Estigma - Os efeitos do Body Shaming

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Leticia Damasceno, Luara Theodoro, Nadia Belo, Rubens Ferreira e Thais Santos

Estigma Os efeitos do Body Shaming Livro-reportagem apresentado em cumprimento parcial às exigências da disciplina Planejamento em Projetos (Plapro), do curso de Jornalismo da Universidade São Judas Tadeu, para obtenção do título de Bacharel em Jornalismo. Orientadora: Profa Dra Jaqueline Lemos

Universidade São Judas Tadeu Jornalismo São Paulo, 2018


Chanceler Dr. Ozires Silva Reitora Profa Dra Denise Campos Coordenadora dos cursos de JO | PP | RTV | RP | Cinema e Audiovisual Profa Dra Jaqueline Lemos Projeto Experimental em Jornalismo Literário, turmas JOR4AN-MCA e JOR4ANBUA Equipe: Letícia Damasceno | 201515285 Luara Theodoro | 201500440 Nadia Belo | 81512967 Rubens Ferreira | 201515612 Thais Santos | 201205026 Colaboradores: Projeto gráfico e diagramação Thais Santos Ilustração Érika Petreca

FICHA CATALOGRÁFICA

BELO, Nadia; DAMASCENO, Letícia; FERREIRA, Rubens; SANTOS, Thais; THEODORO, Luara. Estigma: Os efeitos do body shaming — 2018 110f.:il. Projeto experimental em jornalismo literário/ bacharelado em Jornalismo)/ Universidade São Judas Tadeu/ SP (USJT) Orientadora: Profa Dra Jaqueline Lemos 1.Perfil 2. Frustração 3.Vergonha 4.Ódio I.Título. USJT/SP © Copyright Este livro reportagem foi produzido sem fins lucrativos, reprodução e comercialização proibida


Agradecemos aos amigos, professores e famíliares que estiveram presentes e nos incentivaram em todos os momentos.

E um agradecimento especial aos perfilados, Gabriel, Maya, Ruth, Natalia e Osvaldo. Que tiveram a coragem de expor suas fragilidades, e tornaram possível a realização deste livro. Estigma: Os efeitos do Body Shaming


Apresentação Tudo começou com um projeto universitário para conclusão do curso de bacharelado em Jornalismo, pela Universidade São Judas Tadeu. Nele, foi proposto o desenvolvimento de um livroreportagem, com um tema à escolha do grupo de repórteres. Escolhemos o body shaming, porque todos os jornalistas envolvidos, sofrem ou sofreram em algum momento, com a vergonha do próprio corpo. Mas no caminho tivemos uma grata surpresa, esse projeto se desdobrou na descoberta de histórias incríveis, de pessoas que tinham muitos motivos para desistir, mas não o fizeram. Neste livro buscamos dar voz àqueles que foram silenciados pelo ódio, pelo preconceito, pelo desrespeito à sua individualidade, através das histórias de cinco pessoas. Gabriel, Maya, Ruth, Natalia e Osvaldo. Que com suas particularidades, nos ensinam que nem sempre podemos ter o controle absoluto sobre nossas vidas. De repente, tudo pode mudar. Basta um acidente acontecer, uma mudança de planos, uma doença, e aí você já não consegue mais se reconhecer diante do espelho, e sua imagem passa a ser um fardo. Mas que, sobretudo, somos senhores de nossos destinos e que resistir e virar o jogo, muitas vezes, só depende de nós.

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Sumário

Introdução.......................................................09 Gabriel, Queen Bee.............................................11 Maya, Mulher........................................................31 Ruth, Determinada..............................................49 Natalia, Resiliente................................................67 Osvaldo, Distraído...............................................87

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Introdução Body shaming é o ato de envergonhar-se ou odiar seu próprio corpo, ou de esperar aprovação de terceiros em relação a ele. A imagem corporal não é apenas a projeção do que enxergamos no espelho, ela é um complexo sistema de signos que juntos formam a identidade e a imagem do indivíduo dentro de um contexto social. Esse sistema é implantado por suas raízes culturais, e dado pela posição em que este indivíduo se encontra social, econômica ou geograficamente. Nesse sentido, a pessoa se relaciona ainda que de maneira subconsciente com o seu meio num fluxo constante de troca de informações sobre si e sobre os outros. Ele se molda com determinadas características para se enquadrar em grupos ou posições sociais. Desta forma evidenciando que, a aparência e características de um indivíduo não são necessariamente biológicas, mas moldadas para se encaixar em padrões, que estes considerem adequados ou desejáveis. O corpo é de domínio da sociedade, e não do indivíduo. A posição deste tem relação direta com sua capacidade de modificação do estado natural. E eis que se cria uma negação ao estado natural. Para tanto, acaba se tornando sempre uma representação de tudo que “pode ser”, se pode ter um cabelo brilhante e sem falhas no corte, se pode ter uma barba bem aparada e rente, ou músculos definidos com zero gordura. É tudo mutável e maleável, mas sempre servindo de uma apresentação de seu ser e um “convite” para ver o que a pessoa tem de seu melhor (ou sua melhor “possibilidade”), a sociedade contemporânea convida o sujeito a moldar “sua beleza”, refaça e arrume tudo ao seu gosto pois tudo é uma questão de adaptação não aos seus olhos, mas aos que te veem, e você tem este domínio. As indústrias da moda, da higiene, perfumaria e cosméticos, 9


faturaram apenas em 2017, aproximadamente 93 bilhões segundo dados da ABIT e ABIHPEC. Juntas acumulam um valor significativo na economia brasileira, e assim permanecem graças a linha tênue do ser ou não belo para a sociedade. Um estudo realizado pela ‘The Internacional Society of Plastic Sugery” (ISAPS) revelou que apenas em 2016, aproximadamente 10 milhões e 400 mil procedimentos cirúrgicos para fins estéticos foram realizados no mundo. No ranking dos países que mais realizaram cirurgias de mama, por exemplo, o Brasil ocupa a segunda colocação, com aproximadamente 435 mil procedimentos realizados, representando 14.1% do total realizado no mundo. A mesma indústria cultural que fatura bilhões com a insatisfação estética, através dos meios de comunicação reforça imagens de corpos padronizados e sem qualquer tipo de imperfeições. Os modelos de beleza, quase sempre associados à felicidade, sucesso, atração, sensualidade, fama e poder, exaltam realidades completamente diferentes da maioria da população. Logo aqueles que se veem fora desses padrões sentem-se insatisfeitos, incompletos e fracassados. Frustração e infelicidade rende muito dinheiro num sistema que se retroalimenta, num ciclo interminável “tendências” impossíveis. Submetidas, as pessoas se veem obrigadas a consumir os mais diversos produtos para corrigir um traço que é natural mas imperfeito.

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R EVOL UÇÃO começa no ato de SE ACE I T A R. Seja a mudança que você quer ver no mundo.

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Gabriel, Queen Bee Por Thais Santos Quem vê aquela diva preta e gorda, plena em cima do palco do Toda Grandona dando close e sendo vista com olhares admirados por seus seguidores, não faz ideia que assim como muitos anônimos que estavam naquela festa, ela também carrega muitas cicatrizes, ganhas na luta pelo ser diferente num mundo tão cinza e igual. Esta diva é Gabriel Pereira da Silva, um jovem de 26 anos, gay, negro, influenciador digital e militante body positive. Com muita ousadia mostra que “um corpo é só um corpo” e que pode ser lindo à sua maneira. Durante toda a vida ele foi obeso, mas lidava com isso de uma maneira um tanto diferente. Sempre teve a percepção de suas qualidades. Então tem o que define como um “filtro de superioridade”, uma espécie de escudo para se defender das ofensas. Nas mais diversas fases de sua vida, as ofensas chegavam até ele através dos que estavam à sua volta. Um amigo incomodado, um parente indignado, um novo colega desconfortável com os julgamentos. Atitudes evidenciadas em olhares indiscretos e gestos de espanto, repulsa, pena, chacota, enfim, todos os tipos e categorias possíveis de reprovação que um indivíduo com mais de 100 quilos poderia sofrer. Diante disso, pessoas como Gabriel se veem apenas com duas escolhas: desistir, lutar contra sua própria imagem e se enclausurar até conseguir ser aceitável. Ou resistir, brigar por 13


seu espaço e se fazer presente em todos os lugares que lhes é de direito. Como efeito colateral do julgamento alheio, ele se tornou o feliz portador de cegueira e surdez seletiva. Não importava o que falavam ou como olhavam. Ele não ouvia, ele não via, ele não estava nem aí. Mas nem tudo dependia dele, porque embora tivesse toda essa força interior, o corpo gordo não tem nenhum aspecto de sua vida respeitado, não cabe, literalmente em quase lugar algum. Imagine que você gosta de viajar, e tivesse que sentar em um lugar especial ou pedir mais cinto toda vez que pisasse num avião. Pense em como seria se você curtisse adrenalina, e não poder ir a parques de diversões porque não existem assentos do seu tamanho. Ou ter que pagar taxa extra em absolutamente tudo, paraquedas, asa delta, bungee jump. E se você não tivesse condições de ter um carro, e que para se deslocar até o trabalho precisasse usar o transporte público. Pense na humilhação de ter que pedir para o motorista do ônibus abrir a porta de trás, porque se você tentasse passar na catraca poderia entalar. Pense em como seria, entrar em uma loja e logo na entrada a vendedora indagar: — É pra você? E ter que sair daquele lugar com as mãos abanando frustrado, decepcionado, com raiva de si mesmo por ter “se deixado chegar a tal ponto”. Imagine a dor de se arrepender de cada momento de felicidade que se permitiu, porque em quase todos eles a comida esteve presente. É muito duro quando todo, e qualquer aspecto da sua vida tem o peso como protagonista. Nada é feito, decidido, sentido, vivenciado sem levar em consideração questões como: — Será que eu caibo? — Será que eu posso? — Será que eu devo? Como se não bastasse o protagonista desta história também Estigma: Os efeitos do Body Shaming


tem algumas características ingratas em nossa sociedade, ele é um jovem negro, de classe média baixa, gay, e não binário de gênero, ele transita com facilidade entre o masculino e o feminino. Podemos defini-lo como o acumulo de quase todos os tabus presentes em nossa sociedade racista, elitista, heteronormativa e machista. Os negros e pardos são 53,6% de nossa população. Mas vivemos em um país extremamente racista. A cada 23 minutos um jovem negro é assassinado. De cada 100 pessoas assassinadas, 71 são negras, em sua maioria homens e jovens. Ainda assim, Gabriel nunca foi ligado a questões raciais, talvez porque nunca foi atingido diretamente pelo racismo, ou por simplesmente, nunca ter essa percepção. Na verdade, apenas quando começou a militar contra a gordofobia, é que ele despertou para outras minorias as quais pertencia. Mas engana-se quem pensa que foram apenas escolhas que o transformaram em quem é hoje. Gabriel foi andrógino desde sempre. Não bastasse ter um corpo obeso que trazia em si mamas grandes, o que já seria um drama para a maioria dos rapazes, ele tinha traços finos, um rosto delicado, bem feminino. Aqueles que tinham contato com ele, se deparavam com um impasse, não conseguiam entender quem era, se era masculino ou feminino. Como chamar essa criatura? E novamente os olhares são uma questão. O incomodo causado por um julgamento silencioso, foi por muito tempo um problema na vida dele. Existe uma postura que se espera de um homem, como fala, como se posiciona, como se movimenta, como se veste, enfim tudo o que sequer ligeiramente se remetesse ao universo feminino é proibido a um macho. Mas a própria natureza lhe transformou nessa incógnita, colocando um rosto feminino num corpo de rapaz. Ao se lembrar dos tempos da escola. No vestiário os meninos esperavam que ele saísse, para que aí se trocassem. Porque 15


embora ele fosse um “menininho”, o seu jeito mais delicado, mais afeminado, colocavam nele o rótulo de gay. Antes mesmo que ele se descobrisse romântica e sexualmente. O que fez ele se esconder dentro de seu armário até a faculdade. Depois de passar por tantas coisas, ser homossexual já não era mais um grande problema a ser superado. Era apenas mais uma, de suas tantas características conflitantes com o que a sociedade considerava “normal”. Num mundo tão cinza, ter tantas nuances já não parecia ser algo tão mau assim.

O dia mais incrível de sua vida

Começa uma semana comum no trabalho, com muitos e-mails, relatórios, planilhas, reuniões, enfim, seria uma rotina como a de tantas outras durante seu mês, se não fosse uma coisinha marcada em sua agenda para aquela sexta-feira, o Toda Grandona. Um evento que esfrega na cara da sociedade que o corpo gordo também quer seu espaço, e que também pode se movimentar, uma balada única, criada com a intenção de incluir, pautada no respeito a todos. Praticamente um manifesto de libertação das minorias isoladas. Dois dias antes do evento uma mudança de look é quase lei, afinal de contas... “Se não for para dar close, melhor nem aparecer!” Ele já tinha o cabelo perfeito em mente, tranças com aplique, inspiração da maravilhosa, Beyoncé, em Formation. Por que um dia antes? Para as tranças não doerem quando, o Gabriel fosse bater cabelo. Mas o planejamento do cabelo perfeito não foi o mesmo para todo o resto, embora a roupa já estivesse separada, um vestido em tule transparente, uma lingerie bem bafo embaixo e uma meia arrastão. E o resto? Tudo para a última hora! É claro. Estigma: Os efeitos do Body Shaming


Depois de sair do trabalho e encontrar com o André, um amigo de longa data, Gabriel correu até o Shopping Metro Tatuapé, às 20h, todas as lojas fechavam às 21h. Sem contar que o evento começaria às 22h. Em sua lista tinha: • Uma bota preta de vinil com um salto alto e quadrado • Bijuterias • Uma bolsa clutch • Uma tesoura Sem contar o horário com o maquiador que já estava quase estourando. Em uma das únicas lojas de sapato aberta naquele horário, eis a última esperança desta gata borralheira, quando encontrava o sapato perfeito, não era do tamanho adequado, quando era de um tamanho confortável, ou era de outra cor ou não tinha salto. Ele estava ficando sem tempo. Desesperado Gabriel pega o último sapato de vinil preto com salto quadrado número 38, olha para seu amigo André. — E Agora? Tô ferrado!! ( ¬.¬*) — Bi, ou você desce do salto ou você vai ter que socar seu pé aí mesmo! A vendedora, não querendo perder a venda: — Esse sapato laceia bastante, eu se fosse você levaria. Ele também está num preço muito bom. Já saiu bastante, ele é um dos últimos. Mas o que a funcionária da loja de sapato não sabia porque Gabriel fez questão de omitir, é que ele usava o número 40. Um pé relativamente pequeno para padrões masculinos. Mas não estávamos falando de um modelo muito popular no gosto masculino. Então ou ele se contentava em usar um sapatenis de vinil preto bem flopado, ou ele subiria naquele salto mesmo com o pé sendo esmagado em dois números abaixo de sua 17


numeração. Ele claro tomou a decisão mais sensata... Subir no salto! Afinal Queen Bey já dizia “pretty hurts”. Saindo da loja de sapato com sua nova aquisição, Gabriel corre para a loja de biju mais próxima, faltando exatos 10 minutos para o fechamento. Vasculha a loja inteira em busca de três coisas, colares bem bonitos e chamativos, uma bolsinha clutch e uma tesourinha. Depois de virar do avesso a lojinha, todos os itens da lista já estavam em mãos. A conta desses itens saiu um tanto salgada, quase 200 reais. Mas nada que não fosse superado até o fim da noite. Depois da correria no Shopping, ele teria que sair às pressas para o Anhangabaú no apartamento de seu maquiador, afinal já estava atrasado. Mas antes, a fome já estava batendo forte, Gabriel estava o dia todo sem comer nada. Olhou para André e perguntou se ele estava com fome e decidiram parar numa lanchonete da estação de metrô, dada a falta de tempo. Para Gabriel: — Me vê uma porção de batata, uma Coca e um Angus. Já para André: — Eu quero só uma porção de batata e uma Coca. Ambos para a viagem. No momento em que recebesse seus pedidos e rumasse para o metrô, ele passaria pela situação mais chata daquele dia. Antes de mais nada é necessário esclarecer que Gabriel acha horrível, qualquer pessoa comer em transporte público. Mas a fome falou mais alto do que a vergonha. Quando começou a comer seu lanchinho, ele se sentia incomodado, os olhares lhe causavam nítido desconforto. Em contraste com a tranquilidade na qual André saboreava suas batatinhas. Não adiantava parar de comer a àquela altura, porque ainda assim as pessoas não parariam de olhar. Mas as batatinhas, o refrigerante e seu Estigma: Os efeitos do Body Shaming


hambúrguer não eram mais tão saborosos assim. Ao chegar no Anhangabaú, correu para o apartamento. E estranhou a demora da liberação de entrada. O porteiro era novo, não o conhecia ligou para o apartamento de seu maquiador. — Tem uns gordinhos aqui fora querendo subir. Não se sabe o que mais chocou o porteiro, o fato de duas pessoas aparecerem àquela hora, ou o fato de serem “gordinhos”, um eufemismo que Gabriel já estava acostumado. Com 160 quilos ele passava um tanto longe de ser apenas “gordinho”. Depois de algum tempo, passagem liberada. Uma hora e vinte minutos, foi o tempo que levou de um gordo com uma blusa de moletom, tênis e calça jeans. Virar uma diva gorda, com vestido afrontoso todo furadinho, lingerie à mostra, salto quadrado (e pé esmagado), cílios postiços tipo Barbie, enfim, diva como deveria ser. Pronta para dar close a noite toda. Mesmo que um pouquinho atrasado, ele chega e é recebido por um membro do Squad, Bernardo. Que já falou para o Gabriel correr, e que Caio estaria puto com ele. Porque mais uma vez, ele havia perdido a setlist do Caio, que foi tocada logo no início. Apressado, ele pega as mochilas de seus amigos e corre para a o camarim. Dois minutos depois ele entra no palco. Recebido com amor e euforia pelos seguidores do Squad. Dançava muito e não parou um segundo sequer, tomava uma bebida, performava mais um pouco, descia para tirar fotos com o pessoal, falava um pouco com seus amigos e voltava para o palco. Musica após música por quase seis horas e meia Gabriel dançou. E apenas na última hora ele desceu do salto, porque já não estava conseguindo disfarçar a cara de dor. Depois das duas primeiras horas, o pé havia adormecido, até que na quinta hora a dor voltou com tudo. Se passariam cinco dias até seu pé voltar ao normal, mas 19


algumas coisas compensariam tudo. O respeito, admiração e o carinho com que seus seguidores o tratavam fazia tudo valer a pena. Ele representava a superação de muitos limites, era um farol para seus seguidores. Por isso, mesmo não sentindo os pés ele não parou de dançar e sorrir. Depois de tudo o que passou, esse dia sem dúvida foi um dos melhores de sua vida.

Frustrações familiares

Pai Nosso protagonista passou muito tempo de sua vida como obeso. E isso se estendia por toda a sua família, pai, irmã e até sua mãe que era enfermeira. Todos obesos. Em 2006 seu pai teve um câncer retrointestinal, fez a cirurgia de retirada do tumor e o tratamento com remédios e se curou. Depois de 7 anos, em 2013, começou a ter muitas dores nas pernas. E começou a fazer uma bateria de exames para identificar a origem daquele problema. Do período em que o pai de Gabriel começou a sentir as dores até o dia de seu falecimento, se passaram apenas dois meses. Ele era obeso e não haviam maquinas de ressonância magnética em que ele coubesse, porque o limite da máquina era 150 quilos. Por isso, só poderia fazer o exame na máquina de campo aberto. Só existiam duas dessas em são Paulo, a fila era imensa e o tempo era curto. Quando seu pai finalmente conseguiu fazer o exame numa terça, o resultado chegaria na próxima segunda. Mas ele faleceu no domingo. Ele partiu sem nem ver os exames, e sua mãe que era enfermeira não conseguiu ficar na sala do médico, porque o câncer de anos atrás havia voltado e se espalhado por muitos órgãos de seu pai. Ele dizia a Gabriel insistentemente: — Emagrece filho! Olha o que eu tô passando. Eu não quero isso pra nenhum de vocês. Estigma: Os efeitos do Body Shaming


No período em que estava lidando com o câncer ele não conseguia se locomover direito, precisava de ajuda até para se limpar, não tinha autonomia nenhuma. A morte do pai impactou muito Gabriel. Que começou a entrar numa neura de querer fazer cirurgia bariátrica a todo custo. Não porque se sentia culpado, mas porque tinha muito medo de ficar na mesma situação. Durante os primeiros exames sentia que estava tomando essa decisão pelos motivos errados, por isso não tinha muito compromisso com o tratamento. Passou na endócrino, na nutricionista, comia tudo certinho o dia todo, mas quando saia do trabalho comia um hambúrguer. Não estava disposto ou motivado o suficiente para fazer algumas concessões em prol de um corpo mais magro. E outra coisa que o desmotivou ainda mais a seguir com o tratamento é o fato que, desde novo sabia que se emagrecesse, inevitavelmente sobraria muita pele. E a cirurgia de retirada de pele, na ocasião, não era tão difundida no Brasil, muito menos oferecida pelo SUS. E pensar em ficar com pele sobrando o aterrorizava. A psicóloga sacou logo na terceira consulta que ele não estava tão comprometido assim. Pediu que refletisse sobre a decisão de emagrecer. Resultado, ele parou de ir. Estava fazendo tudo isso por medo de algo que ainda nem aconteceu. Que era ficar como seu pai. Ele nunca se aceitou, sempre se diminuía por ser obeso. A irmã era como ele. Gabriel era o oposto deles. Nunca deixou o peso ser uma limitação na vida. Acreditava que a vergonha do próprio corpo diz mais respeito ao indivíduo do que só aos preconceitos presentes na sociedade. No auge da doença o pai suplicava à sua minha irmã: — Eu era que nem você, eu não queria que você fosse desse jeito. De ficar pensando no que os outros vão falar de mim quando saísse, onde eu chegava eu achava que eu era sempre o pior. Por favor não seja como o seu pai. 21


Em certa ocasião, quando ele viu Gabriel chateado porque havia ficado na posição 60 de 200 vagas numa prova para a Etec. Ele olhou e disse: — Então ficaram 140 pessoas abaixo de você? Ele sempre procurava ver o lado bom das coisas. No ano seguinte da morte do pai, Gabriel dizia para os amigos coisas como: — Eu vou morrer cedo! Tenho que curtir o tempo que eu tenho porque logo, logo eu já não vou mais estar aqui. O pai de nosso protagonista faleceu com 53 anos.

Mãe Desde que entrou na faculdade, Gabriel já tinha tudo certo em relação à sexualidade. Já havia saído do armário, mas só para os amigos. Em casa ele segurava a pose de machinho. Até que chegou a parada gay de 2016. Naquele dia estava muito ansioso para ver os atores da série Sense 8, que filmariam as cenas na parada. Se arrumou e desceu para a sala, olhou para a mãe e disse: — Vou pra a Paulista encontrar com os meus amigos, e ver os atores de uma série que a gente gosta. Eles vão filmar lá. Vou encontrar o Jean, Marcos, o André, a Paloma, vai toda a galera. — Ah tá! Você vai pra a Parada Gay? Gabriel disse fazendo cara de paisagem. — Vô! — Ah... O Jean é gay né? Começou a dar um frio na barriga, porque sabia onde essa conversa acabaria. — Sim — Hum... E o André? — Também. Estigma: Os efeitos do Body Shaming


— E o Marcos? — É também mãe! — Nossa até o Marcos! Ai credo. ... — E você? Pra fugir da resposta disse: — Mãe deixa eu ir embora que eu estou atrasado! Mas quando estava no meio do corredor, viu que tinha esquecido a chave do portão. Teve que voltar e encarar a minha mãe. Quando entrou, ela esperou Gabriel pegar a chave e disse: — Você não respondeu a minha pergunta. Ele não queria contar mas se ela fazia questão de saber, não mentiria. — Eu sou! — Ai credo! Como assim? — Mãe, tenho que ir beijo! Não conversaram sobre isso naquela noite. Mas no dia seguinte seria o aniversário de sua mãe, estariam em casa tios, primos, amigos da igreja, e não poderiam conversar com todo mundo ali. À tarde a mãe de Gabriel resolveu conversar sobre isso. — Você sabe que se o seu pai estivesse vivo, ele não iria gostar. ... — Isso me entristece, mas eu vou te respeitar. Eles sempre tiveram uma relação muito próxima, mas descobrir que ele era gay deu um banho de agua fria na mãe. Os pais eram super religiosos e conservadores, e isso era demais para ela. Gabriel chegou a ter a nítida sensação que estragou o dia de sua mãe, por simplesmente ser quem era. Ficou muito 23


mal, porque se sentia culpado. Antes disso contava tudo a ela, a única coisa que omitiu dela era o fato de ser gay, e as situações relacionadas a isso. Imaginava que no dia em que tivesse coragem de contar, ela ficaria tranquila com relação a isso. Mas não foi o que aconteceu. A mãe disse que embora respeitasse a decisão do filho, não queria saber de nada relacionado a sua vida pessoal. O mundo dele desmoronou. Ela era a mulher que mais amava, e a ferir pelo fato de querer preserva-la do choque de descobrir a verdade sobre o filho, destruiu Gabriel. Essa revelação acabou com a relação entre mãe e filho. Não se falavam mais, só o necessário. A confiança que existia entre os dois tinha sido destroçada, e levaria 6 meses para reconstruir os destroços. Ainda hoje ela não aceita totalmente as escolhas de Gabriel. Não gosta que o filho se vista de mulher por exemplo, mas nunca mais lhe julgou. Quando decidiu ser influenciador digital, ele criou uma conta para sua mãe e ativou as notificações para ela. Porque o que fizesse dali em diante, ela seria a primeira a saber.

Primeira decepção amorosa

O que é gostar de alguém? Você sente um frio na barriga, mas mantem os pés bem firmes no chão. Gostar de alguém é como ter o jogo ganho, mas sentir que ainda falta uma carta. O verbo gostar traz consigo muitas incertezas, e ao mesmo tempo, muitas descobertas. Gostar de alguém é o risco do desconhecido. E foi assim mergulhando nesse risco que nossa diva se afogou pela primeira vez. O amor nunca foi uma questão, Biel era mais do tipo de cultivar boas amizades e se relacionar bem com todos à sua volta. Sempre gostou de ser o líder de seus grupos, tomar decisões, ser o centro das atenções. No ensino médio, se Estigma: Os efeitos do Body Shaming


envolvia com todos os grupos no colégio. Mas com relação a crushs, não achava ninguém bonito, ninguém interessante. Tinha muitos amigos, mas nenhum relacionamento mais sério. Até então, nunca havia se apaixonado e estava muitíssimo bem assim. Até que tudo mudou... Ele saiu do armário logo que entrou na faculdade, se sentia bem, livre, pleno. Ia a várias festas, mas mantinha alguns amigos do ensino médio. Dentre eles o seu melhor amigo, Jean. Os dois não se desgrudavam, faziam praticamente tudo juntos. Mas não estudavam no mesmo curso. Eis que nesta história surge Marcos, um novo amigo de Jean. É necessário esclarecer mais uma característica de nosso protagonista, ele é muito ciumento, até com amizades. E nem preciso dizer que a presença de Marcos não era muito bemvinda. Mesmo assim ele insistia em permanecer por ali, tomando todo o brilho de Gabriel. Que como já mencionei, gostava muito de ser o centro das atenções em seus grupos. O tempo foi passando e pouco a pouco a presença constante de Marcos foi ficando cada vez mais suportável, e chegando a ser até agradável tê-lo por perto. Os três se aproximaram bastante. Mas chegando próximo do fim do período letivo, Jean ainda estava em período de provas e precisando fazer trabalhos voluntários no fim de semana, e quase não tinha tempo de ver os amigos. O que levou Gabriel e Marcos ficarem juntos com maior frequência, pois estavam de férias, e estreitarem ainda mais os laços de amizade. Marcos não era o tipo de cara bonitão, mas ele era um cara sedutor. Ele atraia as pessoas, mas não se apegava a ninguém. Certo dia em uma conversa, ele solta: — Tô precisando esfriar a cabeça, ver gente nova, relaxar um pouco. Bora fazer uma viagem? 25


Gabriel topou sem nem pensar muito. Depois de analisar todos os possíveis destinos, a Colômbia foi o que mais lhes atraiu. Mas havia um impasse, ele ainda estava trabalhando e suas férias demorariam - como viajaria? Como sempre, tomou a decisão mais sensata. Pediu para ser demitido do trabalho, assim teria em suas mãos o dinheiro da viagem e todo o tempo que precisasse. O que lhe aguardava eram treze dias em praias caribenhas, com um de seus melhores amigos, uma areia branca e bons drinks. Foram para San Andrés, mas chegaram atrasados porque haviam perdido o voo. No hostel tiveram que pegar o que sobrou, um quarto duplo, era o que tinha. Nada capaz de estragar a viagem. Decidiram ir para a praia, e logo de cara Marcos sacou o celular, abriu o aplicativo e arrumou um monte de novos crushs. Achou um cara bem interessante que chamou para ir à praia com eles. Na areia fina, com o mar azul batendo nos pés e um sol gostoso, Gabriel resolve relaxar um pouco. Pega um cigarro de maconha, mercadoria local de primeiríssima qualidade, e divide com as novas companhias. Em meio a contemplação Marcos vira pra Gabriel e diz: — Você sabe que eu vou levar o boy pra o quarto né!? E Gabriel responde prontamente: — Tranquilo vou dormir cedo então, relaxa. Quando o dia chegou ao fim Gabriel resolveu voltar para o quarto. Marcos ficou mais um tempo aproveitando os “sabores locais”. Mais tarde o boy de aplicativo e Marcos entram no quarto sem querer saber de nada. Com as luzes apagadas começaram a se amassar. Mas Gabriel estava acordado. Foi nesse momento que sentiu que algo mudou, naquele instante ele descobriu que estava apaixonado pelo seu amigo. E pensou: — Não Acredito! Não agora! Não por ele! Estigma: Os efeitos do Body Shaming


Veio forte a vontade de chorar, e o espanto em perceber o que estava acontecendo. Ele nunca havia se apaixonado e justo agora o coração decidiu tomar as rédeas. Ele segurou bravamente as lágrimas sem esboçar nenhuma reação, mas acompanhou tudo, do início ao fim. Uma tortura. Mas passado algum tempo o sono apareceu para salvar a noite. Na manhã do dia seguinte uma notícia, ele teria que segurar os ciúmes o dia todo, porque o boy de Marcos pagaria de guia turístico. Passaram quase o dia todo juntos, mas quando não deu mais pra fazer a egípcia e ignorar eles se pegando, Gabriel resolveu voltar mais cedo pra o hostel. Sozinho no quarto ele começou a pensar sobre o que estava acontecendo. Ele não poderia mentir pra si fingindo que não sentia nada, mas não podia falar nada durante sua estadia na Colômbia. Porque se fosse rejeitado, estragaria a viagem toda e ainda restavam 11 dias pela frente. Se escondeu em sua máscara de que estava tudo bem e seguiu com a viagem como se nada tivesse acontecido. Quando voltaram para o Brasil ele desempregado, se isolou por um tempo. Estava com dificuldades de arrumar outro emprego, e tinha muito tempo livre para pensar demais. Dia após dia tinha cada vez menos vontade de sair de casa, foi reduzindo gradativamente o tamanho de seu núcleo de amigos. Marcos permanecia ali, mas Gabriel não tinha coragem de contar o que estava vivendo. Pouco a pouco começou a perceber os impactos físicos de estar com mais de 200 quilos. Sentia dores na perna sem fazer nada, precisava emagrecer. Reparou que se ficasse com fome, ele não parava de pensar em comida e por um tempo, esquecia Marcos. Então foi comendo cada vez menos, que emagreceu bastante. Quando finalmente tomou coragem falar com Marcos sobre o que aconteceu, 8 meses depois, a resposta foi inconclusiva. Mas como Gabriel sabia que sua paixão era um cara condescendente, 27


isso seria um não mascarado. Concluiu que embora estivesse gostando muito de Marcos, não poderia obrigá-lo a sentir o mesmo. E em certo nível até o entendia, nosso protagonista era tudo que seu amigo não costumava se relacionar, era negro, tinha uma origem humilde, e pesava na ocasião 215 quilos. Quem sentia algo era ele, e não poderia passar esse fardo para as costas de Marcos. Lamentava: — Ele não precisa de pessoas como eu, ele tem opção. O jeito era seguir em frente na marra. Foram 55 quilos a menos e 8 meses de depressão. Hoje ele entende que de uma forma meio torta, o fora lhe ajudou em alguma medida. Além dos benefícios físicos, toda essa situação o fez enxergar que existem milhões de pessoas no mundo, e que só precisava achar quem o quisesse, encontrar um lugar em que se encaixasse. O ano de 2016 marcou o renascimento de Gabriel. Como uma fênix ele precisou se queimar inteiro, virar cinza, e ressurgir a partir disso. Como as palavras da escritora Martha Medeiros traduzem tão bem. “Gostar de alguém é função do coração, mas esquecer, não. É tarefa da nossa cabecinha, que aliás é nossa em termos: tem alguma coisa lá dentro que age por conta própria, sem dar satisfação. Quem dera um esforço de conscientização resolvesse o assunto” Depois dessa primeira decepção ele não consegue se abrir para relacionamentos afetivos. Até por não ter muito saco para isso. Não gosta de romances, curte mais uns lances casuais e pronto. Gabriel acredita que com os boys que ele se relaciona, rola um certo fetiche. Acredita que para qualquer pessoa fora do padrão, se não fosse o fetiche, iriam todas morrer secas e virgens. Estigma: Os efeitos do Body Shaming


Vida Digital

Depois do turbilhão que foi 2016, Gabriel se sentia meio estático. Precisava fazer algo diferente, abalar um pouco a sua vida, porque estava tudo meio chato. Foi quando no final de 2017, descobriu o canal de Alexandra Gurgel, que falava sobre um movimento de aceitação ao próprio corpo chamado Body Positive e era militante contra a gordofobia. Deu match imediato com aquele conteúdo, tudo o que ele pensava a respeito de amor próprio estava ali. Por intermédio do canal da Alexandrismos ele conheceu os canais Caio Revela e Bernardo Fala, que também falavam sobre gordofobia e sobre o Body Positive. Se apaixonou por aquele universo, era isso que queria fazer, era esse o seu lugar. Quando Alexandra, Caio e Bernardo resolveram criar a primeira festa Toda Grandona, Gabriel decidiu que precisava ir. Conhecer àquelas pessoas, estar perto delas e compartilhar essa experiência com eles. Se arrumou com todo o carinho e foi para o Bar do Netão. Plena e empoderada. Chegando lá se libertou, dançou, conversou, bebeu, se divertiu como se não houvesse amanhã. Mas observou que para algumas pessoas aquele terreno ainda era desconhecido, uma festa criada para celebrar a libertação do corpo gordo. Estranho não !? Sua empolgação e carisma não passaram despercebidos. Tempos depois ele foi convidado a fazer parte da equipe e trazer mais representatividade ao Squad. Fazer parte da equipe, é maravilhoso. Ele jamais imaginaria que teria um contato tão próximo com os influenciadores que ele tanto admirou. Ele sabe que é uma pessoa marcante, é carismático, divertido e bonito, mas não é ingênuo, tem consciência de que é um puta produto para a indústria por aquilo que ele representa. 29


Um jovem negro, gay e obeso, que como influenciador atrai olhares e representa todas estas causas. E mostra através do Instagram como o corpo mesmo não estando dentro do que a sociedade considera ideal, pode ser lindo da mesma forma. Tentaram colocá-lo em uma caixinha, num armário, num manequim. E foi ao sair de todos esses lugares, que ele encontrou sua melhor versão, o que não é nem um, nem outro. O que não é totalmente homem, nem totalmente mulher, mas que é único.

Estigma: Os efeitos do Body Shaming


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Ser trans não é nada mais do que ser você mesmo. É ser sinônimo de garra, perseverança.

Estigma: Os efeitos do Body Shaming


Maya, mulher Por Nadia Belo A gente se perde e se encontra dentro de si, mas antes disso, se solta no mundo, e na inocência do autoconhecimento, é comumente julgado, discriminado, desumanizado, mas uma hora, a força que carregamos dentro de nosso seio desperta e se agiganta, trazendo poder, sustentação e resiliência, tudo reflexo de uma herança que deixa claro o que Simone de Beauvoir quis dizer com sua ideia sobre as mulheres, é o desabafo que suspira logo antes do ser: mulher. Maya é também parte dessa história, é a atriz principal e construiu seu próprio enredo, e se a história é sua, ela deve ser contada de dentro pra fora, e não pelo inverso. Nascida na cidade de Caruaru, de sobrenome Costa, está neste mundo há pouco mais de vinte anos e em todos eles, completa e cheia de si, sentia que não era ela quem se refletia no espelho: “sou mulher, assim nasci, esta é a minha essência, então porque me colocaram neste corpo que não é meu?”, pensava. A sensação de não reconhecimento é, sem dúvida, uma das mais agoniantes. Dia e noite, minuto após minuto, todo o tempo vivido dentro de um reflexo que não é o seu de verdade, toda a tratativa, em meio a esse desencontro, socialmente equivocada, internamente distanciada. Imagine só, se ver por dentro assim como é, mas não enxergar o mesmo reflexo por fora. O que há de tão desajeitado nisso tudo? O que aconteceu para que tudo fosse assim? 33


Certo é que nascemos e nos despedimos da vida sozinhos, sempre na solidão inerente à vida, que todos carregamos. Mesmo com isso, nos vemos inseridos em uma família, em um núcleo de pessoas reunidas por laços de sangue ou de afeto, que nos cuidam, nos amam, se importam conosco. Infelizmente, vamos crescendo e amadurecendo nossas percepções e concluímos que esses quereres nem sempre são bem assim, que nossos pais podem não ser tão bem aqueles heróis que desenhamos em papéis e dentro de nós. Em meio a falaciosa ideia de normalidade que foi convencionalmente criada, que corresponde quase sempre às opiniões e ideias de quem estava no controle da sociedade em muitas culturas ao redor do mundo, quando um semelhante se depara com algo que foge a normatividade em outro, ele logo se espanta, se afasta, nega sua validade, aponta o dedo, desfaz laços ou os deixa apenas secar em meio à indiferença. Com isso, erramos: sugerimos o que não é sugestivo, dizemos ser escolha o que já nasceu assim, como é, como sou, como Maya sempre foi. No fundo, sabemos que este incômodo e todas estas ações que a sucedem são reflexos da incapacidade de lidar com o diferente, mesmo paradoxalmente dizendo prezar pela diversidade, pela universalidade de jeitos, formas, tipos, cores e seres. Em raras exceções, acertamos: olhamos para dentro e para fora, nos colocamos no lugar do outro, do próximo ou distante, e praticamos empatia, mas como disse, isso é raridade, você sabe. Leitor, não se deixe levar pela fineza e delicadeza desenhadas em palavras nas próximas linhas, pois de longe elas não são sinônimo de fraqueza, de vitimismo ou entrega, elas são o mais puro retrato do que Maya é, de sua essência, da mulher que carrega em seus seios por dentro e fora. Nestas duas décadas, a protagonista se vê tendo enfrentado a mais dolorosa, mas importante luta: sua descoberta e então sua afirmação, reafirmação e repetição, aos quatro cantos, de como realmente é, sempre foi, e não como tinha Estigma: Os efeitos do Body Shaming


sido moldada. Esta é uma história de verdade, construída em palavras e rememorada em lembranças, daquelas realmente vividas e sentidas a flor da pele. É a busca, a caminhada, são os pés descalços em meio a uma longa estrada, que se inicia dentro de si, dá a volta ao mundo e se encerra também por dentro. É o rosto cansado, triste, machucado, mas também que estampa um sorriso que não se desfaz que é a capa desta história, e a canção, ah, a canção é aquela longa, cantada com várias passagens, que cresce e diminui conforme a história. E esta é Maya.

Como uma flor

Assim como nascemos, crescemos, vamos primeiro abrindo os olhos, para depois emitir sons, balbuciar um idioma ininteligível, gesticular, se equilibrar a metros do chão, cambaleando, e depois mais firmes, já acostumados com a altura e com o cair. O mundo ao nosso redor já existia antes mesmo de chegarmos a ele, e com a sua existência, muito foi confabulado a respeito da imensidão que carregamos dentro de nós; algumas intenções, ideias e suspeitas foram provadas e então acreditadas, mas outras, mesmo sem ter passado por essas etapas, foram amplamente divulgadas como se verdade fossem, e continuam sendo. Em vagarosos passos, como na calma de um plantar, regar a terra, cuidar para então ver crescer, Maya passou a existir. Na infância, primeira fase com consciência de si na família Costa, brincava como havia de brincar. Mesmo no fundo sabendo que não eram os brinquedos e as formas de trato que acreditava combinar consigo, já que sempre soube que não era aquela pessoa representada no espelho, e em qualquer outra superfície que a refletisse, foi uma criança feliz, tranquila e de bem consigo da forma como se via, afinal, compreendia que nem sempre tudo seria como gostaria que fosse. 35


Em uma família totalmente diferente daquelas dos comerciais de margarina, foi crescendo e se desenvolvendo. Pétala sob pétala, foi enxergando cada vez mais o conflito que vinha se formando dentro do peito. Passando da infância em que apenas queria ser criança, sem qualquer peso, para a fase talvez mais conturbada da vida, a adolescência, este conflito foi se agigantando de uma forma que ela jamais imaginou. Os anos foram avançando e vieram então as primeiras borboletas no estômago, primeiros rubores no rosto, coração acelerado, sorriso bobo, amores, encantos e paixões. Os olhares já não eram os mesmos para os outros, as sensações também não. Assim como todos nós, Maya se apaixonava pelo mundo, pelas pessoas, mas continuava se esbarrando no conflito de antes, que estava crescendo, vinha tomando um espaço maior cada vez mais; ela não sabia o que fazer, então relativizava sua importância, não dava muita atenção. No despertar de seu autoconhecimento, do entender a sexualidade que carrega, Maya foi vendo seu corpo se desenvolver na adolescência, mas não da forma como devia ser: se era uma mulher, por que um corpo masculino? Ela até achava que era coisa de sua cabeça, que devia se encaixar a forma física que lhe foi dada, e assim seguir. Nas primeiras tentativas de se encontrar, acreditou que o que acontecia envolvia o seu relacionamento com o outro: se o seu desejo não era despertado por mulheres, só havia de ser por homens. Esta conclusão vem daquela ideia de binariedade, bem popular na sociedade. Só há duas alternativas para tudo, dizem: é preto ou branco, claro ou escuro, quente ou frio, noite ou dia, homem ou mulher. Se não é heterossexual então só pode ser homossexual. E se ela não correspondesse ao padrão social? Como seria sua aceitação? Ainda haveria amor, respeito e empatia, ou viria então o desrespeito, a agressão a forma com que se encontra no mundo? Nessa construção social que conhecia até então, só essa podia Estigma: Os efeitos do Body Shaming


ser a resposta, temia não se enquadrar nem em um, nem em outro. Pensou, questionou e resolveu arriscar, tentando transformar em conceitos, em palavras, a imensidão que sempre foi; tentando, no fundo, acalmar os barulhos que ecoavam por dentro, mesmo não tendo tanta certeza de que a resposta seria a homossexualidade. Sossegada, resolveu contar ao mundo sua descoberta: “família, sou gay”. Saiu do armário (como se em algum momento tivesse estado nele), como alguns diziam. Em troca do acalento, do suspiro de alívio que tinha certeza receberia, do aquietar do incômodo interno, foi tudo ao inverso: a família já não estava lá, e nem ela. Poucos ficaram, a ouviram, buscaram entendê-la e apoiá-la. Onde poderia então encontrar a resposta para esse desencontro? Concluiu que a questão não era a sua sexualidade, mas algo que ainda não havia entendido, que estava além disso tudo. Esse foi o primeiro passo em meio ao universo que se abriu, daquele já conhecido incômodo que reparava e que se cultivava dentro por dentro. A cada vez que se olhava, via ainda mais a imensidão do sofrimento, da angústia que vinha de seu interior e que tomava o corpo como um todo. Nada fazia sentido, nada se encaixava. Eram seu olhos que não refletiam ao seu olhar a imagem de sempre, como mulher? Ou então era a sociedade, a família, e seu reflexos, que não a enxergavam como era e ainda é? Em meio a tudo isso, passou a odiar seu corpo: sentia repulsa ao se olhar, se perceber dentro de um casulo que não sustentava o seu verdadeiro eu, e até a questão estética, dos padrões sociais de beleza, fez parte disso. O incômodo foi crescendo: se tornou uma tristeza, que se agigantou e deu espaço para um longo período de baixa estima, de depressão. “Eu era muito magra, odiava meu corpo, e não me enxergava nos traços masculinos que me desenhavam e muito menos naquilo que havia entre as pernas”. Em uma agonia que só crescia, ela concluía que “já não sabia o que fazer.”. Em meio a essa avalanche de sentimentos, “cada passo que dava parecia me levar mais longe do que eu deveria estar. Por que 37


tudo isso comigo?”, desabafa. Se isolou. Apenas por dentro sentia que tudo estava certo, tudo se correspondia. Diferente de sua adolescência, que “não foi tão conturbada, pois até então não tinha noção do que poderia ser esse distúrbio com o corpo”, em que acreditava estar tudo bem e que sentir dor era normal, Maya passou a cada vez mais sentir repulsa de seu corpo. Já de início, “minha aparência em si era um problema pra mim”, já que “sempre fui muito magra e meu cabelo era cacheado”, ressalta. Como não poderia ser diferente, “eu não me sentia bem comigo, conclui. Maya, abandonada psicologicamente por sua família, de tradições contraditórias a sua própria existência, que não a percebia e procurava se resgatar, só tinha a si e alguns amigos. “Foi difícil contar só com eles”, confessa. “Nunca fui muito aberta com minha família, mas eu era super com meus amigos”, completa. Como poderia se abandonar também? Ela ainda não sabia, mas sofria com body shaming.

O body shaming

Ela não conhecia o seu nome, não sabia de sua existência, pensava ser “normal” desgostar do próprio corpo, afinal, nunca seríamos bem daquele jeito que sempre desejamos, e com isso abafava, e se sufocava. Maya já tinha ouvido falar sobre body shaming, “mas na época não dei muita atenção”, conta. Começou aos poucos, e quando menos pensou, ele já havia a consumido. Era como uma lente que distorcia a forma como se via, ia bem além da necessidade de levantar o astral indo cortar o cabelo, fazer as unhas ou algo similar, já que no mero pensar, o ódio já a assolava. Como uma voz que não se calava, Maya foi ouvindo cada vez mais o ódio que ecoava em seu interior, dizendo que ela era desajustada, que não tinha qualquer traço de beleza e pior, que essa condição era imutável. Sem saber como reagir, foi se Estigma: Os efeitos do Body Shaming


diminuindo, ficando como um grão de areia, mas sentindo como se sua presença, sua existência fosse desprezível no mundo. Devia ter feito alguma coisa, era castigo divino, era herança familiar, algo que tinha feito de tão ruim para carregar dentro de si o desajuste de seu corpo com sua essência, não era possível, só isso explicava tudo pelo que passava e sentia. A cada vez que pensava, direcionava palavras pesadas para cada traço próprio: “ah, este cabelo, ah, estes pelos, ah, esses ombros…”, Maya cansou de suspirar. Se enxergava triste, sem perspectiva de alento, ajeito, e não encontrava qualquer saída para isso. Por conta do body shaming, que ainda não reconhecia, não conseguia enxergar a beleza da vida que carregava, e a sua imensidão. Se diziam que era bela, não concordava, e elevava sua discordância ao máximo, se odiando. Não havia sequer um aspecto, por fora, que traduzisse quem era por dentro. Sua história já carregava episódios demais em que era a vilã. Chega disso! Queria ser a heroína de sua vida, queria tirar este peso, viver livre, sob a leveza de seu ser como flor, mas ao se olhar no espelho, tudo ia por água abaixo. Ela perseverou, e na busca da calmaria, resolveu começar a pesquisar sobre o que tudo isso poderia ser, foi então que encontrou o termo body shaming que, em uma tradução livre, significa “ódio ao corpo”, “repulsa”, que poderia ser desencadeado por vários fatores: pressão estética, disforia com relação ao corpo/gênero etc. “Quando eu comecei a pesquisar sobre o assunto, vi que era muito mais do que uma simples cisma com o corpo”, explica, espantada com a discrepância entre o que era dito e no que realmente consiste o body shaming. Ela acumulava dois fatores (pressão estética, por não se ver bela com relação ao padrão socialmente apresentado e disforia em relação ao seu corpo, já que ele não traduzia a sua identidade de gênero), o que tornava tudo bem mais pesado do que já seria se fosse apenas um. Entretanto, saber com o que estava lidando foi o primeiro passo para tudo se ajeitar. Assim como grande 39


parte da população, até então ela o desconhecia e relevava a sua potencialidade. “Até então era uma dessas pessoas que pensava que o body shaming era algo bobo”, confessa. Reconhecendo que tinha ódio do próprio corpo, e que isso corroborava com a depressão, baixa estima e mais outras infelizes percepções que a assolavam, não desistiu de ser feliz: começou a se fortificar e a ter perseverança no entender de como poderia se encontrar. Não sabia muito bem o que fazer. Em meio a essa busca, para sua feliz surpresa, a resposta veio em uma palavra: transexualidade.

O encontro

Com a “trans” veio então um suspiro de alívio, de tranquilidade. A partir da complexidade de seu existir, começou a ser identificada primeiro por outras mulheres, mulheres transexuais, algumas que haviam passado por este mesmo doloroso processo de autosuperação e body shaming e que reconheceram seus próprios processos de autoconhecimento em Maya. Se entender como mulher trans, e não mais como homossexual, mudou sua vida por completo, já que “conhecia (a transexualidade), mas no modo “escuro” dela”. Maya conta que “a transexualidade era retratada a mim como sinônimo de prostituição e promiscuidade, e também era me passada com olhos de rejeição, já que passei uma parte da minha vida em igrejas”, retratação que a afastava, logo de início, do real entendimento. Aos poucos foi percebendo que a sua essência feminina era como uma rosa que só estava esperando o tempo certo para desabrochar. Era muito mais que uma feminilidade aqui ou “acolá”, ela ocupava muito mais espaço do que imaginava e que poderia conter. A compreensão sobre quem era de verdade apareceu muito atrasada em sua vida, mas não foi por decisão sua; por ser muito acanhada, tinha receio da reação de sua família e amigos em relação à sua personalidade. “Finalmente deixei de ‘vestir aquele Estigma: Os efeitos do Body Shaming


vestido que pinicava’, que nunca me serviu; aquele corpo não era meu e agora, finalmente, podia nascer como sempre fui, de dentro para fora”, conta, em meio a um singelo sorriso que rememora alívio. Maya passou a entender do que se tratava a transexualidade, e ela comportava justamente o seu ser: nasceu mulher, sempre o foi, e o seu corpo precisava corresponder a sua essência, afinal, você se torna mulher justamente neste processo de reconhecimento. Superando aquela época obscura, em que tudo era instável, sem respostas e sem cores, ela passou a se entender e também a compreender o que se passou no período mais grave do body shaming. Sem dúvidas “a aceitação própria, que era o que eu mais precisava na época, ainda não tinha ido a fundo no meu interior, sabe?”, confessa. Diferente do que muitos podem vir a dizer, transexualidade não é uma patologia. Transexualidade diz respeito à identidade de gênero de uma pessoa, ou seja, ela não se identifica com o gênero socialmente construído e o sexo biológico com o qual nasceu. Maya nasceu em um corpo masculino e foi ensinada a se construir como um homem por conta de seu aparelho sexual, mas em momento algum em decorrência de seu gênero. Ela foi descobrindo que, infelizmente, a sua história compunha uma sequência sem precedentes: comumente, alguns transexuais passam por longos episódios de body shaming, sentindo forte repulsa de seus corpos. Homens transexuais, por exemplo, em alguns casos, usam faixas em volta dos seios, como que buscando que eles não sejam notados, que desapareçam, já que não deviam fazer parte deles; assim como também certas mulheres trans, numa tentativa desesperada, utilizam barbantes no pênis para interromper a circulação sanguínea, o que as levariam obrigatoriamente ao médico e então eles teriam que retirá-lo. Por isso, muitos acabam desenvolvendo quadros de depressão, ansiedade e fobia, como pelos quais Maya passou. 41


Depois da descoberta e apesar da apreensão que sentia, Maya tomou coragem para encarar os seus sentimentos e ir atrás daquilo que queria, iniciando o processo de adequação entre o seu corpo e o seu gênero, por meio de um tratamento hormonal que iniciou há oito meses e que ainda perdura. Com isso, veio a assimilação, o entendimento de que poderia controlar o body shaming, agora que poderia desabrochar, mas não foi tudo assim tão fácil. “Eu tinha a noção de que eu poderia sim adotar todas as aparências e características físicas femininas, mas quando eu comecei a me hormonizar, percebi que não é algo que acontece do dia pra noite, é uma etapa que dura anos!”, explica. O tratamento “começou” com dicas que recebia de outras mulheres trans, porque sentia vergonha de procurar um médico, então por conta própria iniciou o tratamento. “Faço acompanhamento com um médico do sistema público de saúde, já que preciso tomar hormônios que requerem receita médica”, explica. Apesar de utilizar o Sistema Único de Saúde (SUS), Maya afirma que não é tão simples assim realizar o tratamento: “o ideal era que utilizasse remédios manipulados, mas como são muito caros, ela precisa usar os genéricos”. Sobre a cirurgia de adequação de seu aparelho reprodutor, explica que “ainda hoje, como trans não operada, me sinto incomodada”, já que “há centenas de características físicas femininas em mim, mas sinto que sempre falta algo”, conclui. Ela ainda tá aqui. Aquela sensação de incômodo, de ódio, “infelizmente isso perdura até hoje”, confessa Maya, a diferença é hoje ela sabe de onde vem, como fica, o que te causa e o que fazer para que sua melhora ocorra. Em um esforço infindável, Maya recorre a apoio psicológico para, cada vez mais, notar que permanece sendo a mulher que sempre foi e que a cada dia que passa, seu corpo refletirá ainda mais o seu ser. A sensação de odiar seu corpo às vezes volta a aparecer de Estigma: Os efeitos do Body Shaming


forma mais severa. Em outras se mantém silenciosa. Em geral, “depende de como está meu estado hormonal, pois em semanas que injeto estrogênio em mim, me sinto sensível, e logo procuro por erros no meu corpo, mas meu body shaming e sempre pelo mesmo motivo, e me acho magra demais”, explica. Hoje ela se abre para que a mulher que sempre existiu se desenhe também por fora. O tratamento médico poderia ser ainda melhor, se esta melhoria não fosse custosa (com medicamentos diferentes), mas mesmo assim, o tratamento que realiza, de pronto lhe traz a melhora imediata. O que a traz paz é a constante esperança de pouco a pouco ajustar o seu corpo a forma como sempre foi por dentro, para que passe a amá-lo, e não mais odiálo, para que celebre cada curva, cada linha, e olhe para dentro com mais ternura, agora vendo como ele corresponde, como há equilíbrio por dentro e por fora é predominante.

Maya e seu viver

Sempre tem um lugar de onde viemos, e algumas vezes, para onde voltamos. A família, principalmente em casos que envolvem body shaming e especificamente com relação à população LGBTI+, possui um papel determinante: ou colabora firmemente para esta autodescoberta, a sustentação para que o outro consiga se erguer, ou é a primeira porta fechada na sociedade em que vivemos e na qual há censura, discriminação e tristeza. No caso de Maya, infelizmente, não foi o primeiro caso. Ela conta, em tom de certa compreensão, que “meu relacionamento com minha família é meio incerto, pois tenho pessoas que são super a favor, e em compensação pessoas que nem falam comigo, meus familiares ainda me chamam às vezes pelo meu nome de batismo, mas é difícil se acostumar, eu entendo”. Sempre dizem das expectativas que os filhos quebram com relação aos pais, mas esquecem de notar o fardo, a auto repulsa 43


que os filhos podem experimentar quanto a si mesmos, e que só se multiplica quando aqueles que desde sempre os amaram dão as costas. Maya hoje se encontrou, é uma mulher forte, atenta e comprometida com a sua felicidade, mas conta com tristeza de como é a relação com sua família. “A gente sempre teve uma relação muito difícil, eu e minha família”, adianta, tanto em decorrência das convicções religiosas de sua família, quanto pelas construções sociais de cada um. “Moro com minha mãe e meu irmão, meu pai também veio pra São Paulo, mas a gente quase não se fala, por eu ser assim como sou. Pra minha “sorte”, sempre tinha um parente que pertencia a uma religião que condenava pessoas como eu, gays, lésbicas, travestis e transexuais”, explica, o que tornava ainda mais difícil a convivência. Com tudo isso, “a única pessoa com quem eu podia contar era minha irmã, Laisa Costa, que não me abandonava”, complementa. A família a gente também constrói, e é assim que encontramos amigos. “Meus amigos sempre me acolheram muito bem, e até por isso sempre me abri muito mais com eles do que com meus pais”. Felizmente, este acolhimento também se multiplicou em seu ambiente de trabalho, já que seus colegas a receberam muito bem e em momento algum a julgaram ou destrataram, na verdade, sempre a respeitaram e a trataram como é: Maya, mulher. O maior exemplo dessa família que se constrói é a ligação de Maya com seus amigos. “Na verdade, eles já sabiam que eu tinha tendências transexuais, pois eu sempre demonstrei repúdio ao meu próprio corpo”, confessa. Eles notavam, a aceitavam e entendiam a mulher que ela sempre foi e será, e a percebiam mesmo no desacordo de seu corpo, que não trazia explicitamente os traços femininos que gravavam Maya por dentro. Mesmo tendo dado esse passo em sua vida, hoje se encontrando como transexual, não imagine que tem sido fácil. O processo Estigma: Os efeitos do Body Shaming


de adequação do corpo à identidade de gênero é extremamente complexo, que comporta mudanças físicas, que refletem em sua saúde, por conta do tratamento hormonal, e consequentemente em seu estado psicológico. Maya ainda sente um frio na barriga, mas que ao se olhar e enxergar que está se adequando a como sempre foi, da forma que tanto desejou, se mostra certa de que o processo “é algo muito gratificante”, afirma. Hoje ela se mostra como sempre foi por dentro, e se orgulha de como é. Se sente pertencente a um grupo, uma família de conhecidos e desconhecidos que se respeita e se une em prol de uma vida melhor, com mais inclusão social, equidade e que não foge a luta de romper barreiras e preconceitos, tanto os que a sociedade estampa, quanto aqueles inseridos em cada um de nós, com raras exceções, desde o princípio de tudo, que se coloca, pelo menos, em duas linhas de frente: da população LGBTI+ e das mulheres. Para aqueles que pensam que se descobrir como transexual pode ser algo incompreensível, Maya conta que “ser transexual não é nada mais do que ser você mesmo, no meu caso, uma mulher; é ser sinônimo de garra, perseverança, é ter a noção de que você tem que ‘ralar’ duas vezes mais para obter o mesmo que um homem conseguiria” e ainda, é “‘ralar’ ainda mais por pertencer ao grupo LGBTI+”. A vigilância em prol do auto amor, do encontro e aceitação permanecem: ela é sua própria parceira, sua companheira, na busca por mais dias bons, felizes, sendo finalmente quem sempre se enxergou e mostrando um sorriso de ponta a ponta, por se ver no reflexo do espelho e dizer: “sou Maya”. A vida é cheia de altos e baixos, e quando você pertence a uma minoria socialmente sub representada, os baixos são multiplicados e sobrepesados, enquanto que, na maioria dos casos, o respeito e empatia são minimamente presentes. 45


O que fica

O body shaming, em uma didática comparação, não é como um simples resfriado que tem, claramente, as fases de descoberta, tratamento, remédio pra isso e para aquilo, começo, meio e fim. Ele te desestrutura, já que vem de dentro para fora, e no princípio você não sabe nem como nomear. Maya sabe disso. Por sua experiência própria, se preocupa com o outro, não quer ver essa dor se disseminar e avassalar alguém, seja quem for, sendo muito mais que uma militância. “É mais um estilo de vida que adoto, incentivar as pessoas que tudo bem não gostarem do próprio corpo, e que elas podem sim mudar se quiserem”, conta. Em meio a tudo isso, sempre o que fica é você. A beleza não é aquilo que já vem pré formatado, perfeito, irreparável, muito pelo contrário, assim como muito do que temos e que consideramos conhecimento, regra silenciosa, ela também é uma construção, e o mais importante, acima de tudo, é estar bem consigo. O belo é algo totalmente subjetivo e se desprende de qualquer regramento: ele é livre e construível por cada um, para todas as pessoas, independente de seus corpos, identidade de gênero, sexo biológico, cor da pele etc. Ela mesmo conta que a sua essência, durante o mais gravoso período de body shaming, era notada e respeitada por muitos, até por quem não a conhecia, em contradição ao que notava de si, compartilhando duas experiências marcantes. Maya, rememorando suas histórias, conta que “a primeira foi quando eu achava que era muito masculina para ser uma mulher de fato, até que então, na fila de uma casa noturna, uma mulher me perguntou se eu era lésbica, mas fazia apenas uma semana que eu estava tomando hormônios (ainda não fez praticamente nenhum efeito), então eu percebi que nem de longe eu parecia um “homem”, mesmo sem me hormonizar”. Em um tom de reflexão continua, e conta que “a segunda foi quando eu precisei de atendimento médico, e a médica me incentivou a cadastrar meu nome social, que até então não estava no sistema”. Com uma Estigma: Os efeitos do Body Shaming


expressão de conforto, complementa ressaltando que “é legal saber que existem pessoas com empatia e que estão do lado da gente”. A gente tem que saber que nem sempre o que o outro precisa é de uma sugestão do que fazer, de como se adaptar ao externo e não ao interno, de qual é a tendência da estação ou ouvir que não é normal, que está fazendo algo errado. Em um ritmo avassalador que é experimentado por grande parte da população nos dias de hoje, em meio aos compromissos, vida pessoal, trabalho, estudos, em que todo tempo é precioso e qualquer olhar para o outro pode ser visto como um “tempo perdido”, relativizamos o outro, a sua dor e qualquer outro sentimento que possa demonstrar. Condenamos o choro, a tristeza e criticamos dizendo ser fraqueza, mas esquecemos de como estes sentimentos e expressões, que traduzem nosso espírito, podem ser difíceis de lidar. Por ser um sentimento amplamente subjetivo, a dor nos confunde, nos machuca muito por dentro e por isso nos fechamos, tentando abafar esse estrondoso barulho, que não se cala, e que nos grita que está tudo errado. As palavras que devem prosperar, em meio a isso, são “respeito” e “empatia”. O conselho que Maya daria a alguém que se identificou e se encontrou em sua história é para que “que procurasse primeiro com quem conversar, e o mais importante, alguém que realmente pode ouví-lo sem julgar, é claro”. Se Maya tivesse obtido suporte de sua família em sua autodescoberta, se seus familiares tivessem aberto seus próprios corações para permitir que o carinho, respeito e empatia transbordassem e chegassem até ela, a história possivelmente seria outra. Este livro contaria algo mais linear, com menos tempos difíceis, dores, episódios tristes e muito mais alegrias, felicidades e tranquilidade. Mas isso tudo é hipotético, “se” tivesse sido assim, o que como vocês viram, não ocorreu. Em meio a tudo isso, o que se mantém é a resiliência de nossa protagonista de si frente a sua própria vida e suas relações pessoais 47


e interpessoais, por dentro e por fora. O que fica é o estar presente no presente, viver dia após dia, sempre atenta a qualquer força que possa vir de puxar para baixo, porque o body shaming ainda está com ela, hoje não mais protagonista, mas incômodo, fardo pesado este de se autoconhecer. O body shaming está cada vez mais multifacetado e mesmo no círculo social de Maya, há outros que sofrem, “não por causa do gênero em si, mas por não se encaixar nos padrões da sociedade”, conta.

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Busco enxergar as coisas boas que eu faço, aproveitei tudo para fazer uma reconstrução de mim.

Estigma: Os efeitos do Body Shaming


Ruth, Determinada Por Rubens Ferreira “Com quem eu vou me juntar para ser meu amigo aqui? ”, “Será que todo mundo vai gostar de mim e eu de todo mundo? ”, “Que horas acaba essa missa/aula/festa, não aguento mais! ”. Era uma tarde qualquer, com muito barulho na sala de aula. O pó de giz voa da lousa para a sua mesa, a primeira da fileira do meio da sala. A rinite ataca e ela, envergonhada, fica com o nariz escorrendo. Não se vê em nada daquilo. Não sabe o que esperar, nem para onde vai ir. Ainda que muito jovem, enquanto está na escola absorvendo fórmulas de Bhaskara e aspirando o pó de giz branco, já pensa nisso. Sentimentos confusos aparecem sempre quando reflete sobre o futuro. “Como as outras pessoas vão me ver? ”, “Isso combina ou não com a opinião geral? ”. Seriam pensamentos comuns para um jovem ou adulto. Mas, e para uma criança? Essas indagações estão na cabeça de Ruth Jorge de Oliveira, uma menina de 13 anos de idade, enquanto ela não presta muita atenção na aula de matemática às quartas-feiras (2x + 3 – B = 12, hein?). Durante a 7a série do ensino fundamental na escola estadual Senador Adolfo Gordo, a menina buscava entender algumas coisas que passavam como um turbilhão em sua mente. Não se sentia como as outras pessoas da sua idade. 51


Com quem andar na escola quando se está muito assustada? Ela não sabia. Ela entende que estava confusa, mas como acreditar em desconhecidos para tomar um melhor caminho? Tudo a assustava muito. Como ficar em sala de aula enquanto está confusa e com medo de rejeição? “Será que em algum momento as coisas vão ficar bem? ” Os dias ruins não acabariam na escola. Tem os cabelos enrolados mas prefere ele liso, por isso faz chapinha. Funciona melhor para cobrir a testa com a franja, acha mais bonito. Também combina melhor com a maquiagem dark e o estilo rockeira. Apesar destas questões internas, Ruth sempre está bem animada e sorridente com os amigos do círculo social dela, e junto do namorado que tanto gosta. São tempos de adolescência afinal. Nos momentos de paz em que ninguém implica com ela e nada a assusta, andar pela escola nas manhãs de segunda a sexta chega a ser agradável. Fala com algumas amigas, zoam alguns garotos. E deixa de ir às aulas mais chatas, tipo Física. Leva os dias assim até chegar o fim de semana. A professora de Física chega na sala, senta, pede uma lista de exercícios mal impressos em folha sulfite. Dá 50 minutos para todos encontrarem a solução e entregarem. Que legal, uma “ótima aula”! A professora, um tanto azeda, leciona de uma forma muito desleixada e despreocupada. Apenas aguarda pela aposentadoria que está por vir. Senta, fica lendo revistas e passa listas de exercícios para os alunos resolverem. — Ei, sentem que já tem mais lista pra fazer! Menina! Tira esse fone! Tenha respeito! Se Ruth estiver em alguma dessas aulas, não vai ser raro ela estar dormindo ou ouvindo músicas com fone de ouvido. Nas provas e trabalhos de fim de bimestre, ela se policiava. Procura estar mais presente. Acompanha mais as aulas. Estigma: Os efeitos do Body Shaming


Dormir ou ouvir música parece um tanto inconsequente. Mas na verdade, é uma válvula de escape. “Você tem que estudar, crescer e ser alguém”, é o que sempre ouvia da família. Tentava encontrar alguma motivação nessa obrigação, nessa imposição. Encontrava algumas coisas boas naquilo tudo. Tinha alguns poucos e bons amigos e um namorado, que podia ver todo dia. Apesar das risadas e o amor, ela nunca está em paz. Não tem uma alegria explosiva e jovem. Ela se sente um tanto insatisfeita, mesmo com algumas boas amizades em meio à selva de alunos. E fica feliz quando pensa que está vivendo os últimos anos do ensino fundamental. Nunca gostou da ideia de frequentar a escola para estudar matérias que um papel e família a diziam serem obrigatórias, mas fazer o quê, é ela contra o mundo -, mas ela tem as algumas aulas favoritas mesmo assim, como é o caso de artes. Mas a implicância de outras meninas a tirava completamente a vontade de dar uma chance para aquele lugar, nada apagava o medo de aparecer na sala e dar de cara com um grupo de meninas rindo (fosse dela ou não).

As memórias

Ruth já havia passado por muitas coisas antes nos anos de pré-adolescência. Episódios desagradáveis de perseguições dos professores, e com os colegas que a degradavam e diminuíam pelo fato das suas roupas não serem muito variadas, ou de seu rosto não ser tão liso quanto de uma boneca. O que todo mundo exigia a atormentava, porque ser ela mesma era um problema. Em 2013, tudo era bem confuso. Não fazia ideia de por que faziam aquilo com ela, que nem queria muito mais daquele ambiente ou de alguém nele. Ruth simplesmente segue em frente passando pelos anos, e fazendo um esforço para passar 53


mais desapercebida possível pelos colegas. Ainda assim, as expectativas de outras crianças se colocavam mais em Ruth do que nelas mesmas. Parecia tudo muito sem sentido, e era muito pesado e incômodo para apenas uma menina. Estar ali pela matemática, português, ou história, não lhe bastava como motivo. Se pudesse escolher entre ir à escola ou não, com certeza teria escolhido não ir. Passou por muitas experiências péssimas, principalmente em relação a sua autoestima. E ainda pesam até hoje. Ruth nunca entendeu porque tinha que ser ela. Ela não andava com nenhuma daquelas pessoas, nem brincava com elas, não entendia essa “liberdade” deles. Houve um episódio específico, com um garoto da escola, Yuri que a marcou muito. Estavam no 2º colegial, escola acabando. Ruth só queria que tudo terminasse logo, naquele ponto tudo já tinha dado o que tinha que dar. Passava a maior parte do seu tempo com o namorado. Certo dia ela foi embora com ele, paravam às vezes no meio do caminho para comprar alguma coisa, ou conversar com alguém que encontrassem. No dia seguinte, Yuri começou a gritar e xingar Ruth de vadia no meio da sala de aula, com todos lá dentro, a acusando de supostamente ter transado com o namorado no banheiro de um mercado perto da escola. Ele e as amigas dele eram muito agressivos, gritavam, debochavam dela, e todo mundo olhando sem entender nada. Os amigos de Ruth xingavam de volta, os outros apenas riam de tudo aquilo. Uma situação enlouquecedora. As coisas ficam verdadeiramente preocupantes, quando a professora de Biologia percebeu a confusão no meio da sala. A aula já havia começado há aproximadamente 20 minutos. Ela gritava chamando a atenção dos alunos para saber o que estava acontecendo, mas simplesmente ninguém a ouvia. Estigma: Os efeitos do Body Shaming


Não entendia o que estava acontecendo. Chegou ao ponto de mandar o inspetor levar a diretoria todos os envolvidos. Os amigos da Ruth perceberam que a amiga está ficando mal de verdade. Ao chegarem na diretoria, o assunto começa a ser resolvido depois de muita gritaria, e na presença dos pais. Isso a pedido da própria Ruth. E toda essa situação tem um dilema bem delicado. Até que ponto a escola pode ou não se envolver na vida dos alunos? As perguntas começam a ser feitas: — Quem você acha que é para se meter na vida dela assim, Yuri? Mesmo assim! Que provas tem? Qual o seu direito de diminuir sua colega assim? Enquanto isso, Ruth limpava os olhos que ardiam com as lágrimas e a maquiagem. Neste ponto tudo girava ainda mais na cabeça dela. Não conseguia digerir o porquê de passar por aquilo. Ela teria algum dia, feito uma brincadeira que se comparasse com aquilo por acaso? Dentre tantos dias de sobrevivência nas salas de aula teria algum dia “feito por merecer”? — Por que você está fazendo isso comigo? Se eu te fiz alguma coisa, me desculpa por favor! Mas pra quê isso tudo cara? A sala toda estava lá e tu me humilhou! — Se enxerga garota! Olha a sua cara, você é ridícula! Você e seu namorado, aquele Coisa. Tudo teria começado porque Yuri teve a impressão de que Ruth e seus amigos riram dele na sala. Foi impossível para Ruth conter as lágrimas nesse dia. Como aquilo podia estar acontecendo de forma tão brutal, no meio de uma terça-feira, durante a segunda das seis aulas diárias (o dia nem estava acabando ainda). Se sentia muito indefesa, como se não pudesse fazer muita coisa para se livrar do medo e da raiva. Somente ficou no banheiro, e evitou de esbarrar em qualquer pessoa que soubesse do absurdo que estava sendo espalhado 55


pela escola inteira. Os pensamentos mais obscuros começam a tomar lugar dentro de sua mente enquanto Ruth se escondia para não encarar o intervalo da aula. Não via nenhum motivo para continuar ali naquele lugar, ou em qualquer outro lugar. Ela chorava o tempo todo, e falava com seu namorado pelo celular para ter a falsa sensação de segurança. E mais casos de humilhação covardes como esse seguiam acontecendo, como as risadas e desenhos tirando sarro das espinhas em excesso e cicatrizes no rosto causadas por elas - o que a propósito, é comum na maioria dos adolescentes. Tentava escondê-las com maquiagem mais pesada, meio dark, que ela mais gostava do que de fato precisava. Riam e gritavam para ela para ir passar um Assepxia ou outra coisa que funcionasse para tratar das espinhas. Qualquer que fosse a ideia sem graça, para a chacota para, seria dito da forma mais invasiva e humilhante possível. Ruth até hoje ainda pondera sobre isso. Não faz ideia de como lidar com o que já passou, e muito menos em relação às pessoas que lhe agrediram. Não acha forma alguma de entendimento ou compreensão em relação a eles. O ódio, ainda fala mais alto do que a suposta “superação” ou “crescimento” de que todos falam depois de terem feito tanto mal a alguém na adolescência. Mas Ruth também não espera o mal para eles, é um sentimento de completa indiferença. Ela não quer ser próxima de nenhum deles, muito menos fazer mal a alguma das crianças do passado. Apenas continua em frente com a sua vida, enfrenta novas situações. É feliz ao seu modo, mas sem nunca deixar para trás tudo que houve. Sofrer bullying é muito pesado, o que mais a deixa incomodada é que de certa forma essas marcas ficam, as cicatrizes moldam quem ela é hoje. Nem que seja para não ser mais aquilo que era, tímida, calada, o saco de pancadas Estigma: Os efeitos do Body Shaming


perfeito. Com o tempo Ruth foi mudando muitas coisas em sua personalidade naturalmente, mas ainda tem muitas características que permanecem do mesmo jeito que nos anos de escola. Ela não acha que isso vai mudar facilmente. É pouco provável que qualquer criança compreenda tudo isso, nessa idade se tratava mais de como fazer para o tempo passar e dar o fora da escola, ou o que ver na televisão, não dava tempo de se perguntar como as coisas estão dentro da cabeça, e nem era uma preocupação na real. Se arriscar a se definir fora do que as outras crianças consideram o padrão, ou que pelo menos querem que a outra seja, pode ser o risco de uma primeira experiência de frustração e crise de identidade na infância. Neste momento começam as indagações do porquê ser daquele jeito, o porquê de não a verem como “legal” ou “bonita”. Por que seu cabelo não tem o corte ou a franja que combina com o de todo mundo? E porque deveria ter? Não vão aceitar mesmo! Sua cintura e sua altura não fazem parte do mínimo requerido para andar nessa montanha russa dos círculos sociais de popularidade na escola. Nada do que eles pensam importa. Mas tudo que eles fazem e falam importa. Quem quer se sentir julgado por não ser o que lhe é cobrado? Bonito, amigável, “zoeiro”, bem vestido, profissional, engraçado, produtivo. Nunca pensando no que vem lá na frente, claro, o que importa é o agora e como você está se saindo. Ruth sentia isso pesar muito mais do que ela poderia carregar. Durante todo o tempo de bullying e julgamentos, a vergonha dominava tudo o que ela era e pensava. Não importa se gostasse de conversar sobre desenhos, ou os shows de alguma banda, ou um novo filme, a toxicidade de tudo aquilo que acontecia arrancava dela toda a vontade de interação com 57


os outros. O que ela devia fazer? Como deveria agir? Já que as crianças a sua volta estavam falando dela pelas costas. Era tudo em que conseguia pensar, se fechava para todos ali, se isolando cada vez mais. As situações nesse ambiente representaram muito do que a vida foi e viria a ser para Ruth, isso tem muito a ver com a depressão que teve durante, e depois da escola. Ela sentia vergonha de tudo, da própria roupa, de seu cabelo, seu corpo, tudo, ela se sentia muito mal. “Ir pra a escola é uma obrigação”, era tudo que sempre ouvia de sua família, tinha que ir pra escola à pulso. Ela se sentia como um peso na vida de todo mundo. Odiava a si mesma por querer algo diferente e queria nunca ter nascido. Conhecer gente nova e sair com seus amigos para se divertir, era uma boa forma de se distrair. Ter experiências diferentes, dar o mínimo de atenção possível para as opiniões alheias de como deveria ser e agir, e dar o máximo de relevância para o que acha que lhe faz bem. Isso a fez melhorar um pouco. Depois que a escola acabou, ela percebe que o que as pessoas fizeram nos anos anteriores deixaram marcas profundas nela. Ela tem uma sensação de medo e perseguição que não passa quase nunca, exceto em alguns momentos com a família, com a irmã, ou com seus gatos. Entretanto na maior parte do tempo, precisa sempre estar atenta e esperta para que não perca o controle das coisas ou do que faz. Tenta se manter calma e alegre, mas sempre em estado de alerta. As memórias do que aconteceu é algo que ela precisava, o que não quer dizer que não lhe causava dor. Para que estas situações não se repetissem, ou que não cometesse os mesmos erros que a fizeram chegar até aqui, ela precisava se lembrar. Isso poderia ser válido, se em sua maioria estivessem superados os traumas, seria até uma boa estratégia. Mas o passo que ela estava prestes a dar, evidenciava outra coisa. Estigma: Os efeitos do Body Shaming


As tentativas

Ela chega em casa, e passa a pesquisar sobre suicídios. Depois de verificar algumas opções lendo em blogs, e assistindo vídeos sobre o assunto, ela toma mais coragem a cada clique. Em uma noite quando a escola já havia acabado, e seu namoro também, ela se sentia um peso para todos e tudo era muito difícil. Nada fazia muito sentido, e ela não queria fazer mais nada na verdade. Estava decidida. Ruth dá prioridade a formas rápidas de acabar com os problemas. Listas e mais listas eram feitas dentro de sua cabeça. As ideias lhe parecem boas na hora, inspiradoras até certo ponto, tudo se assemelha a atos funcionais de como resolver absolutamente tudo. Naquela hora tudo que sente é um enorme “tanto faz”. Ela sente medo, mas ao mesmo tempo parece que tudo é tão indiferente. Ruth só queria tirar sua vida com o mínimo de dor possível. Torcia para que desse certo. Existem dias em que tudo perde o sentido, e parece não adiantar ouvir ninguém nem tentar ser ouvida. Em momentos como esse, Ruth chega às conclusões mais extremas de uma possível solução aos seus problemas. Se sentir sozinha, e pensar que todos que lhe eram queridos hoje já não estão mais lhe acompanhando, a tirava o chão. O fim do namoro de colegial por iniciativa de seu namorado, um relacionamento que ela tinha tantos planos, como uma quase moradia juntos meses antes de acabar, pode-se dizer que é uma forma de enlouquecer e querer tomar uma atitude. É natural se culpar antes de qualquer coisa, quando sente que não tem importância ou qualquer valor física e emocionalmente. Ruth sentia todo esse peso em seus ombros, nada mais 59


parecia ser capaz de solucionar os problemas, silenciar toda a mágoa de não conseguir compreender o que acontecia e a culpa de ela ser como ela era. Num completo desespero e sem nenhuma vontade de seguir em frente, ela começa a pôr na balança muitos jeitos de como alguém pode dar um jeito na própria vida estando assim. Seu maior medo era de não morrer na verdade, e ter que conviver com as sequelas e mais julgamentos, seria uma tortura maior ainda. Ela já tinha se cortado toda neste dia, mais para sentir a dor, sem atingir nenhuma veia principal. Então apanhou alguns de seus remédios calmantes e tomou muitos de uma só vez, mas nenhum a matou. “Como é que pode?”, se pergunta Ruth. A esta altura totalmente espantada e desesperada, ela toma em suas mãos seus tênis, e tira os cadarços com uma força que não sabia de onde viera, e nem ligava. Seria dolorido, ela sabe disso, mas são as vezes que ela pensa: “agora vai”. Ela pega os dois cadarços e amarra eles com um laço de forca na ponta. Quanto mais peso ou com mais força lutar contra este laço, mais ele aperta. Ruth desce o laço frágil pelo topo da cabeça passando por seus cabelos até o pescoço. Começa a puxar com toda a sua força. Os cordões não aguentariam seu corpo pendurado por ele e arrebentariam. Puxa pensando em tudo que lhe aconteceu, e ao mesmo tempo sem conseguir assimilar nada de tudo aquilo. E no meio da força contínua e crescente, ela dá puxões ainda mais fortes, a raiva e a vontade de dormir a tomavam, ela chorava, mas em silêncio, sufocando durante o aperto para que simplesmente apagasse. Tudo começou a se dissipar, ela não via nem pensava em mais nada, era como se estivesse exausta após um dia extremamente longo e cansativo. A força em suas mãos puxando os cordões acima de sua cabeça ainda estava lá, mas ela começava a vacilar. Contudo ainda queria que Estigma: Os efeitos do Body Shaming


tudo acabasse, não teria jeito de ela melhorar. Então ela puxa, e puxa enquanto consegue. Assim ela o faz, até desmaiar. A noite estava totalmente escura agora. Quando acorda, a reação é apenas o silêncio, e a tristeza. Como explicar aquilo que acabara de acontecer para sua família? Os julgamentos viriam, e a atenção e desconfiança também. Ela não conseguiu, não teve todas as forças que há alguns minutos atrás quisera ter, então de algum jeito sabe que vai ter de encontrar um tipo diferente de força. Para explicar para sua mãe e irmã, e quem mais percebesse as marcas no pescoço da tentativa frustrada de suicídio. Decidiu que iria enfrentar todos, sabendo que de agora em diante teria que melhorar. De qualquer jeito.

Os resultados

Se a melhora momentânea tinha a ver com os remédios que já tomava, sua situação poderia estar bem mais grave depois deste episódio. Como poderia haver a confiança por parte da família em Ruth, ao menos no início, para usar de remédios de depressão. Quando em uma das fases mais sombrias de sua vida adolescente se apoiou justamente em comprimidos? A resposta de qualquer maneira é bem frustrante para Ruth. A verdade é que, os remédios fortes não lhe fazem muito mais do que, desestabilizar emocionalmente e tirar completamente a sua atenção durante as conversas. Além de atrapalhar nas funções que ela tinha que desempenhar em seus primeiros empregos. No tempo das aulas no segundo colegial, Ruth já fazia uso de remédios para a manter mais calma. Eles ajudavam a tirar o medo da atenção excessiva que ela pudesse ter dos outros jovens que a agrediam com palavras cruéis, e evitavam os ataques de pânico e fugas das aulas. E mesmo nessa época, com 61


pílulas calmantes mais fracos, não a ajudavam muito, apenas mexiam negativamente com o desempenho na escola graças aos efeitos colaterais do remédio. O que antes já era afetado pela pouca disposição de estar lá, agora era quimicamente mais difícil. Ruth se consultava com um psiquiatra há pelo menos um ano. Agora ele recomendava alguns remédios que realmente a ajudam. Ela sentia que funcionava mesmo com a Nortriptilina, que demorou muito para ser receitado. Por bastante tempo, ela tomou Fluoxetina (uma bela porcaria, haha). E Sertralina, que a afetavam muito na hora de ter que se concentrar ou responder as pessoas que falavam com ela. Depois disso ela se sente bem melhor, quase não tem mais depressão, apenas em alguns momentos de recaídas ao se lembrar do passado. Mas se esforça, e começa a pensar bem nas opiniões positivas ou coisas construtivas a respeito dela. Demandou um esforço muito grande para se enxergar de uma forma diferente, e ter mais carinho consigo mesma. Enxergar as coisas boas que ela faz por ela e pelos outros, a ajudam pouco a pouco a se recuperar. Além do tratamento com remédios, Ruth teria que tentar outras coisas. Já que a escola nunca havia a feito bem, por ser obrigada a estar lá, e as pessoas em sua maioria esmagadora lhe faziam mal. Seus amigos tentavam lhe ajudar, mas os remédios para controlar a depressão não passavam a sensação de melhora e eficiência que gostaria. Neste momento ela resolve ir de cabeça procurando por atividades que a façam se sentir bem consigo mesma, talentosa e que deem algum retorno enquanto ela tenta de verdade quebrar suas barreiras. Buscava alternativas, e por mais difícil que fosse, ela tentava melhorar sua forma de ver as outras pessoas, e não pensar tanto em suas inseguranças. Ruth entra para um curso intensivo de maquiagem pelo Estigma: Os efeitos do Body Shaming


Senac, para poder exercer tecnicamente a profissão de maquiadora dentro de agências de moda e em trabalhos comunitários. Uma forma de conciliar bem sua preferência por artes e de querer fazer mulheres se sentirem mais bonitas e seguras com sua aparência. O que, com sucesso, a fez se sentir muito bem e capaz de fazer ela entender que tem sim talentos e pode ser admirada. O curso durou em torno de três meses, que passaram muito rápido. Ela gostava bastante. Conseguia executar muito bem as maquiagens, e seu professor a elogiava bastante por seus trabalhos. Era uma sensação incrível, saber que conseguia ser boa e ser reconhecida por seu talento. Acabado o primeiro curso, Ruth sente-se feliz e realizada por ter conseguido dominar bem as técnicas e aprendido profissionalmente a prática de maquiar. Os dias de tristeza em excesso e julgamentos infundados parecem estar acabados, mas ainda não é o bastante. De tudo que ela quer fazer e deseja alcançar, este não era nenhum pedaço grande do bolo. A sua vontade de se libertar das opiniões negativas e pré-conceitos para ser quem ela quer de fato ser ainda é muito grande, e por isso ainda vai lutar bastante para melhorar. Ruth entra em uma oficina de pinturas automotivas, a famosa “tunagem” de carros. Este já não tão formal, mas muito mais sua cara. Ela treina em tipos variados de automóveis; casuais, esporte, e até os de corrida. Tintas à base de chumbo para dar desenhos e “shapes” (formas simétricas ou não de desenhos da carcaça dos carros) utilizando a pistola com os garrafões. Tudo que ela consegue e só se concentrar e imaginar como aquilo é bonito, e feito para ela. Sempre consegue fazer ótimos trabalhos. E sendo a única mulher da turma toda, superou homens que já trabalhavam com isso há anos. Mas ainda não se dando por conformada com a inércia e conforto 63


do sucesso nas artes da maquiagem e dos carros, ela ainda se empenha em fazer mais cursos, para aprimorar e expandir seus horizontes, ou para se sentir bem fazendo algo que lhe desperte paixão. Desta vez com atividades físicas que a trazem ainda mais paz. Começa a praticar BMX (Bike Moto-Cross), constantemente por mais de dois anos. O esporte consiste em fazer manobras nas ruas, rampas, pistas e corrimões com bicicletas, de preferência bikes com marcha, ou motos, dando mortais e giradas no ar, sempre balanceando a velocidade, nem sempre correndo desenfreada. Ruth já alcança inclusive um pequeno sucesso comercial dentro do esporte, como a gravação de uma reportagem de um campeonato, e direito de divulgação por uma nova marca de acessórios e bikes. Enquanto ela está lá em cima, ou nas rampas, ela se torna despreocupada. Andar na bike, dar uns pulos e pegar o vento, torna realidade o objetivo de não ouvir quaisquer julgamentos que ataquem como ela é, e o seu jeito de se vestir ou se maquiar, e apenas pedalar.

A luta continua

Ruth agora não liga se seu cabelo não vai estar com um aspecto muito brilhante ou sem corte como era antes. Ela fez as pazes consigo mesma sobre ser quem ela é, e tem muito orgulho disso. Seu pensamento e modo de agir, isso tudo fez dela alguém mais livre do que a normalidade manda. É muito melhor do que o que a normalidade manda, porque ela é livre para tomar suas decisões. Agir da forma como ela sabe que vai fazer bem a ela e que tem pessoas que estão ao seu lado. Apesar de ter os que não estão, eles não superam aqueles que são seus companheiros, que para ela, são todos de valor inestimável. Estigma: Os efeitos do Body Shaming


Os comentários maldosos? Simplesmente vão para o raio da sua bicicleta enquanto ela anda pelas ruas de São Paulo, vão para o vento, um vento que ela não faz questão de que balance os seus cabelos. Mas caso balançar, ela não vai atacar de volta, nem ser levada por ele, apenas seguirá em frente, para onde ela quiser e bem entender. As dores ainda apertam de tempos em tempos, e elas precisam ser controladas. Os medos nunca foram completamente embora enquanto ela segue com a sua vida. Sim, ela aprendeu a lutar e bate de frente, com sua mente mais tranquila e positiva. Ela agora amadurecera. Ela sabe que o sol brilha mais forte para ela e que as coisas podem dar certo se ela quiser. Acompanhamentos são feitos e alguns remédios mais fracos são tomados, mas a força dela vem agora em dose muito maior que os comprimidos. Sempre de cabeça erguida e pronta para encarar quaisquer ameaças ou pessoas que a ataquem. Aprendeu o valor de saber que não está sozinha, e que se ela for diferente ou se não conseguir se encaixar em tudo que é estipulado como o aceitável e comum pela maioria, está tudo bem. O bodyshaming e a perseguição a uma criança poderiam ter destruído uma vida, e chegou perto disso. A pregação e as marteladas de tudo que nos impõem justamente quando somos pequenos, pode ter efeitos devastadores, tudo por conta de um leve descuido ou desvio desta conduta, um atrevimento ao sermos diferentes da maioria. Isso quase destruiu a vida de uma menina apenas por ela não entender como funcionava a pressão estética, por ela rejeitar ser comum a muitos outros e não compactuar com o comportamento violento que isso pode causar em quem é diferente da maioria. Isso foi real, é a realidade crua. Mas bem como esta existe, há também a realidade da virada, da quebra dos 65


paradigmas e o encontro de liberdade e da leveza. Das vitórias que todos podem alcançar ao se atreverem a sair da caverna da perfeição. Se aceitarem como e quem são, esta é a beleza de todos sermos diferentes. Ao se aceitarem e terem noção de que cada um de nós precisa aceitar a si mesmo, essa é a liberdade e a verdadeira felicidade.

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Com um tempo você aprende, que a vida só dá asas pra quem não tem medo de cair Estigma: Os efeitos do Body Shaming


Natalia, Resiliente Por Luara Theodoro “Plec” O comprimido cai na mão Um pouco de água para facilitar a descida do comprimido na trajetória da boca até o estômago “Plec” O comprimido cai na mão Um pouco de água para facilitar a descida do comprimido na trajetória da boca até o estômago “Plec” O comprimido cai na mão Um pouco de água para facilitar a descida do comprimido na trajetória da boca até o estômago “´Plec” O comprimido cai na mão Um pouco de água para facilitar a descida do comprimido na trajetória da boca até o estômago À medida que caía mais oito comprimidos na sua mão, uma enxurrada de pensamentos negativos e confusos inundavam cada vez mais a cabeça de Natalia. As reflexões tinham vozes, vozes truculentas afirmando que estava fraca e quebrada, que não havia motivo de estar ali. Estava em ruínas, era uma fracassada por ter falhado com as promessas feitas a mãe, de que se cuidaria. Mas o que era cuidar? O físico estava ficando 69


sadio aos poucos, mas o seu psicológico estava destruído. Estava tentando se recuperar, mas tudo lhe doía, não sabia a origem de sua dor, o seu corpo ardia. Ela gritava silenciosamente. Não queria ser mais fraca, não queria mostrar fraqueza. Desejava existir um botão que parasse tudo por alguns minutos. Uma palavra mágica que fizesse desaparecer toda esse sentimento como fumaça. Ansiava por um gesto que fizesse o mundo parar para que pudesse respirar por 30 segundos. Uma forma de sumir como se nunca tivesse nascido. As lágrimas caiam, mas não expressavam mais o que sentiam. Eram lágrimas vazias. Contudo, foram as únicas que não a abandonaram nesse processo de dissociação de sentimentos. Não sabia mais o que era ser feliz, não sabia o que era tristeza. Sentia-se oca. Tomar aquela cartela de comprimidos, era sua solução. Finalmente iria silenciar sua dor. Depois das dez cápsulas, Natalia estava aliviada na cozinha da sua sala. Eram 14 horas, verão e estava calor e abafado. A mãe, Nanci Geraldi descansava no quarto ao lado quando os primeiros sintomas do uso excessivo das substâncias médicas iniciaram os seus efeitos. Os braços e pernas começaram a amolecer, Natalia sentia-se sem força. Começou a tremer. Perguntava-se: — É assim que vou morrer? O seu corpo ao decorrer dos minutos ia cada vez perdendo suas forças. As batidas do seu coração estavam oscilando e aos poucos diminuindo. Natalia ficou assustada, não queria sentir isso. A medida que os sintomas apareciam, a preocupação aumentava. Chegou a conclusão que não queria morrer. Precisava fazer algo para resolver. Resolveu ir até o quarto da sua mãe e contar o que tinha feito. Mas as duas estavam sozinhas em casa e não tinha ninguém para levá-la ao hospital. Nanci mandou Natalia ligar para seu noivo, na época, Jackson. — Jackson, você pode me levar pro hospital? Estigma: Os efeitos do Body Shaming


— O que aconteceu? — Eu fiz besteira… tomei mais comprimidos que devia, por favor, me busca. — Estou indo. No hospital Vera Cruz, em Campinas, Natalia foi direto ao Pronto Socorro. Mas como estava desorientada não conseguia explicar a enfermeira da triagem sobre o que estava acontecendo, seu noivo precisou dizer. A enfermeira não esboçou qualquer expressão ou proferiu qualquer palavra até Jackson terminar. Assim que terminou a explicação, a enfermeira apertou um botão que existe na sala de triagem. O botão acionava o protocolo para tentativas de suicídio. O caso era de urgência e precisavam agir com rapidez. Natalia foi colocada em uma cadeira de rodas para ser levada a sala de acolhimento para realizar os procedimentos. Nada mais estava nítido, sua visão encontrava-se ainda mais turva, os rostos desfocados, as luzes fracas, o corredor estava girando. Mas a voz da enfermeira era marcante. — Mas por que uma garota tão jovem fez isso? Você tem tantos anos pela frente, tão linda. Vamos cuidar de você. Colocada na maca, apareceu um médico clínico geral para avaliar a sua situação. Os primeiros minutos do socorro são cruciais. Por isso, tempo depois apareceu outra enfermeira com uma sonda orogástrica, para realizar uma lavagem estomacal, que é introduzida de forma oral no paciente e estendida até o estômago, passando pela faringe e esôfago. Porém, em certos casos, existe um risco da realização do procedimento, então é necessário fazer a uma intubação e a colocação da sonda, que agora será a nasogástrica, feita pela fossa nasal. Essa era a situação de Natalia. A enfermeira lhe aplicou soro intravenoso em para mantê-la hidratada para logo depois introduzir a sonda, sem qualquer anestesia. — Preciso que você respire pela boca, porque vai doer. 71


— Natalia, eu preciso que você engula a sonda para facilitar a descida até o estômago. Por mais que não estivesse em total sã consciência, sabia que aquela queimação que passavam do seu nariz e atravessa a sua garganta era real e doía. Foram longos minutos. Quando a sonda alcançou seu estômago, encheram de líquido para fazer a lavagem. Depois de três horas, o órgão ficou cheio, e foi feito o esvaziamento, utilizando um equipamento específico. Os comprimidos já não estavam mais no organismo da Natalia. Ela iria sobreviver.

A infância

O galpão não era grande, dividido por um grande painel, o quarto e a cozinha ficavam lado a lado, o banheiro era pequeno, mas era o suficiente para Natalia viver com sua mãe recém divorciada. O divórcio dos pais foi fator determinante para sua vida não ser normal como de outra criança de família tradicional. A maior parte da sua infância foi com seus avós paternos. Eles davam tudo o que Natalia precisava e cuidavam sempre dela, já que seus pais estavam ocupados demais trabalhando. Quando não estava com os avós, Natalia ficava em casa sozinha ou ia para casa ao lado, onde sua prima, Larissa morava. As duas tinham a mesma idade, com alguns meses de diferença, estudavam na mesma escola, brincavam das mesmas coisas, mas não vestiam o mesmo manequim. Ou seja, não poderiam emprestar roupas. Às vezes, elas dormiam na casa da outra, e quando dormia na casa de Larissa e esquecia de levar suas roupas, Natalia, no meio da madrugada, precisava voltar ao seu lar para buscar, pois as da sua prima não lhe serviam. Além de os shorts pararem no meio das suas coxas ou as camisas ficarem apertadas no tronco, Estigma: Os efeitos do Body Shaming


sua tia também reforçava. — Você é gordinha, é por isso que não está cabendo. Por que ela estava dizendo isso? O que tinha de errado com o seu peso? Isso nunca tinha a incomodado, seus avós e mãe nunca falaram sobre isso. Por que ela está falando isso? Por que sempre ia à sua casa, ela precisava falar do seu corpo e peso? Para repetir tantas vezes e fazer comparações, deveria existir alguma verdade. — Olha como sua prima é bonita, as pernas delas são longas, pernas de modelo. E as suas? É preciso se cuidar. Na escola, em Carapicuíba, começou também sentir os efeitos do preconceito velado em relação ao seu corpo. Não entendia porque sua prima tinha mais amigos, sendo que ela se via na obrigação de ser a extrovertida para ter amizade dos colegas. — Na escola, ela conseguia fazer mais amigos do que eu, e Larissa era muito mais introvertida em relação a mim. Mas naquela época eu achava que ela fazia amizades por causa do seu corpo. Talvez, não tenha sido verdade, mas Natalia acreditou que isso era o motivo para se ter amigos. Ela começou a enxergar o seu corpo como problema, o que era uma ação normal todos os dias, se olhar no espelho transformou-se o início de complexos que se tornariam maiores. Não enxergava mais uma préadolescente normal, com braços, pernas, barriga, bochechas e etc. normais. Enxergava apenas um corpo gordo, com curvas e dobras. Era feio. Como ninguém falou para ela isso? Por que passaram anos mentindo para ela? — As pessoas geralmente não têm noção do que as palavras podem fazer. Até o dia em que você aparece com 20 kgs a menos e no hospital internada por tentar se matar. A falta da presença dos seus pais auxiliou o aumento de complexos. Se seus pais não lhe davam a devida atenção por 73


que ela seria especial e deveria amar a si própria? Esse foi um dos primeiros momentos que começou a questionar sobre si, contudo essas considerações eram efêmeras, pois a vivência e criação com seus avós a tornava mais forte do que ela, apenas se preocupando em ser criança. Mesmo com pessoas que em sua volta, cresceu sozinha, apenas com seus pensamentos.

A mudança

A mãe casou-se novamente e aos trezes anos Natalia tornouse irmã mais velha. Viveu mais uns dois anos em Carapicuíba e logo mudou-se com a sua mãe e padrasto para Hortolândia. O contato com seus avós maternos ficou mais complicado. Na nova cidade, ainda sem a figura presente da mãe, pois precisava trabalhar para pagar o aluguel e o financiamento do novo apartamento que iriam morar. Não tinha amigos, todos foram deixados para trás. Entrar em uma nova escola, estabelecer contato e novas amizades para uma menina que sofreu uma infância e préadolescência conturbada, seria complicado, pois sentia-se deslocada. Como faria amigos? Como gostariam dela? No primeiro ano do ensino médio, ela começou a frequentar a nova escola, professores e alunos diferentes. O início de um novo ciclo na cidade do interior. Analisava os grupos da sala para ver o qual se identificava mais para tentar uma aproximação. A sua primeira convivência em círculo de amizades foi com as meninas mais “populares” de sua sala, elas abriram a porta para Natalia fazer novos amigos. Suas novas amigas tinham cabelos lisos, iam maquiadas para escola, eram magras mas seus corpos eram desenvolvidos. O uniforme escolar acentuava suas curvas notáveis. A frustração de Natalia aumentava, pois queria ser aceita Estigma: Os efeitos do Body Shaming


pelas suas amigas, queria ser igual a elas para diminuir a rejeição delas, não queria ser deixada mais de lado, precisava se encaixar em algum lugar. Mas via seu reflexo no espelho e enxergava que sua estrutura física não era igual a delas. Seu corpo não era curvilíneo como um violão. A única coisa que conseguia notar era apenas as suas gordurinhas. Perguntava-se o porquê de nascer daquele jeito. Por que não poderia ser magra como elas? Por que elas podiam comer qualquer lanche sem se preocupar, enquanto se ela comesse já faria uma enorme diferença na balança e na frente do espelho? — Eu nunca tive a sensação de me olhar no espelho e gostar do que vejo. Nunca fui elogiada por ser magra. Não tinha os ossinhos de fora pra ficar admirando. Sempre era a gorda da rodinha de amigos. Essas premissas deram a oportunidade para vozes surgirem em sua cabeça, vozes que diziam a ela que não pertencia a lugar nenhum e as pessoas não se aproximavam dela devido ao seu peso, não se relacionavam com ela porque era gorda. As roupas bonitas que ficavam nas vitrines sempre ficariam melhores em meninas magras, não nela. Era gorda demais para qualquer coisa. Por estar agoniada com seu próprio corpo e por sentir vergonha dele, começou a escondê-lo. Não importava a época do ano ou clima, ela estava com roupas de frio. — Era uma época que não importava o calor que estivesse, eu estava com blusa de frio. Na verdade, optava usar blusa de frio para esconder a minha barriga. Como me sentia feia, me escondia atrás de roupas grandes, já que as camisetas da escolas conforme fui crescendo, elas ficavam coladinhas e eu engordando. Nova cidade, nova escola, novos amigos, novos hábitos, Natalia entra em uma nova igreja evangélica, diferente das 75


tradicionais igrejas de São Paulo. Não era tão rigorosa como aquelas que frequentava. Sentia-se bem, talvez as vozes da sua cabeça sumiriam e o vazio seria preenchido. Inicialmente, frequentava apenas uma vez a igreja, depois eram duas vezes e depois estava envolvida em todos os compromissos. Cria vínculos fortes, de uma simples frequentadora era a responsável pelas crianças e adolescentes, e pelo culto das crianças e jovens. Desenvolveu um relacionamento com um dos jovens ombreiros da igreja, ele era incrível, o pretendente maravilhoso, dava a atenção que ela nunca teve, o genro que os seus pais sempre pediram. Além do mais, era da igreja, acreditava nos mesmos ideais. Foram passando dias, meses e anos, havia se habituado com sua rotina. Escola, igreja e seu namorado. Aquelas vozes foram silenciadas temporariamente, ela acreditou que tinha se encontrado. Mas sabia que faltava alguma coisa, seu peito ainda assim estava vazio, não sentia-se suficiente, boa ou orgulhosa sobre tudo que realizava. Ainda continuava insatisfeita com seu corpo. Em um culto, notava que os vestidos e conjunto de saia e camisa caíam bem nos corpos das cristãs que participavam. Como elas eram bonitas, fiéis, participativas, magras, sempre procurando mostrar o seu melhor para os varões da igreja. E se seu namorado se interessasse por alguma moça? Com certeza ele a largaria pela mais bonita. Por que ficaria com uma gorda que sem sentar seus “pneuzinhos” apareciam? As vozes voltavam aos poucos e fortes. Precisava fazer algo para emagrecer, começou a pesquisar na internet alternativas para emagrecer rapidamente. Encontrou blogs que falam de sobre anorexia e bulimia, também conhecidas como Ana e Mia - chamadas carinhosamente por aqueles que sofrem esses transtornos. A anorexia e a bulimia são dois problemas que envolve uma relação complicada com a comida Estigma: Os efeitos do Body Shaming


e com a alimentação. Enquanto a anorexia, a pessoa não come, com medo de engordar e a magreza instalada é visível. Na bulimia, a pessoa come tudo o que deseja e vomita pela culpa ou remorso com medo de engordar e neste caso está quase sempre dentro do peso normal ou está ligeiramente acima do peso. Natalia ficou interessada nas dicas de emagrecimento e frases motivacionais que as adeptas diziam, além de encontrar o conforto nos desabafos daquelas anônimas que sofriam o mesmo drama que ela. “Seu corpo tem um formato tão bonito, é um desperdício deixar que toda essa gordura o esconda”, a voz dizia em sua cabeça. Passava um pé, depois o outro. E ia puxando para cima aquele tecido justo até chegar na sua barriga. Sentia sua barriga apertada e justa. Virava e se olhava no espelho, tentando enxergar as mudanças que a cinta fazia. Agora faltava mais uma para estar perfeito. Passava um pé, depois o outro e subindo a outra cinta por cima da primeira para ficar mais justo. E por último escolhia a roupa, vestida, Natalia se admirava no espelho passando a mão no corpo. Admirando um corpo que não tinha as temíveis medidas. Sentia-se bonita, mas não confortável. — Eu chegava a usar duas cintas por vergonha do corpo que eu tinha, sabia que a cinta me dava o formato de corpo diferente, eu ficava com menos barriga. A busca do corpo perfeito foi iniciada. Começou a cortar as refeições diárias. O primeiro passo foi excluir o café da manhã de sua dieta, antes de ir à escola, realizava suas tarefas domiciliares em jejum. A segunda etapa era cortar o hábito de comer os lanches fritos ou assados que vendiam na lanchonete da escola. Não precisou descartar o jantar porque mal comia quando chegava em casa. Em síntese, Natalia passava dias sem comer, o máximo que fazia era beber água para passar a sensação de estar satisfeita ao seu estômago, quando percebia que estava prestes a desmaiar 77


ou não aguentar mais controlar a sua fome, comia apenas uma colher de arroz e um pequeno pedaço de carne para enganar o seu corpo e mente. Seguia ao máximo as dicas das outras anas e mias: dava passeios pela cozinha periodicamente. Deixava pratos sujos para simular que comeu, assim conseguia cobrir os rastros. Bebia muita água para encher-se. Quando comia, mastigava devagar para sentir o gosto da comida. Ao seguir esses conselhos, a culpa era menor e não ficava desencorajada. Contudo a tentativa foi frustrada, pois ao se olhar no espelho e ver os números na balança percebia que não tinha perdido peso algum. A obsessão pelo corpo perfeito, não a fazia enxergar as mudanças negativas que estava sofrendo, pensava apenas em encontrar outro modo para emagrecer facilmente. — Eu queria ser magra. Estava na sala de estar, assistindo televisão com seu irmão mais novo quando Natalia escutou da sua mãe que estava com prisão de ventre, uma disfunção recorrente. Nanci sempre tinha os medicamentos em casa, caso precisasse. — Vou tomar laxante, assim é bom que emagreço. Fala sua mãe em voz alta. Ao ouvir sua mãe, um estalo veio em sua cabeça. Se o laxante emagrece, precisaria tomar, assim facilitaria o processo de perda de peso. Mas como tomar sem gerar questionamentos? Poderia falar que estava com problemas intestinais também, assim a facilitadora seria a própria mãe. Tomou o seu primeiro comprimido, enquanto estava lavando a louça. Molha a esponja, coloca detergente, esfrega o prato, abre a torneira e o enxagua, coloca no escorredor. Esfrega o prato, abre a torneira e o enxagua, coloca no escorredor. O primeiro calafrio sobe sua coluna até chegar no pescoço, os pelos arrepiam. O que foi isso? Continua a lavar louça. A barriga faz um barulho esquisito e sente uma pressão no pé da Estigma: Os efeitos do Body Shaming


barriga. O calafrio sobe de novo a sua coluna. Prestar atenção na limpeza era uma batalha, precisava terminar. Começou a suar. A barriga a gritar. O copo cheio de espuma foi deixado na pia. Correu para o banheiro. O laxante fez efeito. Aliar os medicamentos laxativos ao seu jejum rigoroso era a ideia perfeita. Contudo, o uso dos medicamentos de modo exagerado e as idas ao banheiro tornaram-se cada vez mais desconfortáveis. O que era solução, virou tortura. Em sua cabeça, o jejum e os laxantes eram sinônimos de frustração, porque ela já não enxergava mais os efeitos desses métodos, apenas tentativas fracassadas e dolorosas de tentar mudar o seu corpo. Como ela ficaria magra desse jeito? Ela nunca chegaria a perfeição se continuasse falhando. Ser gorda não era mais opção, mas fazia dias que não comia de forma adequada. Era tão difícil sentir o cheiro da carne de panela da sua mãe e não poder comer nada. E como abriria a geladeira e encararia aquele delicioso pavê? Não aguentava mais. A angústia e a decepção eram atordoantes, mas disputavam diretamente com a fome que ela sentia. “Tic tac” “Tic tac” “Tic tac” “Tic tac” Olhava para o relógio e as horas não passavam, estava suando frio, suas mãos tremiam, sentia-se fraca. O que era uma simples aula de álgebra virou um grande sofrimento. A professora falava para sala, explicava aquelas equações mas Natalia não conseguia entender nada, a voz da docente estava longe. O seu corpo falava com ela, mas precisava resistir. As vozes diziam para manter-se forte, pois estava conseguindo atingir a sua meta. Não poderia fracassar. 79


— Eu sei que você gostaria de comer tudo o que gosta. Eu sei que você está pensando em desistir. Eu sei. Mas não desista, porque vai valer a pena. Nada se conquista sem esforço. Dê o seu melhor agora e você irá alcançar os melhores resultados! A voz trazia o apoio necessário para Natalia manter-se forte. Apertava sua mão para não deixar a energia esvair do seu corpo e desmaiar ali na sala. Depois de anos passarem em sua cabeça, a professora liberou os alunos para irem embora. O caminho para casa estava tão pior quanto a classe de aula. Estava calor. A cada caminhada, o pulmão se esforçava para inspirar e expirar. A trajetória de quinze minutos demorou quarenta. Natalia chegou desesperada em casa, sentou-se no sofá. Fechou os olhos e tentava controlar a respiração. Agradecia por não ter desmaiado na rua. Mas ainda tremia e não aguentava mais sentir a dor do vazio de seu estômago, contudo, não queria falhar em seu propósito, não queria se alimentar, colocar comida em sua boca significava derrota. A vontade de comer era violenta. Enfim, foi à cozinha, encheu seu prato comida. Não se importou em esquentar, sentou ali na mesa e comeu. Não se importava em mastigar devagar, apenas engolia a refeição. Não queria saborear nada. Apenas sentir-se saciada. Em alguns minutos, o prato estava limpo. Estava em êxtase, o corpo e organismo agradeciam. Mas a sua ficha caiu, as vozes começaram a gritar na sua cabeça, tinha fracassado. Deixou todo aquele esforço escapar das suas mãos. A repulsa e raiva eram intensas. Precisava colocar aquela comida para fora. Comer foi um momento de fraqueza, como poderia ter cedido? Ela não merecia aquilo. Como perderia peso se continuasse desse jeito? Comendo? Não poderia fracassar. Precisava fazer algo. — Estava desesperada em vários sentidos, eu morria de fome. Mas eu comi, me senti muito mal por ter comido, me Estigma: Os efeitos do Body Shaming


odiei por ter colocado alguma coisa na minha boca. A solução veio ao se lembrar dos sites que das pró-mias recomendavam, colocar a comida para fora. Correu para o banheiro, antes que os alimentos fizessem a digestão completa no estômago. Ajoelhou-se diante ao vaso sanitário. Respirou fundo. Colocou o dedo na garganta. O refluxo veio, mas voltou. Respirou novamente, colocou o dedo na garganta novamente. O refluxo veio, mas voltou. A comida precisava sair, não podia ficar desesperada. Respirou e relaxou o corpo. Colocou o dedo na garganta, o refluxo veio e o alimento saiu. Sentou no chão quando tinha terminado. Não era êxtase que sentia, era alívio. Estava vazia e feliz. As vozes a felicitavam por ter sido tão corajosa e continuar sem comer. A consequência da indução do vômito, foi descobrir que era menos dolorido. Assim não sentiria mais fome e continuaria emagrecendo. Só precisava comer e colocar para fora. Não precisava mais passar dias sem comer ou evitar a comida. Uma batalha foi ganha. E todas as refeições seguintes eram assim, da cozinha para o banheiro. Para disfarçar, às vezes ficava na sala de estar ou ia para quarto. Logo depois ia induzir o vômito. A medida que ia pegando prática, aprendeu a mentir e descobriu técnicas para disfarçar o miar (ato de vomitar depois de comer). Falava que tomaria banho ou que estava sentindose mal. Às vezes, enquanto escovava os dentes, abria a torneira ou chuveiro para amenizar o barulho do vômito. Foram dias e dias repetindo a indução. Todo o esforço valeria a pena, porque seu objetivo estava sendo alcançado. Estava orgulhosa, quem perderia 25 quilos tão rápido? 70 para 45. Do manequim G para o PP. Do 42 para o 36. Finalmente ficaria bonita, as roupas que sempre almejavam lhe cairiam bem. A imersão nesses mórbidos desejos e ações cegaram Natalia. Não enxergava o quão doente estava. Os seus ossos estavam visíveis. Com insuficiência de 81


vitaminas, o cabelo caía, estava fadigada, não conseguia realizar as coisas que normalmente fazia. Andar, subir escada ou qualquer coisa que exigia esforço, cansava. Psicologicamente também estava cansada, desenvolveu ansiedade e a tristeza que carregava desde nova começou a tornar-se maior. Perdeu o peso que desejava mas não estava feliz. E agora? Estava frustrada. Os ensinamentos da igreja já não faziam mais sentido, por que uma garota de 16 anos precisava se casar? Por que deveria servir o seu marido? Por que tantas responsabilidades para uma adolescente? Emagreceu para deixar feliz o noivo, mas não sentia felicidade, por que? Tantas regras, tantas atitudes tomadas para agradar os outros. Imersa na perda de peso. Acabou-se perdendo. Os conflitos começaram, não suportava mais ficar perto do noivo, brigava com sua mãe e padrasto para não ir à igreja e por não querer casar tão nova. Não queria comer. Estava cansada de tanta pressão. As estruturas que a mantinham em pé estavam caindo. E agora? Natalia estava desmoronando aos poucos e evitava ao máximo expor o que estava sentindo. Nanci percebeu que tinha algo de errado. Sua filha não era mais a mesma, o seu olhar estava distante. Procurou todos meios para Natalia falar com ela, mas não conseguia, começou a ficar doente pois estava perdendo sua filha e não conseguia fazer nada. Numa tarde, chegou mais cedo do trabalho para esperá-la, teriam uma conversa definitiva. — Nathy, filha, precisamos conversar. — O que aconteceu? — Você não come, sempre está estressada. Não me fala mais nada. Você não é assim. Precisa ir ao médico. — Não está acontecendo nada, mãe, estou bem. — Não estou te dando opção, se continuar desse jeito, você vai me matar também. Não suportaria viver sem você. Estigma: Os efeitos do Body Shaming


Natalia não estava nada bem, sentia-se em ruínas e tinha medo de desmoronar de vez e soterrar quem se atrevesse a chegar perto. Sua mãe tinha passado o limite. Não queria que ela se machucasse por causa dos seus problemas. Ela queria contar o que tinha acontecido, mas como explicar algo que nem você sabe o que acontecendo. Então, resolveu aceitar o pedido de cuidado da sua mãe, começou a ir às sessões do psiquiatra e nutricionista para voltar a se alimentar adequadamente. Nutricionalmente estava melhorando, mas psicologicamente não. Por mais que sua mãe ou o psiquiatra quisessem ajudar, Natalia não conseguia falar expressamente sobre os seus problemas. Do que adiantava ir ao médico, sendo que não poderia falar sobre tudo? As vozes não falavam apenas do seu corpo, mas estavam sugando os seus pensamentos. A sua mente estava enlouquecendo. — Há um vazio com as vozes dizendo para desistir que eu não devo estar ali. Mas há outra voz dizendo para resistir, que eu sou forte. As duas brigam incessantemente, não sei quem escutar. Eu ficava e ainda fico louca. Não sei em quem acreditar. Estava cansada por não se encontrar, por não saber quem era. Tinha perdido dentro de si, mas não sabia por onde procurar. Estava cansada de sentir-se insuficiente para ela e para todos ao seu redor. Não entendia o que estava fazendo nesse mundo. Queria agir sem fingimentos. Sentia-se vazia por não acreditar que era capaz. Estava vivendo dentro de um furacão. O sentimento de incapacidade era acompanhado por inúmeras cobranças. Não tinha mais forças ou um caminho para seguir. Precisava acabar. Era a única solução. Olhou para os remédios receitados pelo psiquiatra. “Plec” O comprimido cai na mão Um pouco de água para facilitar a descida do comprimido 83


na trajetória da boca até o estômago “Plec” O comprimido cai na mão Um pouco de água para facilitar a descida do comprimido na trajetória da boca até o estômago

A recuperação

Depois da lavagem gástrica, Natalia foi levada para o leito da enfermaria, onde pudesse ficar em observação. Sempre aparecia alguém para ver como ela estava. Entre eles, o médico psiquiatra Petrus Raulino, ele era plantonista do Hospital Vera Cruz, acionado apenas para avaliação de tentativas de suicídio. Durante cinquenta minutos, ficou na ala com ela perguntando sobre o que acontecido, o porquê tinha feito e como era sua rotina. Feita a avaliação, o psiquiatra esperava algum responsável para conversar com a Natalia. Entre esse tempo, Nanci apareceu ao ver sua filha entubada na cama, caiu no desespero, apenas chorava. — Ô, filha. Por que você foi fazer isso? Nunca mais faça isso. Não posso viver sem você. Nunca mais faça isso. Nanci chorou, por um tempo, segurando a mão de sua filha. Após isso, o médico Petrus chamou a mãe para conversar sobre a situação de Natalia. — Mãe, a sua filha não está bem, ela foi diagnosticada com depressão, além da anorexia nervosa. Devido a gravidade da situação, ela deveria ser internada em um centro psiquiátrico. Ela vai ter todo o auxílio possível lá. Só precisamos da sua autorização para direcioná-la. — Ela não vai para para lá, vai para casa comigo. Iremos cuidar disso, lá. O que precisamos fazer. — Então tudo bem, receitarei alguns remédios para ela tomar. Estigma: Os efeitos do Body Shaming


Após a visita do psiquiatra. Natalia recebeu a visita de um psicólogo para conversar sobre os seus sentimentos, e de uma nutricionista, para estabelecer metas e objetivos que não fossem violentos para a sua saúde, faria uma reeducação alimentar. O processo de recuperação da depressão e anorexia nervosa foi lento. Durante seis meses, visitava a equipe médica formada por um psiquiatra, uma psicóloga e uma nutricionista. Enquanto frequentava uma vez a sessão com o psiquiatra, precisava ir duas vezes por semana a psicóloga. As duas não conversavam na maioria das vezes. A terapeuta pedia que ela desenhasse a sua família e seus sentimentos. Nessas sessões, sua mãe não lhe acompanhava, sentia mais liberdade para falar sobre suas questões e reflexões. Pela primeira vez, pode contar sobre seu relacionamento com o Jackson que estava acabado, sentia-se pressionada por ele, fazia coisas que não lhe agradava, expôs suas insatisfações. As suas questões em relação ao corpo eram poucos debatidas. A psicóloga nunca entrava a fundo sobre os acontecimentos mais mórbidos. Natalia não achava ruim, era até melhor não lembrar. Agradecia também por sua mãe não ter autorizado ela ser levada ao centro psiquiátrico, pois ela estava apenas doente, não louca. Terminou com o noivado com o namorado, mesmo com a insistência dele, não reatou. Começou a conhecer o mundo e aproveitar os alguns pequenos prazeres da vida, como uma adolescente qualquer foi a sua primeira balada, depois ao um bar com seus amigos. A igreja foi deixada de lado, sabia que Deus precisava estar no seu coração e não em uma instituição. E sabia que ele estaria com ela em todos os momentos, já que ficou ao seu lado durante esses dois anos mais difíceis em sua vida. O terceiro ano do ensino médio foi um período de transição, literalmente finais de ciclos. Mas estava aliviada por ter tomado esse rumo. 85


Aos poucos, começava a sentir-se forte, entender que os complexos com seu corpo, não eram necessários, mas que foram importantes para seu crescimento. Sabia que tinha vencido os piores momentos da sua vida e que a depressão estaria sempre ali. Esperando a primeira oportunidade para ter uma recaída. Mas sabia que precisaria ser forte, para lidar com os problemas que aparecerão. Como foi durante nestes dois anos. Aplicaria ao máximo resiliência.

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Nunca devo me desesperar pela minha situação, por pior que ela seja. Afinal, ainda tenho uma vida inteira pela frente.

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Osvaldo, distraido Por Leticia Damasceno Ele inseriu a matriz de corte sobre a base do aparelho, em seguida colocou o papel a ser recortado e o acionou. Era moleza, em três semanas trabalhando no setor ele já realizava o procedimento de modo mecânico. Dia após dia manuseava a máquina de corte e vinco, fazia embalagens e preparava tudo o que era solicitado na solitária sala de estoque do Centro Universitário Adventista de São Paulo, o UNASP. Bota o papel, retira a mão e o equipamento faz o vinco. Várias e várias vezes. É uma máquina interessante, em uma hora é capaz de produzir mais de 700 materiais cortando especificamente a área delimitada. Bota o papel, retira a mão e o equipamento faz o vinco. Um trabalho simples feito com perfeição em uma área de 130x200 centímetros. Mas não naquela sexta-feira. — AAAAAH! Havia um erro na área de corte, não seria nada demais, ele só queria consertar, mas aquela fração de tempo foi suficiente para produzir um erro muito maior. — Respira fundo, Osvaldo. A cagada já tá feita. Respira fundo… — ele pensou logo após sentir a fisgada. Não há muito o que pensar quando 800 quilos estão pressionando sua mão direita, basicamente seu único instinto é tirar aquilo o mais rápido 89


possível e, de preferência, com discrição. A sala ficava próxima ao setor de acabamento, de algum modo conseguiu chamar o empregado que estava mais perto e foi prontamente encaminhado à Santa Casa de Santo Amaro, há 10km de onde trabalhava. Não teve triagem, Osvaldo foi levado para a sala de cirurgia onde passaram duas horas costurando a mão, esse foi somente um dos três procedimentos que precisou realizar naquele mês, incluindo a implantação de pinos nos ossos da palma da mão e a amputação do dedo indicador que havia gangrenado após o incidente. A noção sobre o que ocorreu naquela manhã de novembro de 1989 demorou para cair, mudando totalmente os planos e rumo do jovem de 18 anos. Estava pleno, cheio de energia, trabalhando para pagar os estudos, com diversas medalhas por participação nos campeonatos da escola e agora lutava para não ser consumido pela tristeza. O corpo ficou raquítico, foram dez quilos perdidos no mês em que ficou internado e quatro anos para retomar a proporção atlética. Aos poucos foi tomado por um súbito medo... Amava esportes e vivia se aventurando jogando basquete, handebol, futebol. Estava sempre nas competições e interclasses, mas agora olhava para si e tinha medo. E se ficasse ferido novamente? Como iria lidar com mais um acidente? Os pensamentos depressivos permaneciam sempre à espreita, rondando e o atormentando. Ora o fazendo crer que perderia a namorada, ora dando margens a entender que seria demitido, como se a vida fosse ter um fim neste ponto. Parecia mais complicado para dona Maria, ela sempre foi superprotetora com o único filho e agora se sentia culpada pela situação, mal olhava para a… Mão. Falar sobre, então? Menos ainda! A mulher mal falava com o filho, ficava atenta como sempre, mas o olhar distante, como se já não fosse o mesmo, ela também tinha medo, pelo futuro do rapaz, do destino que semeavam. E se a vida dele parasse ali? Estigma: Os efeitos do Body Shaming


Nunca devo surtar com minha situação

Se revira. Já é quase meio dia de um domingo, foi dormir após às 3h como em todos os dias, todo esse tempo acordado e em jejum. Se come tem refluxo e com ele aumenta a apneia reduzindo drasticamente o descanso. Essa rotina já era tão comum que sequer considerava seus danos, só a mantinha cotidianamente. Senta na cama, mantém os olhos fechados e reza agradecendo por mais esse dia e por estar bem. Sai sonolento do quarto em direção ao banheiro, pega a escova de dentes com a mão direita. É uma mão rechonchuda e semi aberta, dependendo de como olha repara que é um tanto curvada como se sempre estivesse chamando a alguém ou buscando a algo. Mesmo após terem passados longos 29 anos do acidente, ele não foi capaz de recuperar totalmente os movimentos ou de desenvolver as ações como antes, se alegra, ao menos as cicatrizes externas e internas não são mais tão profundas e certamente aproveitou tudo o que passou. Passa a pasta na escova. Por muito tempo atitudes diárias eram motivo de vergonha, ele derrubava pratos, quebrava copos, sujava as coisas enquanto tentava manter as atividades ignorando a deficiência. Bochecha e cospe a água. Encara os dentes no espelho. Tudo bem que parte da dificuldade também pode estar associada ao estado naturalmente desastrado dele. A ansiedade pesa muito e nem sempre, na verdade quase nunca, está controlada. O desperdício de comida que é foda, dentre potes e panelas, já deixou cair uma bandeja com o lanche do Mcdonald’s, estava só e deste modo ajeitou tudo e comprou outro lanche. Qual a outra alternativa senão levar as coisas de boa?! Mas se tem algo que incomoda são os olhares. Às vezes, são coisas bobas como crianças encarando, se fosse contabilizar todas as vezes em que uma criança o olhou com espanto não pararia 91


mais, até porque já faz tanto tempo e ele não tem tempo a perder com isso. Senta na privada com o tablet em mãos e abre o Candy Crush. Óbvio, alguns casos marcam, os detalhes são esquecidos, mas as cenas principais sempre fixam. O aparelho vibra indicando que ele passou de fase no jogo, estava há um mês preso nela. Um garotinho tomou um susto uma vez ao ver sua mão, isso foi poucos anos após o acidente. O menino era afilhado de uma vizinha, estavam na casa dela conversando, e o pequeno ao reparar na mão tomou ares de espanto e se afastou. A criança não tem culpa, é claro, mas essas situações contribuíram por muito tempo para que continuasse se escondendo. Pelo receio de apresentar a mão deficiente passou a cumprimentar as pessoas com a mão esquerda. O fazia com rapidez e rispidez, sem tempo para o outro pensar, diversas vezes ouviu comentários de amigos sobre esse hábito. “Você parece ter vergonha”, eles diziam. E realmente tinha, cada um reage de um modo ao reparar nas marcas. Aos poucos foi se acostumando aos olhares de soslaio (ou escancarados) seguidos pela expressão de medo, dó ou angústia, mas é óbvio que ficava envergonhado. Cada pessoa nova o observando é mais um momento revivendo o passado. E ele não está limitado a isso. – Osvaldo? – Maria bate à porta – Osvaldo já está saindo? Precisa levar as roupas na costureira. – Eu já vou mãe! – responde encarando a porta fechada. Desliga a tela do tablet e o guarda para se limpar. Se encara enquanto lava as mãos. Já lhe disseram, quando mais novo, que tinha um olhar triste, não notava isso, mas também não se entregava a essas sensações. Não gosta de lamúrias e se acostumou a não fazê-las, de nada adiantaria. Não há sentido em surtar com sua condição, por mais chata que seja, não há porquê. Sem mencionar que ir ao psicólogo semanalmente é muito caro, então não compensa dar bola para a depressão. Estigma: Os efeitos do Body Shaming


Sente a barriga roncar. Com tanta coisa para se preocupar, não pode deixar a melancolia o impedir de viver. Algumas vezes ficava abatido? Sim, mas comida sempre ajuda nessas horas! Ao menos vai estar abatido, mas com o bucho cheio.

Às vezes a gente dá um Pelé na vida

Por que as mulheres usam calças e vestidos tão compridos se elas vão arrastar no chão? Pensa enquanto separa as roupas entregues pela costureira. Elas não vão fazer a barra e esse é definitivamente o pior. Por mais que o modelo seja bonito e dê um delineado bom no corpo, muitas vezes as peças ficam gastas e sujas, ou seja, no final elas só estão estragando as roupas. Ele definitivamente não é uma referência no assunto, é claro, mesmo trabalhando há anos com a mãe na venda de roupas não possui tanta expertise com com modelagem e visagismo. E também não pode ser considerado um parâmetro da moda masculina, tem um estilo básico. Minimalista diria. Está sempre com uma blusa branca de algodão sob a camisa pólo ou sob a camiseta. Além do mais, a rotina não colabora com a produção dos “looks”. Todos os dias precisa ir da periferia ao centro para comprar tecido, conversar com as costureiras, levar e retirar os materiais que serão vendidos, entregar os produtos aos revendedores. Tendo sempre o metrô, ônibus e trem como meios de transporte oficiais. É cansativo e gasta muito o corpo e as roupas que usa. A correria tem sido tanta que prefere usar um jaleco azul, de um curso de eletricista feito no Senai, sobre a blusa de algodão. Ao menos facilita um pouco a vida, é mais prático, mas também não significa que gosta de se vestir assim. É normal querer estar arrumado e bem vestido, muda a impressão dos outros sobre nós e nossa autoimagem. E essa não é a imagem ele que havia criado para si. Mas o quê poderia fazer? Não tem o corpo “perfeito”. Tem tetinhas, está acima do peso e por mais que não goste de ser 93


gordo, simplesmente não consegue parar de comer. Ok ok, não é certo colocar a culpa nisso, mas é a desculpa que encontrou para justificar a compulsão motivada pela ansiedade. Até porque, enquanto não tem Fluoxetina agindo no corpo precisa de algo em seu lugar e essa é a saída mais fácil. Bota as roupas no carro armazém e sai empurrando pela rua. Sempre foi assim, de uns tempos para cá tem ficado pior, cada vez mais ansioso e cada vez descontando mais na alimentação nada sadia. Quer dizer, em partes. Uma das vantagens em ser adventista é não comer carne de porco, então ponto positivo para os dogmas religiosos! Tentou fazer academia várias vezes, mas se sente limitado. Não consegue fazer os processos do modo adequado, até faz o supino, peck deck, o fly e o crucifixo, mas tudo com muita dificuldade e ficando um tanto “descompensado”. A princípio tinha medo de pegar nos equipamentos de modo errado e afetar a musculatura, quando aprendeu a forma correta de se exercitar não sentia resultados em ambos os braços. Largou mão. Ficou só jogando bola eventualmente e andando de bicicleta. Já não pode dizer que é sedentário. Vê um casal passando na rua... Por que as pessoas ficam juntas? Será que elas não se sentem incomodadas em perder a liberdade? Ou é somente ele que tem medo de sair da zona de conforto e ter que mudar em prol de outros? O sinal abre para os pedestres e ele segue empurrando o carrinho. Ele teve alguns namoros e a deficiência nunca foi um impedimento, por mais que no começo ficasse incomodado e receoso de se apresentar “daquela forma”, não tinha nada mais para fazer e, convenhamos, na hora h o desempenho não era afetado. Gostaria de ter alguém? Talvez sim. Talvez não. Mas gostava acima de tudo de sua liberdade e isso já era o suficiente. O primeiro namoro foi aos 18 anos, justamente quando se acidentou, a companheira dizia que ele tinha as mãos bonitas. Estigma: Os efeitos do Body Shaming


É engraçado, as mulheres falam umas coisas engraçadas na cama... Ela o visitou no hospital após a primeira cirurgia, Osvaldo era muito novo e ela foi a primeira mulher com quem havia se envolvido, jurava que não ficariam juntos após “o ocorrido”, a imaturidade tem essas coisas de pregar umas peças em nós. Foi um período curioso, estava escutando muitas músicas românticas e tinha acabado de ler o livro “Amar pode dar certo”, do Roberto Shinyashiki. Esse primeiro relacionamento, como muitos outros que viriam a seguir, não deu certo porque simplesmente não era para ser. Ou porque não era o momento. Existe alguém a quem ele ama muito, mas ela tem medo de ser magoada novamente, de ser usada por outro homem. Então ele mantém essa relação distante. Entra no metrô. Nunca sabemos como as situações podem afetar as pessoas, ele mesmo passou por momentos que deixariam a muitos depressivos, desistindo da vida. Mas sequer se permitiu chorar, em hipótese alguma, era como se ceder fosse permitir ao corpo padecer e se apossar da dor. E sabe como é, né? Às vezes a gente tem que dar um Pelé na vida. Essa é a parte mais legal de psicologia, ela dá margem para entender mais sobre o comportamento humano, entendendo a si, aos demais e sobre como podemos driblar certas questões. Shinyashiki pode ter contribuído para iniciar uma desilusão amorosa, mas também foi a porta de entrada para o mundo da psiquê. Entra no elevador da estação, o espaço fica mais reduzido devido ao carrinho e o senhor ao lado bufa de raiva. As pessoas são basicamente um sistema complexo de emoções, não há um modo correto ou errado de lidar com elas, mas há alternativas que devem ser consideradas. É como programar, alguns comandos podem ser acionados para facilitar os processos, mas para saber como atingir seu objetivo é preciso estudar o sistema. O único 95


problema é que, assim como a programação, a mente humana está em constante mudança então é preciso sempre se atualizar. Ou, quem sabe, só aprender técnicas de hack mental. Cada tema, cada relato, cada estudo demonstra as mais diversas formas de enfrentamento. E isso dá força, o empodera. Afinal, se outros conseguiram superar as adversidades, ele também pode.

É legal quando realizamos algo produtivo

A pooorrrta. Não. Está. A... Bri-brii-briiindo. Mas que merda. Precisa passar urgente no depósito, esse tempinho frio não contribui com nada, o concreto e a madeira contraem tornando o processo de abrir e fechar a porta horríveis. A mãe já havia reclamado disso e ela é insistente, costuma ficar no pé durante um bom tempo até a resolução dos problemas. E ele precisa aceitar. Vai com calma, coloca a chave novamente. Tenta viraaaar. Tenta vi…Rar. Sem força… Sem pressa. Ele está com pressa não tem isso de sem pressa, vai… Sua… Chav- CRAC! A maçaneta quebrou. Agora precisa efetivamente fazer algo. Mas que bosta. Caminha até a janela empurra o vidro para o alto e se esforça para passar se espremendo na soleira. Tenta ver o estrago por dentro, vai precisar trocar a fechadura também. – Eu te disse que precisava ver isso, agora vai ter que chamar alguém – comenta dona Maria irritada com a situação. – Eu arrumo isso mãe... Pode deixar – Osvaldo contesta de modo igualmente irritadiço. É difícil o convívio com a mãe, o gênio dos dois vive batendo gerando conflitos constantes, tanto por coisas básicas do dia a dia, quanto por propostas profissionais. Mas nem por isso iria deixar de ficar ao lado dela, mãe só é uma não é? E Maria necessita de companhia. Imagina abandoná-la e ocasionar uma piora na síndrome de pânico dela? Jamais se perdoaria. Estigma: Os efeitos do Body Shaming


Verifica a carteira, olha novamente o que precisa comprar e pega a bicicleta. Todos esses anos foram só os dois, o pai havia ido embora quando ele tinha 9 anos. Viu a mãe tendo que trabalhar em dobro para conseguir manter uma vida estável, às vezes as coisas estavam apertadas? Sim, mas nem por isso ele deixava de frequentar o colégio adventista, a educação religiosa sempre foi prioridade para a mulher. Maria é excessivamente ansiosa com tudo. Sempre foi assim e não consegue enxergar um movimento de mudança sem temor. Ela só quer o melhor para o filho, mas o mundo é tão violento, não consegue estar lá por ele sempre. Sinceramente, Osvaldo não se recorda de já ter falado com ela sobre o esmagamento, como se ela tivesse confrontado essa situação sozinha, a seu modo, se culpabilizando por não conseguir o acolher de maneira adequada. Era um assunto evitado, mesmo ela se mantendo sempre ao lado do filho. Ela o ama e demonstra isso a seu modo. Entra no depósito, pega uma ferramenta de aplainar, a maçaneta nova e mais alguns materiais que estavam faltando para os cuidados da casa. Ele gosta de fazer trabalhos desse tipo, quando criança tinha o costume de brincar com as ferramentas do pai e aos poucos foi aprendendo como utilizá-las. Sobe na bicicleta e retorna para casa. Às vezes parece que as pessoas não percebem que ele consegue fazer certos procedimentos simples, como se houvesse um receio, ou talvez fosse só a impressão causada pela mãe, devido a preocupação que ela possui. Mas ele também usa essa situação como desculpa para enrolar. Entra em casa e separa os materiais. O mais difícil após o esmagamento foi a readequação, ficou de licença médica por 11 meses passando por terapia ocupacional e fisioterapia no Centro de Reabilitação do INSS. No começo fez um tratamento com termoterapia e hidroterapia, o objetivo era auxiliar na cicatrização dos pontos e reduzir as dores. Quais seriam os procedimentos atuais para o esmagamento? A medicina avançou tanto, talvez 97


ficasse menos tempo afastado. Na fisioterapia fazia exercícios para recuperar o movimento da mão direita, o mais curioso deles envolvia ganchos colocados na dobra dos dedos, neles estava amarrada uma linha com pesinhos na ponta, precisava fazer o movimento de vai e vém para fortalecer a musculatura. A princípio doía, mas com o tempo foi vendo como isso o auxiliava. Osvaldo passou meses na fisioterapia e depois foi encaminhado para a terapia ocupacional. Ia duas vezes por semana tendo atendimento com psicólogos e terapeutas. As atividades eram realizadas individualmente, mas os encontros eram feitos em grupo e os exercícios tinham como base os resultados da fisio. Era legal, aprendeu a escrever com a mão esquerda e trabalhou a coordenação motora fazendo artesanato, fazia desenhos e escrevia com um pirógrafo, tinha um trabalho que envolvia uma madeira com pregos no qual precisava ficar passando uma linha. E também tinha lanche, isso era maneiro. Passou só seis meses escrevendo com a mão esquerda até encontrar uma forma específica de escrever com a direita. Tentou se adaptar para tudo, no começo era complicado, aos poucos as coisas foram se encaixando. Com o tempo já havia voltado a fazer a maioria das coisas com a mão direita, limitando a esquerda para casos extremos. Não tem muitas recordações desse período. Com o tempo certas coisas vão se apagando. Também não lembra o que houve com os trabalhos, se ele ou a mãe jogaram fora. Existem várias formas de reagir a traumas, o esquecimento é uma delas e ele a exercita bem. Arranca a fechadura e começa a acertar a lateral da porta com uma lima, é absurdo como temos o costume de pagar para outras pessoas realizarem serviços simples, mas também é difícil deixar de lado a preguiça e encaixar esses afazeres na rotina. Pode parecer bobo, mas esses trabalhos simples dão uma sensação de utilidade, Estigma: Os efeitos do Body Shaming


de conquista e é difícil sentir isso. Quando voltou à empresa, após o período afastado, foi encaminhado para a tipografia, não tinham local para colocá-lo e essa era a área disponível. Para esse serviço é preciso utilizar as duas mãos, tanto para organizar os tipos com perfeição na matriz, quanto para retirar o papel após a máquina imprimir o texto na folha e geralmente a mão direita é a mais usada. A velocidade da máquina tipográfica é menor em relação a de corte e vinco, mas o procedimento era o mesmo. Bota o papel, imprime e retira a folha já inserindo a outra. As atividades da terapia vieram a calhar, ele fazia o procedimento de modo invertido usando a mão esquerda como a principal. Ninguém trabalhava assim. No começo ele retirava a folha, deixava a máquina bater uma vez e em seguida colocava uma nova folha, com o tempo foi se aperfeiçoando e produzindo “como uma pessoa normal”. No fundo sabia que trabalhava bem, foram 13 anos na empresa atuando na gráfica e no depois no setor de tecnologia da informação. Insere a nova fechadura e nova maçaneta e coloca os parafusos novos. Testa delicadamente o processo de abrir e fechar a porta. Está tudo certo. Sorri orgulhoso vendo o trabalho finalizado.

Atento

Já são 19h e está exausto. Senta em frente ao computador, abre o web Whatsapp em uma aba, o site para ver séries em outra, precisava pesquisar sobre algo… Deixa para lá, depois lembra. Abre o terceiro episódio de Scandal, Olivia Pope aparece na tela, é uma pena que essa seja a última temporada. O Whats toca, recebeu uma mensagem de um de seus amigos. Altera a tela. É um quadrinho, um homem olha para o celular e diz “Oxe! O celular tá com pouca memória de novo”, e o aparelho responde enquanto bate contra a própria tela “Calma aí, mano… 99


Tô quase lembrando aqui”. Ele ri, essa foi realmente boa, seleciona a imagem e encaminha para o grupo. Retorna para a série. Precisava fazer alguma coisa, mas não sabe ao certo o quê. Marcus e Fitz estão brigando na tela. Não era para ter esquecido, provavelmente era algo sério. Marcus está ao telefone com Mellie falando sobre Fitz. A tela do whats apita novamente. Precisava lembrar, era algo para o dia seguinte… Abre a tela da conversa, as letras embaralham um pouco. Velho é osso, precisa voltar a usar óculos. Lê a mensagem, era só “kkkk muito bom”, responde perguntando se o amigo está bem. Resolve abrir o e-mail. O casal segue discutindo na ligação. Vasculha a caixa de entrada e vê a mensagem do Senai sobre o curso de modelista de roupa, conseguiu uma bolsa para fazer o curso de dois meses. Eureka! Era isso que estava tentando lembrar, precisa passar no prédio em Francisco Matarazzo para realizar a matrícula. Pausa a série, Papa Pope havia acabado de aparecer. Esse é um dos vários cursos que tem feito sobre vestuário, como atua com a mãe na área de produção de roupas quer se especializar ao máximo, chegou até a estudar sobre a mecânica da máquina de costura. Será que é muita ambição querer ter uma marca de roupas femininas? Provavelmente não. Ainda está um pouco longe de atingir o objetivo, mas, enquanto isso, vai buscando o máximo de informação sobre o setor. Por enquanto segue o básico, tenta produzir mais e com mais qualidade, aquele clássico “fazer bem para vender sempre sabe? A verdade é que todo mundo precisa estudar mais sobre o nicho de atuação. A sociedade está mudando e cobrando mais coisas o tempo todo, é preciso se atualizar com frequência. Não fosse a ansiedade provavelmente teria estudado mais, as crises costumam ser mais constantes no ambiente estudantil e em trabalhos “formais”. A educação é algo que valoriza muito, todo ser cresce na Estigma: Os efeitos do Body Shaming


escola. É complicado saber que algumas pessoas não conseguiram seguir os estudos, independente do motivo. Ele mesmo, até tentou fazer faculdade para saber mais sobre programação enquanto trabalhava no setor de TI, mas a pressão era muita, não conseguia se concentrar. Abre o Candy Crush Soda Saga após encaminhar um áudio para a lista de amigos no Whatsapp. Não deu muito certo, não tinha pique, não se concentrava, às vezes ficava mal por nada. O lance mesmo é estudar sozinho. Retoma a série, Papa Pope está no chão segurando uma arma enquanto fala com Fitz. Abre outra aba e começa a pesquisar produtos na zona cerealista. Volta para o jogo, por que está preso há tanto tempo nessa fase?! O que precisava ver sobre o curso mesmo? Ah é, os documentos! Se tem uma coisa que não gosta é de se sentir pressionado, isso o afetava nos estudos, no trabalho e nos relacionamentos. Quando saiu da UNASP passou 8 anos e meio trabalhando em uma corretora. Ganhava bem, muito bem na verdade, mas era um serviço complicado. Não dá para engolir alguns sapos. Vivia brigando porque não aceitava caso falassem mais alto ou ficassem mandando nele. Meio instável talvez? O box de conversas do Facebook pisca, a aba do whats toca uma, duas, três, quatro, cinco, muitas vezes. Na série Fitz reflete sobre a presença de Olivia na vida das demais pessoas. O cacau em pó está em promoção, o mix de sementes e o ora-pro-nobis também. Responde as mensagens aos poucos. Trabalhou durante um mês em um hospital, pressão é elogio para o ritmo do lugar. A ansiedade ia nas alturas, como se sempre estivesse indo para uma entrevista de emprego. Trabalhar por conta era melhor mesmo, conseguia lidar melhor com os ciclos ansiosos. A deficiência não era uma questão, nos primeiros anos após o acidente associava tudo a isso, mas com o tempo viu que não havia porquê. Os colegas de trabalho sempre o apoiaram, quando 101


pensava que viriam com pedras nas mãos era recebido com mensagens de apoio, ouvia diversos depoimentos sobre conhecidos com outras deficiências e aos poucos foi se informando sobre medidas cabíveis. Pega um salgado para comer. Responde mais mensagens e encaminha outras para os conhecidos. Abre o Plants vs Zombies em outra aba. Altera a tela do Candy Crush. Qual episódio estava mesmo? Não lembra. Conhecer pessoas deficientes também foi bom para lidar com todos os processos. Somente na rua em que mora haviam dois, o Romney e o Maurício, ambos perderam um braço em acidentes de moto, o primeiro até a altura do bíceps e o outro até a altura do antebraço. O acidente do Romney ocorreu um ano antes ao de Osvaldo, o rapaz chegou a visitá-lo no hospital, conversaram por um bom tempo. Foi reconfortante ver alguém que passou pela mesma situação passar uma mensagem de apoio. Precisava comer mais, vasculha a geladeira, a mãe havia feito kibe com legumes, também tinha carne de soja refogada, salada de alface, arroz, feijão. Monta o prato com tudo e pega um copo de Coca. Sente novamente em frente ao computador, estava com 20 mensagens no Whatsapp e cinco no Facebook. Os jogos piscavam indicando que havia ganho um brinde. Já não lembra mais porque estava com a página da Zona Cerealista aberta. Com o Maurício foi uma situação diferente, inversa. O acidente dele ocorreu muitos anos após o esmagamento, desta vez Osvaldo era a pessoa que levava a palavra de conforto. Ao menos tentava. Estava vivo e com sorte, continuaria ao lado da família, dos amigos. Teria limitações, é claro, e muitas, mas a dor seria muito menor para todos. Coloca no vídeo “Conheça seu temperamento” do canal Claramente. Outro pop-up aparece indicando que tem mais mensagens para responder. Maria fala algo ao fundo que não entende plenamente, deve estar falando com a cadela. Lembra que Estigma: Os efeitos do Body Shaming


não bebeu água. A tela pisca novamente. Será que tem algum doce na cozinha… Pausa o vídeo. Nenhum dos três se tornou inválido, assim como a vida de todos continuou tranquilamente. Souberam enfrentar as adversidades que apareceram, cada um à sua maneira. Lidar com a vergonha fica muito mais fácil quando consegue encontrar alguém para se espelhar, ao ver outras pessoas tão próximas e ao mesmo tempo tão distantes que passaram por questões semelhantes e estão bem. Está tudo bem. Precisa de doce. Está agitado. Por que está agitado? Quando começa o curso mesmo? Por que começou a pensar sobre essas coisas? Não tem doce, mas ainda tem Coca. Pega mais refrigerante. Está esquecendo alguma coisa… O quê precisava lembrar? Pensar sobre o passado é incômodo às vezes, parece reviver tudo. Senta na cadeira agitado, dá goladas longas. Já é quase meia noite, está sem sono, agitado, muito agitado. Abre o G1, vê uma matéria sobre um homem que morreu soterrado durante um acidente de trabalho, não se sabe ao certo o que ocasionou a fatalidade, mas provavelmente foram as condições de trabalho. Após sofrer o esmagamento percebeu que grande parte dos ferimentos em trabalho são causados por falha humana, tem casos extraordinários como o do rapaz da notícia, mas a maioria é por descuido, distração. Inclusive o dele. Se tivesse pensado mais um pouco… Agora ao menos está menos distraído, aos poucos aprendeu a focar. Fica rolando o Portal, não se recorda porque o abriu. Recebe uma nova mensagem. Abre outra aba e começa a pesquisar sobre modelagem, abre vários sites de uma vez. Já não faz ideia de quantas abas tem aberta. Vai lendo um pouco em um, no outro, pulando de um em um. Vídeo é melhor, consegue fazer outras coisas e ouvir somente ao áudio. Abre o YouTube e começa a pesquisar. A Coca-Cola acabou, ainda quer doce. De onde veio essa vontade de comer doce? 103


Para. Tira o fone, respira devagar. – Respira fundo Osvaldo, tá tudo bem… Respira fundo – pensa em voz alta. Olha o relógio, já é quase 1h33 da manhã, não entende como o tempo passou tão rápido. Maria já estava dormindo, consegue ouvi-la de longe. Põe as mãos na cabeça e puxa o ar com força, tudo vai acalmar. Retorna a cozinha e pega um copo enchendo-o com água fria. A correria do dia e a ânsia por acontecimentos futuros o desorientam. O peito dói. Sente a respiração pesar. – Vai lá cara, tá tudo bem… – repete para si de olhos fechados. Retorna para o quarto e se joga na cadeira. A tristeza vem aos poucos. Respira. Não tem tempo para isso, precisa deixar ela ir. Olha o relógio na tela do computador, já são quase 2h da manhã. Precisa tentar descansar um pouco. Vai ao banheiro e escova os dentes. Respira. Senta na privada, olha o tablet e começa a responder as mensagens, já adianta os diversos “boa noite” que precisa mandar. Anda agitado até o quarto, fecha as milhares de abas e desliga o computador. Senta na beirada da cama, junta as mãos e começa a orar, agradece a Deus por mais aquele dia e pede para que o guarde durante o sono, a casa, a mãe, não só essa noite mas todos os dias. – Amém! – diz baixinho. Tenta lembrar aos poucos sobre tudo o que deverá fazer ao acordar, sem neura. Afinal, o dia seguinte será longo e não há tempo a perder. A vida, inevitavelmente, sempre segue.

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É necessário sempre acreditar que o sonho é possível Que o céu é o limite e você, truta, é imbatível Que o tempo ruim vai passar, é só uma fase E o sofrimento alimenta mais a sua coragem Que a sua família precisa de você Lado a lado se ganhar pra te apoiar se perder Falo do amor entre homem, filho e mulher A única verdade universal que mantém a fé Olho as crianças que é o futuro e a esperança Que ainda não conhecem, não sentem o que é ódio e ganância Eu vejo o rico que teme perder a fortuna Enquanto o mano desempregado, viciado, se afunda Falo do enfermo, irmão, falo do são, então Falo da rua que pra esse louco mundão Que o caminho da cura pode ser a doença Que o caminho do perdão às vezes é a sentença Desavença, treta e falsa união A ambição é como um véu que cega os irmão Que nem um carro guiado na estrada da vida Sem farol no deserto das trevas perdidas Eu fui orgia, ébrio, louco, mas hoje ando sóbrio Guardo o revólver quando você me fala em ódio Eu vejo o corpo, a mente, a alma, o espírito Ouço o repente e o que diz lá no canto lírico Falo do cérebro e do coração Vejo egoísmo, preconceito de irmão pra irmão A vida não é o problema, é batalha, desafio 105


Cada obstáculo é uma lição, eu anuncio [...] O pensamento é a força criadora O amanha é ilusório Porque ainda não existe O hoje é real É a realidade que você pode interferir As oportunidades de mudança Tá no presente Não espere o futuro mudar sua vida Porque o futuro será a consequência do presente Parasita hoje, um coitado amanhã Corrida hoje, vitória amanhã Nunca esqueça disso, irmão

Racionais Mc’s - A vida é desafio

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Conheรงam nossos personagens


gabriel


Maya Ruth


natalia osvaldo

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T Empos dificeis nunca duram, Pessoas fortes sim 111


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