Articulações entre a Psicologia Social Comunitária e a exploração sexual existente no Brasil Thalita Silva de Castro¹ Yramaiane Tomaz da Silva² Waléria Mendes dos Anjos³ RESUMO
O presente artigo teórico dissertativo trata-se de uma articulação da Psicologia Social Comunitária com a realidade de exploração sexual trazida na reportagem especial CasaGrande & Senzala – 80 anos, feita pela jornalista Fabiana Morais e publicada no Jornal do Comércio. Utilizou-se, para isso, textos trabalhados ao longo da disciplina Fundamentos da Psicologia Comunitária, assim como recorreu-se, também, a outras fontes estudadas durante a graduação em Psicologia. Buscou-se à luz de teóricos da Psicologia Social reafirmar as denúncias trazidas pela referida reportagem, assim como, compreender minimamente o papel do psicólogo neste contexto. Palavras-chave: Psicologia Social Comunitária; Exploração sexual; Casa-Grande & Senzala – 80 anos. Joints between the existing Community Social Psychology and sexual exploitation in Brazil ABSTRACT This theoretical article dissertative it is an articulation of Community Social Psychology with the reality of sexual exploitation brought in special report Casa-Grande & Slaves - 80, taken by journalist Fabian Morais and published in the Journal of Commerce. We used to do this, texts worked out over the course Fundamentals of Community Psychology, and also we used the other studied during the undergraduate psychology sources. Sought in the light of theoretical social psychology to reaffirm the allegations brought by that story, as well as minimally understand the role of the psychologist in this context. Keywords: Community Social Psychology; Sexual exploitation; Casa-Grande & Slaves - 80.
1.0 INTRODUÇÃO Falar hoje de Psicologia Comunitária no Brasil, sem dúvidas é muito diferente do que falar a décadas atrás. Na Psicologia, regulamentada em 1962, existiu um predomínio de abordagens individualistas, descontextualizadas e apoiadas em modelos abstratos de seres humanos. Tais modelos eram tomados como medidas para a realização e avaliação das ações o que engendrou processos de normatização e de controle das pessoas e contribuiu para a naturalização das expressões de violência e repressão. Assim, este cenário favorecia o uso _____________________________ ¹ Graduanda em Psicologia Universidade Federal do Vale do São Francisco. E-mail: thalita_scastro@hotmail.com. ² Graduanda em Psicologia Universidade Federal do Vale do São Francisco. E-mail: yramaianetomaz@hotmail.com. ³ Graduanda em Psicologia Universidade Federal do Vale do São Francisco. E-mail: waleriamcpsic@gmail.com.
da psicologia para a articulação de espaços de exclusão social e de adaptação dos "desviantes", transformando práticas em instrumentos de controle ideológico. (Scaparo & Guareschi, 2007, p.100)
A prática psicológica era definida pela clínica individual, pela avaliação psicológica e pelo acompanhamento de dificuldades escolares. Nesse período o exercício da psicologia se ajustava às necessidades econômicas e politicas do governo militar vigente, portanto era voltado para uma população financeiramente abastada e desconsiderava o sujeito constituído sócio-historicamente. Com o cotidiano de ditaduras e repressões alguns intelectuais passaram a repensar sua prática e questionar-se quanto à responsabilidade social da Psicologia. Referindo esse período, Lane (1996, p. 68) afirmou: "Diante desse quadro o nosso cotidiano não nos permitia ficar em torres de marfim pesquisando neutramente". Emergiram, então, iniciativas de aproximação entre psicologia e comunidades de classes populares, numa tentativa de deselitizar as práticas psicológicas e marcar sua relevância social (Scarparo, 2005). (Scaparo & Guareschi, 2007, p.104)
Ainda em meados da década de 60 o psicólogo começa a inserir-se na comunidade na busca de fazer com que a psicologia seja uma área mais próxima e comprometida com a vida dos setores menos privilegiados. É nesse contexto que usa-se o termo psicologia na comunidade pela primeira vez. Começa, então, uma modificação na prática psicológica onde o profissional começa a inserir-se nos setores menos privilegiados da população e trabalha de forma voluntária, convicto de seu papel político e social. Já na década de 70 o clima de repressão política e social que ainda se vivia contribuiu para aglutinar profissionais que acreditavam ser possível colaborar na construção de uma sociedade mais justa e digna e se enfileiravam junto aos setores desprivilegiados, desenvolvendo trabalhos práticos e teóricos e, também, participando dos movimentos populares. Começou a migração dos profissionais dos consultórios, escolas e empresas à novos espaços, desenvolvendo novas práticas em bairros populares, favelas e associações de bairro. A denominação psicologia comunitária passa a ser utilizado por vários profissionais apenas nos anos 80, quando evidenciou-se uma preocupação sobre os eu caráter de clandestinidade em relação aos trabalhos desenvolvidos em comunidade visto que estes passaram a ser mais discutidos e divulgados. O termo psicologia da comunidade marca a prática do psicólogo nas instituições de saúde nos anos 90. Podemos perceber, então, que os espaços de prática da psicologia social
modificaram-se com o passar dos anos, ampliando o espaço de trabalho deste profissional e também o reconhecimento do psicólogo junto aos setores sociais. A principal fonte de definição da área da psicologia comunitária, nos anos 60 e 70, vinculava-se a práticas comprometidas com a perspectiva de libertação sócio-política da população. Já no curso da década de 80 e inicio dos anos 90, esta perspectiva se modifica, a partir de transformações no próprio sistema de saúde pública no país. Estas transformações se tornam mais evidentes a partir da própria mudança de denominação: a psicologia na comunidade passa à psicologia da comunidade, tomando como unidade de análise o grupo comunitário, e a psicologia comunitária, que toma como objeto de análise o sujeito construído sócio-historicamente. (Campos, 2007, p. 13-14)
Na atualidade, inclusive a prática clínica, antes individualista, considera o sujeito como parte de um contexto social. Nessa nova concepção de clínica psicológica, entende-se que o ato clínico deve ser contextualizado e refletido, onde quer que este se realize ou onde quer que a clientela esteja. É preciso evitar abstrair o ser humano do contexto em que ele vive. (Dutra, 2004, p. 383)
2.0 DESENVOLVIMENTO No texto Casa-Grande & Senzala – 80 anos a jornalista Fabiana Morais nos mostra como a realidade de exploração sexual contra mulheres negras ainda é um fato presente no Brasil. Ao relatar a história de violência sofrida pelas adolescentes Carol, Stephanie, Bianca e Patrícia, todas moradoras da favela de Mangabeira na Zona Norte do Recife-PE, a repórter nos faz perceber que não há muitas diferenças entre as agressões sofridas por mulheres há séculos atrás daquelas sofridas hoje. A jornalista mostrou, a partir da questão dos 80 anos de Casa Grande e Senzala, o horror do abuso sexual de jovens negras e pobres no Recife, reproduzindo até hoje a cultura do domínio sexual do homem branco sobre as negras. Os casos mais chocantes, dentre os diversos denunciados, foram os de estupros cometidos por policiais militares, que ao invés de proteger essas meninas, usam covardemente da força e da autoridade para agravar ainda mais a situação delas. Oitenta anos depois, o livro não só não perdeu sua relevância nos estudos da historia do Brasil, como impressiona por relatar traços ainda tão presentes na sociedade brasileira. O patrimonialismo, a relação patrão/empregado, o planejamento urbano (ou a falta dele), a banalização da violência são temas que, certamente, Freyre não esperaria se deparar, tanto tempo depois. Em suas palavras: “Casa-Grande e Senzala foi a grande resposta a seguinte indagação que eu fazia a mim próprio: o que e ser brasileiro? E a minha principal fonte de informação fui eu próprio, o que eu era como brasileiro, como eu respondia a certos estímulos”. (Resende, 2013, p. 44)
No Brasil a maioria dos estudos em comunidade é feito em comunidades carentes e desfavorecidas, especialmente favelas. [...] a maioria dos trabalhos publicados, principalmente nas áreas de sociologia e serviço social, referem-se efetivamente a estudos em comunidades carentes. Podemos supor, sem grandes riscos de erro, que a ênfase e a prioridade dada a esse trabalho se deve às graves questões sociais brasileiras, ao imenso fosso que separa os grupamentos sociais em função das desigualdades de renda e de condições de vida, ao descaso dos setores públicos para com essas comunidades. (Nasciutti, 2007, p. 115)
Esse é o foco principal da reportagem aqui citada. São adolescentes marcadas pela imensa desigualdade social que existe no Brasil e vítimas de abuso sexual desde a infância. A psicologia comunitária tem muito a contribuir com esse público visto que tem por principal objetivo o estudo dos problemas sociais na comunidade. A psicologia (social) comunitária utiliza-se do enquadre teórico da psicologia social, privilegiando o trabalho com os grupos, colaborando para a formação da consciência crítica e para a construção de uma identidade social e individual orientadas por preceitos eticamente humanos. (Freitas, 2007, p. 73)
Como já dito anteriormente, esta abordagem da psicologia tem uma visão de homem constituído sócio historicamente. Em um de seus artigos, Freitas (1998) analisa o processo de inserção do psicólogo na comunidade. Expondo as possibilidades existentes, nas últimas décadas no Brasil, discutindo as preocupações político-sociais e os tipos de anseios que têm orientado as práticas psicológicas em comunidade. Segundo a autora, no Brasil, também nas últimas décadas, o profissional de psicologia tem sido chamado a ocupar novos espaços e a desenvolver trabalhos e/ou atividades que até então eram pouco frequentes. Observam-se diferentes aspectos instrumentais e metodológicos de ação e intervenção. No entanto, para ela, esses aspectos vão depender dos valores e concepções adotados pelos profissionais para orientar a sua prática, e da relação que estabelecem com o seu objeto de estudo, de investigação e/ou de trabalho. Enfatiza que o aspecto crucial na criação ou determinação das possibilidades sobre o como estudar, pesquisar e/ou intervir, assim como na delimitação e seleção das estratégias de intervenção que serão utilizadas, vão depender da visão de homem e de mundo assumidas pelos profissionais. Além disso, salienta que “tanto o profissional como a comunidade, podem ter ‘modos de ação’ diferentes, orientados por visões de mundo nem sempre coincidentes e conciliáveis” (FREITAS, 1998, p.176). Assim, como destaca Freitas (1998), a questão da inserção do profissional de psicologia na comunidade pressupõe uma relação que se estabelece entre dois polos:
De um lado, há o profissional de psicologia, com sua formação e os conhecimentos adquiridos, com os instrumentais que aprendeu e adotou como recursos para os seus trabalhos, e com a sua visão sobre o mundo e o homem. De outro, encontra-se a comunidade, os setores da população, com sua dinâmica e características próprias, inserida em um contexto sociopolítico e geográfico, e vivendo em um tempo histórico determinado (p.176).
Podemos observar que as personagens do texto Casa-Grande & Senzala – 80 anos, já nasceram em um ambiente rodeado de violência e miséria. Carol, por exemplo, quase não conheceu o pai e viu a mãe ser assassinada a facadas pelo padastro (que foi morto dias depois), ela tem ainda mais seis irmãos e um deles encontra-se preso. Stephanie, das três, é a que passou mais tempo na escola, sua mãe é empregada doméstica e seu pai aposentado, apesar de ter vários parentes presos, é a que mais tem vontade de ascender socialmente. Bianca e Patrícia, irmãs, tem dois irmãos e o pai preso, este ultimo, acusado de molestar uma menina de quatro anos e ainda é suspeito de abusar das próprias filhas. A mãe, Silvana 43 anos, sobrevive com uns trocados que recebe da venda de algodão-doce. O individuo sujeito da história é constituído de suas relações sociais e é, ao mesmo tempo, passivo e ativo (determinado e determinante). Ser mais ou menos atuante como sujeito da história depende do grau de autonomia e de iniciativa que ele alcança. Assim ele é história na medida em que se insere e se define no conjunto de suas relações sociais, desempenhando atividades transformadoras destas relações. (Lane, 2006, p. 40)
Lane (2006) em seu texto Consciência/alienação: a ideologia no nível individual vem afirmar que todo sujeito é determinado e determinante de sua própria história. Segundo a autora é através da linguagem que o homem se insere historicamente em um grupo social e desenvolve suas relações sociais, assim como sua própria individualidade. Carol, Bianca, Patrícia e Stephanie nasceram em um ambiente social que as levou à atual situação em que vivem. Drogas, violência, fome, miséria, exploração sexual, criminalidade e lixo foram elementos que sempre fizeram parte do contexto em que vivem, e por conta disso elas foram conduzidas à mesma lógica de exploração em que vivem/viviam seus pais, talvez avós, vizinhos, tios e amigos. Contudo Lane (2006) vai nos relatar que [...] a ideologia é articulada pelas instituições que respondem pelas formas jurídicas, politicas, religiosas, artísticas e filosóficas; no plano individual, elas se reproduzem em função da história de vida e da inserção especifica de cada individuo. A análise ideológica é fundamental para o conhecimento psicossocial pelo fato de ela determinar e ser determinada pelos comportamentos sociais do individuo e pela rede de relações sociais que, por sua vez, constituem o próprio individuo. Neste sentido, podemos entender como é que no plano ideológico, o individuo pode se tornar consciente ao detectar as contradições entre as representações e suas atividades desempenhadas na produção de sua vida material. (Lane, 2006, p. 41)
O que a autora traz é que o individuo para ter consciência precisa deixar de naturalizar os fatos sociais, deixando de ver-se como parte da natureza e passar a se ver como social e histórico, ou seja, ele deixa de ser alienado e começa a ter consciência de que pertence a uma classe social e enquanto individuo, esta consciência se processa transformando tanto as suas ações como a ele mesmo. Pessoas assujeitadas a contextos de violências necessitam de espaço onde encontrem mecanismos essenciais para que as ajude no exercício de cidadania, uma vez que exercendo seu papel de cidadão apresentará autonomia para a sua tomada de consciência, não se alienando e se tornando, assim, sujeito ativo nessa relação. De acordo com Lane (2006) essa tomada de consciência é essencial no plano das relações, a exemplo da consciência de classe, a qual diz respeito a: (...) um processo essencialmente grupal e se manifesta quando os indivíduos consientes de si se percebem sujeitos das mesmas determinações históricas que o tornaram membros de um mesmo grupo, inseridos nas relações de produção caracterizam a sociedade num dado momento. Nessa perspectiva, o pertencer a um grupo cujas ações expressam uma consciência de classe pode ser condição para que um indivíduo desencandeie um processo de conscientização de si e social. (p.42)
O Matagal onde as meninas se prostituem fica próximo a um pontilhão, lá existe uma grande árvore que serve de apoio para a prática de sexo. É um lugar rodeado de lixo e esgoto que foi todo despoluído e usado como símbolo da nova administração pública da cidade. Mas, obviamente o lixo voltou, uma vez que tudo ali está rodeado por ele. O lixo também está presente na casa onde Carol vive, pois esta fica ao lado de uma barreira onde os moradores da região costumam depositar seu lixo. A casa de Carol é um vão único, sem reboco e sem banheiro, a porta foi arrombada pela polícia que levou o namorado dela preso, desde então, a moradia permanece sem porta. Stephanie e Patrícia moram juntas e dividem um aluguel de cem reais, tentam organizar um lar comprando eletrodomésticos usados e fazendo pequenas reformas, recentemente colocaram um vaso sanitário no banheiro (antes havia apenas um balde). Em seu texto Qualidade de vida e habitação Vasconcelos (2007) nos fala do autor Bonnemaison, este liga diretamente territorialidade e etnia, uma vez que, aquela é a relação cultural entre um grupo humano e um território. “Além de seus discursos particulares, toda etnia e também toda cultura se objetiva em um território”. (p. 141)
Como afirma Rapoport (1969 apud Vasconcelos, 2007, p. 148) são as construções “populares” que melhor informam sobre a vida cotidiana de um povo, assim como, da cultura de massa. Pode-se observar que a habitação de Carol reflete a sua cultura, o modo como viveu. Assim como, a moradia de Stephanie reflete a sua vontade de ascender socialmente, uma vez que teve uma formação escolar mais longa e um núcleo familiar mais coeso. a pobreza, isoladamente, não pode ser considerada a única causa da exploração sexual. Mas ela é um importante fator de vulnerabilidade. Acrescente-se, ainda, a dimensão cultural que envolve as questões de gênero, etnia e raça; ambas têm sido amplamente debatidas. Discriminação de gênero é uma causa arraigada da exploração sexual. São relações de gênero favoráveis aos homens, em que o poder na família e na sociedade é basicamente mantido pelo homem; representações estereotipadas da mulher como objeto sexual cujo corpo é tido como mercadoria à disposição do homem. As divisões desiguais das responsabilidades familiares. (Alberto, 2009, p. 47)
As adolescentes aqui tratadas sofrem diferentes formas de dominação. A mais latente delas é a dominação política. “Existe, então, uma dominação política quando as relações entre pessoas e grupos, entre grupos, ou entre as pessoas, grupos, governo e Estado não forem justas, democráticas, desrespeitando os direitos dos diversos sujeitos” (Guareschi, 2007, p. 93). É nítido o descaso dos governantes e autoridades diante das inúmeras Patrícia, Carol, Bianca e Stephanie que existem não só no Recife como em todo o Brasil. As meninas relatam os abusos frequentes dos policiais que na maioria das vezes são violentos e as obrigam a prestar favores sexuais de graça, expulsando os clientes que já haviam pagado pelo programa. Bianca, inclusive, teve que ser salva pelas outras meninas quando aos 10 anos foi agredida por um policial que, desta vez, não satisfeito somente com o sexo oral, queria a penetração. Como a menina negou ele apontou a arma na sua cabeça e a ergueu pelo pescoço enquanto repetia “Eu vou te matar”. A Constituição Federal, o Código Penal e o Estatuto da Criança e do adolescente dispõem sobre a proteção da criança e do adolescente contra qualquer forma de violência e determinam penalidades, não apenas para os que praticam o ato mais, também, para aqueles que se omitem. (Cordeiro, 2006, p. 9)
A reportagem Casa-Grande & Senzala – 80 anos traz, ainda, uma entrevista feita com o secretário de Defesa Social do Estado de Pernambuco, Wilson Damásio, o qual mostrou-se extremamente preconceituoso e inconveniente nos comentários feitos à repórter Fabiana Morais. Ao ser questionado acerca do envolvimento de policiais na exploração sexual de menores, Damásio respondeu: “Elas às vezes até se acham porque estão com policial. O
policial exerce um fascínio no dito sexo frágil... Eu não sei por que é que mulher gosta tanto de farda. Todo policial militar mais antigo tem duas famílias, tem uma amante duas.”. Podemos perceber, portanto, a falta de preparo de autoridades em lidar com esse grupo de pessoas. O machismo institucional impregnado nas palavras do secretário é o mesmo que está presente na atuação da polícia. A exclusão já é legítima e as vítimas são vistas como marginais, drogadas, “ratas” (como são chamadas nas ruas as usuárias de crack), logo não merecem nenhuma assistência, afinal, “elas estão nessa vida porque querem”. Deste modo, é conivente e legitima estupros, espancamentos e abusos cometidos por policiais nas noites do Recife. As palavras do secretário condensam a (não) política do governo de Pernambuco para as mulheres e, em última instância, reforçam a lógica de que a culpa da violência que sofrem é sempre das meninas e mulheres. Do mesmo modo, estas declarações deixam indignados aqueles que acreditam numa sociedade mais justa, sem discriminação ou preconceitos baseados na identidade de gênero das pessoas. A OMS (Organização Mundial da Saúde) define violência como sendo "a imposição de um grau significativo de dor e sofrimento evitáveis". Sabemos que existem diversos tipos de violência, uma delas é a violência estrutural que pode ser compreendida como a violência relativa à própria maneira como uma determinada sociedade se organiza politicamente e socioeconomicamente. Esse tipo de violência pode ser caracterizado pela eminência de um sistema social gerador de exclusão social. O contexto da violência estrutural interfere no fenômeno da exploração sexual, pois enquanto o Estado não tiver condições de cumprir seu papel como promotor dos direitos da população em situação de exclusão social, permitindo o acesso às politicas públicas de qualidade em diversas áreas e o acesso a benefícios sociais, esta população estará sujeita a violações de várias naturezas. (Libório, 2005, p. 414)
3.0 CONCLUSÃO Em uma comunidade é necessário que todos os membros tenham [...] legitimidade para se fazer ouvir e a capacidade argumentativa para participar da construção do consenso democrático, para que uns não se alienem no outro, considerado o dono do saber, lembrando que capacidade argumentativa não é mera aquisição de vocabulário e treino de retórica discursiva para convencer o outro. Ela é a capacidade de defender suas próprias necessidades respeitando a dos outros, isto é, habilidade, de, através da linguagem, lidar com a realidade do desejo próprio e do outro, construindo um nós. Portanto, é exercício de sensação e de reflexão, para que o sujeito sinta-se legitimado, enquanto membro do processo dialógicodemocrático. (Sawaia, 2007, p. 48-49)
Segundo Lane (2006) um individuo que é consciente de si, mas encontra-se em um grupo alienado, consegue perceber claramente as contradições sociais, mas é impedido, a nível grupal, de realizar qualquer ação transformadora. Para os sócio-interacionistas, os seres humanos vivem em um ambiente em constante transformação, pois os artefatos culturais e a linguagem são transformados pela própria atividade dos grupos humanos em interação. [...] Se o conhecimento se constrói na interação, e se esta interação é mediada por símbolos e artefatos produzidos culturalmente, duas consequências se impõem aos psicólogos: conhecer a cultura local e contribuir ara a construção de novos significados através da interação. Por isso é tão importante propiciar oportunidades para o diálogo, para a interação em grupos, pois é precisamente nestas situações que novos significados emergem. (Campos, 2007, p.169-170)
Para Bock (1999b apud Yamamoto, 2007, p. 34) a Psicologia brasileira ao invés de comprometer-se com a maioria da população tem se comprometido com os interesses das elites. É preciso que o psicólogo social comunitário esteja inserido nos setores mais vulneráveis da população e conheça o contexto que irá trabalhar afim de desenvolver estratégias que propiciem a esse grupo a tomada de consciência, para fazer com que, assim, essa comunidade desenvolva ações transformadoras. As adolescentes das quais falamos ao longo dessa discussão estão totalmente inseridas numa lógica de alienação. Contudo como todo sujeito são passivas, e ao mesmo tempo, ativas na construção de suas histórias. A reportagem usada como principal referência neste trabalho tem uma importante função social, retratando os 80 anos da mais conhecida obra de Gilberto Freyre, Fabiana Morais soube retratar com excelência o cotidiano de jovens que, desde a infância, sofrem com a exploração sexual. Todas as crianças e adolescentes invisíveis que vivem nas mesmas condições que Bianca, Patrícia, Carol e Stephanie cresceram de modo análogo às escravas vistas no livro, meninas e mulheres que eram retratadas como “dóceis” ou “fáceis”, praticando sexo de maneira consensual com seus senhores. Todas vítimas de uma cruel invisibilidade social, ali e agora, elas sofrem como o elemento mais frágil em uma relação de poder protagonizada pelo dono da casa-grande (ontem) e por homens diversos, inclusive policiais (hoje).
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