!
! " # " $ % " &"
' (
" ) ) * & " *
" & " + , - .+ ##/012*3456
$ % " 7 8 0 ( 1 *345 # 1
*3,419 :* 3 4 1 ; 6 0 1 #+ 9%245
0 /,8,< :/ , 8 < ( 6
! " # $ !% ! & $ ' ' ( $ ' # % % ) % * % ' $ ' + " % & ' ! # $, ( $ -. / -. / . 0 ! 1 . ( 2 -. . / 1 % % %
% -3 % -3 % ! 4 5 -. -. % % 4 4 6 $$$ 7 8 8 -3 " 9 5 1 & ) * : 6 +) * ! ; !& <!=% <<>?> & % @ 8 6 A B ! * & ( C / D " % E F G ) % H % ?I>> 6 @ 6 J ?I>K 1 & ) * : 6 +) " G H & ?I>K
2
Para Sheyla e Thadeu Filho que juntamente comigo, percorreram esse longo caminho.
3
Prefácio A sociologia, quando orientada pela bússola do rigor analítico e assentada em bases empíricas, contribui para o enriquecimento do debate público. Um efeito não diretamente buscado desse tipo de empreendimento intelectual é o próprio fortalecimento da sociologia como campo específico de objetivação do mundo social. Esses dois resultados são especialmente valiosos em determinadas áreas temáticas nas quais preconceitos e lugares-comuns substituem o debate racional. Esse é o caso, em especial, do amplo leque de questões comumente identificadas sob a rubrica de ³YLROrQFLD H VHJXUDQoD S~EOLFD´ O livro que o leitor agora terá a oportunidade de desfrutar é um bem-vindo exercício de análise sociológica sobre o universo prisional brasileiro. Os referentes empíricos, levantados a partir de um ousado trabalho de campo realizado no sistema prisional do Rio Grande do Norte, fundamentam observações argutas e proposições substantivas sobre a vida na prisão. Para alcançar esse nível de elaboração, Thadeu Brandão foi além do feijão com arroz tradicional das análises dos sistemas prisionais comumente empreendidas no âmbito das ciências sociais brasileiras. Não se contentou em reproduzir assertivas funcionalistas a respeito do lugar da prisão no mundo moderno. Tampouco se limitou a reproduzir as consignas soi disant críticas e desconstrucionistas que enfeitam as obras da moda do abolicionismo penal. O seu exercício foi o de aliar o rigor da pesquisa com a interpelação sem mesuras acríticas das abordagens canônicas que fornecem as chaves interpretativas geralmente mobilizadas para o entendimento do fenômeno prisional moderno. Para alcançar tal desiderato, Thadeu Brandão dialogou vivamente com teorias que procuram articular os níveis micro e macro da ação social. Ao seguir essa trilha analítica, o autor conseguiu identificar, por exemplo, as complexas teias articuladas pelos detentos para lidar com os desafiadores ambientes e situações de um sistema prisional que escora a sua frágil legitimidade na negação de humanidade aos sujeitos que caem em suas malhas.
4
Em um país no qual já nos aproximamos do estarrecedor número de 1 milhão de detentos, é, ironicamente, um objeto sociológico per si o fato de o nosso sistema prisional referenciar ainda tão poucos trabalhos de sociologia crítica. Talvez essa ausência, em parte, explique o elevado grau de populismo penal que assoma o nosso limitado debate público. O que faz com que, entre nós, fórmulas bestializadas como aquelas da pena de morte ou da menoridade penal não apenas encontrem ecos na chamada opinião pública, mas, o que é ainda mais doloroso para todos quantos nos orientamos pela ampliação da cultura dos direitos humanos, transforme-se em bandeira eleitoral garantidora de dividendos eleitorais. Diante desse quadro, é quase balsâmica a leitura de um trabalho com este que aqui se apresenta. Uma análise rigorosa, orientada pelo princípio de não se alegrar e nem lamentar os fatos do mundo, mas dotá-los de inteligibilidade transformando-os em objetos da discussão pública.
Prof. Dr. Edmilson Lopes Júnior Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais - UFRN
5
Sumário
1. Introdução ..........................................................................................
006
2. Sistema Prisional ...............................................................................
030
2.1. Origens e desenvolvimento histórico ...........................................
031
2.2. O sistema prisional no RN e a Penitenciária de Alcaçuz .............
045
3. Habitus precário e sociabilidade violenta ........................................
053
3.1. O habitus numa economia simbólica ...........................................
054
3.2. Habitus precário e violência ........................................................
061
4. Disciplina e interação social em Alcaçuz.........................................
076
4.1. Prisão como espaço de poder e disciplina....................................
077
4.2. Prisão como espaço social............................................................
092
5. Redes Sociais e Sistema Prisional ....................................................
122
6. Considerações finais ..........................................................................
146
6. Referências .........................................................................................
151
6
1 Introdução Aqui está um homem que vai se consumindo no presídio, da mesma forma que se extingue a luz de uma vela; e lá está outro que jamais pudera imaginar que a vida no presídio fosse assim tão agradável, uma alegre reunião de espíritos divertidos; existem também desses tipos na face da Terra (Recordações das Casas dos Mortos Fiodor Dostoievski).
7
As prisĂľes sempre foram pensadas como entidades e instituiçþes fechadas, ou seja, entes coerentes por si sĂł. Muitas vezes tambĂŠm foram percebidas como que distanciadas das vĂĄrias esferas do social, funcionando como em um ÂłvĂĄcuo sociolĂłgico´. Fugindo destas perspectivas, importa aqui pensar a prisĂŁo nĂŁo apenas como um mundo Ă parte, mas integrado de certa maneira, Ă sociedade a qual ela pertence. Na literatura, temos alguns exemplos fundamentais na discussĂŁo da prisĂŁo e do cĂĄrcere, notadamente apontamos as obras de Dostoievski Âł5ecordaçþes da casa dos PRUWRV´ H Âł0HPyULDV do &iUFHUH´ GH *UDFLOLDQR 5DPRV. Tanto em um autor, quanto em outro, descortina-se um universo disciplinar, cheio de interaçþes e de personagens que caracterizam, muitas vezes, aquele espaço. Verdadeira morada dos mortos-vivos como caracterizou o escritor UXVVR 2X FRPR OHPEURX *UDFLOLDQR 5DPRV ÂłPXQGR KRUUtYHO GH WUHYD H PRUWH´ S Dostoievski, em meados do sĂŠculo XIX, apresenta a prisĂŁo como um mundo UHJLGR SRU QRUPDV ÂłGLVFLSOLQDV KRUiULRV HVSHFtILFRV XPD FDVD SDUD PRUWRV YLYRV uma vida j PDUJHP H KRPHQV GH YLYrQFLD PXLWR GLIHUHQWHV´ S Ele aponta a falta de privacidade, os conflitos, os conchavos, os grupinhos, a ociosidade e a tendĂŞncia dos presĂdios de reproduzir a criminalidade e o comĂŠrcio interno como elementos sempre presentes. Mesmo para os dias atuais, o escritor russo e suas memĂłrias sĂŁo impressionantemente contemporâneos. Muitos desses ingredientes que Dostoievski vivenciou e descreveu foram observados em nossa pesquisa. Com outras cores e contextos, obviamente, mas tendo em vista que a casa dos mortos vivos, em muitos aspectos, pouco mudou. Busca-se neste trabalho, romper com o paradigma que compreende a prisĂŁo como instituição social isolada. A prisĂŁo nĂŁo mais pensada enquanto unidade fechada e separada do mundo social, mas integrada a ele. Nesta perspectiva, voltamo-nos para a teoria das redes sociais. Pensar as relaçþes sociais que se desenvolvem no espaço prisional, mas tambĂŠm aquelas que as ultrapassam, bem como aquelas que as antecedem. Em geral, os trabalhos na ĂĄrea apontam para redes de parentesco e de vizinhança que se transpĂľem do mundo exterior para a prisĂŁo, assim como redes que
8
se formam dentro da prĂłpria prisĂŁo. Ă&#x2030; em busca deste universo que pautamos nossa pesquisa. Pois, ao considerarmos a influĂŞncia dos padrĂľes de relação sobre as situaçþes sociais, afastamo-nos tanto de anĂĄlises estruturalistas e holistas quanto de perspectivas individualistas e atomistas. A anĂĄlise das redes nos permite adotar uma visĂŁo relacional, embora nĂŁo neguemos a importância das condiçþes econĂ´micas objetivas e nem das estratĂŠgias e comportamentos individuais. Nosso intento ĂŠ superar a velha dicotomia entre estrutura e ação que marca a maior parte das interpretaçþes sobre a temĂĄtica. O Sistema Prisional e CarcerĂĄrio Brasileiro, originĂĄrio do sĂŠculo XIX, ĂŠ fruto das influĂŞncias das teorias criminalistas surgidas neste perĂodo, onde se configurou a perspectiva mundialmente dominanWH GH YHU R FULPH FRPR XPD ÂłGRHQoD´ R FULPLQRVR FRPR XP ÂłGRHQWH´ D SHQD FRPR XP ÂłUHPpGLR´ H D SULVmR Fomo um ÂłKRVSLWDO´ &$59$/+2 ),/+2 YLVmR HVWD FRQVLGHUDGD KXPDQLWiULD TXH VH confrontava com as prĂĄticas penais anteriores as quais se pautavam no suplĂcio como forma penal e castigo (FOUCAULT, 1995). No mundo Ocidental e capitalista, as primeiras penitenciĂĄrias modernas vĂŁo surgir nos Estados Unidos nas primeiras dĂŠcadas do sĂŠculo XIX. Os dois modelos principais foram: o solitary confinement, onde os presos eram vigiados 24 horas por dia, separados em um sistema celular, absolutamente afastados do mundo exterior e tambĂŠm uns dos outros; e o silent system, onde os apenados eram submetidos ao isolamento celular noturno, com trabalho no perĂodo diurno e onde faziam refeiçþes em comum. Tanto um quanto outro IRUDP LQVSLUDGRV HP XP ÂłSDQRSWLVPR´ DEVROXWR: vigilância permanente e total (CARVALHO FILHO, 2002, p. 24-25). No Brasil, uma vez instituĂdo o modelo, faltava estrutura fĂsica e organizacional para dar conta da questĂŁo da população carcerĂĄria. JĂĄ naquela ĂŠpoca, fins do sĂŠculo XIX e inĂcio do sĂŠculo ;; ÂłFRQVROLGD-se o sentimento de que o paĂs QmR WUDWDYD DGHTXDGDPHQWH VHXV SULVLRQHLURV´ RQGH HVWH VLVWHPD FKHLR GH SUREOHPDV estruturais, jĂĄ era visto como ineficiente e desumano (CARVALHO FILHO, 2002, p. 40). Ao longo do sĂŠculo XX, no decorrer de boa parte de nossa histĂłria republicana, o sistema penitenciĂĄrio brasileiro foi se consolidando principalmente Ă margem dos
9
regimes ditatoriais que, volta e meia, inflavam a população carcerária. Com projetos de grandes complexos penais, o modelo foi se instaurando, principalmente nas grandes metrópoles como São Paulo e Rio de Janeiro. Nas últimas décadas (1970 a 2010), ± marcadas por significativas mudanças estruturais (econômicas, sociais e políticas), que terminaram por afetar a ação e composição do Estado Moderno como um todo (GIDDENS, 2004, p. 198), mas, principalmente, o Estado brasileiro ± a sociedade brasileira vem assistindo a uma escalada constante de revoltas e rebeliões cujos epicentros são os presídios e cadeias que não mais dão conta de seu papel atribuído por esse mesmo Estado e sociedade. O Brasil vivencia, portanto, uma verdadeira guerra em suas ruas. Pensando o conceito de guerra a partir do número de mortes violentas, verificamos uma das maiores catástrofes humanas da história, maior que a soma de perdas de vidas humanas em muitas guerras. Temos aqui um tipo de sociedade com considerável número do que Soares, Miranda e Borges denominaram de vítimas ocultas de violência grave ou letal, causando na população um verdadeiro medo crônico. Pois, ³os brasileiros vivem com medo, talvez tanto quanto as populações que estão localizadas em áreas assoladas com frequência por terremotos e erupções, furacões, tornados e tsunamis. Porém, trata-se de uma forma mais generalizada e diluída´ (SOARES ET AL, 2006, p. 53). Experimenta-se no Brasil um sentimento socializado de medo, aliado a um sentimento de insegurança cotidiana cada vez mais presente. Devido a isso, temos o surgimento de ³novas formas de sociabilidade e novos padrões de percepções que refletem valores, hábitos e comportamentos típicos de uma sociedade marcada pelo individualismo e pela desconfiança mútua´ (SOARES ET AL, 2006, p. 67). Essa sensação de insegurança liga-se também ao crescimento do tráfico de drogas e do tráfico ilegal de armas (BRITO; BARP; 2005). A filósofa Hannah Arendt aponta que o desenvolvimento tecnológico dos implementos da violência chegou a um ponto em que nenhum objetivo político pode corresponder ao seu potencial de destruição ou mesmo, justificar seu uso em um conflito. A guerra perdeu seu fascínio. A referência à capacidade humana de se
10
autodestruir com suas armas nucleares ĂŠ nĂtida. Isso desvenda, na visĂŁo de Arendt, a QRomR GH TXH D YLROrQFLD VHPSUH QHFHVVLWD GH ÂłLPSOHPHQWRV´ DILQDO D ÂłVXEVWkQFLD GD ação violenta ĂŠ regida pela categoria meio-ILP´ $ YLROrQFLa, em geral, ĂŠ meio e nunca fim (ARENDT, 2010, p. 18). Ligada a uma lĂłgica de meios-fins, a violĂŞncia liga-se Ă força enquanto tĂŠcnica de controle social e persuasĂŁo. Como bem resumiu a autora Âł$ IRUPD H[WUHPD GH SRGHr ĂŠ Todos contra Um; a forma extrema da violĂŞncia p 8P FRQWUD 7RGRV ( HVVD ~OWLPD QXQFD p SRVVtYHO VHP LQVWUXPHQWRV´ ARENDT, 2010, p. 58). Pensar a violĂŞncia ĂŠ dar conta de algumas categorias que a constituem ou com ela se relacionam. Primeiramente temos o poder. Poder ĂŠ uma habilidade humana para agir em concerto. Pertence a um grupo enquanto este permanece unido. NĂŁo ĂŠ DOJR LQGLYLGXDO PDV FROHWLYR /LJDGR DR SRGHU H[LVWH R YLJRU (VWH Âłp D SURSULHGDGH inerente a um objeto ou pessoa e pertence ao seu FDUiWHU´ (ARENDT, 2010, p. 6162). Outro elemento ĂŠ a força: ligada Ă violĂŞncia por indicar energias liberadas, fĂsicas ou sociais. JĂĄ a autoridade pode ser investida em pessoas ou em cargos. Caracteriza-VH SHOR ÂłUHFRQKHFLPHQWR LQTXHVWLRQiYHO GDTXHOHV D TXem se pede que REHGHoDP QHP D FRHUomR QHP D SHUVXDVmR VmR QHFHVViULDV´ IDEM, p. 61-62). A violĂŞncia se distinguiria de todos esses outros fenĂ´menos pela sua instrumentalidade. Aproxima-se do vigor exatamente por ser uma ferramenta que visa aumentĂĄ-lo. Mas, o mais comum ĂŠ a aproximação entre a violĂŞncia e o poder, mas nĂŁo significa que estes sejam a mesma coisa. Se poder e autoridade, numa perspectiva weberiana, se entrelaçam, a autoridade pode usar da violĂŞncia como instrumento, mas apenas quando a estrutura de poder estĂĄ intacta. ViolĂŞncia nĂŁo ĂŠ algo bestial ou irracional. Deve ser pensada como uma categoria social. O homem, mesmo submetido a condiçþes extremas de desumanização, como os campos de concentração nazistas ou os gulags soviĂŠticos, nĂŁo se torna semelhante a animais. O uso da violĂŞncia, tal qual realizado, ĂŠ realização humana, sempre. Este uso, para ser eficiente, necessita de organizaçþes e de grupos. Homens sĂłs nĂŁo possuem poder suficiente para usar a violĂŞncia com algum sucesso. Por isso que ÂłD YLROrQFLD IXQFLRQD FRPR R ~OWLPR UHFXUVR GR SRGHU FRQWUD FULPLQRVRV
11
RX UHEHOGHV´ LVWR p FRQWUD LQGLYtGXRV TXH VH UHFXVDP D ³VHU VXEMXJDGRV SHOR FRQVHQVR GD PDLRULD´ $5(1'7 S Desta maneira, Ê o poder a essência da autoridade e do governo, e não a violência. Esta, em sua natureza instrumental depende da orientação e da justificação pela finalidade que se almeja. O poder, como lembrou Max Weber (1996), necessita apenas de legitimidade. A violência, aponta $UHQGW S ³SRGH DWp VHr MXVWLILFiYHO PDV QXQFD VHUi OHJtWLPD´ *RYHUQRV SHOR VHX PRQRSyOLR GD YLROrQFLD utilizam esta para dominar. Mas como instrumento (meio), nunca como fim. Daà que, a violência não depende de números ou de opiniþes, mas de implementos, e, (...) os implementos da violência, como todas as ferramentas, amplificam e multiplicam o vigor humano. Aqueles que se opþem à violência com o mero poder rapidamente descobrirão que não são confrontados por homens, mas pelos artefatos humanos cuja desumanidade e eficåcia destrutiva aumentam na proporção da distância que separa os oponentes (ARENDT, 2010, p. 70).
5RJHU 'RXGRQ SURS}H D GHILQLomR GH Âłhomo violens´ SRLV SDUD HOH D violĂŞncia ĂŠ uma caracterĂstica constitutiva do ser do homem. Aponta a hipĂłtese de uma função estruturante essencial da violĂŞncia, pois, nĂŁo hĂĄ qualquer aspecto da realidade humana que nĂŁo esteja a ela associado. A estrutura do homo violens assinala SDUD D DJUHVVmR H UHYHOD TXH R KRPHP p XP ÂłVHU FRQWUD´ 1mR DSHQDV WRGD violĂŞncia ĂŠ do outro, mas, tambĂŠm o outro ĂŠ violĂŞncia, pelo simples fato de ser outro, pelo simples fato de ele ser, existir. Portanto, o outro inflige uma dupla violĂŞncia: a da alteridade como tal e a da alteridade que tenta identificar a si, soterrando a identidade. JĂĄ segundo Michel Wieviorka a violĂŞncia nĂŁo ĂŠ a mesma de um perĂodo a outro, por isso, as transformaçþes ocorridas a partir dos anos 1960 e 1970, sĂŁo tĂŁo VLJQLILFDWLYDV TXH HODV MXVWLILFDULDP H[SORUDU D LGpLD ÂłGH XP QRYR SDUDGLJPD GD violĂŞncia, que caracterizaria R PXQGR FRQWHPSRUkQHR´ 1997, p. 05). Esse novo paradigma se pautaria na compreensĂŁo da violĂŞncia como nĂŁo apenas um conjunto de SUiWLFDV REMHWLYDV PDV WDPEpP ÂłXPD UHSUHVHQWDomR XP SUHGLFDGR TXH SRU H[HPSOR grupos, entre os mais abastados, atribuem eventualmente, e de maneira mais ou PHQRV IDQWDVPiWLFD D RXWURV JUXSRV JHUDOPHQWH HQWUH RV PDLV GHVSRVVXtGRV´ IDEM,
12
p. 07). DaĂ que a violĂŞncia tenha se modificado, pois se percebe nesta nĂŁo mais o fenĂ´meno que se apresentaria de mais concreto, ou seja, de mais objetivo, mas as percepçþes que sobre ele circulam, nas representaçþes sociais que o descrevem. No mesmo sentido, a violĂŞncia, na medida em que se inscreveria no prolongamento de problemas sociais considerados clĂĄssicos, ou que nĂŁo questionam as modalidades mais fundamentais da dominação, pode ser suscetĂvel de ser negada ou banalizada (GUIDDENS, 2001). Neste caminho, a globalização ou mundialização ĂŠ um fenĂ´meno que contribuiu para a mudança de paradigma acerca da violĂŞncia hoje. A violĂŞncia se alimenta, ao menos indiretamente, das desigualdades e da exclusĂŁo social que se reforçam com o mercado global e seus elementos: a livre iniciativa, o rigor orçamentĂĄrio e o livre comĂŠrcio. Ao mesmo tempo ĂŠ sensĂvel Ă s mudanças que tornam, de certa maneira, a troca mais Âłimportante do que a produção e que ameaçam o trabalho, tanto do ponto de vista de seu significado central, enquanto sentido da H[SHULrQFLD KXPDQD FRPR HQTXDQWR IDWRU HVWUHLWDPHQWH DVVRFLDGR DR FUHVFLPHQWR´ (WIEVIORKA, 1997, p. 17). A violĂŞncia chega a se inscrever no prolongamento da fragmentação cultural que a mundialização da economia encoraja. Ela nĂŁo contribui apenas para homogeneizar culturalmente o planeta, tambĂŠm possui o efeito de estimular processos reativos defensivos e identitĂĄrios. Verdadeiras fraturas sociais e culturais sentidas em todo o mXQGR FRPR IHQ{PHQRV ÂłQDWXUDLV´ Srincipalmente no LQWHULRU GDV VRFLHGDGHV PDLV PRGHUQDV RQGH VH SUHVHQFLD ÂłD PLVpULD D H[FOXVmR H DV formas de discriminação social e racial que caminham geralmHQWH MXQWR´ ,'(0 S 17). Outro elemento que ajuda a compreender o fenĂ´meno da violĂŞncia ĂŠ a questĂŁo do individualismo. Segundo ainda Wieviorka, o indivĂduo moderno deseja participar GD PRGHUQLGDGH H GH VHXV DWUDWLYRV ÂłDWUDYpV GRV PHLRV GH FRPXQLFDomR H das solicitaçþes de um consumo de massa cujo espetĂĄculo estĂĄ GRUDYDQWH PXQGLDOL]DGR´ (1997, p. 23). Tudo isso como consumidor. Igualmente, o indivĂduo quer ser plenamente reconhecido como sujeito, construir sua existĂŞncia prĂłpria. Esses aspectos estĂŁo ligados Ă violĂŞncia na medida em que o ator de muitas violĂŞncias
13
instrumentais deseja dinheiro para consumir, comprar. De outro lado, a violĂŞncia pode assumir uma feição extrema, relacionada com um desejo de ascender aos louros da modernidade. Neste Ănterim, existe uma percepção de que os indivĂduos vivenciariam cada vez mais uma consciĂŞncia dos "riscos" ou das "violĂŞncias" que os ameaçariam e, no geral, perceberiam o crescimento dessas representaçþes, com um conhecimento menor dos casos "reais" de violĂŞncia. Segundo Martuccelli, o indivĂduo se sente "exposto" a "novos" perigos que nĂŁo sĂŁo concebidos como simples fruto de uma distorção da modernidade, mas, ao contrĂĄrio, sĂŁo o prĂłprio resultado de sua realização. Na modernidade, hĂĄ riscos constantes ligados a efeitos colaterais impossĂveis de serem eliminados. O indivĂduo sente-se ameaçado por riscos econĂ´micos (quedas das bolsas, inflação, desemprego), tecnolĂłgicos (centrais nucleares), sanitĂĄrios (novas doenças). O risco torna-se consubstancial Ă modernidade. E a incapacidade de controlĂĄ-lo no seio de sociedades em plena mutação organizacional, sem ter mais Ă sua disposição mecanismos para conjurĂĄ-lo (...), ĂŠ suscetĂvel de levar a um aumento generalizado do sentimento de insegurança (1999, p. 160).
O autor mostra ainda que, de um lado, a violĂŞncia aparece como sendo puramente negativa e tambĂŠm sob a forma de riscos que a sociedade se mostra LQFDSD] GH FRQWURODU 'H RXWUR ODGR D YLROrQFLD DSDUHFH FRPR DOJR ÂłLOHJtYHO´ LQFDSD] de ser compreendida socialmente. Condição da modernidade, segundo o mesmo. Se existe um sentido da violĂŞncia (numa era marcada pela falta de sentido, na perspectiva weberiana), este sentido deve ser investigado menos no interior da subjetividade do ator, e certamente mais a partir do referencial das redes sociais e das FRDo}HV PDWHULDLV RQGH R LQGLYtGXR HVWi LQVHULGR Âł$ YLROrQFLD QHVVH TXDGUR p VHPSUH R RXWUR QRPH SDUD GHVLJQDU D GHVLJXDOGDGH QD IDOWD GH OLJDomR VRFLDO´ (MARTUCCELLI, 1999, p. 172). Essa perspectiva nos remete a SĂŠrgio Adorno (1998), ao mostrar que os conflitos contemporâneos deixaram de gravitar, ao contrĂĄrio daqueles do sĂŠculo XIX e inĂcio do sĂŠculo XX, em torno da distribuição escassa de recursos dentro de limites anteriormente e tradicionalmente aceitos, para passarem a gravitar em torno do contrato, ou seja, das lutas onde o objetivo ĂŠ a lei e a ordem. O ponto central seria a maior ou menor capacidade de diferentes grupos sociais influenciarem as estruturas
14
QRUPDWLYDV GD VRFLHGDGH Âł(P RXWUDV SDODYUDV OXWDV HP WRUQR GD Gesigualdade de SRGHU H GH DXWRULGDGH´ LVWR p as lutas em torno do contrato sĂŁo concomitantes a um SURFHVVR UHYHUVR TXDO VHMD FDPLQKDUtDPRV SDUD D DQRPLD RX VHMD ÂłSDUD D HURVmR GD lei e da ordem, cujo principal indicador ĂŠ a atual incapacidade do Estado de cuidar da segurança dos cidadĂŁos e de proteger-OKHV RV EHQV´ ADORNO, 1998, p. 22-23). Para Adorno, mais do que uma suposta liberação dos indivĂduos dos liames e controles sociais, o que parece estar no centro das grandes transformaçþes da ordem nos Ăşltimos anos ĂŠ o modo como os indivĂduos governam a si e aos outros. As formas mais explosivas de litigiosidade, QRV GLIHUHQWHV FDPSRV GD H[LVWrQFLD VRFLDO ÂłQmR VH acomodam Ă s fĂłrmulas e parâmetros ditados SHOD ÂľLQVWLWXFLRQDOL]DomRÂś RX ÂľdemocratizaçãoÂś doV FRQIOLWRV QD VRFLHGDGH LQGXVWULDO´ 'Dt TXH R SUREOHPD QmR residiria em uma pretensa erosĂŁo da lei e da ordem, mas sendo um efeito na ÂłLQDGHTXDomR GRV FRQWUROHV VRFLDLV WUDGLFLRQDLV H FRQYHQFLRQDLV j ÂľVRFLHGDGH GH ULVFRÂś PRGR FRPR VH SRGH TXDOLILFDU DV sociedades contemporâneas. Por isso, ĂŠ preciso repensar o estatuto do controle social na contemporaneidade´ (ADORNO, 1998, p. 39-40). A sociedade brasileira vivencia uma realidade em que Âłos padrĂľes de concentração de riqueza e de desigualdade social permaneceram os mesmos de quatro GpFDGDV´ (ADORNO, 2002, p. 87-88) anteriores. Ao mesmo tempo, a desigualdade de acesso Ă justiça e aos direitos fundamentais tornou-se mais grave, na mesma proporção em que a sociedade foi se tornando mais densa e mais complexa. Os conflitos sociais tornaram-se mais acentuados. Neste contexto, a sociedade brasileira vem conhecendo crescimento das taxas de violĂŞncia nas suas mais distintas modalidades: crime comum, violĂŞncia fatal conectada com o crime organizado, graves violaçþes de direitos humanos, explosĂŁo de conflitos nas relaçþes pessoais e intersubjetivas. Em especial, a emergĂŞncia do narcotrĂĄfico, promovendo a desorganização das formas tradicionais de sociabilidade entre as classes populares urbanas, estimulando o medo das classes mĂŠdias e altas e enfraquecendo a capacidade do poder pĂşblico em aplicar lei e ordem, tem grande parte de sua responsabilidade na construção do cenĂĄrio de insegurança coletiva (ADORNO, 2002, p. 87-88).
Ao mesmo tempo, devem-se reconhecer consistentes relaçþes entre certa persistência da concentração da riqueza e da renda, da concentração de uma precåria
15
qualidade de vida coletiva nos chamados bairros perifĂŠricos das grandes cidades e a explosĂŁo da violĂŞncia, principalmente no que se referem ao aumento de homicĂdios (ADORNO, 2002, p. 112) (MINAYO, 1994). Outros autores, porĂŠm, apontam que nos crimes contra a vida, a associação entre pobreza e violĂŞncia pode ser questionada, sendo muito mais relacionada ao modelo de combate ao trĂĄfico e Ă criminalidade1 (ZALUAR, NORONHA, ALBUQUERQUE, 1994). Outros elementos que agravariam a violĂŞncia, principalmente por ser esta eminentemente masculina, seriam tambĂŠm, alĂŠm desses riscos reais e concretos que sĂŁo constituĂdos por fatores externos de um ambiente sociocultural perverso, como mostrados anteriormente, sĂŁo potencializados por uma socialização ainda H[WUHPDPHQWH WUDGLFLRQDO TXH FRQWLQXD D FRQVWLWXLU ÂłVXEMHWLYLGDGHV H LGHQWLGDGHV PDVFXOLQDV FDOFDGDV HP VtPERORV H UHODo}HV GH IRUoD H GH DJUHVVLYLGDGH´ (SOUZA, 2005, p. 68). Essa violĂŞncia, pautada em sentimentos de Ăłdio e vingança FRPSDUWLOKDGRV SHORV KRPHQV QD ULYDOLGDGH YLROHQWD SDUWH GDV ÂłIRUPDV contemporâneas do etos da virilidade, configurado a partir da violĂŞncia e do uso das armas de fogo no trĂĄfico de GURJDV H GH DUPDV´ IDEM, p. 68). Seguindo a lĂłgica exposta acima, o sistema prisional brasileiro e suas mazelas contribuem significativamente para o agravamento do problema da violĂŞncia. Afinal, ao ingressar no sistema penitenciĂĄrio, o preso deve adaptar-se, rapidamente, Ă s regras da prisĂŁo. Seu aprendizado, nesse universo, ĂŠ estimulado pela necessidade de se manter vivo e, se possĂvel, ser aceito no grupo. Portanto, longe de ser ressocializado para a chamada "vida livre" (conforme o axioma jurĂdico), termina sendo, na verdade, socializado para viver na prisĂŁo. As regras de funcionamento da prisĂŁo sĂŁo impostas ao preso com rigor e coerção. Este, por sua vez, tambĂŠm dispĂľe de um conjunto de regras que possui vigĂŞncia entre seus pares e ĂŠ aplicado por alguns sobre os demais (dominantes sobre dominados Âą fortes sobre os fracos) (CECCHETTO, 2004). A prĂłpria identidade anterior do apenado ĂŠ indicativa de um processo de exclusĂŁo social onde o mesmo estĂĄ condenado, de certa maneira, desde o seu 1 Percebe-se tambĂŠm a efetivação de novos padrĂľes de sociabilidade pautados pelo medo da violĂŞncia e de suas consequĂŞncias. Aquilo TXH %DLHUO GHQRPLQRX GH ÂłPHGR VRFLDO´
16
nascimento. No Brasil, o preso (com processo julgado ou nĂŁo) ĂŠ oriundo das camadas mais baixas e vitimado pelo Estado e Sociedade. Conforme dados do DEPEN Departamento PenitenciĂĄrio Nacional (2011), ĂłrgĂŁo do MinistĂŠrio da Justiça responsĂĄvel pela gestĂŁo nacional do Sistema PenitenciĂĄrio Brasileiro2, o perfil social do preso no Brasil nos mostra que a maior parcela dos encarcerados (81%) sĂŁo analfabetos, semianalfabetos ou possuidores apenas do diploma do ensino fundamental. Apenas menos de 1% ĂŠ possuidor de diplomas de nĂvel superior; jĂĄ segundo a cor de pele/raça, a maior parte dos presos (65%) sĂŁo negros e pardos. Quase 44% da população carcerĂĄria (tomando SĂŁo Paulo como exemplo) nĂŁo SRVVXtDP SURILVV}HV GHILQLGDV VREUHYLYHQGR GH VXEHPSUHJRV RX ÂłELFRV´ H estavam desempregados. TABELA 01 Âą Dados Consolidados doa Apenados no Brasil Presos Brasil RN Total
496.251
6.123 3
FONTE: DEPEN Âą DEPARTAMENTO PENITENCIĂ RIO NACIONAL/2011 Âą DADOS CONSOLIDADOS Âą DEZEMBRO DE 2010
. Dos 4.345 presos sob custĂłdia4 do sistema estadual prisional, no Rio Grande do Norte, 96% sĂŁo homens (assim como tambĂŠm no Brasil), e destes, mais de 43% cumprem penas irregularmente nas celas das delegacias. Em comparação com a estatĂstica nacional, no paĂs existem 496.251 presos5.
2
Apesar da oficialidade dos dados esboçados aqui, ĂŠ de salutar importância advertir que a maioria dos pesquisadores da ĂĄrea consideram esses nĂşmeros precĂĄrios, abrangentes demais e pouco conclusivos. 3 Incluem-se aqui os presos que se encontram em delegacias e no sistema penitenciĂĄrio federal. 4 Presos sob custĂłdia sĂŁo aqueles que cumprem penas exclusivamente em instituiçþes penitenciĂĄrias estaduais, excluindo-se as delegacias de polĂcia, as prisĂľes militares e as prisĂľes federais. 5 Os dados referentes a este livro foram levantados em pesquisa de campo e correspondem ao perĂodo de 2010 e 2011. Optamos por manter os mesmos, jĂĄ que, para fins de anĂĄlise, a atualização quantitativa dos dados nĂŁo alteraria em nada a mesma. Da mesma forma, o leitor poderĂĄ comparar, com dados disponibilizados pelo DEPEN (Departamento PenitenciĂĄrio Nacional) e pela SEJUC (Secretaria de Justiça Âą RN), em seus sĂtios na internet, o crescimento contĂnuo da população carcerĂĄria no RN e no Brasil, com pouca alteração, porĂŠm, da estrutura prisional.
17
TABELA 02 ± Dados Consolidados do Apenados no RN (Custodiados) Presos Regime Regime SemiRegime Provisório Outros Fechado Aberto Aberto 1365 875 242 1496 53 Homens 86 72 61 95 0 Mulheres 1451 947 303 1591 42 Total FONTE: DEPEN ± DEPARTAMENTO PENITENCIÁRIO NACIONAL/2011 ± CONSOLIDADOS ± DEZEMBRO DE 2010
Total 4031 314 4345 DADOS
Houve um significativo aumento, em cinco anos, da população carcerária do Rio Grande do Norte, conforme mostra a Tabela 03. Um aumento de quase 30% entre os biênios de 2004/2005 e 2006/2008, seguido de um aumento de 20% no período subsequente. Este crescimento acompanha o ritmo do crescimento nacional de aprisionamento, sendo uma amostra significativa da continuidade da exclusão social e do aumento da forma mais tangível pela qual o Estado brasileiro optou por combatêla: a prisão. TABELA 03 ± Número de presos custodiados no RN no período de 2004 a 2010 Ano Presos 2004 - 2005
2.731
2006 - 2008
3.667
2009 - 2010
4.345
FONTE: DEPEN ± DEPARTAMENTO PENITENCIÁRIO NACIONAL/2011
Pensar o sistema carcerário em qualquer uma de suas imbricações (sociais, culturais, políticas, jurídicas e psicológicas) requer também perceber o extremo fosso social que se impõe sobre esses indivíduos que corretamente podem ser denominados de "marginais", pois sua posição, qualquer que seja ela, encontra-se à margem de nosso sistema social, político e econômico. Das periferias, favelas e guetos para as prisões, essa massa vai se constituindo enquanto um novo grupo social que, neste momento histórico, começa a tomar consciência de seu poder, seja pelo seu tamanho numérico, seja pela sua provável capacidade organizativa que ora se apresenta. Segundo Vanderlan Silva (2008), o universo prisional deve ser pensado como um espaço relacional atravessado por uma rede de trajetórias singulares, que o tempo
18
todo estĂĄ se interconectando e separando, onde relaçþes advindas de seu interior perpassam e se cruzam. O preso constrĂłi sua identidade atravĂŠs das relaçþes que travam entre si ÂłWRPDQGR SRU EDVH RV YDORUHV VRFLDLV D SDUWLU GRV TXDLV VH FRQVWURHP FRPR VHUHV SURGXWRUHV GH VLJQLILFDGRV´ SILVA, 2008, p. 26). Desta maneira, discutir o mundo penitenciĂĄrio ĂŠ referir-se DR PXQGR ÂłTXH R concebe e o cerca, o universo extra-prisĂŁo, ou se SUHIHULUPRV D VRFLHGDGH ÂľPDLV DPSODϫ (SILVA, 2008, p. 36). Falar de um mundo de reclusos ĂŠ referir-se, por oposição, a um mundo de liberdade, sendo a prisĂŁo nĂŁo um mundo Ă parte, mas parte desta sociedade mais ampla. O preso pode ser pensado, nessa mesma Ăłtica, como um morto, homem mudo e invisĂvel, cuja voz nĂŁo lhe pertence, pois ĂŠ agora de outros: dos funcionĂĄrios da prisĂŁo, dos advogados, dos psicĂłlogos e assistentes sociais, do juiz ou, em Ăşltima instância, das organizaçþes que falam por ele (igrejas, ONGS e redes sociais exteriores Ă prisĂŁo). Isto nos leva a pensar, assim como Lopes Jr (2009) que, mais do que preocupar-se com a visualização ou nĂŁo, da existĂŞncia e atuação de organizaçþes ou grupos criminosos organizados, ĂŠ preciso tentar apreender das mĂşltiplas realidades sociais definidas como crime organizado. DaĂ que ÂłFULPH RUJDQL]DGR´ QmR p DSHQDV XP WHUPR TXH Gi VHQWLGR D XP FRQMXQWR GH prĂĄticas e acontecimentos, mas tambĂŠm um elemento que fornece bases para compreender o mundo no que se vive. DHVVD IRUPD R ÂłFULPH RUJDQL]DGR´ p WDQWR uma expressĂŁo da realidade social (sem obscurecer o tanto de construção dessa realidade) TXDQWR XPD ÂłFDWHJRULD QDWLYD´ cuja mobilização pelos atores cumpre um papel decisivo na ordenação simbĂłlica do mundo (LOPES JĂ&#x161;NIOR, 2006, p. 355).
Podemos concluir, portanto, que as vĂĄrias modalidades de crime se expressam em prĂĄticas sociais, em eventos e em formas de coordenação onde os atores nem sempre estĂŁo envolvidos inteiramente. Isto nos afasta da perspectiva, muitas vezes PLGLiWLFD GR ÂłFULPH RUJDQL]DGR´ H QRV remete Ă s discussĂľes das redes sociais e suas imbricaçþes econĂ´micas, principalmente, da Nova Sociologia EconĂ´mica. Afinal, a apreensĂŁo das redes sociais envolvidas tanto na produção de eventos tidos como crime organizado, ou mesmo dentro dos espaços prisionais, ĂŠ, antes de tudo, uma estratĂŠgia analĂtica fundamental (LOPES JĂ&#x161;NIOR, 2009a).
19
Essa corrente do pensamento sociológico realiza um esforço de ruptura com concepções sub e hiper socializadas da natureza humana, destacando o primado da relação social, da confiança e das redes sociais como tópicos dominantes em um projeto de investigação maduro e aprofundado. Para Granovetter (2007), o ator social é moldado pelo conjunto de relações sociais que ele estabelece com outros atores e onde todas as ações, fenômenos e instituições apenas são significativos se forem lidas à luz da sua inclusão em um quadro social e de relações sociais também significativas (tese da incrustação) (MARQUES, PEIXOTO, 2003, p. 04). Ao contrário de outros campos de estudos econômicos, a Nova Sociologia Econômica pouco acredita na estrita racionalidade dos atores sociais e põe em dúvida que critérios de racionalidade se expressem em ações bem comportadas pautadas em transitividades lógicas e em escolhas completas. Se para a economia a irracionalidade é um problema, para essa sociologia ela pode fazer todo o sentido e revelar um comportamento inteligente e estratégico. Ao mesmo tempo, a necessidade de se estudar uma temática tão polêmica, discutida em demasia por uma teoria penitenciária e criminológica que, a nosso ver, nada mais fez do que ideologizar cada vez mais a discussão. Dentro da área jurídica, as discussões clássicas partem dos velhos axiomas do século XIX ao verem as prisões como espaços GH ³UHDELOLWDomR´ RX HVSDoRV GH ³FRQILQDPHQWRV´ QHFHVViULRV WDQWR SDUD ³SURWHJHU´ RV ³FULPLQRVRV´ FRPR SDUD ³SURWHJHUHP´ D VRFLHGDGH circundante (Cf. BECCARIA, 2001; OLIVEIRA, 2002; MIRABETTE, 2006; RODRIGUES, 2001; LUISI, 2002; ZAFFARONI, 1991; CASTRO, 2003; e tantos outros). Sentimos, portanto, a urgência ± também pelo furor dos acontecimentos que são estampados na mídia local e nacional cotidianamente ± de tentar compreender, in loco, a dinâmica interna das prisões e cárceres enquanto espaços onde se desenvolvem diversas redes sociais que, de certa medida, ajudam a estruturar esse espaço. As redes pessoais que fornecem as bases para as atividades criminosas são distintas no que dizem respeito à natureza de suas atividades (um esquema de fraude da previdência nutre-se de relações muito distintas daquelas mobilizadas no
20 trĂĄfico de drogas, por exemplo). (...) o lugar da confiança e da natureza dos laços (fortes ou superficiais) diz respeito nĂŁo apenas Ă atividade criminosa, mas ao universo social de origeP GRV DJHQWHV TXDQGR VH WUDEDOKD D QRomR GH ÂłJUXSR´ (isso nĂŁo significa que eles nĂŁo existam nas atividades criminosas), perde-se a dimensĂŁo do grau variado de comprometimento (e do papel desempenhado) de cada um dos indivĂduos (LOPES JR, 2009, p. 55).
Torna-se necessĂĄrio repensar a prisĂŁo e suas relaçþes sociais internas enquanto um processo, buscando-se apreender, empiricamente, quais redes se constroem, como elas se entrelaçam e que agentes sociais delas participam e como o fazem. Na medida em que, no espaço carcerĂĄrio, os indivĂduos aparentemente tĂŞm poucas condiçþes de estabelecer essas redes, ĂŠ fundamental WDPEpP GDU FRQWD GR SDSHO GRV ÂłDQLPDGRUHV detentores de habilidades sociais para lidar com informaçþes limitadas sobre os cenĂĄrios que atuaP´ /23(6 -5 , p. 55), assim como sobre os indivĂduos que entram e saem da prisĂŁo, num rodĂzio constante. Qualquer tentativa empĂrica de se estudar o sistema prisional deve levar em consideração a apreensĂŁo das redes sociais que o estrutura, ou seja, levar em conta os laços sociais existentes. HĂĄ uma preocupação em construir uma teoria complexa da ação social, onde os atores sociais tomam decisĂľes, se comportam estrategicamente e avaliam o contexto social no qual se inserem. Essa teoria complexa da ação pauta-se em atores sociais, onde estes sĂŁo dotados de certa racionalidade limitada, Âłconduzidos por boas razĂľes e por lĂłgicas sociais dominantes, submetidos ao crivo de sistemas de interação que aWXDOL]DP H UHRULHQWDP DV SUySULDV GHFLV}HV WRPDGDV´ (MARQUES, PEIXOTO, 2003, p. 13). Ou seja, hĂĄ a preocupação em perceber a importância que o contexto social dĂĄ aos quadros de interação e aos prĂłprios modelos de racionalidade tĂŁo caros Ă economia. Uma questĂŁo a ser pensada ĂŠ a de que existem articulaçþes internas e externas ao espaço prisional. OrD ÂłDV DUWLFXODo}HV HQWUH DV UHdes sociais diretamente LPSOLFDGDV QDV DWLYLGDGHV FULPLQRVDV DV FKDPDGDV ÂľUHGHV VXEPHUVDVÂś FRP DV UHGHV TXH WUDQVLWDP QR PXQGR ÂľOHJDOÂś HQYROYHP JUDGDo}HV YDULDGDV´ /23(6 -Ă&#x2019;1,25 2009, p. 69). Outro fator fundamental a ser destacado ĂŠ a de que, ao se trabalhar em um espaço de convivĂŞncia social, hĂĄ de se romper com os tradicionais conceitos sociolĂłgicos e imergir em soluçþes que adequem a sociologia tradicional a uma
21
realidade diferenciada. A disseminação de uma cultura do risco, notadamente ligada à violência nos reporta ao conceito de sociabilidade violenta e à leitura que Jessé Souza faz de Bourdieu, construindo o conceito de habitus precário, pautado pela inserção social dos indivíduos num espaço de insegurança. Partindo de uma reflexão acerca do conceito de habitus e suas implicações teóricas tornou-se fundamental também pensar a própria noção de habitus precário. Além disto, as noções de campo e capital social também se fazem presentes na tessitura do referencial teórico-metodológico do trabalho. Indo ao encontro do que já foi esboçado aqui, duas outras perspectivas teóricoanalíticas nos permitiram aprofundar um pouco mais nossa investigação. A contribuição de Erving Goffman e seus estudos acerca da prisão como instituição total, onde diversas formas de interação social ocorrem, assim como a perspectiva de poder lançar um olhar sobre o preso como um indivíduo portador de um estigma, com todas as suas imbricações. No mesmo caminho, Michel Foucault nos permitiu perceber que o espaço prisional, antes de tudo, é um locus disciplinar e construtor de práticas penais e punitivas que caracterizam a própria contemporaneidade. No Rio Grande do Norte, o sistema prisional assume praticamente as mesmas características do sistema nacional. Estruturas deficientes, péssimas condições de encarceramento, superlotação e corrupção são alguns dos problemas que aparecem no cotidiano penitenciário potiguar. Somem-se a isso, fugas constantes, lentidão dos processos judiciais e falta de investimento público que tornam o sistema sujeito às críticas constantes da sociedade e da mídia. A necessidade de voltar para esse espaço um olhar sociológico nos levou a pesquisar as condições internas da prisão, sua sociabilidade e seus dilemas. Um olhar que não se pensa superior ou substitutivo aos demais, mas complementar, numa busca de compreender sociologicamente alguns aspectos dessa complexa realidade. Nosso itinerário metodológico abarcou duas partes significativas. A primeira parte, qualitativa, partimos da observação in loco dos estabelecimentos prisionais e de seu cotidiano. O uso de caderneta de campo, assim como de diário de campo foram os suportes técnicos da observação, na medida em que, muitas vezes, o uso do
22
gravador foi impossibilitado6. Ao mesmo tempo, nossa construção teóricometodológica partiu da perspectiva da abordagem das entrevistas diretivas que, embora não se constituam um remédio total ao problema da discussão da problemática, ajudaram na percepção do objeto e do problema. Em função das classes ou de outros elementos de diferenciação, todos os indivíduos não têm a mesma capacidade de falar, sobretudo em situação artificial na qual um interlocutor exterior ou "estranho" permanece na maior parte do tempo, numa posição de ouvinte. Thiollent (1987) diz que a entrevista não-diretiva que rompe com a reciprocidade das trocas habituais (desigualmente exigível, segundo os meios sociais e situações) incita os sujeitos a produzir um artefato verbal que é desigualmente artificial, segundo a distância existente entre a relação com a linguagem favorecida pela classe social dos sujeitos e a relação artificial com a linguagem deles exigida (p. 80-81).
Este tipo de crítica, baseada na desigualdade e na diferença dos modos de comunicação em função das classes, por mais justificável que pareça, não invalida necessariamente o uso de entrevista não diretiva, na medida em que o objetivo não consiste em estabelecer comparações ou "adições" dos discursos das pessoas cultas e ignorantes. Antes de tudo, trata-se de explorar o universo cultural próprio de certos indivíduos em referência às capacidades de verbalização específica do grupo societário ao qual pertencem, sem comparação com outros grupos (THIOLLENT, 1987, p. 81). A captação dos dados decorreu de maior ou menor habilidade em orientar o informante para discorrer sobre o tema: este conhece o acontecimento, suas circunstâncias, as condições atuais ou históricas, ou por tê-las vividas, ou por deter a respeito informações preciosas. As entrevistas ora forneceram dados originais, ora complementaram dados já obtidos de outras fontes. Neste caminho, a pesquisa se debruçou sobre os atores sociais envolvidos: presos, principalmente, assim como os
6 A impossibilidade do uso do gravador, muitas vezes, no cotidiano prisional parte tanto da administração penitenciária quanto do próprio apenado que se reserva no seu direito pleno de não ter seu depoimento gravado. O pesquisador acredita que a escolha da aceitação ou não do instrumento de captação de dados passa pelo entrevistado que pode, legitimamente, recusá-lo.
23
agentes penitenciĂĄrios e prisionais, e os policiais (que porventura estavam representando
o papel de guardas prisionais), assim como
tambĂŠm os
administradores. Essas entrevistas se deram, na medida do possĂvel e da abertura concedida dos entrevistados ao pesquisador, atravĂŠs da gravação em ĂĄudio, por um gravador portĂĄtil, Ă s quais foram realizadas o total de dezoito. Esta abertura, ĂŠ claro, impĂ´s ao pesquisador que este elaborasse estratĂŠgias para a permissĂŁo de entrevistas junto aos apenados. Quando nĂŁo, como jĂĄ dito, o uso de caderneta e anotaçþes tentaram cobrir a lacuna, como ocorreram com os demais atores, guardas e agentes. As entrevistas buscaram cobrir, conjuntamente com a observação, o cotidiano e os aspectos mais importantes daquele espaço social no que se relacionasse com os objetivos da pesquisa. Partiu-se da perspectiva esboçada por Aaron Cicourel, para quem o grande problema de definir um determinado papel ou de definir diferentes papĂŠis dentro e HQWUH JUXSRV LQYHVWLJDGRV ÂłOHYDQWD D TXHVWmR JHUDO TXH VH UHIHUH DR TXH RV observadores participantes fazem e aos tipos de papĂŠis que desenvolvem durante a VXD SHVTXLVD´ &,&285(/ S 2 SHVTXLVDGRU QR GLD-a-dia da pesquisa de campo, toma decisĂľes sobre quem ĂŠ ou nĂŁo a pessoa ideal para fornecer determinadas informaçþes, ou tambĂŠm como portar-se em uma mirĂade de novas situaçþes, ou seja, ÂłFRPR FRQWURODU D SUySULD DSDUrQFLD H DomR GLDQWH GRV RXWURV´ &,&285(/ 1980, p. 91). Assim, assumimos nesta pesquisa, R SDSHO GH ÂłREVHUYDGRU-como-SDUWLFLSDQWH´ Esta exige mais observação formal do que a observação informal ou mesmo qualquer espĂŠcie de participação. Diferentemente da observação participante, que se baseia em uma imersĂŁo profunda e constante no universo compreendido, esta procura uma espĂŠcie de semi-imersĂŁo. Neste itinerĂĄrio, fizemos o total de dezessete visitas Ă penitenciĂĄria, onde alĂŠm do uso do gravador, tambĂŠm utilizamos uma caderneta de campo. ApĂłs o retorno a cada visita, o material da caderneta era passado a um diĂĄrio de campo. Nosso contato com os presos se deu em duas etapas fundamentais: em um primeiro contato em 2008 e 2009 onde, por intermĂŠdio da direção da PenitenciĂĄria de Alcaçuz no perĂodo, conseguimos entrevistar dois apenados (Beto e Kleber); e entre
24
2009 e final de 2010, onde passamos por um perĂodo em que, devido Ă s vĂĄrias mudanças na gestĂŁo penitenciĂĄrias, nĂŁo conseguimos realizar mais do que rĂĄpidas visitas de campo. Em 2011, graças Ă nova gestĂŁo da penitenciĂĄria e a uma nova visĂŁo da direção acerca do acesso do pesquisador ao apenado, foi-nos possĂvel realizar as GHPDLV HQWUHYLVWDV 2 LQWHUPpGLR GH XP JXDUGD SULVLRQDO FRPR ÂłJXLD´ dentro deste universo foi fundamental. Embora cumprindo seu papel normativo, o mesmo procurou nĂŁo interferir nas entrevistas, contribuindo na escolha aleatĂłria (limitada ĂŠ claro) dos entrevistados. Isso nĂŁo significou, obviamente, que nĂŁo tenham ocorrido interferĂŞncias no processo. 0XLWDV YH]HV WLYHPRV HQWUHYLVWDV LQWHUURPSLGDV RX ÂłYLJLDGDV´ R TXH fatalmente inibia nosso ocasional interlocutor). Outras vezes, certos presos eram FRQVLGHUDGRV ÂłSHULJRVRV´ GHPDLV H QRV HUDP impedidos SDUD D QRVVD ÂłVHJXUDQoD´ R acesso. Uma vez, ao menos, tivemos nossa entrevista interrompida devido ao inĂcio de uma rebeliĂŁo, onde rapidamente fomos evacuados do local. Mesmo com essas dificuldades, tentou-se, no processo de pesquisa e observação, uma separação entre RV ÂłLPSRQGHUiYHLV GD YLGD UHDO´ e o arcabouço da constituição social do objeto estudado. Buscou-se o que ĂŠ regular, recorrente e tĂpico. Alba Zaluar comenta que o SHVTXLVDGRU GHYH ÂłOHYar em consideração os comportamentos, isto ĂŠ, os gestos cotidianos, o tom das conversas, as atitudes do corpo e expressĂŁo facial, pois eles sĂŁo expressivos´ S Bronislaw Malinowski nos lembrou de que ĂŠ importante ao pesquisador que submerge em uma pesquisa de campo ir buscar as regularidades da vida social. Para ele, Âła coleta de dados concretos sobre uma grande variedade de fatos constitui, SRUWDQWR XP GRV SULQFLSDLV SRQWRV GR PpWRGR GH FDPSR´ S Os imponderĂĄveis da vida real constituiriam essas regularidades, esses gestos cotidianos, essas atitudes corporais: (...) hĂĄ uma sĂŠrie de fenĂ´menos de grande importância que nĂŁo podem ser registrados atravĂŠs de perguntas, ou em documentos quantitativos, mas devem ser observados em sua plena realidade. Denominemo-los os imponderĂĄveis da vida real. Entre eles se incluem coisas como a rotina de um dia de trabalho, os detalhes do cuidado com o corpo, da maneira de comer e preparar as refeiçþes; o tom das
25 conversas e da vida social ao redor das casas da aldeia; a existĂŞncia de grandes amizades e hostilidades e de simpatias e antipatias passageiras entre pessoas; a maneira sutil, mas inquestionĂĄvel, em que as vaidades e ambiçþes pessoais se refletem no comportamento do indivĂduo e nas reaçþes emocionais que o rodeiam (MALINOWSKI, 1980, p. 55).
$TXLOR TXH *HHUW] GHQRPLQD GH ÂłGHVFULomR GHQVD´ QmR VHULD SRVVtYHO QHVWH tipo de pesquisa, a nĂŁo ser que houvesse uma total imersĂŁo no campo de pesquisa. Mesmo assim, inspirados na antropologia interpretativa, buscamos, na medida do SRVVtYHO ÂłHVFROKHU HQWUH DV HVWUXWXUDV GH VLJQLILFDomR´ FyGLJRV SUHHVWDEHOHFLGRV VRFLDOPHQWH ÂłH GHWHUPLQDU VXD EDVH VRFLDO H VXD LPSRUWkQFLD´ *HHUW] S SerĂamos tentados a fazer etnografia, o que nĂŁo fizemos. Esta, afinal, como nos diz Geertz, ĂŠ FRPR WHQWDU OHU QR VHQWLGR GH ÂłFRQVWUXLU XPD OHLWXUD GH´ XP PDQXVFULWR estranho, desbotado, cheio de elipses, incoerĂŞncias, emendas suspeitas e comentĂĄrios tendenciosos, escritos ou nĂŁo com os sinais convencionais do som, mas com exemplos transitĂłrios do comportamento modelado (1989, p. 20).
Geertz propĂľe uma etnografia enquanto descrição densa, que deve ser encarada em termos das interpretaçþes das quais as pessoas pertencentes ao grupo estudado submetem sua experiĂŞncia. O que se busca compreender ĂŠ o fluxo do comportamento e do discurso que as formas culturais e as representaçþes sociais ensejam. Mas nĂŁo o discurso em sua totalidade, mas apenas naquilo em que os informantes permitem perceber. O que se inscreve no esforço etnogrĂĄfico ĂŠ uma interpretação deste discurso. Se nĂŁo foi possĂvel buscar esses imponderĂĄveis da vida real em sua totalidade, buscou-se, na perspectiva apontada pelos antropĂłlogos supracitados, construir uma descrição mĂnima da PenitenciĂĄria de Alcaçuz. Essa descrição, capturada pela observação, pelas entrevistas e pelas conversas ao longo dessas visitas, nos possibilitou a visĂŁo que apresentamos aqui.
26 TABELA 04 - Apenados Entrevistados com uso do gravador7 Nome (vulgo) Idade PavilhĂŁo Delito 27 1 Assalto JoĂŁo 22 1 HomicĂdio e Assalto Alberto 26 1 HomicĂdio Marcos 36 2 TrĂĄfico Internacional de Drogas Francisco 29 2 HomicĂdio e Pistolagem8 Filipe 23 2 Assalto Lucas 41 3 TrĂĄfico de Drogas e Assalto Beto 34 3 Assalto Kleber 28 3 HomicĂdio Manoel 20 4 HomicĂdio e Assalto Arthur 28 4 TrĂĄfico de Drogas Tiago 22 4 TrĂĄfico de Drogas Nelson 59 Trabalho HomicĂdio e Assalto Luiz AntĂ´nio 30 Trabalho HomicĂdio e Assalto JĂşnior 31 Trabalho HomicĂdio Paulo 41 Trabalho HomicĂdio Pedro 25 Trabalho Assalto Expedito 19 Trabalho TrĂĄfico de Drogas AndrĂŠ Fonte: Pesquisa de Campo realizada de março de 2009 a maio de 2011.
Trabalho antes da Prisão Servente de Pedreiro Comerciårio Servente de Pedreiro Construção Civil Operårio de Carvoaria Biscatista Biscatista Biscatista Garoto de Programa Estofador de Sofås Biscatista Biscatista Pedreiro Operårio de Cerâmica Mecânico Policial Vidraceiro Lavador de Carros
Como partimos da perspectiva do instrumental teĂłrico-metodolĂłgico das Redes Sociais, nossa preocupação foi tentar perceber como a estrutura social existente no universo empĂrico pode mostrar, atravĂŠs das relaçþes sociais, aspectos da realidade. Para tanto, partimos da perspectiva de que a rede social ĂŠ antes de tudo um ambiente de comunicação e troca, que se dĂĄ em vĂĄrios nĂveis. A rede faz fluir informaçþes, contribuindo para definir a posiçþes dos integrantes atravĂŠs da quantidade de elos diretos. Nas redes sociais, alguns elos mantĂŞm relaçþes mais estreitas e mais Ăntimas, denominadas de cliques (VWHV ÂłSodem representar uma instituição, um (sub) grupo especĂfico e mesmo identificar a movimentação em torno de determinado problema´ (MARTELETO, 2001, p. 75). Conseguir apontar esses cliques permitiu ver as relaçþes construĂdas nas prisĂľes, suas correspondĂŞncias e como elas sĂŁo mantidas. Outra preocupação ĂŠ tentar perceber a centralidade que determinados atores sociais possuem numa dada rede. Identificar sua posição em relação aos demais atores e 7 Todos os nomes citadRV VmR SVHXG{QLPRV RX ÂłYXOJRV´ D fim de salvaguardar o anonimato e a segurança dos entrevistados. A escolha dos nomes foi aleatĂłria e efetuada pelo prĂłprio pesquisador no momento da entrevista. 8 Aqui, pistolagem assume o significado de assassinato de aluguel ou por encomenda.
27
redes ĂŠ significativo, pois quanto mais bem posicionado um indivĂduo, melhor sua posição na transmissĂŁo de informaçþes, aumentando seu poder na rede (essa centralidade ĂŠ medida atravĂŠs dos elos que se colocam entre ele e outros). Tanto o papel de mediação como o de ocupar uma centralidade implica em um exercĂcio de poder, de controle e filtro de informaçþes que circulam na prisĂŁo. TerĂamos, hipoteticamente, dois tipos de centralidade: a dos apenados que exercem lideranças, possuidores de uma capacidade maior de mobilização interna; a dos apenados perifĂŠricos, que tambĂŠm sĂŁo importantes, pois conseguem mobilizar contatos com o ÂłPXQGR H[WHULRU´ Numa metodologia das Redes Sociais o mais interessante de uma entrevista ĂŠ, precisamente, que esta possa dar conta de: em quantas redes se estĂĄ atuando, como estĂŁo interligadas entre si e de que maneira resolvem os aparentes paradoxos. NĂŁo ĂŠ a uniformidade e o consenso que nos interessam, mas as diferentes posiçþes, forças e fragilidades dos seus argumentos, os afetos para com uns e outros, os medos e agradecimentos, etc. NĂŁo somente o que se diz, mas, sobretudo, o que se contradiz, reforça ou desdiz (VILLASANTE, 2002, p. 96-97).
Desta maneira, nĂŁo se busca apenas encontrar as identidades centrais de cada grupo ou de relaçþes, mas, precisamente, os seus paradoxos e contradiçþes, suas interconexĂľes, que vĂŞm dados pela sua rede de relaçþes e articulaçþes. Importa enfatizar que aqui se trata nĂŁo de uma anĂĄlise estrutural pura de redes VRFLDLV PDV GH XPD ÂłPHWiIRUD GH UHGHV´ 8PD DQiOLVH HVWUXWXUDO completa de redes sociais nos exigiriam certos prĂŠ-requisitos que seriam impossĂveis de cumprir, como a entrevista de uma amostra quantitativa significativa do universo (em termos de estatĂstica minimamente rigorosa), algo entre 450 e 500 presos. Optou-se por uma anĂĄlise de metĂĄfora de redes onde os conceitos estruturais sĂŁo precĂĄrios estatisticamente, jĂĄ que nĂŁo hĂĄ como medi-los sem a topologia da rede, obtida pelo uso de programas especĂficos. Mesmo assim, foi possĂvel construir uma anĂĄlise de redes a partir daquilo que ĂŠ denominado entre os estudos de redes sociais de metĂĄfora de redes sociais.
28
Outra parte de nosso itinerário metodológico e de pesquisa se pauta no uso de dados estatísticos oficiais e coletados ao longo da pesquisa, que se constituem como significativas ferramentas de análise, na medida em que puderam contribuir para esclarecer pontos de vista, situações e conjunturas. Como bases de dados, utilizamos principalmente o Censo Penitenciário Nacional do DEPEN (Departamento Penitenciário Nacional), os dados da SEJUC (Secretaria Estadual de Justiça e Cidadania) e os dados in loco através das entrevistas coletadas. O mais significativo, porém, para a análise que empreendemos, ligou-se a busca da percepção empírica das redes sociais existentes, ou seja, o universo de laços sociais na prisão (através da metáfora de redes sociais). Buscou-se analisar as redes sociais que atravessam o presídio, as formas associativas que se ancoram e se constroem dentro do espaço prisional. Em termos específicos: que redes existem? Como elas se estruturam? Que forças sociais aparecem nessas relações? Quais instituições aparecem na prisão? Mesmo assim, trata-se de uma análise estrutural, na medida em que estamos em busca de perceber as relações sociais entre os indivíduos, sejam em díades, tríades ou instituições. Conforme apontaram Vincent Lemieux e Mathieu Ouimet (2008), nossa preocupação volta-se para relações orientadas e não orientadas, as densidades dessas relações, as conexões entre os atores, os tipos de conexões, suas posições, sua centralidade. A presente obra consta, além desta introdução de mais quatro capítulos: um primeiro capítulo onde discutimos a prisão em seu aspecto histórico no Brasil e no Rio Grande do Norte e, posteriormente, fazemos uma apresentação de nosso objeto, a Penitenciária de Alcaçuz. No segundo capítulo, realizamos uma discussão acerca do conceito de habitus em Bourdieu, assim como o conceito de habitus precário em Jessé Souza. Já no terceiro capítulo, partindo das teorias e categorias de Foucault e Goffman, descrevemos a disciplina e a interação social na prisão. No capítulo subsequente: o quarto, fazemos a discussão teórico-metodológica das redes sociais, assim como a análise deste fenômeno na Penitenciária de Alcaçuz. Salutar dizermos
29
que, este procedimento ± discussão teórica e posterior análise ±, foi repetido em todos os capítulos supracitados. Por fim, apresentamos nossas considerações finais.
30
2 Sistema prisional ³Tinham estado em perfeita indiferença, numa resignação covarde e apática; a disciplina dos encarcerados, implícita e fria, ordenara as conversas zumbidas, o gesto vago, o passo discreto, respeito a autoridades invisíveis´ (Memórias do Cárcere - Graciliano Ramos).
31
2.1 Origens e desenvolvimento histórico do sistema prisional O conflito social ± assim como o castigo em suas várias formas ± sempre esteve presente nas sociedades ocidentais. A pena privativa de liberdade, enquanto uma forma especial de castigo estabelecida surgiu apenas na Idade Contemporânea, principalmente com o advento dos Estados Nacionais Modernos. O Estado, ao assumir o monopólio da pena, propugna e obriga que os indivíduos busquem a solução por uma única via, a punição estatal. Definitivamente o problema é do Estado e de ninguém mais. Quem desafia, de um modo ou de outro, uma norma jurídica, se opõe ao poder estatal pelo fato de que (...), o castigo foi expropriado pelo poder centralizado, deixando de ser um assunto próprio dos indivíduos para se transformar numa função própria do Estado (OTERO, 2007, p. 48).
A sua finalidade, porém, não era a mesma da atualidade. Destinava-se à guarda de escravos e prisioneiros de guerra. Em matéria penal servia, basicamente, para a custódia de infratores à espera da punição aplicada e do próprio julgamento (MELOSSI, MASSIMO, 2006). Os réus não eram condenados especificamente à perda da liberdade por um período determinado de dias, meses ou anos. Eram punidos com a morte, suplício, degredo, açoite, amputação de membros, galés, trabalhos forçados ou confisco de bens. Para viabilizar a punição imposta, permaneciam presos durante dias, meses ou anos. O encarceramento era um meio, não era o fim da punição. A partir do século XVIII, porém, a natureza da prisão se modifica. Superou-se em sua utilização como simples meio de custódia. A necessidade de aproveitar o contingente de pessoas economicamente marginalizadas, o racionalismo político e o declínio moral da pena de morte estimularam o desenvolvimento de uma reação alternativa do poder público ao crime: a supressão da liberdade por determinado período de tempo (OLIVEIRA, 2002). A prisão torna-se, então, a essência do sistema punitivo. A finalidade do encarceramento passa a ser, em tese, isolar e recuperar o infrator. Na visão crítica de Foucault, o objeto da punição não é mais o corpo do condenado, é sua alma. Os historiadores identificam a origem da prisão moderna nas
32
celas eclesiásticas, instituídas pela Igreja para a punição de religiosos infratores, e nas casas de correção criadas a partir da segunda metade do século XVI na Inglaterra e na Holanda (RUSHE, KIRCHHEIMER, 2004). As celas eclesiásticas estimulavam a reflexão em torno do pecado cometido, aproximando o pecador de Deus. As casas de correção recuperavam mendigos, desordeiros, autores de pequenos delitos, sob o comando da ética calvinista: trabalho, ensino religioso e disciplina. No século XVIII, diversos segmentos da área do direito penal preconizavam tratamento mais humano para as penas. Esses segmentos proclamavam uma forma de amenizar suplícios e a crueldade a que eram submetidos, nessa época, os indivíduos que praticavam crimes. Com o desaparecimento do suplício, surge novo tipo de punição, a privação de liberdade, que coincide com o início da transformação da sociedade feudal em sociedade capitalista (RUSHE, KIRCHHEIMER, 2004). O jurisfilósofo italiano Marquês de Beccaria trouxe uma concepção utilitarista da pena, visando a ressocialização. Pregava que o julgamento devia ser célere, já que durante esse período o acusado já sofria punições. O inglês John Howard, por sua vez, foi considerado precursor do penitenciarismo. Preocupou-se com a construção de estabelecimentos adequados para o cumprimento da pena. Pregava a humanização das prisões, levando para o penitenciarismo valores da religião calvinista. Para ele, as prisões deveriam ser divididas para os processados, os condenados e os devedores, pois, naquela época, aqueles que tinham dívidas se submetiam aos castigos penitenciários (BECCARIA, 2001). Posteriormente, Jeremy Bentham sintetizou a ideia de que a pena deveria objetivar a prevenção, a retribuição e a ressocialização. Idealizou o sistema panóptico como um estabelecimento que permitiria a vigilância geral dos presos, e, por ter sido o primeiro teórico a enfatizar tal sistema, tornou-se famoso. O panoptismo, a rigor, é um método de controle, originado no século XVII objetivando o controle da peste, quando foi adotado o isolamento da população doente. É um princípio que tem por base um conjunto de idéias fundamentais do "utilitarismo", que tem na observação e controle o elemento fundamental de intimidação. Como constatou Foucault, isso ultrapassou a área penal e se introduziu em diversos outros sistemas, sendo utilizado
33
hoje, por exemplo, atravĂŠs do controle eletrĂ´nico visual que observamos no comĂŠrcio, no sistema bancĂĄrio e na cidade de um modo geral: Bentham nĂŁo se inspirou, em seu projeto, no ZoolĂłgico que Le Vaux construĂra em Versalhes. (...) encontramos no programa do panĂłptico a preocupação anĂĄloga da observação individualizante, da caracterização e da classificação, da organização analĂtica da espĂŠcie. O panĂłptico ĂŠ um zoolĂłgico real; o animal ĂŠ substituĂdo pelo homem, a distribuição individual pelo grupamento especĂfico e o rei pela maquinaria de um poder furtivo. (FOUCAULT, 2005a, p. 168).
O panoptismo se constitui na prisĂŁo celular, de forma radial, construĂda pela primeira vez nos Estados Unidos no final do sĂŠculo XVIII. Por este sistema, uma Ăşnica pessoa, localizada em um ponto estrategicamente construĂdo, fazia a vigilância da totalidade das celas, que eram individuais. A arquitetura ĂŠ transparente, expondo o preso a um olhar ininterrupto, constrangendo-o Ă constante observação. No que concerne Ă evolução do sistema penitenciĂĄrio, apontam-se trĂŞs sistemas. O primeiro deles ĂŠ o sistema da Pensilvânia ou de FiladĂŠlfia, cujo nascedouro data do sĂŠculo XVIII. Conhecido tambĂŠm como modelo celular, o modelo pregava que o preso devia ser recolhido Ă sua cela, isolado dos demais. A estes nĂŁo era permitida a visita. Pretendia, atravĂŠs da leitura da BĂblia, levar o preso ao arrependimento (RUSHE, KIRCHHEIMER, 2004). Segundo Greco (2006, p. WDO VLVWHPD ÂłUHFHEHX LQ~PHUDV FUtWLFDV SRLV TXH DOpP GH H[WUHPDPHQWH VHYHUR impossibilitava a readaptação social do condenado, em face do seu completo LVRODPHQWR´ Posteriormente, surgiu o sistema auburniano, assim denominado por ter sido construĂda a penitenciĂĄria na cidade de Auburn, no estado de Nova York, EUA, em 1818. Tal sistema caracterizou-se por ser menos rigoroso que o anterior. Permitia o trabalho dos presos, dentro de suas prĂłprias celas, inicialmente, e, num segundo momento, em grupos. Foi mantido, porĂŠm, o isolamento noturno, onde era imposto silĂŞncio total aos presos, o que fez tal sistema ser conhecido por silent system. O silĂŞncio era absoluto, e a vigilância, permanente: os presos estavam proibidos de conversar entre si e trocar olhares; sĂł podiam se dirigir aos guardas, depois de autorizados e em voz baixa (RUSHE, KIRCHHEIMER, 2004). Pode-se afirmar que
34
foi aĂ que nasceu entre os presos, o costume destes se comunicarem com as mĂŁos, prĂĄtica observada, inclusive, nas prisĂľes de segurança mĂĄxima da atualidade. Na essĂŞncia dos dois sistemas, estava a idĂŠia de que o criminoso resulta de uma falha no processo de construção de seu carĂĄter, processo normalmente promovido pela famĂlia, igreja, escola e comunidade. A vantagem do sistema de Auburn em relação ao sistema de FiladĂŠlfia estava na possibilidade de adaptar o preso Ă rotina industrial: o trabalho em oficinas, durante oito ou dez horas diĂĄrias, compensava custos do investimento e dava perfil mais racional ao presĂdio. Na FiladĂŠlfia, o trabalho era artesanal e nĂŁo remunerado; em Auburn, a organização do trabalho estava entregue a empresas. Em rigor, os dois sistemas, tal como concebidos, se revelariam impraticĂĄveis pela quantidade crescente de presos e pelo preço elevado da construção de penitenciĂĄrias com celas individuais. InflexĂveis, os dois modelos nĂŁo ofereciam estĂmulo aos detentos, limitados a obedecer Ă rotina de comportamento e trabalho imposto pela administração do presĂdio e aguardar o tempo passar. Os sistemas penitenciĂĄrios foram evoluindo, e assim surgiu o sistema progressivo, inicialmente na Inglaterra e posteriormente adotado pela Irlanda. Este se apresentou como o mais adequado aos ideais de regeneração. Pelo sistema progressivo inglĂŞs, que surgiu no inĂcio do sĂŠculo XIX, o capitĂŁo da Marinha Real, Alexander Maconochie, impressionado com o tratamento desumano destinado aos presos degredados para a AustrĂĄlia, resolveu modificar o sistema penal. A colĂ´nia britânica da AustrĂĄlia encaminhava delinquentes perigosos para a ilha Norfolk (entre a Nova Zelândia e a Nova CaledĂ´nia), e o diretor do presĂdio criou um regime denominado mark system ÂłPDUFDV´ RX ÂłYDOHV´ HP TXe o preso se beneficiava da quantidade de trabalho realizado no dia e era punido por atos de LQGLVFLSOLQD TXH HYHQWXDOPHQWH SUDWLFDVVH QXPD UHODomR GH ÂłGpELWR-FUpGLWR´ TXH afinal, determinaria a duração da pena (OLIVEIRA, 2002). Admitia trĂŞs estĂĄgios no cumprimento da pena. Num primeiro momento, o preso era submetido a isolamento absoluto, tanto diurno quanto noturno, caracterizando a fase de prova, que se assemelha ao sistema de FiladĂŠlfia. Em um segundo momento, entretanto, era
35
permitido ao preso realização de trabalho em comum, porém ainda sob a regra do silêncio, e isolamento noturno, o que caracterizava o sistema auburniano. Era nessa fase em que o preso, paulatinamente, poderia adquirir os vales que poderiam conduzilo ao estágio da liberdade condicional, no qual era beneficiado com relativa liberdade por prazo determinado e, se não desse causa à revogação do benefício, adquiria a liberdade definitiva. Foi aperfeiçoado na Irlanda: além das três etapas supracitadas, passou a existir ainda um quarto estágio. Após o isolamento absoluto, a permissão para trabalho diurno, mesmo que com isolamento noturno, era concedida ao preso a possibilidade de realização de trabalho externo, em estabelecimentos especiais, sem os rigores da prisão fechada. Posteriormente, lhe era dado o direito à liberdade condicional (RUSHE, KIRCHHEIMER, 2004). O sistema progressivo inglês, portanto, buscou garantir o retorno do delinquente à sociedade, já que o trabalho externo lhes assegurava convívio com os demais membros da sociedade, com os quais era permitida, inclusive, a conversação. Com o tempo, e o avançar no século XX, o fracasso da prisão fechada na regeneração do infrator estimularia a criação de políticas criminais menos rigorosas para delitos de menor gravidade, com a adoção de medidas como a suspensão condicional da pena (sursis); a prisão aberta, muito mais barata, na qual o detento tem vida normal de trabalho durante o dia e se recolhe a estabelecimento sem vigilância durante a noite; as penas alternativas, consistentes em pagamento de multa, prestação de serviços à comunidade etc.; e a utilização de mecanismos de vigilância mais sofisticados, como a pulseira radiotransmissora, que monitora o deslocamento do condenado dentro dos limites geográficos impostos pela sentença. A prisão é, sem dúvida, a intervenção mais drástica do Estado na vida do indivíduo (excetuando a pena de morte, obviamente), razão pela qual sua incidência está formalmente cercada de garantias. Envolve não apenas a privação da liberdade de locomoção, mas também a eliminação de outros direitos a ela inerentes, a imposição de regimes disciplinares etc.; e tudo isso, segundo os críticos, não pode ser dimensionado com base em critérios de custo e rentabilidade. Depois de mais de 200
36
anos de experiência, prevalece o sentimento de que a prisão não recupera, ao contrário, degenera. Segundo Foucault, ³a passagem dos suplícios para a punição se deu como uma fronteira legítima do poder de punir. O homem que os reformadores puseram em destaque contra o despotismo do cadafalso é também o homem da medida, não das coisas, mas do poder´ (2005a, p. 70). A nova forma de punição buscava um esforço para ajustar os mecanismos de poder que enquadravam a existência dos indivíduos, ou seja, visava uma adaptação e harmonização dos instrumentos que se encarregavam de vigiar o comportamento cotidiano das pessoas. Mais do que o respeito pela humanidade dos condenados, buscava-se uma justiça mais desembaraçada e mais inteligente que ensejasse uma vigilância penal mais atenta ao corpo social. Dessa forma, o verdadeiro objetivo não era fundamentar uma punição com princípios mais equitativos, mas estabelecer uma nova economia do poder de castigar. Assegurava, assim, melhor distribuição desse poder, repartindo-o em circuitos homogêneos, para ser exercido em toda a parte e de maneira contínua em todo o corpo social, tornando o poder de punir mais regular, mais eficaz, mais constante e mais bem detalhado em seus efeitos. A burguesia não dá a menor importância aos delinquentes, à punição ou à reinserção deles, que não têm economicamente muito interesse. Em compensação, do conjunto dos mecanismos pelos quais o delinquente é controlado, seguido, punido, reformado, resulta, para a burguesia, um interesse que funciona no interior do sistema econômico-político geral (FOUCAULT, 1999, p. 39).
Resumindo, a reforma teria de fazer com que o poder de julgar não dependesse mais de privilégios múltiplos, descontínuos e contraditórios da soberania, mas de efeitos continuadamente distribuídos de poder público. Sua estratégia era inserir o indivíduo mais profundamente no corpo social e no poder de punir. Para Foucault (2005a, p. 297), a prisão foi uma peça essencial no conjunto das punições, marcando um momento importante na história da justiça penal. Fundamentadas nas sociedades industriais, pelo seu caráter econômico, as prisões aparecem como uma reparação. Retirando tempo do condenado, a prisão parece traduzir concretamente a ideia que o criminoso lesou, não somente a vítima, mas a sociedade inteira. Esse caráter econômico-moral de uma penalidade contabiliza os castigos em dias, em meses,
37 em anos, e estabelece equivalências quantitativas entre delitos e duração das penas.
A prisĂŁo, peça essencial no conjunto das puniçþes marca certamente um momento importante QD KLVWyULD GD MXVWLoD VRFLDO VHX DFHVVR j ÂłKXPDQLGDGH´ 0DV tambĂŠm um momento importante na histĂłria desses mecanismos disciplinares que o novo poder de classe estava desenvolvendo: o momento em que aqueles colonizavam a instituição judiciĂĄria. Na passagem dos dois sĂŠculos, uma nova legislação definiu o poder de punir como uma função geral da sociedade que ĂŠ exercida da mesma maneira sobre todos os seus membros, e na qual cada um deles ĂŠ igualmente representado. Segundo LoĂŻc Wacquant, vivenciamos hoje uma verdadeira expansĂŁo do Estado penal, na medida em que este se volta para o aumento de efetivos policiais, WULEXQDLV FULPLQDLV H SULV}HV FRPR IRUPD GH ÂłVROXFLRQDU R DXPHQWR JHQHUDOL]DGR GD LQVHJXUDQoD´ HVWD FDXVDGD SRU XPD GLPLQXLomR GR SUySULR (VWDGR QR ÂłIURQW HFRQ{PLFR H VRFLDO´ S Essa expansĂŁo permite abafar e conter as desordens urbanas surgidas nos estratos inferiores da estrutura social causados pela desregulamentação e desestruturação do mercado de trabalho e da rede de segurança social. O Brasil vivencia um contexto HP TXH Âłjuntos, a desigualdade social abissal, os serviços pĂşblicos deficientes ou inexistentes e o extremo desemprego no contexto de uma economia urbana polarizante e de um sistema de justiça corrupto alimentaram o inexorĂĄvel crescimento da violĂŞncia criminal´ (WACQUANT, 2007, p. 205). No decorrer das trĂŞs Ăşltimas dĂŠcadas, muitas sociedades Âą o Brasil dentre elas Âą lançaram-se numa experiĂŞncia social e polĂtica que consistiu na substituição progressiva de um (semi) Estado de Bem-Estar-Social por um Estado penal e policial, QR YHQWUH GR TXDO D FULPLQDOL]DomR GD PDUJLQDOLGDGH H D ÂłFRQWHQomR SXQLWLYD´ GDV catHJRULDV VRFLDLV GHVHUWDGDV ID] Âłjs vezes´ de polĂtica social. Mesmo antes, seria mais justo falar de um Estado caritativo, na medida em que muitos programas YROWDGRV SDUD DV SRSXODo}HV ÂłYXOQHUiYHLV IRUDP GHVGH VHPSUH OLPLWDGRV fragmentĂĄrios e isolados do resto das atividades estatais, informados que sĂŁo por uma concepção moralista e moralizante da pobreza como produto das carĂŞncias individuais dos pobres´ (WACQUANT, 2003, p. 19-20).
38
Nesse contexto histĂłrico, a primeira penitenciĂĄria construĂda na AmĂŠrica Latina foi a Casa de Correção do Rio de Janeiro, construção iniciada em 1834 e concluĂda em 1850. O desenho e os regulamentos seguiram os modelos de instituiçþes similares nos Estados Unidos, das penitenciĂĄrias de Auburn e FiladĂŠlfia (MAIA, 2009, p. 41-42). No sĂŠculo XIX, no Brasil, o sistema carcerĂĄrio operava como um verdadeiro mecanismo institucional devido ao desejo das elites de abraçar a ÂłPRGHUQLGDGH´ RQGH HVWH VH YLD DFRPSDQKDGR H VXEYHUWLGR ÂłSRU VXD YRQWDGH GH PDQWHU IRUPDV DUFDLFDV GH FRQWUROH VRFLDO UDFLDO H ODERUDO´ (MAIA, 2009, p. 47). Torna-se possĂvel afirmar que as cadeias serviam para satisfazer a necessidade de manter sob custĂłdia, tanto suspeitos quanto delinquHQWHV GH PRGR TXH DV ÂłFODVVHV GHFHQWHV GD VRFLHGDGH´ SXGHVVHP VH VHQWLU VHJXUDV HP RXWUR VHQWLGR DV FDGHLDV WHUPLQDYDP SRU UHSURGX]LU H UHIRUoDU D ÂłQDWXUH]D DXWRULWiULD H H[FOXGHQWH GHVWDV sociedades, convertendo-se em peças de um esqueleto maior orientando a manter a RUGHP VRFLDO´ IDEM, p. 47). Em todo o decorrente perĂodo republicano, principalmente depois de 1900 e seguindo o sĂŠculo XX, as prisĂľes brasileiras e seus ocupantes foram testemunhas da crescente presença do Estado, atravĂŠs das novas tĂŠcnicas de identificação e arquivo, nos laboratĂłrios cientĂficos, na centralização administrativa e na maior integração entre os diferentes nĂveis do sistema de justiça criminal. Estes esforços permitiram ao aparato jurĂdico-penal maior capacidade institucional para exercer maior controle e autoridade nĂŁo sĂł sobre as populaçþes carcerĂĄrias, como tambĂŠm sobre a sociedade em seu conjunto. Ainda que, para os apenados, estas mudanças tenham representado muito pouco Âą pois continuaram padecendo sob condiçþes de encarceramento deficientes, abuso e abandono Âą, algumas delas (por exemplo, a presença crescente de presos polĂticos e a maior visibilidade da prisĂŁo na sociedade) os ajudaram a abrir novos espaços de luta e organização (MAIA, 2009, p. 72). Com a industrialização do paĂs e o consequente aumento na demanda prisional, o Estado passou a investir mais em grandes presĂdios, como exemplifica o caso do Complexo do Carandiru em SĂŁo Paulo, um dos maiores do mundo. Ao mesmo tempo, o sistema prisional brasileiro foi fruto direto de dĂŠcadas de desigualdade social
39
crescentes, de um Estado absolutamente inerte e incapaz de cumprir com suas obrigaçþes constitucionais, o sistema carcerĂĄrio brasileiro, como um todo, entra grave crise estrutural. Hoje, controlado internamente pelos grupos criminosos organizados (como o exemplo do PCC - Primeiro Comando da Capital, articulado principalmente no estado de SĂŁo Paulo e do CV Âą Comando Vermelho no Rio de Janeiro) que, de dentro dos presĂdios e utilizando novas tecnologias informacionais (como o telefone celular9), conseguem impor um controle para a execução de açþes dentro e fora dos presĂdios. Controlam, desta forma, nĂŁo apenas os presĂdios internamente, mas conseguem acionar suas atividades criminosas e contraventoras com facilidade e relativa tranquilidade. Tanto o Comando Vermelho (CV) quanto o Primeiro Comando da Capital (PCC) possuem uma origem em comum: ambos emergem do processo de desumanização das penitenciĂĄrias brasileiras que agregam todos os elementos que SRVVLELOLWDUDP R VXUJLPHQWR GHVVHV JUXSRV ,QLFLDOPHQWH XWLOL]DQGR R OHPD Âł3D] -XVWLoD H /LEHUGDGH´ DOJXQV LQGLYtGXRV FRP DOJXPD FDSDFLGDGH RUJDQL]DFLRQDO H FRP liderança interna dentro das penitenciĂĄrias iniciaram a consolidação dessas organizaçþes (AMORIM, 2006). Esses grupos emergiram em um sistema prisional onde diretores e agentes penitenciĂĄrios agrediam os presos sem preocupação de esconder a fama de torturadores, onde se jogavam ĂĄgua fria em doentes: Âła comida tambĂŠm era pĂŠssima. A fim de aguentarem a refeição, os detentos sempre pediam limĂŁo e farinha para as visitas. NĂŁo era raro surgir um inseto em meio Ă comida, e nĂŁo necessariamente PRUWR´ -2=,12 S 24-25). 6HJXQGR :LOOLDP GD 6LOYD /LPD ÂłR 3URIHVVRU´ IXQGDGRU GR &RPDQGR 9HUPHOKR ÂłORQJRV DQRV GH SULVmR VXSULPHP HP PXLWRV R desejo de ser livre. Mas, em outros, aumenta a revolta e a vontade de reconquistar o TXH VH SHUGHX´ S 20). Essas condiçþes levaram a uma forma de organização, em rede, precarizada, mas com força o bastante para se legitimar e conseguir o
9
Vale salientar que o celular hoje funciona nĂŁo mais apenas como celular, mas integrado a outras tecnologias, tais como gravador de ĂĄudio, leitor de texto, gravador de vĂdeo, internet com redes sociais, etc. Diga-se de passagem, que em uma prisĂŁo isto faz uma enorme diferença.
40
controle das prisĂľes dentro da luta por melhores condiçþes de vida dentro das prisĂľes. Segundo o prĂłprio PCC: SĂł pelo sofrimento que somos obrigados a passar nesse lugar constituĂdo de Ăłdio, raiva e saudades ĂŠ onde temos mais forças pra nos tornar mais terroristas do que jĂĄ somos e atravĂŠs do nosso Ăntimo e força de vontade e onde lutaremos e sobreviveremos em qualquer lugar, pois de lealdade vivemos pra conseguirmos a nossa meta, que ĂŠ a paz, justiça e liberdade. E com a uniĂŁo de nossos irmĂŁos espalhados pelo sistema e apoiados pelos que estĂŁo do lado de fora faremos o nÂş 1 da mĂdia terrorista brasileira. NĂŁo somos os melhores nem os piores, pois somos isso que a prĂłpria sociedade criou. Primeiro Comando da Capital (JOZINO, 2005, p. 108).
A instalação daquilo que chamaremos aqui de redes criminosas dentro da prisĂŁo ĂŠ a primeira grande novidade penitenciĂĄria do sĂŠculo XXI. A primeira grande demonstração de organização do PCC, por exemplo, aconteceu com rebeliĂľes simultâneas em 2001. AtĂŠ entĂŁo, os presĂdios poderiam ser, no mĂĄximo, fontes de informação para o esclarecimento de determinados casos, fora das prisĂľes. Âł&RPDQGDU R FULPH p D SULPHLUD YH] $ YHUGDGH GDV UXDV QHP VHPSUH HVWi dentro dos SURFHVVRV R TXH SURYRFD DMXVWHV GH FRQWDV FRP UHVXOWDGRV TXDVH VHPSUH IDWDLV´ (SOUZA, 2006, p. 12). Os celulares facilitaram muito as relaçþes dentro das cadeias. Os aparelhos entravam (e entram) escondidos ou mesmo com a conivĂŞncia de funcioniULRV FRUUXSWRV H VXERUGLQiYHLV Âł&RP HOHV ILFRX PXLWR PDLV IiFLO SODQHMDU fugas, resgates e organizar outros crimes. Em sintonia telefĂ´nica com os executores das ordens, muitos assaltos e sequHVWURV IRUDP GHFLGLGRV H GHWHUPLQDGRV SHOR FHOXODU´ (SOUZA, 2007, p. 44). Segundo o relatĂłrio oficial na Secretaria da Administração PenitenciĂĄria de SĂŁo Paulo, publicado em 2004, desde sua fundação em 1993, o PCC transformou-se em poder paralelo e conseguiu a desativação de vĂĄrias unidades prisionais Âą como o Centro de Readaptação PenitenciĂĄria, o anexo de segurança mĂĄxima da Casa de CustĂłdia de TaubatĂŠ (onde o mesmo surgiu), a eliminação de grupos rivais que disputavam o controle de presĂdios e a libertação de internos por meio de açþes ousadas de resgate e seqĂźestros. Assim,
41 de modo geral tal facção criminosa tem levado vantagem no embate com as autoridades carcerĂĄrias, porque demonstra dispor de melhor organização hierĂĄrquica, rigor de conduta (em que qualquer desobediĂŞncia, nos termos de norma estatutĂĄria, implica condenação Ă morte e execução imediata) e, acima de tudo, eficientĂssimo sistema de comunicação, via celulares, jĂĄ que a corrupção alia-VH D WXGR R PDLV´ $LQGD VHJXQGR HVVH UHODWyULR RILFLDOPHQWH LJQRUDGR ÂłR 3&& praticamente passou a dirigir as grandes quadrilhas de assaltos a bancos, a condomĂnios de luxo e cargas valiosas, bem como o trĂĄfico de entorpecentes dentro das prisĂľes e fora delas, auferindo lucros que em parte servem para subsidiar as despesas com advogados e corrupção de funcionĂĄrios do sistema, proporcionando jV OLGHUDQoDV H DGHSWRV ERD DVVLVWrQFLD MXGLFLiULD´ (VVH PHVPR UHODWyULR Lnforma: ÂłRV PpWRGRV GH DWXDomR do movimento se sofisticaram a ponto de estar financiando os estudos de jovens de menor poder aquisitivo proporcionando-lhes Faculdade de Direito e subsistĂŞncia, mediante o compromisso de futura atuação nos Tribunais, em defesa dos integrantes daquela facção criminosa. Informaçþes existem tambĂŠm no sentido da facção, que ĂŠ considerada como partido estruturar-se para lançamento de possĂveis candidatos a cargos pĂşblicos. Multiplicam-se as denĂşncias do envolvimento direto de funcionĂĄrios do sistema prisional com o movimento (SOUZA, 2006, p.88-89).
A idĂŠia de um grupo organizado, solidĂĄrio, nĂŁo ĂŠ exatamente o de uma organização burocrĂĄtica. Segundo uma liderança do Comando Vermelho, significaria antes de tudo um tipo de comportamento, uma forma de sobreviver nas adversidades. ÂłO que nos mantinha vivos e unidos nĂŁo era nem uma hierarquia, nem uma estrutura material, mas sim a afetividade que desenvolvemos uns com os outros nos perĂodos mais duros de nossas vidas´ /,0$ S 96). As lideranças desses grupos, quando comparadas Ă massa carcerĂĄria e criminosa em geral, possuem altos atributos e qualidades que lhes permitem liderar e comandar os demais. Um exemplo bem conhecido ĂŠ o de Marcos William Herbas Camacho, o (Marcola), conhecido pela sua capacidade de liderar, de articular e barganhar, assim como sua visĂŁo em termos de planejamento de açþes e no enfrentamento de outros grupos e da polĂcia10. Da mesma maneira, outras lideranças do PCC e do CV se mostraram possuidores de um diferencial que lhes possibilitou subir e permanecer no comando da rede criminosa (PORTO, 2007, p. 76). O PCC e o CV podem, num primeiro momento, ser atĂŠ mesmo pensadas como elites criminosas. Afinal, enquanto elites, as lideranças dessas organizaçþes se comportam como peças chaves nos movimentos criminosos, assim como indivĂduos capazes de mobilizar e organizar seus militantes. Nelas, certo elemento organizativo ĂŠ 10
Principalmente no controle do narcotrĂĄfico (RODRIGUES, 2003).
42
central na efetivação desses grupos, assim como, sem o elemento compulsório e sem as possibilidades comunicacionais, não seriam possíveis (BRANDÃO, 2008, p. 1516). Mais especificamente em 2006 (mas, repetindo ações que vêm ocorrendo desde pelo menos o ano 200111), o país assistiu a ação coordenada de uma série de rebeliões, principalmente no Estado de São Paulo. Essas, além de se apresentarem como frutos de exigências imediatistas ± tais como direito a visitas íntimas e melhoria da alimentação ± tiveram também um objetivo político estrategicamente posto: desarticular e desacreditar o Estado enquanto instituição capaz de manter o monopólio do uso da força e, por isto, enquanto mantenedor da ordem e da segurança jurídica (BRANDÃO, 2008). É salutar, porém, levar em conta que em 2001, diferentemente de 2006, apenas um item das reivindicações se relacionava diretamente com a organização: o cancelamento das transferências feitas para desarticular o PCC. Os outros itens da pauta diziam respeito ao tratamento que todos recebem: fim da tortura, punição de agentes penitenciários por abuso de poder e espancamentos, melhoria da assistência judiciária gratuita e fim das revistas vexatórias das visitas (CARVALHO FILHO, 2002, p. 09).
Neste sentido, chama a atenção para a capacidade articuladora e aglutinadora desses grupos e atores sociais. Mesmo dentro de instituições que possuem por objetivo retirar do indivíduo toda a perspectiva socializadora e sociabilizante é possível visualizar a construção de redes de inter-relações e de identidades. Estas últimas se pautam em valores e elementos simbólicos ligados exatamente àquilo que a sociedade ojeriza: o crime, visto como ponto de partida para a construção dessas novas identidades ligadas à pena e ao castigo socialmente e juridicamente imposto. Ser traficante, homicida, assaltante ou mesmo (o mais odiado dentro e fora das prisões) estuprador, representa estar ligado a uma série de possibilidades de poder de permissões, de acessos, de regalias, de atribuições, e de tantas outras ações e relações
11
Segundo Roberto Porto (2007), a primeira mega rebelião liderada pelo PCC deu-se em 18 de fevereiro de 2001, onde 28 mil presidiários em 29 unidades prisionais de São Paulo rebelaram-se ao mesmo tempo. O mesmo quadro verificado em 2006 já estava totalmente posto na época: uso de celulares e uma situação de revolta e desespero frente ás péssimas condições de internamento.
43
sociais que se efetivam dentro daquele espaço carcerĂĄrio (BRANDĂ&#x192;O, 2008, p. 03). No Brasil, persiste uma violĂŞncia institucional e policial que se inscreve em uma tradição nacional secular de controle dos pobres e miserĂĄveis pela força, tradição advinda da escravidĂŁo e dos conflitos rurais, que se viu fortalecida por vĂĄrios momentos de exceção, como a ditadura Vargas e por duas dĂŠcadas de ditadura PLOLWDU TXDQGR D OXWD FRQWUD D ÂłVXEYHUVmR LQWHUQD´ VH GLVIDUoRX HP repressĂŁo aos delinquentes. Essa violĂŞncia apĂłia-se Âłnuma concepção hierĂĄrquica e paternalista da cidadania, fundada na oposição cultural entre feras e doutores RV ÂľselvagensÂś e os ÂľcultosÂś,
que
tende
a
assimilar
marginais,
trabalhadores
e
criminosos´
(WACQUANT, 2001, p. 09). AlĂŠm disso, um terceiro fator complica gravemente o problema: o recorte da hierarquia de classes e da estratificação etnorracial e a discriminação baseada na cor, endĂŞmica nas burocracias policial e judiciĂĄria. (...) 3HQDOL]DU D PLVpULD VLJQLILFD DTXL Âłtornar LQYLVtYHO´ R SUREOHPD QHJUR H DVVHQWDU D GRPLQDomR UDFLDO GDndo-lhe um aval de Estado. (...). A propĂłsito, o desinteresse flagrante e a incapacidade patente dos tribunais em fazer respeitar a lei encorajam todos aqueles que podem buscar soluçþes privadas para o problema da insegurança Âą EDUULFDGDV HP ÂłEDLUURV IRUWLILFDGRV´ JXDUGDV DUPDGRV ÂłYLJLOkQFLD´ WROHUDGD H DWp HQFRUDMDGD SRU SDUWH dos justiceiros e das vĂtimas de crimes Âą, o que tem por principal efeito propagar e intensificar a violĂŞncia (WACQUANT, 2001, p. 09-10).
Desenvolver o Estado penal para responder aos problemas suscitados pela desregulamentação da economia, pela precarização do trabalho assalariado e pela pauperização relativa e absoluta de amplos contingentes dos trabalhadores urbanos, aumentando os meios, a amplitude e a intensidade da intervenção do aparelho policial H MXGLFLiULR HTXLYDOH D HVWDEHOHFHU XPD YHUGDGHLUD Âłditadura sobre os pobres´ Temos tambĂŠm o grave problema do sistema penal e carcerĂĄrio no Brasil: o estado periclitante das prisĂľes do paĂs, que se parecem mais com Âłcampos de concentração para pobres´, ou com Âłorganizaçþes pĂşblicas de depĂłsito dos dejetos sociais, do que com instituiçþes judiciĂĄrias servindo para alguma fração penalĂłgica Âą dissuasĂŁo, neutralização RX UHLQVHUomR´ (WACQUANT, 2001). Apesar disso, o Brasil conta com um diploma legal, sancionado ao fim do Regime Militar em 1984, a LEP (Lei de Execuçþes Penais, n° 7.210). Objetivava HVVHQFLDOPHQWH SURSRUFLRQDU DV FRQGLo}HV ÂłSDUD D KDUP{QLFD LQWHJUDomR VRcial do
44
FRQGHQDGR H GR LQWHUQDGR´ $UW Â&#x17E; 3DXtou-se no princĂpio constitucional da individualização executĂłria, ou seja, a pena deve ser individual, exclusiva ao condenado assim como o respeito aos direitos individuais e coletivos, os direitos humanos propriamente ditos. A LEP legalizou as formas pelas quais o Estado Brasileiro deve tratar seus condenados, dando-lhes condiçþes mĂnimas de cumprir sua pena com dignidade, lembrando que sua pena ĂŠ de privação de liberdade e nĂŁo de suplĂcios outros. Regula primeiramente a separação, a classificação (que quase nunca ocorrem conforme a lei determina), exigindo para isso, uma sĂŠrie de exames criminolĂłgicos, psiquiĂĄtricos e mĂŠdicos. Ao mesmo tempo, passou a exigir tambĂŠm a formação de uma ComissĂŁo TĂŠcnica de Classificação que cumpre o papel de gerir a separação. PouquĂssimas prisĂľes no Brasil a possuem. Nenhuma no Rio Grande do Norte, a tĂtulo de lembrete. Outro ponto apontado pela LEP ĂŠ a assistĂŞncia ao preso: social, mĂŠdica, odontolĂłgica, religiosa, psĂquica, educacional, jurĂdica e material. Quase nada disso ĂŠ verificado em nossas prisĂľes. O mĂĄximo que se observa ĂŠ a assistĂŞncia religiosa, que fica a encargo de entidades e igrejas fora do âmbito estatal. O direito ao trabalho aparece em algumas prisĂľes, mas, como vamos mostrar em Alcaçuz, as atividades que a maioria dos presos realiza sĂŁo administrativas e, muitas vezes, vĂŁo alĂŠm das horas previstas em lei, alĂŠm de nĂŁo haver remuneração alguma. O direito Ă assistĂŞncia jurĂdica Âą absolutamente desrespeitado Âą leva fatalmente a um gradual sentimento de injustiça presente entre os presos. Muitos terminam por verem nĂŁo atendidos, seus direitos Ă progressĂŁo de pena ou mesmo Ă soltura, apĂłs o cumprimento integral da mesma. Algumas vezes, por iniciativa de membros do judLFLiULR RFRUUHP ÂłPXWLU}HV SHQLWHQFLiULRV´ RQGH MXt]HV SURFXUDGRUHV H DGYRJDGRV UHDOL]DP UHYLV}HV GH processos hĂĄ muito parados no tempo. No mais das vezes, como apontado por este trabalho, os prĂłprios presos, principalmente aqueles poucos com instrução para tanto, realizam precariamente o trabalho. Outros direitos dizem respeito Ă disciplina, ao respeito Ă integridade do corpo e da sanidade mental do apenado, assim como a uma prisĂŁo limpa, digna, com espaço adequado e com comida limpa e rotineira. Nas prisĂľes brasileiras e potiguares
45
superlotadas, verifica-se o flagrante descumprimento da LEP, onde os presos vivenciam um ambiente insalubre, gerador de insatisfação e rebeliĂľes. No tocante Ă higienização carcerĂĄria, a LEP expressamente dispĂľe que o preso condenado deverĂĄ ser alojado em cela individual, composta por sanitĂĄrio e lavatĂłrio, com ĂĄrea mĂnima de seis metros quadrados, em ambiente com salubridade, aeração, insolação e condicionamento tĂŠrmico, sendo que nos estabelecimentos femininos exige-se ainda a instalação de seção para gestantes e parturientes alem de creches para acomodar seus filhos (NUCCI, 2010). O direito Ă visita ĂŠ hoje, com certeza, o mais respeitado. Quando nĂŁo, por retaliação ou indisciplina, ĂŠ o maior ocasionador de revoltas e de rebeliĂľes. O direito Ă visita Ăntima, conquistado pelos presos, ĂŠ tambĂŠm um direito salutar e fundamental para a manutenção da ordem nas prisĂľes. O bom tratamento das visitas por parte da administração prisional pode ou nĂŁo ser um fator causador de distĂşrbios ou de desordem. DaĂ que, como nos confidenciou uma agente prisional, na entrada e nas revistas das mulheres e mĂŁes dos presos, ĂŠ possĂvel perceber o inĂcio de algum provĂĄvel tumulto. O papel das visitas incorre tanto na realização de um direito, como na prĂłpria construção de redes sociais na prisĂŁo, como mostraremos Ă frente.
2.2. O sistema prisional do Rio Grande do Norte e a penitenciåria de Alcaçuz
A PenitenciĂĄria Dr. Francisco Nogueira Fernandes, inaugurada em 26 de março de 1998, surgiu com o propĂłsito de desafogar o sistema prisional do Rio Grande do Norte. Nasceu como presĂdio de segurança mĂĄxima e, fugindo do histĂłrico prisional no estado atĂŠ entĂŁo, como provĂĄvel espaço de respeito aos direitos humanos. Deveria ser o oposto da precĂĄria PenitenciĂĄriD &HQWUDO 'U -RmR &KDYHV R Âł&DOGHLUmR GR 'LDER´ ORFDOL]DGR QD =RQD 1RUWH GH 1DWDO &DSLWDO Esta, por sua vez, foi em sua ĂŠpoca tambĂŠm modelo de instituição penal, quando substituiu o velho presĂdio da capital, depois transformado em Centro de Turismo. Segue-se essa mesma linha de acontecimentos desde a velha Casa de Câmara e Cadeia, demolida em 1911. Segundo LuĂs da Câmara Cascudo, a velha construção
46
erguia-se, sólida e maciça, com as paredes de pedra, arcadas da cantaria, dois janelþes baixos e cinco no sobrado, com o xadrezado de ferro, saindo de cåpsulas de chumbo, respirando vida colonial, impondo-se pelo aspecto atarracado, feio, sujo, pesado, opressor. Apesar das reformas e remodelaçþes, atravÊs de cento e oitenta e oito anos, conservava a fisionomia severa e sinistra de uma fortaleza, um resto de castelo roqueiro, ainda fiel ao passado, pompeando na praça ridente do sÊculo XX. Detrås das grades negras, os presos furavam a vida com olhares famintos (1999, p. 167).
O prĂŠdio do sĂŠculo XVIII foi substituĂdo a 20 de maio de 1911 pela Casa de Detenção de PetrĂłpolis, que atĂŠ 1945 funcionava precariamente em um imĂłvel prĂłximo, e foi transferida para o prĂŠdio do orfanato pĂşblico, atual Centro de Turismo, o imenso casarĂŁo da Rua Aderbal de Figueiredo, ampliado e transformado em presĂdio. Em 1953, inicia-se a construção da nova e moderna penitenciĂĄria, concluĂda apenas em 1968. As dĂŠcadas seguintes vivenciariam o crescimento da regiĂŁo, com a construção de novos bairros e da maior regiĂŁo populacional da cidade, a Zona Norte de Natal. TambĂŠm seriam vivenciadas DV KLVWyULDV GR Âł&DOGHLUmR GR 'LDER´ FRP suas fugas e mortes, sua superlotação e suas pĂŠssimas condiçþes de encarceramento. )LJXUDV FRPR Âł1DOGLQKR GR 0HUHWR´ Âł'HPLU´ H Âł3DXOR 4XHL[DGD´, por exemplo, passaram a fazer parte do imaginĂĄrio do potiguar que acompanhava o cotidiano de violĂŞncia e de desrespeito aos direitos humanos na PenitenciĂĄria Dr. JoĂŁo Chaves. Em meados da dĂŠcada de 1990, as autoridades governamentais, devido a forte pressĂŁo pĂşblica, resoOYHP LQLFLDU R SURFHVVR GH GHVDWLYDomR GR Âł&DOGHLUmR GR 'LDER´ Saliente-se que nĂŁo apenas a violĂŞncia foi fator determinante, assim como as fugas constantes, mas o fato de que, como jĂĄ salientado, o entorno da penitenciĂĄria estar completamente cheio de residĂŞncias. Luiz AntĂ´nio, 59 anos, preso por homicĂdio e assalto, trabalhava como pedreiro antes da prisĂŁo. O apenado de Alcaçuz passou boa parte de sua vida em prisĂľes. Em suas lembranças da ĂŠpoca em que passou pela JoĂŁo Chaves, esse perĂodo foi marcado pela violĂŞncia onde imperavam mortes constantes e o presĂdio chegou a ser comparado a Alcatraz, penitenciĂĄria norte-americana imortalizada pelo cinema.
47 (...) eu cheguei na JoĂŁo Chaves no tempo que matavam um agora e daqui a pouco matavam outro de novo [sic]. Ă&#x2030; tanto que ĂŠ o seguinte, eu agora quando estava em OLEHUGDGH R SRYR IDODYD FKDPDYD LVVR DTXL GH Âł$ ,OKD´ HUD UHODFLRQDQGR FRP aquela ilha famosa de... Alcatraz. Que era uma prisĂŁo considerada perigosa. Relacionando com Alcatraz. Alcatraz era uma penitenciĂĄria considerada perigosa (LUIZ ANTĂ&#x201D;NIO, 59 ANOS).
Beto, 41 anos, cumprindo pena em Alcaçuz por trĂĄfico de drogas e assalto Âą trabalhava antes FRPR ÂłELVFDWLVWD´ RX VHMD em atividades mal remuneradas e sem vĂnculo empregatĂcio Âą tambĂŠm foi um detento que passou pela JoĂŁo Chaves. Seu relato nos remete Ă s mortes constantes e aR ÂłUHLQDGR GH WHUURU´ que imperava naquele presĂdio, relatando o perĂodo considerado mais violento da histĂłria do sistema prisional do RN, a dĂŠcada de 1980. Assassinatos, esquartejamentos, estupros e outros crimes. Um detalhe, porĂŠm, salta aos nossos olhos: nĂŁo se verificavam a presença de grupos ou redes organizadas. Eram figuras isoladas que impunham certo regime de terror no presĂdio: Aquele perĂodo que eu tive lĂĄ foi a ĂŠpoca da matança, de Paulo Queixada, de Demi, eram os terror nĂŠ? [sic] Naquela ĂŠpoca eram os terror [sic]. Todo dia morriam um dois, todo dia. Na cadeia o cara tem de fazer a parte do cara. NĂŁo ser teleguiado por ninguĂŠm, nĂŁo entrar no jogo deles, fazer vista grossa, se tiver de fazer quem vai responder a bronca ĂŠ ele. Eu nunca fui convidado para fazer esses negĂłcios de participar dessas coisas, mas jamais eu iria participar, pois eu nĂŁo devia nada para cobrar nada de ninguĂŠm12.
Hoje, o Rio Grande do Norte conta com um total de 6.123 presos, com uma mĂŠdia de 195,15 presos por 100.000 habitantes (levando-se em consideração a população considerada de trĂŞs milhĂľes e trĂŞs mil habitantes). Apenas um quarto deste total cumpre pena em PenitenciĂĄrias, sendo a maioria custodiada em delegacias, cadeias pĂşblicas ou centros provisĂłrios. A maior parte dos presos do RN, segundo o 12 Paulo NicĂĄcio da Silva, o Paulo Queixada, matou um mĂŠdico e uma enfermeira, nos anos 80, e colocou fogo nos corpos. Ao ingressar na penitenciĂĄria JoĂŁo Chaves se tornou o maior matador da histĂłria da prisĂŁo, assassinando 10 detentos. Vlademir Alex Mendes de Oliveira, o Demi, matava colegas de cela junto com Paulo Queixada e Naldinho do Mereto. No final, sobreviveu aos dois. Quando matou Paulo Queixada se tornou o mais temido da prisĂŁo. O crime teve a maior repercussĂŁo da histĂłria da JoĂŁo Chaves. Os policiais pensavam que Queixada tinha fugido, mas descobriram que ele estava morto, esquartejado e enterrado na cela abaixo da rede de Demi. Ivanaldo FĂŠlix da Silva, o Naldinho do Mereto, bairro onde viveu a adolescĂŞncia, ficou conhecido ao aliar-se a Paulo Queixada na prisĂŁo e realizou com ele uma sequĂŞncia de mortes. Arrancava os olhos das vĂtimas para ter a certeza de que nĂŁo seria reconhecido no inferno (DIARIO DE NATAL, 2006, p. 07).
48
DEPEN (Departamento Penitenciário Nacional) encontra-se preso por crimes contra a pessoa, como homicídio, tentativa de homicídio e sequestro, aproximadamente 45% do total. Outros principais são os crimes contra o patrimônio, que abrangem em torno de 30% do total, tráfico de drogas, perfazendo 20% do total. Os restantes, cerca de cinco por cento estão os demais delitos, a maioria sendo caracterizados como crimes contra os costumes. TABELA 05 ± Unidades Penitenciárias do Rio Grande do Norte UNIDADE PRISIONAL LOCAL Cadeia Pública de Caraúbas
Caraúbas
Cadeia Pública de Mossoró
Mossoró
Cadeia Pública de Natal
Natal (Santarém)
Centro de Detenção Provisória da Ribeira
Natal (Ribeira)
Centro de Detenção Provisória da Zona Norte
Natal (Santa Catarina)
Centro de Detenção Provisória de Candelária
Natal (Candelária)
Complexo Penal Dr. João Chaves
Natal (Potengi)
Complexo Penal Estadual Dr. Mário Negócio
Mossoró
Complexo Penal Estadual de Pau dos Ferros
Pau dos Ferros
Penitenciária Estadual de Alcaçuz
Nísia Floresta
Penitenciária Estadual de Parnamirim
Parnamirim
Penitenciária Estadual do Seridó
Caicó
Unidade Psiquiátrica de Custódia e Tratamento
Natal (Santarém)
Fonte: SEJUC ± Secretaria de Justiça e Cidadania/Governo do Estado do Rio Grande do Norte ± 2011
O crescimento carcerário do Rio Grande do Norte acompanha o crescimento nacional. Para dar conta desta demanda, se inicia em meados da década de 1990 a construção de novos centros penitenciários. Neste ínterim, em 1995 começa, no Município de Nísia Floresta, a construção do presídio de Alcaçuz, ³Penitenciária Dr. Francisco Nogueira Fernandes´. Em sua placa de inauguração lê-se: ³Edificada para preencher uma função social, esta obra não deve perder de vista os ditames da declaração uQLYHUVDO GRV GLUHLWRV KXPDQRV µtodo homem tem o direito de ser, em todos os lugares, reconhecido como pessoa humana perante a lei (art.6º)¶´
49
O artigo jurídico e iluminista contrasta flagrantemente ao que os olhos do visitante assistem quando visualizam pela primeira vez o presídio. A dificuldade de acesso é o primeiro detalhe, tanto para os visitantes e famílias dos apenados, quanto para os próprios agentes e guardas. Uma estrada carroçável, em geral tomada pela lama e pelos buracos no período chuvoso, é a única alternativa e liga o povoado de Pium, município de Parnamirim (Região Metropolitana de Natal), até o local. Alcaçuz possui uma grande torre de vigia, que pode ser de longe avistada pelos que chegam e pelos que passam. A princípio, nesta torre ficava uma metralhadora ³ponto 40mm´ que não mais existe. Ao adentrar, antes de chegar ao Salão Central, passa-se por uma guarita onde fica a guarda, composta por homens da Policia Militar do RN, com seu alojamento e cozinha. Entre a guarda e o presídio existe um pátio de estacionamento exclusivo para os agentes e policiais. No Salão e em seus anexos, ficam a administração, refeitórios e dormitórios dos agentes, uma sala de revistas que conta com um detector de metais (que, volta e meia, passa longo tempo sem funcionar, à espera de manutenção), uma sala de visitas com separadores, para uso dos presos e seus familiares e advogados. Em dias oficiais de visitas (sábados e domingos) ela não é utilizada. Passando-se pelo Salão Central chega-se ao pátio interno do presídio, onde é possível avistar os quatro grandes pavilhões do regime fechado13, o pavilhão dos presos que trabalham na penitenciária em regime de remissão de pena e o pavilhão da cozinha e oficinas. Mais atrás, encontram-se os dois pavilhões construídos recentemente para desafogar o presídio, mas que foram embargados pelo Ministério Público por estarem em desacordo com normas ambientais. TABELA 06 ± Total de Presos e Agentes Presos
Agentes
Média
90
7,14 Preso/Agente
643 Fonte: CNJ ± Conselho Nacional de Justiça ± Junho de 2011
13 Hoje, o presídio conta com mais um pavilhão, construído em padrões mais rigorosos e melhor estruturado. O mesmo foi inaugurado em 2012, após a conclusão desta pesquisa.
50
Os 643 apenados de Alcaçuz (Fonte: CNJ ¹ Conselho Nacional de Justiça ¹ Junho de 2011) se distribuem em seus cinco pavilhþes14. Trinta e cinco deles são presos provisórios, habitando os mesmos espaços. O mais lotado e considerado ³SHULJRVR´ SHORV DJHQWHV H SHOD JXDUGD p R Pavilhão 2, foco de vårias fugas e rebeliþes. O total de agentes Ê de noventa, dividindo-se em equipes de 24 horas, com folga de quarenta e oito horas, o que perfazem cerca de quatro equipes. Neste sentido, a mÊdia de agentes cai de um para cada 7,14 presos, para um agente para cada 28 presos. Mais realisticamente, porÊm, o número de agentes devido a licenças mÊdicas, fÊrias e outros fatores caem pela metade, deixando o número de agentes insuficientes para gerir a penitenciåria. Cada pavilhão possui dois pavimentos, com exceção do pavilhão 3, o maior, que possui o dobro de espaço. Segundo o CNJ (Conselho Nacional de Justiça), a VLWXDomR GR SUHVtGLR p GH ³UXLP´ D ³PXLWR SUHFiULD´ TABELA 07 ¹ Quantidade de Presos por Pavilhão em Alcaçuz Pavilhão 1 2 3 4 Trabalho
Capa
Total
Presos
183
122
98
95
99
38
643
Celas
30
15
50
16
11
25
147
Fontes: Dados obtidos na Pesquisa de Campo ¹ Diretoria Administrativa da Penitenciåria Estadual Dr. Francisco Nogueira Fernandes ¹ Alcaçuz ¹ Julho de 2011.
Em geral, a divisĂŁo por pavilhĂľes ĂŠ feita por tempo de pena a ser cumprida e pelo tipo de crime cometido. Uma das alas do PavilhĂŁo 3 p R ÂłLVRODGR´ RQGH RV presos condenados por crime de estupro e outros presos cujas vidas estĂŁo ameaçadas no presĂdio, ficam separados dos demais. Adjunto ao pavilhĂŁo do trabalho fica a ÂłFKDSD´ RX VHMD XPD DOD onde se encontram as celas da solitĂĄria, espĂŠcie de castigo para os presos que estĂŁo em adaptação ou cometeram alguma transgressĂŁo disciplinar15. Os detentos nestas situaçþes pRGHP ILFDU QD ÂłFKDSD´ por atĂŠ 40 dias
14
Ver justificativa esboçada na nota 02. Nessas celas o mau cheiro Ê insuportåvel. Usavam em geral apenas cuecas ou bermudas e dormem no chão úmido, sem acesso a colchão, rede ou lençol. Nas celas sequer existe instalação elÊtrica. A porta de ferro das FHODV FRQKHFLGDV HQWUH RV SUHVRV FRPR ³FKDSD´ LPSHGH D HQWUDGD GH OX] ³ QRLWH p XP EUHX $ JHQWH QmR Yr QDGD´ FRQWRX XP SUHVR 75,%81$ '2 1257( MP flagra irregularidades na Penitenciåria de Alcaçuz.
15
51
(podendo permanecer mais tempo, dependendo da punição), sem receber visitas e sem direito ao banho de sol. Passar por aqui nĂŁo significa apenas castigo, mas a possibilidade de (para os que estĂŁo em fase de adaptação), apĂłs o perĂodo na mesma, poderem trabalhar no presĂdio, principalmente na faxina. Os dias tradicionais de visita sĂŁo os sĂĄbados e domingos. Dois pavilhĂľes por vez, alternando-se a cada fim de semana. A maior parte dos visitantes sĂŁo mulheres e crianças: mĂŁes, esposas e filhos dos apenados. Chegam cedo, Ă s vezes perto das trĂŞs da madrugada e esperam atĂŠ Ă s oito da manhĂŁ para entrar para a visita. Trazem comida, refrigerantes, material de higiene pessoal e remĂŠdios. Esses materiais sĂŁo FKDPDGRV GH ÂłMXPERV´ HP UHIHUrQFLD DRV JUDQGHV DYL}HV de passageiros e cargas. Nas quartas-feiras, ocorrem as visitas Ăntimas para os presos casados e cadastrados. Todas passam pela revista do presĂdio que conta com agentes femininas para o processo. Muitas das mulheres que pudemos conversar fazem esse percurso todas as semanas. Chegam, FRPR GLVVHUDP ÂłSara SDJDU D SHQD´ FRP seus maridos ou filhos. O custo ĂŠ alto, nĂŁo sĂł de deslocamento (pela falta de transporte pĂşblico atĂŠ o local), como pelo fato de ter de se trazer o jumbo sempre. Um dos maiores inconvenientes apontados foi a demora quanto Ă entrada do presĂdio. Como o nĂşmero de agentes ĂŠ extremamente reduzido, apenas quatro fazem o trabalho de revista (dois homens e duas mulheres). Em alguns dias, pode-se gastar atĂŠ trĂŞs horas para todos os visitantes adentrarem. Alcaçuz ĂŠ cercado por um muro alto (cerca de 8 metros de altura), circundado por dez guaritas externas (torres de vigia). Esses muros nĂŁo possuem luz elĂŠtrica, banheiro e nem proteção alguma. Da mesma forma, nĂŁo hĂĄ iluminação externa e a troca da guarda ĂŠ feita com lanternas e gritos Ă noite. A sensação de insegurança, para os guardas, conforme relatado, ĂŠ imensa. A estrutura fĂsica da PenitenciĂĄria, embora seja ainda bastante recente, encontra-se extremamente deteriorada. O piso das celas nĂŁo possui proteção de concreto, sendo, assim como as paredes, feitos de tijolos de argila e argamassa. O resultado ĂŠ que o presĂdio, no dizer de seus habitantes, ĂŠ um Caderno Natal. 01 de Julho de 2006. < http://tribunadonorte.com.br/noticia.php?id=14878> Acessado em 28/10/2007.
52
YHUGDGHLUR ÂłTXHLMR suĂço´ 7~QHLV H EXUDFRV IDFLOLWDGRV SHOR VROR OLWRUkQHR HVWmR SRU toda a parte. As tentativas de fuga, muitas com ĂŞxito, sĂŁo constantes e diĂĄrias. Os postos mĂŠdico e odontolĂłgico nĂŁo funcionam mais hĂĄ muitos anos. ApĂłs uma rebeliĂŁo, a padaria e a cozinha (funcionais atĂŠ 2010) foram destruĂdas. Estas se encontravam contĂguas ao PavilhĂŁo do Trabalho, assim como a lavanderia. Assim como a cozinha, esta ĂŠ de tipo industrial e serve a todo o presĂdio. Outro espaço VLJQLILFDWLYR p D Âł)iEULFD GH &DUWXFKRV´ XPD RILFLQD GH UHFLFODJHP GH FDUWXFKRV GH impressoras de computador que fica anexa ao PavilhĂŁo do Trabalho. Superlotado (sua capacidade ĂŠ para pouco mais de 250 apenados), estruturalmente deficitĂĄrio, o presĂdio nĂŁo mais pode ser chamado de segurança mĂĄxima. Pelo contrĂĄrio, possui a mais alta estatĂstica de fugas dentre os presĂdios do Rio Grande do Norte. O presĂdio, nos Ăşltimos anos, passou por diversas diretorias, todas removidas devido a crises subsequentes causadas pelo maior problema que aflige o local: fugas constantes atravĂŠs dos inĂşmeros tĂşneis que ligam os pavilhĂľes ao outro lado dos muros. Principalmente o PavilhĂŁo 4, pela sua proximidade ao lado esquerdo do muro do presĂdio.
53
3 Habitus precário e sociabilidade violenta ³ 0ãe... (...) Seis horas... Apaga-se a luz de mais um dia, na tarde tristonha o sino tange momentos de orações - Ave Maria - tudo vai ficando quieto só na cidade se ouve alaridos, burburinho de carros, metrôs e sons coloridos chegam com a gargalhada de uma criança. E assim todo nosso ambiente vai se fazendo mais cercado e silente pelas muralhas da solidão e da desesperança. Nove horas... A sentinela lá de sua guarita distante, sobre um dos portões fortes e gigantes, inicia o toque de silêncio em seu clarim. O cerco da solidão vai se apertando a medida que as luzes vão se apagando. Noite dos fantasmas e tenebrosa pra mim´ (Muralhas da Solidão - Lindomar Castilho).
54
3.1. O habitus numa economia simbĂłlica
Para Pierre Bourdieu sĂŁo enquanto instrumentos estruturados e estruturantes de comunicação e de conhecimento, que os sistemas simbĂłlicos cumprem a sua função polĂtica de instrumentos de imposição ou de legitimação da dominação. Ao mesmo tempo, ÂłFRQWULEXHP SDUD DVVHJXUDU D GRPLQDomR GH XPD FODVVH VREUH RXWUD YLROrQFLD simbĂłlica) dando o reforço da sua prĂłpria força Ă s relaçþes de força que as fundamentam e contribuindR DVVLP SDUD D ÂľGRPHVWLFDomR GRV GRPLQDGRVϫ (BOURDIEU, 1989, p. 11-12). Deste modo, o campo de produção simbĂłlica ĂŠ visto FRPR ÂłXP PLFURFRVPRV GD OXWD VLPEyOLFD HQWUH DV FODVVHV p DR VHUYLUHP RV VHXV interesses na luta interna do campo de produção (e sĂł nesta medida) que os SURGXWRUHV VHUYHP RV LQWHUHVVHV GRV JUXSRV H[WHULRUHV DR FDPSR GH SURGXomR´ (IDEM). Os sistemas simbĂłlicos distinguem-se fundamentalmente conforme sejam produzidos e, ao mesmo tempo, apropriados pelo conjunto do grupo ou, pelo contrĂĄrio, construĂdos por um corpo de especialistas e, mais precisamente, por um campo de produção e de circulação relativamente autĂ´nomo. Para Bourdieu, pode-se representar o mundo social na forma de um espaço (a vĂĄrias dimensĂľes) construĂdo na base de princĂpios de diferenciação ou de distribuição constituĂdos pelo conjunto das propriedades que atuam no universo social considerado, quer dizer, apropriadas a conferir, ao detentor delas, força ou poder (ou capital: econĂ´mico, social, cultural e simbĂłlico) neste universo. Os agentes e grupos de agentes sĂŁo assim definidos pelas suas posiçþes relativas neste espaço (BOURDIEU, 1989, p.133-134).
Assim, na medida em que as propriedades tidas em consideração para se construir este espaço sĂŁo atuantes, ele pode ser descrito tambĂŠm como um campo de forças, ou seja, como um conjunto de relaçþes de forças objetivas impostas a todos os que entrem nesse campo e irredutĂveis Ă s intençþes dos agentes individuais ou mesmo Ă s interaçþes diretas entre os agentes. O espaço social e as diferenças que nele se desenham tendem de forma espontânea a funcionar simbolicamente como espaço dos estilos de vida ou como conjunto de grupos caracterizados por estilos de vida
55
diferentes (BOURDIEU, 1989, p. 144). Da mesma forma, o espaço social ĂŠ um espaço de mĂşltiplas dimensĂľes, um conjunto aberto de campos relativamente autĂ´nomos, ou seja, que sĂŁo subordinados quanto ao seu funcionamento e Ă s suas transformaçþes Âą de modo mais ou menos firme e direto Âą ao campo de produção econĂ´mica: no interior de cada um dos subespaços, os ocupantes das posiçþes dominantes e os ocupantes das posiçþes dominadas estĂŁo ininterruptamente envolvidos em lutas (ou em alianças possĂveis) de diferentes formas (sem por isso se constituĂrem necessariamente em grupos de antagonistas) (BOURDIEU, 1989, p. 153).
O que se busca ĂŠ estabelecer o conhecimento da organização interna do campo simbĂłlico Âą cuja eficĂĄcia reside justamente na possibilidade de ordenar o mundo natural e social atravĂŠs de discursos, mensagens e representaçþes, que nĂŁo passam de alegorias que simulam a estrutura real de relaçþes sociais Âą a uma percepção de sua função ideolĂłgica e polĂtica e legitimar uma ordem arbitrĂĄria em que se funda o sistema de dominação vigente. Podemos falar de um campo da delinquĂŞncia, assim como falamos de um campo religioso? Caso possamos, este novo campo deve poder abranger as configuraçþes particulares que o campo da delinquĂŞncia assume em diversas formaçþes sociais. Suas caracterĂsticas partem do quadro de referĂŞncia do campo de forças propriamente transgressoras no interior do qual se defrontam os representantes delinquentes dos grupos dominantes e dominados (existindo em ambos). Sua dinâmica depende das transformaçþes por que passa a estrutura social, seja pelo surgimento de novos grupos com interesses determinados, seja pela ruptura ou crise do sistema de dominação, seja pelas novas alianças entre grupos e/ou fraçþes que detĂŞm o papel hegemĂ´nico. Para tanto, ĂŠ interessante aqui discutir aqui a teoria de mercado de bens simbĂłlicos em Bourdieu. A noção de espaço contĂŠm, em si, o princĂpio de uma apreensĂŁo relacional do mundo social: HOD DILUPD GH IDWR TXH WRGD D ÂłUHDOLGDGH´ TXH GHVLJQD UHVLGH QD exterioridade mĂştua dos elementos que a compĂľem. Os seres aparentes, diretamente visĂveis, quer se trate de indivĂduos quer de grupos, existem e subsistem na e pela diferença, isto ĂŠ, enquanto ocupam posiçþes relativas em um
56 espaço de relações que, ainda que invisível e sempre difícil de expressar empiricamente, é a realidade mais real (ens realissimum, como dizia a escolástica) e o princípio real dos comportamentos dos indivíduos e dos grupos (BOURDIEU, 1996, p. 49).
Em geral, as sociedades se apresentam como espaços sociais, isto é, estruturas de diferenças que não podem ser compreendidas de forma integral a não ser construindo princípios geradores que fundamentam essas diferenças na objetividade. Princípios como o da estrutura da distribuição das formas de poder ou dos tipos de capital eficientes no universo social considerado ± que variam, portanto, de acordo com os lugares e os momentos. Assim, o espaço social global é descrito como um campo, isto é, como um campo de forças, cuja necessidade se impõe aos agentes que nele se encontram envolvidos, e como um campo de lutas, no interior do qual os agentes se enfrentam, com meios e fins diferenciados conforme sua posição na estrutura do campo de forças, contribuindo assim para a conservação ou a transformação de sua estrutura (BOURDIEU, 1996, p. 50).
O desenvolvimento do sistema de produção de bens simbólicos é paralelo a um ³SURFHVVR GH GLIHUHQFLDomR FXMRV SULQFtSLRV UHVLGHP QD GLYHUVLGDGH GRV S~EOLFRV DRV quais as diferentes categorias de produtores destinam seus produtos, e cujas condições de possibilidade residem na própria naturH]D GRV EHQV VLPEyOLFRV´ (BOURDIEU, 1992, p. 102-103). Ou seja, para cada tipo de categoria de produtos, derivada da própria característica do bem simbólico, ter-se-ia um mercado próprio. Os bens simbólicos se constituem enquanto realidades com dupla face ± mercadorias e significações ±, cujo valor propriamente cultural e cujo valor mercantil subsistem relativamente independentes, mesmos nos casos em que a sanção econômica reafirma a consagração cultural. Deste modo, a priori, podemos falar também de um mercado de bens ilícitos, na medida em que eles formam uma categoria diferenciada de bens e na medida em que formam um campo à parte. Para Bourdieu, o sistema de produção e circulação de bens simbólicos definese enquanto um
57 sistema de relaçþes objetivas entre diferentes instâncias definidas pela função que cumprem na divisĂŁo do trabalho de produção, de reprodução e de difusĂŁo de bens simbĂłlicos. O campo de produção propriamente dito deriva sua estrutura especĂfica da oposição Âą mais ou menos marcada conforme as esferas da vida intelectual e artĂstica Âą que se estabelece entre, de um lado, o campo de produção erudita (que obedece a leis internas prĂłprias) enquanto sistema que produz bens culturais (e os instrumentos de apropriação destes bens) objetivamente destinados (ao menos a curto prazo) a um pĂşblico de produtores de bens culturais e , de outro, o campo da indĂşstria cultural (que obedece a leis de mercado) especificamente organizado com vistas Ă produção de bens culturais destinados a nĂŁo-produtores de bens FXOWXUDLV ÂłR JUDQGH S~EOLFR´ S
Em um mercado de bens ilĂcitos nĂŁo terĂamos uma diferenciação entre um campo erudito e um campo de massas. A produção de bens ilĂcitos se diferenciaria muito mais pela distância entre os crimes populares Âą sem grande organização e racionalidade, pautados em tĂŠcnicas tradicionais de delinquĂŞncia Âą e aqueles perpetrados pelas elites e grandes grupos Âą dominados por uma lĂłgica racional e organizacional Âą ligados ao Estado e ao Mercado (grandes corporaçþes), em grandes esquemas de fraude e corrupção. Os primeiros possuem pouca legitimidade e sĂŁo combatidos pelo Estado, assim como vistos socialmente como perigosos. Os segundos, no caso da sociedade brasileira, chegam a ser valorizados em certos cĂrculos sociais e, praticamente, nĂŁo sĂŁo punidos. Nos mercados de bens ilĂcitos temos uma oposição entre o legĂtimo e o ilegĂtimo. Isso se impĂľe com a mesma necessidade arbitrĂĄria e recobre a oposição entre: de um lado, um modo de produção ÂłcaracterĂstico de um campo de produção que fornece a si mesmo seu prĂłprio mercado e que depende, para sua reprodução, de XP VLVWHPD GH HQVLQR TXH RSHUD DGHPDLV FRPR LQVWkQFLD GH OHJLWLPDomR´ RX VHMD XP espaço onde determinadas prĂĄticas sĂŁo legitimadas, como por exemplo, comprar um DVD SLUDWD RX IRWRFRSLDU WH[WRV QD XQLYHUVLGDGH H ÂłGH RXWUR R PRGR GH SURGXomR caracterĂstico de um campo de produção que se organiza em relação a uma demanda H[WHUQD VRFLDO H FXOWXUDOPHQWH LQIHULRU´ TXH SRU LVVR p WUDWDGD FRPR PDUJLQDO H perifĂŠrica e, por isso, deve ser punida com rigor (BOURDIEU, 1992, p. 151). Importa agora discutir o conceito de habitus e suas implicaçþes. Segundo Pierre Bourdieu, as estruturas constitutivas de um tipo particular de meio (as condiçþes materiais de existĂŞncia caracterĂsticas de uma condição de classe ou
58
grupo), que podem ser apreendidas empiricamente sob a forma de regularidades associadas a um meio socialmente estruturado, produzem habitus, que sĂŁo sistemas de disposiçþes durĂĄveis, estruturas estruturadas predispostas a funcionar como estruturas estruturantes, isto ĂŠ, como princĂpio gerador e estruturador das SUiWLFDV H GDV UHSUHVHQWDo}HV TXH SRGHP VHU REMHWLYDPHQWH ÂłUHJXODGDV´ H ÂłUHJXODUHV´ VHP VHU R SURGXWR GD REHGLrQFLD D UHJUDV REMHWLYDPHQWH DGDSWDGDV D seu fim sem supor a intenção consciente dos fins e o domĂnio expresso das operaçþes necessĂĄrias para atingi-los e coletivamente orquestradas, sem ser o produto da ação organizadora de um regente (BOURDIEU, 1994, p. 60-61).
Talvez fosse tambĂŠm o caso de se falar de um habitus diferenciado, precĂĄrio (que desenvolveremos no segmento seguinte). Um habitus sujeito Ă repressĂŁo do Estado e da sociedade e outro legitimado como apenas uma transgressĂŁo ĂŠtica e moral. Como o campo se define como o locus onde se trava uma luta concorrencial entre os atores em torno de interesses especĂficos que caracterizam a ĂĄrea em questĂŁo, pode-se, sem problemas, pensar esse mercado enquanto um campo, isto ĂŠ, um espaço de relaçþes de poder. A estratĂŠgia dos agentes em cada campo ou mercado se orienta em função da posição que eles detĂŞm no interior do campo, a ação se realizando VHPSUH QR VHQWLGR GD ÂłPD[LPL]DomR GRV OXFURV´ 2 DWRU WHQGHULD GHVVD IRUPD D ÂłLQYHVWLU´ HP qualquer tipo de capital, procurando sempre um meio de acumulĂĄ-lo o mais rapidamente possĂvel (BOURDIEU, 1989). Tendo em vista que os atores sociais elaboram estratĂŠgias de ação, estas ocorrem no âmbito mesmo dos limites impostos pela estrutura do campo e particularmente devido ao seu grau de concentração. Temos assim a importância dos FKDPDGRV ÂłHIHLWRV GH FDPSR´ TXH XPD YLVmR HVWUXWXUDO SHUPLWH YLVXDOL]ar. Desta maneira, o peso que as açþes detĂŞm na estrutura do campo termina por influenciar nas estratĂŠgias de ação mais distintas (como aquelas que se desenrolam nas prisĂľes). Lembrando que diferentes posiçþes no espaço social correspondem a determinados estilos de vida, sistemas de desvios diferenciais que sĂŁo a reinterpretação simbĂłlica de diferenças inscritas nas condiçþes de existĂŞncia de cada grupo. Deste modo, as prĂĄticas e as propriedades constituem uma expressĂŁo sistemĂĄtica das condiçþes de existĂŞncia (aquilo que nĂłs chamamos aqui HVWLOR GH YLGD SRUTXH VmR ÂłR SURGXWR GR
59
mesmo operador prĂĄtico, o habitus, sistema de disposiçþes durĂĄveis e transponĂveis que exprime, sob a forma de preferĂŞncias sistemĂĄticas, as necessidades objetivas das TXDLV HOH p R SURGXWR´ %285',(8 S O habitus, como disposiçþes incorporadas, depende essencialmente da posição do agente no espaço social e condiciona, de maneira inconsciente, a visĂŁo de mundo do agente e o seu comportamento. Assim, o habitus liga-se tambĂŠm a trajetĂłria pessoal do agente, assim como do capital especĂfico que ele possui em dado campo simbĂłlico. Assim, o habitus, tende, portanto, a conformar e a orientar a ação, mas na medida em que ĂŠ produto das relaçþes sociais ele tende a assegurar a reprodução dessas mesmas relaçþes objetivas que o engendraram. (...) A interiorização, pelos atores, dos valores, normas e princĂpios sociais assegura, dessa forma, a adequação entre as açþes do sujeito e a realidade objetiva da sociedade como um todo (BOURDIEU, 1994, p.15).
4XDQGR FRQVLGHUDPRV TXH DV SUiWLFDV VRFLDLV VH WUDGX]HP SRU XPD ÂłHVWUXWXUD HVWUXWXUDGD SUHGLVSRVWD D IXQFLRQDU FRPR HVWUXWXUD HVWUXWXUDQWH´ HVWDPRV GL]HQGR que a noção de habitus nĂŁo apenas se aplica Ă interiorização das normas e dos valores, mas inclui tambĂŠm os sistemas de classificaçþes que existem anteriormente Ă s representaçþes sociais. DaĂ porque o habitus SUHVVXS}H ÂłXP FRnjunto de ÂľHVTXHPDV JHQHUDWLYRVÂś que presidem a escolha; eles se reportam a um sistema de FODVVLILFDomR TXH p ORJLFDPHQWH DQWHULRU j DomR´ %285',(8 S 16). 3DUD %RXUGLHX ÂłXPD GDV IXQo}HV GD QRomR GH habitus ĂŠ a de dar conta da unidade de estilo que vincula as prĂĄticas e os bens de um agente singular ou de uma FODVVH GH DJHQWHV´. O habitus aparece como um princĂpio gerador e unificador que traduz e retraduz as caracterĂsticas intrĂnsecas e relacionais de uma determinada SRVLomR HP XP HVWLOR GH YLGD HVSHFtILFR LVWR p ÂłHP XP FRQMunto unĂvoco de escolhas de SHVVRDV GH EHQV GH SUiWLFDV´ $R PHVPR WHPSR VmR WDPEpP ÂłHVTXHPDV classificatĂłrios, princĂpios de classificação, princĂpios de visĂŁo e de divisĂŁo e gostos GLIHUHQWHV´ (BOURDIEU, 1996, p. 21-22). Esses esquemas permitem construir, de certa medida, o prĂłprio processo de dominação, que nem sempre ĂŠ percebido. Dessa maneira,
60
(...) a ordem estabelecida, com suas relaçþes de dominação, seus direitos e suas imunidades, seus privilĂŠgios e suas injustiças, salvo uns poucos acidentes histĂłricos, perpetue-se apesar de tudo tĂŁo facilmente, e que condiçþes de existĂŞncia das mais intolerĂĄveis possam permanentemente ser vistas como aceitĂĄveis ou atĂŠ mesmo como naturais. (...) sempre vi na dominação masculina, (...) o exemplo por excelĂŞncia desta submissĂŁo paradoxal, resultante daquilo que eu chamo de violĂŞncia simbĂłlica, violĂŞncia suave, insensĂvel, invisĂvel a suas prĂłprias vĂtimas, que se exerce essencialmente pelas vias puramente simbĂłlicas da comunicação e do conhecimento, ou, mais precisamente, do desconhecimento, do reconhecimento ou, em Ăşltima instancia, do sentimento (BOURDIEU, 2009, p. 7-8).
Bourdieu tambĂŠm lembra que, quando os dominados aplicam aos que os dominam, esquemas que sĂŁo produtos diretos da dominação ou mesmo quando seus ÂłSHQVDPHQWRV H VXDV SHUFHSo}HV HVWmR HVWUXWXUDGRV GH FRQIRUmidade com as estruturas mesmas da relação da dominação que lhes ĂŠ imposta, seus atos de conhecimento sĂŁo, inevitavelmente, atos de reconhecimento, GH VXEPLVVmR´ Existe VHPSUH OXJDU SDUD XPD Âłluta cognitiva D SURSyVLWR GR VHQWLGR GDV FRLVDV GR PXQGR´ Assim, D ÂłLQGHterminação parcial de certos objetos autoriza, de fato, interpretaçþes antagĂ´nicas, oferecendo aos dominados uma possibilidade de resistĂŞncia contra o HIHLWR GH LPSRVLomR VLPEyOLFD´ (BOURDIEU, 2009, p. 22). e OtFLWR OHPEUDU TXH HVVDV HVWUXWXUDV GH GRPLQDomR ÂłVmR produto de um trabalho incessante (e, como tal, histĂłrico) de reprodução, para o qual contribuem agentes especĂficos (entre os quais os homens, com suas armas como a violĂŞncia fĂsica e a violĂŞncia simbĂłlica) e instituiçþes, famĂlias, Igreja, (VFROD (VWDGR´ (BOURDIEU, 2009, p.46). Isso termina por produzir as mais variadas formas de reprodução da desigualdade e de distinçþes sociais oriundas da dominação. Desta forma, o efeito da dominação simbĂłlica (seja ela de etnia, de gĂŞnero, de cultura, de lĂngua etc.) se exerce nĂŁo na lĂłgica pura das consciĂŞncias cognoscentes mas atravĂŠs dos esquemas de percepção, de avaliação e de ação que sĂŁo constitutivos dos habitus e que fundamentam, aquĂŠm das decisĂľes da consciĂŞncia e dos controles da vontade, uma relação de conhecimento profundamente obscura a ela mesma (BOURDIEU, 2009, p.50).
Essa lógica paradoxal da dominação, que Ê espontânea e extorquida, só pode
61
ser compreendida se mantivermos ligados aos efeitos duradouros que a ordem social exerce sobre as mulheres (e os homens), ou seja, Ă s disposiçþes espontaneamente harmonizadas com esta ordem que as impĂľe. Essa dominação consegue seu efeito atravĂŠs de mecanismos que permitem sua reprodução social. A violĂŞncia simbĂłlica se processa atravĂŠs de um ato de reconhecimento e de desconhecimento prĂĄtico, ato que VH Gi DTXpP GD FRQVFLrQFLD H GD YRQWDGH H TXH FRQIHUH VHX ÂłSRGHU KLSQyWLFR´ D ÂłWRGDV DV VXDV PDQLfestaçþes, injunçþes, sugestĂľes, seduçþes, ameaças, censuras, RUGHQV RX FKDPDGDV j RUGHP´ /HPEUHPRV, porĂŠm, que uma relação de dominação GHSHQGH Âłpara sua perpetuação ou para sua transformação, da perpetuação ou da WUDQVIRUPDomR GDV HVWUXWXUDV GH TXH WDLV GLVSRVLo}HV VmR UHVXOWDQWHV´ %285'IEU, 2009, p. 54-55). Logo adiante, ĂŠ fundamental realizarmos uma discussĂŁo acerca da especificidade da dominação simbĂłlica no Brasil, na medida em que esta tambĂŠm se constitui na efetivação de um tipo especĂfico de um habitus precarizado e, ao mesmo tempo, como este tipo de habitus aparece no nosso universo estudado.
3.2 Habitus precĂĄrio e violĂŞncia
Para Luiz AntĂ´nio Machado da Silva (2004), existe uma relação entre a produção simbĂłlica e certas prĂĄticas sociais em sua concretude e singularidade mais imediata. DaĂ, ele esboça o conceito de sociabilidade violenta, onde procurou captar a natureza e o sentido de uma radical transformação na qualidade das relaçþes sociais a partir das prĂĄticas de criminosos comuns. O crime nĂŁo deve ser visto como o ÂłPRPHQWR´ GH XP SURFHVVR PDV HQTXDQWR XP ÂłREMHWR FRQVWUXtGR´ GH IRUPD SDUFLDO O importante ĂŠ preocupar-se FRPR DV UHODo}HV GH IRUoD VH ÂłHVWUXWXUDP QD DWXDOLGDGH XP FRPSOH[R GH SUiWLFDV DVVRFLDGDV DR TXH p GHILQLGR FRPR FULPH FRPXP YLROHQWR´ a chamada sociabilidade violenta (SILVA, 2004, p. 55). Existe uma expressĂŁo muito difundida e coletivamente aceita pelas populaçþes urbanas para descrever cognitivamente e organizar o sentido subjetivo das prĂĄticas que envolvem o que legalmente se define como crime comum violenta e suas
62 vĂtimas atuais ou potenciais Âą violĂŞncia urbana (SILVA, 2004, p. 57).
Neste sentido, toma-se a violĂŞncia urbana como uma representação coletiva, no sentido durkheiminiano. Esta representação da violĂŞncia seleciona e indica um conjunto de prĂĄticas que se ligam Ă integridade fĂsica e a garantia patrimonial. A violĂŞncia urbana ĂŠ vista como um mapa que apresenta aos atores sociais cursos de açþes prĂĄticas que sĂŁo, invariavelmente, obrigatĂłrios. Temos aqui a expressĂŁo de um estilo de vida (como um habitus RQGH R XVR GD IRUoD p XWLOL]DGR FRPR ÂłSULQFtSLR RUJDQL]DGRU GDV UHODo}HV VRFLDLV´ 6,/9$ S Podemos dizer que a representação da violĂŞncia termina por captar, de forma simbĂłlica, um aspecto da vida cotidiana onde temos a universalização da força como fundamento de um conjunto de prĂĄticas que suspende o monopĂłlio do uso da violĂŞncia do Estado, disseminando esse uso para outras ĂĄreas. A exposição de um modo de vida urbana, fragmentĂĄrio, onde um padrĂŁo de sociabilidade violenta se esboça. Quando falamos de violĂŞncia urbana nĂŁo nos referimos a comportamentos LVRODGRV ÂłPDV j VXD DUWLFXODomR FRPR XPD RUGHP VRFLDO´ HVSHFtILFD 6,/9$ p. 59-60). Neste contexto, as atividades consideradas como criminosas (assaltos, roubos, sequestros, etc.) estĂŁo sendo deixadas de ser consideradas como desviantes e ocasionais a ponto de afetar os padrĂľes convencionais de sociabilidade. Enquanto um conjunto de prĂĄticas hierarquicamente articuladas, a violĂŞncia urbana estĂĄ destruindo ou substituindo os padrĂľes convencionais de sociabilidade, onde se pode verificar uma convivĂŞncia entre formas de sociabilidades comuns e sociabilidade violenta.
Os modelos de conduta a que se refere esta representação procuram lidar com o medo e a percepção de risco pessoal e expressam, implicitamente, uma participação subordinada no complexo de pråticas que constitui a violência urbana. (...) as populaçþes que produzem esta representação e por ela organizam (parte de) VXDV FRQGXWDV QmR VmR ³SRUWDGRUDV´ RV DJHQWHV SURGXWRres) do sentido desta ordem social. Construir a representação da violência urbana apenas lhes permite uma adesão orgânica que, em última instância, valida esta ordem social e ao mesmo tempo, reorganiza a vivência e permite a compreensão de uma rotina cotidiana fragmentada (SILVA, 2004, p. 62).
O recurso universal à força e à violência Ê o elemento central deste conjunto de pråticas e representaçþes. Mesmo assim, os riscos dessas condutas são altos, o que
63
mostra que existe uma ligação entre a ordem pĂşblica e a criminalidade violenta (numa possĂvel crise de autoridade institucional, de um lado, e a do surgimento de alternativas de novas vivĂŞncias e prĂĄticas sociais, de outro). Como jĂĄ colocado, a sociabilidade violenta, expressa uma dada ordem social, ou seja, um complexo RUJkQLFR GH SUiWLFDV 0HVPR DVVLP ÂłD YLROrQFLD XUEDQD FRPR UHIHUrQFLD SDUD D formação das açþes estĂĄ longe de cancelar ou substituir orientaçþes subjetivas UHODFLRQDGDV j RUGHP HVWDWDO´ ,VWR SRUTXH Âłp D SDUWLU GHVWDV TXH D UHSUHVHQWDomR da violĂŞncia urbana se constrĂłi, pois a experiĂŞncia que a fundamenta ĂŠ a ameaça ĂĄ segurança, e a avaliação desta se reporta a uma ordem institucional-legal ideal WRPDGD FRPR SDUkPHWUR´ (SILVA, 2004, p. 73). Haveria, nesse processo, a percepção da violĂŞncia como princĂpio de regulação das relaçþes sociais. Aqui, tHPRV XPD ÂłGLVMXQomR QD IRUPDomR GDV FRQGXWDV HQWUH RV portadores da violĂŞncia urbana (...) e os contingentes dominados, capazes de, sob certas circunstâncias, aderir a esta ordem sem cancelar a aceLWDomR GD RUGHP HVWDWDO´ (SILVA, 2004, p. 74). O que uniria estas condutas em um sistema complexo de prĂĄticas organizadas seria justamente o reconhecimento (instrumental) da resistĂŞncia fĂsica representada pela força de que podem dispor os demais agentes. DaĂ porque a sociabilidade violenta nĂŁo venha dispor de uma linguagem prĂłpria, expressando-se a partir de uma ressignificação da linguagem corrente. JoĂŁo, 27 anos, apenado do PavilhĂŁo 1, preso por assalto, aponta que sua LQVHUomR QR ÂłPXQGR GR FULPH´ VH Geu a partir de uma vida difĂcil de pobreza e, ao mesmo tempo, da facilidade do acesso Ă s drogas. Para sobreviver, começou a realizar pequenos delitos: (...) foi quando eu vim, eu fiquei me envolvendo com drogas, com pessoas assim, que cometiam pequenos furtos, prostituição. Usei maconha. NĂŁo digo assim que seja de uso constante, era mais o contato visual de ver outras pessoas usando, andando na madrugada, de ver coisas como prostituição. A partir daĂ, devido as circunstância que eram precĂĄrias, comecei a cometer tambĂŠm alguns delitos para poder... Mais questĂŁo de sobrevivĂŞncia nĂŠ? [sic] Quando vocĂŞ tĂĄ na rua, vocĂŞ tem de agir nĂŠ? [sic] SenĂŁo vocĂŞ morre de fome (JOĂ&#x192;O, 27 ANOS).
Arthur, 20 anos, PavilhĂŁo 4, preso por assalto e homicĂdio, aponta que sua
64
prismR IRL FDXVDGD DSyV WHU H[HFXWDGR XP FULPH SDVVLRQDO IRL WRPDU DV ÂłGRUHV´ GD ÂłKRQUD´ GH VXD HVSRVD H WHUPLQRX PDWDQGR R VXSRVWR DJUHVVRU PRUDO 7DPEpP descreve a injustiça que lhe foi imputada, na medida em que lhe acusaram de um assalto que ele alega nĂŁo ter cometido: A primeira fui acusado de um assalto sem ter sido eu que fiz [sic]. Fui absolvido e passei poucos meses, fui absolvido, fui para a liberdade. Depois eu cometi um homicĂdio. O rapaz desacatou minha esposa, ai por isso eu tirei a vida dele. SĂł que preso, passei um ano e seis meses, fui pra rua desse mesmo crime. AĂ butaram [sic] um mandato de prisĂŁo, ai retornei pra cĂĄ de novo, estou a oito meses preso sem audiĂŞncia (ARTHUR, 20 ANOS).
Da mesma forma que Arthur, Paulo, 31 anos, oriundo da classe mĂŠdia potiguar, preso por homicĂdio, culpa sua prĂłpria conduta como causadora de seus males atuais. $ILUPD TXH YLYLD HP EULJDV FRP DPLJRV H ÂłPiV FRPSDQKLDV´ R TXH OKH OHYRX DR crime: Fui preso a primeira vez por homicĂdio, porque fui brigar, tava bĂŞbado [sic]. Vivia arrumando problema, pois tudo eu tentava resolver com a violĂŞncia. Lembrando assim, acabou com a minha vida nĂŠ? [sic] Terminei aqui... Pedi muito a Deus paciĂŞncia para suportar nĂŠ? [sic] (PAULO, 31 ANOS).
Nelson, 22 anos, condenado por trĂĄfico de drogas, cumprindo pena no PavilhĂŁo 4, afirma que sua conduta anterior Ă prisĂŁo era de envolvimento constante em brigas, SULQFLSDOPHQWH HP IHVWDV 1mR DGPLWLD VHU FRQIURQWDGR RX ÂłOHYDU EDUDWR´ TXDOTXHU coisa que considerasse ofensa Ă sua pessoa: Eu sempre fui brigĂŁo, muito brabo [sic] sabe? Eu tinha uns 20 anos e sempre ia pro forrĂł [sic]. AĂ, em uma vez que eu estava no forrĂł, lĂĄ no Bom Pastor, uns caras ficaram de onda comigo e eu fui prĂĄ cima [sic]. NĂŁo sou homem de levar barato nĂŁo, furei um e botei os outros prĂĄ correr [sic]. Mas ele nĂŁo morreu nĂŁo (NELSON, 22 ANOS).
Um Ăşltimo exemplo ĂŠ o de Tiago, 28 anos, tambĂŠm do PavilhĂŁo 4, cumprindo pena por trĂĄfico de drogas, que culpa as drogas, especialmente o crack como motivador de sua violĂŞncia. A droga sempre lhe deixava agressivo e fora de controle, principalmente, quando tentavam roubar-lhe o seu crack: ÂłDepois que eu saĂ de casa
65
eu passei a usar droga direto, a pedra nĂŠ? A pedra sempre me deixava meio [ruĂdo]. Mas eu fumava sozinho, nunca com alguĂŠm. Uma vez fumando, um cara tentou dar um descuido e levar a pedra. Corri e peguei ele [sic]. Bati muito´ (TIAGO, 28 ANOS). Em outra perspectiva TXDQGR IDODPRV GH XPD SUHWHQVD ÂłRUJDQL]DomR GD FULPLQDOLGDGH´ OHYDPRV HP FRQWD TXH ÂłRV PRGHORV FRUUHQWes de entendimento da RUJDQL]DomR GD YLROrQFLD FULPLQDO´, com todas as suas nuances (gangues, mĂĄfia, etc.), nĂŁo se aplicam, pois Âłtodos eles se baseiam em princĂpios como honra, lealdade, companheirismo, cooperação, solidariedade, que reproduzem a idĂŠia tradicional de uma pacificação entre os iguais (redução do recurso Ă violĂŞncia aberta entre os pares), reorientando as prĂĄticas violentas para o exterior´ (SILVA, 2004, p. 76). O complexo que se forma por estas prĂĄticas se fundamenta no mesmo princĂpio de subjugação pela força, uma espĂŠcie de amĂĄlgama de interesses individuais, com XP VLVWHPD KLHUiUTXLFR H FyGLJRV GH FRQGXWD XPD ÂłSD] DUPDGD´ RQGH WRGRV REHGHFHP SRU VDEHUHP VHU PDLV IUDFRV 1mR KDYHULD ÂłILQV FROHWLYRV´ QHP ÂłVXERUGLQDomR´ ÂłWRGDV DV IRUPDV Ge interação constituem-se em tĂŠcnicas de submissĂŁo que eliminam a vontade e as orientaçþes subjetivas dos demais SDUWLFLSDQWHV FRPR HOHPHQWR VLJQLILFDWLYRV GD VLWXDomR´ 6,/9$ S Lembremos que o habitus manifesta-se enquanto um sistema autorregulador de princĂpios implĂcitos e explĂcitos, universalmente qualificados como princĂpios geradores, onde podemos observar dois tipos de relaçþes: uma estrutura objetiva que define as condiçþes sociais particulares que produzem as prĂĄticas construĂdas pelo prĂłprio habitus; e condiçþes que parecem representar um estado particular do habitus. Nesta perspectiva, mesmo ao pensar a prisĂŁo como uma espĂŠcie de habitus ĂŠ, HP VL XPD H[FHomR ÂłSRLV R FRQWUROH VRFLDO WHQGH D VHU HQFDUDGR FRPR XPD SXQLomR necessĂĄria, D GHVSHLWR GR IDWR GH R LQWHQWR VHU UDUDPHQWH OHYDGR D FDER´ &,&285(/ 2007, p. 170). Pensar o habitus inserido no contexto que apresentamos passa pela discussĂŁo proposta por JessĂŠ Souza. Segundo ele, a naturalização da desigualdade social e uma consequeQWH SURGXomR GH ÂłVXEFLGDGmRV´ FRPR XP IHQ{PHQR GH massa em paĂses
66
tidos como perifĂŠricos de modernização recente como o Brasil, podem ser percebidas como resultado de um processo de modernização de grandes proporçþes a partir do sĂŠculo XIX. Isso significa que nossa desigualdade social e sua naturalização na vida cotidiana sĂŁo modernas e nĂŁo tradicionais, pois estĂŁo ligadas j ÂłHILFiFLD GH YDORUHV H instituiçþes modernas a partir de sua bem-sucedida importação ÂľGH IRUD SDUD GHQWURϫ Desta maneira, ÂłDR FRQWUiULR GH VHU ÂľSHUVRQDOLVWDÂś HOD UHWLUD VXD HILFiFLD GD ÂľLPSHVVRDOLGDGHÂś WtSLFD GRV YDORUHV H LQVWLWXLo}HV PRGHUQDV´ 628=$ S Souza aponta que o Brasil ĂŠ possuidor de apenas um cĂłdigo valorativo dominante pautado no individualismo moral ocidental, nĂŁo se confundindo este com o indivĂduo empĂrico e com todas as realizaçþes culturais do ocidente, inclusive uma forma especĂfica de racionalidade. Assim, ÂłGL]HU TXH R QRVVR FyGLJR YDORUDWLYR dominante ĂŠ o do individualismo moral desde entĂŁo, nĂŁo significa dizer, obviamente, que o Brasil seja um paĂs moderno, rico e democrĂĄtico como os paĂses centrais do RFLGHQWH´ $SHQDV VLJQLILFD TXH DTXL VH SDXWDP RV YDORUHV RFLGHQWDLV FRPR SDUkPHWUR e nĂŁo como regra absoluta (SOUZA, 2000, p. 254). Embora possa se falar no Brasil de um processo modernizador, este se deu de forma seletiva, ou seja, o acesso aos bens culturais ocidentais (igualdade jurĂdica, liberdade, racionalidade e direitos subjetivos) nĂŁo seja igual para todas as classes e indivĂduos. Pessoalidade, dependĂŞncia pessoal, fragmentação da consciĂŞncia, vĂnculos sociais subordinados a situaçþes particulares e nĂŁo universais e outros elementos se agregam a uma visĂŁo da eficiĂŞncia individual que ĂŠ destoante dessa lĂłgica. DaĂ que o abandono social e polĂtico dos setores mais desprivilegiados sĂŁo percebidos FRPR ÂłIUDFDVVR LQGLYLGXDO´ R TXH GLILFXOWD D DUWLFXODomR SROtWLFD GR descontentamento (SOUZA, 2000, p. 261). Deste modo, JoĂŁo, 27 anos, mostra que sua vida foi pautada pela misĂŠria e sofrimento. AlĂŠm disso, o abandono familiar na adolescĂŞncia levou-o a um caminho TXH HOH FDUDFWHUL]D UHSURGX]LQGR R GLVFXUVR VRFLDO FRPR ÂłHUUDGR´ RQGH HOH YDL WHUPLQDU ÂłQmR GDQGR SUD QDGD´ Minha infância foi um pouco assim sofrida nĂŠ? Devido Ă dificuldade financeira,
67 nĂŁo tinha assim, recurso aĂ, a gente teve que viver esse tipo de situação atĂŠ fazendo uma coisa errada atĂŠ por conta desses motivos [sic]. Passei quase um ano morando na rua, minha famĂlia foi morar no interior e eu fiquei sem ter destino. Aos 14 anos de idade, eu fiquei quase um ano sĂł. Terminei nĂŁo dando pra nada [sic] (JOĂ&#x192;O, 27 ANOS).
Beto, 41 anos, afirma que sua entrada no mundo do crime adveio de uma infância pobre, mas Âłnormal´. O evento catalizador foi o acesso Ă s drogas e as ÂłmĂĄs companhias´. Detido por trĂĄfico, na primeira vez, embora portasse pequena TXDQWLGDGH GH PDFRQKD WHUPLQRX SUHVR ÂłMinha infância foi normal. No começo foi bom, eu estudava, fiz atĂŠ a quinta sĂŠrie, ai comecei a entrar na vida das drogas e tal, e a beber e tal. Fui preso drogas. Fui preso Por maconha´ (BETO, 41 ANOS). ,QWHUHVVDQWH TXH HOH FRQVLGHURX ÂłQRUPDO´ HVWXGDU DSHQDV DWp D TXLQWD VpULH VHP conseguir terminar o ensino fundamental. Adentrar para o mundo das drogas foi o HYHQWR TXH R UHWLURX GHVVD ÂłQRUPDOLGDGH´ Luiz AntĂ´nio, 59 anos, nos descreve uma infância pobre e abandonada. Ă&#x201C;rfĂŁo de pai desde os 3 anos de idade, foi criado apenas pela mĂŁe, em bairro considerado YLROHQWR 6HX GLVFXUVR UHSURGX] D[LRPDV GH TXH ÂłR KRPHP p SURGXWR GR PHLR´ $R mesmo tempo, mostra que sua infância e educação foram marcadas pela violĂŞncia familiar: A minha infância e meu convĂvio familiar nĂŁo foi nada bem, pelo seguinte... Porque meu pai nos abandonou com 3 anos de idade, a partir daĂ fui criado sĂł pela minha mĂŁe, e... Como diz, o homem ĂŠ produto do meio, nĂŠ? [sic] Criado em bairro violento, homem violento. Criado em sociedade, homem social. (...) eu fui criado uma criança com a violĂŞncia do lado... Apanhava por tudo. (LUIZ ANTĂ&#x201D;NIO, 59 ANOS).
Kleber, 34 anos, cumprindo pena no Pavilhão 3, preso por assalto, discorre sobre uma infância pobre e sofrida de menino do interior do Rio Grande do Norte. Abandonado tambÊm pelo pai foi criado às duras custas pela mãe faxineira, tendo estudado apenas atÊ o 4º ano do ensino båsico, antiga 3ª sÊrie: Minha infância não era boa não viu? Muito sofrido, sofri muito. Muito mesmo. Sem educação, fui criado sem pai, me abandonou quando eu tinha quatro anos de idade e eu sofri muito, muito mesmo [sic]. Não foi brincadeira não. Morava no interior, Pedro Avelino. Mamãe era faxineira, fazia faxina, lavava as roupas dos
68 outros, essas coisas. Eu fiz sĂł atĂŠ a terceira sĂŠrie [ensino fundamental] sĂł (KLEBER, 34 ANOS).
AndrĂŠ, 19 anos, o mais novo de nossos entrevistados em Alcaçuz, cumprindo pena no PavilhĂŁo do Trabalho, preso por trĂĄfico de drogas, tambĂŠm define sua infância como pautada por misĂŠria, violĂŞncia e a presença das drogas. Viciado desde a infância, logo se tornou pequeno traficante para poder dar continuidade a seu vĂcio: Minha infância nĂŁo foi muito boa, foi no meio de muita bagunça, muita droga. No meio da criminalidade. Ă&#x2030; tanto que depois que eu me envolvi com o crime fui preso. JĂĄ fui preso, essa nĂŁo ĂŠ a primeira. Cai no mundo das drogas. Estou tentando trabalhar para quando sair, procurar um emprego, cuidar dos meus filhos, voltar Ă sociedade. Fui preso por trĂĄfico de drogas (ANDRĂ&#x2030;, 19 ANOS).
No mesmo sentido, Arthur, 20 anos, descreve seu abandono tanto pelo pai como, posteriormente, pela mãe alcoólatra. Criado pela avó e depois pela tia, sua grande referrQFLD ORJR QD DGROHVFrQFLD LQLFLRX VXD ³YLGD QR FULPH´ Minha infância não foi nada boa, perdi meu pai tinha um ano e seis meses e depois fiquei com minha mãe. Minha mãe vivia bebendo (...) alcoólatra, fiquei com minha avó. Aà minha avó faleceu eu tinha nove anos e depois fui morar com minha tia, depois foi o tempo que eu estava trabalhando, aà me envolvi num crime aà agora, com vinte anos jå no crime, aà estou preso aqui agora [sic] (ARTHUR, 20 ANOS).
A modernidade brasileira ĂŠ pautada na aceitação dos valores modernos e ocidentais como Ăşnicos e legĂtimos. A questĂŁo ĂŠ que, se de um lado esses sĂŁo os valores dominantes; de outro as prĂĄticas sociais sĂŁo destoantes e terminam por manter um processo de exclusĂŁo pautado em valores tradicionais. Para a imensa maioria da legiĂŁo dos pĂĄrias urbanos e rurais, sem lugar no novo sistema, produto de sĂŠculos de abandono, a desigualdade aparece como um resultado natural, muitas vezes percebido como fracasso prĂłprio. Essa atitude parece-me tĂpica da forma do tratamento respeitoso que a imensa maioria das pessoas do povo dedica aos seus compatriotas da classe mĂŠdia. Como o sentimento de injustiça nĂŁo ĂŠ articulado, ele permanece um sentimento indeterminado, um mal-estar, que pode resultar em protestos prĂŠ-polĂticos de extraordinĂĄria violĂŞncia como quebradeiras, arrastĂľes ou a pura e simples violĂŞncia criminosa (SOUZA, 2000, p. 267).
Nada, porĂŠm, se constituiria em um dualismo. O que se verifica ĂŠ um fenĂ´meno
69
peculiarmente brasileiro. Segundo João, 27 anos, Pavilhão 1, sua entrada no crime foi um processo que HOH Yr FRPR ³QDWXUDO´ mas tambÊm impulsionado por uma sociedade que não lhe deu nenhuma oportunidade. A precariedade de sua vida Ê um dos fatores que, juntamente com sua escolha do crime, perfaz seu itinerårio atÊ a prisão: Comecei a trabalhar, mas fui demitido. Trabalhei numa transportadora. Trabalhei tambÊm em obra. Aà devido a esses problemas e quando a gente Ê jovem, às vezes vai e pensa que indo por um determinado caminho vai conseguir alguma vantagem, alguma coisa e pretende ate sair sem problema nÊ? [sic].
Do mesmo modo, Beto mostra que nunca conseguiu, devido a sua baixa escolaridade, nada alĂŠm de trabalhos precĂĄrios e temporĂĄrios como biscateiro, ambulante ou servente de pedreiro, todos caracterizados pelos baixos salĂĄrios e pela sazonalidade: ÂłEu cheguei a fazer biscaite mas serviço [sic] fechado nĂŁo. Biscate de servente de pedreiro. Trabalhei um tempo de camelĂ´. Eu trabalhava para pagar as coisas em casa, mas era mais para o consumo de drogas, maconha´ (BETO, 41 ANOS). AndrĂŠ, 19 anos e Filipe, 29 anos apontam que o uso de drogas ilĂcitas, principalmente o crack, foi o principal motivador de deixarem seus trabalhos, o primeiro em um lava-jato e o segundo como agricultor: ÂłTrabalhei sim, em supermercado, trabalhei tambĂŠm em lava-jato. Depois caĂ no mundo do crime. Passei a traficar porque consumia, outra parte porque trazia dinheiro pra minha famĂlia tambĂŠm [sic]. Era o crack. NĂŁo uso mais nĂŁo, consegui me livrar´ (ANDRĂ&#x2030;, 19 ANOS). Da mesma maneira: ÂłEu me afastei da minha famĂlia por causa da droga sabe? Comecei a me afastar da minha famĂlia. Eu usei crack, maconha. Uso ainda ate hoje, mas jĂĄ tentei me afastar das drogas. Estudei sĂł atĂŠ o segundo ano primĂĄrio. Trabalhava mais em roça´ (FILIPE, 29 ANOS). ExistiriD QR %UDVLO XPD ÂłLGHRORJLD HVSRQWkQHD´ TXH VHULD IXQGDPHQWDO QR entendimento da produção social da desigualdade e da subcidadania. O Ocidente moderno se caracterizaria por uma estrutura psicossocial pautada no reconhecimento social. Essa estrutura ĂŠ o pressuposto da consolidação de sistemas racionais-formais
70
(mercado e Estado, por exemplo). Ao se generalizarem-se essas prĂŠ-condiçþes, temos D IRUPDomR GD ÂłFLGDGDQLD´ LVWR p XP FRQMXQWR GH GLUHLWRV H GHYHUHV QR FRQWH[WR GR Estado moderno numa efetiva presVXSRVLomR GH LJXDOGDGH 6HJXQGR 6RX]D ÂłSDUD TXH haja eficĂĄcia legal da regra de igualdade ĂŠ necessĂĄrio que a percepção da igualdade na GLPHQVmR GD YLGD FRWLGLDQD HVWHMD HIHWLYDPHQWH LQWHUQDOL]DGD´ S SĂŠrgio Buarque de Holanda, em RaĂzes do Brasil, argumenta que, no processo de formação histĂłrica do Brasil, os portugueses atribuĂam o valor de um homem da H[WHQVmR HP ÂłTXH QmR SUHFLVH GHSHQGHU GRV GHPDLV HP TXH QmR QHFHVVLWH GH QLQJXpP HP TXH VH EDVWH´ +HUGDPRV GRV OXVLWDQRV XPD VLQJXODU ÂłWLELHza das formas de RUJDQL]DomR GH WRGDV DV DVVRFLDo}HV´ $ILQDO ÂłHP WHUUD RQGH WRGRV VmR EDU}HV QmR p possĂvel acordo coletivo durĂĄvel, a nĂŁo ser por uma força exterior respeitĂĄvel e WHPLGD´ 'D PHVPD PDQHLUD WRGD KLHUDUTXLD IXQGDYD-se necessariamente em SULYLOpJLRV 3UHGRPLQD DTXL D ÂłLUUDFLRQDOLGDGH HVSHFtILFD D LQMXVWLoD VRFLDO GH FHUWR SUHVWtJLR SHVVRDO LQGHSHQGHQWH GR QRPH KHUGDGR´ (VVD VHULD XPD pWLFD VRFLDO GH ILGDOJRV GH DFRUGR FRP D TXDO RV EHQV PDWHULDLV ÂłRV DOWRV IHLWRV H DV DOWDV YLUWXGHV origem e manancial de todas as grandezas, suprem vantajosamente a prosĂĄpia de VDQJXH´ +2/$1'$ S -37). JessĂŠ Souza explicita uma visĂŁo que, de certa maneira, vai um pouco alĂŠm da perspectiva clĂĄssica de Holanda. Partindo da perspectiva de Bourdieu, Souza explica que esse processo de internalização passa pelo conceito de habitus. Essa pretensa ÂłLGHRORJLD HVSRQWkQHD´ QDGD PDLV VHULD GR TXH XP FRQMXQWR GH VXSRVLo}HV OLJDGDV D um estilo de vida, o qual conforma o habitus estratificado e por classes sociais e legitima o acesso diferencial aos recursos sociais. O autor propĂľe uma subdivisĂŁo da categoria de habitus (visando superar suas deficiĂŞncias), acrescentando-lhe uma ÂłGLPHQVmR JHQpWLFD H GLDFU{QLFD j WHPiWLFD GH VXD FRQVWLWXLomR´ $ LGpLD VHULD SHnsar uma pluralidade de habitus. O processo histĂłrico de modernização perifĂŠrica pelo qual o Brasil passou (e passa) nĂŁo equalizou as classes sociais em todas as esferas da vida, embora tenha generalizado os ideais de igualdade (SOUZA, 2004, p. 87). Nesta perspectiva, o habitus precĂĄrio seria o limite do habitus primĂĄrio em sentido decrescente,
71
aquele tipo de personalidade e de disposição de comportamento que nĂŁo atende Ă s demandas objetivas para que um indivĂduo ou um grupo social possa ser considerado produtivo e Ăştil em uma sociedade moderna e competitiva, podendo gozar de reconhecimento social com todas as dramĂĄticas consequĂŞncias existenciais e polĂticas aĂ implicadas (SOUZA, 2004, p. 87).
Este tipo de habitus estĂĄ ligado a formas de reconhecimento social desiguais, incluindo aĂ a percepção de dignidade. Certa atribuição de respeito social aos papĂŠis de produtor e de cidadĂŁo ĂŠ mediada pela abstração mediada pelo mercado de LQGLYtGXRV SHQVDGRV FRPR ÂłVXSRUWH GH GLVWLQo}HV´ SRVVXLGRUHV GH YDORU UHODWLYR &RQVHTXHQWHPHQWH HVVD LGHRORJLD GR ÂłGHVHPSHQKR´ IXQFLRQDULD FRPR XPD legitimação subpolĂtica incrustada no dia-a-dia e pautada em instituiçþes como o mercado e o Estado (SOUZA, 2006b). Em uma sociedade onde existe uma ausĂŞncia de precondiçþes cognitivas ÂłSDUD XP GHVHPSHQKR DGHTXDGR DR DWHQGLPHQWR GDV demandas (...) do papel de produtor, com reflexos diretos no papel do cidadĂŁo, (...) implica a constituição de um habitus PDUFDGR SHOD SUHFDULHGDGH´ 'Dt TXH HVVH habitus pode se referir tanto a setores tradicionais da classe trabalhadora que nĂŁo conseguem se adequar Ă s novas demandas do mercado de trabalho, como tambĂŠm Ă s camadas mais populares no Brasil (ralĂŠ). Essas camadas marginalizadas sĂŁo formadas por indivĂduos inadaptados a um novo contexto histĂłrico de flexibilização do trabalho e de globalização (SOUZA, 2004, p. 89). Uma amostra deste tipo de habitus pode ser exposta no depoimento abaixo: Tem pessoas que tĂŁo ali porque Ă s vezes uma atitude ate de desespero, por incrĂvel que pareça, porque foi roubar num supermercado, foi fazer um descuido, foi roubar um alimento, tĂĄ preso hĂĄ mais de ano [sic]. EntĂŁo, existem pessoas que Ă s vezes pela, por vicio de drogas, comete um pequeno delito e nĂŁo quer dizer que seja uma pessoa do mal, que... Agressiva, violenta, esse tipo de coisa. Existem pessoas que por um delito assim, por uso de drogas, Ă s vezes num supermercado pra [sic] furtar um negĂłcio, ou entĂŁo por outras pessoas que venham a fazer um outro delito no intuito de garantir o sustento da famĂlia [sic]. NĂŁo quer dizer que a pessoa seja agressiva ou homicida, esse tipo de coisa que se separa tĂĄ entendendo? [sic] Que gosta de fazer o mal, praticar um homicĂdio ou fazer o mal aos outros. Isso ai existe, mas, Ă s vezes tem pessoas que nĂŁo, que se envolveu Ă s vezes numa situação ali transportando uma droga para ganhar um... Em troca de um qualquer para ganhar o sustento da famĂlia [sic]. Ai tĂĄ preso, Ă s vezes desde outro estado, chega num canto e ĂŠ preso [sic] (JOĂ&#x192;O, 27 ANOS).
72
O habitus precĂĄrio tambĂŠm pode ser esboçado no sentimento de injustiça que muitos presos expressam. A falta de uma estrutura de assistĂŞncia jurĂdica adequada, alĂŠm do fato do sistema jurĂdico-penal ser extremamente oneroso, faz com que muitos presos sintam-se injustiçados por nĂŁo poderem provar sua pretensa inocĂŞncia. Isso, principalmente, em um paĂs onde o sistema de execução penal praticamente sĂł prende pessoas com baixa renda e escolaridade: Fui preso, fui acusado de assalto, de um bocado de coisas que eu nem fiz, tĂ´ sendo... [sic] Ă&#x2030; a maior injustiça do mundo que tĂŁo fazendo na minha vida, comigo, com minha pessoa. TĂ´ [sic] sendo acusado de assalto, de estupro, de tudo no mundo, de um bocado de coisa que butaram [sic] na minha vida, que eu nunca fui preso em minha vida, por nada. Fui preso com 32 anos. Hoje estou com 34 (KLEBER, 34 ANOS).
Outro elemento fundamental nessa caracterização ĂŠ que, em sociedades consideradas perifĂŠricas como o Brasil, certo DWULEXWR GH ÂłHXURSHLGDGH´ VH FRQVWLWXLX em seu processo de modernização exĂłgena, no critĂŠrio de segmentação social entre indivĂduos e classes sociais integrados e nĂŁo integrados, classificados e desclassificados. Essa europeidade se caracterizaria por impor uma internalização generalizada de FHUWD ÂłGLVFLSOLQD´ RQGH D LQDGDSWDomR D HVWD p tomada como ÂłIUDFDVVR SHVVRDO´ (VVH FULWpULR GH ÂłGHVHPSHQKR´ FRQWULEXLULD GHFLVLYDPHQWH SDUD R reconhecimento social de sucesso ou de fracasso pessoal. Existe, em paĂses perifĂŠricos como o Brasil, toda uma classe de pessoas excluĂdas e desclassificadas, posto que nĂŁo participam do contexto valorativo de fundo Âą (...) ÂłGLJQLGDGH´ GR DJHQWH UDFLRQDO Âą, primeira condição de possibilidade para o efetivo compartilhamento, por todos, da idĂŠia de igualdade nessa condição fundamental para a constituição de um habitus que, por incorporar as caracterĂsticas disciplinarizadoras, plĂĄsticas e adaptativas bĂĄsicas para o exercĂcio das funçþes produtivas no contexto do capitalismo moderno, podemos denominar de habitus primĂĄrio (SOUZA, 2004, p. 91).
Souza aponta o habitus precĂĄrio enquanto o limite do habitus primĂĄrio para baixo, isto ĂŠ, as disposiçþes de comportamento e tipo de personalidade que nĂŁo atenderia Ă s demandas objetivas exigidas para o reconhecimento de um indivĂduo ou grupo na Ăłtica moderna e competitiva. Sem esse reconhecimento, o indivĂduo nĂŁo
73
pode gozar de um status positivo pleno com suas consequĂŞncias existenciais e SROtWLFDV 8PD YHUGDGHLUD ÂłLGHRORJLD GR GHVHPSHQKR´ TXH VH SDXWD QD LGpLD GH dignidade do agente racional que termina por encobrir as desigualdades por trĂĄs desta noção. Uma parcela da população, assim, ĂŠ vista como uma categoria sub-humana, abaixo da parcela portadora de distinção social. Uma visĂŁo internalizada, nĂŁo intencional. Esta ĂŠ uma dimensĂŁo objetiva, subliminar, implĂcita e nĂŁo transparente. EstĂĄ ligada a uma visĂŁo de mundo e a um habitus distintivo (secundĂĄrio) que constrĂłi uma hierarquia moral, fundamentadora dessas distinçþes. Assim, o habitus precĂĄrio ĂŠ XP IHQ{PHQR GH PDVVDV FRQVWLWXLQGR XPD YHUGDGHLUD ÂłUDOp HVWUXWXUDO´ IRUPDGa por grupos sociais precarizados, caracterizados como subprodutores e subcidadĂŁos (SOUZA, 2006, p. 184). Criticando as ĂŞnfases economicistas, Souza denuncia todas essas ĂŞnfases deslocadas, ainda que certamente possam obter resultados inegavelmente positivos topicamente, sempre passam ao largo da contradição principal deste tipo de sociedade que, aos meus olhos, tem a ver com a constituição GH XPD JLJDQWHVFD ÂłUDOp´ GH LQDGDSWDGRV jV GHPDQGDV GD YLGD SURGXWLYD H VRFLDO modernas, constituindo-se numa legiĂŁo GH ÂłLPSUHVWiYHLV QR VHQWLGR VyEULR H objetivo deste termo (SOUZA, 2006, p. 184).
A crença de que o desenvolvimento econĂ´mico, pura e simplesmente, resolveria essas contradiçþes cai por terra. Souza, ao invĂŠs de supor uma ÂłHVTXHPDWL]DomR´ GR SURFHVVR GH modernização brasileiro, em suas heranças personalistas prĂŠ-modernas, mostra essa singularidade tem mais a ver com a especificidade da forma como a modernização se gestou combinada com uma ÂłHVTXHPDWL]DomR´ SURGX]LGD SHOD DPEtJXD KHUDQoD HVFUDYRFUDWD Parte significativa dos apenados expĂľe esse tipo de representaçþes a partir da exposição de suas profissĂľes e de sua vida como trabalhadores, antes da prisĂŁo. Em geral, exerceram atividades com pouca qualificação proILVVLRQDO D PDLRULD ÂłELVFDWHV´ H empregos ocasionais como mostrado anteriormente. Um itinerĂĄrio de subempregos ou de trabalhos temporĂĄrios, perpassados por perĂodos na prisĂŁo. Se um habitus primĂĄrio LPSOLFD XP FRQMXQWR ÂłGH SUHGLVSRVLo}HV SVLFRVVRFLDLV refletindo, na esfera da personalidade, a presença da economia emocional e das precondiçþes cognitivas para um desempenho adequado ao atendimento das
74
GHPDQGDV´ LVVR OHYD D UHIOH[RV GLUHWRV QR SDSHO GR FLGDGmR HP FRQGLo}HV capitalistas modernas, onde, quando estas nĂŁo aparecem de alguma forma, isso implica na constituição de um habitus marcado pela precariedade (SOUZA, 2000, p. 170). Temos a formação de todo um segmento de inadaptados, fenĂ´meno de massas na sociedade brasileira, um abismo criado desde o limiar do sĂŠculo XIX e intensificado a partir de 1930 em diante. Construiu-se, aqui, um processo de inadaptação de considerĂĄvel parcela da população Ă modernização que ĂŠ percebida, SRU HVVDV FODVVHV H[FOXtGDV FRPR XP ÂłIUDFDVVR SHVVRDO´ Neste caminho, a violĂŞncia apresenta-se, como discutido no inĂcio deste subcapĂtulo, como expressĂŁo de uma sociabilidade violenta. Imputa-se Ă violĂŞncia enquanto instrumento solucionador dos conflitos: Sofri uma agressĂŁo Ă qual revidei e daĂ... E a verdade ĂŠ essa, diga-se de passagem: nĂŁo ĂŠ que eu queira me imiscuĂ de direito, com razĂŁo, porque cheguei num certo clube, adentrei no recinto, porque tinha casais adentrando, entĂŁo adentrei tambĂŠm. Ao chegar no salĂŁo, eu tava afim de fazer necessidade fisiolĂłgica, fui interpelado pela pessoa: se eu tinha dinheiro para cobrir a despesa [sic]. Eu falei: aguarde um minuto que vou no sanitĂĄrio [sic]. Quando eu volto, vem trĂŞs guardas truculentos, inclusive cara que [ruĂdo] no clube, trabalhou mais eu [sic]. Expliquei minha situação, paguei, eles seguraram meu dinheiro, me botaram pra fora, quiseram me bater... Ai foi obrigado... Eu tava armado... [sic] Revidei a altura. Ta entendendo? Foi isso ai. Numa fogueira ali que tem na Avenida 6 com a Bernardo Vieira (LUIZ ANTĂ&#x2022;NIO, 59 ANOS).
Manoel, garoto de programa, 28 anos, cumprindo pena no PavilhĂŁo 3 por homicĂdio, argumenta que a atividade de prostituição foi o caminho que preferiu VHJXLU SDUD QmR DGHQWUDU ÂłQR PXQGR GR FULPH´ Ao mesmo tempo, podia manter seu vĂcio. Terminou preso por homicĂdio ao cobrar uma dĂvida de um cliente: Comecei a fazer programa, virei garoto de programa, pra mim nunca roubar nem o cidadĂŁo e nem a cidadĂŁ eu tive que fazer programa [sic]. Porque eu nunca roubei ninguĂŠm, Graças a Deus, entĂŁo o dinheiro do programa eu mantinha meu vĂcio. EntĂŁo eu conheci uma pessoa que me chamou para fazer um programa e nĂŁo quis me pagar, a gente teve uma luta corporal e em legitima defesa atingi uma faca na altura do peito. Fui preso por homicĂdio, fui condenado a seis anos e a seis meses, tirei dois e fui pra rua, sem ter onde dormir... Agora tĂ´ aqui hĂĄ dois anos e cinco meses por abuso do semi-aberto [sic] (MANOEL, 28 ANOS).
2XWUDV YH]HV R FULPH VH DSUHVHQWD FRPR XPD HVSpFLH GH ³UHVSRVWD´ PDLV
75
imediata Ă s necessidades de consumo ou de ascensĂŁo econĂ´mica. Ă&#x2030; o caso de Expedito, 25 anos, PavilhĂŁo do Trabalho, preso por homicĂdio. Fui preso por assalto nĂŠ? [sic] Eu assaltei 3 vezes. Eu nĂŁo precisava assaltar, foi mais loucura mesmo. A tal da adrenalina, vontade de crescer fĂĄcil. AĂ, passei a fazer essas coisas por isso. Eu tenho famĂlia humilde que nĂŁo podia me dar tudo que eu queria coisas boas, que eu tinha vontade de ter. AĂ que nĂŁo escutei a famĂlia e simplesmente entrei nessa vida por convites. Devido a companhias, mas por que eu quis tambĂŠm. Porque sĂł a companhia nĂŁo tem nada a ver, mas a mĂĄ companhia tem tambĂŠm muito a ver nĂŠ? [sic] Ai eu passei a participar de alguns assaltos. Assalto a lojas, carros, essas coisas, nĂŁo muito, mas fiz [sic]. (...) O que me levou ao crime foi principalmente o dinheiro fĂĄcil. Porque depois com o tempo vocĂŞ vai vendo que aquilo ĂŠ loucura, porque vocĂŞ sente que vai perder a vida naquele momento nĂŠ? [sic] Na realidade ĂŠ sĂł dinheiro fĂĄcil, e dinheiro passa, passa. Estou preso hĂĄ quatro anos. (EXPEDITO, 25 ANOS).
Expedito mostra que o grupo e as ÂłFRPSDQKLDV´ HP TXH YLYLD DVVLP FRPR R GHVHMR GH ÂłHPRomR´ IRUDP HOHPHQWRV TXH R PRWLYDUDP SDUD FRPHWHU VHXV SULPHLURV GHOLWRV $ LGpLD GR TXH HOH DSRQWRX FRPR ÂłGLQKHLUR IiFLO´ HP XPD VRFLHGDGH SDXWDGD no consumo e no status advindo do mesmo sĂŁo tambĂŠm elementos presentes em seu discurso. As reaçþes possĂveis Ă s demandas nĂŁo atingidas a essa profunda exclusĂŁo podem ser percebidas, como jĂĄ citado, a partir das explosĂľes de violĂŞncia e criminalidade. O criminoso, o bandido, enquanto portador desse habitus precĂĄrio, ĂŠ um exemplo do tipo social que tambĂŠm pode surgir desse processo. Levando em consideração, ĂŠ claro, que nem todos os indivĂduos responderĂŁo a essa precarização da mesma forma.
76
4 Disciplina e interação social em Alcaçuz ³Cada sentença um motivo, uma história de lágrima, sangue, vidas e glórias, abandono, miséria, ódio, sofrimento, desprezo, desilusão, ação do tempo. Misture bem essa química. Pronto: eis um novo detento Lamentos no corredor, na cela, no pátio. Ao redor do campo, em todos os cantos. Mas eu conheço o sistema, meu irmão, hã... Aqui não tem santo. Rátátátá... preciso evitar que um safado faça minha mãe chorar´ (Diário de Um Detento ± 5DFLRQDLV 0&¶V .
77
4.1. Prisão como espaço de poder e disciplina
Michel Foucault, em seu clĂĄssico Vigiar e Punir (2005a) pensa a punição como ÂłXPD IXQomR VRFLDO FRPSOH[D´ S %XVFD analisar os mĂŠtodos de punição social nĂŁo como simples consequĂŞncias de regras de direito ou como indicadores de estruturas sociais, mas efetivamente, enquanto tĂŠcnicas que detĂŞm sua especificidade no campo mais geral dos outros processos de poder. Procura adotar em relação aos castigos a perspectiva da tĂĄtica polĂtica. Colocar a tecnologia do poder no princĂpio tanto da humanização da penalidade quanto do conhecimento do homem. (...) Verificar se esta entrada da alma no palco da justiça penal, e com ela a inserção na prĂĄtica judiciĂĄria de todo um saber ÂľFLHQWtILFRÂś QmR p R HIHLWR GH XPD WUDQVIRUPDomR QD PDQHLUD FRPR R SUySULR FRUSR ĂŠ investido pelas relaçþes de poder. (...) Em suma, tentar estudar a metamorfose dos mĂŠtodos punitivos a partir de uma tecnologia polĂtica do corpo onde se poderia ler uma histĂłria comum das relaçþes de poder e das relaçþes de objeto (FOUCAULT, 2005a, p. 24).
Assim, o corpo ĂŠ tomado como diretamente mergulhado em um campo polĂtico onde as relaçþes de poder possuiriam alcance imediato sobre ele. EssDV ÂłR LQYHVWHP o marcam, o dirigem, o supliciam, sujeitam-no a trabalhos, obrigam-no a cerimĂ´nias, exigem-OKH VLQDLV´ (p. 25). Tudo isso se liga Ă sua utilização econĂ´mica e, em boa proporção, tambĂŠm como força de produção, onde o corpo ĂŠ investido por relaçþes de poder e de dominação. Sua constituição como força de trabalho sĂł ĂŠ possĂvel se ele HVWi SUHVR QXP ÂłVLVWHPD Ge sujeição (onde a necessidade ĂŠ tambĂŠm um instrumento polĂtico cuidadosamente organizado, calculado e utilizado); o corpo sĂł se torna Ăştil se p DR PHVPR WHPSR FRUSR SURGXWLYR H FRUSR VXEPLVVR´ )28&$8/7 a, p. 26). O aparelho punitivo age de maneira que o ponto de aplicação da pena nĂŁo ĂŠ a representação, ĂŠ o corpo, ĂŠ o tempo, sĂŁo os gestos e as atividades de todos os dias; a ÂłDOPD´ WDPEpP PDV QD PHGLGD HP TXH p VHGH GH KiELWRV Âł2 FRUSR H D DOPD FRPR princĂpios dos comportamentos, tornam o elemento que agora ĂŠ proposto Ă intervenção punitiva. Mais que sobre uma arte de representaçþes, ela deve repousar VREUH XPD PDQLSXODomR UHIOHWLGD GR LQGLYtGXR´ )28&$8/7 a, p. 106).
78 O que se engaja no aparecimento da prisão Ê a institucionalização do poder de punir, ou mais precisamente: o poder de punir (com o objetivo estratÊgico que lhe foi dado no fim do sÊculo XVIII, a redução de ilegalismos populares) serå mais bem realizado escondendo-VH VRE XPD IXQomR VRFLDO JHUDO QD ¾FLGDGH SXQLWLYDœ RX investindo-VH QXPD LQVWLWXLomR FRHUFLWLYD QR ORFDO IHFKDGR GR ¾UHIRUPDWyULRœ"´ (FOUCAULT, 2005b, p. 107).
Afinal, se o crime ĂŠ um dano social, se o criminoso ĂŠ o inimigo da sociedade, como a lei penal deve tratar esse criminoso ou deve reagir a esse crime? Segundo Foucault (2005, p. 82 ÂłVH R FULPH p XPD SHUWXUEDomR SDUD D VRFLHGDGH VH R FULPH nĂŁo tem mais nada a ver com a falta, com a lei natural, divina, religiosa, etc., ĂŠ claro que a lei penal nĂŁo pode prescrever uma vingança, a reGHQomR GH XP SHFDGR´ (VVD lei penal deve apenas permitir uma reparação da perturbação causada Ă sociedade (como tambĂŠm percebia Durkheim). Deve ser feita de tal maneira que o dano causado pelo indivĂduo Ă sociedade seja apagado; se isso nĂŁo for possĂvel, ĂŠ preciso que o dano nĂŁo possa mais ser recomeçado pelo indivĂduo em questĂŁo ou por outro. A lei penal deve reparar o mal ou impedir que males semelhantes possam ser cometidos contra o corpo social (FOUCAULT, 2005, p. 82).
A prisĂŁo esteve, desde sua origem no sĂŠculo XIX, ligada a um projeto de transformação dos indivĂduos. Era uma espĂŠcie de depĂłsito de criminosos, embora devesse ter sido um instrumento tĂŁo aperfeiçoado quando a escola, a caserna ou o hospital, e poder agir com precisĂŁo sobre os indivĂduos. PorĂŠm, o fracasso foi imediato. A ponto de que, desde 1820, se constatou que a prisĂŁo, longe de transformar os criminosos, serviu DSHQDV SDUD IDEULFDU QRYRV RX SDUD DIXQGiĂORV ainda mais na criminalidade. Ocorreu entĂŁo certa utilização estratĂŠgica daquilo que foi considerado um inconveniente: Âła prisĂŁo fabrica delinquentes, mas os delinquentes sĂŁo Ăşteis tanto no domĂnio econĂ´mico como no polĂtico. Os delinquentes servem para alguma coisD´ )28&$8/7 S -132): Eu na ĂŠpoca de cabeça quente embarquei por essa aĂ [sic]. Paguei praticamente de graça... [sic] AĂ, o que foi que aconteceu, a partir daĂ, vou utilizar uma palavra FKXOD TXH p XVDGD DTXL QD FDGHLD ÂłQmR WHYH ERTXLQKD PDLV QmR´ YHLR SUD DTXL p pra se lascar [sic]. AĂ cumpri por homicĂdio, ai jĂĄ consegui sair por relaxamento de prisĂŁo, nĂŠ? [sic] E aquela histĂłria, um dia o cara vai e vai tomando gosto pelo negĂłcio. Fiz um terceiro... AĂ nesse terceiro tĂ´ aqui atĂŠ hoje (risos) [sic] (LUIZ ANTĂ&#x201D;NIO, 59 ANOS).
79
Segundo ainda Luiz AntĂ´nio, apenado do pavilhĂŁo do trabalho em Alcaçuz, reproduzindo os estereĂłtipos da prisĂŁo enquanto uma ÂłXQLYHUVLGDGH GR FULPH´ na medida em que esta SHUPLWH XPD ÂłHVSHFLDOL]DomR´ H XP DSURIXQGDPHQWR QDV SUiWLFDV criminosas: E outra coisa, vale salientar, eu tĂ´ na universidade [sic]. Porque ĂŠ o tal negĂłcio: eu nĂŁo estupro, eu nĂŁo trafico, eu nĂŁo assalto, eu nĂŁo furto, porque eu nĂŁo quero. Mas eu jĂĄ aprendi bastante viu meu amigo? Sou diplomado jĂĄ. Isso ĂŠ a verdade. Isso aqui ĂŠ uma escola, nĂŁo ressocializa ninguĂŠm. Isso aqui que eu falo num âmbito geral, nĂŁo sĂł Alcaçuz. Se eu acho errado? Eu sou muito crĂtico, sou cĂŠtico. Eu acho errado o seguinte: por que esse povo, esses ladrĂŁo que praticou um homicĂdio, um homicĂdio ou latrocĂnio, num meio de um monte de ladrĂŁo? [sic] A tendĂŞncia ĂŠ o que? Vou voltar a dizer uma palavra que eu jĂĄ falei: ĂŠ um verdadeiro. (...) Nesses tempos que eu jĂĄ passei no sistema penitenciĂĄrio, eu conheço pessoas, que entrou aqui como homicida e saiu como traficante e morreu hĂĄ pouco tempo como assaltante. Isso ai sĂł corrobora o meu ponto de vista [sic]. Posso estar enganado, mas acho que corrobora o meu ponto de vista.
O depoimento encaixa-se, como assinalado, na reflexĂŁo foucaultiana de que o principal papel da prisĂŁo ĂŠ construir mais delinquentes. Foi possĂvel, em nossas conversas com os apenados, ouvir sempre a mesma compreensĂŁo, como no caso de Pedro, 41 anos, PavilhĂŁo do Trabalho, ex-policial. Em seu discurso percebe-se que DSRQWD FRPR ÂłIDOKD GR VLVWHPD´ VXD SUySULD HVVrQFLD RX DGPLQLVWUDomR $R PHVPR tempo, a questĂŁo da ressocialização ĂŠ apontada como elemento chave que nĂŁo funciona: O sistema eu vejo, considero de forma atĂŠ falido. NĂŁo por falta de quem trabalha. Mas por parte dos administradores na verdade. Porque a grande falha da prisĂŁo ĂŠ que a justiça vai e determina por ordem tal e vocĂŞ ĂŠ enviado pra cĂĄ, entre aspas eles mandam o preso para um local para cumprimento da pena, buscando uma ressocialização nĂŠ? [sic] Mas isso nĂŁo acontece, nĂŁo existe a menor apoio por parte de quem seja, no sentido de dar um apoio para que o indivĂduo nĂŁo volta pra cĂĄ [sic]. VocĂŞ vem pra cĂĄ, comete o crime e tal, te jogam aqui dentro e nĂŁo se preocupam, nĂŁo existe uma preocupação com a sua volta, o seu retorno Ă sociedade. A partir do momento em que vocĂŞ retorna. A famĂlia muitos aĂ abandonam, vocĂŞ nĂŁo tem uma base familiar, nĂŁo tem instrução, um grau de instrução bom, entĂŁo tudo leva a que vocĂŞ retorne, ou seja, a reincidĂŞncia criminal ĂŠ muito grande exatamente em decorrĂŞncia disso [sic]. EntĂŁo eu acho que uma falha muito grande do sistema ĂŠ a nĂŁo preocupação com o retorno dessa pessoa que cometeu um crime ao convĂvio social. Porque a prĂłpria sociedade que botou ele aqui dentro, entre aspas nĂŠ? Porque a justiça ĂŠ quem botou, nĂŁo se preocupa em
80 voltar, então volta o homem revoltado, pós-graduado no crime aqui, porque você entra com um determinado crime e aprende tudo o que não presta aqui dentro, volta para a sociedade e a sociedade é que vai ser vítima do próprio acontecimento do que você passou aqui, que você vai repassar posteriormente pra sociedade (PEDRO, 41 ANOS).
Era necessário diferenciar internamente esses dois grupos, operários e delinquentes, apresentando o delinquente como exógeno ao proletariado. O que temiam as elites era esta espécie de ilegalismo sorridente e tolerado que se conhecia no século XVIII: o vadio. A partir do momento em que a capitalização pôs nas mãos da classe popular, uma riqueza investida em matérias-primas, máquinas e instrumentos, foi absolutamente necessário proteger esta riqueza. Já que a sociedade industrial exige que a riqueza esteja diretamente nas mãos não daqueles que a possuem, mas daqueles que permitem a extração do lucro fazendo-a trabalhar, como proteger esta riqueza? Evidentemente por uma moral rigorosa. Foi absolutamente necessário constituir o povo como um sujeito moral, portanto separando-o da delinquência, portanto separando nitidamente o grupo de delinquentes, mostrando-os como perigosos não apenas para os ricos, mas também para os pobres, mostrando-os carregados de todos os vícios e responsáveis pelos maiores perigos. Donde o nascimento da literatura policial e da importância, nos jornais, das páginas policiais, das horríveis narrativas de crimes (FOUCAULT, 1995, p. 132-133). Desta maneira, a punição e sua instituição mor, a prisão, é uma técnica de coerção dos indivíduos; ela utiliza processos de treinamento do corpo ± não sinais ± com os traços que deixa, sob a forma de hábitos, no comportamento; e ela supõe a implantação de um poder específico de gestão da pena. O inimigo vencido, o sujeito de direito em vias de requalificação, o indivíduo submetido a uma coerção imediata. (...) Não podemos reduzi-los nem a teorias de direito (se bem que eles sejam paralelos) nem identificá-los a aparelhos ou a instituições (se bem que se apóiem sob estes), nem fazê-los derivar de escolhas morais (se bem que nelas encontrem neles suas justificações). São modalidades de acordo com as quais se exerce o poder de punir. Três tecnologias de poder (FOUCAULT, 2005a, p. 107-108).
Neste ínterim e contexto, temos a emergência da disciplina. O momento histórico onde vemos o nascimento das disciplinas é o momento em que nasce uma verdadeira ³arte do corpo humano, que visa não unicamente o aumento de suas
81
habilidades, nem tampouco aprofundar sua sujeição, mas a formação de uma relação que no mesmo mecanismo o torna tanto mais obediente quanto ĂŠ mais Ăştil, e inYHUVDPHQWH´ FOUCAULT, 2005a, p. 119). Surge aĂ uma polĂtica das coerçþes que sĂŁo ao mesmo tempo um trabalho sobre o corpo, uma manipulação calculada de seus elementos, de seus gestos, de seus comportamentos. Foucault coloca que o corpo KXPDQR HQWUDULD QXPD PDTXLQDULD GH SRGHU TXH ÂłR HVTXDGULQKD R GHVDUWLFXOD H R UHFRPS}H´ (FOUCAULT, 2005a, p. 119). Ela define como se pode ter domĂnio sobre o corpo dos outros, nĂŁo simplesmente para que façam o que se quer, mas para que operem como se quer, com as tĂŠcnicas, segundo a rapidez e a eficĂĄcia que se GHWHUPLQD 1HVWH PRPHQWR D ÂłGLVFLSOLQD IDEULFD DVVLP FRUSRV VXEPLVVRV H H[HUFLWDGRV FRUSRV ÂľGyFHLVϫ 7DPEpP (...) a disciplina aumenta as forças do corpo (em termos econĂ´micos de utilidade) e diminui essas mesmas forças (em termos polĂticos de obediĂŞncia). Em uma palavra: HOD GLVVRFLD R SRGHU GR FRUSR ID] GHOH SRU XP ODGR XPD ÂľDSWLGmRÂś XPD ÂľFDSDFLGDGHÂś TXH HOD SURFXUD aumentar, e inverte por outro lado a energia, a potĂŞncia que poderia resultar disso, e faz dela uma relação de sujeição estrita. Se a exploração econĂ´mica separa a força e o produto do trabalho, digamos que a coerção disciplinar estabelece no corpo o elo coercitivo entre uma aptidĂŁo DXPHQWDGD H XPD GRPLQDomR DFHQWXDGD´ )28&$8/7 a, p. 119).
A disciplina age sobre vĂĄrias perspectivas: 1) procede em primeiro lugar Ă distribuição dos indivĂduos no espaço, cercando-os, delimitando-os; 2) age acerca do controle da atividade, impondo horĂĄrios; 3) ela depois decompĂľe o tempo e o espaço em segmentos, compartimentando-os, compondo forças, analisando-os; 4) redução do corpo de forma funcional, numa verdadeira inserção desse corpo-segmento em todo um conjunto com o qual se articula. Desse modo, pode-se dizer que a disciplina produz, a partir dos corpos que controla, uma individualidade dotada de quatro caracterĂsticas: ĂŠ celular (pelo jogo da repartição espacial), ĂŠ orgânica (pelo codificação das atividades), ĂŠ genĂŠtica (pela acumulação do tempo), ĂŠ combinatĂłria (pela composição das forças). E, para tanto, utiliza quatro grandes tĂŠcnicas: constrĂłi quadros; prescreve manobras; impĂľe H[HUFtFLRV HQILP SDUD UHDOL]DU D FRPELQDomR GDV IRUoDV RUJDQL]D ÂľWiWLFDVÂś $ tĂĄtica, arte de construir, com os corpos localizados, atividades codificadas e as aptidĂľes formadas, aparelhos em que o produto das diferentes forças se encontram majorado por sua combinação calculada ĂŠ sem dĂşvida a forma mais elevada da prĂĄtica disciplinar (FOUCAULT, 2005a, p. 141).
82
$ GLVFLSOLQD ³IDEULFD´ LQGLYtGXRV HOD p D WpFQLFD HVSHFtILFD GH XP SRGHU TXH toma os indivíduos ao mesmo tempo como objetos e como instrumentos de seu exercício. É um poder modesto, desconfiado, que funciona a modo de uma economia calculada, mas permanente. O sucesso do poder disciplinar se deve sem dúvida ao uso de instrumentos simples: o olhar hierárquico, a sanção normalizadora e sua combinação num procedimento que lhe é específico, o exame (FOUCAULT, 2005a, p. 143). Em Alcaçuz, a disciplina é expressa em vários aspectos, moldando e controlando todos os instantes da vida dos apenados. Desde o alvorecer ao pôr-dosol, os presos têm seu dia-a-dia controlado com horário para comer, sair para suas atividades, banho de sol, visita e para novamente ser trancados nas celas e dormir. Segundo Júnior, 30 anos, apenado do Pavilhão do Trabalho e evangélico, preso por homicídio, o dia é marcado pela monotonia, mas ao mesmo tempo pelas relações de intimidade que perpassam aquele universo disciplinar: Meu dia-a-dia é todo dia, me levanto cedo, vou trabalhar. A gente volta, quando dá 11 horas a gente almoça, aí vai de duas [horas] da tarde, de duas e meia, trabalha de novo e volta de quatro horas [sic]. E, quando chega ali pega uma bíblia, vou levar uns hinos, lê a palavra de Deus, procurar meditar a palavra de Deus. E quando for a noite, quando tem culto a gente vai pra ali, bota os banco [sic], começa a pregar a palavra de Deus, sei que é só tranquilidade [sic]. As refeições é [sic] normal mesmo, tranquilo a comida sabe? A gente almoça mesmo nos quartos da gente mesmo, nossos quartos, cada um toma um banho. Vai toma um banho, faz um suco, se senta ali, se alimenta. Depois do almoço descansa. Quando é duas horas da tarde a gente volta a trabalhar de novo, depois de nóis [sic] ter descansado mais um pouco e aí vai trabalhar e volta de quatro hora [sic], aí pronto. Quem tem uma roupa pra [sic] lavar vai lavar uma roupa. Quem tem uma palavra de Deus pra [sic] ler para pregar a palavra vai e prega a palavra, e assim é com calma sabe? Tranquilidade.
Da mesma maneira, para os que trabalham na penitenciária, a rotina e o trabalho, ao menos para alguns, é dominada pelas atividades laborais: Meu dia-a-dia aqui passo o dia trabalhando. Depois que tomei a decisão de vir trabalhar aqui hoje é algo melhor. Trabalho todos os dias, só se houver visita, mas todos os dias. O corpo trabalha, mas a mente descansa, porque não alimenta mais com o que não presta, comparo com os pavilhões onde não fazem nada e ficam
83 pensando o que não presta. Eu começo a trabalhar aqui às 6 horas e um pouquinho e só paro a noite (EXPEDITO, 25 ANOS).
No mesmo sentido: ÂłAqui eu trabalho fazendo cartuchos [de impressoras]. Trabalho tranquilo. DĂĄ pra passar o tempo, sem ficar pensando besteira e jĂĄ ĂŠ uma profissĂŁo a mais´ (PAULO, 31 ANOS). Por fim, o elemento central da disciplina ĂŠ o panoptismo. Este, numa extrapolação da visĂŁo de Jeremy Betham, interpretado por Foucault, pode ser pensando como um espaço fechado, recortado, vigiado em todos os seus pontos, onde os indivĂduos estĂŁo inseridos num lugar fixo, onde os menores movimentos sĂŁo controlados, onde todos os acontecimentos sĂŁo registrados, onde um trabalho ininterrupto de escrita liga o centro e a periferia, onde o poder ĂŠ exercido sem divisĂŁo, segundo uma figura hierĂĄrquica contĂnua, onde cada indivĂduo ĂŠ constantemente localizado, examinado e distribuĂdo entre os vivos, os doentes e os mortos Âą isso tudo constitui um modelo compacto do dispositivo disciplinar (FOUCAULT, 2005a, p. 163).
O modelo panĂłptico parte da visĂŁo de uma prisĂŁo (ou de um espaço) onde na periferia hĂĄ uma construção em anel, circular; no FHQWUR XPD WRUUH ÂłHVWD p vazada de largas janelas que se abrem sobre a face interna do anel; a construção perifĂŠrica e GLYLGLGD HP FHODV FDGD XPD DWUDYHVVDQGR WRGD D HVSHVVXUD GD FRQVWUXomR´ 8m vigia na torre central, onde em cada cela pode-VH WUDQFDU ÂłXP ORXFR XP GRHQWH XP FRQGHQDGR XP RSHUiULR RX XP HVFRODU´ 2 GLVSRVLWLYR SDQySWLFR RUJDQL]D XQLGDGHV espaciais que pHUPLWHP YHU VHP SDUDU H UHFRQKHFHU LPHGLDWDPHQWH Âł$ YLVLELOLGDGH p XPD DUPDGLOKD´ (FOUCAULT, 2005a, p. 165-166). Para Foucault, o efeito mais LPSRUWDQWH GR 3DQySWLFR ÂłLQGX]LU QR GHWHQWR XP HVWDGR FRQVFLHQWH H SHUPDQHQWH GH visibilidade que assegura o funFLRQDPHQWR DXWRPiWLFR GR SRGHU´ (2005a, p. 166). Onde o fundamental ĂŠ fazer com que a vigilância seja permanente em seus efeitos, mesmo que seja descontĂnua em sua ação; para que a perfeição do poder tenda a tornar inĂştil seu exercĂcio; isto para que esse DSDUHOKR DUTXLWHWXUDO ÂłVHMD XPD PiTXLQD de criar e sustentar uma relação de poder independente daquele que o exerce; enfim, que os detentos se encontrem presos numa situação de poder de que eles mesmos sĂŁo
84
RV SRUWDGRUHV´ FOUCAULT, 2005a, p. 166). O significativo ĂŠ que o indivĂduo se perceba vigiado. Foucault novamente informa que, (...) por isso Bentham colocou o princĂpio de que o poder devia ser visĂvel e inverificĂĄvel. VisĂvel: sem cessar o detento terĂĄ diante dos olhos a alta silhueta da torre central de onde ĂŠ espionado. InverificĂĄvel: o detento nunca deve saber se estĂĄ sendo observado; mas deve ter certeza de que sempre pode sĂŞ-lo. (...) O PanĂłptico ĂŠ uma mĂĄquina de dissociar o par ver-ser visto: no anel perifĂŠrico, se ĂŠ totalmente visto, sem nunca ver; na torre central, vĂŞ-se tudo, sem nunca ser visto (2005a, p. 166-167).
A função da disciplina, com seus elementos caracterizadores ĂŠ permitir que o indivĂduo fosse construĂdo de maneira a que sirva utilmente a vĂĄrias funçþes sociais, seja a produção material, seja na transmissĂŁo do saber, seja na difusĂŁo de tecnologias ou mesmo na guerra. DaĂ a necessidade da vigilância permanente, que, no espaço prisional nem sempre ĂŠ absoluta. Afinal, a disciplina ĂŠ uma forma de poder e, onde hĂĄ poder, hĂĄ alguma forma de resistĂŞncia. O panoptismo tem seus limites na prisĂŁo e se adequa Ă s mais variadas realidades. O panĂłptico, em Alcaçuz, ĂŠ limitado pela arquitetura dos pavilhĂľes e pela relativa liberdade interna que os presos possuem nos pavilhĂľes.
Esse cotidiano de controle ĂŠ quebrado por atividades que, embora
limitadas, estĂŁo ligadas Ă s preferĂŞncias dos presos: Minha cela tem sete pessoas. Ă&#x2030; tranquila, geralmente a gente fica na expectativa de um jogo de futebol que vai passar, qual ĂŠ o filme que vai passar na segunda-feira, ou na terça, ou na quarta, ou um livro, ou alguma coisa, falĂĄvamos sobre o dia-adia na rua. Um jogo de baralho ou alguma coisa desse tipo pra [sic] passar o tempo. Ler um livro, esse tipo de coisa. (JOĂ&#x192;O, 27 ANOS).
O discurso da disciplina ĂŠ alheio ao da lei, segundo Foucault. Ă&#x2030; tambĂŠm alheio Ă regra como efeito da vontade soberana. As disciplinas trazem um discurso que nĂŁo p R GD UHJUD ÂłQmR R GD UHJUD MXUtGLFD GHULYDGD GD VREHUDQLD PDV R GD UHJUD QDWXUDO LVWR p GD QRUPD´ (ODV LUmR GHILQLU XP FyGLJR GD QRUPDOL]DomR H HODV VH ÂłUHIHULUmR necessariamente a um horizonte teĂłrico que nĂŁo serĂĄ o edifĂcio do direito, mas o campo das ciĂŞncias humanas. E sua jurisprudĂŞncia, para essas disciplinas, serĂĄ a de XP VDEHU FOtQLFR´ )28&$8/7 S 45).
85
Temos de um lado, a organização do direito em torno da soberania, do outro, a mecânica das coerções exercidas pelas disciplinas. O poder hoje, se exerce ao mesmo tempo através da disciplina, onde esses discursos invadem o direito e os procedimentos da normalização colonizem cada vez mais os procedimentos da lei. Isso pode explicar o funcionamento global daquilo que Foucault chama de uma ³VRFLHGDGH GH QRUPDOL]DomR´ (1999, p. 46). $ SULVmR p R HVSDoR LGHDO GD GLVFLSOLQD )RXFDXOW D FKDPDUi GH ³XP TXDUWHO um pouco estrito, uma escola sem indulgência, uma oficina sombria, mas, levando ao fundo, nada GH TXDOLWDWLYDPHQWH GLIHUHQWH´ Percebe-se aqui um duplo fundamento: jurídico-econômico por um lado e técnico-disciplinar por outro. Ambos fizeram a prisão aparecer como a forma mais racional e mais civilizada das penas. A prisão foi desde o início uma "detenção legal encarregada de um suplemento corretivo, ou ainda uma empresa de modificação dos indivíduos que a privação de liberdade permite fazer funcionar no siVWHPD OHJDO´ (2005a, p. 196-197). Assim, a prisão deve ser um aparelho disciplinar exaustivo. O que se quer dizer FRP LVVR" (OD GHYH WRPDU SDUD VL WRGRV RV DVSHFWRV GR LQGLYtGXR ³VHX WUHLQDPHQWR físico, sua aptidão para o trabalho, seu comportamento cotidiano, sua atitude moral, VXDV GLVSRVLo}HV´ (FOUCAULT, 2005a, p. 198-199). A prisão, muito mais que a escola, a oficina ou o exército, que implicam sempre numa certa especialização, é "onidisciplinar". Ou seja, tudo abarca. Além disso, a prisão é sem exterior nem lacuna; não se interrompe, a não ser depois de terminada totalmente sua tarefa; sua ação sobre o indivíduo deve ser ininterrupta: disciplina incessante. Enfim, ela dá um poder quase total sobre os detentos; tem seus mecanismos internos de repressão e de castigo: disciplina despótica. Leva a mais forte intensidade todos os processos que encontramos nos outros dispositivos de disciplina. Ela tem que ser a maquinaria mais potente para impor uma nova forma ao indivíduo pervertido; seu modo de ação é a coação de uma educação total (FOUCAULT, 2005a, p. 198-199).
Ao se tornar totalizadora, a prisão consegue moldar os indivíduos conforme sua necessidade. Não se confunda a necessidade real da prisão com os projetos liberais e humanitários das teorias do Direito e da Execução Penal. Sua função é formar indivíduos, pois ela é espaço disciplinar. Mas o indivíduo formado pela disciplina é o
86
indivĂduo-pĂĄria, o criminoso, aquele que fatalmente retornarĂĄ sempre a esse espaço e que carregarĂĄ sua marca ad eternum. Os princĂpios bĂĄsicos da prisĂŁo ligam-se Ă s caracterĂsticas da disciplina: isolamento, para que se possa exercer sobre os condenados a maior eficĂĄcia possĂvel de disciplinarização; o trabalho, concebido como uma das condiçþes de mudança comportamental numa sociedade onde este ĂŠ base de uma ĂŠtica social extremamente valorizada. Se o protestante apegou-se ao trabalho, pois este era uma forma de atingir o ad majorie gloriam Dei, para o preso, o trabalho ĂŠ castigo e reabilitação. Para o primeiro um ato de amor a Deus. Para o segundo uma punição que tenta lhe inculcar valores e hĂĄbitos que ele percebe como exteriores. Uma caracterĂstica fundamental da prisĂŁo ĂŠ que ela opera com uma lĂłgica de poder prĂłpria, alheia Ă legalidade estatal e jurĂdica. Foucault denominD HVWD OyJLFD GH ÂłRSHUDomR FRUUHWRUD´ 3DUD HOH se o princĂpio da pena ĂŠ uma decisĂŁo de Âłjustiça, sua gestĂŁo, sua qualidade e seus rigores devem pertencer a um mecanismo autĂ´nomo que controla os efeitos da punição no prĂłprio interior do aparelho que os prRGX]´ FOUCAULT, 2005a, p. 206). Ou seja, a prisĂŁo constrĂłi todo um sistema de puniçþes e de recompensas que nĂŁo ĂŠ apenas uma maneira de fazer respeitar as regras internas da prisĂŁo, mas de tornar efetiva a ação da prisĂŁo sobre os detentos. Uma amostra disWR HVWi QXPD YHUGDGHLUD ÂłDXWRQRPLD QDV YLROrQFLDV LQ~WHLV´ GRV JXDUGDV RX PHVPR QR GHVSRWLVPR GDV DGPLQLVWUDo}HV TXH WrP os privilĂŠgios das quatro paredes. Como a prisĂŁo deve realizar transformaçþes nos indivĂduos, o aparelho carcerĂĄrio recorre a trĂŞs grandes estratĂŠgias: o esquema polĂtico e moral do Âłisolamento individual e da hierarquia; o modelo econĂ´mico da força aplicada a um trabalho obrigatĂłrio; o modelo tĂŠcnico-mĂŠdico da cura e da normalização. A cela, a oficina, R KRVSLWDO´ FOUCAULT, 2005a, p. 208). TĂŠcnicas disciplinares, nada mais. Alheias ao jurĂdico e ao polĂtico, elas se exercem a margem deles, como verdadeiros micro-poderes. Isso ĂŠ corroborado pelos depoimentos dos presos, os quais, em sua maioria, sofreram algum tipo de punição na prisĂŁo. Todas estas de alguma forma nĂŁo inscritas nas normas reguladoras do sistema (como a Lei de Execuçþes Penais):
87 Quando tirei um castigo aqui, por conta do perĂodo da fuga nĂŠ e de uma tentativa frustrada que aconteceu tambĂŠm, depois de uma tentativa de fuga e foi colocado todo o pavilhĂŁo pra lavar e a gente... [sic] Muitas vezes acontece de vocĂŞ naquela correria na hora que o prĂŠdio estĂĄ sendo invadido a pessoa vai passando correndo, Ă s vezes essa munição de borracha... [sic] Ficou o uso indiscriminado assim, vocĂŞ vai passando no corredor correndo e a borracha comendo. As vezes vocĂŞ tĂĄ no castigo se esta sujeito a... A palavra jĂĄ ta dizendo nĂŠ? [sic] Castigo (JOĂ&#x192;O, 27 ANOS).
Acerca das invasĂľes aos pavilhĂľes realizadas pela tropa de choque (BatalhĂŁo de Choque) e pela tropa de elite da PolĂcia Militar, o BOPE (BatalhĂŁo de Operaçþes Especiais), Luiz AntĂ´nio demonstra uma sensação de injustiça pelo castigo coletivizado, imposto a todos, mesmo Ă queles que nĂŁo participaram da indisciplina: (...) dez caras numa cela tentam uma fuga, quando a fuga ĂŠ abortada nĂŁo vĂŁo SULPHLUR VDEHU VH IRL RV GH] QmR ÂłVDL WRGR PXQGR VDL WRGR PXQGR´ H YHP SROLFLD de choque, vem BOPE, vem nĂŁo sei o quĂŞ e, vocĂŞ sabe que com preso ninguĂŠm pode alisar e nem vir com flores, nĂŠ? [sic] Mas se o cara nĂŁo fez nada, porque vai ser punido no meu lugar? Quem tem de ser punido sou eu que errei. Eu acho que deveriam primeiro colher a informação, depois sai todo mundo da cela, depois discernir quem fez e tal (LUIZ ANTĂ&#x201D;NIO, 59 ANOS).
AlĂŠm do sentido de injustiça, presente na fala dos presos acima, temos tambĂŠm uma amostra de como ocorre uma generalização punitiva quando se trata de atribuir aos apenados novas puniçþes por delitos ocorridos internamente. Um exemplo, ocorrido quando da pesquisa de campo, foi relatado pelo apenado Nelson, 22 anos, PavilhĂŁo 4: (...) hĂĄ poucos dias atrĂĄs houve um homicĂdio aqui, justamente onde eu moro. E eu posso dizer pro senhor se alguĂŠm de lĂĄ desconhecesse. Quem nĂŁo tinha conhecimento ou nĂŁo. Eu tenho certeza que nenhum. 98% da população desconhecia [sic]. AtĂŠ porque era um rapaz que tinha chegado hĂĄ uns dias, um rapaz serĂssimo, nĂŁo falava com ninguĂŠm, a nĂŁo ser com aqueles que ele jĂĄ conhecia, ai ĂŠ que eu digo, se ĂŠ alguĂŠm que ele tinha conhecimento ĂŠ porque jĂĄ tinha certa amizade com ele. EntĂŁo o cara matou o outro e a cĂşpula do presĂdio resolveu punir todo mundo. Nosso setor ali fechava de sete da noite e coisa e tal, a gente ficava ali tomando um ventinho, porque aqui ĂŠ quente, e agora fecha Ă s cinco [sic]. NĂŁo deixa de ser uma punição. NĂłs estamos pagando por uma culpa que nĂŁo foi nossa. Eu acho que poderia ser diferente. Sempre sobra pra todo mundo.
Em Alcaçuz ĂŠ possĂvel visualizar tambĂŠm o sistema de recompensas que ocorrem na prisĂŁo. Afinal, nĂŁo ĂŠ apenas negativamente que o sistema funciona, ele
88
também age positivamente. Neste ínterim, os apenados do pavilhão do trabalho são os exemplos mais visíveis, podendo não apenas ganhar certos privilégios, mas poder VHU FRQVLGHUDGRV FRPR GH ³FRQILDQoD´ (...) Fico aqui solto, trabalho, fazendo uma coisa e outra. Ruim é, porque a gente tá preso, eu queria muito tá com a minha família, tá com os meus parentes e eu não posso tá. Mas a vista de tá dentro de um pavilhão é melhor aqui do que dentro de um pavilhão, né? O pavilhão é mais ruim ainda, tá entendendo? [sic] A gente tem banho de sol direto aqui. Todo dia, porque a gente trabalha. Me sinto privilegiado. [sic] Por isso que a gente trabalha aqui. A gente aqui não tem não tem. Não recebe dinheiro, não recebe nada, mas a gente trabalha por conta disso: por conta do banho de sol [sic]. O acesso de vir aqui na direção, falar até com familiares, a gente pode vir. Se vier um familiar eles deixam a gente vir aqui e conversar (KLEBER, 34 ANOS).
O fato de trabalhar lhe permite, fora dos horários e dias determinados e, mesmo contra o regulamento, ter acesso às visitas esporádicas. Uma regalia enorme para quem está aprisionado, possível apenas a alguns presos que gozam de certa confiança. Uma reciprocidade fornecida em troca da disciplina e do bom trabalho realizado. Isso porque, não apenas o trabalho em si possibilita essa confiança e permite esse tipo de reciprocidade. Informação é uma moeda importante na prisão. O apenado Manoel relatou-nos que, quando preso no Centro de Detenção Provisória da Ribeira, ajudou à direção, delatando os indivíduos que tentavam efetuar alguma fuga, utilizando uma espécie de campainha: ³(u ajudei a diretora lá do presídio, eu morava numa cela com companhia e quando os presos tentavam fugir eu apertava, ai sai de lá e aqui em Alcaçuz já tentaram me matar seis vezes´ (MANOEL, 28 ANOS). Isso lhe OHJRX D DOFXQKD GH ³FDEXHWD´ DOFDJXHWH GH SROtFLD H TXDVH OKH FXVWou à vida duas vezes em Alcaçuz. Ganhar a confiança da administração pode significar, invariavelmente, perder a confiança dos colegas apenados: Já trabalhei aqui na prisão: na lavanderia, já trabalhei na faxina. Graças a Deus aqui o Diretor dá uma oportunidade ao preso, sabe? Quando voltei fui pro [sic] pavilhão porque quando eu tava trabalhando aqui, pessoas que dizem que eu não posso ver nada e vou entregar à direção, fizeram um arrumado pra me tirar do emprego, com medo de ver as coisas e entregar. [sic] Aí fui pro [sic] pavilhão, achando que ia ficar até o dia de ir-me embora, fizeram uma rodinha lá na quadra e mandaram eu butar [sic] a mão na cabeça, pra na hora que os agentes viessem pro [sic] tranca e
89 me deram um bilhete dizendo que se eu não saísse iam me matar. Aí fui pra chapa, pagando um castigo que eu não devia pagar (MANOEL, 28 ANOS).
Em troca da possibilidade de trabalhar, Manoel funcionava como uma espécie de observador do pavilhão, devendo semanalmente, repassar informações à direção do presídio. O preço da regalia quase lhe custou sua vida, obrigando-o a se proteger QR LVRODPHQWR ³FKDSD´ A prisão não é apenas espaço de punição local de observação pura e simples dos condenados. Ela se apresenta também como a busca de conhecimento de cada preso, de seu comportamento, de suas disposições profundas e de sua progressiva e possível ³melhora´ 'Dt TXH ³DV SULV}HV GHYHP VHU concebidas como um local de formação para um saber clínico VREUH RV FRQGHQDGRV´ ,VWR LPSOLFD HP GRLV GLVSRVLWLYRV HVVHQFLDLV ³p SUHFLVR TXH R SULVLRQHLUR SRVVD VHU mantido sob um olhar permanente; é preciso que sejam registradas e contabilizadas WRGDV DV DQRWDo}HV TXH VH SRVVD WRPDU VREUH HOHV´ (FOUCAULT, 2005a, p. 208-209). Com o conhecimento progressivo dos indivíduos condenados, vai se estabelecendo de forma também SURJUHVVLYD XP FRQKHFLPHQWR ³FLHQWtILFR´ GRV delinquentes e de suas espécies, onde importa qualificar o ato enquanto delito e principalmente o indivíduo enquanto delinquente. Temos aqui o corpo do prisioneiro, acompanhado pela individualidade do delinquente, ³pela pequena alma do criminoso, que o próprio aparelho do castigo fabricou como ponto de aplicação do poder de SXQLU H FRPR REMHWR GR TXH DLQGD KRMH VH FKDPD D FLrQFLD SHQLWHQFLiULD´ (FOUCAULT, 2005a, p. 213). Deste modo, a prisão fabrica delinquentes. Ela leva de novo, quase fatalmente, diante do sistema jurídico aqueles que lhe foram confiados. Mas, o mais importante,
ela os fabrica no outro sentido de que ela introduziu no jogo da lei e da infração, do juiz e do infrator, do condenado e do carrasco, a realidade incorpórea da delinquência que os liga uns aos outros e, há um século e meio, os pega todos juntos na mesma armadilha (FOUCAULT, 2005a, p. 213).
O que se quer dizer com isso? Primeiro que a detenção provoca a reincidência. Daí que ela não pode deixar de fabricar delinquentes. Fabrica-os pelo tipo de existência que faz os detentos levar:
90
Que fiquem isolados nas celas, ou que lhes seja imposto um trabalho inútil, para o qual não encontrarão utilidade, Ê de qualquer maneira não "pensar no homem em sociedade; Ê criar uma existência contra a natureza inútil e perigosa" (...) A prisão fabrica tambÊm delinquentes impondo aos detentos limitaçþes violentas; ela se destina a aplicar as leis, e a ensinar o respeito por elas; ora, todo o seu funcionamento se desenrola no sentido do abuso de poder. Arbitrårio da administração. (...) Corrupção, medo e incapacidade dos guardas. (...) Exploração por um trabalho penal, que nessas condiçþes não pode ter nenhum caråter educativo (FOUCAULT, 2005a, p. 222).
Neste sentido, o exercĂcio da disciplina possui a grande consequĂŞncia de modelar o indivĂduo. Na prisĂŁo, o indivĂduo delinquente. DaĂ porque, como espaço disciplinar e violento, ela consegue construir novas formas de organização internas, solidĂĄrias, hierarquizadas, estabelecidas para todas as cumplicidades no futuro (dentro ou fora dela). As condiçþes da prisĂŁo e seu funcionamento levam a este quadro. Como jĂĄ mostrado anteriormente, a construção do indivĂduo delinquente e reincidente ĂŠ claramente compreendida pelos presos. De nossos 18 entrevistados, apenas dois nĂŁo eram reincidentes. De todos os reincidentes, a maioria voltou Ă prisĂŁo apĂłs ter cometido outro crime diferente do primeiro: ÂłEu nĂŁo tinha esse discernimento, sĂł depois que eu vim ter esse discernimento com a experiĂŞncia que eu vim adquirindo com esse tempo que eu to aqui, eu to fazendo tipo uma faculdade da vida, ta entendendo? Faculdade do crime. Comecei fazendo assaltos, hoje jĂĄ sei muita coisa [sic]´ (JOAO, 27 ANOS). Segundo: a prisĂŁo pode levar a famĂlia do detento Ă misĂŠria. Como ela nĂŁo ĂŠ efetivamente corretora (nem quer e nem pode sĂŞ-lo), a prisĂŁo torna-se um duplo erro econĂ´mico: pelo seu custo exorbitante, que no Brasil, segundo o DEPEN, encontra-se em cerca de R$ 1.800,00 (2011) por apenado e pela sua incapacidade de prover e por terminar jogando a famĂlia do condenado no espaço da delinquĂŞncia. Poucos
presos
UHFHEHP ÂłDX[tOLR-UHFOXVmR´ XP SDJDPHQWR GH DWp XP VDOiULR PtQLPR H PHLR jV famĂlias cujos apenados contribuĂram para o INSS (Instituto Nacional de Seguro Social). Dos nossos apenados entrevistados, apenas trĂŞs declaram que suas famĂlias recebem este benefĂcio. Aos demais, principalmente aqueles que eram arrimos e
91
sustentadores de suas famĂlias, a situação ĂŠ bem mais complicada. AlĂŠm disto, muitas desses grupos familiares constituem-se a Ăşnica base de ajuda que eles recebem. Importante concluir que, a função primordial da prisĂŁo ĂŠ Âą segundo Foucault Âą, XP PRGR GH JHULU ÂłDV LOHJDOLGDGHV GH ULVFDU OLPLWHV GH WROHUkQFLD GH GDU WHUUHQR D alguns, de fazer pressĂŁo sobre outros, de excluir uma parte, de tornar Ăştil outra, de QHXWUDOL]DU HVWHV GH WLUDU SURYHLWR GDTXHOHV´. Ou seja, a penalidade nĂŁo reprime pura e simplesmente as ilegalidades. Ela as diferencia, as cataloga, as analisa para melhor utilizĂĄ-las: ÂłE se podemos falar de uma justiça nĂŁo ĂŠ sĂł porque a prĂłpria lei ou a maneira de aplicĂĄ-la servem aos interesses de uma classe, ĂŠ porque toda a gestĂŁo diferencial das ilegalidades por intermĂŠdio da penalidade faz parte desses PHFDQLVPRV GH GRPLQDomR´ FOUCAULT, 2005a, p. 226-227). A prisĂŁo, ao aparentemente fracassar, nĂŁo erra seu objetivo, mas muito ao contrĂĄrio, ela o atinge na medida em que suscita uma forma particular de ilegalidade, que ela permite separar, iluminar e organizar como um meio relativamente fechado, mas penetrĂĄvel. Segundo Foucault, a prisĂŁo contribui para estabelecer uma ilegalidade, visĂvel, marcada e secretamente Ăştil - rebelde e dĂłcil ao mesmo tempo, SRU LVVR ÂłHOD GHVHQKD LVROD H VXEOLQKD XPD IRUPD GH LOHJDOLGDGH TXH SDUHFH UHVXPLU simbolicamente todas as outras, mas que permite deixar na sombra as que se quer ou se deve tolerar. Essa forma ĂŠ a delinqurQFLD SURSULDPHQWH GLWD´ a, p. 230). A delinquĂŞncia ĂŠ uma das formas da ilegalidade que o sistema carcerĂĄrio investiu, recortou, penetrou, organizou, fechou num meio definido e ao qual deu um papel instrumental, em relação Ă s outras ilegalidades. Essa delinquĂŞncia fabricada ĂŠ de um tipo utilizĂĄvel, que serve para os interesses das estruturas de dominação. Surge o delinquente patologizado, visto como doente, mas pasVtYHO GH WUDWDPHQWR SHOR VLVWHPD e SRVVtYHO ÂłFRQWUROi-la (localizando os indivĂduos, infiltrando-VH QR JUXSR RUJDQL]DQGR D GHODomR P~WXD ´ (FOUCAULT, 2005a, p. 231). Ă&#x2030; possĂvel, alĂŠm disso, orientar essa delinquĂŞncia fechada em si mesma para as formas de ilegalidade que sĂŁo menos perigosas: mantidos pela pressĂŁo dos controles nos limites da sociedade, reduzidos a precĂĄrias condiçþes de existĂŞncia, sem ligação com uma população que
92 poderia sustentĂĄ-los (como se fazia antigamente para os contrabandistas ou certas formas de banditismo, os delinquentes se atiram fatalmente a uma criminalidade localizada, sem poder de atração, politicamente sem perigo e economicamente sem consequĂŞncia. Mas essa ilegalidade concentrada, controlada e desarmada ĂŠ diretamente Ăştil. Ela o pode ser em relação a outras ilegalidades: isolada e junto a elas, voltada para suas prĂłprias organizaçþes internas, fadada a uma criminalidade violenta cujas primeiras vĂtimas sĂŁo muitas vezes as classes pobres, acossada de todos os lados pela polĂcia, exposta a longas penas de prisĂŁo, depois a uma vida GHILQLWLYDPHQWH ÂłHVSHFLDOL]DGD´ )28&$8/7 a, p. 231).
Assim, a delinquĂŞncia, construĂda e sistematizada por um sistema penal centrado sobre a prisĂŁo, representa um desvio de ilegalidade para os circuitos de lucro e de poder ilĂcitos das classes dominantes. A organização de uma ilegalidade isolada e fechada na delinquĂŞncia nĂŁo teria sido possĂvel sem o desenvolvimento dos controles policiais e nem mesmo do sistema prisional.
4.2 Prisão como espaço social
Um dos temas clĂĄssicos que a sociologia vem tratando desde seu nascedouro ĂŠ o processo de formação do ser social. Este processo passa pelo que foi chamado desde o sĂŠculo XIX de socialização. Desde Durkheim (1996), a socialização vem sendo pensada como um processo necessĂĄrio no qual as mais diversas instituiçþes sociais sĂŁo responsĂĄveis (famĂlia, escola, exĂŠrcito, etc.). Essas instituiçþes ou organizaçþes sociais perpassam toda a vida dos indivĂduos e sĂŁo agentes socializadoras por excelĂŞncia. Segundo Erving Goffman (2005), as organizaçþes sociais possuem um determinado grau de maior ou menor "abertura" de suas instituiçþes. Algumas se encontram abertas Ă queles que se comportam de maneira esperada, enquanto outras pedem um maior comprometimento. As instituiçþes sempre oferecem alguma coisa aos seus membros e lhes dĂŁo algo em troca. Nesta perspectiva, toda instituição possui expectativas de "fechamento", algumas mais do que outras. Ele mostra que o fechamento ou o carĂĄter totalizado ĂŠ simboli]DGR SHOD ÂłEDUUHLUD j UHODomR VRFLDO FRP o mundo externo e por proibiçþes Ă saĂda que muitas vezes estĂŁo incluĂdas no
93
esquema fĂsico Âą por exemplo, portas fechadas, paredes altas, arame farpado, fossos, iJXD IORUHVWDV SkQWDQRV´ 2 TXH classificou de Instituiçþes Totais (2005, p. 16): Uma instituição total pode ser definida como um local de residĂŞncia e trabalho onde um grande nĂşmero de indivĂduos com situação semelhante, separados da sociedade mais ampla por considerĂĄvel perĂodo de tempo, levam uma vida fechada e formalmente administrada (GOFFMAN, 2005, p. 11).
PresĂdios, manicĂ´mios e conventos sĂŁo os trĂŞs grupos principais. Poder-se-ia tambĂŠm pensar nas escolas (internatos) e nos asilos. Supervisionados, os prisioneiros sĂŁo submetidos a um processo de desprogramação, que se inicia em sua entrada na instituição. Esse processo de socialização, afinal ĂŠ disto que se trata, perpassa por toda a estadia do indivĂduo na prisĂŁo. Uma instituição total toma conta de boa parte do tempo e das atividades de seus membros e possui o aspecto do fechamento. Este, ou seu carĂĄter total ĂŠ pautado pela barreira Ă relação com o mundo externo, em termos sociais, e por proibiçþes fĂsicas Ă saĂda dele. Por isso Goffman as denomina de instituiçþes totais. A prisĂŁo constitui-se como uma dessas instituiçþes, organizada para proteger e isolar indivĂduos de quem se quer proteger a comunidade. As instituiçþes totais causam uma ruptura na vida, na medida em que unificam o trabalhar, dormir e brincar num mesmo espaço e entre os mesmos participantes. Cada fase da vida diĂĄria ĂŠ realizada conjuntamente com uma enorme gama de indivĂduos tratados da mesma maneira. Tudo isso dentro de horĂĄrios regulares impostos por um grupo de funcionĂĄrios. Neste mesmo sentido, hĂĄ uma divisĂŁo bĂĄsica nessas instituiçþes: o grupo controlado, os internados, de um lado; do outro, uma pequena equipe de supervisores. Este Ăşltimo grupo nĂŁo vive na instituição, apenas trabalha nela. Assim, cada agrupamento tende a conceber o outro atravĂŠs de estereĂłtipos limitados e hostis Âą a equipe dirigente muitas vezes vĂŞ os internados como amargos, reservados e nĂŁo merecedores de confiança; os internados muitas vezes vĂŞem os dirigentes como condescendentes, arbitrĂĄrios e mesquinhos. Os participantes da equipe dirigente tendem a sentir-se superiores e corretos; os internados tendem, pelo menos sob alguns aspectos, a sentir-se inferiores, fracos, censurĂĄveis e culpados (GOFFMAN, 2005, p. 19).
94
Entre estas duas categorias existem tambĂŠm grandes distâncias sociais muitas vezes prescritas, onde atĂŠ mesmo a conversa ĂŠ realizada em um tom especial de voz. Mesmo quando a comunicação ocorre, ela ĂŠ restrita. Os guardas controlam, entre outras coisas, a comunicação entre os presos e os nĂveis superiores da equipe dirigente como, por exemplo, o diretor da prisĂŁo. &RPR Âł,QVWLWXLomR 7RWDO´ D 3HQLWHQFLiULD GH $OFDoX] HQFRQWUD-se inserida nesta lĂłgica segregadora e separadora. O viver total do preso ocorre dentro de seus muros e em seus pavilhĂľes. Segundo o apenado Nelson, 22 anos, PavilhĂŁo 4, ÂłSULVmR p OXJDU onde a gente nĂŁo tem como sair nĂŠ? [sic] A gente entra porque estĂĄ devendo Ă justiça H Vy VDL GHSRLV TXH SDJD WXGR GLUHLWLQKR )LFD SUHVR PHVPR´ O dia-a-dia em uma prisĂŁo de regime fechado como Alcaçuz passa pelo dormir, comer, viver e atĂŠ morrer. Mas isto nĂŁo significa total isolamento do restante da sociedade. Goffman analisa que, assim como hĂĄ restrição de comunicação, hĂĄ tambĂŠm restrição Âą ao menos em teoria Âą de informação. Isso, na maioria das vezes, no que se refere aos planos dos dirigentes para com os internados. Seu destino ĂŠ uma incĂłgnita quase sempre. O papel destas restriçþes de comunicação, informação e contato ĂŠ FRQVHUYDU HVWHUHyWLSRV DQWDJ{QLFRV 'Dt TXH ÂłGHVHQYROYHP-se dois mundos sociais e culturais diferentes, que caminham juntos com pontos de contato oficial, mas com SRXFD LQWHUSHQHWUDomR´ GOFFMAN, 2005, p. 20). PorĂŠm, esse isolamento nĂŁo ĂŠ total. Primeiramente pela possibilidade de visitas e sua capacidade de tornar-se um HOR FRP D ÂłVRFLHGDGH´ GH IRUD O dia de visita aqui ĂŠ nas quartas-feiras. Eu tenho na quarta, Ă s vezes tenho no domingo. A visita nĂŁo foi hoje [sĂĄbado], vai ser amanhĂŁ. Graças a Deus. A visita ĂŠ tranquila. Normal. A mulher chega com as crianças, conversa, brinca, fica um tempo conversando, perguntando como ĂŠ que tĂĄ as coisas na rua, tĂĄ entendendo? [sic] Graças a Deus tĂĄ tudo bem [sic]. SĂł recebo ajuda. Que a minha famĂlia trabalha sabe? Minha famĂlia vem daqui de perto, do municĂpio de SĂŁo Gonçalo. Sai um pouco caro porque elas vĂŞm de taxi sabe? Vem de taxi. Quando nĂŁo ĂŠ de taxi vem no Ă´nibus. Minha esposa, minhas irmĂŁs, minha mĂŁe. Meu pai nunca veio. SĂł as mulheres (JUNIOR, 30 ANOS).
Em segundo lugar, as novas tecnologias informacionais e a sua presença em presĂdios como Alcaçuz, possibilitam ao preso um contato constante com suas famĂlias e com
95
outros indivtGXRV RX JUXSRV 6HJXQGR 0DQRHO DQRV ÂłD QRLWH p DVVLstir televisĂŁo, um ventilador. Ă&#x2030; muito contato com a famĂlia.´. No que se refere ao dia-a-dia, nĂŁo significa tambĂŠm que os apenados possuam um dia inteiro determinado, planejado ou mesmo voltado para o trabalho. Mesmo quando hĂĄ algum incentivo fornecido ao trabalho, esse incentivo nĂŁo possui a significação estrutural que possui no mundo exterior. Havendo muito ou pouco trabalho, qualquer um que tenha trabalhado fora da prisĂŁo, antes da reclusĂŁo, percebe que sua atividade a ser exercida tende a ser desmoralizada, ou mesmo desacreditada. De nossos entrevistados, mesmo os que possuĂam atividades especializadas ou mesmo tĂŠcnicas nĂŁo tiveram a possibilidade de exercĂŞ-las na prisĂŁo. A maior parte dos trabalhadores de Alcaçuz dedica seu tempo Ă faxina e Ă s atividades da cozinha. Pedro, 41 anos, responsĂĄvel pela faxina, que exercia antes a função de Policial Militar, relata que: Trabalho aqui ajudando a direção e os funcionĂĄrios. Fazemos a faxina de todo o presĂdio. A faxina como corresponde a todo o presĂdio a gente entra nos pavilhĂľes, escoltado ou nĂŁo, a gente entra. Ela ĂŠ composta de 16 faxineiros, tem o pessoal que abre os portĂŁo [sic], tem outros que pagam a ĂĄgua, a cantina e outros serviços. Ela ĂŠ feita de manhĂŁ logo cedo, 5 horas da manhĂŁ, quando abre, ĂŠ feita a faxina de todos os pavilhĂľes, e da frente aqui da administração. E a tarde, apĂłs o tranca, logo apĂłs da visita, a gente ainda faz outra faxina e pronto. Se resume a isso [sic]. Fora a manutenção do presĂdio, limpar o calçamento, cortar mato aqui. Passar cal [sic].
Goffman observa que as prisĂľes, enquanto instituiçþes totais, nĂŁo substituem a cultura anterior do apenado pela sua cultura institucional16. Se ocorrerem mudanças culturais, estas se referem muito mais Ă s oportunidades de comportamento do que a mudanças efetivas. AtĂŠ SRUTXH HVVDV LQVWLWXLo}HV ÂłFULDP H PDQWpP XP WLSR HVSHFtILFR de tensĂŁo entre o mundo domĂŠstico e o mundo institucional, e usam essa tensĂŁo SHUVLVWHQWH FRPR XPD IRUoD HVWUDWpJLFD QR FRQWUROH GH KRPHQV´ (GOFFMAN, 2005, p. 24). O que ocorre, efetivamente, ĂŠ uma degradação do eu, aonde o neĂłfito da prisĂŁo, que chega com certa concepção de si mesmo, tornada possĂvel atravĂŠs de algumas posiçþes sociais estĂĄveis em seu mundo domĂŠstico, perde totalmente o apoio 16
Nos estudos de psicologia organizacional isso se dĂĄ o nome de sistemas abertos. Nunca um subsistema consegue suprimir, mesmo que temporalmente, outro, mesmo que menos significativo.
96
dado por essas disposiçþes: inicia-VH ÂłXPD VpULH GH UHEDL[DPHQWRV GHJUDGDo}HV KXPLOKDo}HV H SURIDQDo}HV GR HX´ IDEM, 2005, p. 24). Esses processos pelos quais o Eu ĂŠ degradado sĂŁo relativamente padronizados nas prisĂľes. Primeiramente, temos a barreira que estas instituiçþes colocam entre o preso e o mundo externo. Esta ĂŠ, com certeza, a mais importante forma. O sistema funciona basicamente num processo de: admissĂŁo, revolta e castigo. O indivĂduo admitido, em geral, pode revoltar-se devido Ă nova sistemĂĄtica, normas e cotidiano. DaĂ revolta-se contra tudo isso, resultando em um castigo aplicado que, ou o farĂĄ aceitar e submeter-se ou o tornarĂĄ um revoltado permanente (GOFFMAN, 2005, p. 26). Um elemento importante desse processo ĂŠ o despojamento dos bens individuais e pessoais pelo qual passa o indivĂduo na prisĂŁo. Despido de sua aparĂŞncia usual, assim como dos equipamentos e serviços que o mantĂŞm, o preso ĂŠ desfigurado em sua pessoalidade. No mesmo sentido, segundo Goffman, Âłassim como o indivĂduo pode ser obrigado a manter o corpo em posição humilhante, pode ser obrigado a dar respostas verbais tambĂŠm humilhantes. Um aspecto importante disso ĂŠ o padrĂŁo de deferĂŞncia REULJDWyULD GDV LQVWLWXLo}HV WRWDLV´ S Em Alcaçuz, a cabeça inclinada, a subserviĂŞncia ao passar por um funcionĂĄrio da prisĂŁo ou um guarda ĂŠ uma das mais significativas dessas formas de degradação do Eu. Do mesmo modo, a necessidade que o preso tem de pedir humildemente ou mesmo implorar coisas pequenas como cigarro, fĂłsforo, usar o telefone ou, nos casos daqueles que estĂŁo sob castigo, um copo de ĂĄgua. Quaisquer destas açþes terminam por serem incompatĂveis com sua concepção do Eu, o que leva Ă degradação deste. Esse tipo de conduta ĂŠ visĂvel no depoimento de JĂşnior, 30 anos: Minha relação com os agentes e a guarda sĂŁo de tranquilidade, de paz [sic]. Conversa sadia de tranqĂźilidade, conversa de paz. NĂłis tamos [sic] aqui errados, porque no mundo do crime nĂŁo tem o que tirar nĂŁo. No mundo do crime sĂł tem o que dĂĄ mesmo ĂŠ cemitĂŠrio ou cadeia. DaĂ que tem de chamar eles de senhor, porque ĂŠ respeito nĂŠ? [sic]
Da mesma forma:
97
Eu nunca tive problema de ta discutindo, de vandalismo dentro da cadeia, de estar debatendo. Eles fazem o trabalho deles. Eu cumpro a minha pena e eles fazem o trabalho deles, para mim funciona dessa forma [sic]. Sou obediente. Nada contra e nem tenho histĂłrico de estar discutindo com agente, nem debatendo, esse tipo de coisa, eu nĂŁo. Eu sou sossegado. Eles fazem a parte deles, eu faço a minha e nĂŁo WHQKR R TXH UHFODPDU QmR 5HVSRQGR VHPSUH ÂłVLP 6HQKRU´ QmR HQFDUR HOHV IDoR R que me mandam [sic] (JOĂ&#x192;O, 27 ANOS).
O fato de que o preso nunca estar invariavelmente sĂł, ou seja, ser sempre vigiado (como o panĂłptico disciplinar que Foucault aponta) revela outra espera desta degradação. Essa vigilância e controle interpessoal imposto terminam por fragilizar a individualidade e, portanto, levar Ă fragilização e degradação do Eu jĂĄ discutidas. AlĂŠm do mais, podemos apontar ainda que todas as atividades de um preso estĂŁo sujeitas Ă s menores regulaçþes possĂveis, onde sua autonomia, suas necessidades, e seus objetivos sĂŁo controlados totalmente. A autoridade nas instituiçþes totais se dirige para um grande nĂşmero de itens de conduta Âą roupa, comportamentos, maneiras Âą que ocorrem constantemente e que constantemente devem ser julgados. O internado nĂŁo pode fugir facilmente da pressĂŁo de julgamentos oficiais e da rede envolvente de coerção (GOFFMAN, 2005, p. 44).
Essas regras possuem um caråter arregimentador ocorrem de forma escalonada e difusa. Pode ocorrer a qualquer um e qualquer funcionårio pode impô-la. Por isso, a sensação de angústia e estresse dos apenados pode ser constante. A punição pode vir de qualquer lugar e de qualquer pessoa. Como uma criança, o preso perde sua autonomia e liberdade de ação. Neste sentido, Francisco, 36 anos, originårio da Europa Oriental e cumprido pena por tråfico internacional de drogas, apenado habitante do Pavilhão 2, em Alcaçuz, mostra que, por saber compartilhar e dividir o TXH UHFHEH DOpP GH VHJXLU XPD FHUWD ³OHL GR VLOrQFLR´ consegue permanece vivo: Eu não sofri [nem violência ou punição] por causa devagarzinho [sic] eu ficava na minha, não falou, não fofocou, não viu nada. E tinha algo para dar a eles para não me tocarem [sic]. Porque se não eu não saia nunca mais daqui. Eles são muitos maus. Eu nunca na minha vida encontrei isso. Eu reparto com eles o que tenho.
98
'H XP ODGR WHPRV DV ÂłPRUWLILFDo}HV´ TXH SRGHP ser organizadas para normatizar a vida diĂĄria de uma prisĂŁo (como forma de coerção ou punição), em uma ação psicolĂłgica constante e tensional. Do outro se pode observar o chamado ÂłVLVWHPD GH SULYLOpJLRV´ RQGH R DSHQDGR DR VHJXLU DV ÂłUHJUDV GD FDVD´ RX VHMD DR tornar-se obediente, busca obter certo nĂşmero de bonificaçþes ou privilĂŠgios junto Ă equipe dirigente. Assim, FDVWLJRV RX SULYLOpJLRV ÂłVmR PRGRV GH RUJDQL]DomR peculiares jV LQVWLWXLo}HV WRWDLV´ *2))0$1 S Como mostrado anteriormente, o apenado Manoel gozava de algumas ÂłUHJDOLDV´ HP WURFD GH VXD IXQomR GH GHODWRU GDV DWLYLGDGHV GH RXWURV SUHVRV GHQWUR GR pavilhĂŁo. Esta atividade, em troca de sua possibilidade de poder passar o dia trabalhando e dormir em uma cela sozinho, quase lhe custou a vida e terminou por causar a expulsĂŁo de seu pavilhĂŁo. Outro exemplo ĂŠ o caso de Pedro, ex-policial militar, que lidera a faxina, ponto que serĂĄ melhor discutido no prĂłximo capĂtulo. O mesmo divide uma cela com apenas mais dois outros presos, tambĂŠm ex-policiais, no SDYLOKmR GR WUDEDOKR ,VVR SRGH VHU WRPDGR FRPR ÂłSULYLOpJLR´ RX ERQLILFDomR HP XP presĂdio onde a mĂŠdia de ocupação por celas ĂŠ mais do que o dobro desse nĂşmero. Lembremos que a racionalidade do sistema de castigos e privilĂŠgios termina por obter o essencial: a cooperação dos internados. Esta cooperação passa por uma verdadeira processualidade social que envolve: a construção de gĂrias institucionais e de lendas acerca do estabelecimento. Tudo isso permite, inclusive que se possa realizar o que Erving Goffman denominou de ajustamentos secundĂĄrios, isto ĂŠ, ÂłSUiWLFDV TXH QmR GHVDILDP diretamente a equipe dirigente, mas que permitem que os internados consigam satisfaçþes proibidas ou obtenham (...) as satisfaçþes SHUPLWLGDV´ (2005, p. 54). Nesses ajustamentos secundĂĄrios encontram-se os tratos, acordos, conivĂŞncias, ou seja, meios de cĂłdigo e de controle social informal que permitem o controle do grupo. Temos aqui um sistema que permite a reorganização do Eu na prisĂŁo. O autor argumenta que, embora haja tendĂŞncias de solidariedade, isso ĂŠ limitado. As coerçþes existentes nĂŁo levam a um elevado moral de grupo e Ă solidariedade. No contexto brasileiro, porĂŠm temos que complementar essa idĂŠia. Num espaço onde se desenvolve uma ÂłVRFLDELOLGDGH´ FRHUFLWLYD H YLROHQWD WHPRV D
99
IRUPDomR GH XP Âłhabitus precĂĄrio´ TXH permite dado tambĂŠm Ă s precariedades da prisĂŁo brasileira, formar grupos, panelinhas e o que o prĂłprio autor chamou de equipes (GOFFMAN, 2005, p. 58-59). Esse habitus precĂĄrio, jĂĄ discutido neste trabalho, liga-se a uma baixa autoestima marcada pela sensação de fracasso pessoal onde a desgraça pessoal ĂŠ sentida constantemente. Isso ĂŠ demonstrado no sentimento de que o tempo passado na SULVmR p XP ÂłWHPSR SHUGLGR GHVWUXtGR RX WLUDGR GD YLGD GD SHVVRD´ $V SHUGDV de contatos sociais e a impossibilidade de se adquirir coisas que possam ser transferidas para o mundo exterior ajudam a explicar esse sentimento (GOFFMAN, 2005, p. 64). Assim, segundo JoĂŁo, 27 anos, a fuga ĂŠ tudo o que resta na mente do preso que a busca todo o tempo: Quando cheguei aqui na cadeia, aquele clima de adaptação que vocĂŞ passa ali, aquela falta que vocĂŞ tem da liberdade, aquilo tudo, ai eu fui no meio de uma fuga, tipo assim [sic]. Se tem um animal dentro de uma jaula e nĂŁo tĂĄ sendo alimentado direito, sofrendo maus tratos, se vĂŞ a gaiola aberta, a porta da jaula aberta com certeza vai sair nĂŠ? [sic] (JOĂ&#x192;O, 27 ANOS).
No tocante Ă equipe dirigente, esta realiza seu trabalho com os presos que, nessa relação, podem adquirir caracterĂsticas de objetos inanimados. Mesmo assim ĂŠ necessĂĄrio manter certo padrĂŁo de humanidade, ou seja, garantia mĂnima de vida, saĂşde e bem-estar. Esse processo pode variar de preso a preso, na medida em que cada um possui seu status prĂłprio, assim como ligaçþes e redes sociais com o mundo externo. Isso tanto quanto mero humanitarismo, impele a um tratamento melhor a certos presos ou mesmo a grupos deles. TambĂŠm, Âła equipe dirigente ĂŠ lembrada dessas obrigaçþes quanto a padrĂľes e direitos, nĂŁo apenas por seus superiores hierĂĄrquicos, mas tambĂŠm por vĂĄrias agĂŞncias da sociedade mais ampla e, muitas YH]HV SHORV SDUHQWHV GR LQWHUQDGR´ *2))0$1 S Podemos apontar como exemplos: os grupos de direitos humanos, igrejas, Ordem dos Advogados, MinistĂŠrio PĂşblico, Conselho PenitenciĂĄrio e, como jĂĄ supracitado, os familiares, sempre os mais presentes. A imprensa tambĂŠm ĂŠ uma constante enquanto elemento de pressĂŁo (principalmente durante as rebeliĂľes).
100
Essa forma de tratamento pode ser corroborada pelo depoimento dos prĂłprios presos, onde muitas vezes percebe-se uma sĂŠrie de reciprocidades e gentilezas: Mas eu tenho boa vivĂŞncia com todo mundo, graças a Deus. Com os agentes, esse menino que conversou comigo, que arrumou remĂŠdio pra mim ĂŠ um dos que jĂĄ me conhecem muito de outros cantos, sabem que eu nĂŁo sou problemĂĄtico, graças a Deus. [sic] (...). Outro dia, ele viu que eu estava doente e soube que era verdade. Ele conhece meu comportamento. Sabe? A relação respeitosa, nĂŁo ĂŠ uma relação, como a gente diz aqui na cadeia, traĂra nĂŁo. [sic] Porque tem muita gente que se relaciona bem mas sĂł que vem aqui entregar os irmĂŁozinhos. Vem aqui para entregar o os fatos que nĂŁo sĂŁo ocorridos. Eu jamais vou usar o nome dos colegas como os caras faz comigo [sic]. Isso sĂŁo qualidades minhas (LUIZ ANTONIO, 59 ANOS).
Assim, a forma mais usual em que ocorre o trabalho com os presos ĂŠ a sistemĂĄtica de recompensa e castigo jĂĄ esboçada. Mesmo assim, por mais distanciada que a equipe dirigente mantenha-se dos apenados, podem surgir sentimentos de camaradagem e afeição entre eles. Isso decorre nĂŁo sĂł da convivĂŞncia cotidiana, mas da humanização do preso na Ăłtica do funcionĂĄrio, decorrente do conhecimento de seu passado, suas agruras e sentimentos. Quando o preso pode ter interação face a face com a equipe de funcionĂĄrios, principalmente os carcereiros, este contato se dĂĄ, em geral, atravĂŠs de pedidos (GOFFMAN, 2005, p. 76-78). Uma consequĂŞncia disso ĂŠ que a segregação de papĂŠis ĂŠ difĂcil de ocorrer. Um exemplo ĂŠ que os presos terminam por realizar tarefas inferiores na penitenciĂĄria: trabalho na cozinha, no jardim, na limpeza ou outro qualquer que nĂŁo faça parte do esquema oficial da instituição, como o jĂĄ relatado em relação Ă equipe da faxina em Alcaçuz. Disto GHFRUUH TXH ÂłD HTXLSH GLULJHQWH p REULJDGD D WHU FHUWD FRQVLGHUDomR FRP RV HPSUHJDGRV H VH WRUQD LQFDSD] GH PDQWHU D GLVWkQFLD XVXDO FRP UHODomR D HOHV´ (GOFFMAN, 2005, p. 84). Outra amostra desse tipo de relação estĂĄ presente no depoimento de Arthur, 20 aQRV ÂłPRUDGRU´ GR 3DYLOKmR Eu respeito eles, como o senhor viu aĂ. Eles me respeitam tambĂŠm. Mas em cima da disciplina, porque eu to aqui para chegar em ninguĂŠm, maltratar ninguĂŠm, mas para ser respeitado da forma certa e correta [sic]. O vice-diretor e o diretor me acham uma Ăłtima pessoa e resolvo tudo da melhor maneira. Quando tentaram quebrar a cadeia e fazer uma rebeliĂŁo no 4, eu cheguei aqui e conversei aqui com a direção. [sic] Trouxe as reivindicaçþes: maltrato de visitas, alimento ruim, em geral. Cheguei e conversei com a direção. Tem aqueles que xingam, mas tem os
101 que como eu vou na palavra certa, na medida certa e correta, respeitando sempre, acima de tudo. [sic] Desrespeito ĂŠ quando tem coisas que nĂŁo ĂŠ da responsabilidade dos agentes, e sim da direção, aĂ. Os presos esculhamba, xinga, mas tem coisa que vem da parte da direção [sic]. Se eles tĂŁo ali, ele estĂŁo fazendo o trabalho deles, de abrir e fechar as celas normalmente, nĂŁo ĂŠ pra pessoa ficar xingando quando eles forem chegar e fechar, chamando palavrĂŁo com eles, xingando mulher e mĂŁe deles [sic].
Nas relaçþes entre presos e funcionĂĄrios chega a ocorrer aquilo que Goffman GHQRPLQRX GH ÂłOLEHUDo}HV GR SDSHO´ RX VHMD PRPHQWRV H SUiWLFDV RQGH Ki XPD proximidade maior e onde ambos podem ter uma imagem mais favorĂĄvel um do outro. Isso pode ocorrer tambĂŠm graças Ă s concessĂľes com a permissĂŁo da visita Ăntima, instituição carcerĂĄria tipicamente brasileira. Assim como a permissĂŁo para a execução, entre os presos, de partidas de futebol. AlĂŠm de momentos de lazer, sĂŁo importantes para afirmar laços de solidariedade e redes sociais. Outro exemplo ĂŠ a permissĂŁo, quase que diĂĄria para a execução de cultos evangĂŠlicos ou similares dentro do presĂdio. Uma troca de favores, onde a ordem e o respeito Ă disciplina feito pelos evangĂŠlicos, funciona quase como um sistema de dĂĄdiva, de reciprocidade e recompensas. Assim, segundo Kleber, 34 anos, PavilhĂŁo do Trabalho, Âło pastor vem sempre aĂ. Toda semana eles vĂŞem, o pessoal dos evangĂŠlicos. [sic] Tem culto todo dia, mas com o pessoal daqui. Com os crentes da rua sĂł uma vez na semana. O pastor ĂŠ Severino. O daqui de dentro ĂŠ Expedito. De fora o pastor ĂŠ da Assembleia de Deus´. A instituição prisional tambĂŠm possui o que pode ser chamado de ÂłH[LELomR institucionaO´ outra forma pela qual essa relação citada anteriormente ocorre, onde ela H[LEH DRV GH IRUD YLVLWDQWHV RX RXWURV XPD LPDJHP ÂłDGHTXDGD´ PRVWUDQGR DV melhores partes e os internos mais obedientes e comportados. As partes exibidas sĂŁo as mais novas, mais bem cuidadas e com melhores equipamentos. Em nossos depoimentos recolhidos, os presos sempre apontam que essas visitas sĂŁo esporĂĄdicas e, de certa forma, esperadas. As autoridades entram, olham e saem. O mesmo com a mĂdia, que sempre aparece quando ocorre alguma rebeliĂŁo, fuga ou assassinato dentro do presĂdio. Para os depoentes, seu cotidiano e dia-a-dia ĂŠ esquecido por todos.
102
Como entĂŁo se processam, efetivamente, dentro do espaço prisional as interaçþes e relaçþes sociais? Inicialmente, ĂŠ preciso dizer que, para Erving Goffman, o homem ĂŠ essencialmente um ser interativo, ou seja, a vida social desenvolve-se atravĂŠs da interação entre os indivĂduos e atores sociais nos mais variados espaços. A interação, antes de tudo ĂŠ comunicacional, pautada nas situaçþes que o indivĂduo tende a apresentar-se diante de outros. Agindo de forma calculada (consciente ou inconscientemente) ou por força da tradição, ele imputarĂĄ uma dada impressĂŁo e construirĂĄ uma dada situação de interação (GOFFMAN, 2001, p. 14-16). Ao interagir, o indivĂduo constrĂłi expectativas nĂŁo apenas quanto Ă sua ação, mas quanto Ă s expectativas que os outros terĂŁo delas. Pois, (...) a sociedade estĂĄ organizada tendo por base o princĂpio de que qualquer indivĂduo que possua certas caracterĂsticas sociais tem o direito moral de esperar que os outros o valorizem e o tratem de maneira adequada. Ligado a este princĂpio hĂĄ um segundo, ou seja, de que um indivĂduo implĂcita ou explicitamente dĂŞ a entender que possui certas caracterĂsticas sociais deve de fato ser o que pretende que ĂŠ. Consequentemente, quando um indivĂduo projeta uma definição da situação e com isso pretende, implĂcita ou explicitamente, ser uma pessoa de determinado tipo, automaticamente exerce uma exigĂŞncia moral sobre os outros, obrigando-os a valorizĂĄ-lo e a tratĂĄ-lo de acordo com o que as pessoas de sentido tĂŞm o direito de esperar. Implicitamente tambĂŠm renuncia a toda pretensĂŁo de ser o que nĂŁo aparenta ser, e, portanto abre mĂŁo do tratamento que seria adequado a tais pessoas. Os outros descobrem, entĂŁo, que o indivĂduo os informou a respeito do que ĂŠ e do TXH HOHV GHYHP HQWHQGHU SRU Âłp´ (GOFFMAN, 2001, p. 21).
As interaçþes sĂŁo verdadeiras formas sociais onde os indivĂduos podem projetar e apresentar caracterĂsticas que a situação exige ou valoriza, mas essencialmente ele nĂŁo precisa possuir. Isso se constitui em uma verdadeira misancene social, onde todo um jogo de estratĂŠgias e tĂĄticas defensivas pode vir a ser empregado para salvaguardar as definiçþes projetadas pelos outros. Os grupos sociais em geral os presos estĂŁo incluĂdos neles, possuem todo um estoque preparado para HVVHV ÂłMRJRV IDQWDVLDV H FRQWRV´ TXH VmR XWLOL]DGRV QDV YiULDV VLWXDo}HV Igualmente, os indivĂduos buscam controlar as impressĂľes que os outros tĂŞm da situação. DaĂ que, efetivamente, interação para Goffman pode ser definida como a influĂŞncia recĂproca dos indivĂduos sobre as açþes uns dos outros, quando em presença fĂsica imediata. Uma interação pode ser definida como toda interação
103 que ocorre em qualquer ocasiĂŁo, quando, num conjunto de indivĂduos, uns se encontram na presença imediata de outros (2001, p. 23).
Desta forma, alĂŠm do referido, a interação tambĂŠm pode ser pensada em termos GH XP ÂłHQFRQWUR´ 1HVWH R GHVHPSHQKR p IXQGDPHQWDO WRGD DWLYLGDGH GH determinado participante em uma ocasiĂŁo que possibilite influenciar qualquer outro participante (observadores e coparticipantes). Quando um indivĂduo realiza o mesmo movimento para o mesmo pĂşblico em vĂĄrios momentos, hĂĄ a chance de surgir aĂ um ÂłUHODFLRQDPHQWR VRFLDO´ 1HVWH tQWHULP RV LQGLYtGXRV H VHXV SDSpLV VRFLDLV desenvolverĂŁo seus movimentos para seus pĂşblicos especĂficos (GOFFMAN, 2001). Num espaço fechado, o pĂşblico ĂŠ, aparentemente, o mesmo. Mas a interação, face a face, ĂŠ obstaculizada pela reclusĂŁo e divisĂŁo em pavilhĂľes e celas. Os atores sociais reclusos muitas vezes representam seus papĂŠis para os mesmos pĂşblicos: do pavilhĂŁo, do corredor, do banho de sol, ou junto aos carcereiros ou guardas. A interação ocorre, mas ĂŠ limitada espacialmente e, na maioria das vezes, comunicacionalmente, pelo silĂŞncio imposto pela disciplina carcerĂĄria. Mesmo em um ambiente de reclusĂŁo ĂŠ significativo que o indivĂduo acredite em sua prĂłpria atuação ou passe ao pĂşblico que o assiste, essa crença. A convicção ĂŠ fundamental neste processo. Se um preso, mesmo sem ser verdadeiramente violento, DVVXPH D ÂłIDFKDGD´ SDUD LPSRU-se em determinado momento, ele precisa manter continuamente esse desempenho. Caso contrĂĄrio, ele corre o risco de cair em descrĂŠdito. A construção dessa ÂłIDFKDGD´ VH IXQGDPHQWD QDTXLOR TXH *RIIPDQ FKDPD GH ÂłFHQiULR´ RV HOHPHQWRV FrQLFRV TXH ID]HP SDUWH ou contribuem para ela. Na representação da violĂŞncia, por exemplo, a posse de uma faca, a expressĂŁo corporal do lutador, uma linguagem agressiva ou mesmo incursĂľes violentas como brigas, sĂŁo fundamentais. Importante considerar que a fachada ĂŠ social. AILQDO ÂłSRU mais especializada e singular que seja uma prĂĄtica, sua fachada social, com algumas exceçþes, tenderĂĄ a reivindicar fatos que podem ser igualmente reivindicados e GHIHQGLGRV SRU RXWUDV SUiWLFDV GLIHUHQWHV´ S Qualquer que seja a fachada apresentada por um preso, ela ĂŠ oriunda das expectativas e representaçþes que os demais reclusos e funcionĂĄrios da prisĂŁo
104
possuem dela. Seja o de violento, cooperador ou indiferente, por exemplo, essas fachadas sĂŁo quase TXH LQVWLWXFLRQDOL]DGDV ÂłHP WHUPRV GDV H[SHFWDWLYDV estereotipadas abstratas Ă s quais dĂĄ lugar e tende a receber um sentido e uma estabilidade Ă parte das tarefas especĂficas que no momento sĂŁo realizadas em seu QRPH´ (GOFFMAN, 2001, p. 34). Assim, a fachada termina tornando-se uma espĂŠcie de ÂłUHSUHVHQWDomR FROHWLYD´. Alguns exemplos de fachada podem ser mostrados abaixo, como a fachada do matador, uma das figuras mais respeitadas na prisĂŁo: Sempre o matador foi respeitado na cadeia, que nem o traficante tambĂŠm nĂŠ? SĂł que o matador ĂŠ mais fĂĄcil sair da cadeia do que o traficante. O matador, sendo por legĂtima defesa tem vĂĄrios benefĂcios, mas (...) fica complicado pro cara sair nĂŠ? [sic] Ă&#x2030; um crime que nĂŁo tem fiança, um crime hediondo nĂŠ? [sic] O que o cara pratica ĂŠ o cento e vinte um, que ĂŠ homicĂdio nĂŠ? [sic] Sendo legĂtima defesa quando chega pra ele sair, ele sai mesmo. Vi sair muito, vi sair muito de lĂĄ dentro [sic] (BETO, 41 ANOS).
Outro exemplo de fachada p D GD ILJXUD GR ÂłSURIHVVRU´ RX QD OLQJXDJHP prisional, do indivĂduo que possuir alguma competĂŞncia organizacional ou leitura, principalmente na ĂĄrea jurĂdica. Ă&#x2030; o caso do preso Luiz AntĂ´nio, 59 anos: Do tempo que estou aqui, porque, nesse perĂodo que estou aqui, se ĂŠ de tĂĄ brigando com os outros, eu resolvi pesquisar as leis. Eu digo ao senhor... Eu nĂŁo sou adevogado [sic] nĂŁo, mas me considero um rĂĄbula. EntĂŁo na hora de ajudar um companheiro, tĂĄqui [sic] um homem que ajuda. Quando precisa de um documento e eu vejo que o cara tĂĄ precisando de ajuda ali, eu ajudo. Porque: a sociedade o que tem? Como ĂŠ que um cara passa... Pega uma pena e vai preso... EntĂŁo se ĂŠ estipulado aquele prazo, estipulado por lei, eu acho que do jeito que foi para prender deve ser para soltar. Um indivĂduo tem um exame para fazer, o Estado nĂŁo fornece funcionĂĄrio, particular nĂŁo serve... Depois do cara cumprir o perĂodo que ele tem a cumprir, nĂŁo tem... [sic] Como o cara pode pagar o que ele nĂŁo tem?
Uma fachada TXH VHPSUH HVWi SUHVHQWH QR FRWLGLDQR SULVLRQDO p D GR ÂłFDEXHWD´ de polĂcia, ou seja, do alcaguete DTXHOH TXH ÂłHQWUHJD´ ÂłGHGXUD´ DV Do}HV RX intençþes dos outros para a administração, para os agentes ou para a guarda. Uma fachada eminentemente negativa que leva ao seu portador o fardo de estar sempre correndo risco de vida:
105 Fui punido. Assim que eu cheguei aqui... Fiquei... Ouvi muitos dizer, quando eu FKHJXHL QR SDYLOKmR XQV GL]LD ³p WUDEDOKD SUD SROtFLD´ HX Vy RXYLQGR DV conversas deles, mas todos que sai do pavilhão, eles vem pra cå, todos vem pra cå pra que? [sic] Para caçar melhoras, pra trabalhar, se quiser ficar no pavilhão, para Wi ³PXOWXDQGR´ TXHEUDQGR D FDGHLD ID]HQGR FRLVD HUUDGD QmR SUHVWD [sic]. Tem que procurar o que? [sic] Tem que procurar a paz. A paz onde tå, onde tem vitória, não Ê verdade? [sic] (JUNIOR, 30 ANOS).
Em um espaço de conflitos constantes ou de conflitividades Ă espreita, cada indivĂduo busca observar sua prĂłpria conduta, afim de nĂŁo oferecer ao oponente um ponto vulnerĂĄvel. DaĂ que hĂĄ uma tendĂŞncia a observar a prĂłpria conduta para evitar constrangimentos ou mesmo confrontos. Goffman afirma que estamos diante de YHUGDGHLUDV ÂłFRDo}HV GD LQWHUDomR TXH DJH VREUH H WUDQVIRUPDP VXDV DWLYLGDGHV em representaçþes, onde essas representaçþes tendem a definir as açþes e atividades e a SUySULD LPDJHP GR LQGLYtGXR´ (2001, p. 66). Quando adentra na prisĂŁo, o indivĂduo passa a uma nova posição na sociedade e consegue um novo papel a desempenhar, provavelmente nĂŁo serĂĄ informado, com todos os detalhes, sobre o modo como deverĂĄ se conduzir, nem os fatos de nova situação o pressionarĂŁo suficientemente desde o inĂcio para determinar-lhe a conduta, sem que tenha posteriormente de refletir sobre ela. Comumente, receberĂĄ apenas algumas deixas, insinuaçþes e instruçþes cĂŞnicas, pois se pressupĂľe que jĂĄ tenha em seu repertĂłrio uma grande TXDQWLGDGH GH ÂłSRQWDV´ GH UHSUHVHQWDo}HV TXH VHUmR H[LJLGDV QR DPELHQWH (GOFFMAN, 2001, p. 72).
Deste modo, o preso possuirĂĄ uma idĂŠia bem lĂmpida da aparĂŞncia de sua hexys corporal, de sua linguagem e pode desempenhar sua fachada jĂĄ esperada ou, quando IRU SRVVtYHO DOJXPDV ÂłSRQWDV´ GH UHSUHVHQWDomR RX VHMD QXDQFHV GH IDFKDGD FRP atributos pessoais a serem valorizados (por exemplo, atributos de força e coragem em momentos de disputa de espaço). Um dos mais salutares exemplos desse tipo de LQWHUDomR p D GRV HYDQJpOLFRV QD SULVmR 2V ÂłLUPmRV´ WHQGHP D VH FRPSRUWDU GH IRUPD contida, buscando fugir de atritos, afastando-VH GRV PDQHLULVPRV GRV Âłcaras do FULPH´ /RQJH GH GHPRQVWUDU IRUoD ItVLFD EXVFDP GHPRQVWUDU IRUoD PRUDO E, quando chega ali pega uma BĂblia, vĂ´ levar uns hinos, lĂŞ a palavra de Deus, procurar meditar a palavra de Deus. [sic] E quando for a noite, quando tem culto a gente vai pra ali, bota os banco, começa a pregar a palavra de Deus, sei que ĂŠ sĂł tranquilidade [sic]. As refeiçþes ĂŠ normal mesmo, tranquilo a comida sabe? [sic] A gente almoça mesmo nos quartos da gente mesmo, nossos quartos, cada um toma
106 um banho. Vai toma um banho, faz um suco, se senta ali, se alimenta [sic]. Depois do almoço descansa. Quando é duas horas da tarde a gente volta a trabalhar de novo, depois de nóis ter descansado mais um pouco e aí vai trabalhar e volta de quatro horas, aí pronto [sic]. Quem tem uma roupa pra lavar vai lavar uma roupa. Quem tem uma palavra de Deus pra ler para pregar a palavra vai e prega a palavra, e assim é com calma sabe? Tranquilidade (JÚNIOR, 30 ANOS).
Da mesma forma, ser evangélico é demonstrar uma fachada moral, demonstrando em sua conduta corporal que mudou e não cairá mais na vida de crime:
Você ser evangélico, mesmo preso, é não fazer aqui dentro o que fazia lá fora. É deixar o mundo pra lá. Todos dizem que não vão mais fazer, que vão buscar essa mudança, mas a luta é essa. A gente tem de orar e pedir. Só o motivo de você fazer essa renuncia pedir essa ajuda, já mostra que você quer mudar [sic]. Sair e retornar para cá é quebra de confiança. Mudar é mudar mesmo. O crime é pecado e o cristão não deve mais cair no pecado (EXPEDITO, 25 ANOS).
A fachada é também percebida pelos demais presos, que veHP R ³FUHQWH´ FRPR boa gente sempre pronta a ajudar de forma caridosa:
(...) tinha os crentes que iam lá, rezar pra gente lá... Eles sempre iam na quartafeira, uma vez na semana, Eu gostava, ajudavam quando a gente tava sem pasta, sem sabonete. O que pedia eles levava. [sic] O que eles pudessem ajudar. Os irmão sempre ajudou a gente [sic]. Eles não tinham preconceito com a gente não. Ficavam tudo junto com a gente, conversavam rezavam com a gente. No domingo sempre eles andavam visitando a cadeia com a gente [sic] (BETO, 41 ANOS).
Lembremos que, efetivamente, esses atributos pessoais são expressos de maneira diferente conforme o grupo que se participe. Um preso não pode expressar honestidade da mesma forma que um operário, por exemplo. A fachada ou representação dela dependem do contexto, do status e daquilo que é socialmente esperado do grupo do qual se participa. Espera-se, muitas vezes, de um preso, que seja violento e frio, e não que seja um indivíduo pacífico e emotivo. Isso pode soar como falsidade ou fraqueza. O depoimento abaixo mostra que, mesmo assim, o preso pode esperar um determinado grau de confiança, expresso em certas fachadas durante a convivência diária:
107 Existem pessoas que por um delito assim, por uso de drogas, Ă s vezes num supermercado pra [sic] furtar um negĂłcio, ou entĂŁo por outras pessoas que venham a fazer um outro delito no intuito de garantir o sustento da famĂlia [sic]. NĂŁo quer dizer que a pessoa seja agressiva ou homicida, esse tipo de coisa que se separa, ta entendendo? [sic] Que gosta de fazer o mal, praticar um homicĂdio ou fazer o mal aos outros. Isso ai existe, mas, Ă s vezes tem pessoas que nĂŁo, que se envolveu as vezes numa situação ali transportando uma droga para ganhar um [sic]. Em troca de um qualquer para ganhar o sustento da famĂlia. AĂ tĂĄ preso [sic], Ă s vezes desde outro estado, chega num canto e ĂŠ preso. Quando a gente tem o contato de conversar com essa pessoa, saber por que foi que aconteceu, vocĂŞ vai ver que a pessoa foi atĂŠ induzida a chegar aquilo [sic]. VĂĄ lĂĄ leva isso aqui, que nĂŁo vai dar errado e tal e quando vocĂŞ vĂŞ ta na cadeia [sic]. Mas ĂŠ uma boa pessoa (JOĂ&#x192;O, 27 ANOS).
Da mesma forma, uma fachada de isenção e de afastamento pode ser construĂda, nĂŁo apenas para os presos, mas mesmo para o entrevistador, como foi o caso de Francisco, lĂder inconteste do PavilhĂŁo 2, 36 anos, de origem estrangeira, que o tempo todo se desvencilhou de seu papel de liderança. Demonstra orgulho pelo fato GH VHU PDLV ÂłLQVWUXtGR´ H HGXFDGR QXPD OyJLFD GH HX FLYLOL]DGR HOH EiUEDURV (...) ninguĂŠm em quem confia aqui. [sic] Eu sou um amigo de verdade. Eu dar o numero de telefone de minha esposa e eles ouvem, eles sabem e podem falar de mim, porque me conhecem. [sic] (...) Muito bom. Muito respeito, eu nĂŁo fofoquei uma coisa. Sempre com respeito. Eu sou uma pessoa que sĂł chegou aqui por causa de vacilo e por bobeira. Eu falo direito e ser tratado bem, sou educado [sic].
No processo de interação, o ator muitas vezes nĂŁo executa solitariamente suas representaçþes. Ele, principalmente no espaço da prisĂŁo brasileira em geral, o faz sempre em equipe, em grupo. Neste sentido, temos aqui um grupo que realiza um entendimento, uma forma de cooperação ou mesmo conluio, a fim de realizar com mais eficĂĄcia e veracidade sua representação. Essa equipe executa seu papel primordial nesse processo: geram coesĂŁo e permitem certa uniformização de condutas (GOFFMAN, 2001). Uma equipe Âą nĂŁo confundLU FRP ÂłSDQHOLQKDV´ Âą interliga-se por aquilo que *RIIPDQ GHQRPLQD GH ÂłIDPLOLDULGDGH´ XPD LQWLPLGDGH IRUPDO HQWUH VHXV PHPEURV 0HVPR GHVLJXDLV VRFLDOPHQWH RV LQGLYtGXRV GHVFREUHP ÂłTXH HVWmR numa relação de familiaridade forçada, caracterĂstica dos companheiros de equipe empenhados em
108
HQFHQDU XPD UHSUHVHQWDomR´ $VVLP HOHV YmR FRRSHUDU SDUD PDQWHU certa impressão, a fim de atingir seus objetivos (2001, p. 82). Em Alcaçuz: A gente tem colega, companheiro e camarada. Amigo Ê uma palavra tão complexa, principalmente dentro desse sistema, porque na cadeia quem mata amigo Ê um amigo. Se eu sair daqui agora, um exemplo, eu não tenho não, mas um inimigo ali vou me vingar dele, eu vou recuar, se for amigo vou abraçar, posso abraçar ele pela frente, mas pelas costas vou apunhalar, e pra rapaziada eu digo sempre que aqui funciona a lamina da falsidade [sic]. Aqui, você chega agora e o sujeito lhe elogia, você deu as costas ai pixação [sic]. Por isso eu evito de participar de grupinhos, porque eu sempre vivi na cadeia sozinho [sic]. O cara diz: ³UDSD] IXODQR WH FRQKHFH ´ Dt eu jå fico desconfiado, sempre atrås de informação, do grupinho, para evitar grupinho eu ando sozinho [sic] (LUIZ ANTONIO, 59 ANOS).
Ao agir em conjunto, a equipe tende a controlar seus membros ou mesmo a impor-lhes sançþes em caso de desvios e faltas. Qualquer fuga da representação incidirĂĄ sobre o desviante uma punição conforme o dano causado ao grupo. No HVSDoR SULVLRQDO R ÂłDOFDJXHWH´ Âą o traidor Âą ĂŠ considerado o pior tipo de desvio de fachada possĂvel. Sua punição ĂŠ, quase sempre, a morte. DaĂ que a escolha do componente do grupo ĂŠ pautada pelo interesse de que este venha a manter a linha de ação definida pela equipe e em cuja representação correta os demais possam confiar. Como jĂĄ assinalado anteriormente, o alcaguete que em Alcaçuz ĂŠ sempre apontado FRPR R ÂłFDEXHWD´ WLGR FRPR persona non grata: Mas a turma da quadrilha do xerife manda mais. Os coligados. Esses camaradas sĂŁo velhos lĂĄ dentro, era cara que tem quinze, vinte anos lĂĄ dentro. Ai, pro diretor ĂŠ um cara que jĂĄ sabia de tudo dentro da cadeia. [sic] Trabalha como um tipo de informante com o diretor. Se entra uma droga e tal que nĂŁo desse pra ele e tal, sai devagarzinho, ia lĂĄ na direção e cabuetava [sic]. Ă&#x20AC;s vezes muita mulher de preso entra com uma quantidadezinha pouca na vagina, ele tinha raiva e ia lĂĄ e cabuetava [sic] a mulher o preso e ia presa lĂĄ na entrada. Ă&#x2030; desse jeito mesmo (BETO, 41 ANOS).
A equipe, em geral, possui seu diretor (não confundindo este com o cargo em si, de cunho burocråtico e racional-legal). Na visão de Goffman, o diretor da equipe cumpre algumas funçþes essenciais, tais como: a manutenção da linha adotada pelo grupo; apaziguar os ânimos e conflitos internos, ou seja, manter a coesão e a solidariedade; a distribuição dos papÊis na representação e a fachada pessoal que cada
109
papel tem de empregar e a distribuição dos equipamentos necessårios à consecução dos papÊis. O diretor Ê o protagonista ou o centro das atençþes na equipe. Mas não se WUDWD GH XP FDUiWHU FDULVPiWLFR PDV GH ³GRPLQkQFLD GUDPiWLFD´ LVWR p ³WLSRV FRQWUDVWDQWHV GH SRGHU QXPD UHSUHVHQWDomR´ GOFFMAN, 2001, p. 94-96). No espaço prisional, o diretor de uma equipe ascende a esta posição atravÊs não da força em si, mas de sua capacidade de representå-la com fidelidade. Sua capacidade de costurar alianças, e comunicação e mesmo, seus contatos externos (com a direção da instituição, carceragem ou alguÊm ou alguma organização de fora da prisão) podem lhe garantir uma fachada de direção e uma dominância dramåtica. O Francisco Ê um cara gente boa e sempre vai na frente quando a gente precisa de algo sabe? [sic] Ele fala as reivindicaçþes da gente nÊ? [sic] Uma vez o pavilhão ameaçou virar todo quando tentaram tirar uns irmãos nosso. Aà ele foi e falou por nóis [sic] (TIAGO, 28 ANOS).
Assim como Tiago, cumprindo pena no PavilhĂŁo 4, Pedro e JĂşnior, ambos do PavilhĂŁo do Trabalho, fazem um jogo de elogio Ă atual administração, ao mesmo tempo que apontam certos problemas em Alcaçuz, tanto para gestĂľes anteriores ou Ă causas externas (Estado): Quando o pessoal precisa de algo eu vou lĂĄ na direção e falo por eles [sic]. Em geral ĂŠ sobre o dia de visitas. Mas tem tambĂŠm quando alguĂŠm quer sair da chapa e quer vir pra cĂĄ, para trabalhar. Hoje mesmo eu recebi um bilhete de um rapaz lĂĄ da chapa (PEDRO, 41 ANOS). Eles respeita nĂłis [sic] e a gente respeita eles. SĂŁo uns pessoal [sic] que na hora que a gente precisa de uma ajuda eles tĂŁo ali pra ajudar nĂłis [sic]. Graças a Deus eu nĂŁo tenho o que falar de nenhum dos agentes, de nenhum da militar nem nada. Com o doutor Wellington [diretor] aqui, graças a Deus tudo bem, com o seu Rocha [vicediretor] tudo tranqĂźilidade. Eles atendem bastante bem. (JĂ&#x161;NIOR, 30 ANOS).
Isso Ê significativo, na medida em que, mudanças na direção da penitenciåria e na equipe administrativa podem causar sÊrios problemas e atÊ crises dentro do ambiente prisional. Segundo o depoimento de João, 27 anos, apenado do Pavilhão 1 em Alcaçuz:
110 Ă&#x20AC;s vezes acontece de quando muda a direção aĂ quer resumir a lista do material que entra, de alimentação, desse tipo de coisa e geralmente isso gera desconforto [sic]. Porque Ă s vezes querem dar uma agilizada na entrada e querem diminuir a quantidade de coisas que entra sĂł que causa transtorno lĂĄ dentro, porque tem muitos que nĂŁo tem visita, ta entendendo? [sic] Se vier algo a mais, uma quantidade de comida a mais, ela ĂŠ para ser repartida com os demais que nĂŁo tem visita. EntĂŁo quando quer resumir a comida fica chato [sic]. A comida da cadeia nĂŁo dĂĄ pra comer. VocĂŞ olha assim. A quentinha Ă s vezes nĂŁo tem como [sic]. AĂ entĂŁo vocĂŞ tem de ir ali pegar um cuscuz, fritar um ovo, uma mortadela [sic]. E como a cela ĂŠ coletiva vocĂŞ vai fazer ali na coletividade, pra todo mundo [sic]. Por isso, tentar resumir a comida que entra gera uma insatisfação muito grande.
3DUD *RIIPDQ ÂłXPD HTXLSH p XP JUXSR, mas nĂŁo um grupo em relação a uma estrutura ou organização social, e sim em relação a uma interação, ou sĂŠrie de LQWHUDo}HV QD TXDO p PDQWLGD D GHILQLomR DSURSULDGD GD VLWXDomR´ 'Dt TXH D GLUHomR do grupo ĂŠ dinâmica, assim como a existĂŞncia mesmo da equipe. Em um espaço onde o carĂĄter cooperativo tem de ser dissimulado, a equipe WHP ÂłDOJR GR FDUiWHU GH XPD VRFLHGDGH VHFUHWD´ S Em Alcaçuz, temos nĂŁo apenas a equipe administrativa, mas a H[LVWrQFLD GH JUXSRV H ÂłJUXSLQKRV´ FRPR DVVLQDODGRV PXLWDV vezes pelos nossos atores sociais apenados, dentro dos pavilhĂľes. Pode ser apontado, principalmente, o grupo dos evangĂŠlicos, como jĂĄ citado anteriormente, assim como os grupos que lideram os pavilhĂľes em si. Importante se assinalar que as representaçþes e fachadas sĂł ocorrem em uma dada regiĂŁo. Esta se configura em um espaço nĂŁo apenas de ação, mas que pode limitĂĄ-la no processo interacional. DaĂ que Goffman vai referir-se Ă existĂŞncia de uma ÂłUHJLmR GH IDFKDGD´ RX VHMD o lugar onde a representação ocorre. Na prisĂŁo, a regiĂŁo de fachada varia de acordo com os vĂĄrios espaços interativos possĂveis: cela, corredor, pavilhĂŁo, pĂĄtio, refeitĂłrio, oficinas, ou mesmo os espaços disciplinares. A questĂŁo p TXH R LQGLYtGXR RX JUXSR ID]HP ÂłXP HVIRUoR SDUD GDU D DSDUrQFLD GH TXH sua atividade nessa regiĂŁo mantĂŠm e incorpora FHUWRV SDGU}HV´ S *RIIPDQ DVVLQDOD TXH XPD ÂłHTXLSH GHYH VHU FDSD] GH JXDUGDU VHXV VHJUHGRV H fazer com que eles sejam guardDGRV´ (2001, p. 132). Assim, suas intençþes, informaçþes, entre outros, devem ser protegidos. Surge o perigo da figura do delator, principalmente em equipes que funcionam em espaços interativos de reclusĂŁo. O que H[SOLFD R IDWR GRV GHODWRUHV ÂłFDEXHWDV´ Verem sempre passĂveis da pena capital
111
proferida internamente. Um dos maiores problemas que uma equipe pode vir a encarar, tanto quanto um delator e ligado a ele ĂŠ a questĂŁo da comunicação imprĂłpria. Consiste na ruptura da interação, quando ditos ou comportamentos interrompem o processo, quebram a impressĂŁo oficialmente mantida na interação. Isso pode levar a fragilização ou mesmo ruptura do grupo, alĂŠm da perda de sua credibilidade junto aos demais. Se a delação fragiliza a coesĂŁo, a comunicação imprĂłpria pode vir a desacreditar o grupo a ponto de destruĂ-lo. No espaço prisional, um grupo que transmite inapropriadamente representaçþes que desacreditem a sua fachada oficial corre o risco de perder apoios, alianças e redes e, assim, ser derrubado ou substituĂdo de sua posição de credibilidade e/ou liderança. Novamente D ILJXUD GR ÂłFDEXHWD´ p um exemplo significativo dessa quebra de confiança: LĂĄ no pavilhĂŁo tinha um cara que era cabueta [sic]. Vivia entregando nĂłis [sic] pra direção e tal. No começo a gente atĂŠ pensava que o cara era limpeza e tal, mas depois a casa caiu. Um companheiro nosso viu ele indo lĂĄ na direção cabuetar a gente [sic]. AĂ o bicho pegou nĂŠ? [sic] (TIAGO, 28 ANOS).
Da mesma forma, para Lucas, 23 anos, PavilhĂŁo 2, condenado por assalto, o ÂłFDEXHWD´ PHUHFH D SHQD Pi[LPD GRV SUHVRV ÂłAqui nĂŁo tem boquinha pra cabueta de polĂcia nĂŁo [sic]. Se a gente pega a gente resolve o cara, tĂĄ entendendo? [sic] nĂŁo adianta querer dar uma de bonzinho nĂŁo, pois trairagem aqui ĂŠ pena de morte [sic]´ (LUCAS, 23 ANOS). Goffman enfatiza ainda, acerca do comportamento das equipes, que seja o que for que crie o desejo humano de contato e companheirismo social, o efeito parece tomar duas formas: a necessidade de um pĂşblico diante do qual pĂ´r Ă prova a prĂłpria personalidade jactanciosa e a necessidade de companheiros de equipe, com os quais se possa entrar em intimidades coniventes e praticar o descontraimento dos bastidores (2001, p. 189).
Dito isto, fica claro que a representação feita por uma equipe não pode ser considerada enquanto uma resposta espontânea e imediata da situação. A representação pode ser afastada e os membros da equipe podem vir a desempenhar outros tipos de representação. Tudo isso, obviamente, sem fugir do seu contexto
112
social. Assim, Âłum ato pode, ĂŠ claro, ser apropriado ou inapropriado apenas de acordo com os juĂzos de um grupo social especĂfico e mesmo nos confins do menor e mais unido GRV JUXSRV p SURYiYHO TXH H[LVWD DOJXP GLVVHQVR H G~YLGD´ (GOFFMAN, 2010, p. 15). Aquilo que ĂŠ apropriado ou inapropriado passa pelo contexto social, assim como no espaço onde isto tende a ocorrer. Em espaços fechados, mas ainda assim, pĂşblicos (ou semi-pĂşblicos) como as prisĂľes, a presença do indivĂduo ou do grupo jĂĄ comunica se ele possui as qualificaçþes necessĂĄrias para estar ali ou mesmo se ele estĂĄ comportando-se de acordo com o momento ou lugar. Este comportamento SRGH VHU R GH ÂłILFDU QD VXD´ Amigos num canto desses ĂŠ difĂcil falar nĂŠ? [sic] o que tem sĂŁo companheiros. A relação ĂŠ normal. Eles no canto deles, eu no meu, sem confusĂŁo. Aqueles que tĂŞm um conhecimento melhor, como os que trabalham comigo a gente se ajuda nĂŠ? [sic] Um sabe mais, outro sabe menos e a gente se ajuda. A gente conversa muito tambĂŠm. Sobre liberdade. Fala da rua, como era antigamente, na ĂŠpoca em que se envolviam com outras coisas. Por aĂ vai [sic]. Mas sempre fico na minha, se passar e falar eu falo, senĂŁo fico na minha. Tranquilo, normal. EstĂŁo pagando a pena deles que praticou e eu na minha aqui. (PAULO, 31 ANOS).
Ou em um aVSHFWR FRQVLGHUDGR HVWULWDPHQWH ³SURILVVLRQDO´ no que se refere ao grupo da faxina: Minha relação com eles Ê estritamente profissional aqui. Com esse pessoal todo, da faxina. Acordo com eles, a gente sai pra faxina juntos e retornam dessa forma [sic]. O que tem pra fazer a gente faz e na hora de lazer, lazer tambÊm. Aqui o rapaz que mora comigo, meu companheiro de cela. O restante Ê só profissional (PEDRO, 41 ANOS).
Neste caso, ĂŠ emblemĂĄtico que se espera do coordenador da faxina que nĂŁo apenas trabalhe para o presĂdio e para a administração, mas tambĂŠm possa solucionar problemas e atender Ă s necessidades mais urgentes do grupo. EntĂŁo, embora ele veja HVWD UHODomR FRPR ÂłSURILVVLRQDO´ SDUD RV GHPDLV HOD SRVVXL DWULEXWRV GH reciprocidade. No cotidiano, a prisĂŁo ĂŠ um espaço onde a interação no dia-a-dia ĂŠ tomada FRPR ÂłFLYLOL]DGD´ H ÂłKXPDQD´ Exigem-se formas de tratamento que denotem essas representaçþes. Falando do cotidiano no PavilhĂŁo 1, JoĂŁo, 27 anos fala que:
113
A gente age como seres humanos. Se cumprimenta [sic], dĂĄ um bom dia, quando alguĂŠm passa, pergunta como ĂŠ que vai. Ă&#x20AC;s vezes se estĂĄ tudo bem. Se a pessoa ta ali num baixo astral, ai chega pra da uma levantada no astral, pra conversar um pouco, para saber as coisas. Geralmente ĂŠ a expectativa ĂŠ sempre de liberdade, de pedir um recurso, um pedido que foi feito, alguma coisa. Comentando sobre a expectativa da visita do final de semana, como ĂŠ que vai ser. Esse tipo de coisa. Uma rotina assim que nĂŁo tem muita novidade nĂŁo, a nĂŁo ser um fato, um jogo assim pra vocĂŞ passar o tempo, um livro pra ler, uma televisĂŁo para se distrair, somente.
Ao mesmo tempo, o dia de visitas ĂŠ um momento onde o espaço certo e aquilo que ĂŠ apropriado ou nĂŁo pode ser exemplificado na prisĂŁo: A pessoa tem que usar as palavras certas para nĂŁo xingar, porque na cadeia tem pessoas erradas nĂŠ? [sic] A pessoa nĂŁo pode xingar, nĂŁo pode chamar nome com a mĂŁe do outro, em dia de visita nĂŁo pode ta observando mulher de ninguĂŠm, tem que baixar a cabeça, nova ou velha, se nĂŁo cumprir eles matam a pessoa [sic]. Ă&#x2030; desse jeito (ARTHUR, 20 ANOS).
Importante frisar que a preocupação de Goffman quanto Ă s interaçþes liga-se HVVHQFLDOPHQWH DR ÂłDVSHFWR VLWXDFLRQDO GD DWLYLGDGH VLWXDGD´ S Nas interaçþes face a face nesses ambientes e no âmbito deste tipo de interação, os olhares, focos, sorrisos, pequenos gestos, porte corporal, aparĂŞncia, composição do rosto ou mesmo posição, podem permitir a compreensĂŁo aos demais membros do grupo ou do espaço das intençþes ou da representação da interação desejada ou mesmo de fachada (GOFFMAN, 2010, p. 32-40). TambĂŠm quando indivĂduos entram na presença imediata uns dos outros onde nĂŁo ĂŠ preciso nenhuma comunicação falada, eles ainda assim iniciam uma espĂŠcie de comunicação, pois em todas as situaçþes atribui-se importância a certos assuntos que nĂŁo estĂŁo necessariamente ligados a comunicaçþes verbais particulares. Eles incluem aparĂŞncia corporal e atos pessoais: vestuĂĄrio, postura, movimento e posição, volume de som, gestos fĂsicos como acenar e saudar, decoraçþes faciais e expressĂŁo emocional ampla (GOFFMAN, 2010, p. 43).
Temos aĂ, verdadeiros sinais expressivos incorporados, projetados para transmitir informaçþes acerca dos atributos e caracterĂsticas sociais do ator e sua noção de si, dos demais e do espaço. No ambiente da reclusĂŁo prisional, onde muitas vezes o silĂŞncio disciplinar impera Âą seja por questĂľes de segurança ou mesmo de
114
conflitividades Âą ĂŠ a linguagem do corpo que se apresenta como um verdadeiro discurso convencionalizado (e, portanto, normativo). O gesto, a hexys corporal funciona como um meio comunicacional (GOFFMAN, 2010, p. 43-45). Um exemplo sĂŁo os momentos onde as rixas e brigas estouram. Simples gestos ou pequenos atritos ID]HP ÂłH[SORGLU´ R DPELHQWH Aqui acolĂĄ aparece algum tumultuador, mas a direção fica sabendo e tira ele de lĂĄ. [sic] Tumulto ĂŠ querer brigar, querer ter uma faca lĂĄ dentro, e seu Rocha aqui nĂŁo aceita isso aĂ, nĂŁo aceita a gente brigar ali com faca, a direção nĂŁo aceita. Briga por qualquer coisa, estresse de cadeia nĂŠ seu? [sic] Estresse de cadeia. Quando ĂŠ um dia briga e tem rebeliĂŁo, a cabeça jĂĄ (...). Ă&#x2030; complicado tĂĄ aqui dentro. NĂŁo ĂŠ fĂĄcil nĂŁo. E tem dia que a pessoa amanhece de um jeito, jĂĄ meio agoniado. Se for evangĂŠlico nĂŁo. Que eu sou evangĂŠlico. Ai a pessoa fica se pegando com Deus. Mas tem muitos que brigam muito por besteira [sic] (KLEBER, 34 ANOS).
Outro exemplo, agora novamente remetendo ao dia de visitas, pode-se salientar como um dado comportamento ĂŠ esperado e rigidamente cumprido: O dia de visitas ĂŠ um dos dias melhores dentro da cadeia, porque ĂŠ o dia que a cadeia estĂĄ em paz. Porque o dia de visita ĂŠ sagrado dentro da cadeia. EntĂŁo fica tudo nos conformes. NĂŁo pode falar palavrĂŁo, nĂŁo pode ficar escarrando perto da visita, tudo tem seu meio, seu local, tudo adequado (ANDRĂ&#x2030;, 19 ANOS).
Goffman aponta duas propriedades situacionais diferentes: por um lado a Âłinteração desfocada, preocupada com o que pode ser comunicado entre pessoas meramente atravĂŠs de sua presença conjunta na mesma siWXDomR VRFLDO´ H GH RXWUR lado, de forma oposta, Âła interação focada, tratando de aglomerados de indivĂduos que estendem uma licença comunicativa especial mutuamente e sustentam um tipo especial de atividade mĂştua que pode excluir outros presentes na situDomR´ S 95). Na relação preso e carcereiro, muitas vezes verifica-se um tipo de interação que o autor classifica GH ÂłGHVDWHQomR FLYLO´. Primeiramente, um fornece ao outro um aviso visual suficiente para demonstrar que compreendeu que o outro estĂĄ presente (na chegada do carcereiro no pavilhĂŁo, por exemplo) e onde o outro admite tĂŞ-lo visto. Em um segundo momento, ao carcereiro (ou outro agente), fica compreendido que nĂŁo ĂŠ alvo de curiosidade ou intenção especial (GOFFMAN, 2010, p. 96): ÂłRola
115
muito comÊrcio lå no pavilhão, de muita coisa sabe? [sic] Quando chega a hora da tranca, antes do anoitecer, os agentes chegam para fechar tudo. Aà um de nós fica na entrada e då um sinal. [sic] Aà o pessoal vai e guarda tudo, rapidinho´ (ALBERTO, 22 ANOS). Outro exemplo, agora de interação focada estå presente no depoimento abaixo: Os agentes são maneiros com a gente. Tem atÊ os que conversa com a gente. [sic] A gente conversa com ele, abriam e diziam: agora só vamos fechar às seis horas, abria as seis da manhã e fechava as seis da noite. [sic] Ficava à vontade, não tem atrito com a gente não. Só o que eles tinham raiva e tal, ia lå no portão e chamavam eles, diziam que fulano estava bagunçando e tal, levava lå para a direção, para o diretor falar com ele [sic] (BETO, 41 ANOS).
JĂĄ o exemplo da interação desfocada pode ser percebido adiante em dois depoimentos: Muitas vezes o cara tĂĄ lĂĄ no pĂĄtio, na sua nĂŠ? [sic] E chegam os caras e ficam cismando com o cara. A gente tĂĄ lĂĄ, na nossa, tranquilo, encostado na parede, de cabeça baixa, mas eles cismam com a gente, achando que a gente tĂĄ fazendo algo errado e tal [sic] (ARTHUR, 20 ANOS). O tipo de erro era: o cara doidĂŁo, doidĂŁo dentro do pavilhĂŁo, com faca na cintura, querendo tirar onda com os irmĂŁos aĂ, a gente chamava os homi [sic] para ir levar ele. Para ninguĂŠm se prejudicar por causa dos outros nĂŠ? [sic] Ai ele passava o dia lĂĄ no castigo, quinze dias, trinta dias e depois voltava de volta ao pavilhĂŁo. Quando QLQJXpP TXHULD Dt GL]LD ÂłQmR QLQJXpP TXHU HOH Dqui mais nĂŁo, que o lugar dele DTXL p UXLP GHPDLV´ Dt OHYDYDP HOH SDUD outro pavilhĂŁo [sic] (BETO, 41 ANOS).
A prisĂŁo torna-se um espaço onde os indivĂduos estĂŁo disponĂveis para interação face a face tambĂŠm hĂĄ boas razĂľes para que eles temam essas interaçþes. Afinal, ÂłDR SHUPLWLU TXH RXWUR VH DSUR[LPH GHOH SDUD FRQYHUVDU R LQGLYtGXR SRGH descobrir que foi tapeado e colocado numa posição para ser atacado e agredido ILVLFDPHQWH´ *2))0$1 S Andar vigilante, alerta a todas as situaçþes e possibilidades ĂŠ uma prerrogativa para o apenado. De um encontro ou de uma conversa podem advir oportunidades de ampliação de seus contatos, redes ou alianças, ou mesmo, uma inimizade ou conflito que pode levĂĄ-lo Ă morte. Em um ambiente onde o reconhecimento social ĂŠ fundamental, nĂŁo se engajar ou fazĂŞ-lo de forma conflituosa ĂŠ um sĂŠrio complicador. Mais do que nunca, o indivĂduo ĂŠ
116
ÂłREULJDGR D HVWDU SURQWR SDUD VHU DERUGDGR SRU RXWURV TXH QmR FRQKHFH VH IRU DSURSULDGR D VHX HPSUHJR GLiULR´ *2))0$1 S 139). Na minha cela tem 12 pessoas. Era uns dormindo no chĂŁo, outros dormindo em rede [sic]. Poucos no colchĂŁo. A gente fala coisas boas, sobre o futuro ai [sic]. A gente fala de sair daqui, da liberdade, coisas gostosas nĂŠ? O dia-a-dia na cadeia ĂŠ cada qual por si sabe? [sic] A gente nĂŁo pode confiar em ninguĂŠm num lugar desse aqui, um bocado de gente diferente [sic]. O dia aqui ĂŠ repetitivo (...). Ă&#x20AC;s vezes tem JHQWH TXH SURFXUD SUREOHPDV SRU Dt 9mR ÂľGHVDTXHWDUÂś R LUPmR [sic]. O irmĂŁo tĂĄ ali com a mente bem sossegada e chega outro e quer tirar o irmĂŁo do sĂŠrio pra fazer as coisas [sic]. A mente fica daquele jeito, sabe? SĂł isso. (FILIPE, 29 ANOS).
A saber, se todos se conhecem ou nĂŁo no espaço prisional Âą o que acreditamos que probabilisticamente sim, jĂĄ que a informação sobre a posição social de cada um circula livre e facilmente Âą, resta questionar quando o indivĂduo tem o direito de iniciar aberturas com aqueles que ele nĂŁo conhece. Para Goffman, ele pode fazĂŞ-lo quando nĂŁo estiver em uma posição expoVWD RX GLDQWH GH ÂłSHVVRDV GH DEHUWXUD´ RX VHMD ÂłLQGLYtGXRV TXH WrP XPD SHUPLVVmR HPEXWLGD SDUD DERUGDU RXWURV´ S 143). Um exemplo VmR RV ÂłGLUHWRUHV´ GH HTXLSH RX PHVPR RV DJHQWHV SHQLWHQFLiULRV (carcereiros). Isto ĂŠ claro, se os Ăşltimos oportunizarem esta abertura. Como dito hĂĄ pouco, o cuidado na abordagem ĂŠ sempre constante como mostrado anteriormente. Segundo Kleber, 34 anos, PavilhĂŁo 3: EOHV VmR DJHQWHV SHQLWHQFLiULRV D JHQWH WHP TXH UHVSHLWDU HOHV FRP XP ÂłVLP VHQKRU´ XP ÂłQmR VHQKRU´ WD HQtendendo? [sic] Comigo mesmo eles nunca [ruĂdo]. TĂŞm me tratado bem, porque eu trato eles bem tambĂŠm. Se eles baixarem a cabeça os presos batem neles. Se eles baixar a cabeça mesmo eles [sic]. Preso ĂŠ problemĂĄtico. Quando precisa de ajuda a gente fala com Seu Rocha, o vice-diretor, sempre a gente mantĂŠm contato aqui com ele, sabe? [sic] Chega pra ele aĂ, pego um agente pra falar com ele, e ele resolve, ĂŠ uma pessoa que corre atrĂĄs dos problemas da gente.
Muitas vezes a abertura ajuda a classificar e permitir o acesso àqueles que são ³DPLJRV´ RX ³LQLPLJRV´ 1RVVRV LQIRUPDQWHV VHPSUH GLVVHUDP TXH HP FDGHLD QmR Ki ³DPLJRV´ R TXH H[LVWHP VmR QR Pi[LPR ³FRPSDQKHLURV´ RX VHMD ³colegas de infortúnio´. Assim,
117 (...) amigo ĂŠ uma palavra tĂŁo complexa, principalmente dentro desse sistema, porque na cadeia quem mata amigo ĂŠ um amigo. [sic] Se eu sair daqui agora, um exemplo, eu nĂŁo tenho nĂŁo, mas um inimigo ali vou me vingar dele, eu vou recuar, se for amigo vou abraçar, posso abraçar ele pela frente, mas pelas costas vou apunhalar, e pra rapaziada eu digo sempre que aqui funciona a lamina da falsidade [sic] (LUIZ ANTĂ&#x201D;NIO, 59 ANOS). Amigo [aqui] sĂł o Senhor Jesus nĂŠ? [sic] Colegas eu tenho, eu tenho colegas. Ali no trabalho, no setor de trabalho sĂŁo todos meus colegas nĂŠ? [sic] Temos uma relação boa, tem que ser, tem que ter relação boa com todo mundo aqui nĂŠ? [sic] Aqui ninguĂŠm pode confiar em ninguĂŠm nĂŁo. Aqui tem que confiar sĂł no senhor Deus. (KLEBER, 34 ANOS).
Quem ĂŠ o preso afinal? O preso ĂŠ, em termos gerais, alguĂŠm que retĂŠm em seu Eu um estigma. Este ĂŠ uma forma de categorização social onde se atribui a certo indivĂduo caracterĂsticas pouco comuns que dĂŁo a ele certo status social negativo. O estigma torna o indivĂduo (enquanto categoria) algo indesejĂĄvel, desacreditado, FRQVWLWXLQGR ÂłXPD GLVFUHSkQFLD HVSHFtILFD HQWUH D LGHQWLGDGH VRFLDO YLUWXDO H D LGHQWLGDGH VRFLDO UHDO´ *2))0$1 S O estigma aparece como um comportamento desviante, onde os atributos indesejĂĄveis, incongruentes com aquilo que se atribui a certa categoria de indivĂduo se manifestam. O termo estigma (...) serĂĄ usado em referĂŞncia a um atributo profundamente depreciativo, mas o que ĂŠ preciso, na realidade, ĂŠ uma linguagem de relaçþes e nĂŁo de atributos. Um atributo que estigmatiza alguĂŠm pode confirmar a normalidade de outrem, portanto ele nĂŁo ĂŠ, em si mesmo, honroso ou desonroso (GOFFMAN, 2008, p. 13).
O estigma configura-se, portanto, como uma relação especial entre atributo e estereĂłtipo. Deste modo, mais do que nunca, trata-se de uma categoria social que estĂĄ ligada Ă expectativa de ambos os lados: estigmatizadores e estigmatizados. Ao entrar em contato com os primeiros, estes podem sentir-se fragilizados, avaliados e julgados, seus menores atos sendo percebidos como sinais negativos. Um preso, por sua prĂłpria condição societĂĄria, carrega sob sua identidade o estigma do apenado. Uma vez fora da prisĂŁo, ĂŠ avaliado negativamente como alguĂŠm que pode novamente transgredir as regras, um desviante contumaz. TrĂŞs opçþes sĂŁo possĂveis: se retrair, isolando-se; aproximar-se dos contatos mistos com agressividade, levando os outros a tomarem uma sĂŠrie de respostas desagradĂĄveis; ou
118
retomar suas redes de contatos com conhecidos criminosos para novas açþes. Daqui talvez decorra o ranço acumulado daqueles que retornam ao sistema prisional: os reincidentes. Eles sentem todo o mal-estar da interação e atribui Ă sociedade a culpa de sua pena. Arthur, 20 anos, apenado que cumpre pena no PavilhĂŁo 4 em Alcaçuz, expĂľe o estigma que passou a sofrer aSyV VXD SULVmR 6HJXQGR HOH ÂłRXWURV QmR quiseram mais, porque eu fui preso, nĂŁo queria mais eu perto de ninguĂŠm [sic]. SĂł que eu sou um cara que sempre trabalhei. Errei, cometi meu erro, mas tĂ´ aqui SDJDQGR Qp" >VLF@´ No mesmo sentido e expressando seu desejo de liberdade: O que eu tenho assim ĂŠ minha vontade ĂŠ sair daqui [sic]. Sair desse lugar, ir embora trabalhar. Ă&#x2030; isso mesmo. Ă&#x2030; chato a pessoa tĂĄ preso nĂŠ? [sic] Tanto sofre a pessoa, como sofre a famĂlia lĂĄ fora nĂŠ? (...) O ruim ĂŠ que todos vĂŁo apontar pra [sic] mim e dizer que sou bandido. Mas to pagando pelo que fiz. Jesus estĂĄ me salvando. (JUNIOR, 30 ANOS).
Outro estigma que pudemos verificar nos relatos em Alcaçuz, alĂŠm do de alcaguete Âą o cabueta de polĂcia Âą foi o de estuprador, como jĂĄ apontado aqui anteriormente. Denominados de facĂnoras ou manĂacos por outros colegas do presĂdio, sĂŁo permanentemente isolados destes. Muitas rebeliĂľes e crises, por exemplo, ocorreram devido Ă realocação dos estupradores para ĂĄreas onde ficavam os demais presos: Quando eu morava no pavilhĂŁo 3 teve um tumulto quando quiseram. Quando um cara que era do presĂdio federal veio como diretor e quis dividir o pavilhĂŁo em duas alas, uma de seguro e retirou os moradores que jĂĄ tavam lĂĄ e colocou no 1 [sic]. Depois quis colocar a outra ala para ficar no seguro, foi quando houve um tumulto devido a uma insatisfação por parte Dops que ficou e de quem foi tirado pro 1. Porque lĂĄ no pavilhĂŁo 3 a cela era individual, mas morava dois na cela na realidade, nesse sistema era melhor de se morar. Menos barulho, a visita nĂŁo precisava da divisĂłria com o pano. Quando esse pessoal foi pro seguro, a insatisfação foi grande porque foram para celas com mais gente e sentindo a falta dos companheiros [sic]. AlĂŠm da presença do pessoal do seguro que incomodava. NĂŁo se sente bem de ta perto desses caras, manĂacos [sic] (JOĂ&#x192;O, 27 ANOS).
TambÊm outro tipo estigmatizado que pudemos perceber foi o do ³veDGR´ RX seja, o homossexual assumido: travesti ou garoto de programa, que cumpre pena na
119
penitenciĂĄria. Manoel, 28 anos, apenado do PavilhĂŁo 3, une dois estigmas, o de ÂłYHDGR´ H R GH ÂłFDEXHWD´. JĂĄ tĂ´ com esse tempo e era pra estar no semi-aberto e eu sou muito descriminado porque eu sou gay, sabe? [sic] (...) Um dia desse eu tava trabalhando, num dia de visita, aĂ um cara chegou e deu uma tapa nos meus peitos e disse que eu era gay, aĂ ele deu uma furada com uma faca em mim aqui [sic]. Raiva de mim de outros presĂdios, porque eu ajudei. Porque quem ajuda em outros presĂdios ĂŠ conhecido SRU ÂłFDEXHWD´ [sic]. Todo mundo me chama assim aqui.
Segundo ele, vĂĄrias vezes tentaram matĂĄ-lo, assim como lhe impuseram o fardo de tentar esconder, em seu ânus, drogas e celulares, quando da revista geral no pavilhĂŁo: Ă&#x2030; porque eles querem usar a pessoa como um objeto, como um brinquedo. Eles Ă s vezes nĂŁo tĂŞm como esconder um celular, uma droga, e vĂŞ que a pessoa ĂŠ gay e quer botar no ânus da pessoa, quer forçar a pessoa a esconder aquilo ali [sic]. Ă&#x2030; horrĂvel. Tem gente que aceita esconder, para receber droga ou outro pagamento sabe? JĂĄ teve homem casado no pavilhĂŁo querendo fazer programa comigo, mas eu nĂŁo quis. Eu faço programa na rua.
Como todo estigmatizado o preso Ê extremamente dependente das pessoas externas que se relacionam com ele e com os de fora. Claro que o principal motivo Ê o fato de estar preso em uma instituição total, impedido assim, de travar essas relaçþes ou fugir delas quando necessårio. Mas, seus parentes, principalmente, carregam tambÊm parte da estigmatização. A sociedade tende a considerar ambos como uma só pessoa. Daà a expressão de que mãe de preso paga a cadeia com ele (GOFFMAN, 2008). Um exemplo significativo do exposto acima foi mostrado por Comfort (2007) ao discutir as imbricaçþes entre o encarceramento e as relaçþes amorosas nos Estados Unidos. Para a pesquisadora, as instituiçþes penais asseguram uma nova forma de relação e de controle às mulheres dos presos na convivência com seus homens. Pois, ³DV SULV}HV SRGHP RIHUHFHU XPD HVWUXWXUD SDUD GHVHPSHQKDU RV SDSpLV GH JrQHUR GR nutrLGRU H FXLGDGRU EHP FRPR XP ORFDO VXEVWLWXWR SDUD D YLGD GRPpVWLFD H VRFLDO´ (COMFORT, 2007, p. 233-234). Daà que se tem XP SURFHVVR GH ³SULVLRQL]DomR´
120
onde a mulher adota hĂĄbitos, costumes e cultura da prisĂŁo. Segundo AndrĂŠ, 19 anos, apenado do PavilhĂŁo GR 7UDEDOKR TXHP R YLVLWD VHPSUH p VXD ÂłPmH 1mR WHQKR esposa. Ela vem toda semana, me visita toda semana. Traz todo meu material higiĂŞnico, minha comida, remĂŠdio quando eu preciso´ -~QLRU DQRV WDPEpP do PavilhĂŁo do Trabalho diz que ÂłMinha esposa me visita. Faz um tempo jĂĄ, um tempĂŁo de anos jĂĄ [sic]. Ela vem duas vezes na semana, na quarta e no sĂĄbado ou no domingo. Ela traz os alimentos, biscoito, bolacha, suco, sabonete, pasta, remĂŠdio, sĂł isso mesmo´. No mesmo sentido, os demais relatos mostram que nĂŁo apenas as mĂŁes, mas principalmente as esposas compartilham o fardo de acompanhar, muitas semanalmente, seus companheiros e conjugues na prisĂŁo: A minha famĂlia ĂŠ minha estrutura bĂĄsica que me faz suportar todo esse tempo por aqui. Se nĂŁo fosse por minha famĂlia eu certamente jĂĄ estaria como muitos que HVWmR SRU DTXL $ HVWUXWXUD ÂłIDPtOLD´ p EDVWDQWH LPSRUWDQWH VH QmR WLYHU XPD EDVH familiar muito boa certamente vocĂŞ nĂŁo vai suportar isso aqui e vai acabar reincidindo criminalmente e outras coisas mais. Minha esposa, principalmente, me visita todas as semanas. Ă&#x2030; o meu apoio para aguentar isso aqui (PEDRO, 41 ANOS).
A vida cotidiana na prisĂŁo leva o apenado a se ver como portador de um estigma e a estabelecer relaçþes com os outros presos levando em consideração tambĂŠm esse parâmetro. Em alguns casos, como naqueles que nĂŁo se vĂŞem como ÂłEDQGLGRV´ RX ÂłFULPLQRVRV´ ocorre certa rejeição desse papel: Quando o indivĂduo compreende pela primeira vez quem sĂŁo aqueles que de agora em diante ele deve aceitar como seus iguais, ele sentirĂĄ, pelo menos, uma certa ambivalĂŞncia porque estes nĂŁo sĂł serĂŁo pessoas nitidamente estigmatizadas e, portanto, diferentes da pessoal normal que ele acredita ser, mas tambĂŠm poderĂŁo ter outros atributos que, segundo a sua opiniĂŁo, dificilmente podem ser associados a seu caso (GOFFMAN, 2008, p. 46).
Um último ponto a ser discutido Ê que, ao rever sua própria história como estigmatizado, o preso pode escolher e elaborar as experiências que lhe permitam explicar o que ele vem a VHU KRMH 6XD HQWUDGD QR ³PXQGR GR FULPH´ seus atos desviantes iniciais são reelaborados e assumem significado a partir do estigma atual.
121
Uma vez preso, o descrĂŠdito e o estereĂłtipo que acompanha o estigma se estabelece como categoria. DaĂ sua nova identidade: preso. O estigma, segundo Goffman, apresenta informaçþes que possuem certas SURSULHGDGHV (VWDV VmR FRUSRULILFDGDV RX VHMD ÂłWUDQVPLWLGD SHOD SUySULD SHVVRD D quem se refere, atravĂŠs da expressĂŁo corporal na presença imediata daqueles que a recebem´ S 'Dt TXH R HVWLJPD SRGH VHU HTXLSDUDGR D YHUGDGHLURV VLJQRV TXH GHVSHUWDP D DWHQomR VREUH XPD JUDQGH GLVFUHSkQFLD GH LGHQWLGDGH XP Âłhabitus precarizado´ $VVLP FRPR SRGHPRV IDODU GR habitus como disposiçþes corporificadas, o estigma apresenta-se da mesma forma, permitindo a visualização de uma identidade degradada. Trejeitos, maneirismos, olhares, forma de andar, vestir ou comer, tatuagens, gĂrias, atributos da linguagem, tudo isso permite a visualização do estigma/habitus. Um exemplo disto ĂŠ a utilização de apelidos que apontam nĂŁo apenas a certa identidade pessoal, mas a habitus e estigmas do sujeito: uma peculiaridade fĂsica (exemplo do apenado Beto, cujo apelido ĂŠ Beto Cabeça), uma habilidade desviante (exemplo do apenado Arthur, cujo apHOLGR p Âł%XUUR %UDER´ SHOD sua longa lista de mortes de aluguel e pistolagem), ou mesmo algo ligado ao seu papel social desviante (exemplo de Luiz AntĂ´nio que foi vĂĄrias vezes apontado como professor, que indica uma certa habilidade organizacional). Procurou-se, neste capĂtulo, mostrar os aspectos panĂłpticos-disciplinares e as mais diversas formas de interação social presentes em Alcaçuz. No prĂłximo capĂtulo, serĂŁo discutidas as redes sociais, suas imbricaçþes e seus elementos presentes nesta penitenciĂĄria.
122
5 Redes Sociais e Sistema Prisional ³Vem um de AR15 e outro de 12 na mão Vem mais um de pistola e outro com 2oitão Um vai de URU na frente escoltando o camburão Tem mais dois na retaguarda mas tão de Glock na mão Amigos que eu não esqueço nem deixo pra depois Lá vem dois irmãozinho de 762 Dando tiro pro alto só pra fazer teste De INA, pistola Uzi ou de Winchester É que eles são bandido ruim e ninguém trabalha De AK47 e na outra mão a metralha Esse rap é maneiro eu digo pra vocês, Quem é aqueles cara de M16´ (Rap das Armas ± Cidinho e Doca).
123
A sociologia econĂ´mica surgiu numa perspectiva inicial de estudar as relaçþes H[LVWHQWHV HQWUH RV DVSHFWRV HFRQ{PLFRV H ÂłnĂŁo econĂ´micos´ GD YLGD VRFLDO inicialmente preocupada em unir os aspectos econĂ´micos e sociolĂłgicos do real (SMELSER, 1968). Teve um impulso gerador nos escritos seminais de Max Weber (1996), mas efetivamente, foi com Polanyi (2000) que a economia se rendeu Ă s estruturas e relaçþes sociais, na medida em que para ele: a economia do homem, como regra, estĂĄ submersa em suas relaçþes sociais. Ele nĂŁo age desta forma para salvaguardar seu interesse individual na posse de bens materiais, ele age assim para salvaguardar sua situação social, suas exigĂŞncias sociais, seu patrimĂ´nio social. Ele valoriza os bens materiais na medida em que eles servem a seus prĂłprios. Nem o processo de produção, nem o de distribuição estĂĄ ligado a interesses econĂ´micos especĂficos relativos ĂĄ posse de bens. Cada passo desse processo estĂĄ atrelado um certo numero de interesses sociais, e sĂŁo este que asseguram a necessidade daquele passo (POLANYI, 2000, p. 65).
A preocupação voltou-se, antes de tudo, para os laços e relaçþes sociais e suas formas de manutenção. Conceitos econĂ´micos como interesse, reciprocidade, retribuição, etc., deveriam ser percebidos dentro desta Ăłtica e tambĂŠm inseridos em seus contextos sociais. Afinal, o mercado nada mais seria do que uma entre inĂşmeras formas que assume a coordenação social na vida humana. Rompendo com a premissa da racionalidade e do carĂĄter impessoal do mercado, a nova sociologia econĂ´mica mostra que os atores econĂ´micos sĂŁo, efetivamente e antes de qualquer coisa, atores sociais. Isto significa que os mercados tendem a surgir nĂŁo por certo equilĂbrio entre oferta e procura (como se pensa na HFRQRPLD WUDGLFLRQDO ÂłPDV HP YLUWXGH GDV UHODo}HV VRFLDLV HQWUH RV SUySULRV SURGXWRUHV´ $%5$029$, S Segundo John Downs, o termo racional, em si, nunca ĂŠ aplicado aos fins de um agente, mas somente aos seus meios. Isto ĂŠ vĂĄlido tanto para a teoria polĂtica racional como para a economia. Toda vez que economistas ÂłVH UHIHUHP D XP ÂľKRPHP UDFLRQDOÂś HOHV QmR HVWmR GHVLJQDQGR XP homem cujos processos de pensamento consistem exclusivamente de proposiçþes lĂłgicas, ou um homem sem preconceitos, ou um homem cujas emoçþes sĂŁo LQRSHUDQWHV´ 2X VHMD essa definição econĂ´mica Âłse refere unicamente ao homem que se move em direção a suas metas de um modo que, ao que lhe ĂŠ dado saber, usa o
124
mínimo insumo possível de UHFXUVRV HVFDVVRV SRU XQLGDGH GH SURGXWR YDORUL]DGR´ (DOWNS, 1999, p. 27). Um homem racional seria aquele que se comporta como se segue: (1) ele consegue sempre tomar uma decisão quando confrontado com uma gama de alternativas; (2) ele classifica todas as alternativas diante de si em ordem de preferência de tal modo que cada uma é ou preferida, indiferente, ou inferior a cada uma das outras; (3) seu ranking de preferência é transitivo; (4) ele sempre escolhe, dentre todas as alternativas possíveis, aquela que fica em primeiro lugar em seu ranking de preferência; e (5) ele sempre toma a mesma decisão cada vez que é confrontado com as mesmas alternativas (DOWNS, 1999, p. 28).
Desta maneira, indo além das abordagens iniciais e rompendo com as premissas clássicas, a nova sociologia econômica (NSE), de acordo com Mark Granovetter, tem duas ideias básicas como ponto de partida: (a) a ação econômica é socialmente situada e não pode ser explicada apenas por motivos individuais; (b) as instituições econômicas são socialmente construídas. Ele se empenha em identificar as formas de inserção social das ações econômicas e a influência destas relações sociais nos resultados econômicos, por isso seu enfoque estrutural do mercado, visto como constituído por redes interpessoais (sociais) (RAUD-MATTEDI, 2005). Conforme o próprio Granovetter: (X GLVWLQJR WUrV QtYHLV GH IHQ{PHQRV HFRQ{PLFRV 2 SULPHLUR p D µDomR HFRQ{PLFD LQGLYLGXDO¶ 5HVHUYR SDUD HVVH QtYHO D GHILQLomR ZHEHULDQD D DomR HFRQ{PLFD individual) é a ação orientada para a satisfação das necessidades, estabelecidas pelos indivíduos, em situação de escassez (...) Desejo também explicar fenômenos que se situam além da ação individual ± IHQ{PHQRV TXH FKDPR GH ³UHVXOWDGRV HFRQ{PLFRV´ H ³LQVWLWXLo}HV HFRQ{PLFDV´ As instituições são diferentes dos resultados (formação de preços estáveis para mercadorias específicas, formação de diferenciais de salário entre algumas categorias de trabalhadores, etc.), pois elas designam conjuntos maiores de ações e comportam uma dimensão normativa (como as coisas devem ser feitas) (GRANOVETTER, 2007, p.28)
Isso explica suD SUHRFXSDomR QD TXHVWmR GD LQFUXVWDomR ³R DUJXPHQWR GH TXH RV comportamentos e instituições em análise são tão condicionados pelas relações sociais, que conceitualizá-los como elementos independentes representa um sério HTXtYRFR´ (GRANOVETTER, 2007, p. 69). A questão para ele é importante se
125
pautar em uma anĂĄlise aprofundada da ação humana que passe por evitar uma atomização do processo socializador. Os atores nĂŁo se comportam como ĂĄtomos fora de um dado contexto social, nem aderem, como escravos, a um guia determinado por uma interseção especĂfica das categorias sociais que, por acaso ocupam. As suas tentativas de realizar açþes com finalidades estĂŁo, pelo contrĂĄrio, incrustadas em sistemas concretos e continuados de relaçþes sociais (GRANOVETTER, 2003, p. 75).
O argumento de incrustação enfatiza o papel das relaçþes pessoais concretas e das estruturas (redes) dessas relaçþes como resposta a vĂĄrias questĂľes, como por exemplo, a origem da confiança nas relaçþes sociais. SĂŁo estas, mais do que os GLVSRVLWLYRV LQVWLWXFLRQDLV RX ÂłPRUDLV´ UHVSRQViYHLV SHOD SURGXomR GH YiULRV elementos da vida econĂ´mica como a confiança. Neste caminho, as redes sociais ocupam um lugar privilegiado em seu eixo teĂłrico-analĂtico. Ao se voltar para o estudo dos mecanismos sociais que proporcionam o estabelecimento de redes de relaçþes sociais contĂnuas, observamos os modos como estas relaçþes encontram-se na base da construção de instituiçþes variadas. Trabalhando com o conceito de FRQILDQoD DV UHGHV VmR ÂłR HOHPHQWR HVWUXWXUDO TXH GHILQH SDGU}HV GH FRPXQLFDomR hipĂłteses de difusĂŁo, quadros de mobilização de recursos materiais e humanos, contribuindo
para
o
desenvolvimento de alianças
e coligaçþes polĂticas
GHWHUPLQDQWHV´ 0$548(6 3(,;272 S -17). Granovetter alerta que as redes sociais penetram de forma irregular e em diferentes graduaçþes os vĂĄrios setores da vida. Nesta perspectiva, as relaçþes sociais tomam uma importância maior, jĂĄ que fatores exclusivamente racionais nĂŁo sĂŁo suficientes para garantir, por exemplo, a confiança. Elementos como mĂĄ-fĂŠ, uso da força, fraude e outros aspectos de desordem mostram atĂŠ que ponto isso pode ser significativo (GRANOVETTER, 2003, p. 80-82). A confiança, base das redes sociais, estabelece um mecanismo simplificado da estrutura das relaçþes sociais, sendo uma forma de garantir a ordem, sem necessidades de mecanismos de coerção explĂcitos. Um sistema baseado em confiança tanto pode estar ligado aos elementos tradicionais como a elementos racionais e modernos. Sem ela, os laços sociais nĂŁo
126
têm como acontecer e se manter, daí ser a confiança um adensador ou um acelerador das relações sociais. Do mesmo modo, a confiança é um facilitador das trocas, uma adocicador das relações sociais (...). Quanto mais se troca, em nome da confiança, mais se confia no outro, ou seja, a repetição da confiança gera efeitos multiplicadores, daqui resultando que quanto mais se troca, com boas experiências de confiança, mais se confia (MARQUES, PEIXOTO, 2003, p. 20).
Ao mesmo tempo, as sociedades modernas convivem com um elemento fundamental e oposto à confiança: a desconfiança. Sem esta, as instituições modernas (políticas e jurídicas) não teriam existido. Sendo essas sociedades de litígio, há uma descentralização da relação social e a confiança passa por instituições superiores: a confiança social alargada resulta das múltiplas desconfianças relativas. O capital social é outro conceito balizar. Este é um recurso que surge dos laços sociais, um conjunto de vantagens e oportunidades que os indivíduos obtêm por participarem de certas comunidades, grupos e associações. O capital social representa um dado estoque de confiança social que utilizável para solucionar questões em comum: como as redes sociais e cooperativas. Ele está ligado ao próprio processo de reciprocidade gerador de socialidade e, ao mesmo tempo, aos recursos sociais que os atores disponibilizam na interação social (BOURDIEU, 1992; 1996). São as relações sociais que estruturam a troca entre os agentes presentes nos mercados. Estes são ± para a sociologia ± estruturas sociais, formas mais ou menos permanentes de interação em que os indivíduos estabilizam seus laços sociais e submetem-se a recompensas e sanções. Mostrar que os mercados são produtos históricos significa que nem toda economia se organiza através das relações mercantis (STNEINER, 2006 p. XI). Uma rede social é um conjunto de atores interligados por uma relação, que caracteriza um sistema formado pelos vínculos diretos e indiretos entre os atores. Por analogia, é uma forma de interação social que põem atores em contato. Ao mesmo tempo, a rede pode estar baseada em uma única relação ou em várias. Diferentemente do individualismo metodológico no sentido estrito, a análise de rede preocupa-se
127
deliberadamente as relaçþes existentes entre os atores, mais do que os prĂłprios atores. Os estudos das redes sociais, em geral, tambĂŠm se preocupam em analisar e perceber os fluxos de informação ou as prĂłprias redes instituĂdas, assim como as construçþes sociais e simbĂłlicas dos grupos estudados. Deste modo, ao pensar em redes, busca-se um instrumental teĂłrico-metodolĂłgico que permita melhor compreender a sociedade RX XP JUXSR VRFLDO SRU VXD HVWUXWXUD VHXV ÂłQyV´ H suas ramificaçþes (MARTELETO, 2001). A discussĂŁo de redes (networks SDVVD SHOD LGpLD GH ÂłVLVWHPas de nĂłs e elos; uma estrutura sem fronteiras; uma comunidade nĂŁo geogrĂĄfica; um sistema de apoio ou um sistema prĂĄtico que se pareça com uma ĂĄrvore ou uma reGH´ Rede liga-se Ă LGpLD GH ÂłXP FRQMXQWR GH SDUWLFLSDQWHV DXW{QRPRV XQLQGR LGpLDV H UHFXUVRV HP WRUQR GH YDORUHV H LQWHUHVVHV FRPSDUWLOKDGRV´ (MARTELETO, 2001, p. 72). Face Ă visĂŁo dos determinismos institucionais, as redes sociais surgem como um novo instrumento, onde se valoriza mais os elos formais e informais e as relaçþes em detrimento das estruturas hierĂĄrquicas. Segue-se aqui a ideia de metĂĄfora de rede. O pensar de forma metafĂłrica as redes ĂŠ uma forma analĂtica que antecede a social network analysis. Em sua totalidade, a reprodução da vida cotidiana funciona como redes de relaçþes das quais somos RV ÂłQyV´ e pelaV TXDLV ÂłVmR SHUFRUULGDV SRU HOHPHQWRV uniformizantes e autoritĂĄrios como habitus bastante subconscientes na maior parte GDV VLWXDo}HV´ VILLASANTE, 2002, p.30). Os estudos das redes centram-se na preocupação de que
os indivĂduos, dotados de recursos e capacidades propositivas, organizam suas açþes nos prĂłprios espaços polĂticos em função de socializaçþes e mobilizaçþes suscitadas pelo prĂłprio desenvolvimento das redes. Mesmo nascendo em uma esfera informal de relaçþes sociais, os efeitos das redes podem ser percebidos fora de seu espaço, nas interaçþes com o Estado, a sociedade ou outras instituiçþes representativas (MARTELETO, 2001, p. 72).
Em geral, nĂŁo hĂĄ uma teorização especĂfica de redes sociais. Desta maneira, o conceito ĂŠ empregado por e, conjuntamente, diversas teorias sociais, sempre necessitando de dados empĂricos complementares, alĂŠm da identificação dos elos e
128
relaçþes entre iQGLYtGXRV 1D PDLRU SDUWH GDV YH]HV D SUHRFXSDomR p HP DQDOLVDU ÂłR conjunto das relaçþes que os indivĂduos estabelecem atravĂŠs das suas interaçþes uns FRP RV RXWURV´ 'Dt TXH D HVWUXWXUD VRFLDO p DSUHHQGLGD HQTXDQWR XPD ÂłUHGH GH relaçþes e limitaçþes que pesa sobre as escolhas, as orientaçþes, os comportamentos, DV RSLQL}HV GRV LQGLYtGXRV´ 0$57(/(72 S O objetivo, em nosso modelo analĂtico, ĂŠ realizar uma metĂĄfora de redes. Ou seja, ao invĂŠs de uma anĂĄlise estrutural para mostrar que a forma da rede ĂŠ explicativa dos fenĂ´menos analisados (topolĂłgica), nos voltamos para uma compreensĂŁo dos ÂłQyV´ H GRV ÂłODoRV´. A anĂĄlise de uma dĂade (interação entre duas pessoas) possui um sentido em relação a outras dĂades da rede, onde a sua posição estrutural tem um efeito sobre a sua forma, conteĂşdo e função. A impossibilidade de realizar uma anĂĄlise estrutural de redes, passa pela dificuldade de acesso Ă totalidade dos atores sociais principais, os presos, em uma penitenciĂĄria. Isto porque, uma anĂĄlise estrutural necessita do conhecimento estatĂstico quase total dos laços e nĂłs do grupo ou comunidade estudada. O ingresso parcial a este universo nos levou, portanto, a enfatizar nosso estudo na perspectiva de uma metĂĄfora de redes, contida em nossos dados de pesquisa. &RPR PRVWURX 9LOODVDQWH S ÂłHP FDGD JUXSR ORFDO FRPR HP FDGD pessoa, hĂĄ relaçþes em redes que nos ligam cotidianamente com realidades muito FRPSOH[DV´ $VVLP HP WRGD UHODomR VXEMD]HP UHODo}HV GH SRGHU RX GH PHGR GH como o outro vai interpretar o que estĂĄ se comunicando: ÂłXPD FRLVD p R TXH VH GL] H RXWUDV GH RQGH H SDUD TXHP VH GL]´ ,PHUJLPRV HP UHGHV GLYHUVDV IDPLOLDUHV GH WUDEDOKR YLFLQDLV FXOWXUDLV HWF H ÂłHP FDGD XPD GHODV VH HVSHUD XP GHWHUPLQDGR tipo de comportamento e de linguagem, que denota e conota qual ĂŠ o nosso papel no MRJR GH SRGHUHV FRWLGLDQRV´ ,'(0 S 5HGHV HVWmR OLJDGDV DRV PRYLPHQWRV VRFLDLV LQVWLWXFLRQDOL]DGRV ÂłUHXQLQGR indivĂduos e grupos em uma associação cujos termos sĂŁo variĂĄveis e sujeitos a uma UHLQWHUSUHWDomR HP IXQomR GRV OLPLWHV TXH SHVDP VREUH VXDV Do}HV´ 0$57(/(72 2001, p. 73). AlĂŠm do que, a rede ĂŠ composta de indivĂduos, grupos ou organizaçþes variadas, onde sua dinâmica se volta para a perpetuação, consolidação e
129
desenvolvimento das ações e atividades de seus membros (HANNEMAN E RIDDLE, 2005). Na contemporaneidade, além da ampliação dos sujeitos que protagonizam ações coletivas, temos uma mudança ma forma de mobilização e atuação: pautada agora em redes. Isso é possível também graças às novas tecnologias informacionais, como o celular, e mesmo ao surgimento de novas demandas antes inexistentes. Gohn alerta que rede social possui, atualmente, um papel fundamental enquanto enfoque analítico e possui certa permanência e realiza a articulação da diversidade: Sabemos que rede é uma categoria muito utilizada, com diferentes sentidos, constituindo-se até em certo modismo. Ela é importante na análise das relações sociais de um dado território ou comunidade de significados porque permite a leitura e a tradução da diversidade sociocultural e política existentes nessas relações (GOHN, 2010, p. 32).
Redes sociais são diferentes de instituições. Daí que não possuem uma hierarquia, embora possam ser percebidas relações de poder. As redes surgem das necessidades de sociabilidade e de relações sociais. Por conseguinte, no universo prisional, elas podem surgir como consequência da necessidade de vivência e sobrevivência na prisão, ou seja, como resposta dos grupos à estrutura disciplinar, punitiva e violenta. O enfoque das redes pode ser empregado numa leitura mais abrangente dos elementos mais constitutivos dos movimentos (como o papel dos atores sociais que organizam e orientam). Outras questões são: a coordenação social ou constituição dos movimentos, ou mesmo as dificuldades de organizar uma coletividade de pessoas de modo não hierárquico (SWEDBERG, 2004). Assim, a análise de redes mostra-se muito fecunda nas estratégias construtivas e participativas da realidade social. Trata-se de dar um viés mais dinâmico e processual aos grafos/redes que ilustram as relações entre os grupos e as instituições e, para isso, necessitamos informações sucessivas tanto de informantes qualificados como de amostras representativas da população em geral (VILLASANTE, 2002, p.92)
Ao estabelecer esses conjuntos de ação no concreto, enquanto redes sociais, verificamos níveis distintos de relações (que podem ser primárias, secundárias e
130
assim por diante) na comunicação do dia-a-dia, que vĂŞm a coincidir com o que distinguimos entre os vĂĄrios tipos de cĂłdigos de expressĂŁo (imagens, ideolĂłgicos, estereĂłtipos, silĂŞncios) que podem ser vistos nos espaços prisionais. A partir dessas relaçþes de comunicação cotidiana, ĂŠ possĂvel reinterpretar todos os dados e explicaçþes provĂĄveis das condutas. Soares, Miranda e Borges nos lembram de que ĂŠ D SDUWLU GDV ÂłUHGHV LQVWLWXFLRQDLV H SHVVRDLV TXH SDUWLFLSDPRV TXH QRV FKHJDP LQIRUPDo}HV TXH QRV SRGHP DMXGDU D DWLQJLU QRVVRV REMHWLYRV´ Laços com indivĂduos GLIHUHQWHV ÂłDXPHQWDP D SUREDELOLGDGH GH encontrar soluçþes para problemas devido DR DXPHQWR GRV ROKDUHV SDUD RV PHVPRV SUREOHPDV´ S -175). Grupos ou UHGHV VRFLDLV ÂłSREUHV´ SRVVXHP PHQRU SUREDELOLGDGH H FKDQFHV GH VH DUWLFXODU H resolver seus problemas. Ao se fala em redes, nĂŁo existe uma precisĂŁo de sua forma concreta, principalmente quando se afirma a existĂŞncia de trĂŞs elementos interligados: a relação entre as posiçþes sociais (conceito relacional), as disposiçþes (ou hĂĄbitos) e as tomadas de posição, as escolhas que os agentes sociais levam a cabo. Em vista disso, entre o espaço social/capital econĂ´mico e o espaço simbĂłlico/capital cultural, hĂĄ, em VHX FUX]DPHQWR ÂłSRVLo}HV TXH IRUDP VH FRQVWUXLQGR UHWLFXODUPHQWH QR FRWLGLDQR H QR FRQFUHWR´ (VILLASANTE, 2002, p. 94). Isso porque nos voltamos mais nas relaçþes do que nos indivĂduos. PorĂŠm, de modo geral, as redes ÂłsĂŁo tomadas em seu conjunto; nĂŁo se trata tanto de contar exatamente quantas vezes se viu uma pessoa com outra, mas a forma do conjunto de todas elas, o predomĂnio de uma sobre as RXWUDV DV WHQGrQFLDV FRQIOLWRV GHSHQGrQFLDV HWF ´ IDEM, p. 94). No mundo prisional (a saber) que instituiçþes perpassam? No caso em questĂŁo podem ser visualizadas: a Pastoral CarcerĂĄria (ligada Ă Arquidiocese CatĂłlicoRomana de Natal); o grupo de Direitos Humanos; os familiares (os mais assĂduos e, talvez, os mais significativos); e os advogados dos presos. Igualmente, temos os prĂłprios grupos internos que, informalmente, se institucionalizam: atravĂŠs do status social; do tipo de crime; das alianças construĂdas, entre outros. Em Alcaçuz, as redes presentes passam por vĂĄrios nĂłs. O primeiro ĂŠ a famĂlia, a mais importante das instituiçþes supracitadas. Sem a famĂlia, como mostram os recortes abaixo, os presos
131
não conseguiriam suportar a pena: ³Hoje me visitam: minha esposa, meu pai, minha mãe. Todo mundo. Trazem comida, acessórios de limpeza, roupas, essas coisas [sic]. Veem toda semana. Minha esposa principalmente. Sem o apoio que eles me dão não sei como poderia suportar aqui´ (PAULO, 31 ANOS). No nó familiar, além da mãe, outra figura sempre presente é a esposa. A maior parte dos depoimentos apontam sempre essas duas figuras, que além da presença, possibilitam o amparo material, psicológico e afetivo que os presos obtêm: ³Quem me visita é minha esposa. Ela traz minhas comprazinhas. [sic] Coisa miudinha, mas traz. Comida, remédio. Ela vem de 15 em 15 dias. Vem de Natal. Ela pega o ônibus e vem simbora [sic], ela chega cedo, 9 horas ela tá chegando. Quem corre atrás das minhas coisas é a minha esposa´ (KLEBER, 34 ANOS). Só minha tia mesmo que sempre, sempre mandava umas coisas pra mim e minha esposa que vem me visitar. Só isso mesmo. Outros não quiseram mais, porque eu fui preso, não queriam mais eu perto de ninguém [sic]. Só que eu sou um cara que sempre trabalhei. Errei, cometi meu erro mas to aqui pagando né? [sic] Hoje quem visita é só minha esposa. De oito em oito dias, quando pode. É quem me ajuda. Traz alimento, biscoito, bolacha, cigarro. Eu fumo, não sou drogado, não uso droga (ARTHUR, 20 ANOS).
O que se busca apreender aqui, em todo caso, é um recorte, um fragmento das redes sociais na prisão (metáforas de redes). O enfoque são os atores (ou elos), indivíduos que se comunicam dentro de uma rede. Com isso, busca-se perceber a estrutura social existente através das relações, e não somente os atributos individuais. Quando é presa uma pessoa não é mais extirpada do seu mundo social. Importantes segmentos deste mundo são transferidos com ela. E quando a iniciação à vida prisional se faz com parentes, amigos e vizinhos, a identidade pessoal e social encontra outras bases de sustentação num mundo que em princípio a suspende, quando não a corrói. As relações pré-estabelecidas agem aqui como um filtro que se interpõe entre a ordem, penitenciária e a pessoa (CUNHA, 2004, p. 155).
Neste sentido, a prisão pode aparecer como a extensão de redes sociais externas que foram estabelecidas antes dos indivíduos adentrarem nos muros da reclusão. Muitas YH]HV D VRFLDELOLGDGH LQWHUQD p PRYLGD SRU ³FULWpULRV Hxtracarcerais, alterando-se a natureza dos conflitos, e cessando o cotidiano intramuros de ser auto-UHIHUHQFLDO´
132
(CUNHA, 2004, p. 155). Essas redes nĂŁo sĂł articulam os reclusos entre si, mas tambĂŠm os articulam com complexas malhas exteriores diversas. Uma prisĂŁo ĂŠ um OXJDU GH FRQIOXrQFLD GH UHFXUVRV H SRSXODo}HV YDULDGDV ÂłOXJDU GH FHQWULIXJDomR GH populaçþes transformadas e de redes de sociabilidade institucionais e informais, mais RX PHQRV HVWUXWXUDGDV´ SRVVXLGRUDV GH FHUWD DXWRQRPLD H VXMHLWDV jV PXGDQças sociais em geral (DORES, 2005). Ă&#x2030; atravĂŠs de processos de fechamentos e de prĂĄticas desiguais, econĂ´micas, culturais, que se tece uma complexa cadeia de redes sociais que, por sua vez, escondem variados tipos de relaçþes de poder na prisĂŁo. Redes que se reforçam ou se enfraquecem devido a conjunturas diferentes ou mesmo que se consolidam em sua espessura e texturas prĂłprias, com hĂĄbitos de clandestinidade ou de discrição. Como a rede ĂŠ antes de tudo um ambiente social de informação e de trocas variadas, mesmo na prisĂŁo a informação circula, atingindo atores diferentes. Principalmente, ÂłD TXDQWLGDGH GH HORV GLUHWRV GHILQH D SRVLomR GRV integrantes de uma rede´ (MARTELETO, 2001, p. 75). Outra rede fundamental que exemplifica essas relaçþes (nĂłs), alĂŠm da famĂlia, ĂŠ a dos evangĂŠlicos em Alcaçuz. Em termos de rede externa, dada sua amplitude, complexidade e, de certa forma, legitimidade, jĂĄ que sĂŁo sabidos e permitidos, os evangĂŠlicos constroem toda uma teia de relaçþes pautadas na sua fĂŠ e na ideia de remissĂŁo dos pecados e penitĂŞncia na prisĂŁo: A assistĂŞncia religiosa ĂŠ um direito nosso aqui a gente tem acesso [sic]. Ajuda se traduz dessa forma: apenas com assistĂŞncia religiosa, porque o resto. Da protestante, Assembleia de Deus. Sou praticante Graças a Deus. A partir daqui eu passei a participar dos cultos. Ă&#x2030; um trabalho importante, apesar de muitos acharem que nĂŁo tem validade de nada, mas, eu particularmente, gosto bastante. Ă&#x2030; uma forma de, atĂŠ vocĂŞ ter contato com pessoas fora desse mundo aqui que nĂłs vivemos. Ă&#x2030; o nosso apoio evangĂŠlico (PEDRO, 41 ANOS).
Os pastores, em sua maioria, vĂŞm de bairros populares. AlĂŠm da doutrinação religiosa e da exigĂŞncia de uma mudança radical de comportamento, tambĂŠm trazem ajuda material imprescindĂvel no isolamento prisional: Vem os pastores dali de Natal, dali do bairro Nordeste, lĂĄ do Mosquito [favela], vem pra cĂĄ, pregar a palavra pra nĂłis [sic] aqui no PavilhĂŁo. Sei que ĂŠ
133 tranquilidade. Traz assim, para todos, sabe? Um material higiĂŞnico traz um sabonete, uma pasta, uma coisa que. Pros irmĂŁos. Que as coisas lĂĄ fora ĂŠ difĂcil, mas Ă s veis [sic] eles traz uma gratificação, para dar aos irmĂŁo. Fica todo mundo agradecido de coração (JĂ&#x161;NIOR, 30 ANOS).
Os prĂłprios pastores, em sua maioria, sĂŁo ex-presidiĂĄrios, principalmente os da Igreja Pentecostal AssemblĂŠia de Deus, instituição religiosa com maior presença na penitenciĂĄria. O crime nĂŁo deve ser mais cometido e a Igreja busca formar seus prĂłprios pregadores entre os presos, o que fornece mais robustez a essa rede. Ă&#x2030; o caso de Expedito, 25 anos, apenado do PavilhĂŁo do Trabalho que exerce o papel de pregador e liderança religiosa naquele local: Eu exerço o papel de pregador. Começa Ă s 6 horas, a gente se reĂşne, fazemos oraçþes, pregamos a palavra e assim, um ajudando o outro. Usamos um espaçozinho ali, onde o pessoal joga bola, e na hora do culto eles param de jogar bola. VocĂŞ ser evangĂŠlico, mesmo preso, ĂŠ nĂŁo fazer aqui dentro o que fazia lĂĄ fora. Ă&#x2030; deixar o mundo pra lĂĄ [sic]. Todos dizem que nĂŁo vĂŁo mais fazer, que vĂŁo buscar essa mudança, mas a luta ĂŠ essa. A gente tem de orar e pedir. SĂł o motivo de vocĂŞ fazer essa renuncia pedir essa ajudar, jĂĄ mostra que vocĂŞ quer mudar. Sair e retornar para cĂĄ ĂŠ quebra de confiança. Mudar ĂŠ mudar mesmo. O crime ĂŠ pecado e o cristĂŁo nĂŁo deve mais cair no pecado.
Notadamente, a Pastoral CarcerĂĄria CatĂłlica, ativa em outros presĂdios a nĂvel nacional, tem muito pouca presença em Alcaçuz, informação ratificada no discurso dos apenados que entrevistamos e com os demais que conversamos. Segundo a maioria, apenas ocasionalmente se verifica a presença deste grupo na penitenciĂĄria: Amigo, durante o perĂodo em que estou aqui, a Ăşnica ajuda que a gente pode dizer que tem ĂŠ dos evangĂŠlicos, porque em tempos anteriores a Pastoral CarcerĂĄria aparecia, mas agora praticamente acabou. Acabou em termos de prestar serviços, ainda existe o nome, mas nĂŁo vem mais. O Ăşnico grupo que presta serviço aqui ĂŠ a igreja evangĂŠlica, Assembleia de Deus. AtĂŠ porque, muito dos que aqui comparecem para pregar a Palavra, sĂŁo ex-presidiĂĄrios. Graças a Deus, Deus lhe deu a chance de se reintegrar a sociedade. Se tornarem pessoas de bem (LUIZ ANTONIO, 59 ANOS).
A ausência da Pastoral Carceråria Ê sentida e percebida, assim como das demais instituiçþes que geralmente passam ao largo ou rapidamente em Alcaçuz. Segundo $QGUp DQRV 3DYLOKmR GR WUDEDOKR ³RV HYDQJpOLFRV DSDUHFHP ID] FXOWR FRQYLGDP
134
pra [sic] participar, dão comida, faz esse papel. O restante aqui nunca apareceu não. Mesmo nos Pavilhão [sic], raramente D 3DVWRUDO &DUFHUiULD DSDUHFH´ Além dos nós familiares e religiosos, importante também apontar a significância das trocas. Ao estudar a corrupção, Granovetter (2006) chamou a atenção para o processo de troca entre díades e entre indivíduos e organizações, onde podemos ampliar que, assim como na corrupção, as relações estabelecidas na prisão envolvem trocas entre dois indivíduos. O fator é que nessas trocas existem implicações condenatórias, ou seja, princípios sociais que coordenam essas relações. Há inclusive uma etiqueta própria dessas trocas, já que elas rompem com as normas do espaço fechado e, são passíveis de sanções severas se publicitadas. Favores sexuais, cigarro, comida, doces, informações e outros produtos são objetos dessas trocas. Num espaço onde há carência de quase tudo, inclusive de liberdade e de informações, a troca entre díades ou entre indivíduos e organizações assume um papel fundamental. Um dos comércios mais comuns que possibilitam essa troca constante é o tráfico de drogas dentro da penitenciária, principalmente nos principais pavilhões: O tráfico aqui corre solto. O sistema a meu ver em nenhum momento se preocupou com essa situação. Essa parte lá fora de tráfico e de viciados. É só para pegar o elemento e trancar ele aqui por um período e pronto. Nada relacionado a tentar tirar o vício das drogas ou qualquer coisa nesse sentido. Aqui ocorrem mortes, inclusive por conta da droga. A droga aqui é o crack. Ele domina como em todas as cadeias. Domina de forma destruidora, avassaladora. Ele destrói não só com a vida, mas os familiares. A partir do momento que o viciado entra nesse tráfico o que é que acontece: ele fica devendo aqui dentro e tem de pagar a dívida. Essa dívida é repassada aos familiares lá fora. Então não envolve só a pessoa do viciado, e sim toda a família que fica refém da droga (PEDRO, 41 ANOS).
Manoel, detento do Pavilhão 3, mostra que o comércio e troca de drogas, remédios, celulares e armas é constante. O uso de celular para extorsões, tráfico ou soluções de conflitos fora do espaço prisional é uma constante: A convivência lá, vixe [sic] lá é muito docinho, comprimido, droga, crack rolando com força, faca, celular, uma tristeza sabe? (...) De manha logo cedo, os agentes chegam pra abrir, a gente toma banho de sol, um dia sim outro não, ai fica um e outro com celular, extorquindo, ameaçando as pessoas lá fora, para fazer isso e
135 aquilo. Quando nĂŁo ĂŠ isso ĂŠ muito comprimido, ĂŠ muito crack, quando nĂŁo tem quer descontar a neurose no prĂłximo (MANOEL, 28 ANOS).
Segundo Francisco, as drogas principais comercializadas são o crack e o ³UXSLQRO´ 5RK\SQRO17): Aqui tem muito o crack, que eu jå vi e nunca consumi. O crack eles fuma e Ê problema demais [sic]. Mas tem os comprimidos, bagulho Ê doido. Quando eles fumam maconha ficam tudo parado e tranqßilo, ta de boa. A maconha Ê a única que eu vi que o pessoal fica calma, tranqßilo, joga baralho, xadrez se alguÊm sabe. O crack, o ³rupinol´ [sic] e outros comprimidos jå não, eles matam e fazem muita coisa aqui. Bebida eu nunca vi aqui (FRANCISCO, 36 ANOS).
TambĂŠm podem ser vistos e percebidos outros tipos de trocas. Segundo 5XWHPEHUJ DQRV 3DYLOKmR GR 7UDEDOKR Âł YHMR PDLV XP FRPĂŠrcio aqui de roupas que sĂŁo trocadas, por exemplo, por cigarros. Com comida nĂŁo, porque a comidD TXH DV YLVLWDV WUD]HP D JHQWH GLYLGH HQWUH QyV e FRPSDUWLOKDGD´ Assim: LĂĄ tem um comĂŠrcio de venda. E no pavilhĂŁo ĂŠ grande. O povo vende cordĂŁo, rola de tudo lĂĄ (...). A gente comprava de tudo. Tinha gente que vendia bolo, suco, pĂŁo. E sempre os caras saĂam vendendo bermuda, camisa, quando eu tava com dinheiro eu comprava. Que lĂĄ os caras vendem para se drogar (BETO, 41 ANOS).
Outro ponto fundamental ĂŠ o status social dos indivĂduos nessas trocas. Alguns gestos implicam uma dada igualdade social e equivalĂŞncia de status, embora, ĂŠ claro, aparentemente todos tenham o mesmo papel social em uma prisĂŁo. Mas, lĂderes de FHODV Âł[HULIHV´ FDUFHUHLURV JXDUGDV RX PHPEURV GH RUJDQL]Do}HV TXH SHUSDVVDP pelo espaço prisional tornam o ambiente social bem complexo. DaĂ que, nĂŁo ĂŠ incoerente pensar, assim como Granovetter (2006, p. 17-19) em ausĂŞncia de relaçþes pessoais comuns nesse processo de trocas. Drogas, cigarros ou favores sexuais como moeda sĂŁo o ponto alto de um conjunto de trocas desiguais, imbuĂdas de relaçþes de O Rohypnol, Âłnome genĂŠrico flunitrazepam ĂŠ um agonista benzodiazepĂnico com alta afinidade por receptores centrais. Possui efeito ansiolĂtico, anti-convulsivante e sedativo, e induz redução do desempenho psicomotor, amnĂŠsia, relaxamento muscular e sono. O uso concomitante de Rohypnol com ĂĄlcool e/ou depressores do SNC deve ser evitado. Essa utilização concomitante tem potencial para aumentar os efeitos clĂnicos do Rohypnol, incluindo possivelmente sedação grave, depressĂŁo cardiovasculares e/ou respiratĂłria FOLQLFDPHQWH UHOHYDQWHV´ )RQWH http://www.medicinanet.com.br/bula/4565/rohypnol.htm. <Acessado em 14/09/2014>. 17
136
força e poder. Por exemplo: ³Wem um cara lá no pavilhão que é veado e se vende em troca de dinheiro. Ele tem relações com outros caras que gostam de veado, sabe? [sic] Já chegou até a ser mulher de algXQV FDUDV Oi (OH TXHU GLQKHLUR´ (ALBERTO, 22 ANOS). Manoel, garoto de programa, justifica sua atuação dentro da prisão, questão econômica, de sobrevivência, segundo o mesmo: ³Eu só faço por dinheiro, pois é minha profissão, sou garoto de programa né? Ás vezes tem uns que querem de graça, mas sou profissional e de graça não faço. Gosto do que faço, mas de graça não dá´ (MANOEL, 28 ANOS). Interessante que, em depoimento anterior, ele havia argumentado que não fazia programa na prisão. Quando mudamos o contexto da pergunta, relacionando esta com a sua sobrevivência, a reposta também se modificou. O que nos remete à questão de que, em nível de sobrevivência, este ator social considera justificável a prostituição prisional. Neste ínterim, um elemento presente é a questão da reciprocidade. Em um ambiente de trocas não inteiramente mercantil (como o da prisão), a reciprocidade pode atuar como reguladora dos processos. Ela serve como institucionalizadora e disciplinadora das trocas e das relações. Segundo Radomsky e Schneider (2007), a reciprocidade, embora categoria pré-capitalista e tradicional surja exatamente em DPELHQWHV RQGH R ³OLYUH-PHUFDGR´ QmR HVWi GHVHQYROYLGR WRWDOPHQWH $ SULVmR p XP espaço onde as trocas são limitadas e onde a regulamentação dos processos depende da própria dinâmica da interação social: ³Na minha cela a gente divide tudo. Se chega um pacote de bolacha ou biscoito a gente divide. Se a gente faz um cuscuz com ovo, todo mundo come. Não se vende comida em cadeia, o certo é repartir com os irmão [sic]. Todo mundo faz isso´ (NELSON, 22 ANOS). Do mesmo modo: Quando eu precisava de um negócio, assim quando eu precisava de um sabonete, um remédio, assim para comprar um negócio assim tinha um amigo meu que me arrumava [sic]. Só por amizade. Quando eu tinha, ele recebia da mesma forma. Na cela da gente tinha essa ajuda. Ele era do estado do Ceará, era amizade da cadeia mesmo, de lá (BETO, 41 ANOS).
Outro elemento interacional presente na prisão e demonstrado nos conflitos, ³UL[DV´ H ³EULJDV´ que aparecem como forma de vingança por algo feito na própria
137
penitenciĂĄria ou fora dela. A convivĂŞncia dentro da prisĂŁo, a extrema dificuldade de se conviver com outro que nĂŁo se conhece, que nĂŁo se tem afinidade alguma, sĂŁo mostrados no depoimento de AndrĂŠ, 19 anos. Qualquer pequena desavença nĂŁo resolvida termina em violĂŞncia e morte: Ă&#x20AC;s vezes ĂŠ por desrespeito, outras vezes ĂŠ por rixas que tem no pavilhĂŁo, rixas de drogas, rixas de outros presĂdios [sic], tipo, eu mexo com vocĂŞ aqui e aqui vocĂŞ nĂŁo pode fazer nada comigo, ai vai pra outro canto, um lugar mais espaçoso ai vai e tenta cobrar. [sic] E assim sucessivamente, vai levando ai chega ao ponto de um querer matar o outro, um querer esfaquear o outro, termina assim [sic]. Ă&#x2030; mais fĂĄcil arrumar uma rixa aqui dentro e aqui dentro mesmo acontecer o acontecimento da rixa, porque lĂĄ de fora nĂŁo tem como, porque o ritmo da cadeia ĂŠ isso: assunto de rua ĂŠ resolvido em rua, a de cadeia dentro da cadeia [sic]. Tem muita briga por roubo, se eu boto um negĂłcio num canto e o amigo vai e leva, da umas tapas num cara lĂĄ e o cara voltou e deu outras tapas nele, esse negĂłcio todo (ANDRĂ&#x2030;, 19 ANOS).
O trecho abaixo mostra que, conforme dito acima, as rixas e brigas podem demandar em morte. Separar os presos Ê uma das maiores preocupaçþes do sistema que, invariavelmente, falha: Aqui um pavilhão às vezes não tem a mesma afinidade com os outros pavilhþes. Aqui são quatro pavilhþes e dentro desses quatro pavilhþes existem inimigos da rua que vem pra cå [sic]. Existe tambÊm a parte de pessoas que por crime não podem morar em determinado local, entendeu? Como estupradores [sic]. Não podem ficar misturados com outras pessoas. Aqui hoje o pavilhão mais perigoso Ê o 2, porque Ê o que comporta a maioria dos presos de alta periculosidade. Assalto a banco, as pessoas que tem poder aquisitivo melhor, tråfico de drogas, tråfico internacional, por aà [sic] (PEDRO, 41 ANOS).
Em qualquer rede social, alguns elos constroem relaçþes mais estreitas ou mais Ăntimas. SĂŁo os cliques (MARTELETO, 2001, p. 75). O clique consiste num grupo qualquer de atores onde cada um deles estĂĄ ligado, direta e fortemente, aos demais. Podem representar um indivĂduo, uma instituição, um (sub) grupo especĂfico e atĂŠ mesmo, chegar a identificar a movimentação em torno de um determinado problema apresentado. Um exemplo significativo de liderança ĂŠ o caso de Arthur, 20 anos, FRQVLGHUDGR R ÂłFDEHoD´ OtGHU SULQFLSDO GR 3DYLOKmR $WXDQGR FRPR HOHPHQWR central, foi obrigado a sair do PavilhĂŁo em uma disputa de poder com outro indivĂduo
138
(nĂŁo entrevistado): Djair. Arthur era o principal organizador de rebeliĂľes e fugas no pavilhĂŁo, com contatos em outros pavilhĂľes e mesmo externamente: Porque se levantaram contra mim devido ao rapaz que eu matei tinha uns primos aĂ, uns amigos dele aĂ, no domingo passado queriam tirar minha vida, me chamara pra trocar faca [sic], mas sĂł que eu nĂŁo fui. Eu quero ĂŠ pagar minha cadeia e ir pra rua, viver com minha mulher cuidar dela e trabalhar, cuidar dos meus filhos. Por isso eu saĂ do pavilhĂŁo jĂĄ pra [sic] nĂŁo procurar confusĂŁo com ninguĂŠm. Devido a esse crime aĂ, que eu fiz com esse rapaz, ele tinha primos lĂĄ e companheiros lĂĄ tambĂŠm, eu jĂĄ tinha sido perseguido outra vez quando eu tinha um ano e seis meses aqui, uma primeira vez desse mesmo primo. Mas, fico tudo muito tranqĂźilo, o pessoal lĂĄ achou no direito de falar por mim, porque [ruĂdo], o caso que ele tinha desacatado minha esposa, aĂ pronto [sic]. Esse cara que eu matei ele era do crime tambĂŠm, e os caras me acusaram de ser matador de ladrĂŁo. Quando voltei dessa vez, depois de um ano e oito meses, ai se acharam de querer se levantar contra mim, querer tirar minha vida, me chamaram pra [sic] trocar faca com eles e eu procurei uma melhora. Preferi sair, porque tou [sic] aqui para pagar minha pena e ir pra rua. Cuidar da minha esposa e dos meus filhos (ARTHUR, 20 ANOS).
Segundo Arthur, sua saĂda do PavilhĂŁo deveu-se a uma rixa interna dentro do mesmo, pois ele havia matado um primo de alguns indivĂduos locais e foi acusado de VHU ÂłPDWDGRU GH ODGUmR´ IDFKDGD QmR DGPLWLGD QD SULVmR Outros informantes, porĂŠm, confirmaram que a motivação real, como dito acima, estĂĄ ligada a uma disputa de poder pela liderança do PavilhĂŁo 4. $ IRUPDomR GH JUXSRV RX ÂłJUXSLQKRV´ FRPR alguns depoimentos apontam ocorrem em Alcaçuz: Aqui ĂŠ uns nuns cantos outros noutros [sic], formando grupinhos. O pessoal de cima nĂŁo se dĂĄ com os daqui de baixo. Tem inimizades e tal (...). Por poucas coisas aqui fazem virar uma tempestade grande. Por qualquer discussĂŁozinha entre eles, por problemas que tiveram na rua. AĂ, quando chegam aqui dentro querem destruir um ao outro [sic] (PAULO, 31 ANOS).
NĂŁo apenas grupinhos, mas ĂŠ possĂvel perceber tambĂŠm certas articulaçþes e alianças em prol de objetivos e interesses comuns. Foi o caso do apenado JoĂŁo, 27 anos, PavilhĂŁo 1, que com o apoio de outro preso, o italiano Giacommo, iniciou a construção de uma ONG para rever os processos dos presos em Alcaçuz: Eu jĂĄ vinha fazendo um trabalho junto com outro rapaz aqui, que ĂŠ um italiano, lançou a idĂŠia de uma ONG. Ai a gente faz a pesquisa no campo judiciĂĄrio, tempo de cadeia, faz a pesquisa na internet [sic]. A esposa dele faz um corte tambĂŠm, para dar
139 uma força para quem não tem advogado. E através disso, eu também estudando para ver se consigo fazer minha revisão criminal também, sabe? (JOAO, 27 ANOS).
A afinidade entre João e Giacommo surgiu, segundo o mesmo por dois motivos: por questões de convivência e pela paixão de ambos pelo jogo de xadrez: Eu convivia mais com o Giacommo, o italiano que teve essa idéia da ONG, e como ele veio, ele está fazendo esse trabalho já no [pavilhão] 2, ele saiu daqui do 1 e voltou para morar lá no 2, aí decidiu, achou melhor a moradia no 1 e ficou aqui mesmo. Junto com nóis [sic]. Aí como ele gosta de jogar uma partida de xadrez, ai eu fiquei também por essa parte que eu gosto do jogo. Ele também viu que eu tinha capacidade para mim ficar junto, organizando essa situação desse trabalho social que ele faz aí no pavilhão [sic]. Ele lançou o convite, eu aceitei até agora né? [sic] (JOAO, 27 ANOS).
A ONG, ainda não concluída e concretizada, partiria de uma série de relações em rede do Giuseppe, portador de maior capital social. Seus contatos jurídicos locais e o apoio no estrangeiro seriam fundamentais para a efetivação da ONG assim como para a possibilidade de atenuação da pena dos seus partícipes:
Essa ideia da ONG partiu do Giuseppe, ainda está se encaminhando para vir a se tornar mais forte assim. Buscando um apoio, já tem um pessoal que se dispôs a fazer parte da ONG, o Dr. Flaviano, a Bruna que até pouco tempo era secretária no Fórum de Nísia Floresta, o chefe da defensoria pública, eu esqueci o nome dele agora, ta dando uma ajuda nos casos que a gente vem levando adiante né? [sic] No Direito, sem ter advogado, às vezes por conta de um papel, de uma pequena coisa aí fica né? Aquela pendência ali e não consegue soltar. Aí, pronto, a ajuda que tem é dessa ONG. Que é através dela que estou na expectativa [sic]. Também o doutor André, outro advogado que ficou de fazer parte da ONG, disse que ia ficar responsável por fazer a revisão criminal. Até pouco tempo esse rapaz tava no [pavilhão] 2 e eu tava aqui no 2, aí eu quem fazia o levantamento aqui dos dados, de quanto tempo a pessoa tava preso, a filiação, tempo de cadeia, sentença, eu mandava os dados pra ele fazia a pesquisa e imprimia, eu lia a situação e passava pra pessoa [sic]. Daí eu ganhava minha redução e conseguia fazer minha revisão criminal, com a ajuda que tenho, fora da minha esposa é somente essa [sic] (JOAO, 27 ANOS).
Conceito também importante é o de densidade das relações visíveis, em termos de razão entre as relações existentes, ou seja, as que possuem densidade. A densidade das relações depende do tamanho do gráfico, ou seja, do número total de atores que ele compreende (LIMIEUX, OUIMET, 2008, p. 20-21). No Pavilhão do Trabalho, uma das figuras que possuem uma boa densidade de relações e que são centrais nesse processo é o Pedro, 41 anos, chefe da faxina. Lidera uma equipe de 16 faxineiros que
140
chegam até ele por indicação da direção ou de sua própria. Em nosso primeiro encontro, mostrou-me um bilhete de um preso que se encontrava QD ³FKDSD´ TXH pedia uma oportunidade para trabalhar na equipe da faxina. Argumentou que recebia esse tipo de pedido todos os dias: (...) o pessoal da faxina, vem aqui por indicação minha ou da direção. O meu pavilhão se resume só isso, esse pessoal. Como eu sou responsável pela faxina, se existe algum com doença ou precisando de um remédio eu trago a solicitação dessa pessoa para a direção e a gente tenta resolver. Até porque são os que trabalham, as pessoas que produzem aqui [sic]. E com relação ao pavilhão eu não tenho esse contato, até porque quando acontece isso, como mutirão ou qualquer coisa nesse sentido é que eles fazem lá a reivindicação deles, entendeu? Mas eu não me considero líder não.
Embora não se considere portador de um papel relevante, outros o identificam assim: No meu pavilhão tem o administrador, que é Pedro, que toma conta de nóis [sic]. Poe a gente pra [sic] trabalhar e se localizar, é um rapaz trabalhador, honesto e respeitador também. Procura ajudar a gente, cada vez mais, nos dá orientação (ANDRÉ, 19 ANOS). O Pedro toma conta da gente e resolve várias coisas. Se tiver algum problema a gente chega para Pedro que é o chefe da gente aí [sic]. Ele que traz o problema para a direção para resolver, aí tira a pessoa se for o caso, resolve. Todo mundo obedece a ele. Minha relação com ele é boa. Relação boa. Ele é uma pessoa tranquila, tá entendendo? [sic] Não atrasa ninguém. Uma pessoa que tá cuidando bem do setor ali da gente, tá cuidando direitinho. Ele é a referência (KLEBER, 34 ANOS).
Trabalhar na Prisão é importante, principalmente devido ao instituto jurídico da remissão de pena. Ou seja, a cada três dias trabalhados o apenado tem abonado um dia do total de sua pena: Eu gostaria que começar a contar já a remissão de pena o mais rápido possível [sic]. Aí, achei melhor pedir uma oportunidade de trabalho na parte do rancho, na padaria, porque é um negócio reconhecido ali, o mais certo para você ganhar uma remissão de pena. Ate um comportamento né? [sic] Porque o objetivo principal é sair da cadeia (JOAO, 27 ANOS).
Outra figura importante é o Expedito, 25 anos, também do Pavilhão do Trabalho. Segundo o mesmo, como já mostrado anteriormente, ³H[erço o papel de
141
pregador. Começa às 6 horas, a gente se reúne, fazemos oraçþes, pregamos a palavra e assim, um ajudando o outro. Usamos um espaçozinho ali, onde o pessoal joga bola, H QD KRUD GR FXOWR HOHV SDUDP GH MRJDU EROD´ 6H D OLGHUDQoD RUJDQL]DFLRQDl do Pavilhão do Trabalho encontra-se com o Pedro, Expedito possui o que ele mesmo apontou como uma liderança espiritual e moral, principalmente entre os apenados evangÊlicos. Influência que se estende a outros pavilhþes: Geralmente, quando os outros presos dos pavilhþes saem, vão embora passam sempre por aqui e falam comigo. Pois, muitos que foram embora e voltaram - não todos - mas passam de volta e falam comigo. Minha alegria maior Ê quando não voltam Ê claro. Mas se posso dar um conselho minha alegria Ê quando vejo uma expressão diferente daquela de raiva que tinham antes. Depois do que eu passei, eu vejo a situação totalmente diferente do lugar. Hoje eu vejo a partir do tratamento humano (EXPEDITO, 25 ANOS).
Ainda no mesmo pavilhĂŁo (4), percebemos a presença de outro (nĂł) grupo evangĂŠlico, este neopentecostal, da Igreja Mundial do Poder de Deus que, segundo JĂşnior, 30 anos, congrega 18 participantes no presĂdio. Neste grupo, a liderança e centralidade sĂŁo exercidas por Seu Francisco: Tem o seu Francisco. Ă&#x2030; o mais velho. Ele dĂĄ conselho a um, dĂĄ conselho a outro. )DOD FRP XP IDOD FRP RXWUR &RQVHOKR GH EHP VDEH" 3RUTXH ÂłUDSD] YDPRV VHU KXPLOGHV YDPRV SURFXUDU PDLV D SDODYUD GH 'HXV HP QRPH GH -HVXV´ %XVFDQGR tranqĂźilidade e paz. No pavilhĂŁo tem um bocado de irmĂŁos que procura mais calma e tranqĂźilidade. Aqueles que nĂŁo procura seguir a palavra de Deus procura mais se desviar mais, fazer coisas erradas, nos pavilhĂľes [sic]. Seu Francisco ele ĂŠ uma pessoa muito boa, uma pessoa tranquila e calma, tĂĄ, uma pessoa que ajuda a um, ajuda a outro, dĂĄ um conselho, fala alguma palavra de bem, sĂł isso mesmo [sic].
Fora do PavilhĂŁo do Trabalho, alĂŠm do Arthur do PavilhĂŁo 4, jĂĄ apontado anteriormente, destaca-se a figura do Francisco, 36 anos, que algumas fontes apontaram como principal lĂder do PavilhĂŁo 2 e do prĂłprio presĂdio. Estrangeiro, de origem europĂŠia, utiliza seu poder aquisitivo para exercer influĂŞncia dentro dos pavilhĂľes. Quando do perĂodo desta pesquisa, foi acusado de subornar um Policial Militar para permitir a entrada de celulares no presĂdio. Cada aparelho entraria por cerca de dez mil reais. Uma das fontes, em nossas conversas, apontou tambĂŠm o
142
Francisco como figura central nas rebeliĂľes e tentativas de fuga. Francisco, por sua vez, apontou como lĂderes de seu PavilhĂŁo outros presos: Tem o CarlĂŁo, o Bola, o Paraguai, mas eu nĂŁo tinha nada com eles. Quem tem dinheiro, eles compram, vendem e assim comandam, diz isso, faz isso, quem tem dinheiro ĂŠ assim. Para mim eles me ajudavam, pois eu nĂŁo sou um mal pra eles, eu tinha condiçþes [sic]. Eles faziam maldade com quem nĂŁo tinha condiçþes e tem divida de drogas, esse ĂŠ maltratado. Eu sĂł fumDU DTXL ÂłJRUy´ SRUTXH PHOKRU >VLF@ Eu ficava quieto, na minha aqui. Eu tinha dinheiro e eles me ajudavam. Me chamam de gringo sĂł [sic]. Na minha cela teve em mĂŠdia de 19 a sete pessoas, fiquei um ano e quatro meses lĂĄ, um come o leite de um, o queijo de outro. Depois com o tempo ficou sĂł sete pessoas dentro, ficou melhor (FRANCISCO, 36 ANOS).
Em sua entrevista, se FRORFRX FRPR DOJXpP VHPSUH GLVFULPLQDGR H ÂłXVDGR´ SRU VHU HVWUDQJHLUR H SRVVXLU GLQKHLUR &KHJRX D DILUPDU TXH VH VHQWLD ÂłXP QHJUR´ DOL GHQWUR 2XWUR SUHVR QRV LQGLFRX TXH R &DUOmR %ROD H 3DUDJXDL VmR ÂłWHOHJXLDGRV´ GR Francisco, expressĂŁo na prisĂŁo para indivĂduos que agem sob o comando ou influĂŞncia de outro. Neste Ănterim, outro conceito fundamental ĂŠ o de tipos de conexidade onde sĂŁo percebidas as conexĂľes entre os atores. Seus tipos sĂŁo: a) nĂŁo conexidade, quando um ou mais atores estĂŁo isolados (ou seja, temos aqui uma estruturação desintegrada das relaçþes entre os atores); b) conexidade quase forte, quando se tem, no mĂnimo um DWRU GRPLQDQWH ÂłHPERUD QmR H[LVWD XQLFRQH[mR QHP QXP VHQWLGR QHP QR RXWUR SHOR menos no que diz respeito a um par de atores´ /,0,(8; 28,0(7 S ou seja, temos aqui uma estruturação hierĂĄrquica, total ou parcial, pois ao menos dois atores nĂŁo possuem qualquer conexĂŁo entre si; c) conexidade semi-forte, quando existe, no mĂnimo um ator dominante e onde hĂĄ uma conexĂŁo, ao menos, em um sentido, no que se refere a cada um dos pares de atores, ou seja, temos uma estruturação estratificada, onde ĂŠ possĂvel verificar no mĂnimo dois estratos de atores; e por Ăşltimo d) conexidade forte, quando todos os atores sĂŁo dominantes, onde verifica-se uma estrutura de tipo colegial, onde cada um dos atores domina (LIMIEUX, OUIMET, 2008, p. 23-24). Segundo Pedro, 41 anos, PavilhĂŁo do Trabalho, a presença em Alcaçuz de alguns contatos de redes com organizaçþes de fora se devem ao fato de que
143
alguns apenados aqui jĂĄ estiveram em Campo Grande, em Catanduvas e, ao meu ver, ĂŠ uma opiniĂŁo prĂłpria, essa transferĂŞncia de presos daqui para o sistema federal, penitenciĂĄria federal, sĂł contribuiu para fazer uma espĂŠcie de uma ligação entre presos daqui, que tinham atĂŠ entĂŁo periculosidade quase que nenhuma e vĂŁo pra lĂĄ e entram em contato com presos de alta periculosidade, justamente o Comando Vermelho, o PCC e tal, eles voltam pra cĂĄ [sic] eles vĂŁo pra lĂĄ passam uma temporada e retornam pra cĂĄ. Ao voltarem, voltam com outra mentalidade, ou seja, ĂŠ como fosse uma especialização do crime, essa transferĂŞncia de presos para o presĂdio federal.
Manoel aponta outras lideranças, chegando a identificar a presença do PCC atravÊs de alguns deles:
LĂĄ tem. Quer ver? Uns cinco ou seis lĂder [sic]. Eles sĂŁo ligados ao PCC. SĂŁo Mauro, Michelinho, Oreia, ZĂŠ Maria Gordo e Carioca. Eles extorquem o preso, mandando o preso, querendo obrigar os presos a mandar as famĂlias dar dinheiro a eles, essas coisas sabe? Butando [sic] lei dizendo que vai matar, dizendo que vai botar pra fora. Controlam tudo, o trĂĄfico. Exigem pagamento por semana e mĂŞs. VHQGHP DWp FHOD (X HVFXWR HVVDV FRQYHUVDV VDEH" (OHV GL]HP SURV RXWURV ÂłVRPRV QyV p QyLV´ [sic]. Se a pessoa nĂŁo tiver dinheiro e condiçþes na cadeia, a pessoa nĂŁo vale nada nĂŁo. A droga compra o prĂłximo. Aqui nĂŁo tem amizade nĂŁo (MANOEL, 28 ANOS).
Mesmo assim, Pedro, ex-policial, acredita que nĂŁo haja uma presença ÂłIXQFLRQDO´ do PCC no Rio Grande do Norte: Aqui no estado acho pouco provĂĄvel que eles consigam funcionar, atĂŠ porque lĂĄ no Rio de Janeiro, SĂŁo Paulo a estrutura lĂĄ ĂŠ bem maior do que a daqui. A daqui, a polĂcia ainda. A força pĂşblica ela consegue digamos que nĂŁo acabar com isso, mas consegue controlar entendeu? Para que isso nĂŁo houvesse forma de chegar aqui no sistema (PEDRO, 41 ANOS).
Kleber nĂŁo visualizou, mas ouviu, apesar de considerar sua presença como ÂłIUDFD´ Tem o PCC, dizem que tem. Falam muito do PCC aqui dentro dos PavilhĂľes. Tem uns caras aĂ. PCC nĂŠ? Que diz que ĂŠ sabe? [sic] Que chega assim e diz que ĂŠ, e pronto, e muito fraco esse negĂłcio de PCC aĂ. A gente aqui, a parte da gente aqui que trabalha nem interfere. NĂŁo sei de pedido de dinheiro aqui nĂŁo (KLEBER, 34 ANOS).
144
Segundo Luiz AntĂ´nio, 59 anos, um dos mais antigos apenados da PenitenciĂĄria, a existĂŞncia dessas organizaçþes ou facçþes em Alcaçuz pode ser contestada. Seria mXLWR PDLV REUD GH ÂłFRQYHUVD ILDGD´ RX GH WHQWDWLYDV GH FHUWRV presos de exercer influĂŞncia. NĂŁo nega os contatos, mas afirma que nĂŁo passa disto: Ă&#x2030; aquela histĂłria, devido a essa criminalidade no paĂs, com esses grupos em outros estados, ai ĂŠ melhor me relacionar melhor. Eu junto um dinheirinho. Se vocĂŞ juntar, os caras vem e tomam [sic]. Para as organizaçþezinhas. AĂ essas organizaçþezinhas, um comando e outro e tal, ai começa a funcionar a truculĂŞncia. Porque ĂŠ aquela historia, ĂŠ sempre assim: ĂŠ aqui, em Natal, ĂŠ no Rio, em SĂŁo Paulo, nos estados ai afora, em todo canto ĂŠ assim [sic]. Meu amigo, aqui tem uma palhaçada. Eu morei no Rio de Janeiro numa ĂŠpoca da Falange Vermelha, e lĂĄ a Falange Vermelha tinha estatuto. E eram obedecidas, as regras, sĂŁo leis, como as leis do paĂs, era assim. O negocio, uma organização, em que se cumpre uma ordem hoje e se descumpre amanhĂŁ de manhĂŁ ĂŠ uma palhaçada. EntĂŁo eu nĂŁo considero aqui nĂŁo. O que tem aqui ĂŠ um monte de desmiolados, sabe? Para dizer que sĂŁo PCC. Mas para ser PCC esta faltando discernimento. SĂł palhaçada. Agora formam um grupinho e pegam um e baixam o pau, ai existe. Mesmo sem dizer que ĂŠ PCC ou Falange Vermelha. Tem os grupinhos disso aĂ.
Percebemos que, em quase todos os discursos, embora nĂŁo haja a negação explĂcita da presença do PCC em Alcaçuz, esta ĂŠ minimizada ou desacreditada como disfuncional. Se o PCC representa um nĂł significativo, central, dentro do presĂdio, de forma a concatenar açþes ou organizar o coletivo, isso nĂŁo pĂ´de ser percebido nem pelo depoimento dos presos e nem pelo depoimento dos guardas e agentes penitenciĂĄrios. Se o PCC ĂŠ presente, nĂŁo possui ÂłFHQWUDOLGDGH´ A centralidade ĂŠ a posição de um ator em relação a outros, se considerando a quantidade de elos entre eles. A importância da centralidade explica-se atravĂŠs do posicionamento do indivĂduo, principalmente no que se referem Ă s informaçþes. Em um ambiente fechado como a prisĂŁo, a informação ĂŠ estratĂŠgica, permitindo a uma dada liderança, bem posicionada, aumentar seu status e influĂŞncia. Assim, eles mediam as trocas e facilitam o fluxo de informaçþes, fortalecendo a ligação da rede como um todo 7DPEpP p QHFHVViULR DSRQWDU D LPSRUWkQFLD GRV ÂłSHUVRQDJHQV SHULIpULFRV´ TXH ÂłFRORFDP DV UHGHV HP FRQWDWR FRP R PXQGR H[WHULRU´ ,VVR WXGR levando-VH HP FRQVLGHUDomR TXH ÂłD PDLRU interação entre determinados micro-grupos pode fortalecer a capacidade de PRELOL]DomR GDV UHGHV´ 0$57(/(72 S
145
Em um espaço social, as transformaçþes possĂveis sĂŁo produzidas quando os ÂłQRVVRV´ possuem redes densas, onde se criam YtQFXORV FRP RV ÂłGLIHUHQWHV´ SRUpP nĂŁo antagĂ´nicos, e quando os problemas surgem nas relaçþes internas dos ÂłDQWDJ{QLFRV´ Neste Ănterim, ÂłYmR DSDUHFHU DV UHODo}HV ÂľIUiJHLVÂś mostrando a sua força, para aglutinar, por um tema circunstancial, os diferentes (indiferentes para outros temas) diante dos antagĂ´nicos, aos quais se criam problemas internos ao fender-se alguns aspectos da sua dominação´. Nessa YLVmR GRV ÂłFDPSRV GR SRGHU´ R que se destaca ĂŠ uma dimensĂŁo Âłdinâmica doV GLIHUHQWHV ÂľFRQMXQWRV GH DomRÂś em situação e tambĂŠm a sua operatividade para resolver alguns bloqueios dos conflitos preVHQWHV´ (VILLASANTE, 2002, p. 95). Se a presença do PCC, atravĂŠs de suas redes sociais ĂŠ algo tangĂvel em Alcaçuz, como dissemos, sua centralidade ĂŠ questionĂĄvel. A posse do estatuto da facção, apreendida pela direção no mĂŞs de agosto de 2011, assim como os vĂĄrios depoimentos, sĂŁo indĂcios da presença de, ao menos, algumas redes sociais demandam indivĂduos agindo em nome do PCC em Alcaçuz. Os relatos mostram como jĂĄ discutimos que hĂĄ uma grande divergĂŞncia sobre a presença, ativa ou nĂŁo, de redes sociais criminosas como o PCC (Primeiro Comando da Capital) em Alcaçuz. O contato ou relação dessa rede criminosa com presos de Alcaçuz foi apontado por alguns presos e, da mesma maneira, negado por outros. As prĂĄticas de extorsĂŁo e o comĂŠrcio constante entre os presos, com o uso do celular, apontam, assim como a cĂłpia do estatuto, para a presença do PCC em Alcaçuz, se QmR FRPR ÂłRUJDQL]DomR FULPLQRVD´ DR PHQRV HQTXDQWR UHGHV VRFLDLV GR FULPH organizado. Presença tangĂvel como rede social, nĂŁo como organização burocraticamente organizada. DaĂ nossa escolha em apontar esta presença, destoando GD PtGLD H GRV VHWRUHV GR 'LUHLWR QmR FRPR ÂłRUJDQL]DomR FULPLQRVD´ PDV FRPR XPD rede social da criminalidade. Mais do que açþes especĂficas, rebeliĂľes, execução de crimes fora da penitenciĂĄria, o que efetivamente circula em Alcaçuz sĂŁo informaçþes, mobilização interna dos grupos e influĂŞncias, materializadas em todo tipo de privilĂŠgios e alianças.
146
6 Considerações Finais ³Comecei a sonhar com a liberdade desde o primeiro dia de reclusão. Passei a fazer a contagem do tempo de minha vida de presidiários por milhares de combinações diferentes, pensando sobre a maneira de utilizá-lo. Esse tipo de operação mental não me largava e creio que o mesmo se passa com todo aquele que vê sua liberdade eliminada, seja lá por que tempo que IRU´ (Recordações da Casa dos Mortos - Fiódor Dostoiévski).
147
O Brasil vivencia um gradativo aumento dos índices de encarceramento e aprisionamento ao longo das últimas três décadas. Uma verdadeira lógica punitiva que pretendeu remediar a escalada da violência e da insegurança ± causadas pela ausência do Estado social ± com mais repressão policial e mais prisões. Essas formas de intervenção social, basicamente, repressivas inscrevem-se também em uma tradição nacional de controle dos miseráveis e excluídos pela força. Apóiam-se numa concepção hierárquica e paternalista da cidadania, que tende a assimilar os assim chamados marginais, trabalhadores e criminosos, de modo que a manutenção da ordem de classe e a manutenção da ordem pública se confundem. Predomina em nosso país, principalmente entre os mais excluídos, uma verdadeira sociabilidade violenta, pautada pelo recurso universal à força e à violência. Ela expressa uma dada ordem social, alicerçada em uma representação da violência urbana onde se tem a percepção da violência como princípio de regulação das relações sociais. Um gradiente de violência que vem se alimentando, de certa maneira, das desigualdades e da exclusão social que se são reforçadas com a globalização e mercantilização. Neste ínterim, uma verdadeira subcidadania se constitui através de um habitus marcado pela precariedade, um habitus precário. Este se refere tanto a setores tradicionais da classe trabalhadora que não se adequam às novas demandas do mercado de trabalho, como também às camadas mais populares no Brasil. Esses grupos, de maneira geral, superlotam as prisões brasileiras. O aumento gradativo do sistema carcerário se configura enquanto suporte para conter a escalada da miséria e dos distúrbios urbanos no Brasil. O crescimento carcerário do Rio Grande do Norte acompanha, neste sentido, essa tendência. O estado assustador das prisões, espécies de campos de concentração para pobres, fez nascer vários grupos e redes organizadas dentro das penitenciárias brasileiras, que lutam, entre outras coisas, contra as péssimas condições de encarceramento. Das penitenciárias, esses grupos e redes dão ordens, planejam e executam suas ações. Neste mesmo diapasão, essas organizações ou redes criminosas, como o Comando Vermelho (CV), assim como o Primeiro Comando da Capital (PCC) são
148
frutos direto do processo de desumanização das prisĂľes e penitenciĂĄrias brasileiras. Primeiramente: controlando as instituiçþes prisionais; se rebelando e desafiando o Estado; e finalmente, lançando suas redes para alĂŠm das prisĂľes, esses grupos vĂŞm crescendo e se tornando presentes em vĂĄrios pontos do Brasil. Nosso estudo, centrado na PenitenciĂĄria Estadual de Alcaçuz, objetivou Âą a partir do estudo das redes sociais Âą realizar uma metĂĄfora de redes. Aqui nos YROWDPRV SDUD XPD FRPSUHHQVmR QRV ÂłQyV´ H GRV ÂłODoRV´ SUHVHQWHV QR JUXSR estudado. Tomamos a prisĂŁo Âą diferentemente de como ĂŠ pensada por certas teorizaçþes sociais Âą nĂŁo como uma unidade fechada e separada do mundo social, mas integrada a ele. O universo prisional foi pensado como um espaço de relaçþes sociais, na medida em que estas estĂŁo se interconectando e separando, onde relaçþes originĂĄrias de seu interior perpassam e se cruzam. Importa referir-se ao mundo que o FHUFD XPD VRFLHGDGH PDLV DPSOD RX FRPR GL]HP RV SUHVRV ÂłD VRFLHGDGH Oi IRUD´ Deste modo, vĂĄrias redes sociais perpassam o universo prisional. A PenitenciĂĄria Estadual de Alcaçuz, municĂpio de NĂsia Floresta, Rio Grande do Norte, insere-se em diversas redes sociais, construĂdas nas interaçþes entre seus atores principais, os presos. Mesmo enquanto detentos, estes constroem vĂĄrios tipos de contatos e laços, com seus familiares, lideres religiosos e, em alguns momentos, com outros grupos externos ao universo prisional. Mesmo encarcerados sĂŁo capazes de participar e interagir nessas redes, graças a, principalmente, o telefone celular, usado como mecanismo de contato. Com ele ĂŠ possĂvel constituir redes de trocas comerciais ilĂcitas que envolvem drogas e vĂĄrias modalidades de extorsĂŁo. O telefone celular, enquanto tecnologia cumpre um papel fundamental na construção e manutenção dessas redes sociais. Sua multiplicidade de funçþes: enviar mensagens, imagens, documentos e atĂŠ mesmo, possibilitar conferĂŞncias o tornam imprescindĂvel na prisĂŁo. Seu valor aumenta conjuntamente com a corrupção que permite sua entrada naquele espaço. Em Alcaçuz, como na maior parte das prisĂľes brasileiras, ĂŠ nas mĂŁos de guardas e agentes que o celular adentra. As redes sociais em Alcaçuz passam por vĂĄrios tipos e nĂveis. As mais sĂłlidas, enquanto laços fortes e nĂłs que envolvem os laços pessoais, familiares e religiosos. A
149
família, com toda a certeza, é o nó mais forte que liga o preso à sociedade exterior. O segundo grupo é a Igreja, principalmente os evangélicos que consolidam um trabalho contínuo no presídio. As demais passam por outros tipos de laços externos e grupos, pautados por laços fracos ou apenas contatos esporádicos. Neste sentido, percebemos vários indivíduos que cumprem importante papel de centralidade e liderança. Mesmo assim, essas redes e lideranças se fragilizam de certa forma, devido às constantes mudanças e transferências pelas quais passam os apenados. Em outros aspectos, porém, novos laços e redes são construídos nessas mudanças, com o estabelecimento de novos contatos em outras prisões. Lideranças centrais são capazes de organizar, reivindicar e liderar. As rebeliões, fugas e trocas comerciais passam pelo seu crivo e por sua capacidade de influenciar, determinados, por sua vez, pelo seu capital social e econômico. Os indivíduos de maior capacidade de liderança, conforme nossos entrevistados são também possuidores de algum desses capitais, como o caso de Francisco, estrangeiro, principal liderança do presídio, organizador de rebeliões e fugas. Outro caso apontado foi o de Pedro, chefe da equipe de faxina, liderança do Pavilhão do Trabalho. Isso porque, em uma penitenciária, os indivíduos aparentam, muitas vezes, possuir poucas condições de estabelecer suas redes. Neste sentido, alguns sujeitos, detentores de habilidades sociais específicas para lidar com informações limitadas sobre os cenários que atuam, terminam sendo aqueles que conseguem exercer esse papel de liderança e centralidade. Tomando Alcaçuz enquanto espaço de interações sociais, são percebidos os mais variados tipos de relações. A formação ou contato com grupos criminosos, ou redes criminosas externas, com presos de Alcaçuz foi apontado por alguns presos e negado por outros. A presença do PCC, através de suas redes sociais é algo tangível em Alcaçuz. Isso foi demonstrado tanto pela posse do estatuto da facção, apreendida pela direção do presídio no mês de agosto de 2011, assim como os vários depoimentos coletados na pesquisa. São indícios da presença de, ao menos, redes sociais que demandam indivíduos agindo em nome do PCC em Alcaçuz.
150
Alcaçuz ĂŠ tambĂŠm uma amostra da prisĂŁo enquanto espaço de ilegalidade e descumprimento flagrante das leis que regulam a Execução Penal no Brasil e a sua prĂłpria Constituição. Suas celas lotadas, bem alĂŠm de sua capacidade, a ausĂŞncia de assistĂŞncia, jurĂdica, social, mĂŠdica, psicolĂłgica e odontolĂłgica, alĂŠm de sua infraestrutura que nĂŁo cumpre nem mesmo seu papel primordial: aprisionar. A PenitenciĂĄria Estadual Dr. Francisco Nogueira Fernandes ĂŠ a expressĂŁo da precariedade e do descaso estatal. Nosso estudo aponta, tambĂŠm, para um papel fundamental que a prisĂŁo cumpre: estabelecer uma ilegalidade, que ĂŠ a reprodução da delinquĂŞncia em si. O sistema carcerĂĄrio multiplica a delinquĂŞncia, na medida em que o investe, o recorta, o penetra, o organiza, e o fecha em um meio definido lhe fornecendo um papel instrumental. Mais delinquĂŞncia e, portanto, mais necessidade de aumento do aparato necessĂĄrio para sua repressĂŁo. O apenado, vivenciando o dia-a-dia prisional, se vĂŞ e ĂŠ visto como portador de um estigma, passando a estabelecer relaçþes com outros presos levando em consideração esse parâmetro. Na prisĂŁo, nĂŁo apenas suas redes sociais delinqĂźentes sĂŁo ampliadas, mas seus conhecimentos de novas tĂŠcnicas de crimes que podem ser LPSOHPHQWDGDV GHSRLV $SyV VHX UHWRUQR j ÂłVRFLHGDGH´ HVWD SDVVD D Yr-lo sempre FRPR ÂłEDQGLGR´ RX ÂłFULPLQRVR´ 3DUD PXLWRV R UHWRUQR DR FULPH WRUQD-se a Ăşnica atividade possĂvel.
151
7 ReferĂŞncias
152
ABRAMOVAY, Ricardo. Entre Deus e o Diabo: mercados e interação humana nas ciências sociais. In: Tempo Social: revista de sociologia da USP, v. 16, no. 2, novembro de 2004. ADORNO, Sérgio. Exclusão socioeconômica e violência urbana. In: Sociologias, Porto Alegre, ano 4, nº 8, jul/dez 2002, p. 84-135. ___________. Conflitualidade e violência: reflexões sobre a anomia na contemporaneidade. In: Tempo Social. Revista de Sociologia da USP. São Paulo: USP, Maio de 1998, nº 10, p. 19-47. AGUIAR, Roberto A. R. de. Direito, Poder e Opressão. 3ª ed. São Paulo: AlfaÔmega, 1990. ALEXANDER, Jeffrey C. O novo movimento teórico. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, ANPOCS, n. 4, v. 2, jun. 1987. AMORIM, Carlos. CV-PCC a irmandade do crime. Rio de Janeiro: Record, 2006. ARENDT, Hannah. Sobre a violência. 2ª Ed. Tradução de André Duarte. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010. ______________. Eichmmam em Jerusalém. Tradução de José Rubens Siqueira. São Paulo: Companhia das Letras, 2010a. BAIERL, Luzia Fátima. Medo Social: Da violência visível ao invisível da violência, São Paulo: Cortez, 2004. BECCARIA, Cesare. Dos Delitos e Das Penas. Tradução de Paulo M. Oliveira; Prefácio de Evaristo de Morais. 15ª Ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001. BECKER, Howard S. Outsiders: estudos de sociologia do desvio. Tradução de Maria Luiz X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008. BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Tradução de Fernando Tomaz. Rio de Janeiro: Editora Bertrand Brasil, 1989. ___________. A Economia das Trocas Simbólicas. Introdução, Organização e Seleção de Sérgio Miceli. 3a Ed. São Paulo: Perspectiva, 1992. ___________. Sociologia. Introdução e Organização de Renato Ortiz. São Paulo: Ática, 1994.
153
___________. Razões práticas: Sobre a teoria da ação. Tradução: Mariza Corrêa. Campinas, SP: Papinus, 1996. ___________. A dominação masculina. Tradução Maria Helena Kühner. 6. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2009. BRANDÃO, Thadeu de Sousa. Organizações criminosas no Brasil: uma análise a partir da teoria das elites e da teoria da ação coletiva. In: Revista Eletrônica InterLegere. no 03 (jul/dez 2008). BRITO, Daniel Chaves, BARP, Wilson José (Org.). Violência e Controle Social: reflexões sobre Políticas de Segurança Pública. Belém: NUMA/UFPA, 2005. CARLOS, Jorge Adriano. O Crime segundo a perspectiva de Durkheim. In: http://www.sapereaudare.hpg.ig.com.br/sociologia/texto10.html. <Acessado em 01/09/2006>. CARVALHO FILHO, Luís Francisco. A Prisão. São Paulo: Publifolha, 2002. CASCUDO, Luís da Câmara. História da Cidade do Natal. 3ª ed. Prefácio de Enélio Lima Petrovich. Natal: RN Econômico, 1999. CASTRO, Celso. A. Pinheiro de. Sociologia Aplicada ao Direito. 2ª Ed. São Paulo: Atlas, 2003. CECCHETTO, Fátima Regina. Janeiro: FGV, 2004.
Violência e estilos de masculinidade. Rio de
CICOUREL, Aaron V. Teoria e método em pesquisa de campo. In: ZALUAR, Alba (org.). Desvendando máscaras sociais. 2ª Ed. Rio de janeiro: Francisco Alves, 1980. ____________. As manifestações institucionais e cotidianas do habitus. Tradução de Sergio Miceli. In: Tempo Social, Revista de Sociologia da USP, v. 19. N.1. Junho de 2007. COMFORT, Megan. Encarceramento em massa e transformação de relações amorosas nos Estados Unidos. In: Discursos Sediciosos: crime, direito e sociedade. Ano 11, no 15/16. 1o 2o semestres de 2007. p. 233-260. CUNHA, Manuela Ivone P. As organizações enquanto unidades de observação e análise: o caso da prisão. In: Etnográfica. Vol. VIII (1), p. 151-157, 2004. CUSSON, Maurice. Desvio. In: BOUDON, Raymond. Tratado de Sociologia. Tradução de Teresa Curvelo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1995.
154
DEPARTAMENTO PENITENCIÁRIO NACIONAL. Sistema Penitenciário no Brasil: Dados Consolidados. Brasília: Ministério da Justiça, 2006. DIARIO DE NATAL. Muitos sucumbiram à casa de horrores. Caderno Cidades. p. 07, 23 de Março de 2006. DORES, Antônio Pedro. Prisões de Portugal. In: IV Congresso Português de Sociologia. Lisboa, 2005 (mimeo). DOSTOIÉVSKI, Fíodor. Recordações das Casas dos Mortos. Tradução de Nicolau S. Petícov. São Paulo: Nova Alexandria, 2006. DOUDON, Roger. A violência HQVDLR DFHUFD GR ³KRPR YLROHQV´ 7UDGXomR GH 3LODU Ferreira de Carvalho e Carmen de Carvalho Ferreira. Rio de Janeiro: DIFEL, 1998. (Enfoques. Filosofia) DOWNS, John. Uma Teoria Econômica da Democracia. Tradução de Sandra Guardini Teixeira Vasconcelos. São Paulo: EDUSP, 1999. DURKHEIM, Émile. Da divisão do trabalho social. São Paulo: Martins Fontes, 1996. FAUSTO, Boris. Crime e Cotidiano. São Paulo: Edusp, 2001. FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Organização, Introdução e Revisão Técnica de Roberto Machado. Rio de Janeiro: Graal, 1995. ___________. Em defesa da sociedade: curso no College de France (1975-1976). Tradução Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 1999. __________. A verdade e as formas jurídicas. Tradução de Roberto Machado e Eduardo Morais. 3a Ed. Rio de Janeiro: NAU Editora, 2005. ___________. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Tradução de Raquel Ramalhete. 30a Ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2005a. GEERTZ, Clifford. A Interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Zahar, 1989. GIDDENS, Anthony. O Estado- Nação e a Violência: Segundo Volume de Uma Crítica Contemporânea ao Materialismo Histórico. Tradução de Beatriz Guimarães. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2001. _____________. Sociologia. Tradução de Sandra Regina Netz. Porto Alegre:
155
Artmed, 2004. GOFFMAN, Erving. A representação do eu na vida cotidiana. Tradução de Maria Célia Santos Raposo. Petrópolis, RJ: Vozes, 2001. __________. Manicômios, Prisões e Conventos, São Paulo: Perspectiva, 2005. __________. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. Tradução de Márcia Bandeira de Mello Leite Nunes. 4ª ed. Rio de Janeiro: LTC, 2008. __________. Comportamento em lugares públicos: notas sobre a organização social dos ajuntamentos. Tradução de Fábio Rodrigues Ribeiro da Silva. Petrópolis, RJ: Vozes, 2010. GOHN, Maria da Glória. Movimentos Sociais e Redes de Mobilizações Civis no Brasil Contemporâneo. Petrópolis, RJ: Vozes, 2010. GRANOVETTER, Mark. Acção económica e estrutura social: o problema da incrustação. In: MARQUES, Rafael; PEIXOTO, João. A Nova Sociologia Econômica: uma antologia. Oeiras: Celta Editora, 2003 ______________. Ação econômica e estrutura social: o problema da imersão. Tradução de Cristina Yamagami e revisão técnica de Maurício C. Serafim. RAE Eletrônica, Fundação Getúlio Vargas, vol. 6, n. 1, jan./jun. 2007. GRECO, Rogério. Manual de Direito Penal. Vol I. São Paulo: Saraiva: 2006. JOZINO, Josmar. Cobras e Lagartos. Rio de Janeiro: Objetiva, 2005 HANNEMAN, Robert A; RIDDLE, Mark. Introduction to social network methods. Riverside, CA: University of California, 2005. HOLANDA, Sérgio Buarque. Raízes do Brasil. 26 ed. São Paulo: Companhia das Letras,1995. LEMIEUX, Vincent, OUIMET, Mathieu. Análise Estrutural das Redes Sociais. Lisboa: Instituto Piaget, 2008. LIMA, William da Silva. Quatrocentos contra um: uma história do Comando Vermelho.2.ed.- São Paulo: Labortexto Editorial, 2001.
156
LOPES JÚNIOR., Edmilson. Os cangaceiros viajam de Hilux: as novas faces do crime organizado no interior do Nordeste do Brasil. In: Cronos. Natal, V. 7, No 2, Jul/Dez 2006. _____________. Redes Sociais do Crime Organizado: a perspectiva da nova sociologia econômica. Revista Brasileira de Ciências Sociais. Vol. 24, no 69. Fevereiro de 2009. p. 54-69. _____________. A NES e os mundos morais do crime e da corrupção no Brasil. Rio de Janeiro. XIV Congresso Brasileiro de Sociologia. GT Sociologia Econômica. Julho de 2009a (mimeo). LUISI, Luiz. Os Princípios Constitucionais Penais. 2ª Ed. Porto Alegra: Sergio Antonio Frabris Editor, 2002. MACHADO, Luiz Alberto. Direito Criminal: Parte Geral. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1987. MAIA, Clarissa Nunes (Org.). História das Prisões no Brasil: volume I. Rio de Janeiro: Rocco, 2009. MALINOWSKI, Bronislaw. Objetivo, método e alcance desta pesquisa. In: ZALUAR, Alba (org.). Desvendando máscaras sociais. 2ª Ed. Rio de janeiro: Francisco Alves, 1980. MARQUES, Eduardo Cesar Leão. As Redes Sociais Importam para a Pobreza Urbana? In: DADOS - Revista de Ciências Sociais. Rio de Janeiro, Vol. 52, No 02, 2009. MARQUES, Rafael, PEIXOTO, João (ORG). A Nova Sociologia Económica: uma antologia. Prefácio de Richard Swedberg. Lisboa: Celta Editora, 2003. MARTELETO, Regina Maria. Análise de Redes Sociais: aplicação nos estudos de transferência da informação. In: Ciência da Informação. Brasília, v. 30, n. 1, p. 7181, Jan./abr. 2001. MARTUCCELLI, Danilo. Reflexões sobre a violência na condição moderna. In: Tempo Social, Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 11(1), p. 157-175, maio de 1999. MELOSSI, Dario, MASSIMO, Pavarini. Cárcere e Fábrica: As origens do sistema penitenciário (séculos XVI-XIX). Tradução de Sérgio Lamarão. Rio de Janeiro: Revan; ICC, 2006. (Pensamento Criminológico, v. 11).
157
MINAYO, Maria Cecília de S., A Violência Social sob a Perspectiva da Saúde Pública. In: Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, 10 (supl. 1), p. 07-18, 1994. MIRABETTE, Julio Fabbrini. Direito Penal: Parte Geral (Arts. 1º a 120 do CP). 23ª Ed. São Paulo: Atlas, 2006. MOLINA, Antonio García-Pablos de, GOMES, Luiz Flávio. Criminologia. Introdução a seus fundamentos teóricos. 5ª ed. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2006. NUCCI, Guilherme de Souza. Leis Penais e Processuais Penais Comentadas. 5ª Ed. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2010. OLIVEIRA, Edmundo.O futuro alternativo das prisões. Rio de Janeiro : Forense, 2002. OTERO, Juan Manuel. A hipocrisia e a dor no sistema de sanções do direito penal. In: Discursos Sediciosos: crime, direito e sociedade. Ano 11, numerous 15/16. 1 o 2o semestres de 2007. p. 45-64. PARSONS, Talcott; SHILL, Edward A. A interação social. In: CARDOSO, Fernando Henrique; IANNI, Octávio. Homem e sociedade: leituras básicas de sociologia geral. 12. ed. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1980. PEIXOTO, João (Org). A Nova Sociologia Econômica: uma antologia. Prefácio de Richard Swedeberg. Lisboa: Celta Editora, 2003. ____________. A Construção Social da Corrupção. In: Política e Sociedade. No 9, outubro de 2006. ________. The strength of weak ties: a network theory revisited. Sociological Theory, Vol 1, p. 201-233, 1983. POLANYI, Karl. A grande transformação: as origens de nossa época. Tradução de Fanny Wrobel. 2. Ed. Rio de Janeiro: Campus, 2000. PORTO, Roberto. Crime Organizado e Sistema Prisional. São Paulo: Atlas, 2007. RADOMSKY, Guilherme, SCHNEIDER, Sergio. Nas teias da economia: o papel das redes sociais nos processos locais de desenvolvimento. In: Sociedade e Estado. Brasília, v. 22, n. 2, maio/ago. 2007. RAUD-MATTEDI, Cécile. Análise crítica da Sociologia Econômica de Mark
158
Granovetter: os limites de uma leitura do marcado em termos de redes e imbricação. In: Política e Sociedade. No 06, abril de 2005. RAMOS, Graciliano. Memórias do Cárcere: volume I. São Paulo: Record, 1981. _________. Memórias do Cárcere: volume II. São Paulo: Record, 1981a. RITZER, George. Teoría sociológica contemporánea. Traducción de Maria Teresa Casado Rodrigues. Madrid: McGraw-Hill, 1993. RODRIGUES, Anabela Miranda. Novo Olhar sobre a Questão Penitenciária: estatuto jurídico do recluso e da socialização, jurisdicionalização, consensualismo e prisão. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2001. RODRIGUES, Thiago. Narcotráfico: uma guerra na guerra. São Paulo: Desatino, 2003. RUSCHE, Georg, KIRCHHEIMER. Punição e estrutura social. 2ª ed. Tradução, revisão técnica e nota introdutória de Gizlene Neder. Rio de Janeiro: ICC/Ed. Revan, 2004. SILVA, Luiz Antonio Machado da. Sociabilidade Violenta: por uma interpretação da criminalidade contemporânea no Brasil urbano. Sociedade e Estado. Brasília, v. 19, n. 1, p. 53-84, jan/jun. 2004. SILVA, Vanderlan Francisco. Conflitos e violência no universo penitenciário brasileiro. Porto Alegre: Sulina, 2008. SMELSER, Nell J. A Sociologia da vida econômica. Tradução de Miriam L. Moreira Leite. São Paulo: Livraria Pioneira Editora, 1968. SOARES, Gláucio Ary Dillon, MIRANDA, Dayse, BORGES, Dorian. As vítimas ocultas da violência na cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro. Civilização Brasileira, 2006. SOUZA, Ednilsa Ramos de. Masculinidade e violência no Brasil: contribuições para a reflexão no campo da saúde. In: Ciência & Saúde Coletiva, 10(1), p. 59-70, 2005. SOUZA, Fatima. PCC, a facção. Rio de Janeiro: Record, 2007. SOUZA, Jessé. A modernização seletiva: uma reinterpretação do dilema brasileiro. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 2000.
159
____________. A gramática social da desigualdade brasileira. In: Revista Brasileira de Ciências Sociais. Vol. 19, No 54, fevereiro de 2004. ____________. A Construção Social da Subcidadania: Para uma Sociologia Política da Modernidade Periférica. Belo Horizonte: Editora da UFMG; Rio de Janeiro: IUPERJ, 2006. SOUZA, Percival de. PCC O Sindicato do crime. São Paulo: Ediouro, 2006. STEINER, Philippe. A sociologia econômica. Tradução Maria Helena C. V. Trylinski. São Paulo: Atlas, 2006. SWEDEBERG, Richard. Sociologia Econômica: hoje e amanhã. Tradução de Sergio Miceli. In: Tempo Social: Revista de Sociologia da USP. V. 16, No 2, novembro de 2004. THIOLLENT, Michel. Crítica Metodológica, Investigação Social e Enquête Operária. 5a Ed. São Paulo: Polis, 1987. TRIBUNA DO NORTE. MP flagra irregularidades na Penitenciária de Alcaçuz. Caderno Natal. 01 de Julho de 2006. < http://tribunadonorte.com.br/noticia.php?id=14878> Acessado em 28/10/2007. VILLASANTE, Tomás R. Redes e alternativas: Estratégias e estilos criativos na complexidade social. Tradução de Carlos Alberto Silveira Netto Soares. Petrópolis, RJ: Vozes, 2002. WACQUANT, Loïc. As prisões da miséria. Tradução de André Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. __________. Punir os pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos. Rio de Janeiro: F.Bastos, Revan , 2003. __________. Rumo à militarização da marginalidade urbana. In: Discursos Sediciosos: crime, direito e sociedade. Ano 11, numerous 15/16. 1 o/ 2o semestres de 2007. p. 203-220. WEBER, Max. Economía y Sociedad. Ciudad del Mexico: Fondo del Cultura Económica, 1996. WIEVIORKA, Michel. O novo paradigma da violência. In: Tempo Social. Revista de Sociologia da USP. São Paulo: USP, Maio de 1997. p. 5-42. ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas: a perda de
160
legitimidade do sistema penal. Tradução de Vânia Romano Pedrosa e Almir Lopez da Conceição. Rio de Janeiro: Revam, 1991. ZALUAR, Alba (org.). Desvendando máscaras sociais. 2ª Ed. Rio de janeiro: Francisco Alves, 1980. ____________, NORONHA, José C., ALBUQUERQUE, Ceres. Violência: Pobreza ou Fraqueza Institucional? In: Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, 10 (supl. 1), p. 213-217, 1994.
Buy your books fast and straightforward online - at one of the world’s fastest growing online book stores! Environmentally sound due to Print-on-Demand technologies.
Buy your books online at
www.get-morebooks.com Compre os seus livros mais rápido e diretamente na internet, em uma das livrarias on-line com o maior crescimento no mundo! Produção que protege o meio ambiente através das tecnologias de impressão sob demanda.
Compre os seus livros on-line em
www.morebooks.es OmniScriptum Marketing DEU GmbH Heinrich-Böcking-Str. 6-8 D - 66121 Saarbrücken
Telefax: +49 681 93 81 567-9
info@omniscriptum.de www.omniscriptum.de