabalhos da Comissão Parlamentar que investiga o colapso do império Espírito Santo, terão passado pelas audições duas dezenas de inquiridos, entre supervisores, políticos e gestores bancários. Prestaram-se longos depoimentos. Uns esclarecedores, outros marcados por falhas de memória e escudados nos segredos bancário e de justiça. E outros ainda repletos de contradições, das quais damos aqui os momentos altos POR FRANCISCO GALOPE

SUCESSÃO NO BES

RICARDO SALGADO, LÍDER DO GRUPO ESPÍRITO SANTO

«Toda a gente sabe que, quer o BES quer o GES, tinham uma liderança completamente centralizadora. Fico muito surpreendido agora em saber que ninguém sabia de nada e que essa liderança era completamente alheia a tudo o que se passava.»

«[Salgado] geria o banco num regime presidencialista. Sabia de tudo, até aos pormenores. […] Eu era o braço-direito, o esquerdo e o mindinho… Mas havia pessoas muito importantes no banco. Uma delas era o dr. Ricciardi.» AMÍLCAR MORAIS PIRES, ADMINISTRADOR DO BES

«Perdeu-se uma semana por causa de um braço de ferro entre Ricardo Salgado e o Banco de Portugal por causa de um nome [o de Morais Pires para suceder a Salgado na liderança do BES].»

«[O Banco de Portugal] usou os elementos ao seu dispor para forçar a saída de Ricardo Salgado – a persuasão moral feita, adiando sucessivamente o novo registo para Ricardo Salgado pudesse desempenhar funções em várias entidades financeiras.» PEDRO DUARTE NEVES, VICE-GOVERNADOR DO BANCO DE PORTUGAL

«Bastaria [o governador do Banco de Portugal] ter feito um sinal para eu sair e eu sairia na hora.» RICARDO SALGADO

FALÊNCIA DO BES

CARLOS COSTA GOVERNADOR DO BANCO DE PORTUGAL

«Ouvi surpreendido as declarações do senhor governador do BdP [na comissão de inquérito] dizendo que tinha tido um braço de ferro comigo.» RICARDO SALGADO

JOSÉ MARIA RICCIARDI, PRESIDENTE DO BES INVESTIMENTO

O AFASTAMENTO DE SALGADO

«Os prejuízos semestrais [de 3,6 mil milhões de euros] apresentados pelo BES no dia 30 de junho conduziram a uma intervenção inevitável. Os factos que conduziram a esta situação tiveram por base práticas ilícitas graves.» CARLOS COSTA,

«Falar do GES é falar numa única pessoa: Ricardo Salgado. Nada se fazia sem ele. Por isso, acho impossível ele não saber de nada.»

«[Ricardo Salgado] mereceu sempre a confiança de todos porque era o membro sénior da família. Teve êxito no crescimento do BES e do GES e, por isso, toda a tesouraria estava unificada e confiada a Ricardo Salgado.»

PEDRO QUEIROZ PEREIRA, PRESIDENTE DA SEMAPA

MANUEL FERNANDO ESPÍRITO SANTO SILVA, PRESIDENTE DA RIOFORTE

«Se pudesse, tirava a idoneidade a Ricardo Salgado. Mas não tinha poderes […]. Todo o processo de investigação de indícios suscetíveis de ter impacto na idoneidade dos respetivos administradores, iniciado em setembro de 2013, foi rodeado da devida precaução e ponderação.»

«O BES não faliu, foi forçado a desaparecer [pelo Banco de Portugal, devido à imposição de provisões excessivas e ao pânico causado pela forma como o supervisor geriu a sucessão].»

CARLOS COSTA

RICARDO SALGADO

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ECONOMIA

O MISTÉRIO DA ESPÍRITO SANTO INTERNATIONAL (ESI)

RISCO SISTÉMICO

«Tinha uma vida 100% dedicada à área financeira. Não tinha responsabilidades diretas sobre a execução das contas da ESI.»

República e ao Governo, na pessoa do senhor primeiro ministro, que a devolveu, e à senhora ministra das Finanças. É igualmente comunicada ao senhor presidente da Comissão Europeia.» RICARDO SALGADO

«Não houve nunca nenhuma conversa com Ricardo Salgado sobre ameaça do banco. Essa conversa sobre a recapitalização nunca existiu.»

RICARDO SALGADO

RECAPITALIZAÇÃO COM DINHEIROS PÚBLICOS

MANUEL FERNANDO ESPÍRITO SANTO SILVA

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MINISTRA DAS FINANÇAS

«Em 31 de março, enderecei uma carta ao sr. governador do Banco de Portugal, apontando pela terceira vez o risco sistémico que derivaria de uma rutura desordenada na administração do banco. […] Tal carta é também revelada ao senhor da PM 21x12.8.pdf 1 Presidente 12/12/14 3:12

«[A 30 de Junho,] o Banco de Portugal garantiu que se o banco tivesse necessidades de capital, estaria disponível a linha de recapitalização da troika. Acreditei que a

AMBAR AMERICAN EXPRESS AVON BIMBY BPI BRANCA DE NEVE CGD CARTUXA CHICCO CLINIQUE

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disponibilidade de linha de capitalização pública estava devidamente articulada entre Governo e Banco de Portugal.» «O banco precisava de capital, questionei a ministra das Finanças quanto à possibilidade de uma solução semelhante à desenhada para o Banif [onde Estado injetou fundos públicos, através de ações e de um empréstimo].» VÍTOR BENTO, PRESIDENTE DO BES DE JULHO A SETEMBRO

MARIA LUÍS ALBUQUERQUE,

«A ESI [em cujas contas se terão ocultado 7 300 milhões de euros de dívida] era gerida pelo dr. Ricardo Salgado, pelo dr. José Castela, com a colaboração do dr. Machado da Cruz [o famoso contabilista].»

INQUÉRITO AO BES

CONTINENTE CTT EDP EXPRESSO LIDL MEO MERCEDES-BENZ MILLENNIUM BCP MONTEPIO MULTIBANCO ORIFLAME RE/MAX RFM RTP

« Nunca foi apresentada ao Governo qualquer pedido de recapitalização do banco […]. Não foi uma proposta, não foi um pedido, foi uma pergunta a que dei uma resposta [negativa]. (...) Vítor Bento não me veio pedir dinheiro.» MARIA LUÍS ALBUQUERQUE

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SOCIEDADE

Pedro Caixinha

Mariano Barreto

México

Etiópia

OS OUTROS ‘SPECIAL ONE’ O que faz com que tantos treinadores e técnicos de futebol portugueses tenham sucesso no estrangeiro? Histórias de quem fica escondido na sombra das figuras planetárias mas tem experiências inéditas e surpreendentes mundo fora

AMÉRICA 20

TREINADORES PORTUGUESES NO ESTRANGEIRO TOTAL 173*

POR MÁRIO DAVID CAMPOS

S

e há adereço que Carlos Carvalhal dispensa é a gravata, mas o convite da embaixada da Turquia em Portugal era claro e, nestas coisas de protocolo, o melhor é não facilitar. Corriam os primeiros dias de maio de 2014 e o presidente turco estava de visita oficial a Portugal. De início, Carvalhal estranhou o convite, apesar de ter terminado há pouco uma experiência de dois anos como treinador de futebol na Turquia, primeiro ao serviço do Besiktas, um dos mais populares clubes do país, e, depois, no Istambul BB. A receção rapidamente se encarregaria de esclarecer as dúvidas. «Engraçado, a esmagadora maioria das pessoas que me vieram cumprimentar eram turcas! Fiquei com a sensação de que muitos dos meus compatriotas nem me conheciam», recorda o técnico. Depois do recital de uma cantora lírica, seguiu-se um cocktail. Nesse momento mais distendido, um segurança reconheceu-o e perguntou-lhe se não ia cumprimentar o seu presidente. «Não tenho essa ‘lata’», respondeu Carvalhal. A insistência foi tal, porém, que se aproximou do assessor de Abdullah Gul e perguntou-lhe qual o clube do Chefe de Estado. «Besiktas, Carlos! Carlos hoca (treinador)!» respondeu o assessor sem esconder o entusiasmo. Poucos instantes depois, o Presidente fazia um sinal para Carlos se aproximar. «Cumprimentei-o com dois beijos, em sinal de amizade, e disse: Hosgeldiniz Buyuk Baskan! Çok memnum oldum (bem-vindo, grande presidente! Muito prazer).» Tudo isto se passava sob o olhar atónito de Cavaco Silva, que procurava um assessor que o pudesse ajudar. Ao vê-lo atrapalhado, Carvalhal apresentou-se ao presidente português mas logo o líder turco retomou a palavra: «Este é o tal treinador de que lhe falava ontem, aquele que esteve no meu clube.»

Diogo Nobre Finlândia

Vítor Salvado Benim

Guilherme Farinha Costa Rica

FONTE: ANTF (maio 2014) Os dados da ANTF são de maio de 2014 e já registaram diversas alterações. Ainda assim, permitem perceber a forma como estão os treinadores distribuídos pelo mundo.

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José Mourinho

Paulo Sousa Basileia

Chelsea

Carlos Queiroz

Leonardo Jardim André Villas-Boas

Mónaco

Irão

Rússia

EUROPA 64 ÁSIA 51 ÁFRICA 38

Manuel Gomes Maldivas

José Dominguez

Miguel Cardoso

Henrique Calisto

Colômbia

Vietname

Ucrânia

Jaime Pacheco Egito

Jorge Costa Gabão

Rui Águas Cabo Verde

Carlos Carvalhal Emiratos Árabes Unidos

Nelo Vingada

Manuel José

Irão

Egito INFOGRAFIA TS

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SOCIEDADE

DESPORTO

O episódio de Carlos Carvalhal ilustra o reconhecimento de uma atividade em que os portugueses dão cartas no estrangeiro. A VISÃO foi à procura de alguns desses treinadores, espalhados pelo mundo e encontrou histórias e episódios que revelam a competência e a enorme facilidade de integração e adaptação a novos hábitos, usos e costumes.

O mundo é uma bola Para lá das figuras mais mediáticas como Cristiano Ronaldo ou José Mourinho, há dezenas de treinadores portugueses a mostrar serviço, no estrangeiro. Na fase de grupos da Liga dos Campeões desta temporada,

Manuel Gomes 63 anos

Treinador

Maldivas

Manuel José ainda hoje é tratado como um faraó no Egito, enquanto Leonardo Jardim está com o Mónaco nos 1/8 de final da Liga dos Campeões

REUTERS/REUTERS

por exemplo, os portugueses lideravam, destacados, a lista dos treinadores. Além de Mourinho (Chelsea), lá estavam Leonardo Jardim (Mónaco), Paulo Sousa (Basileia) – todos qualificados para os oitavos de final da prova - André Villas-Boas (Zenit) e ainda Jorge Jesus (Benfica) e Marco Silva (Sporting), já para não referir os adjuntos.

E até entre os selecionadores a representação lusa é hoje considerável: Carlos Queiroz (Irão), Jorge Costa (Gabão), Mariano Barreto (Etiópia), Rui Águas (Cabo Verde) e Nelo Vingada (que, recentemente, deixou o comando dos sub-21 do Irão). Mas há também nomes como Manuel José, ainda hoje o treinador com mais títu-

Um verdadeiro desafio térmico Com uma carreira de mais de 20 anos como treinador, Manuel Gomes, conhecido no futebol como professor Neca, já viveu a experiência de orientar equipas em quatro continentes. «Só me falta a Oceânia», diz em jeito de «se me convidarem eu preparo já a mala». Entre os pontos altos da sua carreira, estão passagens pelo Benfica e pela seleção nacional, ambas enquanto adjunto, e, posteriormente, em 1996, pela seleção de Angola, naquela que foi a sua primeira experiência fora do País. Mas foi em 2003 que surgiu o desafio mais inesperado: treinar a equipa nacional das Maldivas, tornando-se, assim, «um dos poucos europeus a ter o enorme privilégio de viver naquele pedacinho de paraíso e conviver com um povo de uma afabilidade e simpatia imensas». Futebolisticamente, a tarefa era, também, interessante, uma vez que estava em causa o apuramento para

Professor Neca no Índico. «Espero voltar um dia»

A equipa das Maldivas em 2003, agasalhada para o frio da Mongólia

o Mundial de 2006. Impossível, claro, mas havia que fazer o melhor. Para o primeiro jogo, o contraste não podia ser maior: habituados a temperaturas médias anuais que oscilam entre os 26.º e 34.º, os jogadores teriam de jogar na Mongólia, em novembro, com o termómetro congelado nos 20.º negativos. «A equipa nem sequer dispunha de roupas adequadas e a federação maldiva teve de enviar colaboradores ao Sri Lanka para resolver o problema.» A experiência de Neca em climas frios – havia treinado já uma formação no Canadá – e a solidariedade dos dirigentes mongóis ajudaram a diminuir as diferenças térmicas e o regresso a Malé, a capital das Maldivas, fez-se

com uma vitória por 1-0. Na segunda partida, quatro dias depois, coube aos visitantes asfixiar com o calor e a humidade superior a 90 por cento. «O jogo foi muito difícil para eles e acabámos por ganhar por 12-0 . Custou-me ver as dificuldades de adaptação que sentiram, mas recordo com alegria o entusiasmo do primeiro contacto dos jovens mongóis com o mar.» Este acabou por ser um dos últimos jogos de Manuel Gomes ao serviço da equipa: a 26 de dezembro de 2004, um violento tsunami atingiu aquela parte do mundo e o técnico, que viera a Portugal para passar o Natal, não mais regressaria às Maldivas até hoje. «Mas hei de voltar», garante.

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SOCIEDADE

Carlos Queiroz levou o Irão ao Mundial do Brasil e Paulo Sousa, treinador do Basileia, vai regressar a Portugal para defrontar o FC Porto na Liga dos Campeões REUTERS/REUTERS

los conquistados fora do País, entre os quais quatro ligas dos campeões africanos e seis campeonatos do Egito. Um verdadeiro faraó para os adeptos egípcios, principalmente os do Al-Ahly, uma espécie de Real Madrid das Arábias. Ou Jaime Pacheco, que, após uma má e curta experiência em Málaga, foi recebido em clima de euforia no Zamalek,

Henrique Calisto 61 anos

Treinador

Vietname

também do Egito, já depois de ter andado também pela Arábia Saudita e pela China. Quanto aos técnicos, há Pedro Caixinha, vencedor da Taça do México, ao serviço do Santos Laguna, e Guilherme Farinha, um dos mais velhos globe trotters, com passagens pela Guiné-Bissau, Paraguai, Costa Rica, Irão e Guatemala. E, claro, Henrique

DESPORTO

Calisto, outro colecionador de milhas aéreas. O técnico que, no início do milénio, viajou para o Vietname onde permaneceu uma década ao serviço do Dong Tam e da seleção do país, recorda a avidez com que os vietnamitas «bebem» tudo o que diz respeito ao futebol português. «Sabem tudo, tudo. Conhecem as equipas, os jogadores, os dirigentes. Mas só sobre futebol. Quando lhes perguntei se conheciam Lisboa, perguntaram-me em que clube jogava (risos). Não sabem mais nada. E, então, primeirosministros, só se forem presos é que os conhecem.» Pelas contas de José Pereira, presidente

Coração, cabeça e… estômago Os dez anos que viveu no Sudeste asiático não lhe deram independência financeira, mas enriqueceram-no culturalmente, de tal forma que, ainda hoje, Henrique Calisto não esconde a sua gratidão. Foi ensinar a jogar futebol mas também ele aprendeu, e muito, sobre a vida. Comeu cobra, aliás, comeu-lhe o coração quente, ainda a bater, porque era ele o homenageado «e seria uma ofensa não o fazer». De seguida bebeu shots de sangue. Depois, foram larvas, escorpiões, tatus, o que puseram na mesa. Tal demonstra o espírito aberto com que se aventurou no Vietname e, por um período mais curto, na Malásia. «O importante é conhecer a história do país, os hábitos e, acima de tudo, não tentar transformar nada de imediato, mesmo que esteja errado.» Ou não fosse a paciência uma característica tão asiática. No Dong Tam, o clube-empresa onde passou mais tempo, no Sul do país, ou na seleção vietnamita, no Norte, em Hanói, procurou sempre entrar no espírito local. «Ao contrário de outros técnicos, nomeadamente do Norte e Centro da Europa, o treinador português não se limita a treinar e ir-se embora para o hotel. Vive o clube, integra-se, preocupa-se com os jogadores também enquanto homens.» E isso, assegura, faz toda a diferença: o jogador passa a ter um compromisso com a equipa técnica e o empenho torna-se muito maior. A melhor prova é que ainda hoje, mais de quatro anos após ter deixado o Vietname, mantém contacto

Com os jogadores do Dong Tam

No Vietname: «O importante é conhecer os hábitos do país»

com muitos atletas e dirigentes. Por ali, faltar a um treino para celebrar o aniversário da morte da mãe poderia ser visto como falta de profissiona-

lismo. Mas Calisto não só compreendia como até ia à cerimónia. «E isso merecia um respeito da parte deles, que não tem preço.» 18 DE DEZEMBRO DE 2014 v 65

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SOCIEDADE

DESPORTO

REUTERS/EPA

André Villas-Boas tenta agarrar o título russo depois de ver fugir a Liga dos Campeões. Catorze anos depois de ter sido campeão com o Boavista, Jaime Pacheco está agora a treinar os egípcios do Zamalek

cido no futebol por professor Neca, afirma à VISÃO, «sem receio de errar por muitos», que o número rondará hoje as duas centenas. Bem diferente do que sucedia em meados dos anos 90 do século passado, quando Manuel Gomes foi treinar a seleção das Maldivas e, mais tarde, a equipa do Churchill Brothers, na Índia. «Nessa altura, éramos uma dezena, não mais.»

Competência e adaptação da Associação Nacional de Treinadores de Futebol (ANTF), reveladas em maio deste ano num fórum que decorreu na Maia, eram, então, 173 os técnicos portugueses

Vítor Salvado 46 anos

Treinador

Benim

a trabalhar no estrangeiro. O número está sempre sujeito a variações no início e final das épocas, mas também a meio, claro, que a profissão é de risco. Manuel Gomes, conhe-

Mas, afinal, o que tem o treinador português de tão especial? «Competência e formação», resume Carlos Carvalhal, opinião subscrita pela dezena de técnicos ouvidos

Dormir num colchão, sem luxos A receção festiva, no aeroporto da capital do Benim, não foi suficiente para aliviar o choque que Vítor Salvado sentiu, na viagem até ao centro da cidade. «Tanta miséria nas ruas, pessoas a dormir no chão, poluição, barulho, uma coisa infernal, só me apetecia apanhar o avião de regresso a Portugal», recorda. Enquanto tomava banho no hotel, viu o preçário atrás da porta da casa de banho: «Cento e 80 euros por noite! Como era possível? Eu no meio daquele luxo, rodeado de miséria!» No dia seguinte, quando o foram buscar, disse a um dirigente da federação que não

queria ficar ali. «Porquê, coach? Está mal instalado?» «Não, estou bem demais, o problema é esse.» «Então, só se for para minha casa», respondeu-lhe ele. «Nem cama tinha, apenas um colchão mas, a partir daí, passei a ser adorado como um Deus», ri-se Vítor. Convidado para dar formação a treinadores e ajudar a organizar o futebol daquele país africano, Vítor Salvado repartia o tempo entre torneios de futebol, as aulas a miúdos e a futuros técnicos e as visitas a escolas e entidades oficiais. Um dia, foi convidado para apresentar o projeto que desenhara para o

Trabalhar com poucas condições: Vítor Salvado não se sentia bem ficar num hotel de luxo com tanta miséria à sua volta

futebol jovem. Enquanto Vítor falava, o presidente da federação andava de um lado para o outro, com três telemóveis na mão. «Coach, esses projetos não servem, o importante é o futebol de rua, o Drogba e o Eto’o [dois dos mais conhecidos jogadores africanos] começaram na rua.» Nada do que propôs foi aprovado e Salvado deu por terminada a sua primeira etapa africana. Mas, antes, ainda houve tempo para uma visita à casa do Chefe de Estado. No final do encontro, pediu a Yayi Boni para tirarem uma fotografia juntos. «Comigo ninguém tira fotos.» A alternativa era ser fotografado ao lado de um enorme retrato emoldurado do presidente. A segunda viagem ao Benim realizou-se poucos meses depois. Tratava-se de descobrir se havia algum jogador interessante para trazer para Portugal mas quase ninguém tinha passaporte e Salvado viu-se obrigado a explicar a situação numa conferência de imprensa. «No final. alguns treinadores vieram ter comigo, dizendo que, por 3 mil euros, conseguiam arranjar passaportes no mercado negro e que até podiam alterar a idade dos jogadores. «Coach, podemos pôr, nos documentos do Thibus e do Mário – dois jogadores que Vítor Salvado havia elogiado – que eles têm 15 anos’.» (Risos) Eles já tinham para aí uns 25.» Apesar das peripécias, a experiência marcou-o. «É um povo que quer fazer tanto com tão pouco! De um bocado de terreno um campo de futebol, e de uma casa velha uma academia.»

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DESPORTO

Pedro Caixinha conquistou a taça do México com o Santos Laguna e José Mourinho segue na frente da Liga inglesa

pela VISÃO. José Pereira refere o momento de viragem que pôs os treinadores a pensar: «Foi quando o professor Manuel Sérgio, referindo-se às violentas cargas de treino físico a que os treinadores submetiam os atletas, teve a feliz ideia de dizer que nunca tinha visto pianistas a treinar, correndo à volta do piano.» O catedrático da Faculdade de Motricidade Humana da Universidade Técnica de Lisboa ainda hoje é uma figura de referência para José Mourinho, que nunca

José Dominguez 40 anos

REUTERS/REUTERS

se esquece de o mencionar quando questionado sobre o seu próprio sucesso. Mas será a competência técnica suficiente? Em países onde a bola rola sem sobres-

saltos, talvez. Mais difícil, porventura, em paragens onde não há campos para treinar e onde os atletas acabam o apronto físico, ao final da manhã, sem uma única refeição no

Jogar sem ter tomado o pequeno-almoço

Treinador

Colômbia

Palestra aos jovens jogadores do Cartagena: «À boa maneira portuguesa, queríamos ser parte da solução e não do problema»

Quando José Dominguez chegou à Colômbia, em janeiro de 2014, para treinar o Real Cartagena, uma equipa da II Liga, à exceção dos jogadores e do nome do clube, quase tudo era virtual. O plantel que observara in loco em outubro do ano anterior, antes de assinar o contrato, era uma ilusão. Os três ou quatro bons jogadores tinham desaparecido. «Aliás, não restava um único dos marcadores dos 119 golos da época anterior.» A miragem incluía, também, os campos de treinos, o gabinete médico, os balneários. Nada disso existia. Dominguez não se arrepende da experiência mas não tem dúvidas: «Qualquer outro técnico se tinha vindo embora ao fim de duas semanas.» Perante as dificuldades, reuniu os três elementos portugueses do staff técnico

que levara consigo e deitou mãos à obra. «À boa maneira portuguesa, desenrascávamo-nos, porque queríamos ser parte da solução e não do problema. Essa é a nossa mais-valia», resume. E matéria-prima não faltava: Dominguez recorda, impressionado, «as centenas de miúdos que se juntavam, ao final da tarde, a jogar futebol nas praias». Os jogadores à sua disposição também tinham talento e vontade «de beber tudo» o que lhes era ensinado. «E adoravam visionar os vídeos dos jogos porque nunca se tinham visto na televisão.» As carências, nomeadamente alimentares, eram proporcionais. A maioria morava em favelas, onde um autocarro começava a recolhê-los a partir das 5 da manhã. Equipavam-se dentro do veículo, quase a desfazer-se,

treinavam e regressavam a casa por volta do meio-dia, sem terem tomado ainda qualquer refeição. «Um dia, convenci o presidente do clube a arranjar, pelo menos, umas peças de fruta para eles comerem antes ou durante o treino. A fruta desaparecia toda mas quase ninguém a comia. Era tudo para levar para a família.» O campeonato correu dentro das possibilidades. Depois de, no torneio Apertura, quase ter subido de divisão, a equipa seguia com duas vitórias no Clausura, quando «o clube começou a cancelar os treinos. Umas vezes era o autocarro que estava avariado, outras por isto ou por aquilo». Foi a gota de água na paciência da comitiva lusa que regressou oito meses depois – com pena, mas «com a sensação do dever cumprido».

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Futebol em tempos de guerra

Miguel Cardoso

«Incrivelmente acolhedora, simples, despretensiosa e cheia de vida.» É assim que Miguel Cardoso descreve a cidade de Donetsk que o recebeu em meados de 2013 quando, pela primeira vez, aceitou o desafio de deixar de ser treinador adjunto. O convite para coordenador técnico da academia profissional do Shakhtar e líder da equipa de sub-21 era irrecusável. Miguel está orgulhoso do passo que deu rumo ao maior clube ucraniano da última década e um dos que mais cresceram na Europa nos anos mais recentes. Mas a capital da região de Donbass não é hoje a mesma que o recebeu. Espectador privilegiado da instabilidade social, política e militar que tomou conta da cidade , a partir de maio de 2014, o técnico assistiu, de perto, ao crescendo de tensões na região. «Passei a lidar, diariamente, com check-points, com revistas e paragens obrigatórias até ao centro de estágio.» Em julho, depois de ter estado em Portugal, já não conseguiu voo de regresso a Donetsk porque o aeroporto fora tomado. Sem possibilidade de trabalhar na cidade, o clube muda-se

42 anos

Treinador sub-21

Ucrânia

Carlos Carvalhal 49 anos

Coordenador-técnico

Emirados Árabes Unidos

Com alguns jogadores brasileiros do Shakhtar «Em Donetsk tínhamos de parar nos check points diariamente»

para a tranquila Poltava, a 400 km de Kiev. «A mudança alterou muito a minha rotina habitual de trabalho. Passei a ter que dividir a minha semana entre as cidades de Poltava e Kiev, onde se instalaram os escalões mais jovens da academia, viajando sistematicamente para coordenar a ação dos treinadores na capital e ao mesmo tempo assegurar o plano de treinos da minha equipa.» A experiência, garante, tem sido inesquecível. «Não é possível descrever o que é lidar com um jogador que nos in-

forma que o pai foi para a guerra e ele precisa de ir ter com a mãe que está no hospital. Ou com o vídeo analista que me liga a dizer que, felizmente, apenas a casa dos pais foi destruída e que eles estão bem.» Miguel não sabe se é esta facilidade de adaptação que faz dos portugueses melhores lá fora, «mas, pelo menos, mostramos uma grande capacidade de produzir trabalho em quantidade e qualidade, em contextos onde a inteligência emocional é posta à prova a todo o momento».

Sob o signo do Corão Inshallah. Esta foi das primeiras palavras que Carlos Carvalhal ouviu quando chegou ao Dubai, em julho de 2013, e que rapidamente aprendeu a utilizar em todo o seu significado. E não vale a pena tentar mudar, porque ali é mesmo tudo «Se Alá quiser.» O diretor técnico da academia do Al Ahli, dos Emirados Árabes Unidos, explica melhor, recorrendo a um exemplo. «Tenho aqui à minha frente os horários dos jogos das nossas equipas para janeiro. Os sub-14 jogam às 15 e 35, os sub-12 às 15 e 55, os sub-19 às 17 horas, os sub-15 às 15 e 40. Pode parecer estranho, e alguns até pensarão que estes horários estão relacionados com transmissões televisivas. Nada disso, os jogos são assim distribuídos em função das horas das rezas.» E se, porventura, as orações têm de ser feitas no intervalo dos jogos, a segunda parte pode ter de esperar. Nada é feito à pressa nem sob pressão. «A vida desenvolve-se a um ritmo que lhes agrada e não gostam de o quebrar. Para nós, ocidentais, no

REUTERS

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No Dubai: «Aqui os jogos são marcados em função das horas das rezas»

início é estranho, porque vivemos numa sociedade em que tudo tem de ser feito para ontem», diz Carvalhal. «Aqui, o primeiro conselho é ter muita paciência.»

O futebol ressente-se mas adapta--se. «Nos períodos de exames, por exemplo, não há jogos nem treinos, porque os miúdos têm de estudar e os clubes, receando eventuais responsabilidades pelo insucesso, optam por fechar as academias. É um aspeto negativo para a evolução atlética dos jovens, mas temos de entender e respeitar.» Também com implicações diretas na vida desportiva, o Ramadão – período de cerca de um mês, definido pelo calendário islâmico, em que não se pode comer entre o nascer o pôr do Sol – tem de ser gerido da melhor forma. Este ano, coincidiu com o início da época e Carvalhal ficou surpreendido «com a assiduidade, aplicação e atitude de todos». Depois do pôr do Sol, e do Iftar, a refeição que celebra a fé e a alegria, os técnicos esperavam que os jovens jogadores fizessem a digestão. E, «já noite, e sob temperaturas na ordem dos 35 graus, começavam os treinos, demonstrando os jogadores grande empenhamento e entusiasmo». Depois, a bola rola… Inshallah.

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estômago, como testemunhou José Dominguez na Colômbia. Ou no Benim onde, como verificou Vítor Salvado, as únicas coisas que sobram são a vontade e a desorganização. Ou, ainda, na Europa, em países em conflito como a Ucrânia, em que Miguel Cardoso foi coordenador de uma academia (ver caixas). E, depois, claro, há a carteira. A exemplo do que sucede com tantos outros portugue-

Diogo Nobre

28 anos

Treinador

Finlândia

GLOBAL IMAGENS/LUSA/GETTY

Sortes diferentes para os três treinadores. Rui Águas vai participar na CAN, com Cabo Verde, objetivo falhado pela Etiópia de Mariano Barreto. Nelo Vingada (ao centro) deixou a equipa olímpica do Irão em novembro

ses, muitos técnicos vão à procura da oportunidade que lhes falta cá mas também de ganhar melhor. Henrique Calisto não tem dúvidas de que uma boa parte dos treinadores ganha, no estrangeiro, muito mais do que em Portugal. No Vietname, por exemplo, o clube que orientou tinha um orçamento que cá «só ficaria abaixo dos três grandes». Mas isso são contas de outro rosário. O que

a VISÃO lhe desvenda hoje são histórias das experiências, passadas e presentes, de vários treinadores, em quatro continentes – na Oceânia não há nenhum –, que ilustram a adaptação a realidades que em comum só têm a bola e pouco mais. Em matéria de futebol, os portugueses continuam a provar que podem dar novos mundos ao mundo. E tratam a redondinha por tu.

Quando os jogadores faltam aos treinos porque vão caçar alces Apesar de ter chegado à Finlândia a 1 de abril, dia das mentiras, Diogo Freio não foi ao engano. O projeto para os convidados nesse ano de 2012 era, no mínimo, curioso: criar um clube que unisse a rivalidade entre «os campónios de Sauvo» e «os meninos da cidade de Paimio», duas pequenas localidades perto de Turku, cidade no Sudoeste do país. Não foi fácil o parto do Peimari United nem o trabalho de Diogo, um jovem que até então só tinha passagens pela formação das camadas jovens em clubes da zona de Lisboa e que foi parar ao frio, quando soube que procuravam «um técnico ambicioso e que falasse bem inglês». Não demorou a perceber que o futebol, confuso e desorganizado, era a última das preocupações, num país de hóquei no gelo. Não confundir preocupação com balbúrdia, até porque «os clubes pagam a tempo e horas, e não há um único na Finlândia que deva um tostão.» Mas foi complicado para um estran-

A equipa: hoje o Peimari United é conhecido como «o clube do Diego»

geiro, «moreno e baixinho», tornar-se cidadão ativo de uma comunidade fechada. E o compromisso dos jovens com a modalidade também não era o melhor. De início, apresentavam as mais inesperadas desculpas para faltarem aos treinos e jogos. «Um disse-me que tinha ido caçar alces com a família, outro que tinha aulas de piano. Mas a melhor desculpa foi a de um dos iniciados que chegou só no intervalo de um jogo porque tinha ido cortar o cabelo – é que é preciso marcar hora no cabeleireiro local com uma semana de antecedência.» Com persistência e determinação, Diogo foi mudando as mentalidades. Inscreveu-se num curso para aprender finlandês. «E faço visitas regulares aos pequenos comerciantes

de Sauvio e Paimio para manter uma boa relação com a comunidade», conta. Hoje, o Peimari é conhecido como «o clube do Diego» – «não sei porquê mas têm dificuldade em dizer o meu nome corretamente» – e em apenas dois anos a equipa voltou a subir de divisão, com 18 vitórias em 18 jogos. O sucesso fez, entretanto, com que o clube rival da região, o Haka, tentasse não perder terreno. Este verão contratou um treinador espanhol para coordenar a formação, mas a adaptação revelou-se bem diferente. «Ele não foi viver para Paimio, não conhece ninguém, não fala a língua local e os jogadores mais jovens já se começaram a transferir para o Peimari», conta Diogo, com um sorriso malicioso.

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EDUCAÇÃO

Descubra as diferenças Tirar «selfies» era a grande diversão dos dias sem aulas (em cima), na escola da D'Orey da Cunha, na Damaia. Agora, para colmatar o atraso nas matérias, muitas turmas têm dois professores ao mesmo tempo dentro da sala (ao lado)

Escolas a correr contra o tempo

Após «o pior início de ano letivo de sempre», vale (quase) tudo para compensar os alunos com matérias em atraso POR TERESA CAMPOS

‘L

ição número 58, entrega e correção dos testes.» São 11 da manhã e Luísa Diogo, a professora de matemática daquela turma de 9.º ano, está a escrever o sumário no quadro. «Fazem todos a correção, sim?» Os alunos levantam--se das cadeiras à vez, quando ouvem o seu nome. Segue-se o ralhete: «Há quem tenha vindo do Bom para a negativa…» Os miúdos mal respondem, enfiam a cara no colo, sabem que há exame no final do ano. Mas não estão sozinhos: eis que se ouve a voz de outro adulto na sala. Salete Martins é professora de apoio e está ali desde a última leva de colocações, no final de outubro, mais de um mês e meio depois do início do ano letivo. Circula entre as carteiras, devagarinho, vai espreitando as folhas de teste que os alunos exibem na secretária, oferecendo ajuda a quem teve má nota – a ver se assim a recuperação da matéria em atraso é mais fácil. «Foi uma surpresa: já nem estava à espera de ser colocada», conta Salete, que, no último ano, nem chegou a ficar em nenhuma escola. Começou com um

Mil aulas de recuperação Contas feitas, das 300 escolas afetadas pela falta de professores, 198 socorreram-se dos créditos que tinham para pagar aulas de compensação. Quanto às outras, foram aprovadas mil horas de compensação em 89 estabelecimentos de ensino, mas faltam respostas para treze. Um deles é o Agrupamento de Escolas de Benfica. «Aguardo autorização para horas extraordinárias em disciplinas de anos sujeitos a avaliação externa», diz Manuel Esperança, o diretor. Muito críticos da situação no início do ano, os alunos mostram-se agora bem mais otimistas: «Está a fazer-se o possível para resolver tudo, não esperamos que afete os resultados», confiam Francisco Alves e João Tiago, da associação de estudantes.

horário de cinco horas, depois aceitou dar mais dez, na modalidade de compensação escolhida pela escola. Estamos na Básica Pedro D’Orey da Cunha, na Damaia, um Território Educativo de Intervenção Prioritária (TEIP), cujo agrupamento começou o ano letivo com menos 37 professores, um dos casos mais problemáticos, na Amadora, concelho cuja contabilidade somava mais de 200 docentes por colocar. «A partir do momento em que pudemos selecionar os professores que faltavam, resolvemos tudo em três dias», conta o diretor, António Gamboa. «E o que pedimos como compensação também nos foi concedido», acrescenta, salientando que optaram por generalizar a prática já adotada nas turmas com mais dificuldades: «Ter dois professores em sala é o que melhor resulta para ajudar os nossos alunos a recuperar o tempo perdido e o estudo da matéria em atraso», prossegue o diretor, a revelar, orgulhoso, que aquela é um TEIP que reduziu o insucesso.

Da Damaia para o País Durante o processo de colocação de professores, um primeiro erro na fórmula de ordenação (que misturava percentagem com anos de serviço…) e um segundo, logo a seguir, que atribuiu dezenas de horários aos mesmos professores, atrasou mais de um mês o início de aulas em mais de 300 agrupamentos TEIP e escolas com autonomia do País, que se socorrem da Bolsa de Contratação de Escola, exclusiva para professores

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FOTOS: MARCOS BORGA

sem vínculo à função pública. «Só ficou tudo apaziguado mesmo, no início de novembro», confirma Filinto Lima, da associação de diretores de agrupamentos e escolas públicas, avançando que, numa política de contenção de danos, o Ministério da Educação atendeu à maioria dos pedidos que lhe chegaram (ver caixa) para ajudar os mais de 400 mil alunos com professores em falta. Mas nem todos estão contentes com a solução encontrada. Este é o caso dos pais. «Está tudo mais ou menos resolvido, dentro do que é possível…» começa por afirmar Jorge Ascensão, da Confap (Confederação das Associações de Pais), «e digo-o, porque não há uma solução ideal.» Sabe bem que, no fundo, os alunos vão ter menos tempo para consolidar aprendizagens. «O pior é que só foi considerado o apoio para as disciplinas em anos de exame. Tudo o resto fica perdido.» assinala o representante das associações de pais, lamentando que as escolas estejam apenas preocupadas com «os rankings e compassar uma boa imagem». A Confap ainda pediu o adiamento dos exames, pelo menos para o 4.º e o 6.º anos – mas o Ministério disse que não. «E pedimos também que a matéria fosse posta em dia nos períodos de férias», acrescenta Jorge Ascensão – mas as escolas não quiseram. Agora, insiste o porta-voz da Confap, o desejável é que, para o ano, não se tenha de passar por isto outra vez. Essa é também a proposta dos diretores: «Não há nenhuma razão para as escolas não terem os professores todos colocados até julho.»

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MARCOS BORGA

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O regresso do lince No último mês, a VISÃO acompanhou os trabalhos de introdução do primeiro casal de linces ibéricos nas matas portuguesas. Jacarandá e Katmandú representam a esperança de salvação do felino mais ameaçado do mundo

Momento histórico Começou esta semana o processo de reintrodução do lince-ibérico em Portugal. Para já, os animais ficam num cercado com 2 hectares e uma rede com 4 metros de altura (em cima)

POR LUÍS RIBEIRO

P

ara uma tratadora de linces, acicatar os instintos do animal para que ele sobreviva na Natureza é lutar contra os próprios instintos. «Sou uma privilegiada. Os que foram criados à mão com biberão até ronronam. Fora esses, não podemos tocar em nenhum bicho. Dá vontade de lhes fazer festas, mas não me posso deixar vencer pelo afeto.» Entre as tarefas de Vanessa Requeijão, 31 anos, do Centro Nacional de Reprodução do Lince-ibérico (CNRLI), perto de Silves, estão sustos semanais aos linces, feitos metodicamente, para que ganhem medo aos humanos. Para lá disso, o contacto é o mínimo possível. A antropóloga, com um mestrado em Conservação da Natureza, sabe que a sua paixão por aqueles majestosos gatos não pode ser correspondida. Pelo contrário: têm de a temer. Odiar. Como uma mãe que sabe o que é melhor para

os filhos, Vanessa educa os animais como devem ser educados, por mais que lhe doa. Se o trabalho tiver sido bem feito, está meio caminho percorrido para que Jacarandá, nascida em 2012 no CNRLI, sobreviva no seu habitat. O lince fêmea é o primeiro felino a ser libertado em Portugal, juntamente com o seu parceiro imposto, Katmandú, um ano mais novo e vindo de um dos centros de reprodução espanhóis, em

O lince, predador de topo, vai ajudar a restabelecer o equilíbrio da cadeia natural

Granadilla. É ainda uma libertação relativa, chamada «solta branda»: o novo lar do casal é um cercado com dois hectares, dentro de uma herdade de caça nos arredores de Mértola. Ao início da tarde de terça-feira, 16, os animais ficaram a conhecer a sua nova casa, numa cerimónia em que a necessidade de mediatismo do momento histórico ignorou o longo trabalho de anos a evitar o contacto entre os linces e humanos: mais de uma dúzia de convidados e fotógrafos acabou por entrar no cercado no instante em que os bichos abandonavam as jaulas. Seja como for, durante algumas semanas (pelo menos um mês), Jacarandá e Katmandú ficarão por ali, a caçar os 25 coelhos-bravos que os técnicos do Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF) lhes oferecem de 15 em 15 dias. Correndo tudo mesmo bem, os bichos enamoram-se

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O caminho da extinção Apesar da relativa extensão das áreas que o lince ocupava, nos anos 80 já não haveria mais que umas dezenas em Portugal. No final da década seguinte, o animal desapareceria do território nacional

Porto Coimbra

Lisboa

Évora Beja

Distribuição geográfica do lince-ibérico no final dos anos 80 INFOGRAFIA VISÃO

Mértola Faro

B.I. » O lince-ibérico (lynx pardinus) é conside rado, pela União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN, na sigla original) o felino mais ameaçado do mundo. » Um macho médio mede pouco menos de um metro de comprimento e pesa cerca de 17 quilos, enquanto a fêmea raramente chega aos 10 quilos. » A sua dieta baseia-se quase totalmente no coelho-bravo.

e a fêmea sairá do cercado já prenha. A abundância da sua presa predileta na herdade de 4 mil hectares deverá mantê-los nas redondezas nos primeiros tempos, mas a partir daí o seu destino é incerto – basta olhar para Hongo, um lince reintroduzido em Doñana, no Sul de Espanha, que entrou em Portugal e se fixou na costa alentejana, na zona de Milfontes. Neste caso, a imprevisibilidade do lince joga contra ele: ainda que nada lhe aconteça (e aparentemente Hongo tem a aprovação, se não o amparo na forma de um ou outro coelho, dos caçadores locais), o animal está condenado a morrer sozinho e sem deixar uma prole ao mundo, que bem dela precisa. Afinal, estamos a falar do felídeo mais ameaçado de extinção no planeta. O nosso pequeno tigre, mas ainda mais raro. Jacarandá e Katmandú são o pináculo da reintrodução do lince em Portugal e o pri-

LUÍS QUINTA

LUÍS QUINTA

» Se se extinguir, será o primeiro felino a desaparecer da Terra desde o tigre-dentes-de-sabre, há mais de dez mil anos.

meiro de cinco casais a libertar nos próximos meses no Alentejo. A espécie, endémica da Península Ibérica, esteve virtualmente extinta no princípio da década de 2000, com menos de cem indivíduos distribuídos por dois núcleos, ambos na Andaluzia. No nosso país, o rasto do animal sumira-se ainda nos anos 90, falhada uma derradeira campanha nacional para salvar o «lince da Malcata», da Liga para a Proteção da Natureza. O reduzido número de espécimes dava por certa a sua extinção, acelerada pela fraca diversidade genética, o que faz aumentar a mortalidade. Sem um programa de reprodução em cativeiro, o lince-ibérico estava, nessa altura, a menos de dez anos de desaparecer para sempre. Nasceu assim o Projeto LIFE-Iberlince, Recuperação da distribuição histórica do lince-ibérico em Espanha e Portugal, um programa de 34 milhões de euros, com apoio financeiro 18 DE DEZEMBRO DE 2014 v 77

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MARCOS BORGA

NUNO BOTELHO

Maternidade Do Centro Nacional de Reprodução do Lince Ibérico, no concelho de Silves, já saíram 38 para os matos espanhóis

À vista de todos Azahar e Gamma. Assim se chamam os linces que, a partir de hoje, quinta-feira, 18, podem ser visitados no Jardim Zoológico de Lisboa, após serem considerados inaptos para a reprodução e libertação (Azahar, capturada em Espanha em 2005, tem uma lesão numa vértebra; Gamma é epilético). Ainda que todos os animais sejam especiais para quem os trate, estes são mais especiais do que os outros, admite Rui Bernardino, veterinário do Zoo. «É simbólico. Normalmente dedicamo-nos a espécies do outro lado do mundo e não temos consciência que uma das mais ameaçadas, que mais corre risco de extinção, vive aqui.» O espaço, preparado com flora autóctone, como oliveiras, e esconderijos de cortiça, será alvo de alterações periódicas, para dar a ilusão de mudança de local. O veterinário tem particular carinho por Azahar (nome com o significado de Flor de Laranjeira), que operou três vezes, em outras tantas gravidezes falhadas. O seu contributo para a continuidade da espécie, no entanto, não se esgotou: os seus embriões foram congelados para virem a ser implantados noutra fêmea.

Nova casa Desde hoje, quinta-feira, é possível visitar um casal de linces – Azahar e Gamma – no Jardim Zoológico de Lisboa. Um momento «simbólico», diz Rui Bernardino, veterinário do Zoo (ao lado)

da União Europeia, assente na construção de cinco centros de reprodução – quatro em Espanha e um em Portugal. O português foi inaugurado em outubro de 2009, com a chegada de Azahar, uma fêmea capturada na Sierra Morena e com um problema numa vértebra que lhe dificultava a caça e a sobrevivência em modo selvagem. Entretanto, outros chegaram e reproduzi-

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Vanessa Requeijão A tratadora tem de batalhar consigo mesma para não se deixar afeiçoar aos linces, para que eles não ganhem confiança com humanos. «Dá vontade de lhes fazer festas, mas não me posso deixar vencer pelo afeto»

NATUREZA

o ministro do Ambiente, Ordenamento do Território e Energia. «Conseguimos que o pacto envolvesse vários setores, incluindo associações de caçadores, organizações nãogovernamentais, gestores agrícolas e cidadãos. Demorámos, aliás, mais tempo do que Espanha a avançar com a reintrodução, porque queríamos acautelar a sustentabilidade da presa do lince. A caça e a conservação do lince não são exclusivas: são complementares», assegura Jorge Moreira da Silva.

‘Uma obrigação moral’

NUNO BOTELHO

ram-se. Até hoje, já nasceram (e chegaram à idade adulta) 58 animais no centro de Silves; desses, 38 «emigraram» para as matas e florestas espanholas. Nem todos sobreviveram – e nem todos os linces soltos em Portugal vão sobreviver. «Estou otimista, mas sabemos que há sempre baixas», confessa Rodrigo Serra, diretor do CNRLI. «Não esperamos 100% de sucesso. Reintroduzimos oito na Extremadura e perdemos dois.» No entanto, os êxitos suplantam os fracassos. «Em 2003, havia 90 linces. Em 2013, já eram 332.»

efígie do lince. Mas é quase certo que alguns bichos vão morrer na estrada. Não seria mau se essa fosse a única preocupação. A posição da Federação Portuguesa de Caça (que se opõe publicamente à libertação do animal por temer concorrência na caça do coelho-bravo e se recusa a assinar o Pacto Nacional para a Conservação do Lince-ibérico) deixa antever uma animosidade de alguns caçadores para com o novo/velho predador. Uma postura que não preocupa AFz_BrisaNatal_Visao_127x128.pdf

Apesar da apreensão de alguns caçadores, não é líquido que a libertação afete a população de coelhos-bravos – menos um bicho por dia, por lince, é irrelevante para uma espécie que rapidamente se reproduz até se tornar uma praga, em circunstâncias normais. «O lince não causa estragos», garante Luís Fiúza, gestor cinegético, responsável por uma área de 4 mil hectares próxima do local onde foram largados os linces. «Espero que as medidas sejam equilibradas, que protejam também os direitos dos caçadores, permitindo, por exemplo, rever a lei do controlo de predadores [outros pequenos carnívoros que14/12/15 também apanham coelhos e não estão 1 16:58

O perigo da estrada O trabalho no CNRLI é todo pensado para tornar os animais absolutamente selvagens. Dentro dos cercados onde vivem, abundam as câmaras de vigilância, para minimizar os contactos visuais (e olfatais) com funcionários e voluntários do Centro. Apenas os tratadores se aproximam, para limpar os recintos e levar coelhos (que representam mais de 90% da dieta do lince), e os veterinários, em caso de doença dos bichos. E, quando entram nos ninhos com crias, pulverizam as botas com urina da mãe lince, para disfarçar a invasão. Na maior parte do tempo, os tratadores, os veterinários e os videovigilantes (há sempre um de cada de serviço 24 horas por dia) mantêm-se longe das redes verdes. As únicas vezes que as aproximações de humanos não são neutras servem para lhes criar aversão ao Homem. Sobretudo aos carros, de longe o maior perigo que vão encontrar quando estiverem em liberdade – quase todas as mortes de animais reintroduzidos em Espanha foram por atropelamento. Um dos treinos fundamentais passa por dissociar o barulho de automóveis da alimentação. O projeto de libertação inclui, ainda, a instalação na região de sinais de trânsito com a

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SOCIEDADE

NATUREZA

Sucesso Em Silves, nasceram – e chegaram à idade adulta, o que não é fácil – 58 linces

LUÍS BARRA

No limite O projeto de recuperação do lince chegou mesmo a tempo: mais uma década e desapareceria para sempre. As estradas são agora a maior preocupação, pelo que se vão distribuir sinais de trânsito com a imagem do animal

Há coelho suficiente? João Madeira, gestor de uma exploração agrícola no concelho com 860 hectares, diz também ter sido o dever que o levou a assinar um protocolo de colaboração com o Estado para tornar a sua propriedade mais amigável para o lince. Na prática, significa melhorar as condições para a disseminação do coelho -bravo, acima de tudo através da instalação de pastagens e da construção de pontos de água. «Além do simbolismo do lince, e da maisvalia turística para a região, tenho todo o interesse em colaborar na reintrodução», explica. «A cadeia natural está desequilibrada e precisa de predadores de topo. Por exemplo, tenho imensos prejuízos por causa de ataques de raposas e saca-rabos a borregos. O lince vai manter esses animais controlados, não só porque não permite outros predadores no seu território, mas também porque os ataca diretamente.»

O lince-ibérico é um animal de poucas exigências. Desde que tenha coelho em quantidade suficiente, e não acabe debaixo de uns pneus ou chumbado por uma bala extraviada, prospera. Mas é precisamente a quantidade das suas presas que tem estado na base das reticências de caçadores e alguns ambientalistas à libertação do animal neste momento – há dois anos, um surto de uma doença hemorrágica viral praticamente dizimou a

MARCOS BORGA

em perigo, como a raposa]. Mas esse bom senso não apaga a nossa obrigação moral de salvar uma espécie que fizemos desaparecer por completo com as campanhas do trigo dos anos 40, que arrasaram o habitat do animal», diz o caçador. «É um privilégio para Mértola estar associada ao projeto.»

A GNR tem apostado em ações de sensibilização nas escolas de Mértola

população de coelho-bravo. Aparentemente, porém, há no Vale do Guadiana uma média de três coelhos por hectare, o que será mais do que suficiente para a subsistência dos linces. O vírus que atacou os roedores mantém-se fora de controlo, mas a região de Mértola é, em todo o País, a que melhor tem recuperado, confirma Pedro Monterroso, investigador do CIBIO (Centro de Investigação em Biodiversidade e Recursos Genéticos, da Universidade do Porto) e um dos coordenadores de um estudo sobre o chamado «ébola dos coelhos». «O cenário já não está tão negro. Apesar de o surto ainda ser muito imprevisível, esta é uma das zonas com maior densidade de coelho.» De resto, adianta, o lince faz parte da solução, por preferir capturar bichos doentes, e contribui para o saldo positivo na população destes animais ao expulsar outros predadores. Na verdade, o lince-ibérico pode vir a ser um dos melhores amigos do caçador. Tem sido essa uma das mensagens que os agentes do SEPNA (Serviço de Proteção da Natureza e do Ambiente, da GNR, que tem no lince o seu símbolo) transmitem à população local, através de ações de sensibilização pelas localidades e escolas da região. «Tentamos explicar que, em Espanha, não reduziu a população de coelhos, e que é crime matar um lince, condenado com pena de prisão até dois anos», diz o capitão Ricardo Vaz Alves, chefe da repartição da Natureza e Ambiente. A tarefa de fiscalização não será fácil: há apenas 11 elementos do SEPNA para cobrir os concelhos de Mértola, Castro Verde e Almodôvar. Uma coisa é certa: se alguma coisa acontecer a Jacarandá ou Katmandú, saberemos imediatamente – os linces libertados usam uma coleira com GPS. Se tudo correr bem, só voltarão a ter contacto com humanos quando forem recapturados para mudar a bateria da coleira, com autonomia para dois anos. Quaisquer notícias antes disso serão más notícias.

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SOCIEDADE

SAÚDE

DREAMSTIME

A CHEGADA DO H3N2 Nos EUA, há alertas para elevadas taxas de internamento e até de mortalidade do vírus que «substitui» o H1N1

Forte e feia, a gripe deste ano Chegará na época das festas e vai ser dura. Um vírus Influenza particularmente agressivo e diferente do que está na vacina poderá vir a fazer estragos POR SARA SÁ

A

contece duas vezes a cada década - e esta é uma delas. O vírus da gripe que parece ser o dominante nesta estação não é exatamente aquele que está contemplado na vacina. Todos os anos, os centros de vigilância gripal, espalhados pelo mundo, estimam quais serão as três estirpes de vírus da gripe que irão afetar mais as pessoas, para que sejam incluídas na vacina sazonal. Normalmente são contempladas três estirpes diferentes – duas A, este ano o H1N1 e o H3N2, e uma B. Mas entre fevereiro, altura em que se fazem as previsões, e agora, o início da época gripal, percebe-se que o vírus trocou as voltas aos cientistas. As primeiras pistas neste sentido chegam dos EUA, onde o Influeza já está ativo em quase todo o território. Domina o H3N2, sim senhor, mas numa estirpe ligeiramente diferente da que está presente na vacina. O suficiente para que, na semana passada, o CDC (Centro de Controlo de Doenças) tenha emitido um comunicado avisando que a estação da gripe vai ser dura, com previsão de elevada taxa de internamentos e até de mortalida-

de. De uma eficácia de 60%, poderá passar-se para uma proteção de 40 por cento.

O dobro das mortes «Nos EUA verificou-se que não há uma concordância total entre a vacina e a estirpe dominante. O que significa menor eficácia», conclui o consultor da Direção-Geral da Saúde Filipe Froes. Uma boa concordância ocorre quando os vírus na vacina e os vírus circulantes entre a população, durante uma época gripal, estão muito próximos e os anticorpos produzidos pela vacina são capazes de proteger contra a infeção.

60% Objetivo traçado, e atingido, pela Direção-Geral da Saúde para a cobertura vacinal da população idosa portuguesa. Em 2013, a cobertura dos maiores de 65 – que recebem a vacina gratuitamente – foi de 57 por cento

É inevitável que, de vez em quando, aconteça um desfasamento, já que nos quatro a seis meses que separam a decisão sobre o conteúdo da vacina e o início da época gripal, o vírus está sempre em mutação. Mesmo assim, os especialistas do CDC e da Organização Mundial de Saúde, responsáveis pela previsão, acertam em 80 a 85% das vezes. E esta não é sequer uma razão para se ignorar a vacina, alerta o pneumologista: «Há sempre algum nível de proteção e é muito importante que não haja desperdício de vacinas, para que o País consiga assegurar as encomendas do ano que vem.» Além da fraca concordância, os especialistas do Centro americano temem uma época gripal especialmente grave, uma vez que o H3N2, que tudo indica vir a ser o mais comum este ano, é conhecido por ser muito agressivo. Sobretudo entre os mais idosos, as crianças muito pequenas e os doentes crónicos, duplicando as taxas de hospitalização e a mortalidade, nesta população. Este ano, por exemplo, já morreram cinco crianças americanas. «Isto quer dizer que o ciclo do H1N1, o da pandemia de 2009, está a chegar ao fim. O que é normal, já que a população foi ganhando imunidade. Agora, durante alguns anos, teremos o H3N2», nota Filipe Froes. De acordo com o site Gripenet, que há dez anos faz uma monitorização da atividade gripal no nosso país, com base nos relatos de voluntários, os casos ainda são residuais. «Para já, só temos casos esporádicos e não podemos prever o que se passará em Portugal», corrobora Graça Freitas, subdiretora-geral da Saúde. «Estamos a acompanhar a situação nos EUA, com muita atenção, mas ainda não sabemos como será a época da gripe por cá. Não há um padrão pelo qual nos possamos guiar.» De qualquer modo, olhar para a situação na América do Norte ajuda a prever o que acontecerá entre nós. De acordo com Filipe Froes «podemos apontar para um intervalo de duas a três semanas entre o início da gripe nos EUA e a chegada a Portugal». O pneumologista salvaguarda, no entanto, o «caráter previsivelmente imprevisível da gripe». Mas o melhor é ir contando com um belo presente de Natal. Já o pico, e mantendo-se a regra da incerteza associada ao Influenza, deverá chegar quatro a cinco semanas depois, lá para o final de janeiro.

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SOCIEDADE

ENTREVISTA

Experiência Professor de Psiquiatria na Universidade da Califórnia, trabalhou no FBI durante 13 anos

des progressos científicos na análise de provas físicas, tais como o ADN. > A mediatização ajuda a obter apoios para a investigação?

Duvido que tenha afetado os fundos de investigação, mas mudou a perceção dos jurados. Esperam alta tecnologia na sala de tribunal e não é isso que encontram. As coisas não são resolvidas na hora como acontece na televisão. Chamamos a isto o «CSI Effect», que é um fenómeno. > Os crimes sempre resolvidos na ficção criam expectativas irrealistas?

A investigação criminal já é sofisticada, mas muita da tecnologia que aparece na televisão é ficcional. Isso torna a vida mais difícil para os profissionais. Sobretudo em relação ao tempo que se leva a resolver um crime. Exemplo disso foi o desaparecimento do avião da Malaysia Airlines. Toda a gente exigia que se encontrasse, sem terem noção de quão grande é um oceano.

J. Reid Meloy Especialista em Psicologia forense

‘Nos media, tornamos a violência inofensiva’

> Esperam-se investigações sofisticadas?

Hoje há métodos de análise de ADN sofisticados e padrões de reconhecimento aplicados a imagens retiradas de circuitos fechados de televisão. Cria expectativas sobre a tecnologia. E depois fica-se frustrado. > Estuda mentes criminosas há mais de 30

Entre a ficção e a vida real, existem grandes diferenças, admite o consultor anos. Ainda se surpreende? da série CSI, que mudou a forma como olhamos para a investigação criminal O que tem sido consistentemente surpreenPOR ISABEL NERY

V

ive em San Diego, a duas horas do local das filmagens de CSI - Crime Scene Investigation, em Los Angeles. Consultor, há já 15 anos, de uma das séries policiais com mais sucesso de sempre desde os primeiros episódios, J. Reid Meloy raramente visita o set - o seu trabalho faz-se nos bastidores, ajudando os argumentistas a aproximar a ficção da realidade. Professor de Psiquiatria na Universidade da Califórnia e especialista frequentemente requisitado em casos judiciais mediáticos, é autor do capítulo de um livro publicado recentemente em Portugal: Psicologia, Justiça e Ciências Forenses (Ed. Pactor), coordenado por Mauro Paulino e Fátima Almeida.

> Séries como CSI têm contribuído para a notoriedade da Psicologia forense. Que evolução nota desde que começou, em 1982?

A Psicologia forense desenvolveu-se muito nos últimos 30 anos e é hoje uma profissão reconhecida, uma subsecção da Psicologia. Nos EUA, é preciso doutoramento para exercê-la. Séries como CSI despertaram um enorme interesse, entre os mais jovens. > A exposição refletiu-se nas ciências forenses?

Houve uma evolução tremenda na investigação empírica da Psicologia forense, ajudando a perceber a motivação dos criminosos, quem são os seus alvos, e como cometeram os crimes. Houve também gran-

dente são os desvios sexuais, as parafilias. É incrível como são tantas e tão variadas. Ultrapassa a minha imaginação. Isso e a multiplicidade de métodos usados para matar. > Os crimes variam com as culturas?

Sim. A morte típica nos EUA acontece com armas de fogo e na Europa com faca, devido ao acesso limitado a armas. > Programas como CSI podem aumentar a violência?

Acho que não. Embora se usem cenas e métodos aprendidos na televisão para cometer crimes. Por isso, defendo o retrato exato nos media, tanto dos atos das vítimas como dos criminosos. O que não se mostra é o longo sofrimento das vítimas e do efeito nas suas famílias. Nos media, desinfetamos, tornamos a violência inofensiva, o que não é bom.

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SOCIEDADE

ENTREVISTA

> Como é que se passa da investigação no terreno para a ficção?

Quem faz a pesquisa para a série mostra-me um personagem, juntamente com a situação criada, e pergunta-me se poderia acontecer na realidade. E se acontecesse, como seria? O que faria esse personagem?

CSI J. Reid Meloy é consultor da série desde o seu início, em 2001. A produtora Carol Mendelsohn enviou-lhe uma nota de agradecimento (ao lado), «por mais uma grande temporada», a 14.ª, que, em Portugal, é exibida no canal AXN

> Já lhe pediram para trabalhar a partir de cenários que considerava irrealistas?

Por vezes digo que é completamente irrealista, mas a maior parte das vezes vamos ajustando. Eu sou o consultor em Psicologia forense, mas há de biologia, fisiologia e outras especialidades. > Quando é irrealista, desistem do episódio?

O CSI é entretenimento e o meu papel é de consultor. Podem usar ou não o que digo. Tenho de investigar sobre o que me pedem. > Qual foi o tema mais inesperado que lhe propuseram?

Há pouco tempo perguntaram-me sobre um personagem com hipertricose, ou seja, crescimento anormal de pelos no corpo todo, também conhecido por síndroma de lobo. Nunca tinha ouvido falar.

> E como se constrói um episódio de CSI à volta de um homem lobo?

Perante a ideia que tiveram, pedem-me para traçar o quadro psicológico. Eu digo-lhes que poderá ter ansiedade e imaturidade social, ser intelectual, ter pouca ou pobre experiência sexual devido ao seu aspeto e consequente isolamento. Será também provável o sentimento de rejeição, que pode originar alguma parafilia. A equipa usa essa informação como entender.

> Fica expectante com o resultado final?

Às vezes vejo o resultado destas pesquisas, outras não. Gosto de ser consultor de CSI porque me tira da fealdade do mundo real. É um intervalo. > Mas isso significa lidar com violência tanto na vida real como no trabalho de ficção…

Tem razão. Não é um intervalo completo… Uma pausa a sério é um mergulho no oceano.

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MUNDO

SAPADORAS Nilza Meireles, ex-estudante, e Lídia Sebastião, antiga cabeleireira – duas sapadoras da organização belga Apopo, nos últimos trabalhos de desminagem. Por cada uma que sai da terra «há felicidade no coração», porque é mais uma vida que se salvou

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O DIA D MOÇAMBIQUE ESPERA DESMINAR O SEU TERRITÓRIO ATÉ AO FIM DO ANO, TORNANDO-SE NO PRIMEIRO DOS CINCO PAÍSES MAIS CONTAMINADOS DO MUNDO A SER DECLARADO LIMPO, E A INICIAR UMA NOVA ERA. DUAS DÉCADAS DEPOIS, ESTÁ QUASE POR HENRIQUE BOTEQUILHA TEXTO E FOTOS EM MAPUTO

18 DE DEZEMBRO DE 2014 v 87 © Todos os direitos reservados. A cópia ou distribuição não autorizada é proibida. Ficheiro gerado para o utilizador 1911920 - carrasqueiran@gmail.com - 82.155.164.153 (18-12-14 07:38)


MUNDO

MOÇAMBIQUE

TRABALHO FEITO Cada dia, mais um pedaço de terra é devolvido a um país onde metade da população é pobre

Q

uando, em meados dos anos 80, os guerrilheiros da Renamo rebentaram uma linha de alta tensão no centro de Moçambique, o Governo mandou construir outra, num traçado paralelo. Uma foi edificada em plena guerra civil, está destruída e infestada de minas, a outra ergueu-se no alvor da paz, intacta e segura. Mas isso foi antes de aparecer um engenho. Bastou uma, apenas uma mina, para se desencadear uma operação em larga escala, em 273 torres das linhas entre Manica e a cidade da Beira, envolvendo dezenas de sapadores que há dois anos revolvem a terra para a entregar de vez às comunidades e garantir segurança aos técnicos da Eletricidade de Moçambique. O caminho de terra que entra nas profundezas de Nhamatanda, província de Sofala, exibe os seus encantos mas também as suas cicatrizes, na forma de torres sabotadas, a curtos metros das novas. Vestida com um fato azul e um longo avental que, juntamente com o visor, a protegerá de uma explosão, Oné-

sia Luís trabalha na torre 197. Pode bastar um quilo de pressão para detonar um engenho. «É um desafio», afirma a ex-estudante do ensino agrário, de 29 anos, e que se candidatou a um concurso da organização não-governamental (ONG) Handicap International, depois de se confrontar com pessoas que acionaram os explosivos. «Tinha de fazer algo pela minha comunidade.» A Nhamatanda acorrem técnicos, escavadoras, cães e até ratos, todos com a mesma missão de declarar Moçambique livre de minas até ao fim do ano. Da linha contaminada saíram 2 700 engenhos. Da nova, após o achado solitário que ninguém sabe como foi lá pa-

Uma área equivalente a 32 mil campos de futebol foi desminada nos últimos 20 anos

rar, nada mais do que uma ameaça silenciosa e largos milhares de dólares investidos em nome da confiança debaixo dos pés. «O objetivo de uma mina é esse: só uma chega para lançar o medo», observa Joaquim Bila, delegado do Instituto Nacional de Desminagem (IND), na região centro. «Não basta tirar as minas da terra, é preciso desminar também as mentes.» Sob um sol branco e um calor dos infernos, Onésia Luís ajoelha-se junto de uma linha que em circunstância alguma deverá ultrapassar, começando a desbastar energicamente a vegetação rasa, entre estacas de madeira brancas e vermelhas, separadas por um metro. A descontaminação de um metro quadrado custa em média 1,2 euros, segundo o Plano Nacional de Ação contra as Minas. Estimase que mais de 320 milhões de metros quadrados (32 mil campos de futebol) tenham sido limpos, em Moçambique, nos últimos 20 anos, um cálculo de 384 milhões de euros num país em que mais de metade da população vive abaixo do limiar de pobreza. A sapadora

88 v 18 DE DEZEMBRO DE 2014 © Todos os direitos reservados. A cópia ou distribuição não autorizada é proibida. Ficheiro gerado para o utilizador 1911920 - carrasqueiran@gmail.com - 82.155.164.153 (18-12-14 07:38)


MUNDO

Terra libertada Vinte anos, 300 mil minas, 10 mil vítimas – números de uma tragédia prestes a terminar TANZÂNIA

DATA EM QUE AS PROVÍNCIAS FICARAM CABO DELGADO DESMINADAS 2006

NIASSA

MALAWI

2006

ZÂMBIA

NAMPULA

TETE

2006

dezembro 2014

Nampula

Tete ZAMBÉZIA 2006

ZIMBABUÉ

MANICA SOFALA Barragem de Mavussi

Chibabava Nhamatanda

Beira

Mossurize Dondo

ÚLTIMOS DISTRITOS POR DESMINAR

A linha de alta tensão entre Mavussi e a Beira ainda está a ser desminada de cerca de 2 700 engenhos INHAMBANE GAZA

dezembro 2012

novembro 2014

ÁFRICA DO SUL

Komatipoort

Maputo SUAZILÂNDIA

MAPUTO março 2014

10 mil 300 mil 15 milhões vítimas*

minas recolhidas*

de dólares de custo anual, suportados na maioria pela ajuda internacional

A linha de alta tensão que liga Maputo a Komatipoort foi libertada de cerca de 5 500 minas

recorre, depois, ao detetor de metais e fura o chão com a sonda. Nada. A bandeira grafada com «M» é guardada. Em 15 minutos, Moçambique ficou 40 centímetros mais seguro.

De quase tudo a quase nada

A barragem de Cahora Bassa e a fronteira entre a região de Tete e o Zimbabué tinham cerca de 40 mil minas

Barragem de Cahora Bassa

MOÇAMBIQUE

98 mil outros engenhos explosivos destruídos 37 mil minas em stock eliminadas 32 mil hectares limpos* 10 hectares por clarificar

123 de 128 distritos rurais estavam contaminados (95% do país) 600 técnicos no terreno em dezembro de 2014 FONTES Instituto Nacional de Desminagem, Plano Nacional de Ação Contra Minas 2008-2014

* Estimativa

INFOGRAFIA AR/VISÃO

A história das minas em Moçambique, um dos cinco países mais contaminados do mundo – a par de Angola, Afeganistão, Camboja e Bósnia –, conta-se em três longos fôlegos: guerra colonial, agressão da antiga Rodésia e conflito pós-independência entre Governo e Renamo, que custou um milhão de vidas e outro tanto de refugiados. E também numa soma estimada em 300 mil engenhos, em quase toda a sua superfície. «O impacto era enorme e difícil de subestimar, porque as minas terrestres cobriam todas as províncias», lembra Jennifer Topping, coordenadora residente das Nações Unidas em Maputo. «Se quase toda a terra estava minada, era impossível qualquer atividade económica, social, investimento...» Quando a missão de paz da ONU entrou em ação, logo após o Acordo Geral de Paz, em 1992, suspeitava-se de que a situação era tão catastrófica que o país precisaria de 50 a cem anos para se tornar seguro. Por onde começar, quando nem as partes faziam ideia do que plantaram? Duas décadas depois, vive-se em Maputo a sensação de «está quase», traduzida em iniciativas como um seminário sobre experiências de países pós-desminagem, com parceiros internacionais, operadores e estados vizinhos, aberta pelo vice-ministro dos Negócios Estrangeiros e rosto do colossal plano governamental. «Faltam poucas!» – enfatiza Henrique Banze, referindo-se aos escassos distritos por limpar, nas províncias de Sofala e Manica, e manifestando confiança em que, até ao fim do ano, Moçambique gritará a sua nova libertação. Em novembro, a província de Inhambane foi declarada zona limpa e, com ela, todo o simbólico Sul do país, onde se situa a capital, Maputo. Depois disso, todos os meios foram deslocados para as áreas finais, sem se saber ao certo, neste trabalho de arqueologia bélica, o que há ainda a destapar. «A experiência tem mostrado, infelizmente, que se acaba sempre por fazer o dobro do trabalho em relação ao que se previa nas pesquisas de base», ressalva Banze. As incertezas existem debaixo da terra e em cima dela. A recente instabilidade militar entre Governo e Renamo, cujos fantasmas per18 DE DEZEMBRO DE 2014 v 89

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MOÇAMBIQUE

sistem, atrasou as operações de limpeza em certas regiões de Sofala em, pelo menos, um ano, contribuindo para um pedido de moratória em 2013 aos Estados-membros da Convenção de Otava, que regula a desminagem global. Mesmo com todas as incógnitas na equação, segundo o diretor do IND, no limite, uns dez hectares de áreas suspeitas transitarão para 2015. Quase nada. As minas, diz Augusto Maverengue, «bloqueiam o uso da terra, a circulação das pessoas e investimento». Agora, há estradas, linhas férreas e de alta tensão seguras e até já se pode visitar os parques nacionais da Gorongosa e do Limpopo. «É uma nova era para Moçambique», assinala o vice-ministro dos Negócios Estrangeiros. «A certeza de acordar sem nenhum perigo é uma sensação fantástica.»

‘Bela’ e a ‘caixa de sapatos’ Em Nhamatanda, um homem pedala a sua bicicleta, evitando os postes bombardeados e as indicações a vermelho de «campo minado», acompanhadas de sinistras caveiras, a curta distância do casario disperso, de barro e com telhados de colmo. Parece um jogo, mas a comunidade conhece bem esta sinalização de perigo de morte iminente. «Em Moçambique, há muita falta de emprego, então toda a gente recorre ao mato, uns nas machambas [hortas], outros fazem carvão», comenta Alberto Chaita, 60 anos, falando na língua local, sena. «As crianças que estão a nascer neste momento nem imaginarão o que existia aqui.»

ANTÓNIO SILVA

MUNDO

Nem terão de testemunhar as brigadas de sapadores e seus extravagantes fatos de proteção, pontos azuis movendo-se lentamente pelo mato, emprestando ao local um sentido dramático de urgência e silêncio, só interrompido pelos sensores repetitivos dos detetores de metais e pelos latidos dos cães farejadores. Chegou a vez de Bela mostrar a sua fiabilidade. Com o focinho rente ao solo, a cadela percorre uma quadrícula, junto de uma torre suspeita, numa das linhas de alta tensão da Beira. A dado momento, senta-se. As longas orelhas tremulam. Descobriu algo. Noutro local, seria apenas um inútil pedaço de madeira podre. Aqui, é logo identi‘BELA’ Técnicos, máquinas e uma cadela. Em minutos, farejou um bloco de uma mina PMD6, de fabrico soviético

LUÍS WAMUSSE Os sobreviventes são o «elo mais fraco» das operações de desminagem, diz o coordenador da Rede de Assistência às Vítimas de Minas

ficado como um componente de uma mina PMD6, a «caixa de sapatos», de génese soviética, usada desde o cerco de Estalinegrado e bastante reproduzida desde então. «O que deve ter acontecido aqui é que a máquina estava a preparar o terreno e pode ter quebrado a mina, mas ela não explodiu. A espoleta saltou e deve andar por aí», explica Rafael Santos, supervisor da Handicap Internacional. Bela confirmou a velocidade do faro dos cães no processo de desminagem, à semelhança dos «ratos heróis» que outra ONG, a belga Apopo, também usa em Nhamatanda. À medida que a campanha se aproxima do fim e se limpam as grandes infraestruturas, menos minas aparecem. Mas não foi assim há tanto tempo que se desenterraram 40 mil em Cahora Bassa e 5 500 na linha de alta tensão, entre Maputo e Komatipoort, na África do Sul. «Chegámos a tirar mais de 300, de uma só torre», recorda Augusto Maverengue.

‘Batatas mortíferas’ As minas podem estar perto do fim, o seu impacto não. Além do inestimável custo económico, o censo de 2007 revelou a existência de 10 mil vítimas. Mas admite-se o dobro. «Os efeitos nefastos vão repercutir-se durante muito tempo», alerta o coordenador da Ravim (Rede para a Assistência às Vítimas de Minas). Para Luís Wamusse, 50 anos, a assistência às vítimas «foi o elo mais fraco da ação do Governo contra as minas e é ainda uma utopia». O que a sua associação consegue deve-se a financiamentos de entidades internacionais, «no que era uma obrigação do próprio Estado». A Ravim desenvolve um projeto na província de Gaza, Sul do país, beneficiando 113 ví90 v 18 DE DEZEMBRO DE 2014 © Todos os direitos reservados. A cópia ou distribuição não autorizada é proibida. Ficheiro gerado para o utilizador 1911920 - carrasqueiran@gmail.com - 82.155.164.153 (18-12-14 07:38)


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JODY WILLIAMS

Nobel pela desminagem do mundo inteiro O fim da desminagem em Moçambique «será um exemplo sobre o que é preciso para ter o trabalho acabado», considera Jody Williams, cofundadora da Campanha Internacional para a Erradicação de Minas (ICBL, na sigla em inglês), com a qual partilhou o Prémio Nobel da Paz em 1997. «Todos nós, que conhecemos a luta de Moçambique para livrar a sua terra de minas terrestres, partilhamos as felicitações ao Governo pelo seu empenho em tornar o país num lugar onde as crianças, mulheres e homens poderão, em breve, caminhar sem medo de morte ou ferimentos de minas», declara a ativista norte-americana, num depoimento por escrito. Williams dirige «um agradecimento do coração» às pessoas que diariamente se dedicaram ao «trabalho perigoso mas vital» de remover os engenhos e que abre novas oportunidades para o povo de Moçambique, que, lembra, era considerado um dos países mais minados do mundo. Apesar disso, tornou-se num modelo, ao comprometer-se a limpar o subsolo ao abrigo do Tratado de Erradicação de Minas e, respeitando-o, não só tornou a vida mais segura para os seus cidadãos como pode ajudar «a abrir caminho para que outros cumpram também as suas obrigações». Se os outros países minados mostrarem a mesma dedicação, vaticina, «teremos mesmo um mundo livre de minas terrestres».

timas de minas e de deficiências com outras causas, com financiamento da Campanha Internacional para a Erradicação de Minas – «um número ínfimo» entre uma multidão ausente que «precisava de um ciclo completo de assistência». Estropiados, velhos, novos, viúvas e mulheres abandonadas pelos maridos. Uma destas dormia debaixo de uma árvore. «Infelizmente, é muito frequente», segundo Wamusse, ele próprio um sobrevivente, quando perdeu uma perna, em 1984, à procura de lenha, na província de Tete. Foi também em Tete que Manuel Anisse, 56 anos, perdeu, em 1982, um terço da perna direita, ao serviço do exército. Agora, tenta mostrar que a vida é possível depois de uma

Cada um dos 600 sapadores ainda no terreno ganha cerca de 320 euros mensais

mina. «Dantes era o coxo e achava-se que a produtividade era menor, quando já se demonstrou o contrário», recorda. O estigma foi-se diluindo, à medida que os media se iam interessando pelas vítimas das «batatas mortíferas» e o Governo se empenhava a fundo na desminagem. «Acredita que tenho uma prótese?» Na Ravim todos são vítimas, todos têm uma história para contar. Em 1989, Lídia Mangueze, 41 anos, era uma adolescente de Vilanculos, Inhambane, quando foi apanhada no fogo cruzado entre exército e Renamo. «Tínhamos de correr de um lado para outro para salvar a vida e salvei, porque, graças a Deus, pisei uma mina mas só perdi dois membros.» Lídia Mangueze refez a vida, casou-se, teve quatro filhos, mas, um dia, o marido desapareceu. O Estado apoia as crianças até ao sétimo ano, mas, ainda assim, uma já deixou de estudar. «Na cidade, vá que não vá, tenho uma banquinha de bolachinhas, doces e cigarros e durmo numa casa, porque uma branca me ajudou», diz. «Sustenta à rasca, imagina essas pessoas lá no mato...»

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MUNDO

MOÇAMBIQUE

A dimensão é, neste momento, apenas imaginável. Do banco de dados da Ravim constam 2 300 vítimas, com base numa recolha bastante incompleta no Sul do país e Sofala: «Quando terminarmos, o número vai disparar», afirma Manuel Anisse, enquanto desfila fotografias de sobreviventes. «Este fez a sua própria prótese de pau, esta vem todas as sextas deambular por Maputo a pedir esmola, este precisava de meios para tirar estilhaços da espinha e pereceu, este também mas foi de sida, outra prótese caseira…»

Lídia já é uma heroína A prioridade das autoridades foi desminar, «até porque, uma vez retiradas as minas, não haverá mais vítimas», justifica Henrique Banze. E, nesse campo, o país é apontado como exemplar, apesar de avanços e recuos, relações tensas com doadores, agora tudo ultrapassado. «É uma história fantástica, num país que tomou esta responsabilidade seriamente, no âmbito da convenção internacional, por razões de desenvolvimento, paz e investimento para a população moçambicana e com um resultado enorme», destaca a coordenadora residente da ONU em Maputo. Moçambique aderiu, em 1999, à Convenção de Otava e já acolheu duas grandes reuniões internacionais, no âmbito do tratado, a última das quais histórica, em junho passado, quando os Estados-membros anunciaram 2025 como o prazo para desminar o mundo inteiro. «Convidamos a comunidade internacional a continuar connosco nesta reta fi-

ANTÓNIO SILVA

nal e que em conjunto possamos celebrar um Moçambique livre de minas», declarou o Presidente moçambicano, Armando Guebuza, perante mil delegados, em Maputo. Os desafios não param, porém, quando for desenterrada a última mina do solo. «A última conhecida», corrige o diretor do IND: «Quando falamos de Moçambique livre de minas referimo-nos a zonas suspeitas, porque haverá outras de cuja existência ninguém sabe.» Nos últimos meses, têm sido registados casos de explosões de bombas não detonadas, como na Gorongosa, onde três crianças ficaram feridas, ao mexer num engenho usado no recente conflito no centro do país, ou de indivíduos atingidos por minas que rebentam quando tentam abri-las, à procura de mercúrio, aparentemente inexistente. O Governo vai agora dar formação à polícia, nas últimas províncias limpas, a qual terá a responsabilidade de lidar com minas pontuais, mas Maverengue não acredita que ainda existam campos significativos. «Todos os países que tinham problemas de minas terrestres enfrentam um período em que ainda existem algumas. Há sempre, até na Europa», lembra Jennifer Topping, que prevê um período de transição dos programas da ONU para a formação das instituições em relação a casos residuais. Este é já um cenário bem diferente dos longos anos em que a terra esteve sequestrada e que a embaixadora da Noruega, um dos principais financiadores do programa de desminagem, conheceu quando

‘O fim das minas não pode ser o fim dos desminadores’ AUGUSTO MAVERENGUE, DIRETOR DO INSTITUTO DE DESMINAGEM MOÇAMBICANO

METRO A METRO Onésia Luís ganha mais um punhado de terra em Sofala. «Tinha de fazer algo pela comunidade»

chegou pela primeira vez, em 1995, a Moçambique. «Lembro-me bem de viajar pelo país e sempre que se parava era avisada para não sair da estrada porque podia pisar uma mina», recorda Mette Masst. «Agora, esta barreira está quase eliminada», aponta a diplomata. Ainda existem outras, como o desenvolvimento, «mas esta já é uma grande vitória». No derradeiro esforço, estão, pelo menos, 600 funcionários, a maioria colocada em organizações não-governamentais, mas que em breve terão de pensar noutra forma de vida, sob a assombração de outra tragédia: o desemprego. «Não queremos que o fim das minas seja o fim destas pessoas, não seria lógico», garante Augusto Maverengue, prometendo uma compensação indexada à lei do trabalho e algo mais, «porque não é suficiente, até porque podem ter outras habilidades» e isso é o que se vai descobrir em ações de formação a partir do próximo ano. «Podem ter uma barraca de venda, uma machamba, uma cozinha, uma oficina», diz o diretor do IND, manifestando a sua gratidão. Lídia Sebastião e Nilza Meireles arrastam o equipamento de proteção antiminas, ao fim de uma jornada de trabalho. São o rosto de uma escalada feminina na profissão, paga numa base a partir dos 13 mil meticais (320 euros), uma lástima para quem arrisca a vida ou uma bênção num país que tem um salário mínimo quatro vezes menor. Mas, nesta profissão, o dinheiro não pode ser o mais importante. «Quando tiro uma mina, há felicidade no coração, porque salvei mais uma vida», entusiasma-se Lídia Sebastião, 32 anos. «Algumas foram plantadas antes da minha existência», diz a ex-cabeleireira, mãe de uma menina de sete anos: «A minha filha está livre delas, agora sou uma heroína.»

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SRI LANKA

GETTY

Rainha dos Oceanos Em 2004, 1 700 passageiros do mais famoso comboio do Sri Lanka perderam a vida (à esq.). Hoje, é um ícone (à dir.)

Esquecer o passado à beira do Índico Dez anos depois do tsunami, os cingaleses reconciliaram-se com o mar. Viagem pela linha de caminho de ferro junto da costa, que já foi símbolo da morte, mas que hoje é, de novo, uma explosão de vida POR RUI TAVARES GUEDES, TEXTO E FOTOS, NO SRI LANKA

H

á memórias que o tempo nunca apaga. Na manhã de 26 de dezembro de 2004, quando a imensa massa de água, impelida por um sismo de proporções bíblicas, na ilha de Sumatra, irrompeu na costa do Sri Lanka – e de todo o Sudeste Asiático – os telemóveis não estavam ainda tão generalizados como hoje. Por isso, as imagens desse dia são escassas e quase todas tiradas pelos estrangeiros que se encontravam a passar férias na região. A «prova documental» da maior catástrofe natural das nossas vidas continua a ser a memória das pessoas. Mas uma memória que já não atormenta os cingaleses, como um fantasma do passado. As feridas parecem saradas, num país predominantemente budista, onde a morte é encarada como fazendo parte natural do ciclo da vida. E onde as pessoas estão habituadas e preparadas para sofrer. Dez anos depois do tsunami e cinco anos após o final de uma guerra civil (também étnica e religiosa) que dividiu o país durante quase três décadas, quem aterra no aero-

porto de Colombo a primeira coisa que vê são cartazes a anunciar uma visão inspirada na megalomania do Dubai: grandes torres de aço e vidro a rasgarem os céus, junto da costa. Obras faraónicas, construídas com o dinheiro chinês com que Pequim tem recentemente tentado comprar um aliado no seu duelo com a Índia pela hegemonia nesta zona do Índico. A mensagem dos cartazes é um convite a novos investidores: «O paraíso está a chegar, venha fazer parte dele.» À memória do tsunami, apesar de estarmos em véspera de uma data redonda, não há qualquer referência. No centro histórico de Colombo, dentro dos limites do forte erguido pelos portugueses, no século XVI, no tempo em que o país ainda se chamava Ceilão, a estação de caminhos de ferro, edificada durante a colonização inglesa, fervilha de vida. É de lá que partem comboios para as terras altas, para a costa oeste e até, desde novembro, para Jaffna, a capital histórica da minoria támil, cuja revolta e sede de independência mergulhou o país no sangrento conflito que só termi-

nou em 2009. Mas é também da estação de Colombo Fort que parte um dos comboios mais cénicos do mundo, ao longo da costa oeste e sul da mítica Taprobana, sempre tão junto ao mar que, em certos troços, os passageiros são refrescados pelos salpicos das ondas que se quebram nas rochas, e que entram pelas janelas abertas. A 26 de dezembro de 2004, esse comboio a que os cingaleses chamam Samudra Devi (Rainha dos Oceanos) partiu apinhado em direção a Sul, pronto para oferecer aos seus passageiros mais uma visão inesquecível de praias paradisíacas. Às 9 e 30, no entanto, a sua marcha foi interrompida, a 200 metros da costa, junto da localidade de Paralya, com a linha alagada pela primeira vaga do tsunami. Imobilizadas, as carruagens foram invadidas por muitos populares que tentavam encontrar refúgio para a inesperada subida das águas. É então que chega a segunda onda, que os relatos indicam teria entre seis a nove metros de altura. O impacto é de tal ordem que arranca as carruagens dos carris e as faz rebolar. Quando a onda recolhe de novo ao mar, leva consigo os poucos que tinham resistido ao primeiro embate. Cerca

Nos cartazes do aeroporto de Colombo promete-se o ‘paraíso’ a turistas e investidores

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MUNDO

SRI LANKA

Tsunami global MAGNITUDE 9,3 1

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9

10

(escala de Richter)

Duração do sismo

minutos

TSUNAMI PROVOCOU ONDAS QUE ATINGIRAM

30 METROS 141 MIL CASAS DESTRUÍDAS FONTE ONU

Oceano Índico ao largo de Sumatra (Indonésia)

230 000

mortos e desaparecidos em 14 países

1,7 milhões de desalojados

INFOGRAFIA MT/VISÃO

de 1 700 das 35 mil vítimas mortais oficiais do tsunami no Sri Lanka foram contabilizadas no interior do Samudra Devi – o maior desastre ferroviário da história.

Sinais da reconstrução Em dezembro de 2014, o Samudra Devi volta a partir, apinhado, de Colombo Fort. Quando começa a travar, na estação, centenas de pessoas correm para as portas altas, atirando bagagens pelas janelas, tanto na terceira como

na segunda classe – em busca de um lugar sentado. Uma inscrição pintada nas carruagens indica que a lotação é de 44 passageiros, em cada qual. Mas a lotação real é bem outra e resume-se numa simples frase: há sempre lugar para mais um. E há. Por isso, apesar das ventoinhas no teto, escancaram-se as janelas para deixar entrar a brisa marítima. As portas, sempre abertas, são disputadas como lugares de honra por quem deseja ter vistas desafogadas sobre a costa.

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SRI LANKA

Em Mount Lavinia, estância balnear muito popular, a 14 quilómetros a sul de Colombo, o maquinista tem de apitar para não provocar um acidente: em todo o Sri Lanka as linhas de caminho de ferro são usadas como vias para os peões, mas aqui esse congestionamento aumenta pelo facto de uma determinada curva ser muito procurada para sessões de fotografia de noivos, em especial ao pôr do sol. A praia está repleta de restaurantes. Todos eles reconstruídos depois do tsunami, que embora não tenha chegado aqui já com muita força, ainda tinha a suficiente para destruir as estruturas de madeira e fazer desaparecer os balcões onde se exibem os mariscos e peixes capturados mesmo em frente. Danushka Wijerathna, empregado num desses restaurantes há mais de 20 anos, lembra-se bem da manhã em que «o mar levou tudo». Não se lhe vê no rosto qualquer sinal de lamento. Prefere, antes, abrir o sorriso e dizer: «Fomos nós que reconstruímos tudo e, agora, o restaurante até está muito melhor.» Das janelas do comboio é visível, em alguns momentos, o antes e o depois do tsunami: casas novas ao lado de ruínas, moradias erguidas por cima de quatro pilares de cimento e outras de piso térreo que parecem abandonadas há uma década. Mas vê-se, sobretudo, uma intensa vida perto do mar. E uma exploração (assustadora) de empreendimentos turísticos, o mais próximo possível da areia das praias, entre coqueiros e junto das ondas. Antes de chegarmos a Hikkaduwa, outra zona balnear famosa, Thusara, um cingalês de trinta e poucos anos, de fato e uma forte pronúncia inglesa, mete conversa para

elogiar as belezas e a animação da sua terra natal, a cerca de 100 quilómetros a sul de Colombo. Elogia as praias, as ondas tão admiradas pelos surfistas, a intensa vida noturna e o renascimento que a cidade tem conhecido. Parece a repetição dos cartazes do aeroporto a anunciar que o paraíso está a chegar. E nem uma palavra sobre o tsunami, nem mesmo quando passamos, perante a indiferença de todos os passageiros, pela estátua de Buda, oferecida pelos japoneses, em Paralya, em homenagem às vítimas do Samudra Devi. Este aparente alheamento sobre os acontecimentos de há uma década não quer dizer que o passado esteja esquecido. Nada disso. Qualquer cingalês (como, de certeza, todos os outros habitantes das regiões costeiras do Sudeste Asiático) sabe exatamente onde estava há dez anos, quando o mar galgou a terra. Mas numa nação com 75% de budistas, da escola Theravada, todos foram ensinados, desde pequenos, sobre a importância do «dukkha» – o sofrimento como característica básica do universo, não no sentido negativo ou pessimista, mas como uma inevitabilidade da própria vida, mesmo quando se procura a felicidade.

País de sobreviventes Este é um país de sobreviventes, não de vítimas. Como Chamim, por exemplo, que tinha 16 anos quando viu as ondas aproximarem-se. Estava, como muitos outros jovens, a fazer o seu jogging matinal, um costume dos habitantes de Galle, nas enormes e sólidas muralhas do forte erguidas pelos portugueses, em 1619, e depois ampliadas pelos

Wijerathna Ele lembra-se bem do dia em que ‘o mar levou tudo’

Mount Lavinia Uma das zonas balneares mais populares, reconstruída após o tsunami

holandeses, e que protege toda a península, com o seu centro histórico elevado a património da humanidade, pela UNESCO. «Quando as ondas bateram, até as muralhas tremeram. Acho que nunca corri tão depressa como nesse dia». Na cidade baixa de Galle, não protegida pelas muralhas, a destruição foi total, com o mar a entrar, em vagas sucessivas, pela marginal rumo à estação de camionagem, onde os autocarros foram arrastados como brinquedos, para cima de casas. Nos dias seguintes, o imenso campo de críquete, junto da muralha, foi transformado em morgue ao ar livre. Calcula-se que mais de 4 mil pessoas tenham morrido nesta zona. E toda a frota de pesca foi destruída, deixando os pescadores sobreviventes numa situação aflitiva. Michael Wijensundara voltara, nessa época, a Galle, após 18 anos emigrado no Dubai, onde trabalhou como cozinheiro de uma companhia de aviação e aprendeu a falar inglês e a dar mais valor à beleza natural e às tradições culturais do seu povo – em comparação com o cenário desértico e a «falta de educação» dos seus vizinhos da península arábica. «Como era feriado («poya», dia de lua cheia) tinha combinado com a minha família irmos passar o dia na praia, mas, à última hora, um monge pediu-me para ir fazer um trabalho no mosteiro e não pude recusar. A minha filha começou a chorar, a dizer que eu nunca cumpria as minhas promessas. Se tivéssemos ido à praia teríamos morrido todos, como aconteceu com dois irmãos da minha mulher, sobrinhos, vizinhos e tanta gente que eu conhecia.» Mas, mais uma vez, o lamento fica-se por aí. E hoje a cidade foi reconstruída «exatamente como estava», o porto encontra-se outra vez repleto de barcos de pesca e todos os fins de tarde centenas de famílias vão ba-

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SRI LANKA

Victor Ângelo

2015, descobrir o futuro

A nhar-se no Índico. Do outro lado da baía, a Jungle Beach atrai os mais jovens, que ali bebem e dançam ao som de DJs locais, com os pés enfiados na areia. Alguns quilómetros mais a sul, em Matara, onde termina a linha de caminho de ferro (e em que morreram mais de 5 mil pessoas, em 2004), assiste-se a um fenómeno que ilustra bem a forma como os cingaleses ultrapassaram o «sofrimento» do tsunami. Inicialmente, para prevenir novas tragédias, foi proibido fazer construções a menos de 100 metros da costa. Depois, o limite passou para os cinquenta. E logo a seguir para os trinta. Hoje, ao longo da costa que vai de Matale a Hambantota, passando por Tangalla, são visíveis inúmeras casas às quais, na maré cheia, as ondas quase batem à porta. E muitas habitações construídas com a ajuda internacional, elevadas e assentes em pilares de cimento, de forma a proporcionarem refúgio, estão agora a ser transformadas: o seu piso térreo, que deveria estar livre para deixar passar as águas, foi aproveitado para instalar pequenos comércios ou, então, alugado a turistas, que ali encontram um alojamento simples, mas barato e mesmo em cima da praia. Os cingaleses, pelos vistos, não precisam de comemorar efemérides. Preferem olhar para o futuro. Até porque, a 8 de janeiro, o país vai a votos para escolher quem se sentará, nos próximos seis anos, na presidência da República Democrática e Socialista do Sri Lanka (o nome oficial!) e a intensa campanha eleitoral monopoliza, naturalmente, todas as atenções numa nação que, depois de tantos anos de sofrimento, vê a sua economia crescer e os sinais de progresso (autoestradas, novos aeroportos e portos internacionais) avolumarem-se. O paraíso está a chegar, anunciam. A memória, essa, pode esperar. Até porque nem mesmo o tempo a apagará.

É um projeto complexo, destinado a servir de base, na próxima Assembleia Geral das Nações Unidas, em setembro, a um acordo sobre os novos objetivos de desenvolvimento sustentável. Muitos irão opinar que a resposta sugerida é demasiado vasta. Não serei eu quem irá criticar Ban Ki-Moon. Nestas coisas, tem que haver um mínimo de elegância e de bom senso. Se aceitarmos que um antigo Chefe de Estado não deve censurar abertamente um seu sucessor, então, por maioria de razão, um antigo alto funcionário, que trabalhou diretamente com o secretário-geral, também não pode vir a terreiro e deitar abaixo um conjunto de sugestões que se destinam a alimentar o debate público e a definir um plano de ação. Farei, no entanto, um par de observações. Estamos na antecâmara de um período de instabilidade geoestratégica. A tendência atual é para a aceleração das incertezas e para a globalização dos riscos. Um plano a quinze anos é demasiado longo, quando tudo muda de modo acelerado. Terá, por isso, que ser visto como um qua-

REUTERS

Rituais Os noivos gostam de ser fotografados nas praias, junto da linha férrea

intenção, nos círculos por onde ando, é que 2015 possa ser um ano de reflexão sobre o futuro da humanidade. Assim, procuraremos manter em foco três das grandes questões que continuam por resolver: a pobreza de milhões, a degradação contínua do meio ambiente e a indiferença perante o nosso destino comum. Quinze anos após o lançamento dos Objetivos de Desenvolvimento do Milénio e depois de um balanço ambivalente, é altura de olhar em frente. E de ter em conta que estamos nisto juntos, para o melhor e para o pior. A interdependência entre os povos – os problemas de uns acabam por ter um impacto sobre os outros – é agora um traço marcante nas relações internacionais. Foi isso o que o secretário-geral da ONU nos veio lembrar, há dias, ao divulgar a sua proposta de agenda para o desenvolvimento global. O título que deu à proposta é elucidativo: «O Caminho para a Dignidade até 2030 – acabar com a pobreza, transformar as vidas e proteger o planeta».

Na desolação do Sahel ou nos bairros de lixo de Carachi, cada um espera que respeitem o seu direito à vida e à liberdade

dro de referência genérico, a partir do qual deverão ser definidas metas intermédias, que possam ser monitorizadas. Por outro lado, o plano está inquinado pela velha perspetiva que nos faz olhar para as pessoas como beneficiários das políticas, como objetos e não como atores da mudança. Os responsáveis não deverão ser apenas os outros, os governos e as instituições. Temos de ser todos e cada um de nós também. Trata-se, entretanto e no essencial, de uma proposta progressista. Parte de uma premissa que considero fundamental: o respeito pela dignidade das pessoas, sobretudo dos mais marginalizados. Foi o que aprendi ao longo da vida e de décadas de trabalho em países de grande pobreza e de violência institucionalizada. O reconhecimento do valor de cada pessoa deve ser o ponto de partida, em qualquer sociedade. Na desolação do Sahel ou nos bairros de lixo de Carachi, cada um espera, acima de tudo, que o deixem em paz e lhe garantam a segurança, que respeitem o seu direito à vida e à liberdade, que não seja vítima de nenhum tipo de discriminação. Curiosamente, estamos a reconhecer agora o que havia inspirado a ONU há setenta anos. Ao redigirem a Carta das Nações Unidas – um documento que deveria fazer parte do currículo escolar – os fundadores quiseram, com clareza, «reafirmar a nossa fé nos direitos fundamentais do homem, na dignidade e no valor da pessoa humana, na igualdade de direitos dos homens e das mulheres». É essa mesma problemática que deve continuar no centro das preocupações, em 2015 e depois.

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CULTURA

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Jordi Savall

SE A CULTURA NÃO É CAPAZ DE MELHORAR A VIDA DAS PESSOAS, NÃO SERVE A «grande humanidade de Jesus» em Saramago, o genocídio da Arménia, a fome no mundo ou a guerra da Síria. O catalão Jordi Savall toca tudo como um sábio. Incluindo a música POR ANTÓNIO MARUJO TEXTO E PAULO PETRONILHO FOTOS

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CULTURA

ENTREVISTA

E

m outubro e novembro, Jordi Savall esgotou três concertos em Loulé, Lisboa e Porto, nos quais tocou música arménia e turca, a poucos meses do centenário do genocídio arménio. Pretexto para uma entrevista a um dos mais importantes intérpretes e maestros contemporâneos, que olha para a música como uma forte experiência que pode ajudar a conhecer diferentes culturas. E que alia à sua grande qualidade de músico uma arguta consciência política e social – já depois desta entrevista, Savall, 73 anos, recusou o Prémio Nacional de Música de Espanha, em protesto contra a política «irresponsável e incompetente» dos mais recentes governos espanhóis na área da cultura. > Em janeiro irá editar o livro-disco Guerra e Paz. Quer explicar o projeto?

É dedicado a uma reflexão sobre a guerra e paz entre 1614 e 1714, quando se dão as guerras dos Trinta Anos, de religião, as guerras entre França e Alemanha, entre França e Espanha e, no final, a Guerra de Sucessão pela coroa espanhola. É um projeto que põe musicalmente em evidência a influência da música na celebração da paz. É uma reflexão sobre esta espécie de doença que tem a civilização, desde há cinco mil anos, de tentar resolver tudo pela violência. E que nos leva a pensar que tudo o que se resolve pela violência volta, mais tarde, a criar mais violência e que o único caminho para conseguir a paz é parar a violência e procurar soluções com respeito pelas pessoas e as nações. Neste momento, isso é especialmente importante: vivemos numa época em que há mais guerras, mais refugiados, mais vítimas em toda a parte. Precisamos de pensar sobre este tema. > Vários projetos seus – Jerusalém, Oriente-Ocidente, Istambul... – falam da importância do conhecimento do outro, das diferentes culturas e religiões. A música tem também o papel de desvelar o conhecimento do outro?

Sim, a música tem muitas funções. Com a música podemos conhecer uma cultura, porque a música é o que melhor explica a alma dessa cultura. E através da cultura, conhecemos coisas que são essenciais. A música permite, sobretudo, recordar a história de uma forma viva, leva-nos a fazer uma viagem no tempo e, através dela, vivemos o que viveram as pessoas no seu tempo. A música é mesmo a melhor forma de aprender, com emoção e beleza, sobre o que se passou. Quando

‘Guerra e Paz é, também, uma reflexão sobre esta espécie de doença que tem a civilização, desde há cinco mil anos, de tentar resolver tudo pela violência’

por causa da guerra de Gaza. A música consegue reunir as pessoas no palco mas não nos ideais da paz?

aprendemos algo com emoção e beleza, não o esquecemos. E precisamos de recordar as coisas para não repetirmos sempre os mesmos erros. A música é ainda uma ponte entre Oriente e Ocidente porque, com a linguagem musical, é possível entendermo-nos.

> Mas nos seus discos escreve sobre questões políticas: fome, injustiças, ditaduras como as da Coreia do Norte ou a Síria... A cultura está para lá da contingência da política?

> Já falou muitas vezes da importância de ter músicos palestinianos e israelitas, arménios e turcos, tocando juntos. Isso ajuda os próprios músicos a ultrapassarem conflitos?

Em sociedades que tiveram vivências tão traumáticas quanto a Arménia ou os Balcãs, a música ajuda a encontrar a paz interior e a sobreviver. E quando já se fizeram as pazes e houve uma reaproximação, a música também ajuda a poderem estar juntos. Já o vi nestas experiências: ao princípio, entre músicos turcos e arménios, entre palestinianos e israelitas, não havia muita sintonia. Mas depois de um momento a fazer música, todas as diferenças ficam apagadas e o prazer de estar junto, a harmonia que se consegue com a música, cria um ambiente muito mais propício ao diálogo e ao entendimento. > Músicos palestinianos e israelitas da orquestra East West, do maestro Daniel Barenboim, discutiram duramente, há meses,

A música não é política. A linguagem da música é a da beleza, da emoção, da verdade. O problema entre Israel e Palestina só se poderá resolver politicamente. As injustiças não se resolvem com a arte. A arte ajuda as pessoas a desenvolverem-se, a serem mais completas, mais espirituais, mais abertas. Mas, se há injustiças, há que as resolver antes. Se há fome, há que dar de comer antes de fazer música. Se há destruição, há que construir... A música é um caminho, mas não se vive da música. E aí está o problema.

Não. Se falo disso é porque creio que, se a cultura não é capaz de melhorar a vida das pessoas, não serve. A cultura em geral, a arte, têm de servir para que as pessoas possam ser melhores, para que possamos conseguir uma sociedade melhor. Por isso, num projeto como Oriente Ocidente II, sobre a Síria, tinha de falar destes políticos que dominam, despedaçam e fazem a vida impossível ao seu povo. Vivemos numa época global, mas apenas para o comércio. Não conseguimos ainda que seja um mundo global para a política, para a ética, para a moral. E aí é onde estamos falhando. Fazemos todos os tratados para que se possa vender tudo, em todo o mundo, mas não somos capazes de pôr-nos de acordo por uma ordem universal de ética, de moral, de justiça. Estamos a destruir o planeta e não há um governo da Terra que diga que isso não pode ser. Cada povo, cada nação, pensa nos seus interesses antes do interesse global. E isso é que é grave. O que se faz no comércio teríamos de o fazer também na política, na ética, na educação, na justiça.

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CULTURA

ENTREVISTA

música, mas um dia vem um intérprete e faz com que aquela música nos faça dizer «que maravilha!». Porque colocou ali a sua criatividade, o seu talento, a sua emoção, a sua capacidade... E de repente aquela música pode dar-nos algo diferente. Esse é o grande mistério: a música precisa sempre do ser humano para existir verdadeiramente.

> A propósito do seu concerto na Gulbenkian, O Espírito da Arménia, escreveu que «sem memória não há justiça, sem justiça não há civilização e sem civilização o ser humano não tem futuro». Um disco como este, que contribui para a memória do genocídio arménio, pode ser uma ajuda para a paz entre Turquia e Arménia?

Creio que sim. Os sentidos é que nos fazem conservar a memória. Por isso, a beleza e a emoção dos sentidos, que vêm através da música, são os que nos fazem ser conscientes de que este povo existe, tem uma alma, tem um caráter, é um povo maravilhoso. Este é um contributo para recordar e fazer-nos pensar sobre o que se passou e ainda se está a passar. O mais antigo povo cristão ainda está sofrendo por injustiças que se mantêm... > Já fez este concerto na Turquia?

Não, mas em vários concertos que fiz na Turquia, com música turca, toquei sempre música arménia. Os arménios, com os gregos e os judeus, eram os melhores músicos da corte otomana. Por isso a música arménia estava sempre presente. > Podemos falar de uma especificidade da música arménia?

As suas raízes estão na cultura cristã mais antiga do mundo, que vem dos séculos III, IV e V, baseada nos primeiros cantos cristãos e que continuou a desenvolver-se na relação também com o mundo bizantino e o mundo gregoriano antigo. É o que se percebe nos seus cantos: uma grande beleza de melodias, com um caráter muito oriental, embora marcados muito fortemente pela espiritualidade cristã. Os instrumentos foram sendo construídos em toda essa região, com um caráter próprio da cultura arménia – com um som doce, que é uma espécie de bálsamo. Vejo isto como uma característica das culturas que sofreram muito na sua história, que necessitavam de músicas que deem muita paz. Muitos arménios emigraram depois das guerras e dos conflitos. Mas houve sempre quem continuasse a fazer música. Por isso, na corte otomana, eles eram dos mais apreciados, porque tinham mais sensibilidade que os turcos, com mais tendência para a música militar e guerreira. > Fala muito da dimensão espiritual da música e os seus concertos são quase uma liturgia musical. Mas isso pode confundir-se com a simples fruição estética. É possível escutar-se, por exemplo, a Paixão Segundo São Mateus apenas com um ouvido estético?

> Gravou há anos uma obra espiritual, As Sete Últimas Palavras, de Haydn, com textos introdutórios de José Saramago. Tinha outros projetos com Saramago?

‘Esse é o grande mistério: a música precisa sempre do ser humano para existir verdadeiramente’ A dimensão espiritual de uma música está ligada à dimensão espiritual do intérprete. As notas, por elas mesmas, não nos dão uma dimensão espiritual ou estética suficiente. Pode ler-se a partitura da Paixão e sentir a força espiritual da música. Mas quem não é múwsico terá de partir de uma música que se expressa. E isso está muito ligado à qualidade musical do cantor, do músico, do maestro... Pode acontecer que uma música espiritual seja cantada apenas de um ponto de vista estético e que a sua força espiritual fique diminuída, não restando senão o exterior daquela música. Ao contrário, pode acontecer que uma música não espiritual seja interpretada com tanta força por um músico que acabe por nos trazer uma grande dimensão espiritual. Por exemplo, um lamento sefardita não é necessariamente uma canção espiritual mas, cantado com essa dimensão, pode dar-nos uma grande força espiritual. > O segredo é a recriação...

O grande mistério da música é equivalente ao da criação da arte. Há um ponto em que se passa do artesanato à arte: o artesanato é o que está bem feito, mas depois há um momento de mistério e a obra que aparece, que pode ser uma melodia, passa a ser uma melodia que escutaremos sempre, que passa a ser eterna. Com a interpretação passa-se o mesmo: há muitas formas de interpretar a

Tínhamos vontade de fazer outro projeto, mas não havia nada de concreto. Ele já estava com problemas de saúde e terminando outros textos. Mas foi uma bela colaboração. > Podemos falar de uma busca de Deus em Saramago, manifestada nesses textos?

Sim. Da interpretação de Deus: se estás aqui, escuta-me. O que é belíssimo, nesses textos de Saramago, é a grande humanidade, a grande dimensão humana de Jesus. São textos de uma grande força espiritual e também de um grande sentido crítico. > Em vários discos – Lux Feminae, A Invocação da Noite, A Voz da Emoção – presta homenagem à sua mulher, Montserrat Figueras. São também discos de homenagem às mulheres, tão esquecidas ao longo da história da música e da Humanidade?

Montserrat trabalhou, durante toda a vida, para mostrar a função essencial que tinha a mulher na evolução da música e do ser humano. Por isso, trabalhou com os antigos cantos da Sibila, a música dos cátaros ou de Caccini. Ela estava consciente de que a mulher tinha tido um grande papel na música e estava convencidíssima de que muitas partituras anónimas tinham sido compostas por mulheres mas não podiam dizer que eram suas, porque isso não era possível. Creio que tinha razão. > Faço-lhe a pergunta a que Dostoievski não responde n’O Idiota: a beleza salvará o mundo?

A beleza poderia salvar o mundo se cada um de nós fosse capaz de viver e comportar-se com tudo o que isso implica: a beleza é que nos faz ser sensíveis e desenvolver a nossa empatia com os demais, a nossa capacidade de bondade. O mundo precisa de beleza e bondade. Saramago dizia justamente que a qualidade mais importante é a bondade, que está acima da justiça e da caridade. Porque a justiça é necessária quando não há bondade, e a caridade quando não há justiça.

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CULTURA

???????? MÚSICA

No YouTube Space London acredita-se que todos os jovens youtubers são potenciais estrelas pop

A revolução não será televisionada Ser youtuber já não é só um hobby divertido, pode ser uma profissão lucrativa. Nos estúdios do YouTube em Londres percebemos como este site mudou a indústria musical POR GABRIELA LOURENÇO, EM LONDRES

H

á pinheiros cobertos de neve, uma gruta branca com estalactites e árvores despidas de folhas. Um cenário natalício perfeito. De pé, com microfones à frente, a luso-britânica Mia Rose, a escocesa Rebecca Shearing e os ingleses Tom Law e Alice Olivia cantam, a quatro vozes, a sua versão de We Wish You a Merry Christmas. O vídeo, postado por Mia Rose no seu canal de YouTube no domingo passado, teve quase quatro mil visualizações em 24 horas. No início deste mês, os quatro cantores fizeram parte de um grupo de 16 que foram convidados a frequentar um workshop no YouTube Space London (YTSL). Estes estúdios abriram em Londres há dois anos e recebem gratuitamente todos os que tiverem mais de cinco mil subscritores no seu canal do YouTube e ali queiram filmar ou editar

imagens e som (entretanto, já inauguraram estúdios maiores em Tóquio, Los Angeles e Nova Iorque). Richard Schuster, responsável pela comunicação do YTSL, guia-nos por um pequeno corredor onde se sucedem as portas amarelas da sala de edição, dos estúdios onde se fazem as filmagens, da régie… «Parece um pequeno estúdio de TV mas é muito mais do que isso: uma espécie de estúdio e universidade», descreve. «Nestes workshops, as pessoas podem ligar-se umas às outras e

‘O mundo está a mudar e temos que acompanhar essa mudança’, diz Mia Rose

essa é a melhor forma de se ser bem sucedido no YouTube. Os workshops também são um laboratório de pesquisa. Não se trata só de ensinar mas também de aprender com os alunos e partilhar com outros», continua. Em dois dias, os cantores (também existem regularmente, neste planeta YouTube, workshops de comédia ou de beleza, por exemplo) têm aulas de escrita de canções, produção, gravação de vídeos, iluminação, entre muitos outros ensinamentos que os ajudam a melhorar aquilo que já começaram a fazer em suas casas à frente de uma câmara. Como resume Richard Schuster, ali mostra-se «como gerir os canais de YouTube para passar dos 40 aos quatro mil subscritores». Não que este grupo junte novatos, apesar da média de idades não chegar aos 25 anos. Mia Rose, cujo canal completou este mês oito anos, é das que anda há mais tempo nisto e também das que, neste grupo, tem mais subscritores (277 630 no início desta semana). Muito provavelmente, a maior parte dos leitores deste texto (sobretudo os maiores de 16 anos) nunca ouviu falar de nenhum destes artistas, mas todos juntos eles têm mais de dois milhões de seguidores online.

O negócio da próxima geração Num minuto fazem-se uploads de 300 horas de vídeos no YouTube e ser youtuber já não é apenas um hobby divertido, mas pode

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CULTURA

MÚSICA

Nos estúdios de Londres, os youtubers aprendem todos os «truques» para melhorarem as suas carreiras

ser uma profissão lucrativa. Basta ver como, aos poucos, os vídeos se vão tornando cada vez menos amadores e vão tendo um sentido comercial cada vez maior (um exemplo: as referências a marcas nas imagens ou nos descritivos são frequentes). O YouTube já conseguiu mudar a indústria global da música. Se, por um lado, as grandes editoras o usam, conscientes de que o streaming já tem uma percentagem importante nos seus lucros e usando a plataforma como poderoso meio de divulgação planetário, por outro, há músicos que fazem do YouTube a sua principal forma de divulgação e captação de fãs e receitas – sem editoras, sem manager, sem regras nem obrigações (ou quase), com uma ligação direta aos fãs, para «manter a liberdade», como muitos dizem. Na verdade, já é possível fazer milhões com a música sem vender um único disco – em publicidade bem paga e em concertos que potenciam a popularidade conquistada no site. «Ter muitos subscritores significa ter muito poder no mercado», confirma Mia Rose, que, ao longo destes oito anos, já recusou contratos com editoras convencionais, e que hoje tem consciência de onde se pode chegar «apenas» através do YouTube. «Há que seguir o movimento digital. O mundo está a mudar e temos que acompanhar essa mudança, ou até estar à frente dela», diz, sentada num cadeirão baixo no corredor do YouTube Space London, enquanto edita o próximo vídeo que publicará no seu canal. «Estes artistas são mesmo diferentes dos artistas tradicionais. Conseguiram o seu público atuando a partir de casa. Para isso, conta a música que fazem, o seu carisma, a sua personalidade», diz Conrad Withey, diretor da PopShack, a primeira empresa direcionada especificamente para as pop stars do YouTube. Ou, pelas palavras deles, para o «futuro da música». «Muitas vezes, as edi-

toras pegam neles e não sabem o que fazer, porque o que era cool nestes artistas desaparece quando chegam a esse universo. Foi nesse sentido que criámos o PopShack: queremos dar conhecimento musical e competências a estes músicos youtubers», continua, dando como exemplo estes workshops no YTSL, de que são parceiros. Se ser uma estrela pop do YouTube pode ser um negócio rentável, ajudá-los a crescer, claro, também o será. No YTSL aposta-se em pequenos criadores, acreditando que todos têm muito potencial. «Nunca se sabe onde vai aparecer a explosão seguinte e, agora, isso acontece muito rapidamente», nota Conrad Withey. «Isto é o negócio da próxima geração», conclui.

Descobrir talentos Atrás da porta amarela, a imitar a de uma caixa forte, que dá acesso ao YTSL, num edifício de escritórios no centro de Londres, o ambiente é de festa. Na parede da entrada, há polaroids com os retratos assinados de muitos dos que já por lá passaram – de (muitas) caras desconhecidas a Ricky Gervais ou Robbie Williams. Uma mesa com

‘Isto é o negócio da próxima geração’, defende Conrad Withey

sushi, snacks, cookies, refrigerantes e água está à disposição dos músicos e de quem por ali anda. Há uma certa excitação no ar e, em grupos ou a sós, cantam-se músicas acompanhadas à viola, ou dedilha-se no computador, sempre online. «O YouTube sempre foi um espaço forte para a música e sempre significou mais do que o produto final da indústria musical. Sempre se partilharam e descobriram talentos», sublinha Ben McOwen, diretor de parcerias de conteúdos do YouTube. «Nestes workshops juntamos as pessoas para que elas colaborem e partilhem experiências e para que aproveitem todo o potencial que o YouTube tem para lhes dar – venham de onde vierem, da aldeia ou de Nova Iorque», acrescenta. À disposição, os youtubers têm estúdios com boas condições (cenários, green screens, luzes profissionais, bons programas de edição...). «Queremos mostrar-lhes tudo o que é possível fazerem», reforça, não escondendo que, para a empresa YouTube, é importante investir nestas pessoas e, de alguma forma, continuar ligado a elas. Como dizia em abril ao jornal britânico The Guardian Alex Carloss, diretor de entretenimento do YouTube, «não vamos ser a próxima CNN, não vamos ser a próxima ESPN, não vamos ser a próxima MTV. Vamos ser dez vezes a CNN, vamos ser dez vezes a ESPN e dez vezes a MTV. Porque os números de visualizações dos vídeos são em mil milhões. É essa a diferença.» É essa a revolução.

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CULTURA

LIVRO

D.R.

A realidade quotidiana de São Paulo e o mundo mitológico de Orun cruzam-se na saga inventada por PJ Pereira

Mundos paralelos A mitologia dos Orixás é o ponto de partida da saga Deuses de Dois Mundos, que marca a estreia como escritor de um premiado publicitário brasileiro que sonha com altos voos, PJ Pereira POR MIGUEL JUDAS

O

Senhor dos Anéis e Harry Potter são duas das obras mais citadas nas críticas a O Livro do Silêncio, estreia literária do brasileiro PJ Pereira, que se inspirou na religião afro-brasileira dos Orixás para criar esta saga (Deuses de Dois Mundos, uma trilogia), cujos direitos de adaptação para a cinema e televisão já foram adquiridos pela produtora norte-americana The Alchemists, responsável por séries como Smallville ou Heroes. O agora escritor é um dos mais reconhecidos publicitários brasileiros, responsável pela agência Pereira & O'Dell, sediada em São Francisco, com a qual já arrecadou cerca de uma centena de prémios internacionais, entre eles um Emmy e quatro Grand Prix no festival de Cannes. O sucesso e a visibilidade mediática não são, por isso, novidade para este carioca radicado nos EUA mas consegui-lo, agora, também como escritor é algo que ainda está

a digerir, como confidenciou à VISÃO. «Sou um publicitário diferente, meio rebelde, que gosta de contar histórias nas campanhas, mas a verdade é que nunca tinha planeado ser escritor. O bom de escrever é conseguir fazer as palavras aparecerem na cabeça do leitor e o retorno disso é muito passional, o que acaba por se tornar viciante», explica o escritor, que tem já mais de 110 mil seguidores na página do Facebook dedicada a Deuses de Dois Mundos. «Converso com eles

‘É um livro que resulta de um processo pessoal de confrontar os meus preconceitos’

diariamente. Aliás, várias cenas do terceiro livro [a editar em 2015 no Brasil] resultaram desse diálogo com os leitores. É quase como se fosse escrito a 200 mil mãos...», diz.

De São Paulo a Orun, ida e volta O primeiro volume da trilogia, O Livro do Silêncio, que chegou recentemente às livrarias portuguesas, tem como trama principal duas histórias paralelas: a de Newton Fernandes, ambicioso jornalista de São Paulo, sedento para ascender de posição nas redações; e a de Orunmilá, o maior adivinho de Orun, local mitológico onde vivem os Orixás, que vê o seu poder de antever o futuro enfraquecido por uma estranha força. Aos poucos, os dois universos vão-se entrelaçando, arrastando o cético Newton para uma épica aventura que pode mudar o destino desses dois mundos. «É um livro que resulta de um processo pessoal de confrontar os meus preconceitos, pois no Brasil é comum dizer-se que a religião dos Orixás é algo de perigoso, da qual nos devemos manter afastados. Um dia, em conversa com um dos meus melhores amigos, percebi que ele professava esta religião. Fui pesquisar e descobri um mundo fascinante, despertando-me uma enorme vontade de contar estas histórias», recorda PJ, assumindo que o seu estilo de escrita junta várias referências e

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influências – «do estilo cínico e pervertido» de Nelson Rodrigues às «narrativas inocentes de obras de fantasia como O Senhor dos Anéis e Harry Potter», passando ainda por «momentos mais violentos», inspirados pela nova geração de séries de televisão como Guerra dos Tronos ou The Wire. Impõe-se a pergunta: como reagiram os fiéis desta religião ao livro? «Esta é uma obra de fantasia e aventura, não de religião, mas, de acordo com as opiniões que tenho recebido, as reações foram as melhores por mostrar quão rica e bonita a religião dos orixás é». Até o tal amigo viu no livro uma espécie de chamamento. «Não me tornei crente, mas talvez tenha sido chamado para escrever este livro [risos]... Já me disseram várias vezes que o livro revela alguns segredos que um não crente nunca poderia saber», sublinha o autor. Aquando do lançamento do primeiro livro, PJ valeu-se da sua experiência como publicitário colocando no YouTube um book trailer para o divulgar. É um vídeo de dois minutos e meio, feito pela produtora Laundry Design, de Los Angeles, ao estilo de filmes como 300 e Sin City, que conta com a participação de Gilberto Gil como narrador e dos músicos Otto, Andreas Kisser (Sepultura) e Pupillo (Nação Zumbi) na banda sonora. Essas imagens podem antecipar o que será uma mais do que provável adaptação ao cinema. «Vendi os direitos na época do lançamento do primeiro volume da trilogia, mas ainda vai demorar algum tempo até chegarmos ao produto final. Já há alguns argumentos escritos e estamos neste momento a estudar vários formatos possíveis, que para além do cinema e da televisão, podem também passar pela banda desenhada e por jogos para computador», revela o autor. Poderá o brasileiro PJ Pereira transformarse na «nova JK Rowling», como alguém já escreveu nos EUA? Por agora, só Orunmilá pode responder, se tiver forças para isso...

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pessoas Globos de Ouro O triunfo do pequeno ecrã As nomeações revelam os primeiros vencedores e vencidos, sobretudo entre as categorias mais badaladas: as da TV Os prémios só serão entregues a 11 de janeiro em Beverly Hills, mas a lista de candidatos aos Globos de Ouro, anunciada na semana passada, inclui algumas surpresas e outras tantas desilusões. O fenómeno Guerra dos Tronos regressou à corrida para melhor série dramática, após dois anos de ausência. Já a premiadíssima Uma Família Muito Moderna ficou fora da categoria de melhor comédia, pela primeira vez em cinco anos. O maior número de nomeações – cinco – coube a Fargo, a série inspirada no filme dos irmãos Coen de 1996. Mas há concorrência à altura. True Detective também compete pelo prémio de melhor minissérie/telefilme e ambas as produções têm dois protagoBilly Bob nistas masculinos candidatos a melhor ator: Matthew Thornton, McConaughey e Woody Harrelson (True Detective) e na série Fargo, Martin Freeman e Billy Bob Thornton (Fargo). A época provável vencedora de vários Globos de de ouro da produção televisiva quase ofusca as noOuro em janeiro meações de cinema. Birdman, de Alejandro González atores dramáticos. A noite também será marcada pelo Iñarritu, segue na frente com sete nomeações; segue-se regresso de Rick Gervais aos Globos, desta vez não como Boyhood (cinco), que Richard Linklater rodou em diferenapresentador mal comportado – a Associação da Imprensa tes períodos ao longo de 12 anos. As maiores surpresas são as Estrangeira de Hollywood parece ainda não ter recuperado do nomeações de Jennifer Anniston (Cake) e Steve Carell (Foxchoque de 2012 – mas enquanto nomeado para melhor ator de catcher), habitualmente associados à comédia, na categoria de comédia de TV, por Derek.

PRÉMIO VIANA DO MEU CORAÇÃO Alguns dos retratos mais poderosos sobre o Portugal contemporâneo já foram distinguidos ou impulsionados pelo Prémio Fotojornalismo Estação Imagem/Mora, galardão que, durante cinco anos, nos fez rumar ao Sul – vejam-se as imagens da premiada reportagem sobre cegueira recente, de Mário Cruz, vencedor da edição 2014; ou visite-se Caça Grossa, projeto resultante da Bolsa Estação Imagem 2013, da autoria de António Pedrosa e agora patente na Casa de Imprensa, Lisboa. Em compasso com as mudanças no País, também o prémio agora se adapta, evolui e se estende por novas geografias. Sem perder as raízes alentejanas, o Estação Imagem assentará, em 2015, arraiais em Viana do Castelo, cidade de vincadas tradições culturais e um historial recente de visibilidade devido à luta pela sobrevivência dos seus estaleiros. Será nessa cidade minhota que a Associação vai passar a fazer a sua cerimónia de entrega de prémios e as suas conferências. Entre as novidades previstas para a edição de 2015, anuncia-se um novo prémio dedicado ao tema Noroeste Peninsular - Construção Naval. Para que continue a haver ativas testemunhas da atualidade, de norte a sul.

O FUTURO SEGUNDO HOUELLEBECQ

O novo romance do escritor francês Michel Houellebecq promete agitar o início de 2015, no seu país. Soumission (à letra, «submissão») que chega às livrarias a 7 de janeiro, antecipa o ano de 2022. Em eleições, enfrentam-se a nossa bem conhecida Frente Nacional de Le Pen com uma ficcional Fraternidade Muçulmana, partido dos muçulmanos em França. Com a ajuda do PS e do UMP serão estes últimos a chegar ao poder... Cenas dos próximos capítulos só no ano que vem.

sms Sim, já foi há 20 anos. Por isso chega agora às lojas uma edição comemorativa de Viagens, o primeiro disco de Pedro Abrunhosa & os Bandemónio, que inclui um documentário (Viagens 20 Anos), videoclips e remisturas dos já clássicos Socorro, Não Posso +, É Preciso Ter Calma. Esta quinta-feira, 18, na Galeria das Salgadeiras, em Lisboa, será apresentada uma versão em braille da Mensagem, de Fernando Pessoa, que agora celebra 90 anos. O projeto, para visuais e invisuais, é da autoria de Bruno Brites.

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Shadows in the Night é o 36.º disco de estúdio de Bob Dylan. Chega a 2 de fevereiro com a reinterpretação de dez canções celebrizadas por Frank Sinatra

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Amália Rodrigues fotografada por Eduardo Gageiro em 1971

Os fados de Gageiro Ao longo dos seus mais de 60 anos de atividapois Gageiro é natural de Sacavém), com de profissional, o fotógrafo Eduardo Gageiro destaque para Lisboa no Cais da Memória. sempre foi um apaixonado por Lisboa. De má- Depois de, já este ano, ter reeditado Liberquina ao ombro, que teima em levar consigo dade, com imagens do 25 de Abril de 1974, para todo o lado, ele fez milhares de fotograo fotógrafo lança-se em mais uma edição de fias da capital, tendo mesmo vários livros só autor – «Gosto de ser eu a decidir sobre o dedicados à cidade (que não o viu nascer, meu7:24 trabalho», costuma dizer –, desta vez AF IMPRENSA_VISAO_MEIAPAG_BTV_.pdf 1 12/12/14 PM

sobre a mais típica expressão musical lisboeta. Tudo Isto é Fado reúne alguns célebres retratos de Gageiro, como o de Amália Rodrigues, aqui reproduzido, e imagens das ruas e casas que rimam com fado, nomeadamente as de Alfama. O livro foi lançado no Museu do Fado, no passado dia 11.

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Boca do Inferno

Ricardo Araújo Pereira

O evangelho segundo São Mateus Rosé

O menino oferece a vida eterna e a bebida gaseificada oferece sensação de viver, o que acaba por ser mais ou menos a mesma coisa, talvez com ligeira vantagem para a bebida megapixels e enviou uma mensagem para todos os seus amigos que dizia: «O Natal é a altura de ficarmos junto daqueles de quem mais gostamos. Mas eu abdiquei de tudo isso para ficar com a minha família. LOL!» E foi a primeira SMS engraçadota de Natal, e

todos os amigos de José a reenviaram para outros amigos, e assim sucessivamente. Depois, a estrela do menino começou a brilhar cada vez menos, porque mesmo por baixo da estrela estava um anúncio de uma bebida gaseificada com o Pai Natal, e o anúncio brilhava muito mais do que a estrela, e entre o cordeiro de Deus que tira os pecados do mundo e um idoso anafado que oferece presentes as pessoas preferem claramente o segundo, além de que o menino oferece a vida eterna e a bebida gaseificada oferece sensação de viver, o que acaba por ser mais ou menos a mesma coisa, talvez com ligeira vantagem para a bebida.

ILUSTRAÇÃO: JOÃO FAZENDA

N

aquele tempo, nasceu em Belém da Judeia uma criança chamada Jesus. Vieram do oriente uns magos, usufruindo de uma promoção de sete dias e oito noites na Terra Santa, em regime de meia pensão, que incluía passagem por Safed, cidade sagrada, e visita ao túmulo do rei David, por apenas 2.700 euros por pessoa. Quando chegaram a Jerusalém, perguntaram: «Onde está aquele que nasceu rei dos Judeus? Do oriente vimos a sua estrela e viemos adorá-lo.» O rei Herodes, ouvindo isto, sobressaltou-se, e com ele toda a Jerusalém. E reuniu os seus soldados e ordenou-lhes que matassem todos os varões menores de dois anos. E armou-os com um conjunto de facas Sun Tchi, que cortam ossos com um só golpe, e fatiam todos os tipos de carne e vegetais, e desmancham frangos com habilidade, e cortam até sapatos, e tudo por apenas 199 euros mais portes de envio, com oferta de um pequeno canivete, ideal para cortes delicados. Então os magos seguiram a estrela e encontraram o menino, e prostrando-se o adoraram, e ofereceram-lhe mirra, incenso e ouro, que o menino, querendo, podia trocar na Gold Cash por dinheiro vivo, pois a Gold Cash adquire o seu ouro usado avaliando-o até cerca de 25 euros por grama. Ora, o anjo do Senhor apareceu em sonhos a José, e disse: «Levanta-te, e toma a criança e a sua mãe, e foge para o Egipto, e ali fica até que eu te fale, e entretanto assiste à Música no Coração e ao Sozinho em Casa 2, porque a casa que irás habitar está equipada com um pacote de TV com 150 canais, que também inclui internet e telefone, e por apenas 49,99 euros por mês.» E José levantou-se, e fez como lhe disse o anjo, e pegou em seu smartphone com ecrã táctil de 5,5 polegadas e câmara fotográfica de 1,3

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