Leonardo da vinci, pará um olhar sobre a ocupação territorial na rodovia transamazônica

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Leonardo da Vinci, Pará Um olhar sobre a ocupação territorial na rodovia Transamazônica


Universidade de São Paulo Faculdade de Arquitetura e Urbanismo Trabalho final de Graduação

Leonardo da Vinci, Pará: um olhar sobre a ocupação territorial na rodovia Transamazônica.

Aluna: Thaís Lopes Lessio Orientação: Maria Lucia Caira Gitahy

Novembro de 2013

Capa: Agrovila Leonardo da Vinci. Acervo pessoal.



Agradecimentos Aos meus pais, Adilson e Laura, por acreditarem em mim sempre, mesmo que eu não acreditasse. Ao meu irmão, Daniel, por me ensinar que relaxar e se divertir às vezes é a melhor solução. Ao Roberto, minha casa, meu coração e minha paz. Às minhas queridas amigas da FAU, Camila, Elissa, Letícia , Naomi e Taissa, pela amizade, paciência e compreensão. E por me amarem, mesmo que eu tenha alma de velha. Aos amigos antigos, por permanecerem, serem eternos e especiais. À professora Maria Lucia, pela atenção e cuidado dedicados, pelo incentivo e entusiasmo mesmo nos momentos difíceis do percurso.


Ă?ndice


1. Introdução

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6. Estudo de caso: agrovila Leonardo da Vinci, Pará

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6.1. História

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6.2. A agrovila atualmente

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2.1. A rede urbana amazônica a partir de 1960

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6.3. As mudanças na agrovila

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2.2. A rodovia Transamazônica (BR-230)

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2. Formação da rede urbana da região amazônica

7. Consideraç»^l ÛgZbl 3. Projetos de colonização na região amazônica

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3.2. A colonização dirigida na região amazônica

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8. Anexo: entrevista 2' ;b[ebh`kZÛZ

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4.1. O INCRA e os projetos de colonização

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4.2. O fracasso dos projetos de colonização

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5. Urbanismo Rural

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3.1. Os conceitos de colonização e reforma agrária

4. A colonização dirigida na BR-230

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5.1. José Geraldo C. Camargo e o urbanismo rural

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5.2. O roteiro de planejamento

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5.3. O modelo espacial do urbanismo rural

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5.4. O urbanismo rural implantado na Transamazônica

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2)


1. Introdução


1. Introdução

Neste trabalho, pretende-se estudar a agrovila Leonardo da Vinci, no Estado do Pará. Implantada durante a década de 1970, às margens da rodovia Transamazônica, a agrovila Leonardo da Vinci é um exemplo da atuação dos programas de colonização dirigida do INCRA (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) na região. Apesar de ainda manter, com certa fidelidade, o esquema espacial típico adotado pelo programa de colonização, baseado no conceito de Urbanismo Rural e hierarquização de núcleos, Leonardo da Vinci está vivendo um processo de dinamização social e econômica – em muito vinculado à construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte – que se expressa na forma com que os habitantes ocupam e transformam o espaço. A ocupação territorial e a formação da rede urbana amazônica constituem dinâmicas muito distintas de outras encontradas no território brasileiro. A presença imperiosa da floresta, a particularidade da ligação entre homem e rio, a dificuldade de interiorização, a falta de acessos no plano nacional e regional, tornaram a região amazônica a última fronteira de expansão territorial. Historicamente, a ocupação do território amazônico deu-se de forma dispersa, com comunidades ribeirinhas ou pequenas vilas dependentes de uma aglomeração de porte um pouco maior. Essas organizações localizavam-se longe dos centros mais expressivos e não chegavam a conformar uma rede urbana nos moldes tradicionais – para alguns autores, isso só se deu a partir do ciclo produtivo da borracha, para outros, ainda mais tarde. É a partir da década de 1960, com a presença estatal na região através de programas oficiais, grandes projetos e ações políticas, que tem início um processo mais intenso de transformação da rede urbana amazônica, tanto de configuração espacial como de significação. A Amazônia passa a ser área de atuação de diversas estratégias governamentais a partir de diferentes pontos de vista: militar, com o apelo do integrar para não entregar, ocupar era prioritário para conter interesses de internacionali-

zação da região; econômico, já que a região era tida como fonte inesgotável de recursos e matéria prima, além do potencial hídrico para geração de energia; controle social, pois a região passou a ser utilizada como válvula de escape para diversas tensões sociais, especialmente no que tange aos conflitos pelo direito à terra e à reforma agrária. Para compreender Leonardo da Vinci, no presente, necessitamos algo da história da ocupação e urbanização da região amazônica, com ênfase no período que tem início na década de 1960. Para tanto, buscou-se conhecer as dinâmicas sociais e os agentes envolvidos, a atuação oficial e suas consequências para o desenvolvimento do modo de vida urbano na região. Entre essas ações oficiais, o trabalho se volta com interesse para os projetos de colonização dirigida e os movimentos migratórios espontâneos concomitantes ou resultantes das ações do Estado. Assim, estudou-se brevemente a Rodovia Transamazônica (BR-230) e a ocupação de suas margens, já que grande parte dos projetos de colonização dirigida tinha essa rodovia como eixo indutor. Partiremos então para a construção de um esboço geral do processo histórico urbano e social da região, de vital necessidade para o desenvolvimento do estudo de caso selecionado. A segunda parte do trabalho é, então, um esforço inicial de enxergar e compreender a realidade da agrovila Leonardo da Vinci, dentro da formação histórica da região, sua espacialidade, seus moradores, suas mudanças. É o empenho em identificar em um recorte espacial e temporal modesto, algo do processo de ocupação de uma região, que em pouco ou em nada levou em conta as necessidades daqueles que já habitavam a área.

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2. Formação da rede urbana da região amazônica


2. Formação da rede urbana da região amazônica

Desde a época colonial, a ocupação da região amazônica não foi um processo contínuo. As necessidades do mercado externo funcionaram como estopim para surtos pontuais de crescimento e consequente ocupação do território. Do mesmo modo que outras regiões periféricas, a Amazônia atendia ao propósito das potências centrais de incorporação de áreas que pudessem garantir a exploração de recursos naturais e a obtenção de matéria prima para a consolidação da base de produção do sistema capitalista. Assim, o percurso da Amazônia até a condição de floresta urbanizada (Becker, 1995) é marcado por ciclos de relativo dinamismo seguidos por períodos de estagnação, configurando um longo processo até a formação e consolidação da rede urbana na região. Para compreender melhor esse processo, alguns autores se valem da periodização da formação da região – espaço físico e político – como ferramenta inicial. Roberto Lobato Corrêa fez, em 1987, propostas importantes nesse sentido, e serve de suporte ou de contraponto para diversos outros autores que se seguiram. Para Corrêa, pelo menos três elementos devem estar presentes para que se constitua uma rede urbana: uma economia de mercado, com capacidade de negociar uma produção local por outra diferente, produzida fora da região (e para tal, se pressupõe que exista um diferenciação territorial do trabalho); pontos fixos no território, núcleos de convivência estabelecidos onde a economia de mercado e as trocas supracitadas possam tomar lugar; mínima articulação entre esses núcleos, garantindo a circulação da produção e dos agentes envolvidos em sua troca, além de estabelecer hierarquia entre esses núcleos de acordo com o papel assumido por cada um deles na produção e troca das mercadorias. Com essas definições em mente, Corrêa enumerou sete períodos para a rede urbana amazônica, da fundação da cidade de Belém a um pe-

ríodo iniciado na década de 1960, de maior intervenção do Estado1. Para ele, o período correspondente à exploração das drogas do sertão através das aldeias missionárias (Figura 2-1), geralmente instaladas ao longo de cursos d’água, seria o embrião da urbanização na região, pois esses núcleos estariam articulados de maneira a fazer circular os produtos extraídos da floresta. A essa rede, ainda incipiente e pouco complexa, Corrêa chamou de embrionária de tipo dendrítico, em referência a disposição territorial dos núcleos ao longo dos rios, como raízes e galhos de uma árvore. Com o advento da economia da borracha, tem-se, segundo Corrêa, um período de certo desenvolvimento da rede urbana, antes embrionária. Investimentos, tanto do capital nacional quanto do estrangeiro, foram feitos no sentido de ampliar a produção, facilitar o transporte e escoamento da borracha até os grandes centros regionais (Belém e Manaus, primordialmente) e a partir deles, para o exterior. O financiamento da produção se dava através de um sistema de crédito, conhecido regionalmente por aviamento: uma complexa cadeia de intermediários entre o trabalhador autônomo do seringal e as grandes Casas Aviadoras de Belém e Manaus que garantiam, em última instância, a exportação da borracha para os mercados consumidores norte americanos e europeus, principalmente. A cadeia se estruturava na troca não monetarizada de produtos entre o seringueiro, o seringalista, os centros 1 Para Corrêa, as fases da rede urbana amazônica são: 1) fundação de Belém, em 1616, com a instalação do Forte do Presépio e o início da conquista do território; 2) as aldeias missionárias e a exploração das drogas do sertão, de 1655 a 1750; 3) o período de atuação da Companhia do Grão-Pará e Maranhão, de 1755 a 1778; 4) um período de estagnação com o fim da Companhia do Grão-Pará e Maranhão, de 1778 a 1850; 5) o boom da borracha, de 1850 a 1920; 6) período de estagnação com a crise da economia gomífera, de 1920 a 1960; 7) a partir de 1960, com a introdução da região na divisão internacional do trabalho e no projeto de expansão capitalista do país, com a atuação mais intensiva do Estado.

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Leonardo da Vinci, Pará: um olhar sobre a ocupação territorial na Transamazônica

urbanos primazes e o capital internacional – materiais necessários ao desenvolvimento da produção e à sobrevivência do seringueiro (alimentação, por exemplo) eram importados pelas Casas Aviadoras, repassadas aos armazéns locais (em grande parte de propriedade dos seringalistas) a partir dos quais eram distribuídos aos seringueiros. A borracha funcionava como moeda de troca, percorrendo o caminho contrário. O sistema funcionava em uma espiral de endividamento constante do seringueiro que, apesar de autônomo, não conseguia se libertar do dono do seringal pois nunca quitava sua dívida, paga com o látex extraído.

Figura 2-1: mapa das missões missionárias na Amazônia (fonte: www.geocities.ws/terrabrasileira/contatos/missaoam.html)

O aviamento funcionava como articulador das diversas localidades envolvidas na produção e exportação do látex. No entanto, se por um lado o sistema facilitava a implantação de novas áreas produtoras (afinal, não era necessário o dinheiro em si, bastava o crédito), por outro foi responsável pela baixa diversificação de atividades produtoras, dificultando a diferenciação funcional que daria maior complexidade à rede urbana (Machado, 1999). Nesse sentido, inclusive, Machado se opõe a Corrêa: para ela, se as aglomerações da época colonial, como as aldeias missionárias, foram “funcionais ao domínio do território, quase nada tiveram a ver com a gênese do urbano na região” (Machado, 1999, p. 02), porque entre essas aglomerações, que eram unidades agrícolas autossuficientes, a comunicação e o acesso (e portanto, a articulação) eram difíceis. Para ela, era inexistente a complementaridade produtiva que garantiria a existência de uma economia de mercado baseada na troca de produtos diferentes. Para a autora, é à borracha que se deve creditar o “impulso inicial ao desenvolvimento da urbanização na região” (Machado, 1999, p. 02).

Figura 2-2: barracão de um aviador às margens do rio Pará (fonte: www.portalsaofrancisco.com.br/alfa/historia-da-borracha/economia-da-borracha-5.php)

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Devido à crescente demanda pelo látex no mercado internacional, diversos fluxos migratórios se dirigiram para a região amazônica, constituindo uma rede de povoados, vilas e pequenas cidades dispersas em meio


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à floresta, conectadas entre si pelas vias fluviais e altamente dependentes das cidades-primazes da região amazônica – Belém, principalmente, e Manaus de forma mais branda2 . A falta de equipamentos urbanos e portuários minimamente estruturados fazia do título “cidade” um mero eufemismo e não estimulava, segundo a autora, o desenvolvimento de um modo de vida realmente urbano. Isso, somado à dificuldade de intercomunicação e a baixa diferenciação do trabalho e da produção nos núcleos de povoamento, revela que “não existiam as condições para o desenvolvimento da rede urbana” (Machado, 1999, p. 03).

Figura 2-3: casa aviadora de pequeno porte, com as bolas de borracha produzidas pelos seringueiros (fonte: http://museuseringal.blogspot.com.br/2012/10/a-epoca-da-borracha. html)

A autora admite que o povoamento ligado à exploração da borracha foi responsável por um processo inicial, a que ela denomina proto-urbanização. Ainda assim, ressalta que “é a própria razão da rede, ou seja, sua constituição em função da exploração da borracha, que restringe o pleno desenvolvimento do urbano e da urbanização do território” (Machado, 1999, p. 04), pois não favorecia a expansão das redes de comunicação e das trocas dentro dos núcleos estabelecidos e entre eles. A evidência mais clara dessa realidade, segundo a autora, é a desestabilização da rede proto-urbana e do processo de povoamento a ela relacionado em ocasião das quedas bruscas e consecutivas da exportação de borracha – aglomerações pouco conectadas, que não contavam com diferenciação produtiva, todas dependentes de um mercado externo consumidor, não conseguiram sustentar por si próprias a incipiente 2 Com base em Arthur Morris, Lia Osório Machado afirma que a grosso modo, a estrutura urbana de cidade-primaz acompanha o modelo clássico dos sistemas de intercâmbio do tipo redistributivo (Machado, 1999), como o era a economia da borracha. No caso específico da região amazônica, a cidade de Belém sempre desempenhou esse papel, e durante o ciclo da borracha (1850 a 1920) a cidade concentrava a maior parte dos fluxos de exportação do látex e de importação de bens de consumo, que eram distribuídos para outras localidades. Essa forte atividade comercial explica o surgimento de um mercado de trabalho urbano na cidade e sua constituição como polo de atração

Figura 2-4: grande casa aviadora da região amazônica (fonte: http://museuseringal.blogspot.com.br/2012/10/a-epoca-da-borracha.html)

dos fluxos migratórios (Machado, 1999). Ainda atualmente, os efeitos dessa época podem ser verificados, já que Belém ainda é a cidade mais populosa, urbana e dinâmica da região amazônica.

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urbanização de que eram palco. Esse grande intervalo de tempo (que vai da fundação de Belém em 1616 à crise da borracha de 1920 e termina com a instauração do Estado Novo em 1937) é, para Berta Becker, a primeira grande fase da formação da região amazônica, a que ela denomina formação territorial (Becker, 2004). Nesse período, além das atividades econômicas relacionadas às drogas do sertão e ao boom da economia da borracha, a autora destaca a importância das atividades diplomáticas do Brasil internacionalmente e da atuação do Exército internamente como fundamentais para a definição dos limites territoriais da região. Além da ocupação tardia e ancorada nas necessidades do mercado externo, Becker destaca dois outros elementos importantes para a compreensão do período de formação do território: i) a importância da geopolítica, que explica como foi possível o controle e manutenção de tamanha área territorial apenas com intervenções pontuais no espaço que, ainda que em locais estratégicos, não garantiam bases estáveis que pudessem assegurar a soberania sobre a região; ii) o confronto entre modelos de ocupação territorial distintos, um de caráter exógeno que buscava privilegiar e fortalecer as relações com a metrópole (como no caso da economia da borracha), e outro de caráter endógeno, resultado do contato com os habitantes locais e da intenção de incentivar a autonomia local (como no caso das aldeias missionárias).

Figuras 2-5 a 2-8: cartazes do segundo período da borracha, convocando trabalhadores para os seringais amazônicos, de autoria do suíço Jean-Pierre Chabloz (fonte: www.unicamp.br/ unicamp/ju/542/chabloz-em-cartaz)

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O início da fase de planejamento regional proposta por Becker, vai da instauração do Estado Novo, em 1937, até 1985. No entanto, ela destaca que, à exceção da implantação das rodovias Belém-Brasília e Brasília-Acre no governo Kubitschek, até 1966 a política do governo foi muito mais discursiva do que de ação. Nesse ponto os três autores supramencionados (Corrêa, Machado e


2. Formação da rede urbana da região amazônica

Becker) concordam que a década de 1960 corresponde a um período de virada para a região amazônica, com forte presença do Estado na região através de programas, projetos e estratégias que visavam integrar a Amazônia ao novo projeto geopolítico de modernização e de fortalecimento do capitalismo no país.

2.1. A rede urbana amazônica a partir de 1960

Figura 2-9: cartazes do período 2a Guerra Mundial - trabalho nos seringais e defesa das fronteiras (fonte: www. unicamp.br/unicamp/ju/542/chabloz-em-cartaz)

Figura 2-10: ilustração da extração do látex (fonte: www.coladaweb.com/historia-do-brasil/ciclo-da-borracha-e-a-amazonia-atual)

A retomada da expansão capitalista, principalmente a partir da década de 1950, implicou, entre outros aspectos, na ampliação da reserva de força de trabalho disponível e da apropriação pelo capital de recursos naturais; nesse sentido, a região amazônica passou a fazer parte dos planos nacionais de integração, constituindo-se na fronteira do capital (Corrêa, 1987). O discurso empregado pelo governo era a base ideológica que legitimava o processo, pois apelava para um sentimento nacionalista, de ocupação do vazio demográfico3 a fim de garantir a soberania brasileira no território, prenunciando uma época de desenvolvimento econômico e social. Assim, tem início o planejamento regional efetivo da região, parte importante do novo “projeto geopolítico para a modernização 3 Para Lia Osório Machado, a visão da Amazônia pelos habitantes de outras regiões do país como uma área de “vazio” tem diversas nuances (um conceito demográfico, para se referir a áreas de baixa densidade populacional; um conceito urbano, pela predominância visual da paisagem natural; um aspecto político-militar de garantia de segurança e soberania; ou até mesmo um juízo de valor negativo a respeito das comunidades locais, seja por razão étnicas ou econômicas), mas

Figura 2-11: trabalhadores nordestinos em seringasis de Fordlândia (fonte: www.coladaweb.com/historia-do-brasil/ciclo-da-borracha-e-a-amazonia-atual)

sempre “induz à uma simplificação grosseira e distanciada das realidades regionais da Amazônia” (Machado, 1995, p. 01).

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Na Amazônia, segundo Machado, a urbanização é o elemento que configura e induz o sistema de povoamento local (1999). Assim, o Estado atua de duas maneiras para tentar controlar o povoamento – subordinando os projetos de colonização regional ao projeto nacional de modernização, e implantando redes técnicas para direcionar os fluxos migratórios para as novas frentes de povoamento que se deseja incentivar. Essas ações configuram uma “malha de duplo controle – técnico e político – constituída de todos os tipos de conexões e redes, capaz de controlar fluxos e estoques, e tendo as cidades como base logística para a ação” (Becker, 2004, p. 26). Entre os anos de 1968 e 1974, essa malha foi implantada na nova região de planejamento determinada pela SUDAM (Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia) – a Amazônia Legal (Figura 2.1-1).

Figura 2.1-1: mapa da Amazônia Legal (fonte: Imazon)

acelerada da sociedade e do território nacionais” (Becker, 2004, p. 26). O governo adotou diversas estratégias para garantir seus interesses na incorporação da região amazônica ao seu projeto de nação: buscou promover a facilitação dos fluxos de mercadorias e matérias primas com a construção de estradas e rodovias que conectassem a Amazônia ao centros produtores do Sudeste, incentivou o controle capitalista dos recursos naturais da região a partir da apropriação particular de enormes glebas com suporte do Banco da Amazônia S/A (BASA) e buscou maneiras de garantir a ampliação da reserva de força de trabalho, atuando diretamente no sistema de povoamento da região (Corrêa, 1987). 14

A seca na região nordeste nos anos de 1969 e 1970 acelerou o processo de intervenção do governo, com o mote de buscar caminhos para sanar a pobreza e desemprego que se agravavam na época. Na realidade, as ações do Estado na região amazônica serviram como atenuante das tensões sociais geradas pela seca, os projetos de colonização funcionando como um paliativo, sem que se realizasse uma reforma agrária - que era contrária à política de acúmulo de recursos e de capital que o governo praticava. Nesse cenário, o Plano de Integração Nacional (PIN) de 1970 funcionou tanto para a expansão das redes técnicas e políticas mencionadas como para atenuar as tensões sociais geradas pela luta ao acesso à terra. Segundo Karina Leitão, o plano tinha como um dos seus objetivos financiar as obras de infraestrutura na região amazônica, promovendo sua integração à economia nacional (Leitão, 2009) – grandes somas de dinheiro público foram direcionados para a construção de estradas, implantação de redes de telecomunicação e de distribuição de energia, construção de usinas hidrelétricas, além do levantamento de dados e


2. Formação da rede urbana da região amazônica

pesquisas sobre a região. Também, é dentro do escopo do PIN que se desenvolve o projeto de colonização dirigida e o INCRA. Os investimentos realizados pelo governo federal acabaram por alterar o padrão espacial da urbanização na região – antes orientada pela rede fluvial, de caráter dendrítico, a gênese de novos núcleos (espontâneos ou não) passou a acontecer primordialmente nos eixos das grandes rodovias, interiorizando as frentes de povoamento que começaram a invadir a floresta. Nesse processo, antigos núcleos ribeirinhos entraram em decadência, enquanto que outras cidades (geralmente as que detinham maior nível hierárquico na antiga rede, ou seja, as capitais) passaram por um surto de renascimento e concentração urbana – Belém e Manaus, principalmente. Apesar de primar pelo direcionamento dos fluxos migratórios para as novas frentes de expansão, a atuação do Estado também acabou por promover a concentração urbana nas antigas capitais. A maioria das instituições criadas pelo governo para controlar a implantação dos projetos e planos para a Amazônia se localizava nessas cidades, ampliando significativamente o seu mercado de trabalho, fosse pelas vagas diretamente criadas no setor público ou pela expansão do comércio e dos serviços que foram indiretamente gerados. No caso de Manaus, a concentração urbana reflete também a política de industrialização da região, centrada principalmente na Zona Franca de Manaus, instituída em 1967 e tida como uma poderosa estratégia territorial e econômica. Apesar de tudo, não se pode dizer que a intervenção do Estado para a criação de núcleos e cidades tenha sido, em si, uma novidade nas frentes pioneiras de expansão. Segundo Machado, o que torna o processo amazônico singular é a “gênese quase instantânea, em um grande território, de um sistema urbano que é, simultaneamente, a condição e o produto do sistema de povoamento da região” (Machado, 1999, p. 10) – já que,

como foi dito anteriormente, a urbanização é o que configura o sistema de povoamento na Amazônia, ao mesmo tempo em que é constantemente construída pelo mesmo4 . A ordenação do território a partir dos sistemas de povoamento pode se dar de maneira espontânea ou de maneira intencional, sendo o urbano quase sempre resultado da interação entre as duas ordens que atuam simultaneamente no território (Machado, 1999). Na região da Amazônia, podemos identificar com bastante clareza as duas ordens atuando durante o período de 1960 a 1985, e os limites a que elas seguem. A linha divisória entre as duas ordens é tênue e podemos até arriscar dizer que elas se interpenetram. No caso da ordem intencional, mesmo que na origem tenha padrões e objetivos determinados pelo governo (ou pela empresa ou instituição que a implanta), não é possível o controle de todos os aspectos envolvidos – no caso amazônico, por exemplo, mesmo que a implantação da malha de duplo controle tivesse o claro objetivo de direcionar os fluxos migratórios para determinados núcleos, já foi explicitado anteriormente que ela acabou por favorecer a concentração urbana nas capitais e a primazia das mesmas dentro da hierarquia da rede urbana. Não era essa a intenção, mas fica claro que, mesmo sensíveis à ação do governo, a direção e a intensidade dos fluxos carregam aspectos que fogem ao controle do Estado O mesmo acontece com a ordem espontânea – mesmo que gerada por 4 A partir das teorias de Denise Pumain, Lia Osório Machado sintetiza o conceito de “sistema de povoamento, que compreende um conjunto de nódulos (vilarejos, vilas e cidades), as redes de comunicação que os interligam e o equipamento e as informações que possibilitam essa conexão em um dado território” (Machado, 1999, p. 10). Essas redes e conexões entre os nódulos permitem e incentivam trocas comerciais, de pessoas e de informações. Nota-se, então, que o conceito de sistema de povoamento abriga em si os três elementos essenciais, segundo Corrêa, para a configuração de uma rede urbana – o que torna ainda mais clara a definição da urbanização como condição e produto do sistema de povoamento.

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movimentações não propositais no mercado de trabalho, de terras e serviços, a instalação da ordem depende e é limitada pelas estruturas sócio econômicas já implantadas no país (Machado, 1999). No caso da Amazônia, a necessidade de garantir a reserva de força de trabalho, por exemplo, facilitou que a ordem espontânea se instalasse, com a migração não dirigida de um grande contingente de trabalhadores para a região; no entanto, a estrutura fundiária instalada promovia uma baixa fixação no território, já que o trabalhador em geral tinha ocupações sazonais e precisava se movimentar atrás de novos trabalhos, o que impediu a consolidação no território de diversos fluxos de ordem espontânea.

Figura 2.2-1: trecho de desmatamento durante a abertura da rodovia (fonte: Foto Acervo da Folha de São Paulo)

A fase de grande atuação do Estado na região amazônica perdurou até 1985, início da crise da política do desenvolvimentismo estatal. Com a retirada de investimentos e financiamentos federais na Amazônia, as expansões das redes de infraestrutura e o apoio aos projetos de colonização foram desativados. O último grande projeto do período foi a Calha Norte, de 1985. Para Berta Becker, o que fica dessa fase é a “violência da implantação acelerada da malha tecno-política, que tratou o espaço como isotrópico e homogêneo, com profundo desrespeito pelas diferenças sociais e ecológicas, acarretando efeitos extremamente perversos” (Becker, 2004, p. 27).

2.2. A rodovia Transamazônica (BR-230)

Figura 2.2-2: início das obras de terraplenagem em trecho da rodovia (fonte: Foto Acervo da Folha de São Paulo)

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Tida como um dos carros chefes do governo militar e do PIN (Plano de Integração Nacional), a rodovia Transamazônica teve seu início com a visita do presidente Médici a regiões nordestinas muito afetadas pela grande seca de 1970. Durante a visita, em discurso na cidade de Recife,


2. Formação da rede urbana da região amazônica

Médici declarou: com o velho hábito de comandante de tropa que vela pelo seu último soldado, o chefe da nação não pode compreender a existência de compatriotas vivendo em condições tão precárias (...) Não, não me conformo. Isso não pode continuar. (Presidente Médici, em discurso na cidade de Recife, 1970).

Verdadeiro ou não, o sentimento de inconformidade do presidente com as condições de vida da população rural do nordeste deu início à rodovia que, como já foi dito, iria entregar uma terra sem homens a homens sem terra. Além disso, a construção de uma rodovia tão longa, ligando o país de leste a oeste era carregada do forte simbolismo de integração propagado pelos militares. Figura 2.2-3: construção de ponte de madeira durante as obras da rodovia (fonte: Foto Acervo da Folha de São Paulo)

Para Goodland e Irwin, “a principal justificativa invocada para a construção da Transamazônica – a integração nacional – não é fácil de ser compreendida. Seria mais fácil promover a integração do Sul – desenvolvido, rico, industrial – com o Norte – subdesenvolvido, pobre e agrícola” (Goodland e Irwin, 1975, p. 26). Mais do que motivos sociais, a principal motivação da rodovia foi legitimar a instalação dos programas que faziam parte do projeto de modernização do país. A Transamazônica era, nesse aspecto, um meio de acesso do capitalismo aos recursos naturais e um estímulo para a implantação de núcleos de povoamento que eram, em última instância, uma maneira de conter as pressões populares pelo acesso à terra – o fantasma da reforma agrária, que tanto se contrapunha aos interesses federais.

Figura 2.2-4: trecho da rodovia no município de jacareacanga (fonte: Foto Acervo da Folha de São Paulo)

Uma obra de tal porte foi decidida em um estalo de tempo e financiada com cerca de metade do orçamento previsto para a SUDAM e a SUDENE. Em uma lista da SUDAM de 1969, que apresentava os projetos rodoviários prioritários para o governo, não havia nenhuma menção à 17


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Transamazônica. De acordo com Contini, o projeto da rodovia consta em documentos oficiais pela primeira vez em 1970, em Metas e Bases para a Ação do Governo – documento que serviu de base para o desenvolvimento do PND I (Plano Nacional de Desenvolvimento I). Do discurso do presidente Médici em Recife (em de junho de 1970) ao início das obras passaram-se menos de três meses. Segundo Contini, a rodovia foi alvo de muitas críticas e questionamentos, principalmente no que dizia respeito a sua real necessidade e à falta de estudos de viabilidades técnica e financeira do projeto. Em sua tese, Contini questiona:

Figura 2.2-5: presidente Médici encaminhando-se para o local de inauguração da rodovia (fonte: Foto Acervo da Folha de São Paulo)

(...) não seria mais econômico e viável o acesso à região através dos rios navegáveis, abundantes na Região, e a partir destes, a abertura de algumas rodovias para o interior? O certo é que se desconhece a realização de estudos sérios de viabilidade econômica e técnica do projeto (Contini, 1976, p. 118).

Osny Duarte Pereira também menciona a rapidez do início das obras da rodovia e questiona a motivação para sua abertura, e afirma que tudo demonstra que a rodovia não foi produto de planejamento ou estudo, assim como não foi reivindicação dos habitantes da região. Segundo ele, a rodovia “(...) surgiu de uma acidente emocional do Presidente Médici, ao deparar com a tragédia lancinante de fome e miséria no Nordeste, por ocasião da estiagem que crestou a terra no ano de 1970” (Osny, apud Contini, 1976, p. 118). Mais do que acidente emocional, pode-se afirmar que a construção da rodovia foi uma decisão de caráter político, promocional e, apesar do pouco planejamento e estudo, estratégica para o governo militar. Figura 2.2-6: presidente Médici e o ministro Andreazza na inauguração da rodovia, em 1974 (fonte: Foto Acervo da Folha de São Paulo)

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Figura 2.2-7: marco da inauguração das obras da rodovia em Altamira, conhecido como pau do presidente (fonte: acervo pessoal, julho de 2013)

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O projeto era audacioso – inicialmente, previa a abertura e a pavimentação de 8.000 km de rodovia, funcionando como uma maneira de escoar a produção brasileira pelo Pacífico. A estrada tinha início em Cabedelo, na Paraíba, chegando à fronteira brasileira na cidade de Benjamin Constant, no Amazonas. De lá, a estrada seguiria pelo Peru e Equador até alcançar o Pacífico – uma maneira de, também, reafirmar o papel de destaque do Brasil na América do Sul. De Cabedelo a Benjamin Constant seriam pouco menos de 5.000 km de estrada. No entanto, os planos foram alterados e a rodovia, que encontrou seu ponto final em Lábrea (AM), conta hoje com 4.073 km de extensão. Mesmo com a diminuição do trajeto, a rodovia ainda é uma obra de porte faraônico – sua extensão poderia cobrir o continente europeu de Portugal à Ucrânia. Figura 2.2-8: durante a seca, a poeira é um fator de risco na rodovia. Trecho entre Altamira e Itaituba, 1991. (fonte: Foto Acervo da Folha de São Paulo)

Figura 2.2-9: garimpeiros usam a BR-230 como pista de pouso, foto de 1995. (fonte: Foto Acervo da Folha de São Paulo)

A rodovia Transamazônica foi inaugurada pelo presidente Médici em 1974, mas suas condições ainda são precárias e cerca de 2.000 km não são pavimentados, tornando-se praticamente intransitáveis durante o longo período de chuvas na região amazônica5. No período de seca, a poeira torna-se um fator de risco pois diminui consideravelmente a visibilidade do motorista. No EIA das obras de pavimentação de um trecho da rodovia assim estão descritas as condições da mesma: (...) pode-se afirmar que a Transamazônica é uma estrada em permanente estado de emergência, necessitando uma conserva intensa durante os 12 meses do ano. Durante a época das chuvas 5 O DNIT tem projeto para a pavimentação de um trecho da rodovia no estado do Pará. A iniciativa

Figura 2.2-10: buraco na rodovia (08 km) durante período de chuvas, foto de 1995. (fonte: Foto Acervo da Folha de São Paulo)

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está no âmbito do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) do governo federal. Para mais, Karina Leitão (2009).


2. Formação da rede urbana da região amazônica

Figura 2.2-11: mapa da rodovia Transamazônica (fonte: Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes - DNIT)

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Leonardo da Vinci, Pará: um olhar sobre a ocupação territorial na Transamazônica

(dezembro/maio) costuma haver interrupção no tráfego, devido à formação de atoleiros, ao rompimento de bueiros e aterros, bem como a destruição de pontes pela força das águas. Durante o verão, o perigo é representado pela poeira excessiva. Acrescente-se a isto as dificuldades dos veículos pesados vencerem as rampas acentuadas e escorregadias (Ministério do Transporte, 2002, p. 06).

Figura 2.2-12: alagamento impede o tráfego na BR-230 em Apuí, Amazonas. Foto de 2013. (fonte: http://acritica.uol.com.br/amazonia/Cheia-interdita-rodovia-Transamazonica_5_872362756. htmal)

Figura 2.2-13: buraco em trecho asfaltado da rodovia, município de Tocantinópolis (TO). Foto de 2013. (fonte: http://www.folhadobico.com.br/07/2013/ha-quase-dois-anos-cratera-oferece-perigo-na-transamazonica.php)

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Projetada e anunciada como uma grande obra de integração, orgulho do país que avança, as condições físicas da BR-230 fazem dela uma barreira durante grande parte de seu trajeto. O governo federal, no afã de implantar o projeto de modernização e transformar o Brasil no “país do futuro”, foi negligente no cálculo dos custos, esforços e tempo necessários para empreender de forma competente e responsável sua construção. A rodovia da integração é, 40 anos depois de sua inauguração, retrato fiel de um projeto de nação que desconsiderou a capacidade de navegação do rico sistema hídrico da região e as necessidades reais da população amazônica, e que ainda hoje não consegue cumprir sua função social.


2. Formação da rede urbana da região amazônica

Figura 2.2-14: trecho da rodovia em Vitória do Xingu Pará, 2013. (fonte: www.osimpactosdebelomonte.com.br/tag/transamazonica)

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3. Projetos de colonização na região amazônica


3. Projetos de colonização na região amazônica

3.1. Os conceitos de colonização e reforma agrária Segundo Contini, a ideia de colonização está intimamente relacionada e implica, necessariamente, em povoamento. No entanto, o autor destaca o caráter racionalizado e não natural desse modelo de povoamento, que prevê inclusive um processo seletivo das pessoas que serão inseridas em seu contexto (Contini, 1976). Historicamente, o termo colonização no Brasil teve diversas significações, recebendo conceituações oficiais de acordo com o cenário político e contexto social no qual o país estivesse inserido. O decreto-lei número 7.967/45 define colonização como a fixação do homem ao solo, com o objetivo de aumentar o aproveitamento econômico da área em questão e melhorar as condições de vida, saúde e instrução técnica dos habitantes de zonas rurais. Segundo o Estatuto da Terra (1964), envolve o recrutamento e seleção de pessoas a serem agrupadas em núcleos agrícolas ou agroindustriais, cabendo ao poder público o transporte, a recepção e a hospedagem dos colonos até que os mesmos estivessem fixados e integrados aos núcleos agrícolas para o quais foram selecionados. O Decreto número 59.428/66 amplia a conceituação e a abrangência do projeto de colonização, dizendo se tratar de (...) toda atividade oficial ou particular destinada a dar acesso à propriedade da terra e a promover seu aproveitamento econômico, mediante o exercício de atividades agrícolas, pecuárias e agroindustriais, através da divisão em lotes ou parcelas, dimensionados de acordo com as regiões definidas na regulamentação do Estatuto da Terra, ou através de cooperativas de produção nela prevista (Decreto 59.428/66, apud Contini, 1976, p. 24).

Ainda que distintas em aprofundamento ou abrangência, uma linha co-

mum permeia as descrições oficiais mencionadas – o acesso e fixação da população à terra produtiva. Apesar de não se tratar de uma reforma agrária, os dois conceitos estão relacionados mas não são, em absoluto, iguais. Segundo Castro de Arezzo, a colonização é o procedimento adotado em áreas pioneiras de desbravamento e ocupação, sem infraestrutura instalada, enquanto que a reforma agrária se aplica a áreas densamente povoadas onde se encontram sérias distorções no que diz respeito à posse e ao uso da terra (Arezzo, 1973, apud Contini, 1976). Ainda, os dois processos seriam distintos também no objetivo, na amplitude, na forma operacional e nas consequências econômicas: (...)a colonização, em suma, é o processo que permite a necessária continuação da incorporação de novas áreas ao processo produtivo (...) enquanto a reforma agrária é o instrumento por excelência da intensificação da agricultura e não pode ser concebido ou desenvolvido com o métodos e procedimentos da colonização (Arezzo, apud Contini, 1976, p. 31).

Também politicamente, colonização e reforma agrária exigem esforços diferentes, já que esta depende de uma vontade política e predisposição para o enfrentamento de modelos econômicos e sociais historicamente estabelecidos. Contini assim descreve a diferença política entre os dois processos: (...) a colonização não enfrenta, normalmente, grandes obstáculos de ordem institucional e política ou de interesses de grupos dominantes, principalmente porque ocorre em áreas onde os interesses não estão consolidados; a reforma agrária exige, não raro, força e vontade política suficientemente forte para se propor e executar uma modificação profunda e suficiente na estrutura de posse e uso da terra, notadamente em áreas críticas com tendência a fortes pressões sociais (Contini, 1976, p. 31).

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Leonardo da Vinci, Pará: um olhar sobre a ocupação territorial na Transamazônica

3.2. A colonização dirigida na região amazônica Na Amazônia, os sistemas de povoamento tem como fio indutor o processo de urbanização, como visto no capítulo anterior. Os movimentos espontâneos das frentes de povoamento na região também estão relacionados à fragilidade dos nódulos da rede urbana, especialmente no que tange ao mercado de trabalho, baseado principalmente em atividades extrativistas de caráter sazonal já que a propriedade da terra segue um modelo concentrador ao invés de se amparar na pequena propriedade. Esses dois aspectos se combinam para gerar um quadro de alta mobilidade da população com baixo índice de fixação no território, implicando em um processo contínuo de gênese e decadência de núcleos de ocupação.

Figura 3.2-1: escola implantada em núcleo de colonização em Uruará, 180km da BR-230 (fonte: http://bnnoticia.blogspot.com.br/2013/07/desbravadores-da-transamazonica-fara.html)

Figura 3.2-2: primeira missa na igreja implantada em Uruará, 180km da BR-230 (fonte: http://bnnoticia.blogspot.com.br/2013/07/desbravadores-da-transamazonica-fara.html)

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Também foi visto que uma das frentes de atuação oficial para a implantação do projeto nacional de modernização foi a subordinação dos sistemas de povoamento amazônicos às expectativas e necessidades de tal projeto. De uma maneira bastante simplista, pode-se dizer que houve uma instalação forçada do urbano em algumas áreas, de forma descolada de um desenvolvimento econômico prévio (com a implantação das redes técnicas – a malha de duplo controle, por exemplo), e o consequente direcionamento intencional dos fluxos populacionais para esses focos. O Plano Integrado de Desenvolvimento (PIN), criado em 1970 durante o governo Médici, é um exemplo da tentativa de gerir os sistemas de povoamento em favor do projeto governamental de modernização. Além do financiamento de grandes obras de infraestrutura (abertura de estradas, construção de hidrelétricas, grandes projetos mineradores, instalação de redes de telecomunicação), o PIN previa investimentos vultuosos em projetos de colonização dirigida na região, implantados sob o comando do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (IN-


3. Projetos de colonização na região amazônica

CRA) – muito mais voltado à colonização do que à reforma agrária. A seca nordestina de 1970 acelerou o processo de viabilização dos projetos de colonização ao oferecer ao governo a deixa midiática para apresentá-los como a salvação da carente população rural nordestina – que sofria, sim, com a seca, mas também era constantemente espoliada por um modelo produtor que expropriava a pequena propriedade rural em função da valorização do grande proprietário. O governo reconheceu a volatilidade dessa população e o iminente fluxo migratório que iria se dirigir aos já inchados centros urbanos do sudeste do país.

Figura 3.2-3: colonos da região de Uruará com a primeira safra de grãos. (fonte: http://bnnoticia.blogspot.com.br/2013/07/desbravadores-da-transamazonica-fara.html)

Foi nesse cenário de tensão social que o governo anunciou a construção de estradas e rodovias (entre elas, a Transamazônica) conectando a Amazônia ao nordeste brasileiro e a implantação de projetos de colonização nessas áreas, que absorveriam o fluxo migrante nordestino castigado pela seca. A propaganda oficial tinha tons de redenção social – segundo o presidente Médici, o objetivo era “entregar uma terra sem homens a homens sem terra” – mas na realidade tratava-se de aliviar as possíveis tensões e pressões sociais por terra sem se comprometer em absoluto com um projeto de reforma agrária (Nascimento, 2011).

Figura 3.2-4: time de futebol decolonos da região de Uruará. (fonte: http://bnnoticia.blogspot.com.br/2013/07/desbravadores-da-transamazonica-fara.html)

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4. A colonização dirigida na BR-230


4. A colonização dirigida na BR-230

4.1. O INCRA e os projetos de colonização A abertura da BR-230 (a Rodovia Transamazônica) foi um marco na implantação dos projetos de colonização dirigida, já que era em áreas no seu entorno que se instalavam grande parte dos programas de colonização. Ainda em 1970, antes mesmo da abertura total da estrada, foi solicitada ao Ministério da Agricultura a ocupação da área da rodovia e sua completa integração à economia nacional. Para tal, foram criados os Projetos Integrados de Colonização (PICs): vastos programas para o assentamento de agricultores, em faixas de 10 km ao longo da BR-230, principalmente nas regiões de Altamira, Itaituba e Marabá (Pará). No modelo de colonização dirigida implantado, as atribuições do INCRA abrangiam a captação dos recursos fundiários (com a avaliação e indenização das benfeitorias selecionadas e a posterior titulação de posse da propriedade em nome dos colonos), a organização territorial, a administração do projeto, o transporte dos colonos até as áreas de ocupação, a instalação de infraestrutura física (estradas vicinais, poços de captação de água, distribuição de energia elétrica), entre outras. Os serviços básicos de saúde e educação (Figura 4.1-1) também deveriam ser providenciados pelo INCRA até que fossem estruturados adequadamente e assumidos por agências designadas especificamente para a tarefa. As instalações básicas da casa, dos lotes destinados à produção, bem como os instrumentos necessários para o início da lavoura (ferramentas, sementes, mudas) e orientações básicas de técnicas de cultivo também eram de responsabilidade do INCRA. O crédito rural necessário para os colonos estava a cargo do Banco do Brasil e o sistema de comercialização da produção era regulamentada por três organismos: a Comissão de Financiamento da Produção - CFP fixava o preço mínimo, a Companhia Brasileira de Alimentação - COBAL adquiria a produção e a Companhia Brasileira de Armazenamento - CIBRAZEM (Figura 4.1-2) era responsável pelo estoque e armazenamento do produto.

Aos colonos cabia o compromisso contratual de residir no lote urbana e explorar o lote produtivo com sua família, preservando 50% do mesmo como área de reserva e manutenção da floresta. Além disso, ficava estabelecido que o colono não poderia, sem anuência prévia do INCRA, ceder, arrendar ou hipotecar o lote recebido antes de decorridos cinco anos da obtenção do título de posse no Registro de Imóveis (Contini, 1976). O planejamento do INCRA criava a regulamentação que orientava a atuação do governo e subordinava os beneficiários ao mesmo tempo em que estabelecia formas arbitrárias de organização do espaço (Leal, 2010). Os projetos de colonização eram, assim, uma perpetuação do modelo exógeno de ocupação, que em pouco ou em nada levavam em consideração as particularidades do ambiente em que se instalavam e da população a quem deveriam atender. Os recursos necessários para a implantação dos projetos seriam provenientes dos 30% da arrecadação de impostos que passaram a ser destinados ao PIN. O governo previa a instalação de 70 mil famílias na região da Transamazônica nos primeiros três anos de projeto. Depois, o decreto-lei número 67.557/70 anunciava o assentamento de 100 mil famílias, de maneira compatível com o avanço das obras de infraestrutura e a disponibilidade de recursos. Mesmo assim, ao final de 1974, apenas cerca de 5.700 famílias tinham se estabelecido nos projetos de Altamira, Marabá e Itaituba.

4.2. O fracasso dos projetos de colonização Diversos fatores contribuíram para o fracasso do projeto. Esperava-se, inicialmente, encontrar uma região relativamente plana com solos altamente férteis, no entanto as declividades encontradas dificultavam a im29


Leonardo da Vinci, Pará: um olhar sobre a ocupação territorial na Transamazônica

plantação de lavouras e o solo não apresentava fertilidade uniforme6, com grandes áreas impróprias para as culturas previstas pelo programa. O projeto também previa que a fixação de uma comunidade agrícola fosse agilizada pela permanência dos funcionários contratados pelas empreiteiras para a abertura da estrada na região após a conclusão dos trabalhos, tornando-se agricultores. Contini transcreve um trecho de uma entrevista do então Ministro da Agricultura, Cirne Lima, ao jornal O Estado de São Paulo, em julho de 1970, na qual o Ministro afirma:

Figura 4.1-1: escola implantada em Rurópolis, Pará (fonte: www.panoramia.com/user/489716/tags/RURÓPOLIS-PA)

Uma cláusula de contrato com as firmas empreiteiras impõe que os trabalhadores serão recrutados na região seca do Nordeste. Serão eles transportados com suas famílias para os locais de trabalho e fixados nos núcleos adjacentes aos acampamentos. As instalações dos acampamentos e dos núcleos adjacentes permanecerão no local após as obras. (Cirne Lima, para O Estado de São Paulo, 1970).

Essa premissa também transparece no depoimento do Ministro do Planejamento, Reis Velloso, ao Jornal do Brasil em junho de 1970: Basicamente, a estruturação do sistema de colonização da área terá como ponto de partida a própria abertura das estradas. De acordo com o desenvolvimento das obras, ficarão pelo caminho – segundo os contratos assinados com as firmas construtoras – os “povoados” formados pelas equipes de trabalhadores. (Reis Velloso, para o Jornal do Braisl, 1970).

6 Acreditava-se que a exuberância da vegetação nativa amazônica fosse sinal da presença de um Figura 4.1-2: armazém da CIBRAZEM em Rurópolis, Pará (fonte: www.panoramia.com/user/489716/tags/RURÓPOLIS-PA)

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solo rico e fértil. Somente a partir dos estudos e mapeamentos da região realizados no escopo do projeto RADAMBRASIL se comprovou a baixa fertilidade natural dos solos amazônicos.


4. A colonização dirigida na BR-230

Apesar do incentivo oficial, poucos foram os trabalhadores responsáveis pela abertura da estrada que permaneceram e adotaram a agricultura como nova atividade econômica. Em parte, pelas dificuldades técnicas não previstas para a abertura da rodovia, que exigiu o emprego intensivo de máquinas de grande porte com baixa relação trabalho/capital, diminuindo a contratação de mão de obra estimada inicialmente. Também, a operação dessas máquinas previa o emprego de mão de obra especializada e, consequentemente, mais bem remunerada que optava por seguir se deslocando com a obra ao invés de fixar residência nos núcleos de colonização (Contini, 1976). Outro fator importante para o fracasso do projeto foi a dificuldade da população assentada em se adaptar ao novo ambiente, fosse pelas condições climáticas, as enfermidades típicas da área de floresta tropical ou as condições de vida que os colonos encontravam nas áreas de ocupação. A Sra. Eleonora Mohr e a Sra. Julinda Lazarini (antigas moradoras de um dos projetos de colonização do programa Altamira 1), em depoimento a Manuel Ribeiro de Castro, comentam:

Figura 4.2-1: cartaz do Ministério do Interior e do Banco da Amazônia, incentivando os projetos de colonização. O cartaz diz: “Muitas pessoas estão sendo capazes, hoje, de tirar proveito das riquezas da Amazônia. Com o aplauso e incentivo da SUDAM, com o aplauso e incentivo do Banco da Amazônia. O Brasil está investindo na Amazônia e oferecendo lucros para quem quiser participar desse empreendimento. A Transamazônica está aí: a pista da mina de ouro”. (fonte: www.blogdocolares.com/2010/09/veja-como-o-estado-brasileiro.html

Fomos levados lá para o lado de Marabá, quando chegamos lá soubemos que dava malária, todo mundo sabia que dava malária, daí, ninguém tirou lote para lá. Todo mundo ficou meio cabreiro com aquele lado. Daí, viemos para cá. Até na reserva indígena as terras já estavam todas ocupadas. Não tinha vicinal, era só a Transamazônica, daí foi que meu marido escolheu o lote aqui no Km 165, todos os que vieram conosco escolheram lotes na mesma localidade, pelo menos assim podíamos cuidar uns dos outros (...) No lote, não tinha nada do que haviam nos prometido, nada! Nadinha, nadinha! Só mata pura. [sic] (Sra. Eleonora Mohr, em depoimento a Castro, 1999, p. 25).

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Leonardo da Vinci, Pará: um olhar sobre a ocupação territorial na Transamazônica

(...)morávamos em São Paulo e lá não tínhamos terra, nem oportunidade de consegui-la. Então resolvemos partir para a Transamazônica pois na época tinha um grande incentivo, o governo federal oferecia toda uma condição, que nos parecia vir para o paraíso, aqui as terras seriam muito boas, teríamos uma casa boa para morar, vaca de leite (...) mostravam um lugar muito bonito, a esperança da gente em vir para cá era muito grande. Quando chegamos aqui, a realidade era bem outra, Não tinha nada, nada mesmo. Só a Transamazônica e a mata na beira da estrada. Foi isso realmente que a gente encontrou aqui. Na televisão em São Paulo, quando falavam do projeto, mostravam uma estrada. Tinha tudo. Haviam também outras promessas que a gente teria escola para os filhos, posto de saúde. Teria tudo, no entanto, quando a gente chegou só tinha mata. [sic] (Sra. Julinda Lazarini, em depoimento a Castro, 1999, p. 34).

A taxa de desistência foi incrementada, também, pela precariedade dos serviços básicos de saúde, educação e abastecimento de água e pela dificuldade ao acesso a itens básicos de consumo. Sobre isso, os depoimentos de diversos antigos colonos dos projetos de colonização na área de atuação programa Altamira 1 a Manoel Ribeiro de Castro são bastante reveladores:

Figuras 4.2-2 e 4.2-3: o trasnporte conhecido por pau de arara ainda é recorrente na região, principalmente como transporte escolar em comunidades afastadas. (fonte: http://www.jequiereporter.com.br/ blog/2010/04/04/projeto-proibe-uso-de-pau-de-arara-no-transporte-escolar/

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Se faltasse um quilo de sal, necessitava vir até Altamira. Para chegar em Altamira dependíamos dos ditos paus-de-arara que o INCRA fornecia e que os colonos iam assim como se fosse uma sardinha dentro de uma lata, se tirasse o pé do local, não conseguia retornar. Esse carro fazia esse percurso geralmente uma vez por mês porque fazia por setores e aí nos primeiros seis meses os agricultores recebiam uma espécie de salario que o INCRA fornecia e aí eles iam receber esse salário e fazer compras [sic] (Sra. Julinda Lazarini, em depoimento a Castro, 1999, p. 27).


4. A colonização dirigida na BR-230

A assistência médica acontecia por meio da Ação Social, que havia instalado aqui no Km 141, apenas com um enfermeiro que prestava os primeiros socorros, porque no Km 100 e quando acontecia problemas sérios éramos obrigados a nos dirigir até lá, o que era bastante difícil porque não havia carro à disposição, éramos obrigados a esperar carona com o doente. Os motoristas viajantes nos orientavam que quando fosse caso de doença grave, nós colocássemos um pano vermelho na beira da estrada que eles paravam [sic] (Sra. Nilda Urban, em depoimento a Castro, 1999, p. 27).

perança que com o passar do tempo melhorasse e a gente chegasse a gostar daqui [sic] (Sra. Neide Henrique, em depoimento a Castro, 1999, p. 28).

Com o eventual fracasso do modelo de ocupação dirigida por meio da pequena propriedade, o governo passou a redirecionar os recursos para as ocupações geradas em função de grandes projetos agropecuários e mineradores. A preocupação midiática de sanar os problemas do homem nordestino que sofria com a seca foi deixada de lado em favor da real intenção de ocupar a Amazônia com fins de integração da região à produção capitalista.

No caso do projeto Altamira 1, a diferença social e econômica entre os colonos também foi um fator de dificuldade, já que ao mesmo tempo que se implantaram núcleos de colonização dirigida para pequenos proprietários (com lotes de no máximo 100 hectares), o governo também facilitou a instalação de grandes latifundiários na região, que receberam incentivos (isenção de impostos e o direito de exploração madeireira e de minérios, por exemplo) para a compra de áreas enormes, que variavam de 30.000 hectares a 100.000 hectares de terra (Castro, 1999). A Sra. Eleonora Mohr disse, em depoimento a Castro (1999, p. 12): “(...) nós achávamos que aqui ia ficar [sic] apenas pessoas com as mesmas condições sociais e econômicas. Quando chegamos, a diferença era grande desde a origem cultural até a forma de viver” [sic]. A combinação de todas essas dificuldades, e provavelmente outras mais, culminaram no abandono, por parte dos colonos, dos núcleos implantados nos projetos de colonização dirigida. Muitos ficaram por falta de alternativa – em depoimento a Castro, a Sra. Neide Henrique afirmou: (...) nos três primeiros anos se tivesse podido voltar teria voltado. Depois eu desisti de voltar, mas muita gente voltou. Só não voltei por não ter condições de voltar. A gente tinha no fundo uma es-

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5. Urbanismo Rural


5. Urbanismo Rural

5.1. José Geraldo C. Camargo e o urbanismo rural Espacialmente, os projetos de colonização implantados ao longo da rodovia Transamazônica eram baseados em um conceito de planejamento estratégico conhecido como planejamento urbano-rural ou urbanismo rural. Os objetivos e diretrizes desse tipo de organização do espaço foram apresentados em uma publicação do Ministério da Agricultura do ano de 1972, de autoria de José Geraldo da Cunha Camargo – à época, arquiteto urbanista do INCRA. José Geraldo da Cunha Camargo, carioca, nascido em 1925, formou-se arquiteto e urbanista pela Faculdade Nacional de Arquitetura e Urbanismo do Rio de Janeiro (atual UFRJ), nos anos de 1953 e 1961, respectivamente. Profissionalmente, atuou no Instituto Nacional de Imigração e Colonização (INIC), órgão antecessor do INCRA, e foi professor do curso de urbanismo da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Em 1970, José Geraldo passou a integrar o Grupo de Trabalho para a Amazônia (GT-PLAN) da Secretaria de Planejamento e Coordenação do INCRA. Quase toda obra escrita e projetual de José Geraldo da Cunha Camargo versa a respeito das necessidades da vida no campo, do planejamento urbano-rural e da implantação de núcleos de colonização em áreas de ocupação pioneiras, sendo ele autor do projeto de pelo menos quarenta agrovilas, sete agrópolis e uma rurópolis para a região da rodovia Transamazônica. Para Camargo, o termo urbanismo rural se referia a uma estratégia de colonização baseada no conhecimento técnico, no planejamento físico-espacial, sociocultural e econômico com objetivo de promover o desenvolvimento integrado do meio rural. O conceito foi desenvolvido como uma tentativa de correção de alguns aspectos que Camargo identificou como motivos de fracasso dos antigos Núcleos Coloniais Oficiais de

São Paulo7 - a estrutura física dos núcleos, mesmo contando com algum suporte e assistência governamental, não incentivava a fixação do colono mais bem sucedido, que vendia seu lote rural e partia para cidade mais próxima a fim de progredir socialmente. Segundo o autor, (...) a ausência de núcleos urbanos adaptados aos problemas rurais foi o principal foi o principal motivo do êxodo do homem do campo, qualificado e útil, para as cidades, provocando, com o passar dos anos, seleção negativa de valores no meio rural e o surgimento da triste figura do “jeca”, incapaz e analfabeto, morando isolado em uma palhoça (Camargo, 1972, p. 05).

A intenção do urbanismo rural seria, então, tirar do isolamento e da estagnação as populações rurais atrasadas, para introduzi-las na faixa produtiva da nação. (Camargo, 1972). Ainda assim, o autor admite que em alguns casos seria quase impossível superar, a curto prazo, a decadência provocada por décadas de isolamento e que, nessas situações, pouco progresso seria feito com a população adulta. O urbanismo rural seria um meio de preparar as novas gerações – as crianças do meio rural – para que estas fossem produtivas e bem sucedidas. Camargo também destaca que é de extrema importância para o sucesso de uma área de colonização o cuidado no momento de “compor” a comunidade que seria assentada, misturando pessoas de lugares diferentes 7 Parte da política de colonização do governo paulista a partir da República, os Núcleos Coloniais foram instalados em áreas de culturas voltadas para a exportação como a cafeicultura e a bananicultura. No plano do discurso oficial, Núcleos Coloniais apresentavam-se como possibilidade concreta de incentivo à pequena propriedade; entretanto, revelaram-se, na maioria dos casos, como reserva de mão-de-obra ou como frente pioneira para posterior expansão de culturas de exportação. A política de colonização constituiu-se num dos instrumentos da gestão conservadora sobre o território na medida em que manteve intocada, em grande medida, a estrutura do latifúndio e os interesses agro-exportadores. Para mais, Eduardo Carlos Pereira, 2006.

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Leonardo da Vinci, Pará: um olhar sobre a ocupação territorial na Transamazônica

do país, com origens sociais e étnicas distintas, evitando ao máximo que um grupo social inteiro fosse assentado junto. Dessa forma, buscava-se quebrar o padrão de comportamento das pessoas para que não viessem a se instalar na nova área de ocupação vícios e costumes antigos. A convivência com outras pessoas, em um ambiente novo e melhor preparado, além de orientado por um planejamento social e espacial, seria responsável pelo cultivo de novos padrões de comportamento – segundo o autor, isto garantiria que o comportamento de um indivíduo seria controlado pelo coletividade com relação às suas tendências negativas de desvio (Camargo, 1972). Após a cuidadosa seleção e composição da comunidade a ser assentada, o próximo passo seria prepará-la, orientando as pessoas e conscientizando-as das vantagens de viver em uma sociedade rural-urbana. Essa conscientização, segundo o autor, seria tão ou mais importante do que o ensino de técnicas básicas de agricultura e de medidas médico-sanitárias. Para Camargo, essa doutrinação dos colonos e migrantes é muito importante porque, muitas vezes, não sendo possível haver seleção rigorosa, há indivíduos simples, de cultura rudimentar, que não podem compreender sem as devidas explicações as inovações que desconhecem (Camargo, 1972, p. 08).

Figura 5.1-1: José Geraldo da Cunha Camargo. (fonte: álbum de fotografias publicado e distribuído pelos formandos de 1953 da Faculdade Nacional de Arquitetura da Universidade do Brasil).

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Em alguns casos, como no projeto Altamira 1, o controle da população a ser assentada e a composição da nova comunidade atingingiram limites extremos, com o INCRA adotando a estratégia de compor as comunidades com no máximo 75% de migrantes nordestinos. Os outros 25% deveriam vir de outras partes do país, onde houvesse “maior nível de conhecimento de técnicas agrícolas” (Projeto Altamira 1, Secretaria de Planejamento e Coordenação do INCRA, apud Castro, 1999, p. 15).


5. Urbanismo Rural

Os colonos deverão ser recrutados sobretudo nas áreas de tensões sociais do nordeste, que contribuirá com cerca de 75% do contingente (...) os outros 25% deverão ser constituídos de colonos com razoável nível de conhecimento da tecnologia agrícola, interpolando-se as respectivas parcelas com a de nordestinos, a fim de permitir rápida assimilação por parte destes. (Projeto Altamira 1, Secretaria de Planejamento e Coordenação do INCRA, apud Castro, 1999, p. 15).

jetificação da população rural, que seria objeto do planejamento urbano-rural.

5.2. O roteiro de planejamento

As aspirações e necessidades da comunidade assentada deveriam ser ouvidas pela equipe responsável pelo planejamento da área, mas deveriam ser relativizadas e o processo não deveria ser participativo, já que estava nas mãos de uma equipe técnica capacitada .

O planejamento das áreas de colonização seguia um roteiro, apresentado por Camargo na publicação Urbanismo Rural, de 1972. São quinze etapas anteriores à implantação dos núcleos de ocupação, que enfocam principalmente o planejamento social e a “urbanização” das áreas.

O cirurgião quando trata de um paciente não vai se informar com este sobre a técnica operatória, porém irá utilizar seus conhecimentos para curá-lo. A equipe de Planejamento deve proceder como os médicos, auscultando os colonos, diagnosticando as causas de seus males e oferecendo tecnicamente as soluções adequadas (Camargo, 1972, p. 08).

Apresentam-se, brevemente, os quinze passos do planejamento urbano-rural, a saber:

Já se nota, claramente, a reprodução do padrão exógeno de ocupação, planejado por equipes que não conhecem intimamente as necessidades e desejos das comunidades rurais da região amazônica. Nota-se no discurso de Camargo certo grau de preconceito, como se as populações rurais no geral fossem mal preparadas, ignorantes e com tendências a comportamentos nocivos e danosos para si e para os outros. Por isso mesmo, o autor reforça o tempo todo a necessidade de controle na formação da nova comunidade, a necessidade de serem forçados hábitos civilizados e a limitação da participação da comunidade no planejamento da área que esta iria ocupar. Nesta visão, há uma ob-

1.formação da equipe técnica e divisão em setores; 2. análise dos recursos naturais; 3. estudo da viabilidade econômica; 4. seleção dos recursos humanos (equipe) de acordo com o nível de tecnologia a ser empregado na área; 5. levantamento das informações relativas aos serviços sociais e culturais; 6. seleção das equipes responsáveis pelos serviços jurídicos, sociais, culturais, financeiros, entre outros; 37


Leonardo da Vinci, Pará: um olhar sobre a ocupação territorial na Transamazônica

7. instituição da Coordenação de Planejamento e Projetos (os outros setores fazem parte desta coordenação); 8. levantamento das informações referentes a cada setor (mapas, fotografias aéreas, filmes, fotos, plantas, etc.); 9. levantamento do material e do recurso financeiro destinado a cada equipe; 10. levantamento dos órgãos federais, estaduais, municipais ou até mesmo internacionais que possam colaborar com o projeto;

Através do roteiro de planejamento, pode-se perceber uma forte preocupação em identificar e garantir que as aptidões e características naturais das áreas fossem aproveitadas e respeitadas – ao passo que a população, como visto anteriormente, era objeto de planejamento e devia ter sua participação e anseios limitados e relativizados. O projeto efetivo dos núcleos a serem ocupados viria na sequência do item 15, quase como uma garantia que, ao se seguir a lista com precisão, o desenvolvimento social e econômico seria certo. Estaria tudo de acordo com o planejado no escritório do INCRA. A leitura do capítulo anterior faz ver, no entanto, que não foi essa a realidade.

11. intercâmbios de informações e estudos entre as seções integrantes do planejamento, para evitar a dualidade de trabalho; 12. elaboração do anteprojeto de zoneamento conforme aptidão das áreas, determinando o grau de exploração tecnológica dos recursos naturais e os recursos humanos que serão utilizados (em número e tipo de qualificação); 13. estudo da viabilidade econômica da combinação dos Recursos Naturais com os Recursos Humanos (nesse caso, os colonos a serem assentados) dentro do contexto regional, nacional e internacional; 14. estudo da estimativa provável da renda per capita nos diversos setores de produção, com base no nível de desenvolvimento idealizado para a área em estudo; 15. estudo da distribuição racional da população, “(...) de maneira que o homem do campo possa desfrutar das condições sociais e culturais das cidades, formando comunidades e sociedades progressistas” (Camargo, 1972, p. 09). 38

5.3. O modelo espacial do urbanismo rural A distribuição da população no espaço a ser colonizado deveria respeitar padrões de deslocamento casa-trabalho e casa-escola, a serem definidos em função do tempo gasto no trajeto. A avaliação do tempo médio para os deslocamentos seria estimado com base no nível de desenvolvimento da comunidade projetada, o que definiria o meio de locomoção mais comum. A distância casa-escola primária seria prioritária, prevendo que essas crianças se deslocariam a pé e estipulando que a distância máxima para esse deslocamento deveria ser de 15 minutos. Para otimizar a ocupação das áreas e seu desenvolvimento, o modelo se orientava pela existência de três tipos de núcleos, configurando uma cadeia de complexidades funcionais e demográficas: as agrovilas, as agrópolis e as rurópolis.


5. Urbanismo Rural

Figura 5.3-1: esquema de planejamento dos nĂşcleos urbano-rurais. (fonte: Camargo, 1972, p. 11).

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As agrovilas constituem o primeiro tipo de núcleo previsto pelo planejamento, um bairro rural com a finalidade de integrar socialmente seus habitantes, “oferecendo-lhes condições de vida em moldes civilizados” (Camargo, 1972, p. 10). Deveria contar com uma área central que abrigasse uma escola primária (se possível, também creche e jardim de infância), sede administrativa, centro de convívio social, posto de saúde, templo ecumênico, áreas para o lazer infantil e adolescente (com play-grounds e praças de esporte) e coreto. Próximos a esse núcleo central de serviços, deveriam estar um pequeno armazém de consumo, um clube social e esportivo e, se fosse necessário, um armazém de produção.

Figura 5.3-2: trabalho nos lotes produtivos. (fonte: Camargo, 1972, p. 25).

Os moradores da agrovila deveriam residir nos lotes urbanos que podiam variar de 500 m2 a 3000 m2, dependendo do nível de desenvolvimento e da filosofia de seus habitantes. Nesses lotes, estavam previstos espaços para horta, pomar e criação de animais de pequeno porte8 (Figura 5.3.-3). A população inicial de uma agrovila seria definida pelo número de crianças necessárias ao funcionamento autônomo da escola, variando conforme o projeto da escola a ser implantada. Partindo da população infantil em idade escolar, obtinha-se a população adulta. Na época, a taxa de crianças em idade escolar era de 12% a 14% da população, resultando em agrovilas de 500 a 1500 habitantes – entre 100 e 300 famílias. As agrópolis seriam pequenos centros agroindustriais, culturais e administrativos. Teriam uma área de influência de aproximadamente 10 km de raio, na qual poderiam estar entre 8 e 10 agrovilas sob sua jurisdição. A população da agrópolis, além de agricultores, deveria contar com 8 O modelo de organização do urbanismo rural previa que com o desenvolvimento das atividades nos lotes produtivos até um estágio de cultura intensiva a produção para subsistência deixaria de ser necessária, pois seria mais barato comprar os itens para a alimentação da família do que produzi-los

Figura 5.3-3: agricultura de complementação de subsistência. (fonte: Camargo, 1972, p. 15).

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em pequena escala.


5. Urbanismo Rural

Figura 5.3-4: esboรงos de arranjos espaciais para agrovilas (fonte: Camargo, 1972, p. 13).

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demanda quanta à das agrovilas de sua área de influência), ambulatório médico-odontológico e enfermaria. Também deveriam ser previstos um centro administrativo, uma área ecumênica para templos, praça cívica e cultural, escolas de artesanato, serviço de Segurança Pública, centro telefônico, Correios e Telégrafo e cemitério. A agrópolis deveria ter, também, um Núcleo de Emergência (Figura 5.35) – áreas com alojamento e estruturas sanitárias simples para receber o excedente populacional que chegasse à área de colonização, até que fosse feita a seleção e o assentamento da população em outras agrovilas e agrópolis. Segundo Camargo, (...) o objetivo principal desse núcleo é evitar o nascimento de ‘favelas’ e também controlar a entrada dos migrantes e forasteiros que chegam ao local, fazendo-se a devida triagem e seleção a fim de que os assentamentos sejam feitos regularmente, sem a improvisação e pressa oriundas da tensão social que provocam as famílias que vem inesperadamente para a área do projeto (Camargo, 1972, p. 16). Figura 5.3-5: chegada de migrantes a um Núcleo de Emergência (fonte: Camargo, 1972, p. 19).

pessoas que trabalhem em atividades tipicamente urbanas (comercio, indústria, assistência médico-social, entre outras). O cálculo da população inicial se dava da mesma forma que para as agrovilas, prevendo entre 1500 e 3000 habitantes (entre 300 e 600 famílias). O planejamento da agrópolis devia contar com áreas para futura expansão espacial e populacional. Além dos itens presentes nas agrovilas, as agrópolis deveriam ser dotadas de escola secundária (para atender a toda sua região de influência), comércio diversificado, cooperativas, pequenas agroindústrias, armazéns, patrulhas mecanizadas, oficinas (que atendessem tanto à própria 42

Para as agrópolis que estivessem localizadas às margens de rodovias e outras vias importantes de tráfego, era prevista uma infraestrutura de apoio, com postos de gasolina, restaurantes, pousadas para os viajantes. Esperava-se, dessa maneira, aumentar a renda da comunidade em questão. As rurópolis se constituiriam como pequenos polos de desenvolvimento, funcionando como centros principais de comunidades rurais estruturadas a partir de agrovilas e agrópolis. Seu raio de influência abrangeria uma área de 70 km a 140 km de raio, prevendo uma população inicial de 20.000 habitantes. Além das estruturas previstas para as agrópolis, a rurópolis deveria com escolas técnicas, centros de artesanato, escolas


5. Urbanismo Rural

de música e artes plásticas, escolas normais para a formação de professores, hospital e maternidade, cinemas, teatros e bibliotecas públicas. Prevendo a estruturação entre os núcleos, o modelo de urbanismo rural determinava que as agrovilas não poderiam estar a mais de 10 km de distância de uma agrópolis (ou de outro núcleo que fosse dotado de escola secundária), as agrópolis deveriam estar entre 20 km e 50 km de distância de uma rurópolis ou cidade que contasse com escolas técnicas de nível médio e as rurópolis deveriam estar a no máximo 500 km de uma cidade9 (se houvesse uma na região) e entre 140 km e 280 km de outra rurópolis. Os projetos urbanísticos desses núcleos de colonização deveriam obrigatoriamente estar acompanhados de legislação competente, código de obras, plano institucional e administrativo que fosse capaz de prever formas de gestão para as diversas fases de desenvolvimento de um dado núcleo. Apesar de hierarquizada, a concepção desenvolvida por Camargo buscava ser flexível, de modo a permitir que os núcleos instalados pudessem ascender de categoria no decorrer do tempo. Isso se daria com o adensamento gradual da ocupação, na velocidade que a tecnologia e a especialização agrícola permitisse – desse modo, seria garantido o acesso à infraestrutura e equipamentos comunitários. Segundo Cardoso e Lima (2009), os esquemas espaciais propostos tinham a premissa de setorização dos usos, da modulação do assentamento e da garantia do afastamento entre o uso habitacional e a rodovia. 9 Nessa hierarquia, era considerada cidade “uma comunidade que tenha população superior a 50.000 habitantes, com centro universitário, cursos técnicos e implementos socioeconômicos comFigura 5.3-6: esquema espacial de uma agrópolis (fonte: Camargo, 1972, p. 18).

patíveis com um núcleo polarizador de desenvolvimento” (Camargo, 1972, p. 21). Assim, excluíam-se dessa definição quase a totalidade dos centros urbanos regionais sedes de município que, segundo Camargo, (1972, p. 21) “muitas vezes não possuem população suficiente e nem infraestrutura socioeconômica e cultural para serem considerados sequer como agrópolis”.

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5.4. O urbanismo rural implantado na Transamazônica Durante as obras de abertura da Transamazônica, teve início o processo de ocupação das terras ao longo da rodovia. No entanto, segundo Camargo, essa ocupação foi desordenada e fruto de invasão. Não teria existido tempo hábil para o levantamento de dados e o planejamento necessário para o assentamento de migrantes. O autor afirma que “diante dessa situação de fato, o INCRA teve que tomar decisões imediatas (...) e saiu em campo disciplinando a ocupação nas margens da estrada e iniciando o processo de colonização” (Camargo, 1972, p. 26).

Figura 5.3-7: praça cívica em Rurópolis, Pará. O atual município de Rurópolis foi a única rurópolis construída na BR-230. (fonte: www.panoramia.com/user/489716/tags/RURÓPOLIS-PA)

Os conceitos do urbanismo rural foram adaptados pelo Grupo de Trabalho para Planejamento da Amazônia (GT-PLAN) gerando um Módulo de Colonização (Figura 5.4-1), que tinha como objetivo uma organização administrativa racional e um menor custo de implantação para o projeto. O Módulo de Colonização teria formato retangular, com base de cerca de 50 km ao longo do eixo da rodovia e lados de cerca de 14 km perpendiculares a ela, penetrando suas margens para o interior. A rodovia cortava o módulo em duas partes de áreas iguais. Na parte central do módulo, junto à rodovia, deveria ser instalada uma agrópolis que daria apoio ao conjunto urbano-rural e quatro agrovilas; ao longo das estradas vicinais, mais dezoito agrovilas. Em torno da área da agrópolis haveria uma estrada perimetral de onde partiriam as estradas vicinais; os lotes para produção rural estariam localizados nas margens da rodovia ou das estradas vicinais, para facilitar o transporte da produção. Os vértices do módulo de colonização ficariam reservados para o planejamento de futuras agrópolis, que só seriam projetadas e construídas quando se implantasse o módulo de colonização adjacente.

Figura 5.3-8:igreja em Rurópolis, Pará. (fonte: www.panoramia.com/user/489716/tags/RURÓPOLIS-PA)

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A realização dos projetos de acordo com o urbanismo rural e até mesmo o módulo de colonização adaptado pelo GT-PLAN encontraram


5. Urbanismo Rural

Figura 5.3-9: esquema espacial de uma rur贸polis. (fonte: Camargo, 1972, p. 20)

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Leonardo da Vinci, Pará: um olhar sobre a ocupação territorial na Transamazônica

problemas em sua implantação e funcionamento. Os colonos cujos lotes produtivos estavam próximos às margens da rodovia fixavam residência nos lotes urbanos das agrovilas, conforme previsto em projeto e em contrato; no entanto, os colonos cujos lotes estavam mais afastados ou aqueles que eram assentados de agrovilas internas à rodovia, acabam por residir nos próprios lotes produtivos, abandonando os lotes urbanos e a convivência social em “moldes civilizados” (Camargo, 1972) que o planejamento rural-urbano previa e objetivava. Isso se dava, principalmente, pela distância do lote, pela precariedade da infraestrutura de apoio necessária ao transporte (charretes ou animais de carga, por exemplo) e pela necessidade de algumas culturas realizadas exigirem vigilância e trato constante do agricultor e sua família. A dificuldade de instalação de agrópolis pode ser resultante do mau funcionamento das agrovilas, já que se tratava de um sistema integrado de colonização e povoamento. Também, os custos para a implantação da infraestrutura social e física exigidas pelos projetos das agrópolis se mostrou mais alto do que o previsto, não havendo recursos suficientes para realizar o previsto (Contini, 1976).

Figura 5.3-10: esquema espacial de planejamento rural nas proximidades de uma cidade (fonte: Camargo, 1972, p. 12)

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Outras dificuldades encontradas na região da Transamazônica dizem respeito à penetração dos projetos no território. Após a ocupação das margens da rodovia, o processo passou a ser interiorizado, conforme o planejado. Mesmo assim, a penetração no território a partir do módulo de colonização estabelecido atingia, no máximo, 15 km de cada lado da rodovia – para além disso, seria necessário a complementação do processo de ocupação pela criação de pequenas e médias empresas agropecuárias. Isso não aconteceu, devido a fatores como a dificuldade de locomoção e a baixa qualidade (ou inexistência) da infraestrutura necessária. Assim, a implantação do urbanismo rural na região da Transamazônica ficou restrita à margem imediata da rodovia, não configurando as grandes comunidades rurais-urbanas idealizadas por Camargo.


5. Urbanismo Rural

Figura 5.4-1: módulo de colonização utilizado na BR-230 (fonte: Camargo, 1972, p. 49)

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6. Estudo de caso: agrovila Leonardo da Vinci, Parรก


6. Estudo de caso: Agrovila Leonardo da Vinci

6.1. História A agrovila Leonardo da Vinci foi implantada em 1971, na altura do 18 km da rodovia Transamazônica, sendo uma das agrovilas criadas pelo INCRA dentro do contexto dos projetos Altamira, Marabá e Itaituba de colonização da região. De acordo com um dos primeiros moradores da área, Sr. Orlando, entrevistado em julho de 2013, a infraestrutura da vila não estava pronta quando os colonos começaram a chegar. O INCRA tinha providenciado a limpeza da área onde seriam construídas as casas, mas foram os primeiros colonos os responsáveis pela montagem das instalações iniciais – um barracão de lona, onde ficaram alojados em um primeiro momento, o armazém da COBAL, um depósito de ferramentas e uma pequena farmácia. Aqui, quando começou era só mato. Eles tinham derrubado essa área aqui, que tem as casas, até onde tem a última carreira de casa. Aqui era cheio de juquira (tipo de vegetação arbustiva de porte baixo, daninha). A gente esperou uma semana ali do outro lado da lagoa, que a gente fez um barracão de lona. Aí que veio um trator e eles começaram a limpar aqui. Desceu limpando. Primeiro vinha um grupo de carpinteiros, acho que eram cinco carpinteiros, aí faziam uma casona comprida para botar a COBAL, que era o armazém do governo. Na frente para vender ferramenta, toda a ferramenta que o cabra usasse tinha na frente, em um cômodo. No meio a COBAL, que era o armazém do governo, e no canto de lá uma farmácia. Quando tivesse tudo montado, aí que começava a fazer a vila [sic] (Sr. Orlando, morador da agrovila, em entrevista em julho de 2013).

Depois de montadas as instalações da COBAL, teve início a vila propriamente dita. Foram construídas algumas unidades habitacionais e uma escola de educação infantil. Os colonos foram trazidos para a região de

ônibus ou avião, com suporte financeiro do INCRA. Assim que chegaram para se instalar nas agrovilas da região, foram alojados inicialmente em um dos Núcleos de Emergências nas proximidades de Altamira, em uma área conhecida como João Pezinho. Lá, os colonos passaram pelo processo de seleção para a montagem das comunidades (de acordo com o roteiro do urbanismo rural) para serem encaminhados para as vilas. De acordo com Sr. Orlando, Leonardo da Vinci recebeu gente de vários estados do país, mas a maioria tinha como origem o nordeste, principalmente a região seca do Ceará. (...) trazia de todo o lugar do Brasil. Mas acho que a maioria era do nordeste, sim, por causa que era muito seco por lá. Aí depende, tinha uns barracões grandes lá no João Pezinho (...) Levava primeiro para lá. Assim, era aqueles barracões compridos, aí ia separando e trazendo gente de tudo que é canto, mais do Ceará, aí misturava tudo. Fazia uma mistura [sic)] (Sr. Orlando, morador da agrovila, em entrevista em julho de 2013).

Outra parte dos moradores, como o próprio Sr. Orlando, veio do Sul, principalmente Paraná e Santa Catarina. Provavelmente, nos Núcleos de Emergência foi mantida a premissa do programa Altamira-1 de compor a nova comunidade com 75% de pessoas provenientes das áreas secas do nordeste e 25% de pessoas provenientes do centro-sul do país, de quem se esperava melhores noções de técnicas agrícolas e de hábitos de comunidade para ensinar ao nordestinos, por meio de exemplos (Castro, 1999). Em Leonardo da Vinci, o afluxo populacional inicial foi grande, por isso o INCRA abrigava temporariamente mais de uma família por casa. (...) na hora que terminou as casas, era tanta gente que o INCRA botava era dois numa casa (duas famílias). Dois numa casa, três

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Leonardo da Vinci, Pará: um olhar sobre a ocupação territorial na Transamazônica

na outra casa. E aí ia saindo, conforme ia saindo uma casa pronta, botava gente. Saísse uma casa pronta, já tinha gente [sic] (Sr. Orlando, morador da agrovila, em entrevista em julho de 2013).

De acordo com Sr. Orlando, os colonos que moravam na vila tinham lotes de produção próximos, já aqueles cujas lavouras eram distantes da área urbana, recebiam a casa no próprio lote de produção. A distância de alguns lotes fazia com que parte dos habitantes da vila não frequentassem a comunidade que se iniciava. Segundo Sr. Orlando, em depoimento em julho de 2013,

Eram inicialmente 64 lotes urbanos com unidades habitacionais típicas de tábuas deitadas, divididos em grupos de 16 para cada uma das quatro ruas abertas pelo INCRA e pelos colonos. Cada uma das ruas recebeu um nome, que correspondia à cor utilizada para pintar os batentes das janelas e portas das casas – rua Verde, rua Amarela, rua Azul, rua Branca. A agrovila se organizava espacialmente de acordo com os esquemas propostos por José Geraldo da Cunha Camargo, com as ruas e as unidades habitacionais dispostas em forma de “U” (Figura 6.1-1) e um espaço central que deveria receber a infraestrutura de serviços e de assistência aos colonos. Na primeira casa construída, o INCRA colocou um técnico, responsável por auxiliar os colonos na chegada, na instalação no lote e pela assistência técnica inicial – o prefeito da agrovila, conforme previa o urbanismo rural. De acordo com Sr. Orlando, o prefeito ficou na vila até que todos os colonos tivessem sido direcionados para o próprio lote.

Nesse aspecto, nota-se um grande desvio em relação ao que era proposto pelo urbanismo rural, que previa que todos os moradores da agrovila deveriam residir na área urbana, próximos uns dos outros e dos serviços e assistências que garantiriam a quebra do isolamento das comunidades rurais e o estabelecimento de padrões mais civilizados de comportamento, essencial para elevar o padrão de vida de seus habitantes.

Aí o INCRA vinha e botava um prefeito, a primeira casa era o prefeito da vila. Que era um técnico, né. Ele era o prefeito da vila, foi ele que escolheu o nome Leonardo da Vinci. Acho que é de um pintor que ele gostava, acho que é isso. (...) Ele ficou até quando o povo foi cada um para o seu lugar, foram para o lote. Porque quando cada um arrumava o lote, ia embora. Aqui era só uma parada, só para fazer alguma coisa que precisasse [sic] (Sr. Orlando, morador da agrovila, em entrevista em julho de 2013).

O colono negociava diretamente com o INCRA a localização do lote destinado à lavoura e à habitação. Em Leonardo da Vinci, como provavelmente em muitas outras agrovilas, ocorreram trocas de titularidade de lotes, muitos colonos sendo redirecionados para lotes melhores ou piores, mais perto ou mais longe, de acordo com o dinheiro que esse pudesse oferecer ao funcionário do INCRA responsável. Sr. Orlando foi um dos colonos que, para garantir um lote mais perto de Altamira e da rodovia, pagou a um funcionário do INCRA.

Os lotes destinados à produção agrícola ficavam no entorno da área urbana, ao longo da estrada vicinal e da rua Azul, e aos fundos da rua Branca. Alguns lotes se estendiam ao longo da rodovia Transamazônica.

Eu, para ficar aqui, eu comprei esse lote por 1.000 cruzeiros. Se não, eu estava lá no 110 (110 km da rodovia Transamazônica), para lá. (...) Comprou assim, a gente ia lá no INCRA, era em um

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(...) quem tinha o lote perto, a casa era aqui na vila. Quem tinha o lote longe, a casa era no lote. (...) o que não era vizinho, aí era feita lá no lote a casa. Acabava que eles não vinham muito para cá (para a vila), não [sic] (Sr. Orlando, morador da agrovila, em entrevista em julho de 2013).


6. Estudo de caso: Agrovila Leonardo da Vinci

Figura 6.1-1: imagem de satĂŠlite da agrovila. Em amarelo, a BR-230 e a estrada vicinal. Imagem base: Google Earth.

SpV PHWURV

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Leonardo da Vinci, Pará: um olhar sobre a ocupação territorial na Transamazônica

mapa grande, ele só botavam o nome do cara na planta aqui do lote, de lápis. Qualquer coisa, eles apagavam e botavam o de outro. Eu disse que dava 1.000 cruzeiros, aí ele me disse “bora lá” e trocou o nome que estava. Ele apagou e botou meu nome. Ele sabia de um lote aqui na frente, pegou o lote e trocou o outro cabra de lugar. Se alguém tivesse oferecido 1.100 cruzeiros eu que ia dançar, entende [sic] (Sr. Orlando, morador da agrovila, em entrevista em julho de 2013).

Passadas as fases de recebimento dos migrantes, destinação dos lotes e instalação das famílias nas casas, os colonos podiam dar início ao cultivo da área de 100 hectares que recebiam (ou negociavam) do INCRA. Em Leonardo da Vinci, as lavouras mais comuns eram a de cacau e de pimenta-do-reino, mas alguns produtores encontravam dificuldades em prosseguir com o cacau devido à baixa qualidade de alguns solos. Segundo Sr. Orlando, o solo precisa ser de excelente qualidade para que a produção do cacau se firme, caso contrário não nascem frutos. Nos lotes produtores em Leonardo da Vinci, houve tentativas de outras culturas, frustradas fosse pelo tipo de solo, fosse pelo calor ou por algum outro fator, como pragas e insetos. Sr. Orlando relatou que tentou plantar em seu lote laranja de enxerto, mas desistiu pois a lavoura morria após a primeira colheita – “(...) a laranja aqui não aguenta (...) dá um negócio na casca assim que descasca embaixo e ela morre. Ela dá uma carga e morre” (sic). A falta de conhecimento técnico prévio por parte do governo a respeito do tipo e da qualidade do solo das regiões onde se implantariam os projetos de colonização provavelmente teve reflexos também em Leonardo da Vinci, já que alguns colonos receberam lotes de qualidade enquanto outros tiveram muita dificuldade em produzir nos lotes recebidos. A terra aqui é boa. Olha, o cacau carrega que não é brincadeira,

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e sem adubo. Eu tenho 270 pés de cacau, dá muito cacau. Mas eu sei de gente que deu azar, pegou terra ruim. Aí é difícil [sic] (Sr. Orlando, morador da agrovila, em entrevista em julho de 2013).

Não foi só essa a dificuldade encontrada pelos colonos de Leonardo da Vinci. Assim como em outras áreas de colonização, parte da infraestrutura prometida (como postos de saúde e áreas de lazer, por exemplo) nunca foi entregue pelo INCRA, e só foi construída mais recentemente pela prefeitura do município de Vitória do Xingu. O fracasso do sistema de colonização como um todo também teve influência em Leonardo da Vinci, que não pode contar com o suporte da rede de núcleos e complexidades funcionais previstas pelo urbanismo rural – a parte de Altamira, que funciona até hoje como núcleo de apoio, não foram construídas na região outras agrópolis ou rurópolis que pudessem oferecer aos habitantes de Leonardo da Vinci os serviços que não existiam na agrovila. As condições de transporte e locomoção também eram um entrave, principalmente no período de chuvas, em que a região se tornava um lamaçal e carros e caminhões não conseguiam circular com segurança. Outras dificuldades não levadas em consideração pelo governo e pelo INCRA, como as condições climáticas e a grande presença de insetos, afetaram sobremaneira os colonos. Sr. Orlando conta que a região era infestada de um mosquito conhecido por pium, que dificultava muito a ocupação da área. (...) é um mosquitinho pequeninho assim, que ele chupa a gente até não aguentar. Se deixar, ele chupa até cair no chão, não aguenta voar mais. E coça que é uma coisa. Aqui tinha tanto pium que eu tinha que carregar a camisa abotoada aqui (no alto do pescoço, o colarinho todo abotoado), um cano de bota bem alto, a botina com a calça, e para proteger a mão e o rosto tinha de carregar


6. Estudo de caso: Agrovila Leonardo da Vinci

um vidro com querosene ou óleo de comida. Para passar no rosto, e aqui em cima da mão. Se não, não dava de tanto pium que tinha [sic]. (Sr. Orlando, morador da agrovila, em entrevista em julho de 2013).

Instalado na agrovila desde 1971, Sr. Orlando considera que a agrovila recebeu muito auxílio do INCRA e que as condições de vida eram boas para aqueles que se empenhavam em trabalhar na região, apesar das dificuldades. O cabra ganhava um salario por seis meses do governo, aí só que o povo, a maioria que ele trazia, ia embora. O povo só vinha passear. Vinha de avião, aterrissava em Altamira, aí o cara vinha aqui, via o mundo de pium daquele jeito, e ia embora. Vinha um, ia embora, trazia outro, ia embora. Era assim. E o INCRA dava rede, dava panela, dava comida, dava tudo. Dava tudo para o sujeito, e o cara não queria nada. É que quando o cara não quer nada, você pode dar tudo aí para ele, que ele joga fora [sic]. (Sr. Orlando, morador da agrovila, em entrevista em julho de 2013).

Não foi possível confirmar com outros moradores da agrovila o suposto apoio que os habitantes de Leonardo da Vinci recebiam do INCRA, pois não existem outros colonos originais, além do Sr. Orlando. No entanto, a opinião dele destoa de tudo que se sabe hoje a respeito dos projetos de colonização, das dificuldades enfrentadas e do abandono dos colonos em locais inóspitos e sem a infraestrutura prometida. (O INCRA) ajudou muito. Olha só, eles davam panela, davam rede, davam comida, davam um salario. Dava para começar a vida de novo. Só que o povo não queria. Trazia um povo que já não dava mais nada para lá. Não comigo, eu sempre me interessei por possuir as coisas. Sempre me interessei. Eu sou adventis-

ta da promessa, sabe. O pastor disse que não é errado a gente querer ter as coisas, para cuidar da gente mesmo, dos filhos. É a religião mais certa, mais de acordo com a Bíblia. Tudo que tá na Bíblia, é o que o pastor fala lá na igreja, sabe [sic]. (Sr. Orlando, morador da agrovila, em entrevista em julho de 2013).

É possível afirmar que a opinião do colono em questão com relação à vida na agrovila desde sua implantação foi cunhada a partir de sua experiência pessoal, e não do contexto geral. O Sr. Orlando contou que foi para a agrovila por escolha própria, para deixar de ser empregado dos outros e se tornar proprietário. Ele e a esposa não enfrentavam no sul as condições de miséria da maioria dos colonos, já que chegaram à região com dinheiro suficiente para escolher o lote que mais lhes conviesse. Eu vim, foi porque eu era empregado. Se a pessoa me perguntar o que eu passei de mais ruim no mundo, chama emprego. Para mim, né. Eu vim para sair de ser empregado, eu era caminhoneiro. Eu tinha raiva de ser empregado, então vim para cá para sair de emprego. E nós saímos, nós temos quarenta anos aqui. Só que nós temos muita coisa na cidade (em Altamira), muita coisa. Aqui não arrumou ainda porque nós compramos um bocado de casas já meio velhas lá na cidade e eu estou reformando lá. Enquanto não terminar de reformar, tudo bem beleza, eu não vou mexer na minha casa. Só quando terminar lá [sic]. (Sr. Orlando, morador da agrovila, em entrevista em julho de 2013).

A mentalidade do Sr. Orlando, voltada para a posse de coisas, e a atual situação financeira da família (que hoje em dia é proprietária de terrenos e casas para locação em Altamira) pode ter mascarado em sua memória as condições reais de dificuldade que os habitantes da região enfrentaram durante e depois dos projetos de colonização. 53


Leonardo da Vinci, Pará: um olhar sobre a ocupação territorial na Transamazônica

6.2. A agrovila atualmente A agrovila Leonardo da Vinci encontra-se no 18 km da rodovia Transamazônica, sentido Altamira – Anapu, e ocupa uma área de aproximadamente 20 hectares. De acordo com uma das agentes de saúde do posto local, em setembro de 2013 a vila contava com uma média de 170 residências e aproximadamente 300 famílias – uma população estimada de 750 a 800 habitantes. Ainda de acordo com os funcionários do posto de saúde, esses números são bastante flutuantes e os dados apresentados são estimativas tiradas a partir da quantidade de atendimentos realizados no mês. Segundo o que foi possível levantar em campo, em julho de 2013, grande parte dos moradores não tem a propriedade do terreno e da casa em que habitam, sendo muito comum que uma família chegue e se instale em alguma área da vila em uma casa de madeira. Com o tempo, parte dessas famílias troca a casa de madeira por uma de alvenaria, mas poucos se preocupam em regularizar a situação, já que a rotatividade dos moradores é muito grande. Também é bastante comum na região a atividade de locação de terrenos, ainda informal, que transfere para o locatário a função de construir a futura residência da família. Das casas originais da época de implantação do projeto, com tábuas deitadas, no estilo escama de peixe (Figuras 6.2-1 a 6.2-3), apenas seis unidades se mantiveram – uma delas vaga para locação (Figura 6.2-4). Apesar de ser parte do município de Vitória do Xingu, a distância entre a vila e a sede do município é de aproximadamente 63 km, fazendo com que seus habitantes recorram à sede de Altamira, a cerca de 18 km de distância (Figura 6.2-5), como centro urbano de apoio – a “agrópolis” adotada pelos moradores de Leonardo da Vinci. Também a assistência policial, de bombeiros e de ambulâncias é proveniente de Altamira, visto que a distância da sede de Vitória do Xingu dificulta a prestação des54

Figuras 6.2-1 e 6.2-2: unidades habitacionais construídas pela INCRA em Leonardo da Vinci (fonte: acervo pessoal. Julho de 2013)


6. Estudo de caso: Agrovila Leonardo da Vinci

ses serviços de emergência. O serviço de coleta de lixo, feito por caminhões da prefeitura, é proveniente da sede, pois existem complicações jurídicas para a coleta dos resíduos gerados em um município por outro. De acordo com alguns moradores da agrovila, consultados em julho deste ano, algumas vezes demora de 20 a 30 dias entre uma coleta de lixo e outra, por causa da distância e dificuldade de acesso do caminhão coletor quando da época de chuvas. A agrovila conta com uma escola de ensino infantil e fundamental, (Figura 6.2-6) que também oferece ensino médio modular, e na qual existe uma quadra de esportes. Existe também uma Unidade de Saúde da Família, um escritório da CEPLAC10 (Figuras 6.2-7 e 6.2-8), um centro de Convivência Familiar e Fortalecimento de Vínculos11, um campo de futebol que funciona como área de lazer e prática esportiva, e um telefone público ao fim de uma das ruas principais da vila. Uma torre de celular da operadora Vivo foi instalada nas proximidades. Às margens da Transamazônica, existe um posto de gasolina desativado (Figura 6.2-9), talvez herança do urbanismo rural, que previa a 10 A CEPLAC (Comissão Executiva do Plano da Lavoura Cacaueira), criada em 1957, é atuante em seis estados do país: Bahia, Espírito Santo, Pará, Amazonas, Rondônia e Mata Grosso. É um órgão do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento e tem como missão promover a competitividade e a sustentabilidade dos setores agropecuário, agroindustrial e agroflorestal das regiões produtoras de cacau. (Fonte: www.ceplac.gov.br. Acesso em 24/10/2013). 11 Segundo o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS), “todos os serviços de convivência e fortalecimento de vínculos organizam-se em torno do Serviço de Proteção e Atendimento Integral à Família (Paif), sendo a ele articulados. Previnem a institucionalização e a segregação de crianças, adolescentes, jovens e idosos e oportunizam o acesso às informações sobre direitos e participação cidadã. Ocorrem por meio do trabalho em grupos ou coletivos e organizam-se de modo a ampliar trocas culturais e de vivências, desenvolver o sentimento de pertença e Figuras 6.2-3 e 6.2-4: unidades habitacionais construídas pela INCRA em Leonardo da Vinci (fonte: acervo pessoal. Julho de 2013)

de identidade, fortalecer vínculos familiares e incentivar a socialização e a convivência comunitária” (fonte: www.mds.gov.br. Acesso em 24/10/2013).

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Leonardo da Vinci, Pará: um olhar sobre a ocupação territorial na Transamazônica

Leonardo da Vinci

Figuras 6.2-5: Localização da agrovila em relação às sedes municipais de Altamira e Vitória do Xingu. Imagem do Google Earth.

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6. Estudo de caso: Agrovila Leonardo da Vinci

Figuras 6.2-6: escola local, EMEIEF Leonardo da Vinci. (fonte: acervo pessoal. Julho de 2013)

Figuras 6.2-8:escrit贸rio da CEPLAC em Leonardo da Vinci. (fonte: acervo pessoal. Julho de 2013)

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Leonardo da Vinci, Pará: um olhar sobre a ocupação territorial na Transamazônica

ao dia até o poço para buscar água, já que existe uma caixa d’água que poderia atender bem aos moradores. Existem na vila alguns lotes comerciais (farmácia, um pequeno mercado, um restaurante) e alguns lotes de uso misto, onde se encontram pequenos bares, armazéns e uma loja de roupas. Nos lotes de uso misto, a atividade comercial se localiza na frente do terreno ou no andar térreo, quando a edificação é assobradada. A agrovila conta, atualmente, com quatro igrejas, todas protestantes (Congregação Cristã, Assembleia de Deus, Assembleia de Deus das Missões e Adventista da Promessa) mas conforme se apurou em campo com os moradores, também este número é flutuante e a vila já chegou a ter oito templos religiosos para uma média de 500 habitantes.

Figuras 6.2-9: posto de gasolina desativado, às margens da BR-230. (fonte: acervo pessoal. Julho de 2013)

instalação de postos de gasolina ao longo da rodovia, a fim de incrementar a renda da comunidade e garantir a boa circulação dos viajantes. Dentro dos limites do terreno da Unidade de Saúde da Família, existe uma caixa d’água que, em princípio, teria capacidade para atender a todas as famílias da agrovila (Figura 6.2-10). No entanto, raramente ela está funcionando e, de acordo com os moradores, passa a maior parte do ano vazia e seca. Assim, a água utilizada é proveniente de um poço de captação antigo, aberto ainda na época de implantação da agrovila. Segundo os moradores, a água do poço é de boa qualidade e não existem registros de doenças ou complicações provenientes dela. A queixa maior diz respeito ao fato da necessidade de se deslocar várias vezes 58

A estrutura viária da agrovila manteve diversas das características implantadas pelo INCRA em 1971. As ruas originais foram mantidas (Rua Azul, Rua Verde, Rua Amarela e Rua Branca) e os acessos principais ainda são a rodovia e a estrada vicinal que delimita o final da área urbana da agrovila (Figura 6.2-13). Com o passar do tempo e à medida em que se tornaram necessárias, seis travessas foram abertas, numeradas de 1 a 6, além de outras duas ainda sem nome e uma rua que delimita a área de ocupação da agrovila do lado oposto ao da vicinal, com o nome de Rua Nova. Com base no mapa de uso e ocupação do solo (Figura 6.2-14), elaborado a partir da observação em campo em julho de 2013, é possível identificar dois eixos principais na agrovila - a Rua Verde e a própria Transamazônica. Nelas estão concentradas a maior parte dos serviços institucionais e do comércio da agrovila, bem como o telefone público, o campo de futebol e o poço para captação de água. Nas outras ruas e travessões, encontram-se apenas pequenas vendas e bares.


6. Estudo de caso: Agrovila Leonardo da Vinci

Figuras 6.2-11: igreja Congregação Cristã em Leonardo da Vinci. (fonte: acervo pessoal. Julho de 2013)

Figuras 6.2-10: caixa d’água da agrovila. (fonte: acervo pessoal. Julho de 2013)

Figuras 6.2-12: igreja Assembléia de Deus em Leonardo da Vinci. (fonte: acervo pessoal. Julho de 2013)

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Leonardo da Vinci, Parå: um olhar sobre a ocupação territorial na Transamazônica

anapu

r. nova

r. branca tv. seis

tv. cinco

tv. quatro

tv. trĂŞs

tv. dois

tv. um

br-230

r. azul

altamira

r. amarela

r. sem nome

r. verde

vicinal

Figura 6.2-13: estrutura viĂĄria da agrovila Leonardo da Vinci. Mapa base: Google Earth.

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SpV PHWURV


6. Estudo de caso: Agrovila Leonardo da Vinci

Sotreq

comércio (misto) empresas

Isofrio eq. religiosos institucional e comunitário casas originais incra lazer (futebol) área de desapropriação

escola

congregação cristã

assembléia de deus

adventista da promessa tel. público

ceplac

assembléia de deus das missões

posto saúde e caixa d´água

captação de centro de convivên- água cia familiar

residência Sr. Orlando

Figura 6.2-14: mapa de uso do solo da agrovila Leonardo da Vinci. Mapa base: Google Earth.

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Leonardo da Vinci, Pará: um olhar sobre a ocupação territorial na Transamazônica

Figuras 6.2-16: plantação de mandioca em um dos lotes da agrovila. (fonte: acervo pessoal. Julho de 2013)

Para além da vicinal, no sentido Altamira da rodovia, e ao fundo da Rua Branca, ainda notam-se as áreas destinadas para os lotes de produção da época do INCRA, mas pelo que foi possível observar em campo, em nenhum dos lotes mais próximos da agrovila temos a presença de algum tipo de lavoura. Implantada para ser um núcleo de produção agrícola, poucos são os habitantes que ainda desenvolvem a agricultura como atividade econômica principal, com alguns lotes urbanos produzindo cacau (Figura 6.2-15) ou pimenta do reino. A produção geralmente é vendida pelos próprios agricultores, que se deslocam até Altamira em busca de um preço mais competitivo. Na maioria dos casos, os moradores trabalham em outras atividades (comércio, agroindústrias, construção civil) e mantém pequenas áreas para o cultivo de mandioca (Figura 6.2-16) e outros alimentos básicos para o consumo da própria família. Figuras 6.2-15: cacaueiro em um dos lotes da agrovila. (fonte: acervo pessoal. Julho de 2013)

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6. Estudo de caso: Agrovila Leonardo da Vinci

QUADRO 6.2-1: Informações gerais sobre o município de Vitória do Xingu. Fonte: IBGE Cidades (cidades.ibge.gov.br)

QUADRO 6.2-2: Informações gerais sobre o município de Altamira. Fonte: IBGE Cidades (cidades.ibge.gov.br)

População em 2010: 13.431 habitantes Área do município: 3.089, 537 km2 Densidade demográfica: 4,35 hab/km2 IDH em 2010: 0,596 População estimada para 2013: 14.072 habitantes Renda nominal mensal média per capta, área rural (2010): R$222,00 Renda nominal mensal média per capta, área urbana (2010): R$183,33

População em 2010: 99.075 habitantes Área do município: 159.533, 730 km2 Densidade demográfica: 0,62 hab/km2 IDH em 2010: 0,665 População estimada para 2013: 105.106 habitantes Renda nominal mensal média por capta, área rural: R$166,67 Renda nominal mensal média por capta, área urbana: R$360,00

Vitória do Xingu é um município localizado na parte central do Estado do Pará, na margem esquerda do Rio Xingu. O acesso principal é a rodovia Ernesto Acioly (PA-415). O povoamento de Vitória do Xingu se deu por padres capuchinhos que se instalaram em missões próximas a aldeias dos índios xipaias e araras, em 1869. Utilizando o trabalho dos índios, os padres reabriram o caminho até Altamira. Vitória do Xingu passou por um período de coronelismo, sendo dominada por grandes latifundiários, como Gaioso, José Porfírio e Agrário Cavalcante. A maioria dos grandes proprietários de terra locais eram seringalistas e donos de casas aviadoras. Com a anexação da região de Vitória ao município de Altamira, esses coronéis acabaram por perder alguns poderes e privilégios. Vitória do Xingu se separou de Altamira em 1992 e recebeu o título de município em 1993.

Altamira localiza-se no estado do Pará, às margens do rio Xingu. Um de seus principais acessos é a rodovia Transamazônica. A ocupação da área se deu em meados do século XVII pelo jesuíta Roque de Hundefund, fundador de uma missão próxima ao igarapé Panelas. Com o aumento do poder de Marquês de Pombal, as obras jesuíticas foram perdidas ou interrompidas. Somente em 1841, o padre Antônio Torquato de Souza reocupa a área e reabre os caminhos que ligavam a antiga missão ao igarapé Tucuruí e à missão Imperatriz. Também foi aberta uma picada ligando o baixo e o médio Xingu. Gaioso tentou transformar o caminho em estrada com a utilização de mão de obra escrava, sendo interrompido pela proclamação da Lei Áurea. Em 1880, Agrário Cavalcante retomou os trabalhos, retificando o traçado da estrada que partia da atual sede de Vitória do Xingu até a foz do igarapé Ambé, onde construiu um forte com seu nome. Altamira recebeu a denominação de município e distrito em 1911, desmembrado do antigo município de Sousel. Em 1917, recebe o título de cidade.

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Leonardo da Vinci, Pará: um olhar sobre a ocupação territorial na Transamazônica

6.3. As mudanças na agrovila

a construção da usina.

Nos últimos dois anos, a agrovila Leonardo da Vinci vem passando por um processo de dinamização, em grande parte vinculado à construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte (UHE Belo Monte).

As obras estão sendo realizadas simultaneamente em diferentes trechos do Rio Xingu e em áreas vizinhas, nos municípios de Altamira e Vitória do Xingu, principalmente. As obras estão localizadas em quatro zonas principais – sítio Bela Vista, sítio Belo Monte, sítio Pimental e a região dos canais de derivação (Figura 6.3-1). Os dois primeiros sítios e a região dos canais estão em Vitória do Xingu; o sítio Pimental abrange áreas dos dois municípios. A usina será composta por uma barragem principal no Rio Xingu, cerca de 40 km rio abaixo na cidade de Altamira (sítio Pimental). A partir daí, será formado o Reservatório do Xingu e parte da água será desviada por canais (Figura 6.3-2) para o Reservatório dos Canais, alocado a cerca de 50 km de distância de Altamira, na região da Volta Grande do Xingu. Serão construídas duas casas de força, a principal no sítio Belo Monte, com potência instalada de 11.000 MW, e a complementar no sítio Pimental, com potência de 233 MW.

A usina está sendo construída no Rio Xingu como parte do Plano de Aceleração do Crescimento (PAC) do governo federal, com a proposta de aumentar a oferta de energia. De acordo com o Relatório de Impacto Ambiental (RIMA), a usina terá capacidade instalada de 11.233,1 MW, adicionando ao sistema nacional de energia capacidade para abastecer cerca de 40% do consumo doméstico brasileiro. O reservatório da usina foi projetado para funcionar em sistema de fio d’água, o que significa que a energia elétrica gerada sofrerá variação de acordo com a sazonalidade do nível de água existente no rio. Segundo o RIMA, esse sistema tem o objetivo de gerar energia de forma constante com o menor impacto socioambiental possível, bem como garantir a redução da área alagada, que ainda assim será de 516 km2 (48% da área alagada em Vitória do Xingu e 52% em Altamira). De acordo com pesquisa Empresa de Pesquisa Energética (2010), justamente por funcionar em sistema de fio d’água e com área de reservatório reduzida, a usina produzirá efetivamente 4.500 MW por ano, aproximadamente 10% do consumo doméstico brasileiro. É um projeto de grandes proporções e custos – financeiros, sociais e ambientais – que não será, de acordo com alguns críticos, capaz de gerar nem metade do potencial energético anunciado (EPE, 2010). A usina recebeu o maior empréstimo da história do Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES): com prazo de 30 ano, o financiamento é de R$ 22,5 bilhões, além da autorização de um crédito para a construção de infraestrutura de cerca R$ 500 milhões em nome da Norte Energia S.A., empresa criada a partir da fusão de empresas estatais e privadas para 64

O trecho compreendido entre a barragem principal e a casa de força (Figura 6.3-3) terá o volume de água reduzido devido ao desvio da mesma para o reservatório dos canais. Esse trecho, denominado no RIMA como Trecho de Vazão Reduzida, terá 100 km de comprimento ao longo da calha do rio e será mantido em um nível mínimo que garanta as condições necessárias para manutenção do meio ambiente e dos ecossistemas locais, bem como a vida das pessoas que dependem economicamente do rio e a navegação. Esse controle do nível de água foi definido pelo Hidrograma Ecológico do Trecho Vazão Reduzida - estudo técnico que visa garantir o nível mínimo de água tanto na época de seca como na época de chuvas (RIMA, 2009). No RIMA da usina de Belo Monte foram identificadas e consideradas diferentes áreas para a avaliação dos impactos no meio físico, biótico e socioeconômico, sendo agrupadas em três categorias, a saber:


6. Estudo de caso: Agrovila Leonardo da Vinci

-4 15

Vitória do Xingu

Casa de Força Principal

PA

Sítio Belo Monte

Belo Monte

Reservatório Reservatório do Xingu dos Canais

Belo Monte do Pontal

Canais de Derivação

Altamira

Diques

ng

Vertedouro Complementar

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já aca oB Ri

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Xi

Sítio Bela Vista

r ssu nsa Tra

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a nic ô m a z a s n Tra

Barragem Principal Sítio Pimental

Legenda Estrada Trecho de Vazão Reduzida

Figuras 6.2-5: localização das estruturas da usina. (fonte: RIMA AHE Belo Monte, p. 11)

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Leonardo da Vinci, Pará: um olhar sobre a ocupação territorial na Transamazônica

Figura 6.3-2: obras da usina na região dos canais de derivação. (fonte: acervo pessoal. Julho de 2013)

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6. Estudo de caso: Agrovila Leonardo da Vinci

Figura 6.3-3: obras da usina na รกrea das turbinas e casa de forรงa principal (fonte: acervo pessoal. Julho de 2013)

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Leonardo da Vinci, Pará: um olhar sobre a ocupação territorial na Transamazônica

• Área de Influência Indireta (AII): áreas mais afastadas que podem vir a sofrer alterações indiretas a partir do desenvolvimento das obras; • Área de Influência Direta (AID): áreas no entorno do empreendimento. Nessa categoria estão consideradas tanto as terras que serão ocupadas pela estrutura da usina quanto as que serão afetadas diretamente, de forma positiva ou negativa; • Área Diretamente Afetada (ADA): áreas que serão afetadas diretamente pela construção da estrutura da usina. A Área de Influência Direta definida pelo RIMA (Figura 6.3-4) é formada pelos municípios de Altamira, Anapu, Brasil Novo, Senador José Porfírio e Vitória do Xingu, municípios que compõem a Região de Integração Xingu12 . Por estar localizado na AID, o município de Vitória do Xingu recebeu alguns dos projetos de mitigação de impactos previstos pelo IBAMA, e alguns desses projetos foram implantados em Leonardo da Vinci. No entanto, a maioria das transformações não estão diretamente relacionados ao consórcio construtor da usina, e são resultado de dinâmicas particulares que encontraram na agrovila espaço para se desenvolver.

reforma de parte da estrutura da escola local, principalmente a quadra de esportes (6.3-5). Em julho de 2013, as obras de saneamento (Figura 6.3-6) estavam em estágio avançado e se iniciavam os procedimentos para as obras de pavimentação. Os moradores se mostraram vigilantes em relação às intervenções, e afirmaram que costumam questionar os funcionários responsáveis pela vistoria das obras sempre que alguma dúvida surge. Ainda assim, estão bastante satisfeitos com o andamento das obras, e acreditam que, com o saneamento e pavimentação das ruas prontos, a vila será um local melhor para se viver do que a própria sede do município de Vitória do Xingu. Essa expectativa está baseada em fatores que vão além das obras infraestrutura (ainda que apenas esta já trará uma melhora significativa para a vida dos habitantes da vila), e que compõem conjunto de mudanças que os moradores veem e sentem cotidianamente, e que tem sido responsável pela alteração do padrão de vida de parte dos habitantes de Leonardo da Vinci.

Como parte de um dos programas previstos pelo Plano Básico Ambiental (programa de mitigação de impactos exigido pelo IBAMA), coube à consórcio construtor da usina a realização de obras de saneamento básico e pavimentação da agrovila Leonardo da Vinci, bem como a 12 Com a finalidade de organizar o planejamento de sua ação, o governo do Estado do Pará subdividiu seu território em 12 Regiões de Integração, entre as quais se encontra a Região de Integração Xingu. Pretende-se que essa regionalização sirva de base para uma descentralização administrativa do governo e uma maneira mais eficaz de aproximação com a população local para identificar ações e políticas públicas mais adequadas a cada sub-região (Fonte: Plano de Desenvolvimento Regional Sustentável do Xingu, 2010).

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Figura 6.3-5: reforma da escola local, de responsabilidade da Norte Energia S.A. (fonte: acervo pessoal. Julho de 2013)


6. Estudo de caso: Agrovila Leonardo da Vinci

Vitória do Xingu

Área Indígena Juruna do km 17

PA

415

Belo Monte Belo Monte do Pontal

Altamira ica

azôn m a s Tran

T.I. Arara da Volta Grande do Xingu

T.I. Koatinemo

Legenda Estrada Trecho do Reservatório do Xingu Trecho do Reservartório dos Canais Trecho de Vazão Reduzida Trecho de Restituição de Vazão Terra Indígena

Rio Bacajá

Rio

Xin g

u

T.I. Paquiçamba

T.I. Trincheira Bacajá

Figura 6.3-4: mapa da Área de Influência Direta da usina de Belo Monte (fonte: RIMA AHE Belo Monte, p. 32)

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Leonardo da Vinci, Pará: um olhar sobre a ocupação territorial na Transamazônica

Figura 6.3-6: obras de implantação de saneamento básico, de responsabilidade da Norte Energia S.A. (fonte: acervo pessoal. Julho de 2013)

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6. Estudo de caso: Agrovila Leonardo da Vinci

Uma das mudanças mais facilmente percebida, e que representa certa melhoria das condições financeiras e de habitação dos moradores, é a construção de novas residências em alvenaria (Figuras 6.3-7 e 6.3-8). Como em muitas outras partes da região, a habitação mais comum é de madeira, pois é rapidamente construída e relativamente barata já que a matéria prima utilizada é proveniente do corte de árvores no local de implantação da casa. Em Leonardo da Vinci, no entanto, é possível notar que diversas famílias tem optado pela troca da tradicional residência de madeira (Figura 6.3-9) por residências em blocos cerâmicos ou de concreto. Esse novo padrão construtivo revela novas aspirações, como casas maiores e mais confortáveis, além do desejo de se fixar permanentemente em um local. Em visita de campo em julho de 2013, diversos moradores disseram estar trocando a residência de madeira por casas de alvenaria por nutrirem o desejo de permanecer na vila depois das melhorias de infraestrutura que estão sendo realizadas no momento. Com as obras públicas de infraestrutura e as particulares de novas residências, a agrovila se parece com um canteiro de obras, em que mudanças são notadas todos os dias (Figura 6.3-10). Mesmo com a intenção clara de se fixar na vila, ainda não se percebe uma preocupação muito intensa com a regularização da propriedade do terreno pois, de acordo com os moradores, não existe uma vistoria ou uma política efetiva por parte da prefeitura de Vitória do Xingu no que diz respeito a esse assunto. Mas algumas famílias que tinham se estabelecido ao redor do campo de futebol local, inclusive em casas de alvenaria, foram retirados da área pelo poder municipal, com a justificativa de que a área estaria reservada para a instalação de serviços e equipamentos públicos. No entanto, não houve nenhuma iniciativa de comunicar à população quais seriam os equipamentos instalados e, até julho de 2013, não havia indícios de obras da prefeitura no local. Os moradores retirados da área se instalaram em outros terrenos, alugaram casas prontas ou foram morar com parentes em outras casas na agrovila.

Figuras 6.3-7 e 6.3-8: construção de residências em alvenaria. (fonte: acervo pessoal. Julho de 2013)

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Leonardo da Vinci, Pará: um olhar sobre a ocupação territorial na Transamazônica

Figura 6.3-9: casa de madeira. (fonte: acervo pessoal. Julho de 2013)

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6. Estudo de caso: Agrovila Leonardo da Vinci

Figura 6.3-10: obras na agrovila. (fonte: acervo pessoal. Julho de 2013)

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Leonardo da Vinci, Pará: um olhar sobre a ocupação territorial na Transamazônica

A construção de novas casas também atende ao afluxo populacional que a região vem recebendo, devido às obras da usina de Belo Monte e às atividades indiretas que elas geram (prestação de serviços e comércio). Grande parte dessas pessoas tem como destino inicial a cidade de Altamira, mas encontram dificuldades para se instalar na cidade. O preço dos imóveis para venda e locação tem aumentado devido à grande demanda, e as áreas de tradicionais ocupações irregulares no centro da cidade estão abaixo da cota de segurança de enchimento do reservatório da usina e serão inundadas a partir de novembro de 2014. Esses entraves para fixar residência em Altamira fazem com que os novos habitantes se redirecionem para outras áreas e vilas, entre elas Leonardo da Vinci, Santa Isabel e Santo Antônio são destinos comuns. Pela proximidade com a sede do município de Altamira, Leonardo da Vinci é, invariavelmente, um dos primeiros pontos de parada desse afluxo populacional. A variação populacional constante em Leonardo da Vinci e o interesse de várias pessoas em se fixarem na vila tem gerado um processo cada vez maior de especulação imobiliária na região e seus efeitos já podem ser sentidos no custo dos imóveis, sejam terrenos ou casas para venda e locação. Um dos moradores contou que pagava há um ano cerca de R$300,00 mensais pelo aluguel de uma casa de dois cômodos, mas precisou se mudar porque o proprietário passou a exigir R$900,00 depois do início das obras de infraestrutura e da chegada de novos moradores. Um terreno de 1.000 m2 que, em 2011, custava cerca de R$5.000,00 estava à venda, em julho de 2013, por R$100.000,00. O interesse pela região tem crescido tanto que estão em processo de abertura dois loteamentos vizinhos à área da agrovila. Um dos loteamentos, ao lado da estrada vicinal, não havia sido iniciado até a data da visita de campo (julho de 2013), pois conforme contou o Sr. Orlando, morador da vila e antigo dono de um dos terrenos que vai dar origem 74

ao empreendimento, o proprietário está aguardando o fim das obras de saneamento e pavimentação da agrovila para iniciar as obras do loteamento em si – provavelmente, estas já garantirão um preço inicial dos lotes mais alto do que se vendidos agora, sem a infraestrutura completa. Não foi possível averiguar o nome do futuro loteamento nem outros dados como área total e quantidade de lotes a serem comercializados, pois não foi possível contato com a prefeitura de Vitória do Xingu, que não possui telefone fixo. O outro loteamento, ao longo da Rua Nova, é conhecido pelo nome de Monte Belo (Figura 6.3-12), aproveitando a visibilidade que a usina tem no plano regional como fonte de atração de pessoas. De acordo com alguns moradores da vila, o loteamento terá cerca de 600 lotes e a maior parte dos 180 lotes da primeira etapa já foi vendida. Em julho de 2013, grande parte da área do loteamento já havia passado por terraplenagem e algumas casas já estavam em construção. No entanto, conforme alguns moradores da vila e proprietários de lotes no empreendimento, as obras haviam sido embargadas pelo Ministério Público pois o loteamento ainda não havia sido aprovado pela prefeitura de Vitória do Xingu e tampouco tinha a documentação necessária para o início das obras e das vendas de unidades. Questionados se a falta de regularização do empreendimento não era fator de preocupação, dois dos proprietários disseram que não, já que na região “tudo acontece assim” e que, estando o empreendimento pronto, “a prefeitura vai liberar de qualquer jeito”. Novamente, não foi possível obter maiores informações a respeito do loteamento, devido à dificuldade de contato com a prefeitura de Vitória do Xingu. O afluxo populacional que Leonardo da Vinci está recebendo também estabelece alterações nos padrões prestação de serviços na agrovila. A escola local atende com folga os alunos de creche, educação infantil e ensino fundamental, sendo possível receber até mesmo cerca de 160


6. Estudo de caso: Agrovila Leonardo da Vinci

a Universidade Estadual do Pará – UEPA) também pode ser responsável pelo desejo dos jovens de Leonardo da Vinci de ingressarem no ensino superior.

Figura 6.3-12: área do loteamento Monte Belo. (fonte: acervo pessoal. Julho de 2013)

alunos a mais do que a quantidade atual (118 alunos no período matutino e 157 no período vespertino), divididos nos dois turnos de aulas. A secretária da escola informou que houve um aumento no número de matrículas e pedidos de transferências, principalmente no primeiro semestre de 2012, devido à menor oferta de vagas em escolas de outras vilas da região. Um fato interessante registrado a partir de conversas com alguns moradores e com a secretária da escola diz respeito a um maior número de adolescentes da vila estarem buscando complemento aos estudos em Altamira, como cursos técnicos e cursos de extensão, bem como ao desejo de parte deles de ingressarem no ensino universitário – o que, de acordo com a funcionária da escola, não era uma aspiração muito comum até poucos anos atrás. Pode-se supor que a melhora no padrão de vida dos habitantes da vila está impulsionando a nova geração a buscar oportunidades ainda melhores, o que os faz enxergar o ensino universitário como um caminho válido. A presença de duas universidades na cidade de Altamira ( a Universidade Federal do Pará – UFPA e

O posto de saúde da família local também vem registrando aumento da demanda, devido à combinação do afluxo populacional e da maior oferta de serviços oferecidos aos moradores. De acordo com os funcionários, atualmente o posto de saúde conta com um médico clínico geral que vem de Altamira duas vezes por semana, às segundas e sextas pela tarde, além de outro médico que atende às quintas pela manhã. O posto também conta com um dentista duas vezes por semana, um psicólogo uma vez por semana, um fisioterapeuta duas vezes por semana, além de um educador físico, um técnico bucal, dois técnicos de enfermagem, uma enfermeira e um ambulância. O médico e a enfermeira realizam visitas domiciliares a cada quinze dias e tentam visitar oito famílias por vez. De acordo com a enfermeira do posto, a média de atendimentos mensais subiu de 100 para 250, e varia conforme a quantidade de pessoas que chegam e saem da vila semanalmente. Assim como a escola, o Posto de Saúde da Família de Leonardo da Vinci também atende pessoas de outras vilas e comunidades próximas, onde não existe esse tipo de atendimento ou o serviço prestado é mais restrito. As atividades econômicas, fontes de renda das famílias de Leonardo da Vinci, também estão passando por alterações, mas pelo que se pode levantar em campo, este é um processo mais antigo, que foi intensificado mas não iniciado pela construção da usina de Belo Monte. Instalada inicialmente para ser um núcleo de produção agrícola integrante de uma hierarquia rural, a agrovila foi lentamente deixando em um plano secundário essa atividade. Hoje em dia, poucos moradores mantém nos lotes de suas residências áreas de produção agrícola para venda, sendo em sua maioria plantações de mandioca ou outros itens de consumo da família. No lugar do trabalho rural, os habitantes de Leonardo da Vinci 75


Leonardo da Vinci, Pará: um olhar sobre a ocupação territorial na Transamazônica

tem optado por empregos na cidade de Altamira ou se tornam pequenos empreendedores, abrindo vendas, bares e armazéns na própria agrovila (Figura 6.3-13). Pelo que se pode levantar em campo, em julho de 2013, os lotes de uso misto abrigam pequenos estabelecimentos comerciais que funcionam como complemento da renda familiar e são geralmente administrados por mulheres. A iniciativa de abrir pequenos estabelecimentos comerciais e ser autônomo parece ser uma característica comum a grande parte dos habitantes de Leonardo da Vinci, desde o primeiro deles, Sr. Orlando, que veio para deixar de ser empregado no sul do país, até os moradores mais recentes, que se aventuram em se tornarem pequenos empresários.

Figura 6.3-13: alguns comércios na agrovila. (fonte: acervo pessoal. Julho de 2013).

Figura 6.3-14: restaurante da Tia Talita. (fonte: acervo pessoal. Julho de 2013).

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Um caso interessante de empreendedorismo local é o da moradora conhecida por Tia Talita, que abriu um restaurante nas proximidades do Canteiro Industrial Belo Monte. O restaurante, uma pequena edificação de madeira que estava sendo ampliada pela proprietária (Figura 6.314), funciona desde a manhã, para o desjejum, até o fim da noite, quando os empregados do canteiro, de operários a engenheiros, se reúnem no local para conversar, jogar baralho, beber e petiscar. O restaurante funciona em um esquema de preço fixo por refeição e o cliente pode se servir à vontade, quantas vezes desejar. A proprietária disse ter consciência que seu estabelecimento é temporário e que só se manterá viável enquanto o canteiro de obras estiver funcionando; ainda assim, e apesar da distância em relação à agrovila, disse que o restaurante é muito vantajoso e lucrativo, e que pretende ganhar e guardar o máximo de dinheiro que puder, para poder planejar com calma e segurança uma nova ocupação quando o restaurante for fechado. Outro caso interessante é o do restaurante Toca do Bode, instalado na própria agrovila, na Rua Nova (Figura 6.3-15). Os proprietários vieram de Rondônia, onde moravam próximos à área de instalação da Usina Hidrelétrica de Jirau e também possuíam um restaurante. Vieram de Jirau


6. Estudo de caso: Agrovila Leonardo da Vinci

em um grupo de 15 pessoas, que se distribuíram em algumas vilas da região de Altamira. Uma das proprietárias disse que, apesar de algumas dificuldades, é muito vantajoso se estabelecer em áreas de construção de usinas, pois sempre existem boas possibilidades de trabalho para quem deseja abrir um negócio próprio. Apesar de não receber muitos trabalhadores da usina em si, o restaurante Toca do Bode se aproveita do afluxo populacional que a usina gera para incrementar os negócios e aumentar a margem de lucro. O negócio aparentemente vem prosperando, pois os proprietários já adquiriram três lotes no loteamento vizinho, o Monte Belo, além de uma casa na vila, onde residem. Quando questionados se pretendiam se fixar definitivamente em Leonardo da Vinci, uma das proprietárias respondeu que ficariam na região até o fim das obras de Belo Monte, e que depois provavelmente migrariam para a próxima localidade a receber a instalação de uma usina hidrelétrica. Figura 6.3-15: restaurante Toca do Bode. (fonte: acervo pessoal. Julho de 2013).

Figura 6.3-16: fundos do restaurante Toca do Bode, ao lado dos alojamentos da ISOFRIO (fonte: acervo pessoal. Julho de 2013).

Dois empreendimentos de grande porte, relacionados à construção da usina, instalaram filiais na agrovila. Um deles é a empresa ISOFRIO, responsável pela construção de alojamentos para o Consórcio Construtor Belo Monte (CCBM), e que instalou na agrovila um alojamento para seus funcionários. Apesar de ter buscado trabalhadores na própria agrovila, apenas quatro moradores locais foram contratados e a maioria veio do Piauí, Ceará e Maranhão. O outro empreendimento, de maior porte e destaque, é a instalação da SOTREQ (Figura 6.3-17), responsável pela manutenção do maquinário e equipamentos utilizados pelo consórcio construtor da usina. Instalada em uma área vizinha à agrovila, com cerca de 27.000 m2, a empresa emprega cerca de 60 trabalhadores, mas apenas quinze deles residem na agrovila. De acordo com um dos moradores da vila, empregado pela ISOFRIO, esse fato está relacionado à resistência dos moradores locais em serem registrados, pois estão acostumados a um regime informal de trabalho e não se sentem inclinados a se submeter a um regime de trabalho formal, considerado por eles muito rígido. 77


Leonardo da Vinci, Pará: um olhar sobre a ocupação territorial na Transamazônica

Figura 6.3-17: instalações da SOTREQ (fonte: acervo pessoal. Julho de 2013).

Figura 6.3-18: área da SOTREQ (fonte: acervo pessoal. Julho de 2013).

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Apesar dos diversos pontos positivos que as mudanças estão trazendo para os moradores da agrovila, um aspecto em particular preocupa a comunidade – a segurança pública e o aumento da violência. De acordo com alguns moradores consultados em julho de 2013, a localidade sempre foi violenta como toda a região o é, mas disseram que ultimamente tem aumentado o número de ocorrências na vila, principalmente brigas motivadas pelo consumo de álcool em festas promovidas por trabalhadores que chegaram à vila sem família (em sua maioria, funcionários da ISOFRIO). Alguns moradores contaram que essas festas geralmente ocorrem no restaurante Toca do Bode em que, além do consumo excessivo de álcool, nota-se a presença de “mulheres de fora” trazidas de Altamira pelos trabalhadores solteiros da vila. Alguns casos de assassinato e violência sexual contra jovens adolescentes também preocupam sobremaneira os habitantes, principalmente os pais e mães de família. Devido ao crescente número de casos violência, os moradores vem reivindicando, junto à prefeitura de Vitória do Xingu, a instalação de um posto da Polícia Militar no local, já que o serviço policial geralmente vem de Altamira e demora um certo tempo para chegar. Até julho de 2013, eles não tinham recebido um posicionamento do poder municipal de Vitória do Xingu.


6. Estudo de caso: Agrovila Leonardo da Vinci

Figura 6.3-19: agrovila Leonardo da Vinci, a partir da BR-230 (fonte: acervo pessoal. Julho de 2013).

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7. Consideraçþes finais


7. Considerações finais

Ao longo deste ano, os estudos feitos sobre a formação da rede urbana na Amazônia permitiram constatar que o espaço físico, político e social da região continua fragmentado e disperso. Os efeitos das políticas adotadas historicamente para a região ainda se perpetuam e trata-se, ao que se apurou, de políticas autoritárias, mal informadas, mal planejadas, mal implantadas e inacabadas.

conhecimento acerca da região, ainda pouco difundido, mesmo hoje dificulta sua integração plena ao restante do país. É premente enxergar a Amazônia para além das imagens pré-concebidas para que se possa atuar na região de maneira efetiva, participativa, com consciência social, ambiental e política. Ouvir seus habitantes, apoiá-los e integrá-los para que tenham melhores condições de vida e de desenvolvimento, com novas oportunidades.

Ainda é possível observar alguns dos aspectos que caracterizavam a região no passado: a dificuldade de acesso, a menor integração com o restante do país, o conflito entre preservação (tanto ambiental como dos modos de vida tradicionais) e “progresso”, o contraste entre alguns poucos centros urbanos primazes e a carência de grandes áreas, a interpenetração do rural no urbano e vice-e-versa. A Amazônia ainda recebe um volume considerável de pessoas em busca de terra e oportunidades, ao mesmo tempo em que abriga grandes latifundiários e vem se consolidando como área de expansão da cultura de soja. A região tem diversos conflitos e tensões sociais que, no geral, ficam ocultos ou esquecidos pelo grande público. O estudo de caso realizado em Leonardo da Vinci (Pará) mostra que ainda são os projetos faraônicos governamentais que desencadeiam mudanças, sejam positivas ou negativas. Há um modelo de ocupação do espaço e aproveitamento dos recursos, que se repete: a expansão colonial segue-se a expansão do capital, sempre interesses exógenos aos da população local. No entanto, nesta população foi possível perceber um desejo muito grande de prosperar, uma esperança latente em ser dono do próprio destino. A imagem da Amazônia como terra de oportunidades se adapta aos novos tempos, mas é real e constante para os habitantes da região e para aqueles que, vindos de outros lugares, fixam-se na região e se instalam com suas famílias e seus sonhos. A Amazônia é ainda um ponto estratégico do território brasileiro. O 81


8. Anexo: entrevista


8. Anexo: entrevista

Transcrição de entrevista realizada em 30 de julho de 2013 com Sr. Orlando, morador da agrovila desde sua implantação, em 1971. A conversa ocorreu na residência do entrevistado, em Leonardo da Vinci.

cômodo. No meio, a COBAL, que era o armazém do governo, e no canto de lá uma farmácia. Quando tivesse tudo montado, aí que começava a fazer a vila.

Participantes: Sr. Orlando - O, Sr. Israel - I (morador de Altamira que nos acompanhava na visita de campo) e Thaís - T.

T: E o senhor já está aqui desde esse barracão, então? O: É, desde o barracão, eu vim fazer o barracão.

Thaís: Faz tempo que o senhor mora aqui?

T: E colocaram escola? Essa escola é nova ou é daquela época?

Orlando: Sou o primeiro morador. Fiz a primeira casa aqui desse lugar. Thaís: Foi na década de 1970, não é?

O: Não, aí depois que começou. Quando terminou a vila, fizeram uma escola ali embaixo, tem uma casa que é a cozinha da escola, ainda tá lá embaixo.

Orlando: É, foi em 1971 que a gente chegou aqui, que começou essa vila.

I: Só uma curiosidade minha, essa vila nessa época foi naquele estilo das casas do INCRA?

Thaís: E o senhor veio de onde?

O: É.

O: Do Paraná. Ela (a esposa) é paranaense e eu sou catarinense.

I: Todas as casas?

T: Como era aqui antes, senhor Orlando?

O: Todas, todas as casas daquele jeito. Era uma carreira desse lado (lado da vicinal), outra do lado de lá e duas atrás, de atravessado. Aí eles botaram a janela das casas, aqui era uma cor, lá outra cor, então o nome da rua era a cor da janela. Daí rua verde, rua amarela.

O: Aqui, quando começou era só mato. Eles tinham derrubado essa área aqui, que tem as casas, até onde tem a última carreira de casa. Aqui era cheio de juquira (tipo de vegetação arbustiva de porte baixo, daninha). A gente esperou uma semana ali do outro lado da lagoa, que a gente fez um barracão de lona. Aí que veio um trator e eles começaram a limpar aqui. Desceu limpando. Primeiro vinha um grupo de carpinteiros, acho que eram cinco carpinteiros, aí faziam uma casona comprida para botar a COBAL, que era o armazém do governo. Na frente para vender ferramenta, toda a ferramenta que o cabra usasse tinha na frente, em um

T: E quantas casas tinham, mais ou menos, quando começou? O: Na época, acho que tinha umas sessenta casas. Acho que era dezesseis nessa carreira, dezesseis lá e dezesseis em cada carreira do fundo. Era isso. 83


Leonardo da Vinci, Pará: um olhar sobre a ocupação territorial na Transamazônica

T: E quando foi que começou a chegar mais gente?

T: Por causa do calor?

O: Não, na hora que terminou as casas, era tanta gente que o INCRA botava era dois numa casa (duas famílias). Dois numa casa, três na outra casa. E aí ia saindo, conforme ia saindo uma casa pronta, botava gente. Saísse uma casa pronta, já tinha gente. O pessoal ficava para lá de Altamira, num lugar chamado João Pezinho.

O: Não, ela morre, dá um negócio na casca assim que descasca embaixo e ela morre. Ela dá uma carga e morre. A laranja aqui é desse jeito. Aí quando acabou a laranja eu plantei o cacau. Tem até um pé de laranja ali, ainda, que sobrou. T: Mas quase todo mundo plantava cacau? Ou não?

I: Mas sabe porque, porque naquela época o governo trouxe gente para colonizar aqui. Naquela época, as casas aqui, era para os colonos que moravam aqui, cada colono tinha uma casa. O: É, quem tinha o lote perto, a casa era aqui na vila. Quem tinha o lote longe, a casa era no lote. Esse lote aqui beirando tudo (beirando a estrada vicinal), eu tenho essa casa aqui porque meu lote era aí atrás. Eu ia aqui, para o meu lote, do outro lado daquela rua, da vicinal. T: E os outros lotes ficavam muito longe das outras casas? Ou era tudo assim, pertinho?

O: Não, em tudo não. Aqui (na agrovila) bastante gente plantava cacau, mas cacau era mais do outro lado do rio, mesmo, no 90 (travessão do 90 km da BR-230). Mas tem cacau aí em todo lado, depende do tipo de terra. Terra fraca não pega cacau, não. Até dá o pé, mas não tem cacau. T: E agora que está mudando bastante coisa por aqui, né? O: É, agora que está mudando, todo o tempo está mudando. Aqui tinha tanto pium, não sei se você sabe o que é pium? T: Não sei, não.

O: Não, era esses lotes vizinhos, aqui. O que não era vizinho, aí era feita lá no lote a casa. Acabava que eles não vinham muito para cá (para a vila), não. T: E o que mais se plantava, o que mais tinha era cacau? O: É, eu plantei cacau aí quando eu vim naquele tempo. Naquele tempo dava um capim alto assim, quando secava os caras tocaram fogo. Tentei plantar duas vezes aí, os caras queimaram. Eu não plantei mais. Mas aqui a maioria plantava era cacau mesmo. Ou pimenta, pimenta-do-reino. Aqui (no lote urbano, o lote da casa) eu plantei primeiro laranja de enxerto, em tudo, mas não aguenta, a laranja aqui não aguenta. 84

O: É um mosquitinho pequeninho assim, que ele chupa a gente até não aguentar. Se deixar, ele chupa até cair no chão, não aguenta voar mais. E coça que é uma coisa. Aqui tinha tanto pium que eu tinha que carregar a camisa abotoada aqui (no alto do pescoço, o colarinho todo abotoado), um cano de bota bem alto, a botina com a calça, e para proteger a mão e o rosto tinha de carregar um vidro com querosene ou óleo de comida. Para passar no rosto, e aqui em cima da mão. Se não, não dava de tanto pium que tinha. T: E porque o senhor veio para cá?


8. Anexo: entrevista

O: Eu vim, foi porque eu era empregado. Se a pessoa me perguntar o que eu passei de mais ruim no mundo, chama emprego. Para mim, né. Eu vim para sair de ser empregado, eu era caminhoneiro. Eu tinha raiva de ser empregado, então vim para cá para sair de emprego. E nós saímos, nós temos quarenta anos aqui. Só que nós temos muita coisa na cidade (em Altamira), muita coisa. Aqui não arrumou ainda porque nós compramos um bocado de casas já meio velhas lá na cidade e eu estou reformando lá. Enquanto não terminar de reformar, tudo bem beleza, eu não vou mexer na minha casa. Só quando terminar lá. T: E o senhor aluga as casas? O: É, a gente aluga, aluga sim. Eu tenho dez apartamentos e ela (a esposa) tem cinco casas. Eu vendi aí, um lote de 100 hectares, deu para comprar isso tudo. Para lotear, eles vão lotear desde a lagoa até lá no alto, vai ser casa, vai sair loteamento.

T: E a maioria das pessoas aqui da vila veio do Paraná, do sul, como o senhor? O: Não, não. Aqui tem gente, eu acho, de todo o estado. Agora, né, porque aquele povo antigo não tem mais. T: Mas os primeiros moradores vieram de onde, então? O: Era de vários lugares, trazia de todo o lugar do Brasil. Mas acho que a maioria era do nordeste, sim, por causa que era muito seco por lá. Aí depende, tinha uns barracões grandes lá no João Pezinho, em uma agrovila que tem para lá da cidade. A primeira, uma cidadezinha que tem desse lado. Levava primeiro para lá. Assim, era aqueles barracões compridos, aí ia separando e trazendo gente de tudo que é canto, mais do Ceará, aí misturava tudo. Fazia uma mistura. T: E posto de saúde, para ir no médico, já tinha naquela época?

T: E um dos terrenos era do senhor? O: Era aí, um terreno meu. Eu, para ficar aqui, eu comprei esse lote por 1.000 cruzeiros. Se não, eu estava lá no 110 (110 km da rodovia Transamazônica), para lá.

O: Não, não tinha nada não. Aqui não tinha nada. Eu me lembro que quando eu cheguei fez um poço de água lá em baixo e eu fiz a caixa do poço, assim. Corria água para dentro, então eu fiz de cimento, fiz em volta assim um piso e coloquei meu nome. Meu nome e a data, 21 de março de 1972.

T: Então esse lote o senhor comprou? Logo que chegou? T: E quando precisava ir no médico, fazia como? Ia para onde? O: Foi, sim, eu comprei. Comprou assim, a gente ia lá no INCRA, era em um mapa grande, ele só botavam o nome do cara na planta aqui do lote, de lápis. Qualquer coisa, eles apagavam e botavam o de outro. Eu disse que dava 1.000 cruzeiros, aí ele me disse “bora lá” e trocou o nome que estava. Ele apagou e botou meu nome. Ele sabia de um lote aqui na frente, pegou o lote e trocou o outro cabra de lugar. Se alguém tivesse oferecido 1.100, eu que ia dançar, entende.

O: Não tinha jeito, ia para a cidade. T: Porque aqui perto não tem nenhuma agrópolis, né? O: Não, não tem. Era para ter, mas não tem, não sei porque não fizeram. Aqui é agrovila que chama, agrovila Leonardo da Vinci, e cada agrovila 85


Leonardo da Vinci, Pará: um olhar sobre a ocupação territorial na Transamazônica

tinha um nome. Aí o INCRA vinha e botava um prefeito, a primeira casa era o prefeito da vila. Que era um técnico, né. Ele era o prefeito da vila, foi ele que escolheu o nome Leonardo da Vinci. Acho que é de um pintor que ele gostava, acho que é isso.

velha do INCRA lá embaixo e veio para cá e não sai daqui. Os filhos vem aqui, falam que levam ela na cidade, na igreja lá e depois trazem ela de volta. Ela não vai. Nós temos onze filhos T: É mesmo? E nenhum mora aqui?

T: E ele ficava até quando? O: Ele ficou até quando o povo foi cada um para o seu lugar, foram para o lote. Porque quando cada um arrumava o lote, ia embora. Aqui era só uma parada, só para fazer alguma coisa que precisasse. O cabra ganhava um salario por seis meses do governo, aí só que o povo, a maioria que ele trazia, ia embora. O povo só vinha passear. Vinha de avião, aterrissava em Altamira, aí o cara vinha aqui, via o mundo de pium daquele jeito, e ia embora. Vinha um, ia embora, trazia outro, ia embora. Era assim. E o INCRA dava rede, dava panela, dava comida, dava tudo. Dava tudo para o sujeito, e o cara não queria nada. É que quando o cara não quer nada, você pode dar tudo aí para ele, que ele joga fora.

O: Não, só o caçula, que ainda tá mamando. O resto foi embora para a cidade, para Altamira. A gente tem seis lotes aí na Assurini (estrada do Assurini, na região de Altamira), e aí um deles mora lá. Os outros tão na cidade. Um faz documento de carro, o outro tem caminhão, cada um se vira e a gente ajuda. T: E quantas casas dessas do INCRA, como a que o senhor tinha, ainda tem daquela época? O senhor sabe? O: Pouca. A última vez que eu vi tinha umas cinco ou seis, agora nem sei mais. Elas eram assim, de escama, de tábua deitada, uma por cima da outra.

T: E aqui, hoje em dia, quantas pessoas o senhor acha que tem morando? T: E o senhor acha que o INCRA ajudou bastante naquela época? O: Eu nem sei mais. O cara fica velho e não sai mais de casa. Daqui eu só saio para a cidade. E tem pouco tempo é tanta gente chegando e indo embora que eu não sei mais dizer. T: O senhor não usa nem esse posto de saúde? O: Nós não usa, não. Eles tem até bronca com nós. Eles não vem aqui com bronca com a mulher, a enfermeira chefe disse que ia fazer ela assinar um papel como ela não tinha responsabilidade nenhuma com a gente. Porque nós não vamos nesse posto. Ela (a esposa) não sai daqui, tem quarenta anos aqui, tem cinco casas lá na cidade e não sabe onde é, não sabe que cor é a casa, nada. Tem quarenta anos aqui, saímos de uma casa 86

O: Ajudou muito. Olha só, eles davam panela, davam rede, davam comida, davam um salario. Dava para começar a vida de novo. Só que o povo não queria. Trazia um povo que já não dava mais nada para lá. Não comigo, eu sempre me interessei por possuir as coisas. Sempre me interessei. Eu sou adventista da promessa, sabe. O pastor disse que não é errado a gente querer ter as coisas, para cuidar da gente, dos filhos. É a religião mais certa, mais de acordo com a Bíblia. Tudo que tá na Bíblia, é o que o pastor fala lá na igreja, sabe. T: E a terra aqui é boa?


8. Anexo: entrevista

O: A terra aqui é boa. Olha, o cacau carrega que não é brincadeira, e sem adubo. Eu tenho 270 pés de cacau, dá muito cacau. Mas eu sei de gente que deu azar, pegou terra ruim. Aí é difícil. E o meu terreno vai daqui até lá na outra rua, até a vicinal que já tá com saneamento todo pronto. Tá faltando asfaltar, por causa do loteamento. Lá é para sair 1.000 casas, vai até perto da lagoa. Era meu, o cara comprou para lotear. Faz um ano já. Era pasto aí, não tinha nada, só juquira. Faz um ano que ele comprou e largou mão. Só agora vai lotear.

em Israel, Inglaterra, França, Alemanha, tudo. I: Mas e sua senhora? Se ela não gosta de sair de casa... O: Ah, ela fica. Se ela não gosta, ela fica aqui. Eu levo uma filha para fazer companhia, para não ir sozinho. Onde eu vou, levo uma filha, porque eu já tô esquecido demais, a gente fica velho e fica esquecido. Eu larguei meus dois caminhões para o meu filho porque tô esquecido demais, não dou mais para dirigir.

T: E onde o senhor vende esse cacau? T: Quantos anos o senhor tem, sr. Orlando? O: Lá em Altamira. Cacau é dinheiro na mão, cacau não é fiado, ele é a preço de dólar. Se o dólar subir, ele sobe, se o dólar baixar, ele baixa. Só que quem ganha mais é eles lá que compram, os atravessadores. Tá muito barato, 4 reais o quilo do cacau não compensa. Para o colono, é complicado. Eles falam muito de discriminação lá no congresso, que o cara é discriminado, não falam? O colono, o cara que faz a comida, é o mais discriminado. Todo o tempo foi, desde eu menino. É o mais discriminado do Brasil, é a pessoa que faz comida. Porque a renda dele é de um ano para o outro, né. Ele gasta todo dia, e não ganha todo dia. Você conhece o colono de longe porque você vê o cara mal vestido, todo rasgado, todo sem cuidado. E é o que faz comida para todo mundo. E se der muita chuva ou não chover, ele tá lascado. Coitado do cara. Aqui no Pará não existe muito desse problema porque a gente já sabe, é seis meses de sol, seis meses de chuva. Não sai muito disso não. E doze meses de calor, porque a gente tá em cima da linha do Equador. Os marcos da linha do Equador são lá no Amapá. Aí, é assim, de um lado é calor, do outro frio. De um lado é aqui, o Brasil, do outro os Estados Unidos, a Inglaterra, a França. Eu só não sou estudado, mas eu sei desenrolar os assuntos. Porque as coisas todas, a Guerra do Vietnã, e tudo o mais, eu assisti tudo pelo rádio. Mas se Deus quiser, ainda vou conhecer esse mundo até no fim. É que eu quero arrumar minhas coisas, aí quando arrumar eu quero ir

O: Eu tenho 74 anos. Vim para cá com 32, 33 anos, quase. Eu casei com 32 e ela com 16 anos. Aí ela não queria tomar remédio para não ter mais filho, a gente já tinha três, para mim estava bom. Disse que o remédio fazia adoecer e não operava também, de jeito nenhum. Até que deu muito menino, onze no total, aí ela resolveu operar. Aí já estava demais. T: A viagem para cá foi com ajuda do INCRA? Como o senhor veio? O: Eu vim de ônibus, com ajuda do INCRA, sim. O INCRA trazia todo mundo, fazia tudo. Os cara não tiveram sucesso aqui, em Leonardo da Vinci, porque não quiseram. Acho que era o governo do presidente Médici, não lembro mais. Aqui, naquela época, quando chovia, despejava um tanto de terra, não dava para andar mais. Aí só dava para andar mesmo era de helicóptero, tinha um heliporto na cidade e no inverno (época de chuvas), era só helicóptero, um atrás do outro. Trazendo colono, levando colono, trazendo comida. T: E por que o senhor acha que pararam de fazer as vilas? O: Eles fizeram um bocado de vilas, né. Mas não sei, não. Brasil Novo, 87


Leonardo da Vinci, Pará: um olhar sobre a ocupação territorial na Transamazônica

era vila também, mas eles fizeram mais ajeitado, já foi quase como uma cidade. Aqui era menor, né. Na Transamazônica era tudo vila. Mas pararam, não sei dizer porquê. Aqui o município é Vitória do Xingu, mas é coisa mínima essa Vitória do Xingu. O rio vem dali, faz uma volta e vem aqui. Essa barragem, eles estão desviando o rio daqui para cair no rio de novo. Não sei o que eles vão fazer na parte que tem a rodovia, a Transamazônica. Primeiro eles iam passar por baixo, só que lá tem minério, acho que aquela firma que tira minério lá em Marabá, acho que é Vale o nome, vai instalar aqui, já estão indenizando os lotes que vão ter que sair por causa do minério e do trilho do trem. T: Então tem energia e tem minério, é isso? O: É isso. Antigamente, os políticos eram tudo ladrão, mais ladrão que hoje, porque ninguém ligava para nada. Aí eles botaram uma firma para pesquisar aqui, para a barragem. Um mundo de barragem, só que era só para comer dinheiro. Não valeu nada, não usaram nada. Fizeram outra pesquisa depois. Depois que parou um pouco a roubalheira, que deram um breca lá no congresso, veio outra firma e fez de novo. Agora vamos ver como fica, né, que a gente ainda não sabe. Pode até ser que fique melhor por aqui, mas se Deus me ajudar, eu vou estar viajando o mundo todo. Só vou ver depois.

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8. Anexo: entrevista

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9. Bibliografia


9. Bibliografia

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