Entre a Cura e o Preconceito - Caderno especial

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ESPECIAL

Psoríase Vitiligo Hanseníase Essas doenças modificam a aparência, baixam a auto-estima e em alguns casos colocam portadores à margem da sociedade. Conheça as histórias de vida e superação de pessoas que lutam contra o pior dos sintomas: o preconceito

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>>editorial

Preconceito à flor da pele

Mostrar histórias emocionantes de pessoas que são estigmatizadas por portarem doenças que interferem negativamente na aparência foi desde o início o objetivo desta serie de reportagens. A hanseníase, o vitiligo e a psoríase são enfermidades que se manifestam sob forma e aspectos diferentes, mas que trazem uma característica em comum: transformam a aparência de quem as desenvolve, provocando constrangimento. Logo à primeira vista os portadores despertam reações adversas como pena, receio e sobretudo discriminação. No desenvolvimento desta série percebemos que essas pessoas estão envoltas em um dilema: ao mesmo tempo em que procuram de todas as formas a cura para a enfermidade, se deparam com o maior dos obstáculos, o preconceito. As marcas da hanseníase, que em muitos casos persistem após o tratamento, sentenciam os ex-portadores a uma vida restrita, já que em sua grande maioria são discriminados e impedidos de se reintegrar à sociedade. O mesmo acontece com os portadores de vitiligo e psoríase, doenças dermatológicas que condenam seus portadores à exclusão social devido aos danos estéticos que elas provocam. Apesar de não serem contagiosas, a maioria das pessoas geralmente se afastam de seus portadores pela aparência deles. Assim, com o intuito de minimizar este mal, conversamos com especialistas ligados ao tema a fim de esclarecer cada doença, além de explicar como se manifesta os principais sintomas e quais são os tratamentos adequados. Esperamos que ao final desta leitura muitos possam rever seus conceitos e entender que nem sempre a primeira impressão é a que fica.

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Thais Queiroz

>> índice MARCAS PROFUNDAS..................................................................................... 3 PSORÍASE: DISCRIMINAÇÃO À PRIMEIRA VISTA................................................. 8 HANSENÍASE AINDA É TABU NA SOCIEDADE................................................... 13 VITILIGO: QUANDO A APARÊNCIA É O ÚNICO (E O PIOR) SINTOMA................. 20

EXPEDIENTE Projeto Experimental II do curso de Comunicação Social Habilitação em Jornalismo Faculdade Maurício de Nassau Reportagens: Thais Queiroz e Natália Albuquerque Fotos: Natália Albuquerque e Valter Andrade Edição: Thais Queiroz Diagramação: André Marinho Professora orientadora: Shirlene Marques Recife 2008 2 Entre a cura e o preconceito - 2008


MARCAS PROFUNDAS Texto: Thais Queiroz

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uem escuta as risadas gostosas de Maria Zilda nem imagina quantos motivos para chorar a vida lhe deu. Diagnosticada com hanseníase ainda criança, passou a morar desde então dentro de um hospital. Até hoje carrega as seqüelas que marcaram seu corpo e, principalmente, sua liberdade. Hoje, mesmo curada, continua morando no Hospital da Mirueira, centro médico especializado no tratamento da doença. Sua casa fica na chamada Vila dos Casados, espaço onde os portadores de hanseníase eram isolados. Mesmo assim, sua história não a impediu de ser alegre, falante e estar sempre disposta a ajudar os amigos. Uma das poucas coisas que deixam Maria Zilda triste, porém, é quando ela começa a lembrar do preconceito que ainda sofre. “Há pessoas que se afastam de mim quando sabem que tive hanseníase”, conta. Os percalços sofridos por Zilda são comuns aos portadores de enfermidades que marcam a pele, modificam o corpo e causam discriminação. Comportamento que pode ser provocado pelas manchas brancas que invadem o corpo, causadas pelo vitiligo. Ou então pelas lesões avermelhadas que se destacam na pele, sintomas da psoríase. Por vezes são as cicatrizes e danos físicos, seqüelas

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DOENÇAS QUE MODIFICAM A APARÊNCIA SÃO ALVO DE DISCRIMINAÇÃO

de quem teve hanseníase que destacam os exportadores dos demais. Os resultados do Censo Dermatológico 2006, realizado pela Sociedade Brasileira de Dermatologia (SBD), indicam que os hospitais públicos recebem um maior número de casos de distúrbios dermatológicos que os centros médicos particulares. A psoríase e a hanseníase ocupam a 4ª e 6ª posições em número de atendimentos, respectivamente. Já o vitiligo ocupa a 16ª posição no ranking geral da SBD. A hanseníase, popularmente conhecida por lepra, é uma doença infecto-contagiosa carregada de marcas estigmatizantes. Isso se mantém desde os tempos bíblicos, quando a “doença de Lázaro” era uma chaga irreversível. A lepra era considerada um castigo, como o que aconteceu com Jó, que perdeu tudo e ficou “coberto de chagas pelo corpo”. Mesmo hoje, com os avanços no tratamento e a extinção das antigas colônias, o preconceito persiste. A doença pode ser associada a sensações como medo, nojo e pena. No campo das doenças dermatológicas, existem aquelas que não são contagiosas, embora a aparência provocada pelos sintomas pareça provar o contrário. É o caso da psoríase e do vitiligo, doenças que têm muitos fatores em comum. Quando revelados sob o aspecto psicológico, estes distúrbios se mostram bastante danosos para seus portadores. Afinal, as marcas que se destacam no corpo chamam atenção logo à primeira vista. A despigmentação da pele é o principal sintoma do vitiligo, doença que marca o corpo com marcas claras. Ao contrário do que muita gente pensa, Entre a cura e o preconceito - 2008 3


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não é contagiosa, nem impede seus pacientes de realizarem atividades normais. Assim como a psoríase, pode se manifestar mais intensamente em momentos de desequilíbrio emocional.

indireta matar o paciente. Ele entra em um estágio de depressão profunda. Já foram registrados casos de suicídio em literaturas médicas”, afirma Emerson de Andrade Lima, presidente da

Já a psoríase é uma doença dermatológica que se manifesta através de grandes placas vermelhas no corpo. As placas causam sensações desagradáveis como prurido e descamação. É uma enfermidade congênita, não contagiosa e psicossomática, ou seja, se manifesta em situações de estresse emocional do paciente. “No início, tinha vergonha do que as pessoas iriam pensar de mim. Andava com um atestado médico, caso precisasse provar que minha doença não era contagiosa.”, lembra a dona de casa Maria do Carmo, 53 anos, 36 deles convivendo com a psoríase. Hoje ela se revela bem mais segura com seu corpo, o que não evita os constrangimentos. “Ainda me sinto incomodada. Quando uso uma saia ou vestido, penso que todos que só olham para minhas pernas, que as marcas chamam atenção”, conta. A desinformação acerca das enfermidades, aliada ao preconceito, faz com que estes pacientes

regional Pernambuco da Sociedade Brasileira de Dermatologia (SBD-PE). Por vezes, o preconceito não atinge apenas os pacientes. As famílias também podem ser alvo de manifestações discriminatórias. “Olhavam para mim e só me viam como uma mulher de leproso”, conta a assistente social do Hospital da Mirueira Ednise Oliveira. Ela foi casada com um ex-portador de hanseníase e morava com ele na Vila dos Casados. “Eu nunca tive vergonha de dizer onde morava, mas sentia que as discriminações começavam logo em seguida”, conta. Qual será a relação entre auto-estima, preconceito e

Há momentos em que o preconceito é manifestado pelos próprios familiares e amigos do paciente

se sintam estranhos e sozinhos entre as pessoas ditas “normais”. Caso eles não tenham apoio, a vergonha, baixa auto-estima e a tristeza podem se impor sobre a vida deles, como se fosse um preço a se pagar por ficar doente. “Estas doenças, em seus estágios mais avançados, podem de forma 4 Entre a cura e o preconceito - 2008

doenças dermatológicas? Por que quando elas se destacam de forma negativa na aparência, seus portadores são estigmatizados? Para o filósofo francês Michel Foucault, a sociedade atual está apoiada no conceito de bioidentidades . “Atualmente vivemos sob o estigma do biopoder, ou seja, se antes cada indivíduo era responsável pelo estado do seu corpo, hoje ele deve adequar sua aparência aos padrões vigentes, determinando que ela tenha a obrigação de viver da melhor forma possível”, explica a psicóloga Karina Moutinho, que desenvolve tese de doutorado baseada na teoria de Foucault. Segundo ela, a bioidentidade analisa


as condições sociais pelas quais portadores de trabalho desenvolvido no Canadá durante os anos enfermidades passam. “Hoje você é cobrado para 60 pelo sociólogo canadense Irving Goffman, ser sempre saudável, como se fôssemos os únicos que buscava analisar o culto à aparência, tão responsáveis pela nossa saúde”, afirma. fortalecido na sociedade ocidental. Ele analisou Katina Moutinho avalia pacientes transplantados quais eram os padrões vigentes da sociedade, e e crianças que nascem com deficiências congênitas identificou os indivíduos que se encaixavam neles (como lábios leporinos, doença em que a criança ou não. “O resultado mostrou que as pessoas que nasce sem a pele que reveste têm alguma deformação o céu da boca e faringe). física, psíquica e/ou social “Além de enfrentarem a lutavam para construir uma própria doença, estas identidade social. Eles têm pessoas sofrem preconceito características que os tornam e até rejeição. Há casos em diferentes das outras pessoas, que até os pais da criança sendo isolados por isso”, Amauri Cantilino, psiquiatra rejeitam seu bebê quando explica Alba Maranhão. ele nasce com alguma A informação sempre é o deficiência”, conta. melhor remédio contra o preconceito. Dizem que a A psicóloga afirma que há uma cobrança da primeira impressão é a que fica. Nesses casos, ela sociedade para que o indivíduo se mantenha é mais do que suficiente para gerar opiniões que saudável. “Você se torna responsável pelo seu podem se revelar equivocadas. corpo e sua saúde passa a ser um reflexo de quem “As pessoas costumam associam qualquer lesão você é. No caso destas doenças que lidam com a de pele à doenças contagiosas, idéia que nos casos aparência, então, a imagem que é transmitida aos do vitiligo e da psorísase, por exemplo, revela-se outros é bastante negativa”. infundada”, avalia o psiquiatra Amauri Cantilino. Segundo a socióloga e professora Alba Maranhão, Além disso, até mesmo o auto preconceito pode o preconceito está diretamente relacionado com os contribuir para a rejeição geral da enfermidade. valores de uma sociedade. Isso também vale para “Muitas vezes a pessoa já achava antes aquelas o caso de doenças que são pouco conhecidas lesões feias, antes mesmo de ter uma doença de pelo público. “Isso pode ser diminuído à medida pele, por exemplo”, afirma. Por se tratarem de que a sociedade souber do que se trata”, analisa. doenças de pele, chamam mais a atenção do que Alba cita o exemplo da campanha empreendida outras, mais conhecidas, porém ocultas. Afinal, pela TV Globo para desmistificar os portadores da elas atingem o órgão mais visível do nosso corpo. Síndrome de Down. Em 2007, a novela “Páginas da Vida” apresentou a personagem Clara, vivida por uma down, que serviu de exemplo no combate à discriminação. “Por isso a mídia tem a função importante de diminuir este preconceito”, conclui. Um exemplo de ação midiática nesse sentido é a campanha veiculada pelo ministério da saúde, desde julho de 2008, em que pacientes curados da hanseníase esclarecem as principais dúvidas da população sobre a doença. Alba Maranhão ainda cita um Entre a cura e o preconceito - 2008 5

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“As pessoas costumam associar qualquer lesão de pele à doenças contagiosas”


Márcia Senra/Divulgação

“Há uma tendência natural do ser humano em focar o que é estranho. Com a aparência é a mesma coisa. A tendência é olharmos o que há de errado e perguntarmos qual o problema da pessoa. Até mesmo por simples Márcia Senra, curiosidade”, diz Cantilino. coordenadora Segundo o psiquiatra, do departamento em uma sociedade onde de psicodermatoses conceitos como beleza da SBD e perfeição plástica são valorizados, a saúde tem de ser refletida na aparência. E faz uma analogia com os personagens de histórias em quadrinhos e desenhos animados. “Os super heróis sempre aparecem com a pele lisa, sem defeitos ou imperfeições. Tomemos como exemplo o Shrek (Personagem da série animada homônima da Dreamworks). Ele é um ogro da floresta, deveria ter uma aparência diferente, no entanto, sua pele é lisa, perfeita, porque ele é o mocinho da história. Já os vilões são caracterizados sempre com uma marca em seus rostos, como a famosa verruga das bruxas”. Segundo o psicólogo, essas associações entre aparência e personalidade, tão difundidos das tramas maniqueístas (bem versus mal), também ocorrem na vida real. “As pessoas podem pensar que aqueles pacientes não se cuidam, por exemplo, uma vez que as doenças de pele estão associadas à pouca higiene”, constata. PSICODERMATOSES: RELAÇÕES ESTREITAS ENTRE A PELE E A MENTE Acontece com todo mundo. Quando ficamos nervosos, o corpo treme, o coração bate mais forte, o rosto começa a suar frio. São reações normais do nosso corpo às emoções. Mas você sabia que o aspecto da sua pele também pode dizer muito sobre o que você está sentindo? O órgão mais visível do nosso corpo é também o principal indicador de que está acontecendo alguma coisa conosco. E é esta relação o foco da psicodermatologia, ramo da medicina que faz a interação entre a mente e a pele. 6 Entre a cura e o preconceito - 2008

“A psiquiatria é mais focada em doenças internas, não visíveis, e a dermatologia nas doenças externas, visíveis”, explica o psiquiatra Amauri Cantilino. Segundo a dermatologista Márcia Senra, coordenadora do Departamento de Psicodermatologia da Sociedade Brasileira de Dermatologia, a relação mente-pele acontece por meio de uma ponte complexa que envolve os sistemas neuroendócrino e imunológico. “A cada estímulo, são liberados neuro transmissores capazes de se comunicar com o sistema nervoso e a pele”, afirma. Por isso, as psicodermatoses, distúrbios ligados à aparência que têm relação direta com o lado psicológico do paciente, podem ser desencadeadas tanto por um problema psicológico quanto por uma doença de pele. “É uma via de mão dupla. Tanto a doença pode causar problemas psicológicos quanto o estresse pode ser refletido na manifestação de uma doença”, explica Márcia Senra. Estudos recentes apontam que 40% dos casos de distúrbios dermatológicos estão ligados à psicologia. No caso da hanseníase, a doença desencadeia sensações negativas. Já a psoríase e o vitiligo são uma das formas de expressão das angústias internas. Em maio de 2008, a Academia Européia de Dermatologia e Venereologia (EADV), promoveu em Istambul, na Turquia, o encontro da Sociedade Européia de Dermatologia e Psiquiatria (ESDaP), onde dermatologistas de todo o mundo apresentaram


ao chorar, expressar tudo o que sente, a tendência dessa pessoa é que ela não tenha mais distúrbios decorrentes do seu estado psíquico”, afirma Márcia Senra. A psicóloga Sheila Bispo foi quem introduziu o método na rotina diária dos pacientes do Hospital de Ipanema. Após um curso com Peter Levine, há cinco anos, resolveu aplicar o que aprendeu no Hospital de Ipanema. A terapia está sendo realizada há dois meses no centro médico. “Trabalhamos não apenas com os sintomas dermatológicos, mas com o estado geral do paciente como um todo. A doença de pele pode ser um dos sintomas do estresse e do trauma”, afirma. A psicóloga calcula que 70% das doenças psicossomáticas surge diante de uma situação grave. “Quando paciente mantém uma energia negativa presa dentro de si, este trauma pode desorganizar a fisiologia do corpo, trazendo problemas gastrointestinais, e síndrome do pânico”, exemplifica. Segundo a psicóloga, o tratamento tem dado ótimos resultados. “Os relatos de alguns pacientes com quem tive contato mostram que eles estão lidando com seus traumas”. Sheila Bispo afirma que o objetivo futuro é apurar os resultados finais e posteriormente levar este novo método de terapia em grupo para centros médicos do Rio de Janeiro e outros estados.

Márcia Senra/Divulgação

seus trabalhos e experiências na área. Um dos trabalhos apresentados apontava que portadores de doenças dermatológicas tinham uma qualidade de vida pior até do que portadores de problemas cardíacos. “Um índice que mostra o quanto a aparência é importante em nossas vidas”, avalia Márcia Senra. Por isso, ela ressalta o quão é importante um tratamento multidisciplinar. “Muitas vezes o paciente não tem consciência de que ele precisa de um psicólogo, ou se recusa porque acha que é coisa para maluco. Há vários dermatologistas que procuram entender a dinâmica psíquica para ajudar o paciente na consulta”. Esta dinâmica é trabalhada no departamento de psicodermatoses do Hospital Geral de Ipanema, no Rio de Janeiro, coordenado por Márcia Senra. O centro promove palestras e dinâmicas em grupo. Em setembro de 2008, o hospital passou a aplicar o método psicológico chamado somatic experience durante os encontros. Desenvolvido pelo psiquiatra americano Peter Levine em 1997, trata-se de uma forma de terapia que estuda os sintomas de estresse pós traumático e de doenças associadas ao distúrbio. “O paciente é avaliado por meio das suas sensações físicas. Ele é incitado a extravasar seus sentimentos. São colocadas para fora as emoções que antes eram manifestadas apenas pelas doenças. Assim,

No Hospital Geral de Ipanema, a prática das terapias em grupo ajuda pacientes a lidar com as emoções Entre a cura e o preconceito - 2008 7


PSORÍASE: DISCRIMINAÇÃO À PRIMEIRA VISTA APESAR DE NÃO SER CONTAGIOSA, DOENÇA AFASTA PORTADORES DO CONVÍVIO SOCIAL NORMAL Texto: Natalia de Albuquerque Thais Queiroz Fotos: Natalia de Albuquerque

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oceira, vermelhidão, incômodo constante. Conviver com a psoríase por vezes revela-se uma tarefa árdua. A doença de pele chama atenção sobretudo pelo aspecto, e não são poucos os casos em que o paciente fica até mesmo impedido de levar uma vida social normal. A aposentada Maria José Lourenço, 69 anos, descobriu a doença há dois meses. Desde então, procura se afastar de outras pessoas na rua. Maria José conta que os sintomas surgiram após uma séria discussão entre ela e a família. “Hoje estou coberta de marcas da cabeça aos pés. As pessoas têm medo de mim e eu sofro muito com tudo isso, é terrível. Coço muito as feridas, mal durmo de tanto que incomodam. É como se eu estivesse pegando fogo”, relata a paciente. Já a autônoma Edvânia Maria Santos da Silva, 47 anos, convive com as marcas da psoríase há mais tempo, desde 1991. Ela conta que, durante todos estes anos, passa por uma rotina diária de constrangimentos. Tudo começa já de manhã, quando sai para trabalhar. “Quando entro no transporte coletivo, percebo que as pessoas se afastam com certo ar de nojo. Algumas me perguntam que manchas são essas na minha pele, 8 Entre a cura e o preconceito - 2008

eu chego até a mentir, falo que é uma alergia qualquer”, desabafa. Ao final do dia, na hora de dormir, Edvânia tem de enfrentar mais um desafio. Mas desta vez, é ela quem tem vergonha do próprio marido, com quem é casada há 25 anos. “Hoje me sinto uma pessoa fria. Antes da psoríase eu era alegre. Hoje sei que ele se sente desprezado. A doença está prejudicando até meu casamento”, lamenta. Ela não vai mais à praia nas horas de lazer. “Nunca vou, tenho vergonha das lesões, fico com receio de que todos fiquem me olhando”. As marcas vermelhas em suas pernas e braços chegam a incomodar até o limite. “Há dias em que a pele fica bastante machucada, chega até a sangrar”, descreve. As histórias de Edvânia e de Maria José são exemplos da realidade vivida por boa parte dos psoriáticos, pacientes que desenvolvem a psoríase. Além do incômodo físico, eles têm de aprender a conviver com a doença, porque não há cura. Como muitas pessoas ainda desconhecem o distúrbio, elas não conseguem esconder o medo de se aproximar ou ter qualquer tipo de contato com os portadores. “Hoje é importante explicarmos, cada vez mais, sobre a

Roseane Pedrosa


psoríase. O medo do contágio, por exemplo, que não existe, gera muito preconceito”, afirma Emerson de Andrade Lima, presidente da regional Pernambuco da Sociedade Brasileira de Dermatologia (SBD – PE). Ele coordena o ambulatório de psoríase da Santa Casa de Mi-secórdia, localizada em Santo Amaro, região central do Recife, único no Estado que oferece uma equipe de profissionais direcionada para o tratamento da doença. A psoríase é uma doença inflamatória dermatológica, crônica e in-

curável, identificada na maioria uma diferença das pessoas nordos casos por placas vermelhas na mais: nosso termômetro é a nossa pele, que ressecam e descamam a pele, tudo que sentimos é refletido área atingida. É uma doença con- nela”, afirma Roseane Pedrosa, gênita, ou seja, diretora da Astem origem genésociação de tica. Por isso, não Portadores de há risco de conDoenças Psicotágio. Na maiossomáticas de ria dos casos, as Pernambuco. lesões podem Roseane sabe estar localizadas bem do que está nos joelhos, coEdvânia Santos, 47 anos. Convive com os falando. Psoriátitovelos ou couro sintomas da psoríase desde 1991 ca, 33 anos, cabeludo. Em teve sua primeira alguns casos a crise aos vinte. As doença pode atingir as articulações, marcas surgiram como um reflexo causando a artrite psoríatica ou do pesado trauma pelo qual havia psoríase artropática, forma da passado. Ela foi vítima de violêndoença que pode causar atrofia- cia sexual. “Na época eu entrei mento de membros e articulações. em choque. Dormi por dois dias É considerada uma enfermi- seguidos, e quando acordei estava dade multifatorial, pois se mani- cheia de feridas espalhadas pelo festa por meio de uma combi- corpo. Eu entrei em depressão e nação de ações conjuntas, que até tentei suicídio”, lembra. vão desde o código genético do Tentou buscar respostas com paciente até uma série de fatores um médico dermatologista, que externos, sendo o estresse emocio- avaliou as feridas encontradas nal um dos principais responsáveis no corpo da paciente. O médico pelo desencadeamento ou agravo constatou, precipitadamente, que do quadro clínico da doença. ela estaria infectada pelo vírus da Estima-se que atualmente 3% da Imunodeficiência Humana (HIV), população mundial seja afetada baseado no histórico do estupro. pelo problema. O Brasil é o país Os exames deram negativo. da América Latina com o maior Hoje, ela trabalha no intuito número de casos de psoríase (5 de esclarecer a população somilhões). De acordo com dados bre a doença e ajudar pacientes relativos ao censo dermatológico na mesma situação em que ela 2006, realizado pela Sociedade estava quando ela desenvolveu Brasileira de Dermatologia (SBD), os primeiros sintomas. “Eu tento a doença está em 4º lugar em desempenhar um trabalho social, número de atendimentos nos hos- dando assistência a quem sofre pitais públicos. O levantamento de psoríase, tentando também ir ainda mostra que os homens são atrás de uma possível cura, ou de os mais atingidos pelo problema, medicamentos que aliviem as fericom 3,5% dos examinados, con- das”, diz. Roseane oferece a eles a tra 2% dos casos em pacientes do ajuda que lhe faltou quando mais sexo feminino. precisou. A psoríase é uma doença psiA iniciativa de Roseane em recossomática, ou seja, está ligada integrar socialmente portadores de ao lado emocional do paciente. A psoríase é um passo importante somatização é a forma que o cor- para o controle da doença, pois po encontra de liberar as emoções, o comprometimento da adaptação podendo ocorrer em um ou mais social, aliado ao constrangimento órgãos. “Nós, psoriáticos, temos causado pela existência das lesões,

“Quando chego no transporte coletivo, percebo que as pessoas se afastam com um certo ar de nojo”

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são fatores agravantes para os psoriáticos. “As doenças chamadas psicossomáticas, como a psoríase, sofrem uma influência psicológica e o carinho da família e amigos é imprescindível para o convívio social. Assim, quando a psoríase é tratada de forma multidisciplinar, o tratamento revela-se bastante eficaz”, recomenda Emerson Andrade. Por isso, a psicoterapia comportamental é uma das medidas mais recomendadas para ajudar o psoriático a enfrentar melhor o quadro clínico. Se g u ndo Emerson Andrade, mais de 80% dos casos de psoríase podem ser controlados com o uso de pomadas, cremes, loções e xampus, dependendo do tipo e tamanho das lesões. “A psoríase é uma doença crônica, mas há tratamento. Com os procedimentos corretos, a tendência é que as placas regridam em alguma fase da vida do paciente”, afirma. Em uma sociedade que estabelece rígidos padrões de beleza e adequação, pacientes psoriáticos tendem a sentir-se rejeitados, como se fossem colocados em uma condição inferior. Apesar de não ser fatal, a doença pode em alguns casos levar a um estado depressão profunda. “Há pessoas que deixam de sair de casa, de falar com os outr. A solução adotada por muitos pacientes é o auto-isolamento”, afirma Roseane Pedrosa. Por isso, o simples ato de interagir com outras pessoas torna-se tarefa árdua para os portadores de psoríase. Um dia, enquanto esperava para ser atendida em um posto do INSS, a aposentada Maria Lourenço pôde perceber a reação que sua aparência causa nas outras pessoas. “Fui até o balcão de atendimento da agência e, ao

falar com o atendente, toquei no braço dele. Ele deu um salto para trás, assustado. Tive que pedir desculpas por tocá-lo, de certa forma eu o entendo. O meu estado atual causa esse tipo de reação”, teve de admitir. Histórias de vida diferentes, que mostram o ponto de vista pessoal de cada portadora. Edvânia Maria dos Santos, embora conviva com a doença há 17 anos, parece não aceitar bem o que acontece consigo. A dona de casa Maria Lourenço diz entender o porquê do preconceito das pessoas para com ela. São histórias que servem para provar que quando o paciente nutre a discriminação sofrida, camufla a doença e não consegue atingir uma qualidade de vida adequada.

O aspecto emocional de cada paciente pode contribuir para a melhora ou piorar o quadro da doença

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NOVOS TRATAMENTOS Em Pernambuco, pesquisadores buscam novas alternativas com o intuito de diminuir o sofrimento diário, as dores e as manchas na pele dos portadores de psoríase. Um hidratante natural à base de plantas, composto de extratos de cana de açúcar, babosa e andiroba, em fase de testes, tem revelado resultados bastante positivos. O produto foi desenvolvido pelo diretor farmacêutico Marcos Guedes e é produzido pela TCG Biotecnologia. “O fato de utilizarmos extratos de plantas locais reduz bastante o custo do tratamento”, avalia Marcos Guedes. “Uma cartela de medicamentos específicos, como o Neodigazon, custa 150 reais, enquanto que a loção custará em média 25 reais”, compara. O medicamento já está sendo utilizado pelos pacientes do Centro Dermatológico do Hospital das

Clínicas. O dermatologista do HC, Dr. Luiz Gonzaga de Castro – também psoriático – é o responsável pela avaliação dos resultados obtidos com a nova fórmula. “Desde o início do tratamento com o creme, há mais de um ano, os resultados de uma maneira geral estão sendo satisfatórios”, aponta o médico. A professora Juliana Ferraz, 27 anos, desenvolveu os sintomas da psoríase há 15 anos e usa o medicamento desde julho deste ano. “A


não esperava que fosse dar tão certo”. Segundo Marcos, por se tratar de um produto fitoterápico, não há riscos de efeitos colaterais para o paciente. PSORÍASE: UMA QUESTÃO DE SAÚDE PÚBLICA Um dos principais desafios enfrentados pelos psoriáticos diz respeito à busca por um tratamento gratuito e de qualidade. Além da falta de centros e profissionais especializados na doença, eles ainda têm de arcar com os altos custos dos medicamentos, essenciais na busca de uma vida melhor. Por isso, representantes de associações em defesa dos portadores de psoríase realizaram no dia 23 de março de 2008 uma audiência na Comissão de Seguridade Social e Família, junto ao ministro da saúde, José Gomes Temporão. O objetivo do encontro foi desenvolver políticas públicas voltadas para os portadores de psoríase, tornando-a uma doença de notificação pública. A portadora de psoríase e coordenadora da Associação Brasileira de Estudos e Assistência às Pessoas com Psoríase (ABEAPP), Silvia Galli de Oliveira, representou a instituição durante a audiência. Para ela, o tratamento da psoríase é uma questão de saúde pública, pois afeta uma parcela considerável da população mundial (3%). “Apesar de ser de não ser fatal, a psoríase causa muito preconceito, afastando o paciente da escola, do trabalho e isolando-o da sociedade”, constata. Segundo a coordenadora, as maiores dificuldades dos portadores são o acesso aos medicamentos e aos postos de saúde, que são desprovidos de médicos capacitados

para o atendimento correto do paciente. Foi o que aconteceu com a aposentada Zuleide de Lima Sena, de 62 anos. Ela desenvolveu os sintomas da doença há seis anos, mas conta que levou quase um ano para começar a adotar o tratamento adequado para suas lesões. “Os médicos que eu consultava desconheciam a psoríase. Eles me receitavam apenas corticóides, o que agravava as marcas. Até que encontrei uma médica que me diagnosticou corretamente e eu estou fazendo tudo certinho”, afirma. Zuleide hoje realiza suas consultas no ambulatório de psoríase da Santa Casa de Misericórdia, em Santo Amaro. “Mas antes das consultas eu improvisava soluções caseiras, usava chá de aroeira no corpo todo”, lembra. Silvia Galli conta que o preço dos remédios é mais um entrave para o tratamento da doença. “Para se ter uma idéia do alto custo dos medicamentos, uma tabela com quatro ampolas custa, dependendo da dosagem, Roseane Pedrosa de 3 a 7 mil reais. Isso para apenas um mês de tratamento. Já as pomadas custam em média 60 reais”, exemplifica. “Os hospitais especializados hoje já não atendem a demanda. E o tratamento da psoríase também envolve um acompanhamento da saúde psicológica do paciente”, afirma. O apoio psicológico foi o que faltou a professora Juliana Ferraz, 27 anos. Ela desenvolveu os primeiros sinais da psoríase aos 12 anos, após a morte do melhor amigo. Ela lembra como a discriminação causava sofrimento. “Brigava várias vezes na rua com as pessoas que olhavam

“Nós, psoriáticos, temos uma diferença das pessoas normais: nosso termômetro é a nossa pele, tudo que sentimos é refletido nela”

Roseane Pedrosa

loção tem sido bastante eficaz em meu caso, as manchas vermelhas desapareceram. Elas deram lugar a sinais brancos que não descamam nem doem”, diz. De acordo com Marcos Guedes, a descoberta do medicamento aconteceu de forma casual. A idéia inicial era desenvolver um gel cicatrizante, porém um dos usuários, que também era psoriático, resolveu passá-lo nas lesões, e obteve uma melhora expressiva. “Eu

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para mim, como se tivesse um bicho em minha pele. Ficava me perguntando: por que eu? Chegava a me morder, bater a cabeça, vivia uma loucura”, desabafa. Felizmente Juliana encontrou forças para sair do estado de depressão em que se encontrava. “Procurei levar minha vida, meus estudos e trabalho normalmente. Hoje eu convivo bem com a doença. Sou casada há três anos e tenho um filho de dois”, comemora.

Em Pernambuco, portadores de psoríase podem buscar atendimento médico gratuito no Hospital das Clínicas, localizado na Cidade Universitária, no Oswaldo Cruz e na Santa Casa, ambos em Santo Amaro. A população conta nestes endereços com um atendimento diferenciado, oferecido por dermatologistas especializados. “Nosso Estado é bastante privilegiado neste sentido. A Paraíba, por exemplo, não conta com ne-

nhum serviço público especializado em dermatologia”, constata o representante da SBD-PE Emerson Andrade. Ele recomenda que o paciente sempre mantenha o tratamento e acompanhe a evolução da doença. “As pessoas que frequentam o serviço público devem sempre ter suas fichas documentadas, para que elas tenham no futuro um acompanhamento direcionado para cada caso”, aconselha.

Tipos de Psoríase Pustulosa - Lesões com pus, localizadas nas mãos e nos pés ou espalhadas pelo corpo. Invertida úmidas, nas embaixo das genital, entre

- Lesões mais áreas de dobras mamas, na área as nádegas.

Gutata ou em gotas - São pequenas lesões em forma de gota que ocorrem após pequenas inflamações como a de garganta. Aparecem no tronco e nas partes dos braços e coxas mais perto dos ombros e do quadril.

Palmo-plantar - Em 12% dos casos as palmas das mãos e a sola dos pés são atingidas por lesões típicas ou fissuras (rachaduras), difícies de tratar.

Eritrodérmica - Caracterizase por apresentar lesões generalizadas (75% ou mais da área corporal), avermelhadas e com leve descamação.

Ungueal - ocorre quando a psoríase envolve as unhas do paciente. A SBD atesta que este tipo de psoríase pode afetar relações sociais e de trabalho, devido à aparência que a doença causa.

FONTE: SBD

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HANSENÍASE AINDA É TABU NA SOCIEDADE DESCONHECIMENTO E ATÉ MEDO DA DOENÇA FAZ COM QUE PESSOAS ATINGIDAS SEJAM DISCRIMINADAS Texto: Thais Queiroz

EHRIN MACKSEY/REPRODUÇÃO

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jovem Wanduiles Silva, 26 anos, sonhava com um futuro melhor. Queria ser engenheiro. Em maio de 2004, ano em que se preparava para o vestibular, ele começou a perceber os primeiros sintomas. “Sentia dores nas articulações da mão e no corpo de vez em quando”, disse. Foi a diversos médicos até que, três meses depois, finalmente recebeu o diagnóstico: hanseníase. A primeira reação foi de choque, incredulidade. “Senti uma angústia, fiquei preocupado, no dia que eu soube deste problema, planejava fazer vestibular na Federal. Pensei: e agora? Uma pessoa nova descobrir uma coisa dessas... Eu estava acostumado a ir de um lado para o outro, fazer várias coisas, de repente descubro uma doença assim, é um problema”. O medo e o susto que Wanduiles passou são compreensíveis. Afinal, quando se fala em hanseníase, várias idéias pré-concebidas vêm à mente de boa parte da população: uma doença incurável, que deixa o paciente inválido, totalmente deformado, isolado do mundo. Constatações que refletem o estigma que a hanseníase carrega, maior até do que a própria doença. A maioria das pessoas só passa a ter um conhecimento maior da

hanseníase quando descobre ser portadora. Por isso, o primeiro desafio do paciente é se informar mais sobre a doença e adotar uma postura otimista. “Os pacientes não sabem, em um primeiro momento, como enfrentar o diagnóstico positivo. A primeira imagem que vem à cabeça deles é o medo da doença. Eles não acreditam que vão ser curados, ficam desestimulados a iniciarem o tratamento”, conta a psicóloga Eliane de Andrade Arruda, que trabalha há 15 anos com pessoas atingidas pela enfermidade no Hospital da Mirueira, referência no tratamento da hanseníase no Estado, localizado em Paulista, Região Metropolitana do Recife.

Doença antiga, a hanseníase ou lepra é relatada desde as passagens bíblicas. Por muitos séculos, era considerada uma enfermidade incurável. Tanto que no Novo Testamento, por exemplo, os portadores de lepra só se recuperavam por meio da intervenção divina. Em uma das passagens mais famosas que envolvem a doença, no capítulo 11 do livro de João, no Novo Testamento, Jesus ressucitava seu amigo Lázaro, falecido após padecer com os sintomas da hanseníase. A associação entre Lázaro e a doença que o acometia deu origem a uma das denominações mais comuns da hanseníase, “Mal de Lázaro”. Entre a cura e o preconceito - 2008 13


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próprio se isola, porque ele quer defender a família”, avalia Eliane Arruda. Hoje Gildo Santos diz que as sequelas são pouco visíveis, mas ainda causam nas outras pessoas o medo do contato físico. “Minhas mãos ficaram imobilizadas, em forma de garra. Ainda sinto o receio das pessoas em apertar minha mão, não estou muito acostumado a receber as pessoas com esse gesto”, relata.

atende portadores de hanseníase há 25 anos e trabalha há 15 no Hospital da Mirueira. Ela observa que o preconceito em relação à enfermidade revela-se hoje infundado. “A tuberculose, por exemplo, tem um risco de contágio maior, porém não enfrenta o mesmo preconceito”, afirma. Loreno conta que no momento em que o paciente recebe o diagnóstico positivo, o médico sempre deve confortar o paciente, mostrando-o que é uma doença curável. “Na hora em que damos o resultado para o paciente iniciamos um processo de desmistificação, falamos do tratamento e o orientamos”. A idéia é diminuir o autopreconceito que possa surgir. “Mesmo assim, sempre recomendamos que ele não fale sobre sua doença no ambiente do trabalho, há casos em que podem até perder o emprego”, enfatiza. O ex-portador H.S.M que prefere não ser identificado, passou por dificuldades em um emprego antigo devido à sua condição. Em seu atual trabalho, ninguém sabe que ele teve hanseníase. “Quando percebem as marcas em meus braços eu disfarço, digo que são queimaduras que sofri após um choque elétrico”. Ele diz que já foi demitido de um trabalho anterior quando souberam a verdade. “Ficaram com medo que desenvolvesse a doença novamente”, acredita. EHRIN MACKSEY/REPRODUÇÃO

No início do século XX, os pacientes eram totalmente isolados do mundo exterior, o que aumentava o medo acerca da doença. Porém, com o avanço da medicina, principalmente a partir da década de 50, novos medicamentos foram desenvolvidos, melhorando a qualidade de vida dos pacientes em tratamento. Mesmo assim, a imagem que muitos têm da doença parece ter congelado no tempo. A dona de casa Sirleide Souza, 43 anos, descobriu que tinha hanseníase em 2002. “Confesso que quando soube, imaginava que a lepra, eu ainda chamava por este nome, era uma doença horrível, dos tempos da bíblia”, confessa. Devido a esta rejeição, que já começa com os próprios portadores, a qualidade de vida do paciente pode ser prejudicada. Para se ter uma idéia do medo da rejeição, dos exportadores entrevistados pela reportagem, a maioria deles não gosta de contar que tiveram hanseníase, mesmo recuperados. “Não conto porque não sei a reação que meus amigos e colegas iriam ter”, conta Sirleide. Já o aposentado Gildo Santos, 51 anos, descobriu que tinha hanseníase em 1997. Ficou totalmente curado dois anos depois. Mas durante esse período, lembra bem a reação que seus parentes tiveram. “Alguns membros da minha própria família ficaram indiferentes. Eles evitavam tocar em mim. Tive esse problema inclusive com médicos, antes de ser diagnosticado”, conta. “A dinâmica familiar também tem esse primeiro movimento de rejeição ao indivíduo e ele

Para a psicóloga Eliane Arruda, pacientes jovens são os mais suscetíveis a desenvolverem problemas psicossociais em decorrência da hanseníase, pois vivem uma fase em que estão construindo relações sociais, tanto no lado afetivo como no trabalho. “A tendência é que eles se isolem do círculo de amizades e fiquem tristes consigo mesmo. Além disso, quando a doença compromete sua rotina de trabalho, ele corre sérios riscos de desenvolver depressão”, adverte. A dermatologista Vanda Loreno

SAIBA MAIS A hanseníase é uma doença infecto-contagiosa causada pelo bacilo Mycobacterium leprae, da onde se origina o termo “lepra”, palavra que ganhou


como um aperto de mão ou um abraço, por exemplo. Médicos avaliam o domicílio como um importante espaço de transmissão da doença. “Quando um paciente é diagnosticado com a doença, todas as pessoas que vivem com ele, chamadas comunicantes,

alto poder incapacitante, a hanseníase é considerada pelo Ministério da Saúde (MS) de grande importância para a saúde pública. A Organização Mundial de Saúde (OMS) aponta o Brasil em segundo lugar no ranking geral de casos descobertos anualmente - uma média de 49 mil na última década, perdendo apenas para a Índia. Segundo dados do Ministério da Saúde (MS), Pernambuco registra uma das maiores taxas de detecção Gildo Santos, 51 anos do país. A taxa é a segunda maior do Nordeste brasileiro, deve ser submetidas a um exame atingindo um índice de 3,4 em bacilar”, explica Loreno. 2007, acima da média nacional, O risco de contágio torna-se que é de 2,4. nulo assim que o paciente inicia Isso significa dizer que houve o tratamento, feito por meio da 3,4 casos para cada dez mil poliquimioterapia. De acordo com habitantes pernambucanos. Para a dermatologista, os tratamentos se ter uma idéia de quão elevados específicos para a hanseníase esses indicadores são, a OMS surgiram no Brasil a partir da determina que o índice esteja década de 40. “Naquela época, abaixo de 1. Números recentes do o paciente tinha que tomar banco de dados do Sistema Único remédios a vida inteira. Depois de Saúde (Datasus) apontam que este período baixou para dez, 30.060 pacientes portadores da cinco anos, até chegarmos a doença e suas sequelas foram dosagem atual, que dura de seis tratados pelo SUS do Estado em meses a um ano”, explica. 2006. Se diagnosticada tardiamente, Em um país em que a a hanseníase pode destruir a hanseníase é uma questão de pele, tendões, ligamentos, ossos saúde pública, pode-se constatar e músculos, causando sequelas que ainda falta um longo caminho como mãos em garra, pés e para a informação chegar até a mãos caídos, além de marcas população de forma abrangente. de úlceras na pele. Devido ao Durante o mês de julho de 2008,

“Ainda sinto o receio das pessoas em apertar minha mão”

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status de ofensa, fazendo com que o preconceito começasse já no nome da doença. Por isso, desde 1976 o Brasil é o único país do mundo a adotar o termo “hanseníase”. A enfermidade se manifesta principalmente em pessoas cujas defesas do organismo estejam fracas, como por exemplo, as que não têm boas condições de moradia e alimentação. São atingidos os nervos do rosto, braços, pernas. Quando atinge os nervos auriculares e oculares, pode levar o paciente a cegueira ou à surdez. Um dos principais indicadores da presença do bacilo no organismo é o surgimento de manchas dormentes no corpo. A doença divide-se em dois tipos: paucibacilar (quando há a presença de poucos bacilos) e multibacilar (muitos bacilos). Apenas a forma multibacilar é transmissível, quando o paciente ainda não iniciou o tratamento. “A maioria das pessoas não corre risco de ser contaminada pelas formas mais leves da hanseníase, devido a boa resistência imunológica do organismo”, esclarece a dermatologista Vanda Loreno. O contágio acontece por vias aéreas superiores. A hanseníase não é hereditária ou congênita nem é transmitida por via sexual. Tampouco por contatos físicos

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o ministério da Saúde veiculou a o monitoramento básico da Campanha Nacional de Combate doença”, afirma. à Hanseníase. Foram filmes, spots Andréa conta que os Centros e cartazes em que ex-portadores de Apoio Psicossocial (Capes), da doença tiravam as dúvidas que oferecem serviços gratuitos da população. O material foi nas áreas de psicologia e terapia, distribuído aos profissionais de poderiam ser uma alternativa. saúde e à população. Porém a Porém, eles são voltados para curta duração da campanha não atendimentos de dependentes foi eficaz o suficiente no intuito de químicos e portadores de dismistificar a doença. enfermidades mentais. A Em Pernambuco, o programa de combate à hanseníase conta com coordenadorias específicas para o controle da doença em cada município responsáveis pela capacitação dos profissionais do Programa de Saúde da Família. Os municípios recebem uma verba mensal para desenvolver as coordenadora reconhece que ações de combate à hanseníase. um atendimento integrado pode A coordenadora estadual de melhorar a qualidade de vida do combate à hanseníase, Andréa paciente em alguns casos. “Não Torres,admite que a situação são poucos os casos de depressão do Estado no enfrentamento da entre eles. É importante que haja hanseníase é preocupante. Enquanto que em municípios mais desenvolvidos Doença existe um representante, em que atravessa outros uma única pessoa é os séculos : “Mendigo responsável por todas as Portador de Lepra”, coordenadorias de saúde. gravura de Rembrandt, “Não cabe ao Estado atuar 1631 diretamente nestes municípios, apenas gerenciá-los”, enfatiza. A discussão e o acompanhamento das questões sociais e psíquicas, pelas quais passam pacientes e exportadores de hanseníase, são aspectos pouco explorados no serviço público de saúde. “Atualmente não dispomos de nenhuma ação pública voltada para a situação psicossocial das pessoas atingidas pela doença”, um tratamento multidisciplinar”, admite Torres. “Ainda precisamos recomenda. “Precisaríamos de melhorar muito a abrangência psiquiatras e psicólogos não do tratamento básico. Mesmo apenas nos Capes, mas em toda a hoje nos confrontamos com rede de saúde pública”, afirma. profissionais recém-formados Como resultado disso, falta um que desconhecem até mesmo apoio maior para os pacientes

Atualmente a hanseníase tem tratamento e cura, porém ainda carrega o estigma dos tempos bíblicos.

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e ex-portadores, que se queixam da falta de políticas públicas focadas em seus direitos. Por isso ONG´s e movimentos da sociedade civil no Brasil e no mundo oferecem conforto e ajuda para que eles enfrentem a doença e suas sequelas físicas e sociais sociais. No Brasil, o representante mais antigo é o Movimento de Reintegração de Pessoas Atingidas pela Hanseníase-Morhan. Criado em 1981, atua em todo o país para ajudar a combater a hanseníase, além de ajudar a curar e reabilitar e reintegrar socialmente as pessoas que tiveram a doença. No Recife, o Morhan retomou suas atividades em maio de 2007. “Através de eventos e simpósios, sempre alertamos sobre a hanseníase e a qualidade de vida destes pacientes”, conta o coordenador local do movimento, Flávio José Ramos. A maioria dos integrantes é formada por exportadores da enfermidade. O grupo também realiza visitas a postos de saúde na cidade, para avaliar a qualidade do tratamento oferecido hoje. “Avaliamos principalmente o tratamento humanizado da doença. Isso está sendo feito de maneira falha pela prefeitura. Falta uma estrutura maior, há unidades em que enfermeiros e médicos faltam, não há uma sala para curativos”, constata. A participação de grupos sociais, como o Morhan, ajuda na reintegração social das pessoas que são acometidas pela hanseníase, além de ser um importante recurso para a recuperação física e sobretudo moral dos pacientes. “Reuniões em grupo os ajudam bastante, porque ao compartilhar suas experiências eles não se sentem mais tão isolados da sociedade”, explica a psicóloga


HM/DIVULGAÇÃO

Hospital da Mirueira ontem e hoje

Eliane Arruda. Segundo ela, a coragem para lidar com o preconceito vai depender da estrutura de cada um. “Se o paciente tiver uma estrutura familiar melhor, ele consegue passar por qualquer conflito e tem sucesso. Senão, pode ter seqüelas emocionais. Por isso, devemos sempre tratar a importância da aceitação e dos vínculos familiares”, completa.

HOSPITAL DA MIRUEIRA: TESTEMUNHA DE UMA ÉPOCA Uma maternidade, uma delegacia, três centros religiosos (uma igreja católica, uma evangélica e um centro espírita), sapataria, cine teatro, uma casa baile e claro, a prefeitura. Esta parece ser a descrição de uma cidadezinha do interior. Na verdade trata-se do ambiente oferecido aos pacientes do Hospital da Mirueira, testemunha viva da história da hanseníase em Pernambuco. Fundado em 1941, o hospital foi construído em uma área distante dos centros urbanos, seguindo a política de isolamento dos pacientes, adotada na época. O local escolhido foi a Mirueira, bairro afastado do centro de Paulista, na Região Metropolitana do Recife. Antes, o tratamento era realizado na

que faria apenas alguns exames de rotina. Recém-chegada do município de São Vicente Férrer, agreste do Estado, Arlinda tinha 33 anos e uma filha de quatro, que ficou em casa. Na mala, levava apenas duas mudas de roupa. Os exames comprovariam se ela teria ou não hanseníase. Assim que foi diagnosticada com a doença, imaginou que o tratamento seria simples. “Pensava que iriam apenas me receitar e então voltaria para casa. Imaginava passar apenas dois dias em Recife”, conta. Mas não foi isso que Arlinda Ferreira, 71 anos, 38 deles aconteceu. Os dois dias se no Hospital da Mirueira transformaram em 38 anos longe da cidade natal. Arlinda foi imediatamente transferida também eram os responsáveis para o Hospital da Mirueira. pela faxina e manutenção das “Só três dias depois foi que meu instalações. A Mirueira oferecia irmão foi levar minhas roupas”. dois grande setores: A Vila dos O isolamento a afastou da Solteiros, para quem morava só, família, e principalmente, da e a Vila dos Casados, quando sua pequena filha. “Eu sei que os internos se conheciam e era para o bem dela, mas eu só faltei morrer de saudade. Tentei começavam a morar juntos. O isolamento compulsório, fugir do hospital, mas olhava prática adotada no tratamento para os lados e só via mato, não arcaico da hanseníase, separava sabia para onde ir”, lembra. A prática do internamento famílias e rompia os laços destes internos com o mundo exterior. compulsório de portadores de Foi o aconteceu com os pacientes hanseníase foi adotada no Brasil mais antigos do hospital, que durante toda a primeira metade do século XX. Situação que continuam a morar no local. Quando Arlinda Ferreira melhorou durante as décadas chegou no Recife em 1970, pensou de 60-70, quando o governo Santa Casa de Misericórdia, em Santo Amaro. “ Naquela época as pessoas eram levadas à força, como criminosos, para os hospitais”, relata o odontologista Gilson Amaro, diretor do HM desde 1988. Uma infra-estrutura completa era oferecida aos pacientes, que

“Só faltei morrer de saudade (da família). Tentei fugir do hospital, mas olhava para os lados e só via mato, não sabia para onde ir”

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ainda associam a hanseníase à doença, sujeira”, lamenta. Atualmente os internos vivem da aposentadoria por invalidez concedida pelo INSS. O hospital também fornece uma cesta básica por mês para cada interno. Atualmente eles lutam para fazer valer o direito de uma pensão mensal especial concedida para egressos de hospitais colônia. A lei nº 11.520 foi assinada em 18 de setembro de 2007 pelo presidente Luis Inácio Lula da Silva e trata da concessão de pensão especial às pessoas atingidas pela hanseníase que foram submetidas ao isolamento. O valor do benefício é de R$ 750,00 mensais. ARTE QUE SOCIALIZA Ednise Oliveira buscou uma forma de integrar mais os internos do HM na sociedade. Criou em 2002 o Grupo Arte Mulher, que reúne ex-pacientes e moradoras do bairro da Mirureira em cursos de artesanato. Juntas, elas realizam uma série de trabalhos, como crochê, reciclagem de garrafas pet, bijuterias e outros. Este ano, seus produtos foram expostos na Feira Nacional de Artesanato, a Fenneart. “O

objetivo foi mostrar à população lá fora que as pessoas aqui de dentro são capazes, inteligentes e podem viver em sociedade, fazendo coisas bonitas”, conta. A dona-de-casa Luci Maria Gomes que mora perto do hospital, é uma das voluntárias do grupo. “Participar faz bem pra gente, porque vemos que aqui existem pessoas que viveram isoladas por tanto tempo lutando para se integrar na sociedade. E poder contribuir com isso é maravilhoso”, conta. Basta frequentar o espaço para saber que elas contam com o bom humor e a alegria de viver para não se deixarem abater pelo preconceito, que às vezes chega até a afetar as vendas do Arte Mulher. “Ainda existem pessoas que deixam de comprar os produtos do grupo quando sabem que eles vêm da Mirueira. Ficam com medo de ser contaminados ao simples contato com os artigos”, constata. Uma das alunas do Grupo Arte Mulher é um exemplo de superação. Maria Zilda Silva tem 48 anos e desde os 12 vive em hospitais-colônia. Mesmo com o isolamento, fez da Mirueira seu mundo e dos demais internos, seus amigos. Também casada HM/DIVULGAÇÃO

passou a adotar o regime semiaberto. Em 1983 os hospitaiscolônia foram extintos, apenas em caráter oficial, pois mesmo depois pacientes mais antigos e familiares continuam a viver no HM. Diretor do hospital há vinte anos, Gilson Amaro afirma que os internos remanescentes têm sequelas físicas deixadas pela doença e precisam de um acompanhamento médico. “Além disso, continuamos a abrigar exinternos que não têm um lugar para onde voltar. A sociedade não os aceitava, a família também não. Era uma questão de ajudar quem mais precisava”, completa. Atualmente o hospital diversificou os serviços e especialidades médicas, e o melhor: é aberto ao público, situação impensável há 50 anos atrás. “Hoje atuamos em mais especialidades médicas. Em nossa estrutura oferecemos uma clínica geral aberta ao público e um centro de tratamento para dependentes químicos”, conta. A assistente social Ednise Oliveira também foi vítima do preconceito. Apesar de nunca haver contraído a doença casouse duas vezes com ex-pacientes do hospital, onde mora há vinte anos. Ednise optou por viver com sua família no hospital-colônia. Ela conta que bastava dizer onde vivia para começarem as humilhações. “Em um emprego antigo, eu fiquei marcada, não podia falhar no serviço. Colegas diziam que eu era muito jovem e limpa para morar em um lugar daqueles”, lembra. Seus filhos também foram discriminados na escola. “Bastou minha filha contar onde morava e pronto: todos os coleguinhas dela se afastavam. A direção do colégio me chamou e disse que elas teriam que sair. O problema é que as pessoas

Grupo Arte Mulher desenvolve atividades profissionalizantes


com um ex-interno, Zilda criou seus filhos no ambiente da Vila dos Casados. Uma das caraterísticas de Zilda é sem dúvida o seu alto-astral. “Criei toda minha família aqui, hoje não me vejo em outro lugar. Sou feliz, sim, porque tenho amigos e parentes que me amam”, conta. É assim, por meio dos laços de amizade e de sangue, que estes ex-portadores fazem de suas antigas prisões verdadeiros lares, um mundo onde construíram suas vidas.

VIDAS ESQUECIDAS As fotos em preto-ebranco que ilustram a reportagem fazem parte do trabalho multimídia Van Mon: A forgotten Existence (Van Mon, uma existência esquecida), um retrato do dia-a-dia em um hospital isolado no Vietnã, onde hansenianos vivem em condições precárias. O fotógrafo americano

Ehrin Macksey, responsável pelo projeto, também apresenta um vídeo sobre a vida do chinês Bop, um dos pacientes mais antigos do hospital. No vídeo ele conta a sua história de isolamento e dificuldades causada pela hanseníase. Disponível no site (em inglês) www.ehrinmacksey. com/vanmon.

Principais Sintomas Manchas no corpo que não coçam e não doem.

Diminuição ou perda de sensibilidade à dor e ao calor, chegando até a dormência nas mãos e nos pés. Engrossamento e dor em certos nervos dos braços, pescoço, pernas e pés, com aparecimento de caroços, principalmente no rosto e nas orelhas. Entupimento e corrimento no nariz. Perda das sobrancelhas.

FONTE: Ministério da Saúde/ SUS Entre a cura e o preconceito - 2008 19


VITILIGO: QUANDO A APARÊNCIA É O ÚNICO (E PIOR) SINTOMA O VITILIGO NÃO PRIVA PACIENTES DAS ATIVIDADES NORMAIS, DESAFIO É ENFRENTAR A REAÇÃO NEGATIVA DAS PESSOAS Texto: Natalia Albuquerque Thais Queiroz Fotos: Valter Andrade

A

penas um olhar é o bastante para perceber como o vitiligo influencia a vida do professor de Educação Física Fernando Ferreira. A pele morena, contrastada com as marcas claras no rosto, chama atenção. “As pessoas olham muito para mim. Quando conheço alguém pela primeira vez, percebo o susto que a pessoa leva”, conta. “O vitiligo se manifestou em uma parte horrível do meu corpo. Justamente no rosto”, desabafa. “Se fosse para ter vitiligo, queria que fosse em um lugar escondido, nas costas por exemplo”.

Fernando Ferreira, portador de Vitiligo 20 Entre a cura e o preconceito - 2008

Vítima da doença desde os 15 anos, ele conta que nem sempre foi assim. “No início foram apenas duas marquinhas ao lado da boca, que não chamavam tanta atenção”, lembra. A doença sempre esteve sob controle, até o ano passado, quando passou por momentos difíceis. “Eu estava mal porque não conseguia emprego. As manchas tomaram todo o meu rosto naquela época”. Fernando leva uma vida normal, embora reconheça que há momentos em que o preconceito revela-se evidente. Como quando estava procurando emprego, por exemplo. “Senti que minha aparência influenciou bastante em algumas entrevistas, até porque as manchas cobrem a maioria do meu rosto”, admite. Ele diz que busca nas sessões de terapia a força para diminuir os efeitos do vitiligo, já que a doença se manifesta principalmente em momentos emocionais difíceis. “Meu terapeuta me ajuda a administrar os problemas do dia-a-dia”, conclui. O problema pelo qual Fernando passa é o mesmo do vendedor João Carlos da Silva, 55 anos, que convive com o vitiligo há meio século. Tinha apenas cinco anos quando os primeiros sinais apareceram nos joelhos. Ele conta que na época da escola era tratado de um jeito diferente dos demais. “As crianças me olhavam desconfiadas porque eu era diferente do normal. Elas não estavam acostumadas. Eu era vítima de apelidos como ‘pintado’ e ‘enferrujado’”, diz. Hoje o vitiligo atinge as mãos, pés, o tórax e uma parte do rosto de João. Ele lembra que já passou por momentos constrangedores devido à sua aparência. “Em uma visita de trabalho eu cheguei em uma loja e estiquei a mão para cumprimentar o dono. Ele iria


retribuir o gesto, mas na hora em que viu as manchas em minhas mãos, recuou. Mesmo envergonhado tive de explicar a ele que a doença não era contagiosa”, lembra. Doença de pele milenar, o vitiligo é um distúrbio de pigmentação que se caracteriza por manchas brancas, de tamanhos variados, localizadas em qualquer parte do corpo, até mesmo na região genital. Em alguns casos os pêlos também são comprometidos. Segundo dados da Organização Mundial de Saúde (OMS), ele atinge cerca de 1% a 2% da população mundial. O vitiligo não causa dor, ardor, coceira ou qualquer outro dano à saúde do paciente. Tampouco é contagioso. Mas é o prejuízo estético causado pela doença que afeta a qualidade de vida destas pessoas. “O vitiligo pode levar a alterações psicológicas e desajustes sociais em seus portadores, como separação entre casais, demissão ou não admissão de empregos, isolamento familiar e até depressão”, afirma o dermatologista do Hospital das Clínicas da UFPE Luiz Gonzaga de Castro. O médico esclarece que a despigmentação é resultado da destruição dos melanócitos. Esse tipo de célula, localizada na derme, é produtora de melanina, pigmento que dá cor a nossa pele e pêlos. “Vários fatores implicam no desencadeamento da doença, principalmente os imunológicos e emocionais”, afirma. A teoria mais aceita para a destruição dos melanócitos é a auto-imune. Por algum motivo, as células são destruídos pelo nosso próprio sistema imunológico, resultando nas manchas brancas. Não há um fator específico que desencadeie o vitiligo. Estatísticas apontam que em 30% dos casos a doença se manifesta em pacientes que tem histórico familiar. Foi o que ocorreu com o motorista Daniel Santos, 42 anos. Em maio deste ano ele detectou manchas brancas na região da virilha e logo desconfiou que fosse vitiligo. “Minha mãe teve o mesmo problema no rosto e braços”, lembra. A descoberta aconteceu por acaso. “Sempre fui doador de sangue e em um dos exames de sangue que fiz foi detectado o vitiligo. Fui informado

que não poderia mais doar sangue”. O Hemope adota por medida de segurança restrição aos portadores de vitiligo, justamente pelas causas da doença ainda não serem de todo conhecidas. TRATAMENTO Os corticóides são as substâncias mais eficazes no combate ao avanço do vitiligo, porém existem restrições. “Eles devem ser usados por períodos curtos de tempo e somente em casos especiais. Raramente os receito”, diz Luiz Castro. Outros medicamentos utilizados são psoralenos, substâncias encontradas em forma de comprimido ou pomadas que estimulam a produção de melanina. Ambos os tratamentos exigem que os pacientes se exponham ao sol, fator essencial para o combate à doença. Isso pode ser realizado de forma natural ou por meio de lâmpadas e cabines que emitem radiação ultravioleta. O sucesso das intervenções vai depender de uma série de fatores de cada paciente, como o tipo de vitiligo, idade do paciente, localização e tamanho das marcas, entre outros. Há casos especiais em que a intervenção cirúrgica é a única alternativa para estimular os melanócitos. Mas o tratamento do vitiligo não fica restrito ao campo médico. Por se tratar de uma doença que alia causas orgânicas às emocionais, exige um tratamento multidisciplinar. “É importante observar os aspectos emocionais envolvidos como também os transtornos psíquicos e sociais desencadeados pelo vitiligo”, afirma Castro. Assim, os melhores resultados acontecem quando os aspectos psicológicos do paciente são acompanhados pelo próprio dermatologista, psicólogo, terapeuta ou psicanalista. O psicólogo João Barreto Filho atende há vinte anos pacientes portadores de doenças psicossomáticas. Ele explica que a terapia auxilia bastante o enfretamento da doença. “Não há como negar essas doenças como sendo de ordem emocional. Solucionando-se o foco do problema, o paciente já avança 70% em direção à cura”, estima. “O tratamento tópico, feito através do uso de medicação, cuida dos efeitos orgânicos, enquanto as terapias tratam das causas emocionais que desencadeiam a doença”, completa. Ele afirma ainda que a busca pela aceitação constante na sociedade é um dos motivos para a baixa autoestima. “Quando o paciente não sente essa aceitação, ele começa um processo de autopunição. Existe a dependência do próximo”, avalia. A ansiedade do paciente em busca de soluções rápidas também é apontada. “Muitos pacientes buscam logo no início

O vititligo não causa dor, tampouco é contagioso. Mas a mudança estética é um grande problema para os portadores

Entre a cura e o preconceito - 2008 21


do tratamento uma cura imediata, o que não é possível “Muitos deles não teriam condições financeiras de naquele momento. A frustração fica evidente”, constata. fazer um tratamento adequado”, conta. Suzana diz A estudante de Arquitetura Danielle Karine, 20 sentir-se realizada com o trabalho que desenvolve, anos, descobriu que tinha vitiligo há três. “Surgiu uma principalmente por conta da gravidade da doença. “O mancha esbranquiçada, redonda vitiligo é uma doença horrível, que e pequena na minha perna, que chega a deprimir as pessoas. As eu julgava ser um simples pano reuniões ajudam a aproximar estas branco, mas exames médicos pessoas”, atesta. me mostraram enfim que era o A professora Lia Coroliano, 42 vitiligo”, lembra. Danielle conanos convive há sete anos com os fessa que ao saber do diagnósJoão Carlos da Silva, 55 anos sintomas e sabe bem da importântico, ficou preocupada. Ela mescia de se debater sobre a doença. ma tinha ressalvas em relação à Ela fundou uma comunidade no site doença. “Sempre senti certa agonia ao ver pessoas de relacionamentos Orkut direcionada à doença. “Eu com vitiligo”, admite. “Tinha vergonha das minhas tenho vitiligo” conta com quase dois mil membros, que manchas, evitava usar shorts curtos, e não ia mais à dão seus depoimentos e histórias sobre a doença. praia”, lembra. Lia conta que trava uma luta diária para conviver Para a estudante, o apoio psicológico do seu der- com o vitiligo. “É uma luta constante, pois o stress e matologista foi fundamental na aceitação da doença. a tristeza pioram a situação. Às vezes brinco que to“Hoje não dou a importância que dava antes, meu dos os dias tenho que dizer para os meus melanócitos: médico me ajudou a não me estressar”, afirma. Sua ‘Acordem, façam seu trabalho diretinho’, mas parece mudança de postura ajudou no tratamento das mar- que eles são surdos!”, desabafa. Outras comunidades cas, que estão regredindo. como “Convivendo com o vitiligo”, “Eu tenho vitiligo e O controle do vitiligo por vezes esbarra no alto cus- daí?”, aproximam os portadores da doença para uma to dos medicamentos. Para se ter uma idéia, um tubo ajuda mútua e troca de experiências de vida. de vinte gramas de pomada fotossensibilizante chega Portadores da doença no Estado podem contar a custar 120 reais. Os produtos por vezes não podem com a Associação de Portadores de Doenças Psicosser usados nas áreas genitais, e só funcionam quando somáticas de Pernambuco, mantida por Roseane Pedo paciente se expõe ao sol, um risco que pode levá-lo rosa, que realiza encontros e promove ações de saúde a desenvolver até mesmo câncer de pele. para melhorar a qualidade de vida de seus pacientes. Foi pensando nisso que a farmacêutica, graduada “Mostramos a eles que não estão sozinhos, apesar de pela UFPE, Suzana de Lima Xavier desenvolve há dez se sentirem dessa forma”, destaca Roseane. anos pesquisas acerca de um composto fitoterápico que visa amenizar as marcas esbranquiçadas. Segundo Suzana, a principal vantagem do tratamento NOVOS HÁBITOS AJUDAM NO CONTROLE DA DOENÇA alternativo em relação aos tradicionais diz respeito à facilidade de aplicação e manutenção do tratamento. Os portadores de vitiligo devem seguir uma série de “A vantagem é que ele não depende da exposição recomendações para manter a doença sob controle. E a solar para surtir efeito. Além disso, pode ser usado nas mudança de hábitos deve começar na alimentação. “Alipartes genitais também”, enumera. mentos que interfiram na imunidade do paciente devem ser evitados, pois eles podem aumentar as manchas”, Os medicamentos são oferecidos na forma de saexplica a farmacêutica Suzana Xavier. Crustáceos, embonete líquido e óleo corporal. Ela afirma que vem butidos, carne de porco e até mesmo a macaxeira estão obtendo resultados bastante satisfatórios, havendo reno rol das comidas proibidas. Além disso, substâncias pigmentação nas partes afetadas. Além disso, por esque contribuem para o clareamento da pele não podem tar em fases de testes, o medicamento ainda não está ser utilizadas, como é o caso de produtos à base de sendo comercializado. camomila. Já outros alimentos, como inhame e repolho Todo o mês Suzana Xavier promove encontros com são recomendados, pois contribuem com o aumento da 40 pacientes em tratamento, que discutem sobre seus imunidade do paciente. As bebidas alcoólicas também efeitos. O espaço também é uma chance para que cada estão proibidas. Suzana Xavier adverte para o perigo um desabafe sobre a convivência com o vitiligo. “Já esdas poções milagrosas contra a doença. “Muitos receicutei histórias de pessoas que perderam empregos que tam coisas absurdas como comer fígado de urubu cru, exigem contato com o público. Até tentativa de suicícalango assado ou até mesmo tomar sangue de boi”, dio, um dos pacientes julgou ter cometido”, lembra. alerta. Por isso, o paciente ao descobrir o vitiligo deve buscar ajuda apenas de especialistas. (T.Q.) Segundo a farmacêutica muitos chegam ao tratamento após se submeterem a várias tentativas de cura.

“Na infância era vítima de apelidos como ‘pintado’ e ‘enferrujado’”

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Unidades de referência para tratamento na Região Metropolitana do Recife: Policlínica Amaury Coutinho R. Ipatú, s/n – Campina do Barreto Fone: (81) 3444-5779 Policlínica Lessa de Andrade Estrada dos remédios, 2416 – Madalena Fone: (81) 3227-1622 | 3228-3387 Centro de Saúde Agamenon Magalhães Praça do Largo da Paz, s/n – Afogados Fone: (81) 3428-7888 | 3428-3387 Hospital da Mirueira Est Mirueira, s/n Mirueira - Paulista - PE Tel: (81) 3437-2051 | 3437-1888

Dúvidas sobre pensões para ex-internos de colônias: Fone: (61) 3429-9366 ou pelo e-mail: hansenniase@sedh.gov.br Endereço para requerer pensões: Comissão Interministerial de Avaliação da Esplanada dos Ministérios, Bloco T – Ed. Sede do Ministério da Justiça – Salão Negro, CEP: 70064-900 – Brasília / DF •

VITLIGO

Dival Cantarelli - Psicanalista: (81) 3441-5260

(ABEAPP) Coordenação: Silvia Galli de Oliveira Fone: (11) 9606-6993 Dr. Emerson de Andrade Lima dermatologista: (81) 3231-3099 E-mail: emersonderma@terra.com.br •

TRATAMENTO - PSORÍASE E VITILIGO

Márcia Senra Departamento de Psicodermatologia da Sociedade Brasileira de Dermatologia Fone: (21) 2512-6003 Hospital Universitário Oswaldo Cruz Departamento de dermatologia Endereço: Rua Arnóbio Marques, 310 Santo Amaro - Recife/PE Fone: (81) 3423-6433 Santa Casa de Misericórdia – Ambulatório dermatológico Av. Cruz Cabuga, 1563- Santo Amaro Recife – PE Fones: (81) 3412-3800 | 3412-3808 Hospital das Clínicas de Pernambuco – Clínica Dermatológica Av. Prof. Moraes Rego, s/n - Cidade Universitária, Recife - PE Fones: (81) 2126-3528 | Fone PABX: 2126-3633 Associação de Portadores de Doenças Psicossomáticas de Pernambuco Direção: Roseane Pedrosa Fone: (81) 9926-8836 | 8753-6889 THAIS QUEIROZ

Dr. Luiz Gonzaga de Castro Dermatologista: (81) 8876-3070 Suzana Xavier - Farmacêutica: (81) 9948-0515 •

PSORÍASE

Associação Brasileira de Estudos e Assistência às Pessoas com Psoríase

Clínica dermatológica da UFPE Entre a cura e o preconceito - 2008 23


Reportagem: NatĂĄlia Albuquerque Thais Queiroz Orientador(a): Shirlene Marques Diagramador: AndrĂŠ Marinho

24 Entre a cura e o preconceito - 2008


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