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CARTA DA AUTORA AOS SEUS LEITORES APRESENTAÇÃO


CARTA DA AUTORA PARA SEUS LEITORES


Caros leitores,

Daqui de onde escrevo, vejo o mar, sinto sua brisa, seu cheiro. Daqui de onde escrevo esta carta, apresento-lhes uma história resultado de uma experiência de 10 anos de viagens por ilhas ao redor do mundo. Daqui de onde escrevo, trata-se do saber das coisas por estar vivendo, em movimento. Aprender a passar constantemente de um lugar para o outro tornou-se meu projeto, já que sempre foi meu destino. Daqui, proponho-me que não seja complexo o que escreverei, pois o que escrevo é mais do que invenção, é minha obrigação contar sobre essa longa travessia e LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela. Rio de Janeiro: Rocco, 2006. P.10. 1

meu processo como artista em viagem.1 Daqui de onde escrevo, vou pensando que este livro nasce de um naufrágio, nasce do entre, dos muitos movimentos que acabam por desmanchar os territórios, fazendo-me repensar meu lugar no mundo e, consequentemente, meu próprio trabalho. Daqui de onde escrevo é um aqui, um lá e um acolá. É que daqui há um desejo de que o fazer artístico e o pensamento se conjuguem. Não se trata de tarefa simples, pois tais perímetros vão se revelando no decorrer e no final do trabalho. Como se a vista fosse desembaçando ao longo do percurso da produção. Escrever certamente é a busca desse território.


Mas, veja bem, não se trata de uma busca por demarcações fixas ou algo acabado. Mas sim de um contorno, um lugar, para que então eu possa me permitir aos cruzamentos com mais consciência de meu processo.

≈ Vocês terão que me acompanhar com muita atenção nos caminhos por onde vamos passar, pois não estamos em uma viagem clássica, de narrativa linear, tampouco serei sua guia turística pelas ilhas por onde passaremos. Aqui, estamos começando uma história que incorpora esses 10 anos de viagens. E juntos, constituindo um arquipélago, convocaremos um corpo nesta leitura. Bem, o que estão esperando? Estiquem as pernas, sentem-se confortavelmente, acomodem os pés numa almofada, regulem a luz do abajur se necessário. Façam isso agora, porque, logo que mergulharem na leitura, não haverá meio de mover-se.2 Bem, melhor não, pois já estamos partindo para alto mar - para cruzar o Atlântico! e os movimentos são intensos. Prontos? Vamos lá. A história vai ter uma personagem: Ella. Ella é um desdobramento da autora que lhes fala, assim como a narradora que ganha voz entre um

CALVINO, Italo. Se um viajante numa noite de inverno. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. p12. 2


capítulo e outro das aventuras de nossa personagem em busca de ilhas. Como estamos a embarcar numa viagem, a intenção é promover um deslocamento na própria escrita, a partir da fragmentação daquele que escreve. Digamos que neste livro o possível não é o possível CALVINO, Italo. Coleção de areia. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. P272. 3

absoluto, mas o possível para mim. 3 E nem sequer todo possível para mim. 3 A questão é: não me interessa uma autobiografia artística, narrar e descrever o que já fizera. Aqui, devem ser possibilidades à margem daquilo que sou e faço, alcançáveis com um salto fora de mim que permanecesse nos limites de um salto possível. 3 Aqui, trata-se de um livro com uma escrita que incorpora o trabalho desenvolvido ao longo dos anos em viagem e, ao fim, torna-se a própria experiência, não um produto sobre ela. É de bom grado avisá-los que esta história não se trata de uma ficção.

BACHELARD, Gaston. A água e os sonhos: ensaio sobre a imaginação da matéria. São Paulo: Martins Fontes, 1998. p33. 4

BACHELARD, Gaston. A água e os sonhos: ensaio sobre a imaginação da matéria. São Paulo: Martins Fontes, 1998. p109. 5

Pensem também como um desdobramento do real, a invenção como potência, incorporação, para ampliar os territórios da escritura.

≈ Por isso a água, elemento da profundidade e dos sonhos.4 A água desempenha um papel inesperado, ora une, ora desune.5 Por isso o mar: movimento.


E o Oceano, o Atlântico. Nesse mar Oceano (nome do antigo Atlântico), lugar da primeira grande travessia marítima e de encontro com outros mundos. Na solidão em mar, no movimento das águas, debrucei-me sobre a história da viagem e sua literatura, em especial as narrativas das grandes travessias e aquelas que narram a relação com o mar. Numa necessidade de entender os caminhos passados, investiguei os territórios de artistas em viagem, para que pudesse entender o meu próprio caminho, mesmo que em deriva. Ao longo das muitas viagens, percebo uma metodologia próxima à do etnógrafo. Mas me deparo com um incômodo. Tomando os rumos do meu processo, passo a interrogar o social e o político sobre a limitação do “objeto de arte”, suas implicações nas identidades culturais, nos paradoxos e nas dinâmicas do contexto social e do cotidiano, nos meandros da dialética global/local. Nesse ambiente de resistência, é a dimensão da relação crítica com o outro que emerge como crucial para o entendimento de diferenças simbólicas no mundo contemporâneo. Voltemos à metodologia. Assim como o viajar entre ilhas, as coletas, o modo de ver/olhar, produzir, expressar; tudo é fragmento. Por isso, é assumida aqui a escrita como uma grande colagem.


Aproprio-me da fala do outro para gerar uma outra, contar minha história, numa grande montagem de textos, na composição de uma grande colagem pela escritura. Sendo assim, todas as referências e citações são apontadas de forma indireta, respeitando a obra de cada autor referenciado, mas com a intenção de uma ação sutilmente subversiva no âmbito acadêmico a partir da proposta de colagem. Nesse sentido, proponho a construção de uma escrita que se avizinhe de um produzir literário. Uma escrita singular e multiforme que seja capaz de articular outras formas de conhecimento como a filosofia, a antropologia e a literatura.

≈ Não quero me adiantar demasiado com a história, mas já aviso: muita atenção com os ventos do mar. Às vezes, ao tomar um vento contra, o barco pode naufragar. Estamos viajando em um pequeno veleiro, e são os ventos e as marés que conduzirão nossa rota. E, sem dúvida, por vezes, naufragar é preciso. Morrer para aquilo que já não é criação. Vulnerabilizar o corpo e o expor ao risco. Permitir o contato e o atravessamento de forças várias. Não mais como um sujeito cartesiano, seguro em suas certezas.


Mas como quem se banha na água e no sal pelo qual navega. Composição de carne-mar-caos.6 Não adianta pré-projeto. Não adiantam roteiros bem escritos. Não adiantam mapas nesta viagem. Por ser movimento, e por estar em movimento, o processo de criação se desvela constantemente num

FARINA, Cynthia; MARTINS, Ronie Von. Aprendizagem Do Naufrágio: Moby Dick, Ahab, um leitor e o muro. Educação em Revista. Belo Horizonte, v.27, n.02, p.21-40, ago. 2011. 6

certo tipo de acaso.7 Os territórios se movem, os sentidos mudam, as direções variam a todo momento. Os afetos atravessam e, entre uma viagem e outra, talvez vocês percebam que os encontros, o outro, tornam-se a bússola do meu trabalho. Ao enxugar os olhos turvos de água salgada, aos

SANSI, Roger. Art, anthropology and the gift. Londres: Bloomsbury, 2015. Edição do Kindle. p.9. 7

poucos, vou percebendo não mais o interesse na arte em si, mas nas coisas que podemos fazer com a arte. Buscar novas formas e objetos de arte, dialogar com o mundo ao meu redor a partir de práticas artísticas que falem sobre coisas e pessoas, produzir arte que realmente faz alianças com pessoas.8 Aí, lá, já não é mais fragmento, pois não basta mais recolher, é preciso compor.

≈ Mas voltemos ao aqui. Cuidado para não marearem, esta leitura é material líquido, sugere movimento, mergulhos e respiros. Vejo agora que esqueci de dizer que deixo um mapa ao

SANSI, Roger. Art, anthropology and the gift. Londres: Bloomsbury, 2015. Edição do Kindle. p.2. 8


fim deste livro com todos os pontos de encontro dessa viagem. Nesse mapa, assim como em todo o livro, vocês não encontrarão uma carta de navegação com demarcações geográficas, mas sim um apontamento para movimentos em ziguezague. Uma saída. LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela. Rio de Janeiro: Rocco, 2006. P.18. 9

Quero acrescentar, à guisa das informações sobre Ella e sobre mim, que vivemos exclusivamente no presente pois sempre e eternamente é o dia de hoje. E no amanhã que também será um hoje.9 Não se trata apenas de narrativa, é antes de tudo vida

LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela. Rio de Janeiro: Rocco, 2006. P.12. 10

que respira, respira, respira.10 De uma coisa tenho certeza. Esta narrativa mexerá com algo delicado/potente: a criação de um arquipélago inteiro. Ainda bem que o que estou a escrever já está na certa de algum modo inscrito em mim. Voltarei algum dia a ver Ella e suas ilhas? Duvido muito. Ella sempre será mar. Agora, daqui de onde escrevo, sou continente com uma longa costa para o mar.


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