interstício_ um olhar na contemporaneidade

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intersticio um olhar na contemporaneidade


“Nós conservamos os sinais atuais do passado, controlamos o presente para satisfazer nossas imagens do futuro. Nossas imagens do passado são imagens presentes, continuamente recriadas.” LYNCH,

Kevin.

1975

Universidade Presbiteriana Mackenzie Faculdade de Arquitetura e Urbanismo - 2019 Giovanna Czumoch Silva 4142475-1 Orientada por Luciano Margotto e Lucas Fehr


intersticio um olhar na contemporaneidade


...Não quero o que a cabeça pensa Eu quero o que a alma deseja...” belchior


para sonia czumoch e sandro maciel


006


1 amago 1.1 pertinacias

/027

1.2 rota / 016

/027

1.3 lampejo 022

/027

1.4 LX factory 022

/027

1.5 [in]corporeo 022

/027

2.1 desdobramento

/027

2.2 reconhecer / subtrair

/027

2.3 opera ao

/027

2.4 nevoeiro

/027

2.5 restia

/027

2 em constru ao

interst cio | sumario

3 vislumbre do tempo

007

3.1 espa o / tempo

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3.2 acontecimento / memoria

/027

3.3 renova ao / contempla ao da poeira

/027

3.4 percurso / itinerancia

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4 ensaio

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5 considera oes finais

/027

6 bibliografia

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1

a m a go interst cio | amago 009

intersticio


1.1

pertinacias

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interst cio | amago

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1.2

rota

fotos respectivamente: Pinacoteca, São Paulo, Brasil - Nelson Kon. Sesc 24 de Maio, São Paulo, Brasil - Marcia Bulle. Sesc Pompeia, São Paulo, Brasil - Paullison Miura.

O ser humano, por natureza, vive em um meio; sendo um ser urbano contemporâneo habita numa realidade dotada de ruas, calçadas, edificações, praças; elementos que o conecta com o outro e tornam-se ferramenta para melhor reconhecimento cognitivo do espaço vivenciado. A cidade é como uma esponja que absorve todas as camadas, necessidades, dinâmicas, experiências do ser que a vivencia. Na contemporaneidade, o encharcamento de uma metrópole, como São Paulo, pode muitas vezes passar por despercebido na alteração da paisagem, justamente por tal dinâmica e diversidade tão imediatas. Entende-se por camadas os tempos do denominado território, sua história, suas transformações e os resquícios, inevitavelmente, deixados pelas marcas de um tempo que logo será entregue a outro. Levantando a bandeira da discussão atual de tais réstias tornarem-se resíduos. edificações essas que cumpriram importantíssimo papel na dinâmica urbana e cotidiana no passado porém hoje encontram-se descoladas em termos de uso e aproveitamento.

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Nada velho renasce alguma vez. Mas nunca desaparece completamente. Tudo o que já existiu sempre reemerge de forma nova.” AALTO,

Alvar

Enquanto pesquisa, o trabalho segue uma rota sensitiva. O combustível inicial da investigação baseou-se na significação, busca pelo valor, o afloramento de tal identidade do lugar e qual a troca que é possível e vantajosa ser estabelecida com as dinâmicas e necessidades da cidade contemporânea. Em Interstício avalia-se analiticamente e sensitivamente a cidade de São Paulo sob a ótica crítica por meio de três recortes: reconhecer, refletir e transformar. Num primeiro momento em 'âmago' discute-se a essência do valor e percepção da preexistência enquanto importância e potencialidade do ponto de vista contemporâneo. O


No segundo capítulo, 'em construção', se reconhece histórica e geograficamente a sobreposição temporal ligada à dinâmica da cidade e sendo ela a agente de quebra do desenvolvimento e consequente abandono do território estudado. Apesar de constatadas diversas estruturas patrimoniais nesse percurso da linha férrea foi no recorte escolhido a manifestação de interesse, ainda por se tratar de um marco da paisagem local também carrega consigo significados e valores arquitetônicos e sociais por hora adormecidos. A partir disso discute-se junto às novas políticas de ocupação as possibilidades e ações urbanísticas e projetuais para o local. Em 'vislumbre do tempo', busca-se trazer um diálogo de inquietações acerca do protagonismo do indivíduo enquanto instrumento de transformação do lugar e estabelecer diálogos com os dias atuais. Através de discussões teórico-práticas pretende-se estipular uma ponte entre contemporaneidade e preservação, pretendendo desmistificar a tensão que envolve essa possibilidade, a intenção não é elencar graus de maior ou menor importância, mas sim encontrar um equilíbrio entre história, arquitetura e dinâmica da necessidade urbana atual. Utilizando de elementos como o espaço (lugar/território) e a ocupação (movimentação) objetiva-se incorporar através da arte relações para tratar desses resíduos estabelecidos através da onda temporal, e por meio de quatro estados perceptivos do indivíduo: perspectiva, contemplação, itinerância e memória.

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percurso diário entre o ABC Paulista e o Centro de São Paulo revela diversas manifestações do âmbito fabril, antigamente categorizadas como impulsionamento econômico e social, contudo, hoje sombras monumentais que por um olhar desatento, passariam despercebidas. É a partir dessas pertinências que reflete-se sobre o impulso natural de dar ao indivíduo (corpo no espaço) a possibilidade de apropriação de áreas urbanas que ressignificariam o espaço público. Do ponto de vista artístico e abstrato também discute-se enquanto inquietação a ocupação do usuário e seu papel no resgate e releitura do lugar abordando as instalações contemporâneas e suas propostas de movimento e vivência. Portanto é diante desse território cada vez mais saturado, de espaços obsoletos e configurador de vazios, que se apresenta a face da transformação e significação.

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1.3

lampejo

foto ao lado: hora do almoço 1964 arquivo pessoal.

A vida tem dessas coisas, não é? Há esses pequenos momentos que justificam o meio, eu penso! É difícil de explicar, porque não é o momento em si, mas são os detalhes próprios nele que te pegam de surpresa e te surpreendem de tal forma que – minha nossa! – ficamos azoados. Era sábado de manhã quando fui atingida por essa consciência quase onírica. A manhã estava ensolarada, como muitas nesse outono fajuto. Mas tinha algo ali que não era rotineiro, uma energia talvez, uma nostalgia que me levou a perceber a efemeridade que nos é real. Nesse dia, eu tive a sorte, não existe palavra mais adequada que essa, porque foi sorte que me aconteceu de estar ali, na ocasião em que pude ver o brilho nos olhos de uma mãe que já foi criança, desenhando num pedaço de papel a saudade de seu tempo meninil e uma filha, tomada por ansiedade e curiosidade, ouvindo pacientemente como eram esses tempos de menina-mãe, na casa de seu bisavô.

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Atônita com toda a psiquê do momento, não me é claro todos os detalhes materiais, mas sei que existia uma casa e um quartinho, as cores já fogem à memória, mas sei que esse homem, avô-bisavô, em sua vida fabril de labuta trazia para casa os famigerados brindes, que todo bom trabalhador era digno de receber. Garrafas de bebida, na realidade, já que seu ofício era numa antiga cervejaria e as guardava nesse cômodo, que pobre coitado, foi vítima das peripécias dessa mãe saudosista e suas primas pentelhas em diversos momentos. Tanta coisa dita, que nem me dei conta do passar do tempo, quando vi, estávamos todas ali, paradas, no meio da antiga rua, da antiga casa, da infância dessa mulher-filha-neta-mãe, que por desenhos contou a história de muitos anos atrás dessa memória viva, mas de um lugar que nem se quer existe mais. Concluo como Bukowski disse uma vez, “a poesia é o que acontece quando nada mais pode” – E se isso, meus caros, não foi pura poesia, eu não sei o que mais poderia ser. A vida é bonita, não é?

escrito por Gabriela Camargo, em 27 de abril de 2019


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O segredo da cerveja Ê trabalhar com o tempo e a temperatura.� Daniel

Candia.

cafe e prosa. maio/2019


1.4

LX

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factory

Debruçada à beira do Rio Tejo, Alcântara é hoje uma freguesia com uma área que se estende por 4,39 km quadrados e com uma população de aproximadamente 13.900 pessoas, criada em 8 de Abril de 1770, com o nome de S. Pedro em Alcântara aquela que até então chamava-se freguesia de S. Pedro em Alfama. Exercia atividade rural desde sua fundação, com a chegada do século XIX, a dinâmica espacial de Alcântara foi marcada pela evolução da implantação industrial ao redor de Lisboa, começando junto à Ribeira de Alcântara. Este bairro acabou por ser absorvido e transformado pelo crescimento da área urbana e industrial e pela necessidade de ligações rodoviárias rápidas com os arredores transformando-se em uma centralidade. A partir de 1800 importantes indústrias se instalaram lá, entre elas a célebre Companhia de Fiação e Tecidos Lisbonense, área industrial de 23.000m2 e posteriormente ocupada pela Companhia Industrial de Portugal e Colónias, tipografia Anuário Comercial de Portugal e Gráfica Mirandela, hoje conhecida como Lx Factory. Após um longo período de abandono, a Cia de Fiação e Tecidos Lisbonense, foi comprada pelo setor privado e transformada num pioneiro conjunto de serviços, a Lx Factory. À princípio suas grandes lajes foram divididas em “salas” e alugadas à empresas em sua maioria de baixo custo e startups, deixando o seu térreo subutilizado nesse primeiro momento. Com o avanço do turismo, visibilidade e requalificação da região de Alcântara as dependências da fábricas passaram a ser exploradas. Hoje além da ideia inicial de serviços do setor criativo, tornou-se também um cenário de diversos acontecimentos nas áreas da moda, publicidade, comunicação, gastronomia, multimídia, arte, arquitetura e música, que vem gerando nova dinâmica para o bairro.


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fevereiro 2019

Alcântara, assim como grande parte de Lisboa, é um distrito de fácil chegada, convidativo ao caminhar, apesar de haver menos pessoas nas ruas do que nos bairros agitados do Baixa-Chiado ou Rossio, por exemplo. Geograficamente a região é marcada pela presença do Rio Tejo, local onde os resquícios fabris se encontram em sua maioria. Morfologicamente, Alcântara não se difere muito da linguagem lisboeta com seus largos e edificações sem recuo de porta na calçada, a não ser pelo fato de ter uma linguagem de repetição bem pontuada, dando idéia de serem antigas vilas operárias. A presença do bonde que corta as principais ruas da freguesia também é um marco de época e ainda promove a mobilidade de seus usuários. Alcântara traz consigo enraizado valores de urbanismo tipicamente europeus, com largos, ruas de escala humana agradável, mobiliário adequado, comércios que se estendem à calçada, valores que tornam o bairro um lugar possível de se viver a cidade. Para quem mora lá, são essas qualidades vistas com singeleza, e para quem não é essa naturalidade é tão contrastante que provoca uma série de questionamentos quanto ao aproveitamento da cidade e as relações que estabelecemos e/ou deixamos de estabelecer com o espaço diariamente. Em meio a este cenário encontra-se a Lx Factory. Junto aos questionamentos acima mencionados, o bairro vive um processo constante de requalificação urbana, trazendo atrativos e pessoas para a área, acontecimento que reflete diretamente na Lx Factory, a qual pulsa o turismo e a cultura da arte e gastronomia.

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fotos: LX Factory, Lisboa, Portugal, fev.2019 - arquivo pessoal.

O complexo da Lx é bastante dinâmico, instigante e convidativo. A cidade parece acontecer dentro do lote que teoricamente, é fechado, porém com a permissão da passagem de bicicletas, motos e veículos de passeio a rua principal torna-se partilhável e comum sem causar o confronto geralmente conhecido na nossa realidade cotidiana. Interessante pontuar a unidade e identidade do local, mesmo os edifícios sendo claramente de épocas e para finalidades diferentes se mostram como um organismo, alcançado por meio da atmosfera cooperativa e coletiva do lugar. Por outro lado, o ambiente comercial e de serviços traz intrínseco consigo um risco ao privativo, capitalista e ,nesse caso, turístico. Sendo assim, repara-se certa insuficiência na democratização do local, apesar


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de ser público, os espaços públicos em si são suprimidos, não há praças, mobiliários ou algum estímulo para o singelo “ficar”, tão somente o desdobramento desse complexo foi feito no ideal de “passagem”, sendo uma lástima do ponto de vista do “ocupar” tendo em vista tamanha potencialidade e significados que certamente demandam mais do que algumas passadas instantâneas para serem incorporados.


1.5

[in]corporeo

Em “from the future”, exposição realizada pela artista plástica italiana Esther Stocker, que já percorreu alguns países, principalmente na europa, sendo sua última parada em 2017 na Eslováquia com curadoria de Zuzana Pacáková, Stocker convida ao desenfado e estimula o espectador a complementar a dinâmica e determinar a profundidade da própria instalação por sua presença ou movimento, definindo assim a finitude do espaço dado e alterando a leitura da arquitetura que a abriga por meio da confusão. Enquanto premissa para a exposição a artista italiana estabelece dois pontos de partida, a arte (geometria) e a arquitetura (lugar). A obra de Esther é um experimento que leva o pensamento do usuário ao desenvolvimento ou ao colapso. através da ilusão de ótica produzida pelos vazios resultantes da sua composição geométrica “caótica” e ao mesmo tempo meticulosamente organizada, a presença e o movimento a codificam e determinam o lugar.

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A instalação como gênero de arte contemporânea começou a ser experimentada nos anos 60, impulsionada por Marcel Duchamp como uma busca de novas experiências espaciais. Experiências artísticas não apenas contemplativas, mas sensoriais, perambulando entre a terceira e quarta dimensão refere-se à uma interação indissociável entre o próprio espaço como meio e o fato a expressar, entre a inércia e o movimento. É através dela que Stocker busca integridade por meio de seus usuários e suas suposições de mundo às suas obras dotadas de incompletude e erros ilusórios planejados. A obra de Esther pulsa a conjunção da preexistência do lugar com a intervenção de suas obras de arte, de forma simbiótica e não dissociada. Demonstra uma maneira bastante singular de interagir com o espaço: a confusão como uma intenção quase obsessiva, não de alterar o espaço, mas de não torná-lo invisível diante da proposição. Segundo Esther, “Engano, ocultação e invisibilidade são alguns dos conceitos que relacionam arte e camuflagem”. Intervir e integrar, torná-o um organismo por mais que haja suas diferenciações. A intenção implícita é que essa “camuflagem” não se oculte mas sim revele-se através de muitas redes irregulares


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e expanda-se para fora da tela no espaço e invada o piso, o teto, paredes, convertendo-se em uma experiência corpórea tridimensional, guiada pelo desconhecido e incerto, instigando à descoberta e construção própria do espaço. Peculiarmente, o caráter fragmentário e desintegrador da arte de Stocker deveria produzir dissociação e protagonismo diante da arquitetura que se apresenta. Contudo, é justamente a incerteza, o desespero gerado pela ambiguidade que gera emoção e surpresa ao enxergar que o real resultado da obra da artista é justamente o invisível: o vazio. dono de toda infinitude homogênea, única e penetrável, só conquistada através da presença do usuário.

fotos: espaço abstrato de Esther Stocker, "from the future", Eslováquia, 2017 - Oliver Ottenschläger.



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031


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Pessoalmente, sou fascinada pelo modo como reconhecemos essas expectativas apenas quando elas não são cumpridas. Acima de tudo, sou fascinada por paradoxos formais, a lógica da contradição. O fato de a estrutura poder ser ordenada e desordenada ao mesmo tempo e a exatidão da geometria torna-se vaga às vezes.” Esther

Stocker.

“From the Future”. outubro/2016

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2

em c o nstr u a o 034


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intersticio


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037


2.1

desdobramento

mapa anterior: planta da cidade de São Paulo 1943 - the sao paulo tramway light & power co. Ltd.

038

Na virada do século aquilo que era terreno urbano não mais se confundia com o que era rural. As antigas paisagens de chácaras com vastas áreas verdes, que caracterizavam bairros como Liberdade, Cambuci, Bom Retiro, Mooca, Consolação, Santa Ifigênia, Pari e Higienópolis dão lugar a novos loteamentos e à indústria. Quanto às formas de “morar”, enquanto as altas classes buscavam cada vez mais os moldes europeus, a população mais humilde, que chegava em grande número para trabalhar nas indústrias, formam novos bairros operários, povoando regiões como Bela Vista, Mooca, Brás e Cambuci, por exemplo. No recorte, objeto desta pesquisa, pode-se dizer que os terrenos eram muito atrativos para a instalação de indústrias, assim como foram para a construção da estrada de ferro. Eram terrenos planos, baratos, por serem desprovidos de qualquer infraestrutura e não apresentarem boa qualidade para o plantio. Além disso, após a retificação do tamanduateí, em 1850, a ocorrência de enchentes se torna drasticamente menos frequente, e portanto os terrenos deixaram de ser alagadiços. As estações ferroviárias localizadas nesse delineado foram muito importantes para o direcionamento da ocupação e urbanização dos bairros ao seu redor. Na Mooca, a inauguração da estação foi em 1877 influindo diretamente em seu entorno imediato, junto a esse período dá-se início aos investimentos em infraestruturas de energia, esgoto, água e transporte. Muitas das grandes indústrias possuíam vilas nos seus arredores, sendo as mais emblemáticas nos bairros do Brás e Mooca, contendo contingente populacional significativo, contribuiam para o aparecimento de festas, costumes, ruas, traços muito específicos e particulares de cada implantação. Além disso, com a grande quantidade de loteamentos da cidade e com a chegada da burguesia cafeeira e industrial, intensifica-se a especulação imobiliária, consequentemente impulsionando a segregação espacial na cidade como um todo.


“as novas áreas urbanizadas localizadas a leste do rio Tamanduateí, no entanto, isolavam-se nitidamente do antigo núcleo urbano e dos bairros aristocratas da elite cafeeira; quer fisicamente, através da presença do rio; quer socialmente, através da imagem negativa dos bairros operários e ‘pobres’ frente ao sonho da cidade moderna cultivado pelos aristocratas.” M a n o e l a Rossinetti. FAUUSP, 2004, p.6

Até hoje, alguns dos bairros desenvolvidos a leste do Tamanduateí ainda preservam características interessantes e particulares dos antigos bairros industriais, com suas pequenas casas e grandes fábricas. Esse experimento tem a intenção, dentre outras, identificar quais características da área de estudo são relevantes e podem respaldar ações de intervenções a partir da memória que ainda as resguarda. A área do entorno da antiga cia. Antarctica Paulista se relaciona intimamente com o histórico da industrialização/desindustrialização das bordas da ferrovia e enxerga-se intervir nesse conjunto como a tentativa de transmitir os valores e características próprias de suas paredes e de sua inserção. Além disso, do ponto de vista arquitetônico trata-se de um marco na paisagem o qual deve ser lido, estudado e refletido individualmente e como apresenta-se na paisagem do conjunto, assim como em seu uso.

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RUFINONI,

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2.2.1

reconhecer

1892

1912

1914

“O prédio não tem estilo, é porém alto vistoso e todo construído em tijolos. Em frente fica-lhe o escriptorio, em bonito chalet e nos fundos passa-lhe a estrada de ferro Ingleza, com a qual tem comunicação. A fábrica ocupa uma extensão de 250 metros de frente por 100 metros de fundos e o escriptorio e mais dependências uma extensão de 80 metros por 120 metros. A parte mais alta do prédio tem 30 metros e a chaminé 36. O edifício principal , de cinco pavimentos, é dividido em tantas secções, quantas são as phases do fabrico”. (PINTO, Alredo Moreira. Fábrica de Cerveja Bavária)

Algumas das construções remanescentes do conjunto atual foram realizadas neste ano: a ampliação do prédio das adegas e o girador. O prédio das adegas é um dos mais altos do terreno, e tem destaque na paisagem até hoje, mesmo com outras construções também de grande porte.

A ocupação do terreno da fábrica de cerveja se torna cada vez mais densa. No ano de 1914 o terreno que havia sido comprado em 1911 recebe várias construções: nova chaminé, casa das caldeiras, casa de fabricação, local de breuagem, laboratórios, fábrica de gasosa e depósito de cevada. Das construções acima mencionadas somente há projeto de desenho arquitetônico o prédio de depósito de cevada , os demais encontram-se na implantação porém sem desenho específico.

040

sobre a producao Os galpões inauguram um novo modo de produção na fábrica. A tecnificação da produção trouxe novas perspectivas ao processo, o ganho em produtividade estava intimamente ligado à configuração espacial dos prédios. A era moderna do concreto armado e as caixilharias de vidro trouxeram mais versatilidade e ganho em qualidade de trabalho . sistemas de movimentação automática, como pontes rolantes, guindastes para elevação vertical e esteiras implanta a substituição de mão de obra e o trabalho repetitivo. A ideia era unir e organizar a produção em uma única construção genérica e passível a flexibilizações. Pode-se dizer que a fábrica era pensada como máquina. A organização em galpões portanto, configurava um conjunto de edifícios concebidos com um fim em si mesmo, atento às escalas do


01

anexo

1972-1983

É a partir desse momento que se iniciam as demolições para dar lugar a um grande prédio que abrigaria máquinas, processos de engarrafamento e caixotaria e oficina mecânica. Além da primeira chaminé do conjunto construída ainda para a fábrica de cerveja Bavária, foram demolidos: um galpão de depósito da década de 1910, e uma construção que ao longo de sua existência abrigou fábrica de gelo, depósitos e câmara frigorígena. Também para liberar espaço no terreno para construção de um outro grande prédio para engarrafamento e depósito de vasilhames, são demolidas algumas outras construções, dentre elas locais antes destinados à escritórios, depósitos e oficinas, além do primeiro girador do conjunto.

Ainda dando continuidade à construção de grandes volumes, dessa vez de dois generosos galpões, portaria e antiga fábrica de gelo, pequenos galões, portaria e antiga fábrica de ácido carbônico. Este é o momento em que encontram-se os últimos registros de projetos na prefeitura de São Paulo. Nota-se a presença de novos silos e nova adega, cujos registros precisos de sua construção não foram encontrados. Os quatro grandes silos e alguns depósitos e galpões também foram demolidos para que fossem possíveis essas novas construções.

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1949-1953

041

lugar físico em que está localizado e às suas relações com o espaço público e com o espectador externo, possuindo um caráter inegável de natureza propagandística voltada para seu entorno. Além disso, cumpria os requisitos funcionais básicos para sua finalidade, tais como uma melhor iluminação e ventilação dos espaços de trabalho, maior resistência à cargas e maior segurança contra incêndios.

“Eu quero tudo sob o mesmo teto. Se você puder projetar como eu quero, diga e faça”. (LEWIS, D.L. Ford and Kahn. In: Michigan History, n.64, set/out 1980, p. 17.)


2.2.2

subtrair

e

o

permanencer

Trata-se da última construção do núcleo antigo da fábrica da Antárctica, é muito relevante para o conjunto, este é o prédio que chama mais a atenção daqueles que circulam nos trens da CPTM, pois fica ao lado da ferrovia e da chaminé, também construída em 2014 para servir a casa das caldeiras. construtivamente é composta por vigas metálicas em todos os andares. quanto aos pilares, pode-se dizer que os da casa de fabricação foram projetados em cimento armado, o concreto, por sua vez, aparece no piso e fundações. nos cortes encontrados na prefeitura, indica-se também que a armação do teto do edifício é em ferro, já nos desenhos do projeto nenhum material é indicado, mas também não são representados os tijolos aparentes, hoje presentes em todas as fachadas, formando uma linguagem cromática diferente daquela das demais construções do núcleo antigo da fábrica.

042

1

Na planta de 1935, é construído um local para “breuagem”, que ao que tudo indica é o processo de fermentação da cerveja, anexo à construção de 1914. tal processo é realizado em tanques, o que reflete na configuração interna do edifício, que, hoje em dia, resguarda grandes vãos circulares onde ficavam os tonéis. ambas as construções se comunicam em seu interior, tendo também plantas semelhantes.


Sabe-se, a partir da análise das plantas encontradas em arquivo, que, pelo menos desde o ano de 1983, essas adegas já existiam no terreno. atualmente, a construção é descoberta, deixando à vista a estrutura composta de diversos pilares em concreto que deveriam suportar os tonéis de cerveja para conservá-la. O efeito gerado na escala do pedestre nessa região do conjunto da fábrica é muito interessante. apresenta alto potencial de ocupação e contingência de espaço público permeável.

3

As conclusões dessa construção advêm da sutura entre fotos, desenhos do início do século e registro de medidas. localizada ao norte do terreno, na planta de 1908 encontra-se uma construção no local, posteriormente intitulada de fábrica de licores. a estrutura indicada em projeto é constituída de alvenaria estrutural e pilares em concreto, além de estrutura de madeira na cobertura. a fachada em tijolos com as janelas de verga curva encontra-se sufocada ao lado de construções de maior porte, não estabelecendo uma ligação harmônica, os galpões colam-se à pequena construção gerando uma relação conflituosa entre volumes. para construção de prédios cada vez maiores os antigos foram sendo demolidos, a fábrica de licores é a exceção que ainda permanece no conjunto e destaca-se por sua distinção aos galpões, ainda que tenha recebido intervenções ao longo da ocupação.

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Essa construção é a que mais se destaca na paisagem, e foi também a predileta nos registros fotográficos do conjunto cia Antárctica Paulista. o grande escrito “Antárctica” na fachada atualmente bege clara, com caixilhos e ornamentos arredondados da Av. Presidente Wilson, podia ser visto à distância. a maior parte da construção possui caixilhos somente no último pavimento do prédio, pelo fato de sua antiga função exigir isolamento térmico. juntamente com a antiga portaria que fica ao lado, a qual compõe boa parte da fachada da rua, e sua presença é marcante, mesmo em uma rua de largura considerável. o prédio é feito em tijolos, tendo suas paredes mais espessas próximas ao chão e diminui ao decorrer dos andares. no projeto de ampliação de 1912 foi previsto um elevador e escadas, que juntos compõem um volume destacado do prédio.

043


2.2.2

subtrair

5

e

o

permanencer

1/4 Os dois galpões de engarrafamento são muito próximos à ferrovia, o que facilitava o despacho dos produtos já nos primeiros anos de funcionamento da fábrica. o mais baixo dos galpões tem dois pavimentos (17m) e o mais alto com três (22m). os galpões têm suas fachadas alinhadas. a fachada sul do galpão que antes fora mais extenso não foi refeita com o mesmo cuidado após parte do prédio ter sido demolida. a fachada paralela à ferrovia, porém, encontra-se em melhor estado em alvenaria aparente.

2/4 044

Havendo a necessidade de ampliação, em 1949, o galpão do engarrafamento foi estendido; além dessa função, o prédio passaria a abrigar também uma oficina mecânica e um espaço para encaixotamento. a implantação seguiu o alinhamento à ferrovia, as cores seguiram o padrão cromático preexistente, contudo a linguagem arquitetônica é bastante distinta, o desenho já não era tão delicado e as caixilharias eram mais generosas devido aos novos modelos estéticos e fabris da época.

3/4 Em 1953 ampliou-se ainda mais a área de engarrafamento, é reservado o alinhamento à linha férrea, contudo agora com uma leve inclinação devido ao formato do terreno esteticamente assemelha-se à primeira ampliação, contudo sua disposição interna é mais flexibilizada. essa foi uma grande massa construída inserida ao conjunto.

4/4 Trata-se dos últimos registros encontrados de projeto e são de 1972. esses galpões serviriam para depósito de produtos e vasilhames, todos em estrutura de concreto e telhas de fibro-cimento, configuram-se em planta livre, contudo sua linguagem como se apresenta é conflituosa aos demais prédios.


sobre patrimonio

“Não é uma questão de modelos ou de métodos de intervenção. Trata-se de continuar a construir cultura, reunindo nos locais certos tudo quanto reconstitui a sua densidade e mantém a sua complexidade, aos mais altos níveis, enquanto, com o tempo, os materiais e as necessidades continuam a mudar.” (Eduardo Souto de Moura sobre o projeto de Santa Maria do Bouro, 2001).

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“Um projeto de intervenção em um sítio histórico deve levar em conta a dicotomia hoje existente entre a força do patrimônio construído e a contemporaneidade mutante à sua volta. Ou seja, enxergar as condicionantes apresentadas em diálogo com o significado impresso em suas réstias. Este enclave de patrimônio histórico deve ser ativado em favor da comunidade pelo seu potencial urbanístico; deve colocar a história como aliada na construção da cidade contemporânea e, por outro lado, fazer com que o patrimônio reviva em bases atuais de relacionamento, usos e necessidades.” (Eduardo Souto de Moura sobre o projeto de Santa Maria do Bouro, 2001).

045


2.3

opera

ao

Nessa investigação, foi feito estudo da operação urbana consorciada bairros do tamanduateí, que tem por objetivo gerar transformações urbanísticas estruturais, melhorias sociais e econômicas e valorização ambiental de determinadas regiões do Município por intermédio de Projeto de Intervenção Urbana (PIU). Cada Operação Urbana Consorciada deve ser aprovada por lei específica, que define um conjunto de transformações, esperadas para determinado território da cidade, relacionadas a melhorias em transporte e mobilidade e à qualificação do habitat (oferta de parques, equipamentos de saúde, educação, cultura, habitação de interesse social, etc). Os recursos públicos necessários para a implantação das melhorias previstas na lei da operação urbana são arrecadados principalmente com a venda dos Certificados de Potencial Adicional de Construção – CEPAC, que viabilizam a utilização de potencial adicional de construção no território da própria operação urbana, ou seja, trata-se de uma ação de cunho público/ privado. Entre as diretrizes propostas para esse trecho que configura a linha férrea, segue abaixo as que mais influenciarão nas ações de projeto trabalhadas nesse experimento: 046

reorganizar as dinâmicas metropolitanas promovendo o desenvolvimento econômico da cidade A localização privilegiada de conexões ferroviárias e rodoviárias macrometropolitanas e a proximidade com a região do ABCD induzem a manutenção de territórios produtivos no seu entorno. As áreas industriais e logísticas existentes serão preservadas e receberão incrementos em sua infraestrutura de mobilidade, favorecendo fluxos de carga na cidade. Na escala local, o estímulo ao uso misto com a predominância de comércios e serviços é um importante fator de viabilidade de desenvolvimento e oferta de empregos. Agrega-se a estes, o incentivo à economia criativa, com a reconversão de edifícios de interesse histórico da Mooca e do Ipiranga. es tratégia adquirir edifícios tombados, e promover restauro e reconversão, para uso voltado à economia criativa; No


setor mooca, incentivar usos mistos comerciais aproximando emprego e moradia nos corredores de centralidade. preservar o patrimônio e valorizar as iniciativas econômicas e culturais

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A área compreende um conjunto de presenças históricas distintas. Numa ponta, está o bairro da Mooca, uma matriz industrial da cidade vinculada à história de crescimento e pujança econômica de São Paulo que ainda detém muitos dos testemunhos de suas origens. Destacam-se ali os imóveis tombados da Rua Borges de Figueiredo, os galpões industriais ao longo da ferrovia e outros exemplares distribuídos pelo bairro. Na área da Operação Urbana Consorciada encontram-se situações específicas: na região do Cambuci, o Outeiro da Glória; no Parque da Mooca, o loteamento projetado por Jorge de Macedo Vieira; na região do Ipiranga e do Sacomã, os vestígios do antigo Caminho do Mar e monumento do Ipiranga, representação de um momento histórico nacional. As ações da OUCBT buscam preservar e enfatizar essas presenças históricas, em ações pontuais de recuperação e projetos urbanos de recomposição paisagística.

047

estra tég ia destinar 4% dos recursos para preservação de bens tombados; Adquirir imóveis tombados para restauro e reconversão de usos, em especial ligadas à economia criativa. A conformação de um sistema integrado de espaços públicos também é um tema em larga discussão na área dessa Operação Urbana, através de seus previstos parques pretende-se configurar maior caráter público, por meio disso também lidar com os problemas de drenagem e ilhas de calor presentes na região. Constatar o vigor das zonas industriais da área de projeto determinou a preservação desses territórios produtivos e dos empregos que geram, além de incrementar a vocação logística deste estratégico território. O entendimento da atividade econômica na área de projeto permitiu também a identificação dos corredores comerciais, que concentram os serviços dos bairros, e a prospecção de edificações do patrimônio fabril capazes de abrigar atividades ligadas à economia criativa, segmento inédito na área que poderá beneficiar-se das redes de trem e metrô que ligam a região aos quatro cantos da cidade.

fotos a seguir: ensaio 'abandonados sp', por Bernardo Borges.








3.4

nevoeiro

...como criar uma sensação de turbulência permanente em um meio estável?" (Rem Koolhaas, “Atlanta”, in Rem Koolhaas e Bruce Mau, 1997, op. cit., p.847) A provocativa pergunta de Rem Koolhaas em seu livro com Bruce Mau (S, M, L, XL. Nova Iorque, 1997) inaugura nesta investigação a discussão acerca dos questionamentos da cidade contemporânea, em que a noção de mudança e transitoriedade naturaliza-se enquanto cerne da construção e desconstrução da paisagem física e psíquica da cidade, produzindo sua justaposição. No espaço físico atual não há ponto de vista, uma perspectiva de onde se possa incorporar a configuração do sítio. O espaço, portanto, vai se reformulando, à medida que se percorre. O olhar, em movimento, vai costurando os diversos fios, concebendo sempre uma de outra maneira o lugar. A urbe atual possui esse espírito, dotada de uma nova textura de condutores, em que acelera, se desdobra. Um espaço complexo é estabelecido pela sobreposição dos dispositivos. O ímpeto provoca sucessivas defasagens, coisas se partem e param, outras são expostas a uma força desagregadora. O tecido urbano “se desfia”, cicatrizes marcam a cidade . Uma fragmentação que transforma a nebulosa urbana numa sucessão de locais desconectados.

054

As transformações mais radicais na nossa percepção estão ligadas ao aumento da velocidade da vida contemporânea, ao aceleramento dos deslocamentos cotidianos, à rapidez com que o nosso olhar desfila sobre as coisas. Uma dimensão está hoje no centro de todos os debates teóricos, de todas as formas de criação artística: o tempo. O olhar contemporâneo não tem mais tempo.” PEIXOTO,

Nelson

Brissac.

Paisagens Urbanas. p.209

Esses esvaziamentos constituem a cidade, os espaços entre e desmaterializados são mecanismo de expansão urbana. Ao percorrer, a cidade deixa um vácuo atrás de si. A morfolo-


gia urbana tradicional - centro/periferia - é subvertido, o que está à margem passa a ser central, situação oposta às zonas de extremo adensamento aos espaços saturados configurando sobreposições de inscrições e acúmulos de coisas e detritos. Como afirma Nelson Brissac em Paisagens Urbanas (3 ed. 2004), “Em vez do muro, o vazio, em vez da inércia, a aceleração”.

“A ironia é que, enquanto antes se recorria à arquitetura para transmitir certeza (às corporações), agora se recorre a ela para dar lugar à mudança, e para ser veículo através do qual a mudança é, por sua vez, realizada e expressa”. (Juan Antonio Cortés, “delirio y más”, El croquis n.131-132. Madrid:2006, p.32.) De forma psíquica essas disjunções e impercepções do outro e da configuração contemporânea influem diretamente no pensar a cidade. A contingência do pensamento é ser lugar. Não há pensamento sem a experiência de lugar. A aceleração atual e desenraizamento das camadas que se sobrepõem mas não penetram o solo ferem essa lógica. A velocidade aumenta o empobrecimento dos lugares, reduzindo as pistas das arquiteturas, seu meio é o não-lugar do transitório. “Do novelo emaranhado da memória, da escuridão dos nós cegos, puxo um fio que me aparece solto. Devagar o liberto, de medo que se desfaça entre os dedos. É um fio longo, verde e azul, com cheiro de limos, e tem a macieza quente do lodo vivo. É um rio. Corre-me nas mãos, agora molhadas.” (PROTOPOEMA - trecho do discurso de José Saramago na academia sueca ao receber o Prêmio Nobel de Literatura, dez/1998)

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Os espaços de omissão na narrativa urbana, intervalos no seu histórico contínuo, os locais ‘entre’ não são somente passivos ou mortos. Eles fomentam rearticulações no desenho urbano, pelo resgate e conexão de elementos afastados. A cidade se constrói no meio. sobrepondo-se mais e mais na tentativa dessas interpolações.

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056

Do ponto de vista dessa pesquisa, imensas zonas abandonadas coexistem com áreas de ocupação intensa e desordenada, causando descolamentos e fragmentações na leitura e vivência urbana. Hoje todo retrato de cidade mostra não o estado dos lugares, mas a rapidez de seu desaparecimento. Há uma aceleração da imagem urbana. Os vários períodos estilísticos sucedem-se tão depressa que se convertem em sequências do desmoronamento geral do arquitetônico. Portanto, a partir disso discute-se ideias e inquietações acerca dos diálogos entre o paradigma contemporâneo e histórico, que alimentam essa investigação.

lilith Anselm Kiefer


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Esta visão horrível da expansão urbana foi inspirada pela visita de Kiefer a São Paulo, no Brasil. Fiação de cobre emaranhada sinaliza a quebra da comunicação. A cidade está mergulhada em uma névoa apocalíptica, que Kiefer criou espalhando poeira e terra através da pintura, depois queimando partes de sua superfície. Segun-

do a mitologia hebraica, Lilith foi a primeira esposa de Adão, um espírito sedutor e demoníaco no ar. Na pintura de Kiefer, Lilith parece trazer destruição do ar aos prédios modernistas de Oscar Niemeyer. (Galeria Tate, texto retirado do site https:// www.tate.org.uk/, acesso em abril/2019)


3.5

restia

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pelo

olhar

de

Bernardo

Borges


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3

vi s l u m br e do tempo 074


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075

intersticio


3.1

espa

o

/

corpo



foto anterior: parangolé - São Paulo, Brasil, 1964 - Hélio Oiticica.

Intervir em uma preexistência localizada em uma área há muito consolidada reverbera em inúmeras escalas da cidade. A proposta de novos usos e dinâmicas altera não somente os fluxos e acessos, mas também influi em funções das atividades urbanas, provoca a discussão das escalas de intervenção e produz espaços inéditos na cidade estabelecendo relações. As construções derivadas dos períodos fabris, em especial no cenário das áreas centrais da São Paulo atual, carregam consigo questionamentos, entre eles a condição de espaços residuais, sendo aqueles de usos e ocupações passadas que deixaram de cumprir a função para as quais originalmente foram projetados. Áreas que se tornaram desprovidas de sentido, não compatíveis às dinâmicas diárias contemporâneas, caracterizando-se em sua maioria como inoportunas, agregando um caráter negativo ao seu entorno imediato. Uma área residual que se mantém na paisagem metropolitana atualmente possui uma força representativa de resistência e de movimentações especulativas.

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No caso da área estudada há ainda a discussão acerca do Patrimônio Histórico, condição que estabelece limites nas intervenções, contudo não deve ser vista como ferramenta redutora nas ações projetuais e urbanas, mas sim como oportunas potências para levar o contemporâneo à história da cidade. Portanto a contingência de recodificação destaca a força que essas áreas possuem de, em algum momento, retornarem à atividade cotidiana do usuário enquanto respostas contemporâneas de espaços públicos e usos diversos, agregando novas possibilidades de convívio, uma vida urbana mais integrada e reintroduzindo a área economicamente na cidade. Um território hoje marcado pela degradação e o abandono, reflete no total afastamento e desinteresse do usuário em ocupar e vivenciar o lugar. Ao pensar em fatores causadores dessa realidade pode-se analisá-los de uma maneira histórica, política, desenvolvimentista e suas resultantes corpóreas. O período de mecanização e tecnificação do mundo que adveio da era industrial transformou exponencialmente a relação do usuário com a cidade em decorrência das crescentes necessidades produtivas da nova era que levavam também às interações comportamentais entre os indivíduos. Isto gerou


questões políticas e antropológicas evidenciadas nas produções arquitetônicas que pensam e limitam espaços.

Traducao da Autora de, SOLA - MORALES, 2002

Solà-Morales cita Foucault para abordar a ideia da política do poder nessas arquiteturas que tendem a limitar e ditar o comportamento do indivíduo. Ou seja, refere-se a procedimentos antropomórficos que produzem pautas e condutas reguladas por critérios de poder e de eficácia social, refletindo em ações projetuais que conduzem à redução e inibição da apropriação espacial democrática. Pelo ponto de vista pós-moderno, depara-se também com a condição do tempo, da velocidade, a condição suprimida da experiência e vivência. Como questiona Richard Sennett em uma passagem sobre a atual condição americana: Se um cinema suburbano é um lugar propício ao desfrute da violência no conforto do ar condicionado, a transferência geográfica das pessoas para espaços fragmentados produz efeito muito mais devastador, enfraquecendo os sentidos e tornando o corpo ainda mais passivo. (SENNETT, Richard. 1994)

Foucault, sin embargo, analizó sobre todo las arquitecturas que, como máquinas operativas, controlaban la eficiencia del sistema y deslindaban a quienes se mostraban remisos al mismo. El panóptico como máquina de vigilancia y de control de los cuerpos constituyó, para Foucault, el referente a través del cual explicar toda una serie de arquitecturas - fábricas, prisiones, hospitales, manicomios, colegios, etc - dedicados a manipular los cuerpos, a dominarlos y a moldearlos en función de una determinada lógica productiva. (Texto original, SOLÁ MORALES, 2002)

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Foucault, no entanto, analisou acima de tudo as arquiteturas que, como máquinas operantes, controlavam a eficiência do sistema e demarcavam aqueles que lhe eram remissos. O pan-óptico como máquina de vigilância e controle dos corpos constituiu, para Foucault, a referência para explicar toda uma série de arquiteturas - fábricas, prisões, hospitais, asilos, escolas, etc - dedicados à manipulação dos corpos para dominá-los e moldá-los de acordo com uma certa lógica produtiva."

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Ou seja, expõe um cotidiano em que a vida se consome em esforços tendentes a negar, minimizar, conter e evitar conflitos. As pessoas fogem dos confrontos e demonstram forte desagrado ao serem alvo de reivindicações e censuras por erros cometidos. Através do tato o indivíduo arrisca-se a perceber algo ou alguém como estranho e a tecnologia permite evitar esse risco. Nesse cenário o corpo protagoniza a inércia, a realidade atual permite a rejeição de seus espaços públicos, enaltecendo a cultura do automóvel, o individualismo e o mergulho na dimensão virtual. Experimentalmente, a contemporaneidade também tende a desbravar e resgatar valores e escalas para o bom convívio e compactação das cidades. O valor do convívio, do coletivo, está mais intrínseco em cada indivíduo do que nas políticas públicas tradicionais. Como conclui Richard Sennett em seu livro Carne e Pedra:

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Nosso entendimento a respeito do corpo que temos precisa mudar, a fim de que em cidades multiculturais as pessoas se importem umas com as outras. Jamais seremos capazes de captar a diferença alheia enquanto não reconhecermos nossa própria inaptidão. A compaixão cívica provém do estímulo produzido por nossa carência e não pela total boa vontade ou retidão política. (SENNETT, Richard. 1994) Dessa forma, a cidade precisa ser projetada para pessoas, de dentro para fora, reconhecendo as necessidades e ações no outro tanto quanto em nós mesmos, criando um pensamento de ideal coletivo que refletirá diretamente e indiretamente nas políticas públicas. Ao discutir o fator corpóreo no espaço contemporâneo experimental, o confronto, a apropriação, diretamente ligam-se a ideia de movimento e dos sentidos, que formulam-se e reformulam-se diariamente dependendo dos nossos estados corporais energizantes. A oscilação da nossa movimentação é fruto direto de fatores externos que refletem no nosso corpo de maneira motora. Projetualmente, esses fatores podem induzir as ações do indivíduo de forma que sendo os fatores externos da cidade agindo sobre esses resíduos da fábrica, ou então a


própria fábrica agindo enquanto fator externo para a ação da pessoa, construindo quadros variáveis de perspectiva.

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Portanto, tendo em vista a individualidade do movimento, mas também o seu poder cívico de estabelecer relações com o local, é possível apontar o movimento, mesmo que mutável, como instrumento formador do espaço e é através dele que serão estabelecidos possíveis critérios projetuais para a leitura e ressignificação da Fábrica da Antárctica.

A Burbuja de Los Deseos é uma instalação do grupo Plastique Fantastique. Abrange o poço do pátio renascentista da CCCC em Valencia, na Espanha, e a transforma em algo íntimo e onírico, onde os visitantes podem sussurrar seus desejos e vontades.

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Não há arquitetura sem violência; não no sentido de destruição ou brutalidade, mas sim de intensidade das relações entre os indivíduos e os espaços que os cercam.” TSCHUMI, Bernard, 1996


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parangole helio oiticica


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Hélio, abandona o quadro e adota o relevo. Criava seus núcleos penetráveis,que o levou à arte ambiental, dando vazão ao seu temperamento lúdico e hedonista. Ao criar o Parangolé, que ele chamou de "antiarte por excelência", comunicava-se como uma pintura viva e ambulante. O Parangolé é uma espécie de capa (ou bandeira, estandarte ou tenda) que só com o movimento de quem o veste revela plenamente suas cores, formas, texturas e mensagens como “Incorporo a Revolta” e “Estou Possuído”. A cor assim torna-se elemento estrutural da obra, que agora permite a "vivência da cor", afirmando o fim da pintura como representação. O espaço plástico, assim, não mais coincide com o quadro e a experiência suprasensorial abre o indivíduo para um conhecimento interior que influi em seu comportamento. (HÉLIO Oiticica. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras. São Paulo: Itaú Cultural. Acesso em: abril 2019)

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3.2

acontecimento

/

memoria

[vazio] va.zi.o - adj El espacio urbanoterritorial contemporâneo configura una estructura denditríca de desarrollos intermitentes y sincopados que favorecen el protagonismo de los espacios de omisión: ausencias de lo construido, espacios abiertos o incisiones visuales; terrenos residuales, espacios de borde o grandes reservas de omisión, que operan “en negativo”; vacíos, pues, susceptibles de propiciar un tratamiento - y una instrumentalización - del paisaje más singular, flexible y eficaz. (pág 605 - Diccionario Metapolis Arquitectura Avanzada - Manuel Gausa e Vicente Guallart)

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“La relación entre la ausencia de uso, de actividad y el sentido de liberdad, de expectativa es fundamental para entender toda la potencia evocativa que los terrain vague de las ciudades tienen en la percepción de la misma en los último años. Vacío, por tanto, como ausencia, pero también como promesa, como encuentro, como espacio de lo posible, expectación.” (SOLÀ-MORALLES, Ignasi, 2008)

O espaço urbano territorial contemporâneo configura uma estrutura ampla de desenvolvimentos intermitentes e suprimidos que favorecem o protagonismo dos espaços de omissão: ausência do construído, espaços abertos ou incisões visuais; terrenos residuais, espaços de borda ou grandes reservas de omissão que operam “em negativo”; vazios, portanto, suscetíveis à transformação - e uma instrumentalização - da paisagem mais original, flexível e eficaz. (Tradução da autora, de Diccionario Metápolis de Arquitectura Avanzada, 2000. P.605)

Nesta pesquisa, o vazio apresenta-se como um diálogo de dualidades, uma atmosfera entre espaço e tempo, concreto e abstrato que guiam as intenções e valores intrínsecos a elas. Na cidade contemporânea, os vazios mostram-se como uma interrupção de uma leitura contínua, de uma codificação rítmica, mas também como de um tempo cronológico ou de uma aplicação. O território aqui tratado como vazio é resultante de processos históricos, funcionais e inevitável disfunção da dinâmica urbana no decorrer dos anos, hoje visto como um local descolado da performance da cidade contemporânea. A discussão da preexistência entra aqui no campo abstrato da ideia de vazio, sua disjunção temporal ocasionada por sua forma e função na realidade em que está instaurada leva a uma perspectiva desconexa à expectativa de cidade atual. Essa falta de identificação não interfere somente no campo visual do indivíduo, ela afeta de maneira brusca em outras diversas relações que são estabelecidas cotidianamente com o âmbito da cidade, como, por exemplo, o caminho, a ação de se movimentar. A intermitência desse vínculo resulta em uma relação esvaziada de pertencimento do indivíduo com o espaço público. A relação entre ausência de uso, de atividade e o sentido de liberdade, de expectativa, é fundamental para entender toda a potência evocativa que os terrain vague das cidades têm na percepção dela nos últimos anos. Vazio, portanto, como ausência, mas também como promessa, como encontro, como espaço do possível, expectativa. (Tradução da Autora de, SOLÀ-MORALLES, Ignasi, 2008)


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building cuts matta-clarck

foto anterior: 'our unnerving city', 1926 - Marianne Brandt. fotos ao lado direito respectivamente: 'abandonados sp' por Bernardo Borges; building cuts_Gordon Matta-Clark 1975.

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O conceito de terrain vague destacado por Solà-Morales refere-se ao território indefinido, mas também destaca a visão otimista da possibilidade, a esperança, aflorando a expectativa em cima da capacidade do que esses espaços possam vir a se tornar. Dentro dessa visão, aproximando do recorte que fomenta essa pesquisa, trata-se dos interstícios resultantes das ocupações preexistentes, um vazio combustível e indeterminado, dotado de potencial e contingência de ser. Interstício, termo sagazmente explorado pelo arquiteto Rem Koolhaas, surge como lampejo à discussão desses locais potenciais. Para ele, a discussão envolta à liberdade arquitetônica não se resume ao conflito direto de transformação na cultura vigente, mas sim à atuação em seus próprios poros, minando assim seus sistemas de controle, ou seja, a busca pela liberdade mas não pela liberdade no sentido universalista do termo, mas como sustentação de autonomia dentro da própria estrutura, política e espacial, onde opera. E nesse contexto preexistente, os vazios “entre” apresentam essa oportuna liberdade.

A atuação em vazios pode ser compreendida como uma proposição transgressora que possibilita apropriações eventuais, acontecimentos, em uma ação mais livre de performance através dos espaços. Em outras palavras, deixar uma área vazia, pode se tornar uma opção alheia ao abuso, ao bombardeio e ao ataque do consumismo aos sentidos, significados e mensagens. O vazio requer a supressão de toda a opressão, no que a arquitetura tem um papel importante.” K O O L H A A S , R e m . Em entrevista a Bregtje van der Haak. em 5 de julho de 2002


“Pensamos mais em vazios metafóricos, brechas, sobras de espaços, lugares que não foram desenvolvidos… Por exemplo, os lugares para onde se amarrar os cadarços do sapato, lugares que são somente interrupções em nosso movimento diário.” (MATTA-CLARCK, Gordon, 2000)

intersticio interst cio | vislumbre do tempo

Desconstruindo os espaços da arquitetura moderna, Gordon Matta-Clark encenou intervenções metafóricas em edifícios abandonados ou condenados com o intuito de questionar a autonomia e a lógica econômica pós 1950, em que os edifícios foram rapidamente lançados em detrimento de sua função pública, utilizando desses projetos para instaurar o apontamento para o desaparecimento de capítulos não documentados da memória coletiva e, consequentemente, da história e da vida desses lugares. Criando a “anarquitetura”, grupo que transmutava a energia criativa individual em ritual compartilhado, ocuparam instalações industriais não utilizadas e as transformaram em espaços participativos, não-hierárquicos, gerando um circuito alternativo de inserção das práticas consideradas experimentais à época.

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poema ao lado: movimento, 1956 - Décio Pignatari.

Associando à fala de Koolhaas ideia de acontecimento, de evento, que é uma experimentação verdadeiramente contemporânea, chega-se a Bernard Tschumi, o qual indissociavelmente trata desses conceitos no âmbito da arquitetura e da antropologia. O termo acontecimento é interpretado não só como ações, mas como eventos do pensamento, adquirindo um efeito crítico ao momento de modificação e confrontamento. Possível indução do questionamento ou problematização de uma estrutura onde se passa uma ação dando chance de que outra e diferente montagem venha a acontecer, o que vai ao encontro com outro conceito que é o de apropriação que relaciona-se à ideia de pôr em xeque as condicionantes dos espaços, de trazer à tona a natureza complexa deles, ocupando-o, pois a participação ativa não se faz sem tensão. Portanto, segundo Tschumi, “não há arquitetura sem acontecimento”, é necessário algo que, por sua imprevisibilidade ou seu desvio, transgrida as regras e referências preestabelecidas, exprimindo uma condição dinâmica por meio do inesperado que o movimento da ação humana possa incitar.

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O movimento é a ação ou o processo, e ainda o ato ou uma maneira particular de mover-se – que em um poema ou em uma narrativa, configura um progresso ou incidente, como o desenvolvimento de um lote. O movimento, na arquitetura, é a qualidade de ter a abundância do incidente.” P A D O V A N O , 2001

Nesse cenário observa-se a condição de transitividade dos espaços “entre” para tratar da tensão, do paradoxo e da indeterminação próprios à complexidade: entre alta e baixa cultura, realidade, ilusão e ficcionalidade; entre sujeito e objeto, pensamento e experiência, forma e antiforma; entre passado, presente e futuro, lugar e não lugar; entre o programado e o


não programado, o público e o privado, a ordem e o caos, e compreendido em todos esses aspectos a presença do cerne formador e autor da cidade, o corpo.

TSCHUMI, 1996

Bernard,

Por fim, como exercício dessa discussão, busca-se articular através dos interstícios e dos acontecimentos dele derivantes o encontro do espírito humano com a substância física e evocativa da matéria em si enquanto componentes formadores do espaço público e seu diálogo com a memória.

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Os corpos extraem [carve] toda sorte de espaços novos e inesperados, através de movimentos fluidos e erráticos. A arquitetura então é somente um organismo engajado em um constante intercurso com os usuários, cujos corpos vão de encontro às regras de pensamento arquitetônico cuidadosamente estabelecidas. Não surpreende que o corpo humano tenha sempre sido um suspeito para a arquitetura: pois que sempre colocou limites às mais extremas ambições arquiteturais, o corpo perturba a pureza da ordem arquitetônica.”

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lacera ao do papel saburo murakami

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Descrição e análise das obras de arte: A laceração do papel de Saburõ Murakami envolveu o artista atirando-se através de uma série de enormes telas de papel kraft. O papel esticado produzia sons altos e explosivos enquanto Murakami passava por cada folha o mais rápido possível, liberando e revelando suas propriedades materiais. Esta peça incorpora o desejo dos artistas Gutai de ir muito além dos limites da tela para produzir encontros entre o espírito humano e a substância da matéria em si. Murakami reiterou Laceration of Paper várias vezes com a última apresentação em 1954.


3.3

renova ao / contempla ao da poeira

"El carácter de la imagen personal del tiempo es crucial para el bienestar individual, así como para que tengamos éxito a la hora de dirigir los cambios ambientales y para que el entorno físico exterior desempeñe un papel en la construcción y el mantenimiento de esa imagen del tiempo. Por lo tanto, esta relación es recíproca. Siendo así, una imagen deseable es aquella que celebra y amplía el presente y que aún establece conexiones con el pasado y el futuro. La imagen debe ser flexible, acorde con la realidad exterior y, sobre todo, en sintonía con nuestra propia naturaleza biológica." (LYNCH, Kevin, 1975) 092

Compreende-se a ressignificação enquanto fio condutor da proposta, ou seja a renovação de um edifício e do lugar; E a partir disso o surgimento ou adaptação de elementos que estabeleçam uma relação lógica e coerente com a preexistência. O processo de intervenção em espaços já consolidados pode se manifestar em diferentes escalas no âmbito da arquitetura. O crescimento deliberado e orgânico das metrópoles contemporâneas leva à busca inconsciente do homem atual pelo avanço e desenvolvimento e em alguns casos a ressignificação derivará da subtração, vislumbre ou até mesmo retomada de algo já instituído no passado. O diferencial encontra-se no estabelecimento de novo sentido e não somente na condição de sobreposição ou adição, para isso é necessário real aproximação e compreensão da situação e do espaço, levando à um aperfeiçoamento da paisagem de maneira a assistir às deficiências identificadas e se manter conexo à memória do local. Com efeito, há arquiteturas que precisam se acondicionar a situações adversas, espaços mínimos, pedaços de cidade comprimidos por construções existentes em que os parâmetros para seu desenvolvimento são ditados por tais singularidades. A decisão conceitual é apontada, precisamente, pela natureza do lugar, pelo seu espaço resultante de fatores não só construtivos, mas também sociopolíticos ao longo de muitos anos de formação. Ou seja, assimilar o lugar além do objeto físico, bem como pelo espaço de tensão, de confrontos

O caráter da imagem pessoal do tempo é crucial para o bem-estar individual, assim como para que tenhamos êxito na hora de dirigir as mudanças ambientais e para que o entorno físico exterior desempenhe um papel na construção e na manutenção dessa imagem do tempo. Portanto, essa relação é recíproca. Sendo assim, uma imagem desejável é aquela que celebra e amplia o presente e que ainda estabeleça conexões com o passado e o futuro. A imagem deve ser flexível, condizente com a realidade exterior e, acima de tudo, em sintonia com nossa própria natureza biológica. Traducao da Autora de, LYNCH, Kevin, 1975


de interesses, residuais ou até mesmo de desarrimo. Todas as perspectivas são válidas. Projetar é captar e inventar o lugar a um só tempo, em uma mesma ação.

A dinâmica atual tende ao forte interesse pela compreensão do presente unicamente, o passado revela-se irrelevante sempre que a descrição do presente lhe proporcione uma análise imediatamente melhor ou mais concisa sobre em que se basear a ação. Porém a experiência cultural da grande cidade é formada por um tecido humano do qual a sobrevivência dos significados se alimenta. Portanto a imagem deve ser flexível, condizente com a realidade exterior mas, acima de tudo, em sintonia com a nossa própria natureza biológica e nossa bagagem. “Caminhava perdido pelo terreno do qual havia extraído todos os vestígios do passado… [mas, quando tudo ocorreu?] Estava assombrado ao ver que um lugar também podia mudar… As pessoas, na verdade, não mudam muito, pensava eu, só envelhecem. Não era como este lugar que não só havia mudado, até que seja reconhecível, mas ele ganhou um novo vigor no processo. Este contraste me intrigava e não podia evitar a pergunta: e o que se passará comigo? Como serei eu ao final?” (Soseki, Natsume. Grass by the Wayside) Arquitetonicamente, uma situação com condicionantes pré estabelecidas apresentam alguns compromissos diferentes do que quando a situação está completamente aberta. O edifício consolidado, traz contingências de soluções interessantes e apropriadas para a realidade quando pensadas nas dinâmicas atuais. Além disso, o fundo preexistente permite respostas que são formalmente ricas e estão cheias de contrastes.

interst cio | vislumbre do tempo

Há três elementos básicos que necessitam estar em equilíbrio para uma concepção mais democrática e unificada da intervenção: renovação, memória e usuário. Uma vez que se renuncie as evidências físicas do passado seria como negar a vida, pois toda coisa, todo fato e toda pessoa é “histórica”, a trajetória designa espessura à poeira do tempo intrínseca nos elementos e em cada indivíduos, sendo assim cerne formador do espírito e reconhecimento.

093


bunker 599 RAAAF arch

094

Socialmente, quando um lugar muda rapidamente ou descaracteriza-se demasiadamente, as pessoas já não sabem como se comportar naquele espaço. Hão de gastar energia em tentar eleger uma nova forma de conduta na construção de uma vivência coletiva. Portanto, quando uma modificação é deliberada, os novos assentamentos sofrem uma descontinuidade, e é a continuidade social útil para a reconstrução da conduta em um marco do passado. Sendo assim, conserva-se os sinais atuais do passado, controla-se o presente para satisfazer as imagens do futuro. As imagens do passado são imagens presentes, continuamente recriadas. Politicamente, a arte da direção da mudança deve levar em conta o efeito acumulativo dos processos de transição. Deve entender o papel da cronometragem e da estratégia, a peculiar vinculação existente entre a mudança física e a mudança social, e o modo como a mudança física pode impulsionar uma mudança social. Deve aprender a fazer da mudança algo legível e aceitável. Há de dominar a técnica da planificação em que objetivos e situações variam perpetuamente. Deve ser capaz de medir e representar a mudança e de avaliar seus custos e benefícios acumulativos. A política pública deve desenvolver instrumentos que permitam enfrentar a mudança e aliviar o choque da transição.


intersticio | vislumbre do tempo

O bunker foi construído em 1940 tendo enquanto função abrigar soldados durante os bombardeios da segunda guerra mundial e a intervenção do estúdio holandês RAAAF revela os pequenos espaços escuros no interior que normalmente estão escondidos. O processo de restauro da paisagem antes da implantação do Bunker foi minuciosamente feito com uma serra de fio de diamante usada para cortar uma seção reta através do centro da estrutura monolítica e um guindaste levantando-a para criar uma fenda estreita. O projeto questiona políticas sobre monumentos e busca tornar esta parte única da história holandesa acessível e tangível para uma grande variedade de visitantes. (fotos: RAAAF arch, Holanda, 2010)

095


3.4

percurso

/

itinerancia

A condição urbanística contemporânea traz a circulação de bens e o ir e vir de pessoas enquanto sentido intrínseco às cidades. Estar em movimento promove a formação do espaço físico e psíquico enquanto produção de lugares, admitindo-se a construção da identidade atrelada aos vínculos e condutas das pessoas com o entorno. Além do estado corpóreo do mover-se há a questão da transitoriedade do espaço urbano atual e todas as suas circunstâncias as quais possibilitam o intercâmbio e neutralidade nesse território marcado pelo nomadismo e sedentariedade, como destaca Francesco Careri:

096

Nas dobras da cidade, cresceram espaços em trânsito, territórios em transformação contínua no tempo. É nesses territórios que hoje se pode superar a milenar separação entre espaços nômades (vazios) e espaços sedentários (cheios). Hoje a cidade nômade vive dentro da cidade sedentária, nutre-se dos seus resíduos, oferecendo em troca a sua própria presença, como uma nova natureza que pode ser percorrida somente se for habitada.” CARERI,

F r a n c e s c o . 2013

O ato de transpassar o espaço nasce da indispensabilidade natural de mover-se em prol da sobrevivência humana. Mas uma vez satisfeitas as exigências primárias, o caminhar transformou-se numa fórmula simbólica que tem permitido que o homem habite o mundo. O percurso foi a primeira ação estética que penetrou o território do caos, construindo a estética da arquitetura e da paisagem, indicando, ao mesmo tempo, o ato da travessia (o percurso como ação do caminhar), a linha que atravessa o espaço (o percurso como objeto arquitetônico) e o relato do espaço atravessado (o percurso como estrutura narrativa). Sendo assim um conceito que perambula entre o ato físico, construtivo e reflexivo do espaço.


Tem-se observado nos últimos anos a retomada da ocupação dos espaços públicos nas metrópoles, resgatando os valores de coletividade e apropriação recriando a identidade negligenciada pelos modelos urbanos individualistas e assépticos da modernidade. As pessoas voltam a tomar as ruas e a sentir-se parte delas, transformando esse território em componente de seu cotidiano vivenciado.

“A rua, que eu acreditava fosse capaz de imprimir à minha vida giros surpreendentes, a rua, com suas inquietações e seus olhares, era o meu verdadeiro elemento: nela eu recebia, como em nenhum outro lugar, o vento da eventualidade.” B R E T O N , A n d r e . Les pas perdus. Paris, N.F.R. 1924

A cidade é construída pela carne; A arquitetura, por mais intuitiva que seja, jamais será capaz de prever a movimentação de seus usuários. Por mais esforços e energia que se possa depositar na construção de tal cenário a errância é o cerne itinerante e formador dos lugares urbanos. Portanto, a busca dessa pesquisa se respalda nas possibilidades, contingências e acontecimentos enquanto norteadores numa proposta de apropriação e ressignificação.

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É inerente ao perscurso a ideia de errância e eventualidade configurando os espaços de tensão e acontecimentos garantindo assim sua caminhabilidade, como destaca Jeff Speck em seu livro Cidade Caminhável de 2002: Caminhabilidade é, ao mesmo tempo, um meio e um fim, e também uma medida. Enquanto as compensações físicas e sociais do caminhar são muitas, talvez a caminhabilidade seja muito mais útil, já que contribuí para a vitalidade urbana, além de ser o mais significativo indicador dessa vitalidade. Garanta uma caminhabilidade adequada e muito do restante virá a seguir. (SPECK, Jeff. cidade caminhável, 2002)

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“Bolhas” é o nome do workshop realizado pelos alunos do IED Madrid durante a semana de 25 de fevereiro a 1º de março de 2013, sob a supervisão de Marco Canevacci (Plastique Fantastique). O objetivo do workshop foi compreender a construção efêmera como objeto escultural, itinerante e de apropriação, bem como considerar os conceitos de percurso, de público e privado, de consciência corporal, seu uso, habitabilidade e função no espaço urbano. (fotos: Equipe IED, Madrid, Espanha. 2013)




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planta do térreo

praça auditório / restaurante / lojas / feiras / mercado / cervejaria / livraria / lojas e praça da chaminé


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planta do primeiro pavimento

mirante / bar / co-working / mezanino gastronômico / praça das adegas exposição da cervejaria / acesso albergue / acesso estação


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planta do segundo pavimento

co-working / apartamentos / albergue


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finais


A investigação busca um olhar através da justaposição da cidade e seus vazios, não só na forma literal da palavra mas no seu latente esvaziamento, e ao mesmo tempo transbordamento, de significados. Sua proposta, apesar de parecer uma incisão que alastra-se no lote em que atua, é concebida na intenção primeira de instrumento que endereça acessos e promove conexões priorizando o olhar ao preexistente. Seu desenho nasce não como forma máxima de expressão mas como resposta dessa articulação que se pretende ao lugar e o exercício do percurso enquanto prática estética. Interstícios, podem ser concebidos em toda a configuração da urbe contemporânea, detêm, principalmente, o contingente de reconectar esses territórios desconexos e ‘perdidos’ da cidade, disseminando também a força das ações humanas nesse contexto de significação e resgate do espaço urbano em que se vive.

intersticio | consideracoes finais

Insterstício, é uma tentativa de explanar a condição do indivíduo enquanto formador do significado da paisagem e do lugar. O ser urbano a partir das ações busca através da vivência compreender as redefinições possíveis para espaços e usos e suas contingências, traçando um perfil de descoberta e errância à cidade contemporânea.

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bibliografia

BRETON, André. Les pas perdus. Paris, N.F.R; 1924) CARERI, Francesco. WALKSCAPES: o caminhar como prática estética. Brasil: Gg Brasil, 2013. CORTÉS, Juan Antonio, “delirio y más”, El croquis n.131-132. Madrid:2006

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