Angústia em Persona - Apontamentos Kierkegaardianos

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Ano I, Nº 03, Juiz de Fora, dezembro/2010 - março/2011

cogitationes@portalsophia.org Periodicidade Quadrimestral Editor Alexandro Souza Conselho Editorial Ricardo Vélez Rodríguez Marco Antonio Barroso Faria Humberto Schubert Coelho Antonio Gasparetto Júnior Fábio Caputo Dalpra Bernardo Goytacazes de Araújo Conselho Consultivo Antonio Paim (Instituto Brasileiro de Filosofia) Leonardo Prota (Instituto de Humanidades) Ernesto Castro Leal (Universidade de Lisboa) Desenvolvimento Portal Sophia http://www.portalsophia.org/ cogitationes.org

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SUMÁRIO

Apresentação

p. 03-04

Artigos MEMÓRIAS DA GRANDE GUERRA (1914-1918) NA “RENASCENÇA PORTUGUESA” Ernesto Castro Leal A TEORIA DA JUSTIÇA EM JOHN RAWLS Antonio Adelgir de Oliveira Almeida

p. 5-21

p. 22-32

DIOGO ANTONIO FEIJÓ E A EMANCIPAÇÃO INTELECTUAL DO BRASIL COLONIAL p. 33-45 Bruno Maciel Pereira ANGÚSTIA EM PERSONA, DE INGMAR BERGMAN: APONTAMENTOS KIERKEGAARDIANOS Alexandro F. Souza

p. 46-55

ROSENBLATT, Helena (ed.). The Cambridge Companion to Constant. New York: Cambridge University Press 2009, 416 p. 56-61 pág. A/C Marco Antonio Barroso KROKER, Arthur & WEINSTEIN, Michael A., “Data Trash: The Theory of the Virtual Class”, New York, St. Martin’s Press, p. 62-66 1994, 165 pág. A/C Ronaldo Pimentel

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APRESENTAÇÃO Saudando o novo ano que se inicia, este terceiro número da Revista

Cogitationes oferece-nos seis contribuições que, passando por temas como história das ideias, cinema e tecnologia, compõem um interessante quadro, bem ao estilo da revista. Em Memórias da Grande Guerra (1914-1918) na Renascença Portuguesa , Ernesto Castro Leal, professor da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, procura revisitar criticamente algumas obras memorialísticas de combatentes portugueses durante a Primeira Guerra Mundial. Destacando alguns nomes da intelectualidade e elite militar, Castro Leal aborda as consequências do conflito para a sociedade portuguesa, salientando a formação de uma “ética do patriotismo” que, segundo ele, se evidenciava em “[...] novos discursos de legitimação éticopolítica e uma nova hierarquia social devedora da coragem física e da integridade moral, que não excluía a intenção de 'morrer pela Pátria' [...]”. Antonio Adelgir de Oliveira Almeida procura debater, em A Teoria da

Justiça em John Raws, o papel filosófico dos escritos do autor norte-americano. Para Oliveira Almeida, a partir do pensamento aristotélico, Raws busca um ideal de justiça que não se restringe à esfera distributiva e que se encaminha à análise de uma justiça coercitiva. Na perspectiva do autor, “[a] relevância e a atualidade desse

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entendimento aristotélico fizeram com que John Raws […] retomasse os argumentos de Aristóteles, procurando mostrar que o Estado é que deve dar condições para que seus cidadãos procurem viver de uma maneira feliz para a realização do bem comum”. Já em Diogo Antonio Feijó e a Emancipação Intelectual do Brasil Colonial, Bruno Maciel Pereira, membro do Núcleo de Estudos Ibéricos e Ibero-Americanos da Universidade Federal de Juiz de Fora, procura analisar, a partir dos caminhos apontados por autores como Miguel Reale, o lugar de Diogo Antonio Feijó na história das ideias no Brasil. Para Maciel Pereira, os escritos de Feijó no estudo de Kant mostram que, mesmo antes da Independência, havia já uma certa liberdade de pensamento do Brasil ante a metrópole. Fechando a seção de artigos encontra-se Angústia em Persona de Ingmar

Bergman: Apontamentos Kierkegaardianos, uma tentativa de se analisar a obra do mestre sueco a partir de O Conceito de Angústia , de Soren Kierkegaard. A artigo procura salientar o tema da angústia a partir das personagens centrais da trama de Bergman: a atriz Elisabeth Vogler e a enfermeira Alma. As resenhas de Marco Antonio Barroso Faria e Ronaldo Pimentel finalizam esta terceira edição da Revista Cogitationes. O primeiro, em resenha sobre a obra

The Cambridge Companion to Constant, procura nos aproximar da recente redescoberta da obra do pensador franco-suíço Benjamin Constant de Rebecque e o segundo, em Data Trash: The Theory of Virtual Class, procura nos trazer algumas reflexões sobre o mundo virtual que nos cerca.

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MEMÓRIAS DA GRANDE GUERRA (1914-1918) NA “RENASCENÇA PORTUGUESA” Ernesto Castro Leal Professor da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa Investigador do Centro de História da Universidade de Lisboa castroleal@fl.ul.pt

“Eu os vejo, […] o tronco envolto na samarra, e as pernas nos safões, hirsutos e felpudos, como os Lusitanos bárbaros de outrora. Descem do seu calvário, patujando, a fundo, com as suas toscas botifarras dentro da neve e da lama, nos trilhos aspérrimos da trincha. Vergam ao peso das armas, da mochila, do capote, do capacete, da máscara, e mais ainda da miséria, da doença, do cansaço.” Jaime CORTESÃO1. “Os factores espirituais e materiais expressamse numa dimensão de tensões e complementaridades […]. Na recorrente visualização dramática, emerge o homem, na sua expressão de classe e actividade, levando Cortesão a privilegiar os aspectos unificadores 1

Jaime CORTESÃO. Memórias da Grande Guerra (1916-1919). Porto: Edição da “Renascença Portuguesa”, 1919, p. 237.

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Ano I, Nº 03, Juiz de Fora, dezembro/2010 - março/2011 que acompanham a sua acção voluntária.” José Esteves PEREIRA2.

Considerações iniciais Neste texto revisitamos criticamente algumas obras memorialísticas de combatentes portugueses durante a Primeira Guerra Mundial, que foi consagrada na Europa como a Grande Guerra, em virtude das suas profundas consequências humanas, económicas, políticas e civilizacionais. A amostra representativa, que escolhemos, incorpora livros que foram publicados na cidade do Porto, pelas edições do Grupo “Renascença Portuguesa”, entre 1916 e 1924, incluindo os artigos publicados no número especial da revista portuense A Águia de Abril/Junho de 1916 (“Portugal e a Guerra”). Entre os autores das narrativas memorialísticas, onde se destaca as

Memórias da Grande Guerra de Jaime Cortesão, ou dos estudos críticos, estão importantes vultos das elites intelectuais e das elites militares, como Jaime Cortesão (capitão miliciano médico na guerra da Flandres), Basílio Teles, José de Macedo, Bento de Carvalho Lobo (Visconde de Vila-Moura), Alfredo Barata da Rocha, Adelino Mendes, general Manuel Gomes da Costa, tenente-coronel Alexandre Malheiro, tenente-coronel médico Eduardo Pimenta, capitão Augusto Casimiro, capitão Carlos Afonso dos Santos (usa o pseudónimo de Carlos Selvagem) e tenente João Pina de Morais. Quanto aos colaboradores do referido número da revista A Águia, figuram, entre outros pensadores portugueses, Teixeira de Pascoaes (pseudónimo de Joaquim Teixeira de Vasconcelos), Teófilo Braga, Leonardo Coimbra, Alberto de Oliveira, Raul Proença, Jaime de Magalhães Lima, João de Barros, Francisco Mayer Garção, Henrique Lopes de Mendonça e Marcelino Mesquita, com prosas; Jaime Cortesão, Augusto Casimiro, António Gomes Leal e Augusto Gil, com poesias. 2

José Esteves PEREIRA. “A Teoria da História de Jaime Cortesão”. In: Percursos de História das Ideias. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2004, p. 383 e 387.

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1. História, Literatura e Guerra O processo social de construção da identidade, quer se trate de uma sociedade, de um grupo ou de um indivíduo, faz uso da íntima relação entre memória (passado), vivência (presente) e projecto (futuro), recorrendo a várias categorias de referentes identitários, entre os quais se encontram os materiais e físicos (território ou clima), os históricos (origens ou acontecimentos marcantes), os psicoculturais (sistema de valores ou hábitos colectivos) e os psicossociais (actividade ou motivação). Há sempre, com óbvia diferença de intensidade, um “jogo dos possíveis”, entretecendo o biológico e o cultural, que mobiliza uma dimensão genealógica e uma dimensão ambiental, definindo assim traços de uma personalidade de base. Durante o processo de identificação-singularidade, torna-se necessário, seguindo Eric Erikson, operar uma distinção, atribuir um significado e conferir um valor 3. A escrita diarística e memorialística evidencia esse processo de construção social da memória, mas também alicerça a construção historiográfica do passado. Afirma Jacques Le Goff que a “memória, onde cresce a história, que por sua vez a alimenta, procura salvar o passado para servir o presente e o futuro”4. O tempo da escrita das presentes narrativas de guerra tem uma grande proximidade com o exaltante tempo histórico descrito (tensão trágica entre a vida e a morte), impregnando por isso as descrições de uma forte dramatização emocional que não lhe retira o imediatismo, habitualmente “reformulado nos termos distanciados e amadurecidos que o memorialismo implica [...]” 5. Pode então 3

Eric ERIKSON. Identity, youth and crisis. New York: W.W. Norton & Company, 1968. Jacques LE GOFF. “Memória”. In: Enciclopédia Einaudi. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1984, vol. 1, p. 47. 5 Carlos REIS; Ana Cristina M. LOPES. Dicionário de Narratologia. Coimbra: Livraria Almedina, 1990, 4

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colocar-se o problema de se estar mais perto do género narrativo do diário/autobiografia do que do género narrativo das memórias, se se enunciar a questão da distanciação. Por outro lado, convive com frequência um discurso auto-justificativo e propagandístico do cidadão-político combatente (ideologicamente motivado) com o fino olhar crítico reconstrutivo de tensões psicológicas, de circunstâncias físicas ou de situações de confronto militar, revelando-se assim uma “encruzilhada de escritas”, onde se mistura a literatura de justificação com a literatura historiográfica. Um dos riscos que daqui decorre é o do uso e abuso da História – na expressão consagrada de Moses Finley – como lugar legitimador de discursos ideológicos6. No mundo destas narrativas de guerra é fácil surpreender discursos que comunicam memórias elaboradas de experiências, transportando para o presente uma clara intenção política. O Homem, ao vaguear pelo tempo-memória com finalidade interveniente, propicia um acto comunicativo que apela a uma cumplicidade partilhada. Deste modo, a guerra vivida (e sofrida individualmente) ao ser recordada (e comunicada publicamente) permite a generalização de um mundo de atitudes e de valores que, ao propiciar a activação de um sistema de incitações inter-individuais, pode criar uma área de opinião pública. O narrador-antigo combatente que pretende seguir esta estratégia reinventa o concreto “tempo-vivência” no decurso da elaboração utópica do “tempoprojecto”, podendo até evocar um “tempo-memória” da experiência nacional, lido como referente exemplar. Veja-se o caso de Jaime Cortesão, nas Memórias da

Grande Guerra, que, em face de uma imagem de Portugal como “Nação entorpecida” desde os finais do século XVI e assente no “génio do Povo” que se tinha revelado em “isolados clarões de relâmpago”, como aqueles que se p. 99-101. 6 Moses I. FINLEY. Uso e Abuso da História. São Paulo: Livraria Martins Fontes Editora, 1989.

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manifestaram durante as Invasões napoleónicas (1807-1811), o Ultimato inglês de 1890, a Revolução republicana de 1910 ou a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), propõe um novo “abalo” na vida portuguesa em direcção a uma República “progressiva e fecunda”, fazendo-a “entrar nas grandes correntes do trabalho moderno”7. A defesa intransigente do intervencionismo português na Primeira Guerra Mundial, espelhado nas narrativas dos republicanos Jaime Cortesão, Augusto Casimiro, João Pina de Morais ou Carlos Selvagem, transportava uma visão profética prometeica, radicada numa dupla justificação de profundo sentido patriótico: a justificação política de aliados naturais do bloco demoliberal anglo-francês contra o expansionismo cesarista alemão; a justificação ética de uma proposta de revigoramento moral e de regeneração nacional que, fundamentalmente, o soldado combatente encarnava. No número especial da revista A Águia de 1916, vários intelectuais, incluindo Jaime Cortesão e Augusto Casimiro com textos poéticos, exprimiram também em textos ensaísticos esse tipo de argumentos ético-políticos. Por exemplo, Teixeira de Pascoaes, evocando a velha aliança anglo-portuguesa, proclama que o “Passado vela pelo Futuro” e conclui pela íntima ligação da sorte de Portugal à sorte da Inglaterra e da França; Teófilo Braga alega o risco de se perder a “Ocidentalidade” como matriz de base do equilíbrio europeu; Raul Proença apela à mobilização moral dos portugueses para estabelecer um “nexo patriótico” e sustentar a nossa participação na guerra, caracterizada fundamentalmente como guerra económica, ao contrário de Cortesão que desde o início a considera eminentemente política; Francisco Mayer Garção detecta a oposição essencial entre o direito e a força no conflito; Henrique Lopes de Mendonça adverte para o perigo do germanismo ameaçar a civilização greco-latina, “única verdadeiramente expansiva e fecunda”; Leonardo Coimbra define um sentido da guerra marcado pelo “esforço 7

Jaime CORTESÃO. Memórias da Grande Guerra, p. 13-24 e 239-242.

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transcendente das forças espirituais” contra “a vertigem materialista do mundo moderno”.

2. Ética do patriotismo e redenção nacional Na diarística e no memorialismo de guerra encontra-se habitualmente uma versão apologética da acção do soldado combatente (principalmente um camponês fardado, o “magala” português), mas também surge a valorização da oficialidade miliciana que correu riscos na frente de combate. Panteonizados civicamente nos túmulos dos Soldados Desconhecidos ou nos vários monumentos aos Mortos da Grande Guerra, deste modo se evidenciava novos discursos de legitimação éticopolítica e uma nova hierarquia social devedora da coragem física e da integridade moral, que não excluía a intenção de “morrer pela Pátria”, moldando assim uma ética do patriotismo. A narrativa intervencionista de Jaime Cortesão é paradigmática a este respeito, estando percorrida por uma leitura redentorista da acção do soldado combatente, que devia convergir politicamente com a acção de uma vanguarda elitista iluminada: “Colectivamente na guerra, na nossa guerra, salvou-se o soldado. Ele foi, sempre que o não enganaram, paciente, sofredor e heróico [...]. Entre os oficiais, por via de regra, quanto mais galões, pior [...]. Porque a guerra educa [...], as velhas virtudes da arraia-miúda, que nele soldado dormiam, acordaram […] para se afirmarem mais uma vez a única grande força da grei [...]. De novo, como sempre, uma reduzida minoria de eleitos e iluminados […] se encontrou unicamente com a arraia, para realizar os milagres que redimem […]”8. Nessa mesma parte das Memórias da Grande Guerra, Jaime Cortesão pretende mostrar a guerra como escola de valores (honra, valentia, solidariedade), propiciando uma mudança de carácter que, no caso do “magala”, o transformara de 8

Jaime CORTESÃO. Memórias da Grande Guerra, p. 232-238.

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“soldado bonacheirão e humilde”, “sonâmbulo”, “galhofeiro e manhoso”, num “homem novo”, numa “legião de gigantes”, onde estavam o Esgalhado, o Baldaia ou o Rancheiro da Segunda, que aprenderam a “desprezar a morte e o sofrimento” e souberam entender qual é o valor da vida, construindo pilares da regeneração urgente do corpo nacional. Assim, construiu um processo narrativo, revelando o homem confrontado com a morte e desocultando o que chamaria em 1926 “as máscaras de convencionalismos e mentiras”, por meio das quais o ser humano esconde as verdadeiras faces: “As almas ficaram a nu e guardaram por muito tempo – e quantas para sempre! – o jeito de se mostrarem na sua esplêndida nudez […]]” 9. Sendo uma constante nas narrativas intervencionistas a evocação do heroísmo dos soldados, tal não obstou a que se produzisse uma leitura antropológica dos seus hábitos profundos, que Carlos Selvagem de forma vigorosa sintetizou: “O nosso lapuz das Beiras e Alentejo – a grande massa destas tropas – é, por natureza, por hábitos ancestrais, por desamor de si próprio, desleixado e porcalhão. Todo o navio fede a um fartum gordurento e sórdido, misto de rancho coagulado e pé descalço. E, com a falta de água doce para as lavagens frequentes, os miseráveis uniformes de cotim cinzento ganham uma cor parda, de causar engulhos aos menos susceptíveis […]”10. À partida, portanto, colocava-se o problema do espírito militar, quer dos 9

Jaime CORTESÃO. “A literatura da Grande Guerra. I – Portugal e o estrangeiro”. In: A Guerra. Lisboa, ano 1.º, n.º 4, 9 Abril 1926, p. 24. 10 Carlos SELVAGEM. Tropa d’África. Porto: Edição da “Renascença Portuguesa”, 1919, p. 24-25; na 4.ª Edição de 1925, a obra intitular-se-á Tropa d’África. (Jornal de campanha dum voluntário do Niassa. Noutro relato memorialístico – também com grande audiência na opinião pública da época – sobre a viagem imediatamente seguinte, que levou para Moçambique novos contingentes dessa 3.ª expedição militar, confirma-se o mesmo ambiente de degradação no interior do vapor: “[...] o pequeno corrimão de ferro frio, engordorado e salitroso, dá-me um contacto glacial; as paredes de ferro, pintadas a cinzento, exsudam uma camada orvalhenta que dá náuseas; os degraus de madeira estão torpemente empastados de gordura, de restos de rancho, que se derramou e de mascarras esverdeadas de vómitos. Reprimo a custo uma convulsão de estômago em contacto com este estendal ignominioso. Continuo a descer e vou pensando como haja organismos humanos capazes de resistir a esta hedionda atmosfera [...]. Uma agonia glacial estrangula-me a garganta. Estou no fundo da quadra, no fundo deste porão maldito que nitidamente faz lembrar a horrorosa casa do pêndulo de que fala o sombrio Edgar Poë [...]” – António de CÉRTIMA. Epopeia Maldita. O drama da guerra d’África: que foi visto, sofrido e meditado pelo combatente [...]. Lisboa: Edição do Autor [Portugal-Brasil Depositária], 1924, p. 29.

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soldados quer da capacidade dirigente das chefias em face dessa massa humana. É precisamente na verificação positiva da sua resposta a nível dos comandos intermédios (tenentes e capitães) que surge a evocação generalizada e o elogio da liderança dos oficiais milicianos vindos das Universidades, “com alma de condestáveis”, na opinião modelar de Augusto Casimiro11. Há, contudo, a considerar também o enunciado de versões críticas face a sectores da classe política e das chefias militares ou perante a estratégia de guerra desenvolvida: “Portugal vivo, Portugal da Flandres, os soldados de África e da França choram o abandono a que os votaram as sombras de Portugal […]. Os calvários da França hão-de ser a redenção da nossa miséria […]” 12; “as nossas elites governativas, todas elas, mais ou menos, são incapazes dos grandes actos redentores, enquanto o Povo, apesar de ignorante e desorientado, é ainda e sempre a maior esperança […]”13; “Nada se organizou com método, com acerto, como se pensa em fazer para as tropas de França. [...] a pobre tropa de África [...]”14; “De Portugal nem um reforço [...]”, numa alusão à política do regime presidencialista de Sidónio Pais15.

2.1. “Entre as brumas da memória”: a partida e a saudade Momento de forte tensão física e psicológica, o embarque dos combatentes no cais de Alcântara-Mar, em Lisboa, surge em várias narrativas como lugar privilegiado de observação e de interpretação de comportamentos perante realidades humanas e materiais que se tornariam fisicamente ausentes. Jaime Cortesão divulga a seguinte imagem, captada no ambiente de despedida do 11

Capitão Augusto CASIMIRO. Nas Trincheiras da Flandres. Porto: Edição da “Renascença Portuguesa”, 1918, p. 93-98. 12 Capitão Augusto CASIMIRO. Nas Trincheiras da Flandres, p. 120. 13 Jaime CORTESÃO. Memórias da Grande Guerra, p. 222. 14 Carlos SELVAGEM. Tropa d’África, p. 20 e 373. 15 Capitão Augusto CASIMIRO. Calvários da Flandres. Porto: Edição da “Renascença Portuguesa”, 1920, p. 78.

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contingente onde ia o seu cunhado e amigo íntimo Augusto Casimiro: “Há lágrimas, abraços, olhos atados em êxtase, e uma alegria doida no rosto dos que vão [...]. Não há um único rosto triste. Antes uma alegria generosa e bárbara, que brota da profunda consciência da sua missão, radia das suas faces, enaltecendo-lhes as rústicas figuras de cavões e zagais [...]”16. Por certo que os discursos patrióticos das Sociedades de Instrução Militar Preparatória, das Sociedades de Assistência Religiosa em Campanha (católicas e protestantes), das Comissões de Madrinhas de Guerra ou da Cruzada Nacional das Mulheres Portuguesas prepararam muitas consciências intervencionistas, mas também é verdade que as consciências anti-intervencionistas não deixaram de existir na sociedade portuguesa fortemente polarizada sobre a participação na frente europeia da Primeira Guerra Mundial. O choro do único soldado que Jaime Cortesão divisou na imensa e compacta massa de combatentes, como contraponto a uma alegria colectiva (com excessos que atribuía ao vinho), com certeza que não teria essa singularidade, pois o sentimento (afecto, saudade, sobrevivência) é uma das dimensões da pessoa humana. A estratégia descritiva visava promover uma argumentação de civilismo republicano intervencionista, posição considerada essencial para defender o que considerava ser a “terra sagrada da Pátria”. Na Cartilha do Povo, adquirida aos milhares pelo Ministério da Guerra para distribuição propagandística entre os soldados, Cortesão era bem explícito, quando na voz do personagem Manuel,

Soldado proclama: “Antes eu morra cem vezes na guerra do que os meus e a minha Pátria fiquem para sempre enxovalhados e miseráveis! [...]”17. A dor da partida não estava, obviamente, ausente, e as leituras triunfalistas, muitas vezes hiperbolizadas pela retórica literária e política, devem ser relativizadas no processo de construção histórica do passado. João Pina de Morais refere, na 16

Jaime CORTESÃO. Memórias da Grande Guerra, p. 37-38. [Jaime CORTESÃO]. Cartilha do Povo. 1.º Encontro. Portugal e a Guerra. Porto: Edição da “Renascença Portuguesa”, 1916, p. 28. 17

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despedida serrana dos futuros soldados, soluços a bater e gritos dolorosos 18; Carlos Selvagem vê no dia de embarque um dia de lágrimas e balbúrdia 19; Eduardo Pimenta comunica o embarque tumultuário: “Na loucura romântica de uma visão de glória partiam para o país distante, onde os clamores da guerra são gritos de fúria selvagem, tempestades violentas de crime [...]”20. Augusto Casimiro regista, vibrantemente, a sua partida, exprimindo uma mentalidade de fundo messiânico sobre o destino histórico português: “Os navios abalam … Jerónimos, Torre de Belém, espectro da Aurora nascente … E a terra passa, fica, os soluços mudos largam o voo … O coração dilata-se … Ah! – que doce embalo! … Que nau nos leva? … É o mar! … É outra vez o mar! O mar … [...]”. Cumpria-se assim a sua sistemática campanha, que exprimiu na palavra de ordem “Mandem-nos partir!”21. Devedor do programa cultural do Saudosismo do sector republicano do Grupo “Renascença Portuguesa”, que se identificava com as reflexões sobre a identidade nacional de Teixeira de Pascoaes22, João Pina de Morais percorre o seu discurso com justificações para o estado de espírito nostálgico dos soldados, o qual, no entanto, dispõe de um forte poder criador: “Que admira tanta Saudade [...]! Era lusíada! [...] A saudade lusíada é o velo de oiro dos espaços, à procura das cinzas do bem perdido, que o pecado de todos espalhou na Via Láctea, não sei onde [...]. A 18

Tenente Pina de MORAIS. Ao Parapeito. Porto: Edição da “Renascença Portuguesa”, 1919, p. 11. Carlos SELVAGEM. Tropa d’África, p. 11. 20 Eduardo PIMENTA. A Ferro e Fogo. Na Grande Guerra (1917-1918). Porto: Edição da “Renascença Portuguesa”, 1919, p. 97. 21 Capitão Augusto CASIMIRO. Nas Trincheiras da Flandres, p. 23, 30-31. 22 O Saudosismo de Pascoaes era uma proposta de compreensão da “peculiaridade” da “alma lusíada”, a “Saudade”, mas também recobria uma dimensão interventiva na busca de um ideal de “Renascença”: “Deu-nos a revelação da Saudade o conhecimento da essência espiritual da nossa Raça, na sua íntima figura extática e nas suas exteriores e activas qualidades. Logicamente nos dará também o conhecimento do seu profundo sonho secular, cada vez mais despedido da originária névoa encobridora e mais alumiado nas suas formas definidas. Sabemos que a Saudade, ou a alma pátria, significa, em vida activa e sentimental, em génio popular, a eterna Renascença [...]. Se a ideia da Renascença, em Portugal, se tornou génio colectivo, deve competir ao povo português convertê-la em concreta realidade social ou nova Civilização [...]” – Teixeira de PASCOAES. Arte de Ser Português. 1.ª Edição, 1915; Edição definitiva, 1920. Lisboa: Assírio & Alvim, 1991, p. 107 e 113. 19

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sua saudade nasce nos corações, ergue-se nas Fragas, corta Oceanos, peleja nas batalhas, voa nos céus e dorme na História [...]23. Esta representação psicológica tem inerente, por conseguinte, uma dinâmica de acção, buscando glória para um regresso triunfal, atitude partilhada por Jaime Cortesão e Augusto Casimiro: é uma construção intelectual para um novo despertar heróico republicano da consciência nacional portuguesa. Cortesão, em 1916, deu um grito anunciador, por intermédio de João Portugal: “Levanta-me essa cabeça. Chegou a hora [...]. Vai para onde a Pátria te chamar [...]” 24 . O problema é que, como observa Carlos Selvagem, os soldados combatentes na sua grande maioria não conhecem, não sabem, não sentem o que seja a Pátria, a não ser aquela que se refere ao seu lugar de nascimento, de trabalho e de vida: “A palavra Portugal ainda decerto os emociona e enternece. A ideia de Pátria, porém não lhes perturba as digestões nem o funcionamento regular do sistema circulatório [...]”25.

2.2. “Pela Pátria lutar”: a vida e a morte nas trincheiras Jaime Cortesão interpreta nas Memórias da Grande Guerra o espaço geográfico envolvente de guerra que viveu – a Flandres francesa –, através de uma meticulosa observação da relação entre a terra e as gentes, comunicando configurações do solo, clima, plantações, tipo de habitação rural (a ferme), 23

Tenente Pina de MORAIS. O Soldado-Saudade na Grande Guerra. Porto: Edição da “Renascença Portuguesa”, 1921, pp. 15-16. A mesma linha de pensamento pode observar-se noutro depoimento: “Os rasgos de heroísmo, as feridas sangrentas, os mortos, tudo exalta, decuplica as almas, doira de púnico entusiasmo os combatentes [...]” – Capitão Augusto CASIMIRO. Calvários da Flandres, p. 47. Um nãocombatente mas escritor com várias obras publicadas pela “Renascença Portuguesa” recria desta forma o ambiente da partida e da chegada: “[...] o embarque – filas de homens pálidos rasgando as massas torporosas dos que ficavam [...]; por fim o desembarque de todos aqueles soldados atordoados, cheios de saudades, mas firmes, crentes, como que amando, querendo já à Morte, que de alguma sorte iam buscar, procuravam a milhares de léguas! [...]” – Visconde de VILA-MOURA. Pão Vermelho. Sombras da Grande Guerra (Novela mensal). Porto: Edição da “Renascença Portuguesa”, 1923, p. 24. 24 [Jaime CORTESÃO]. Cartilha do Povo. 1º Encontro. Portugal e a Guerra, p. 5. 25 Carlos SELVAGEM. Tropa d’África, p. 28.

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características das cidades, psicologia dos homens, para, por fim, se deter na área da frente de guerra e hierarquizar o perigo dentro de uma faixa – um grande triângulo isósceles – na qual se desenvolve a vida diária do Corpo Expedicionário Português. Será contudo nas trincheiras de Neuve-Chapelle – “a grande cova, onde se aprende o ofício de morto” – que encontrará a imagem real do combatente português: “Pálidos, magros, exaustos, os pulmões roídos dos gases, os pés triturados das marchas, sem esperança nem apoio moral [...]”26. O contacto com o ambiente ao redor das trincheiras propicia a Jaime Cortesão uma leitura dramática e nauseabunda da relação entre a vida e a morte no quotidiano da guerra, como está bem patente nesta descrição: “Os vivos têm de viver em promiscuidade com os mortos, mais do que isso, com as mutilações dos cadáveres. Ali, ao pé da trincheira, a meio duma dessas paredes dum poço de explosão, emergem os dois ossos duma perna em farrapos de podridão suspensos e uma bota ainda calçada [...]. Todo o chão exala carnagem, loucura, nevoeiros de morte. Em certos pontos dir-se-ia que a terra ainda está ensopada de sangue negro [...]”27. A “miséria da trincha”, onde “se vive fora do tempo e do mundo” numa “fraternidade do sangue e das almas”, adquire nas várias descrições um lugar obviamente central. O quotidiano era pautado pela frequente ocorrência de chuvas, com as inevitáveis inundações das trincheiras, trazendo a lama (o “homem-lama”) e esboroando os taludes, ou pelo aparecimento de fortes nevoeiros e da gélida neve, o que dificultava a capacidade de resposta militar daqueles que vigiam no parapeito: “O parapeito de argila queimada, de sacos rotos e madeiras esfareladas, é o pedestal duma infinidade de estátuas vivas e incompreensivelmente heróicas. Do mar à fronteira aos Alpes faz-se uma formatura de heróis! [...]” 28. 26

Jaime CORTESÃO. Memórias da Grande Guerra, p. 165. Jaime CORTESÃO. Memórias da Grande Guerra, p. 87-88. 28 Tenente Pina de MORAIS. Ao Parapeito, p. 38. 27

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A vida nas labirínticas trincheiras não era fácil e dentro delas caminhava-se sobre “passadeiras”, quando existiam, senão, na invernia, os pés e as pernas enterram-se na lama e a sobrevivência física é posta em causa quando não chega ajuda ou se acrescenta uma acção militar do inimigo. Erguem-se então “calvários” que passam a povoar as “searas da morte”, onde “crucificadas, exangues, agonizam almas lusíadas”, como de forma expressiva nos comunicou Augusto Casimiro29. Segundo a narrativa do general Manuel Gomes da Costa, genericamente, os trabalhos nas trincheiras começavam pelas vinte e uma horas, com diferentes grupos a executar tarefas de reparação e aperfeiçoamento dos dispositivos de combate ou de assistência e manutenção sanitária e reposição de abastecimentos. Há então uma trégua tácita, mas vigilante, entre os beligerantes, pois uma metralhadora “facilmente dispersaria essas formigas trabalhadoras [...]”. À uma hora e meia da manhã, os trabalhos são suspensos e dormita-se. Ao amanhecer, tudo “A postos!”, pois é o momento provável dos ataques, atingindo o ponto alto às nove horas, com os habituais bombardeamentos. Depois, cava-se, melhorando e aumentando as trincheiras. Ao meio-dia, janta-se, e entre as catorze e as dezassete horas volta um sobressaltado repouso, sempre à espera de um novo “estoiro de

shrapnell”, com feridos e mortos. Das dezoito horas ao crepúsculo, ocorrem habitualmente os ataques aéreos30. São marcos de um horário da guerra, mas a guerra alimenta-se da surpresa e 29

Capitão Augusto CASIMIRO. Calvários da Flandres, p. 67, 87-94. General Gomes da COSTA. O Corpo de Exército Português na Grande Guerra. A Batalha do Lys, 9 de Abril de 1918. Porto: Edição da “Renascença Portuguesa”, 1920, pp. 84-112. Veja-se também esta descrição após o combatente “mergulhar nas trincheiras”: “Aí a música era outra e o perigo sempre diante dos olhos. Havia os atiradores especiais, para liquidar o triste que se descuidava erguendo a cabeça um palmo acima do parapeito. O canto da metralhadora, o ronco de morteiro, o berro ensurdecedor da peça de artilharia, a luz ofuscante do very-light, a traiçoeira granada de gás, o raid à terra de ninguém e a rede de arame farpado e as minas, o assobio arrepiante da bomba de avião. E muitas outras armadilhas para denunciar o inimigo, para o deter, para o matar. Quando se saía daquele inferno labiríntico experimentava-se uma sensação de alívio, de segurança, de contentamento e como que de ressurreição [...]” – João Sarmento PIMENTEL, Memórias do Capitão [1962]. 2.ª Edição. Porto: Editorial Inova, 1974, p. 191. 30

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a “Morte domina misteriosa e implacável”, na observação de Eduardo Pimenta 31. Será uma “guerra maldita”, afirma Alexandre Malheiro, feito prisioneiro na batalha de La Lys e libertado após a assinatura do Armistício 32. Comparando com a Flandres, em Moçambique, à torreira do sol africano junta-se o “fundo lodacento” das “absurdas trincheiras” de Palma, os homens pior preparados e os abastecimentos mais

escassos,

levando

os

combatentes

portugueses

a

um

desigual

circunstancialismo mas ao mesmo trágico destino: “Filhos ambos das mesmas serras [...], o sangue que ambos vertem, com tão céptico fatalismo, é igualmente generoso e simples [...]”33.

Considerações finais O universo narrativo, que foi sujeito a análise, exprime-se por meio de discursos de diversa natureza – diários, memórias, crónicas ou ensaios. Manifestase, no entanto, em quase todos a característica comum de depoimento vivencial republicano intervencionista, aderindo genericamente às posições dos governos republicanos de então, por vezes muito condicionado pela leitura ideológica pessoal sobre o destino português. Também podemos encontrar nesses textos um rico repositório de reflexões críticas

sobre

a

participação

portuguesa

na

Primeira

Guerra

Mundial,

31

Eduardo PIMENTA. A Ferro e Fogo. Na Grande Guerra (1917-1918), p. 79. Atente-se no seu comentário: “Ó guerra maldita! Se há trezentos anos o Padre António Vieira te classificava já de monstro, que nome poderá existir hoje no nosso vocabulário que bem possa abranger todas as crueldades e infâmias que à tua sombra vem agora praticando a humanidade? [...]” – TenenteCoronel Alexandre MALHEIRO. Da Flandres ao Hanover e Mecklenburg. (Notas dum prisioneiro). Porto: Edição da “Renascença Portuguesa”, 1919, p. 85. 33 Carlos SELVAGEM. Tropa d’África, pp. 142, 328, 368. Outro combatente republicano, que será fundador da revista cultural e política Seara Nova em 1921, com experiência de guerra em Angola e na Flandres, deixou-nos o seguinte registo comparativo: “Logo fui aliciado por Gomes da Costa para fazer parte do seu Quartel-General. Aceitei todo pimpão, não suspeitando que ia ‘passar as passas do Algarve’ encafuado naquelas trincheiras do front, um frio de morrer e a imobilidade enervante da guerra de cerco, capaz de tirar o juízo e a coragem a qualquer veterano, e muito mais a nós, os combatentes de África, habituados a um clima tropical e à guerra de movimento [...]” – João Sarmento PIMENTEL. Memórias do Capitão, p. 187. 32

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fundamentalmente desenvolvida por antigos combatentes na Flandres francesa, com a excepção de um antigo combatente em Moçambique. A participação portuguesa no conflito mundial acabou por ser um importante factor para a legitimação nacional da República em Portugal, sagrando com sangue a Bandeira portuguesa.

Bibliografia

Fontes: A Águia. Porto: Edição da “Renascença Portuguesa”, 1916, n.º 52-5354. CASIMIRO, Capitão Augusto. Calvários da Flandres. Porto: Edição da “Renascença Portuguesa”, 1920. CASIMIRO, Capitão Augusto. Nas Trincheiras da Flandres. Porto: Edição da “Renascença Portuguesa”, 1918. [CORTESÂO, Jaime]. Cartilha do Povo. 1.º Encontro. Portugal e a

Guerra. Porto: Edição da “Renascença Portuguesa”, 1916. CORTESÃO, Jaime. “A literatura da Grande Guerra. I – Portugal e o estrangeiro”. In: A Guerra. Lisboa, n.º 4 (9 Abril 1926). CORTESÃO, Jaime. Memórias da Grande Guerra (1916-1919). Porto: Edição da “Renascença Portuguesa”, 1919. COSTA, General Gomes da. O Corpo de Exército Português na Grande

Guerra. A Batalha do Lys, 9 de Abril de 1918. Porto: Edição da “Renascença Portuguesa”, 1920. MALHEIRO, Tenente-Coronel Alexandre. Da Flandres ao Hanover e

Mecklenburg. (Notas dum prisioneiro). Porto: Edição da “Renascença cogitationes.org

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Portuguesa”, 1919. MENDES, Adelino. Cartas da Guerra (Janeiro a Abril de 1917). Porto: Edição da “Renascença Portuguesa”, 1917. MORAIS, Tenente Pina de. Ao Parapeito. Porto: Edição da “Renascença Portuguesa”, 1919. PIMENTA, Eduardo. A Ferro e Fogo. Na Grande Guerra (1917-1918). Porto, Edição da “Renascença Portuguesa”, 1919. PIMENTEL, João Sarmento. Memórias do Capitão. 2.ª Edição. Porto: Editorial Inova, 1974 (1.ª Edição, 1962). ROCHA, Alfredo Barata da. Névoa da Flandres. (Versos). Porto: Edição da “Renascença Portuguesa”, 1924. SELVAGEM, Carlos. Tropa d’África. Porto: Edição da “Renascença Portuguesa”, 1919. VILA-MOURA, Visconde de. Pão Vermelho. Sombras da Grande Guerra

(Novela mensal). Porto: Edição da “Renascença Portuguesa”, 1923. Estudos: AFONSO, Aniceto; GOMES, Carlos de Matos (eds.), Portugal e a

Grande Guerra. 1914-1918. Matosinhos: Quid Novi Edições e Conteúdos, 2010. CARPENTER, Jean; LEBRUN, François. História da Europa. Lisboa: Editorial Estampa, 1993. ERIKSON, Eric. Identity, youth and crisis. New York: W.W. Norton & Company, 1968. FINLEY, Moses I. Uso e Abuso da História. São Paulo: Livraria Martins cogitationes.org

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Fontes Editora, 1989. LE GOFF, Jacques. “Memória”. In: Enciclopédia Einaudi. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1984, vol. 1, pp. 11-50. LEAL Ernesto Castro. Nação e Nacionalismos. A Cruzada Nacional D.

Nuno Álvares Pereira e as Origens do Estado Novo (1918-1938). Lisboa: Edições Cosmos, 1999. PEREIRA, José Esteves. Percursos de História das Ideias. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2004. REIS, Carlos; LOPES, Ana Cristina M. Dicionário de Narratologia. Coimbra: Livraria Almedina, 1990. VEYNE, Paul. Como se escreve a História. Lisboa: Edições 70, 1983.

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A TEORIA DA JUSTIÇA EM JOHN RAWLS Antonio Adelgir de Oliveira Almeida Bacharel em Direito, Graduando em Filosofia/UFJF Membro do Centro de Pesquisas “Paulino Soares de Sousa” ant.almeida@terra.com.br

“A Justiça é a primeira virtude das instituições sociais, como a verdade o é dos sistemas de pensamento.” 1 (Jonh Rawls)

“Construir uma teoria da Justiça capaz de guiar as práticas e as escolhas. ” 2 (Catherine Audard e outros)

1

JUNIOR, Amandino Teixeira Nunes. In Revista de Informação Legislativa (2002: 53). AUDARD, Catherine e outros .”Avant –propos de l ´editeur”. In MAIA, Antonio Cavalcanti. Jürgen Habermas: Filósofo do Direito (2008: 106). 2

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O presente trabalho visa instigar o debate acerca do papel filosófico desenvolvido em escritos de John Rawls para a filosofia contemporânea, notadamente na anglo-saxã. Nessa perspectiva, o trabalho de Rawls contribui sobremaneira na construção de uma verdadeira Teoria. Será a partir do pensamento aristotélico que emergirão seus apontamentos na busca de um ideal de justiça, não só na esfera distributiva mas também na análise de uma justiça coercitiva. Este papel foi inicialmente explicitado por Aristóteles, que afirmava serem as virtudes éticas inseridas no contexto de toda sociedade. A relevância e a atualidade desse entendimento aristotélico fizeram com que John Rawls, em sua “Teoria da Justiça”, retomasse os argumentos de Aristóteles, procurando mostrar que o Estado é que deve dar condições para que seus cidadãos procurem viver de uma maneira feliz para a realização do bem comum. Por outro lado, Rawls pontua no sentido de haver uma certa contraposição de dois planos: o primeiro pode ser caracterizado como o da interioridade moral, definido pelo mestre Aristóteles como o das virtudes dianorréticas, isto é, a virtude ética de cada indivíduo pautada na convicção; num segundo momento, vai aparecer o plano das convenções sociais, ou seja, aquele cujo resultado serão as virtudes éticas e que, vinculado ao direito da polis, garantiriam o convívio social. Nessa perspectiva, será condição necessária para haver justiça a prática de uma moral no seio de toda sociedade. Tal posicionamento nos mostra que a ideia de justiça irá se estabelecer a partir dessa construção. Então para que haja uma verdadeira justiça, será preciso que se cultive entre os cidadãos uma ética fundamental na busca da equidade. Partindo dessa premissa de ideia de justiça, alhures desenvolvida por Aristóteles, é importante destacar o que nos apresenta em seus escritos acerca dos procedimentos que cada indivíduo deve ter para que a sociedade não perca seus objetivos.

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Procuraremos, assim, fazer um apanhado desse pensamento propugnado, buscando a inserção e a possibilidade

de implementação dessas ideias

desenvolvidas por Rawls na sociedade brasileira. Rawls procura nos mostrar a importância do Estado na sociedade contemporânea, pois é a emanação do Estado que vai garantir nossos direitos, ou seja, se a pessoa for injustiçada, ela vai buscar o Estado para tentar obter a satisfação de suas agruras, para satisfação de seus direitos. O Estado será o elemento central para o ressarcimento de qualquer dano. Nessa perspectiva, será mais importante que a própria convenção originária de um debate político muitas vezes carente de virtudes éticas, face haver interesses escusos em jogo. Ressalte-se a importância desse mínimo ético a ser

exigido de cada

cidadão para que a sociedade não desabe. Entre os estudiosos que se dedicaram à reflexão e, como expoentes do tema ora apresentado, pode-se destacar a figura de HABERMAS (1997:19), que, ao discorrer em sua obra sobre a Consciência Moral, vai afirmar que para chegarmos a uma correta distribuição de justiça na sociedade, devemos buscar no direito essas razões. Nessa linha de raciocínio, procura pontuar na sua teoria do “agir comunicativo” uma mudança paradigmática da razão prática baseada no individuo, ampliando-a

para uma razão comunicativa, com a

participação de todos os cidadãos pertencentes a uma sociedade. Com efeito o mestre da escola de Frankfurt nos transmite o seguinte posicionamento in verbis:

[...] Por esta razão, eu resolvi encetar um caminho diferente, lançando mão da teoria do agir comunicativo: substituo a razão prática pela comunicativa. E tal mudança vai muito além de uma simples troca de etiqueta.3

Na esteira do pensamento habermasiano ao discutir a origem dos direitos humanos e da soberania popular, pois ambas se pressupõem mutuamente, MAIA 3

HABERMAS, Jürgen. In Direito e Democracia – Entre Facticidade e Validade. Vol.l . (1997: 19).

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(2008: 104-105) pontua no sentido de que os filósofos liberais, entre eles Jonh Rawls, procuram explicitar em seus discursos a prevalência da autonomia privada em relação à autonomia coletiva, buscando o fim primordial de uma sociedade bem ordenada, primando pelas questões de ordem moral, nos seguintes termos. [...] Os liberais se sentem herdeiros de Locke, de Kant e de Stuart Mill. Eles compartilham o mesmo cuidado em relação à liberdade de consciência, o mesmo respeito pelos direitos do indivíduo, e uma desconfiança vis-a-vis à ameaça que pode constituir um estado paternalista. Toda essa discussão de Habermas acerca dos direitos humanos e das problemáticas a eles relativos só pode ser entendida tendo como pano de fundo – como já referido na introdução deste capítulo – a reabilitação da filosofia prática operada deste o início dos anos 70, com a obra crucial do pensamento filosófico-político do século XX: a Teoria da Justiça, de Jonh Rawls. Ora, tanto a discussão sobre direitos humanos, como as cogitações acerca dos modelos possíveis concernentes ao desenvolvimento da democracia no hemisfério norte desdobraram-se, tendo como epicentro a teoria das instituições justas desenvolvida pelo professor de Harvard.2

Por outro lado, MAIA (2008:40) salienta que é a partir das ponderações de Rawls, explicitadas na sua Teoria da Justiça , que vai ocorrer uma mudança substancial nas discussões filosóficas. Habermas reafirma essas proposições nos seguintes termos: (...) marcou uma cesura na história recente da filosofia política. Graças a sua obra, as questões morais, por longo tempo deixadas de lado, reen-contram seu estatuto de estudos científicos sérios. 3 (grifo nosso).

2 3

Maia, Antonio Cavalcanti. In Jürgen Habermas: Filósofo do Direito (2008:104-106). Maia, Antonio Cavalcanti. In Jürgen Habermas: Filósofo do Direito (2008:40)

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Reforçando a tese de cunho individualista desenvolvida por Rawls em sua Teoria da Justiça, e aceita pelos indivíduos que compõem a esfera social, com um mínimo de componente ético, que é uma ideia clássica de Aristóteles, Fabriz (2003:117-118) corrobora o seguinte: John Rawls apresenta uma teoria da Justiça, que, em seus aspectos gerais, defende uma ideia de justiça baseada no indivíduo, encontrando-se esse acima dos interesses sociais. Rawls coloca como papel preponderante da justiça a virtude das instituições sociais.[...] Rawls sabe dos problemas que surgem em torno de um consenso sobre o que deve ser compreendido como mais ou menos justo.[...] No que se refere ao objeto da Justiça, indica Rawls como sendo a conformação adequada da estrutura básica da sociedade. 4 (grifo nosso).

Para enriquecimento do debate e, sobretudo, para mostrar as dificuldades que o direito constitucional enfrenta na pós-modernidade no que tange principalmente às diferenças – e não para os consensos no âmbito da justiça, vivenciados pelo excesso de demandas constitucionais –, é importante destacar o que nos diz CANOTILHO (2003:1358-1360) em sua obra fundamental, onde vai mostrar uma certa preocupação com os reflexos que poderiam ocasionar a moderna Teoria da Justiça arquitetada por John Rawls, in verbis:

A teoria do liberalismo político de John Rawls procura recortar as instituições básicas de uma “democracia constitucional” ou de um “regime democrático’. As concepções abstratas utilizadas por este autor – “justiça com equidade” , “sociedade bem ordenada” , “estrutura básica”, “consenso de sobreposição”, “razão publica” – servem para aprofundar o ideal de democracia constitucional. A democracia constitucional será, no fundo, aquela que dá resposta ao problema central do liberalismo político: “como é que é possível a existência de uma sociedade justa e estável de cidadãos livres e iguais que se mantêm profundamente divididos por doutrinas 4

FABRIZ, Daury Cesar. In Bioética e Direitos Fundamentais (2003:117-118).

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Ano I, Nº 03, Juiz de Fora, dezembro/2010 - março/2011 religiosas, filosóficas e morais razoáveis”. Muitas das categorias a que Rawls faz apelo – legitimidade, consenso constitucional, direitos e liberdades básicos, razão pública, elementos constitucionais essenciais – há muito que fazem parte do arsenal clássico da teoria da constituição. A própria ideia de razão pública entendida como “razão dos cidadãos iguais que, como corpo colectivo exercem um poder político e coercivo decisivo uns sobre os outros elaborando leis ou emendando a sua constituição”, retoma, sob vestes construtivistas, a discussão teoréticoconstitucional do poder constituinte. De um modo ainda mais claro, a ideia de que “num regime constitucional com fiscalização da constitucionalidade das leis (judicial review), a razão pública é a razão do seu Supremo Tribunal”, Rawls retoma o problema central do constitucionalismo moderno – o direito de exame dos actos legislativos pelo poder judicial – e em termos que, como o próprio reconhece, não tem nada de novo. Finalmente, a análise da “estrutura básica” à qual pertence a “constituição política” bem como a discussão das “liberdades básicas” retomam em termos originais e inovadores a problemática clássica da ordenação constitucional e das garantias de direitos desde sempre associada à teoria da constituição.5

Prosseguindo em seu raciocínio, o constitucionalista português introduz o pensamento de HABERMAS (1360-1361), afirmando que a teoria do filósofo alemão – ao deparar com questões envolvendo direito, democracia e estado de direito – terá como resultado uma teoria da constituição, ao ponderar que:

Ele próprio confessa que pretende clarificar os paradigmas do direito e da constituição e reabilitar os pressupostos normativos inerentes às práticas jurídicas existentes. Reagindo contra o próprio cepticismo dos juristas. Habermas reabilita o medium normativo do direito – sobretudo do direito constitucional – para percorrer os problemas clássicos (confessa também que os seus conceitos pressupõem as categorias tradicionais da constituição e do constitucionalismo) e fornecer uma compreensão do estado de direito democrático e da teoria da democracia, tentando fugir quer ao autismo da validade normativa quer à pura facticidade típica da objectivação sociológica.6 5

CANOTILHO, José Joaquim Gomes. In Direito Constitucional e Teoria da Constituição (2003:13581360). 6 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. In Direito Constitucional e Teoria da Constituição (2003:1360-

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Já o professor DALLARI (2003:277) vai na direção contrária daquela apontada recentemente por MAIA e CANOTILHO, ensejando que essa concepção do liberalismo faz com que o Estado deixe de proteger os menos favorecidos. Ademais, pontua no sentido de uma situação de privilégio para os economicamente mais fortes. Assim, discorre:

[...] Ao lado disso, a concepção individualista da liberdade , impedindo o Estado de proteger os menos afortunados, foi a causa de uma crescente injustiça social, pois, concedendo-se a todos o direito de ser livre, não se assegurava a ninguém o poder de ser livre.7

Ampliando a temática acerca da justiça e tendo o direito como elemento propulsor nas sociedades modernas, é prudente introduzir a ideia apresentada pelo professor JUNIOR (2002:56), verbis:

[...] Vê-se, pois, que os princípios de justiça social têm um nítido caráter “substancial”, e não meramente formal, na teoria de RAWLS. Logo no início de sua obra, ele é bem claro quando sustenta que o que o preocupa é a justiça verificada na atribuição de direitos e liberdades fundamentais às pessoas, assim como a existência real da igualdade de oportunidades econômicas e de condições sociais nos diversos segmentos da sociedade. 8

Esses princípios apontados serão para o filósofo considerados como a “estrutura básica da sociedade”, cujo objetivo central será uma distribuição mais ou menos equânime de direitos e deveres para os cidadãos envolvidos no contexto social.

Assim, Rawls (p. XIII – XIX) apresenta um conceito de “justiça como

equidade” através do seguinte argumento:

1361). 7 DALLARI, Dalmo de Abreu. In Elementos da Teoria Geral do Estado (2003:277). 8 JUNIOR, Amandino Teixeira Nunes in Revista de Informação Legislativa (2002:59-60) .

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Ano I, Nº 03, Juiz de Fora, dezembro/2010 - março/2011 Minha esperança é a de que a justiça como equidade pareça razoável e útil, mesmo que não seja totalmente convincente, para uma grande gama de orientações políticas ponderadas, e portanto expresse uma parte essencial do núcleo comum da tradição democrática.9

Mesmo sendo sua teoria bastante conceitual, pois visa formular conceitos muito abrangentes acerca da justiça, será prudente expor formulações encetadas por outros estudiosos do tema. Nessa perspectiva, uma nova visão vai ser inserida por ABREU (2006:150), nos seguintes termos:

Ao contrário, vamos aqui explorar RAWLS a partir de uma dupla hipótese de pesquisa: (a) o objetivo de uma teoria é o de construir critérios a partir dos quais seja possível discutir o justo; e (b) a construção desses critérios pode ser percebida como o exercício de uma filosofia crítica e, portanto, não dogmática. 10

A partir dessa inferência, o autor procura mostrar que Rawls não se restringe a uma verdade científica, mas vai mostrar quais seriam os fundamentos para que se construa uma sociedade justa baseada em princípios morais. Por outro lado, quer mostrar os elementos normativos necessários para o bem justo de uma organização social. Entretanto, é importante salientar que esse debate propugnado por RAWLS não teve terreno fértil em nosso país, apesar da importância do tema, pois a ausência do Estado ocorre com uma certa frequência em diversas demandas do diaa-dia. Em decorrência dessa situação, a ausência da justiça estatal, vai levar muitas vezes a uma ação direta do cidadão na busca da “justiça”. Essa justiça com as “próprias mãos” não teria lugar numa sociedade em que se respeitassem os direitos e deveres do cidadão como elementos da práxis de uma moral social.

9

JUNIOR, Amandino Teixeira Nunes. In Revista de Informação Legislativa (2002:60). ABREU,Luiz Eduardo de Lacerda. In Revista de Informação Legislativa (2006:150).

10

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O problema a ser enfrentado por toda a sociedade, visando à justiça como principio ético, pontuado alhures por Aristóteles –

incorporado

na

contemporaneidade por Rawls – restringe-se, no caso brasileiro, a fazer com que os atores políticos não corrompam a função social do Estado. Vale dizer que os políticos não invertam o bem público com o privado. O Estado deve ser administrado em benefício de toda a sociedade e, não em benefício desse ou daquele grupo político. Nesse diapasão, faz-se necessário nos dias de hoje que se recoloque a questão em debate, tendo em vista que a função social do Estado é a de garantir a justiça para todos os cidadãos. Na atualidade, o problema é que devemos garantir nossos direitos, mas primeiro deveremos saber quais são esses direitos. O Estado como bem comum, tão explicitado por Aristóteles nas suas prelações, vai de encontro com a tese de “políticos” não comprometidos com a sociedade brasileira, pois ao gerir o público como se privado fosse, acabam comprometendo a essência comunitária desenvolvida por Aristóteles. Então, o que Rawls procura fomentar é um olhar crítico do indivíduo sobre os procedimentos adotados por políticos no contexto da política. No caso brasileiro, é urgente a reflexão sobre essa teoria , pois será Rawls – a partir de Aristóteles – quem procurará mostrar o caminho a ser seguido nas sociedades modernas, visando àquelas virtudes éticas emanadas de todas as comunidades sociais. Todavia, será na busca de uma correta administração, visando o bem comum de toda a sociedade, que atingiremos a verdadeira justiça. A participação do Estado na construção de uma teoria moral desembocará num sistema justo e eficaz de justiça. Por outro lado, vozes se levantam no sentido de indicar uma certa dificuldade na implementação dessa teoria, por ser a sociedade brasileira muito diferente daquela onde o filósofo desenvolveu seus escritos, ou seja, a sociedade cogitationes.org

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norte-americana. Nesta linha de raciocínio, importante prescrever o entendimento do professor ABREU (2006:149-150):

[...]qual o sentido que a justiça como equidade pode ter para nós? Minha hipótese inicial é que estamos diante de duas tradições de pensamento político distintas mesmo considerando que a tradição brasileira não formulou conscientemente os seus princípios e principais consequências num sistema do tipo que RAWLS propõe. Aliás – e me adianto –, uma das razões pelas quais RAWLS parece ser interessante é justamente porque ele difere de maneira bastante acentuada de nossas concepções políticas em aspectos centrais. Em outras palavras, é porque somos diferentes que temos tanto o que conversar. 11

No debate que ora apresentamos, é salutar o entendimento do jusfilósofo REALE (2004:376), que embora considerando os méritos da teoria neokantiana desenvolvida por RAWLS, coloca-se numa posição desfavorável ao tema nos seguintes termos:

Eis, por conseguinte, como e porque a justiça deve ser, complementarmente, subjetiva e objetiva, envolvendo em sua dialeticidade o homem e a ordem justa que ele instaura, porque esta ordem não é senão uma projeção constante da pessoa humana, valor-fonte de todos os valores através do tempo. É a razão pela qual entendemos insuficiente, não obstante os seus méritos, a compreensão neocontratualista de base kantiana que nos oferece J. Rawls, com paradigmas que seriam necessários à legitimidade da experiência jurídica, como, por exemplo, a imparcial, potencial e proporcional correlação que deve haver entre os direitos de um e de outros. São princípios referenciais úteis à focalização do tema, mas que nos deixam no vestíbulo da ordem justa. (grifo nosso).

Podemos concluir que o tema apresentado é de grande importância, devendo ser estudado e debatido entre a opinião pública brasileira, pois a 11

ABREU, Luiz Eduardo de Lacerda. In Revista de Informação Legislativa (2006:149-150).

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verdadeira justiça deve ser construída no seio de toda a sociedade através de virtudes éticas. Será a partir desse debate que garantiremos a pacificação social. Todavia, somente se vai chegar a algum lugar, a partir da extinção da discrepância que é a inversão do público como se privado fosse. Começa a florescer em nossas instituições algo eficaz no combate as discrepâncias políticas. Estamos vendo que recentes decisões incorporadas no âmbito do judiciário brasileiro através do Supremo Tribunal Federal, no sentido de extirpar a triste figura do nepotismo enraizado, há algumas décadas, no sistema político e também no judiciário, onde magistrados inescrupulosos gerenciavam seus gabinetes como se fossem uma extensão de sua família. BIBLIOGRAFIA: CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da

Constituição. 7. ed. Coimbra - Portugal: Livraria Almedina, 2003. DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado . 24 ed. São Paulo: Saraiva, 2003. FABRIZ, Daury Cesar. Bioética e Direitos Fundamentais. Belo Horizonte: Mandamentos, 2003. HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre facticidade e

validade. Rio de Janeiro :Tempo Brasileiro, 1997. MAIA, Antonio Cavalcanti. Jürgen Habermas: Filósofo do Direito. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. REALE, Miguel. Lições Prelimanares de Direito. 27 ed. - São Paulo: Saraiva, 2004.

Revista de Informação Legislativa. Brasília, a.39, n.156, out./dez. 2002. Revista de Informação Legislativa. Brasília. a.43, n. 172, out./dez. 2006. cogitationes.org

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DIOGO ANTONIO FEIJÓ E A EMANCIPAÇÃO INTELECTUAL DO BRASIL COLONIAL Bruno Maciel Pereira

Bolsista de Iniciação Científica/UFJF. Aluno do curso de História/UFJF. Membro do Núcleo de Estudos Ibéricos e Ibero-Americanos/ UFJF brunoreale@yahoo.com.br

I- QUESTÕES METODOLÓGICAS Grande parte das obras de Introdução aos Estudos Históricos não tratam da problemática da História das Idéias. Este panorama se justifica por conta deste campo da história estar associado de forma intrínseca e necessária à filosofia. É necessário, portanto, que o historiador possua alguma afinidade com a disciplina em questão, o que, infelizmente, não ocorre na maioria dos casos, culminando em uma apatia para com o estudo de nossa orientação filosófica. Devemos, no entanto, nos lembrar que o estudo de História das Idéias não implica somente no estudo dos sistemas filosóficos, o que, aliás, é objeto de perquirição da História da Filosofia. Em outras palavras, a finalidade da História das Idéias não é especular sobre sistemas em um plano ideal, abstrato, sendo sim sua reconciliação com o plano temporal e espacial. Em outras palavras, a História das Idéias tem como diferencial o fato de estar sempre caminhando a esteira da história, sendo importantes apenas as idéias que de alguma forma contribuíram de modo efetivo ao nosso desenvolvimento histórico. É importante ao historiador das cogitationes.org

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idéias entender os diferentes nexos de causalidade que levaram o aparecimento de determinado sistema filosófico em nosso país1. Sendo seus resultados deveras importantes enquanto instrumento desvelador das fontes ideológicas que compõem a História do Brasil. A Filosofia no Brasil, conforme nos fala ( ROMERO 1878), trata de uma sucessão de influências estrangeiras, sobretudo européias, importadas para atender uma determinada finalidade ideológica. Todavia, também devemos levar em consideração as idéias assistemáticas, ou seja, aquelas assimiladas de forma empírica pelo povo. Como é o caso da idéia de cristianismo, arraigada fortemente ao nosso senso comum2. Usando a terminologia da fenomenologia, não podemos ignorar as experiências do mundo do viver comum ( lebenswelt). Policiando-nos, todavia, para não recair nossas pesquisas em uma sociologia do conhecimento 3. Todavia, o estudo deste saber espontâneo está além dos objetivos deste presente estudo, restrito apenas à investigação das idéias que nos chegam de alhures. A supervalorização do que vem do exterior se explica pelo nosso complexo de inferioridade, fenômeno que ainda hoje se mostra assente em nossa cultura, além de nossa constante preocupação em captar as últimas descobertas do pensamento contemporâneo. Esta postura provocou em nosso país um efeito bastante peculiar. Vivemos uma descontinuidade em nosso desenvolvimento mental, ou em outras palavras, as diferentes correntes filosóficas que emergem em nosso país não são originarias de uma filiação comum, estando nosso pensamento subsumido aos modismos que insurgem, de tempos em tempos, na história do pensamento universal4. A não relação genética ou lógica entre as diferentes correntes filosóficas que se desenvolveram em nosso país torna o puro estudo da 1

Cf. TOBIAS, J. A. História das Idéias no Brasil, EPU, São Paulo, 1987. p. 7- 12. Cf. TOBIAS, J. A. História das Idéias no Brasil, EPU, São Paulo, 1987. p. 7- 12. 3 Cf. REALE, M. Filosofia em São Paulo. 2ª Ed ( restaurada e revisada). Grijalbo, São Paulo, 1976. p. 9. 4 Cf. REALE, M. Filosofia em São Paulo. 2ª Ed ( restaurada e revisada). Grijalbo, São Paulo, 1976. p 713 2

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História da Filosofia no Brasil algo essencialmente enciclopédico. Eis então a necessidade do estudo da História das Idéias no Brasil, pois este é o campo do conhecimento que analisa as condições histórico-culturais que condicionaram a recepção destas doutrinas alienígenas, assim como sua repercussão. Acreditamos que as doutrinas filosóficas transplantadas ao nosso país assumiram funções distintas das existentes em seu ambiente cultural de origem, sofrendo alterações ou até mesmo deformações no horizonte de nossa cultura. Deste modo, a peculiaridade de nossas idéias reside sim na escatologia que se esconde por detrás de sua recepção, ou seja, nos motivos que levaram a apropriação de determinada doutrina estrangeira em nosso país. A História das Idéias é, portanto, a ferramenta que nos permite identificar a que fins as correntes do pensamento estrangeiras se desenvolveram em nosso país, além de conferir unidade aos diferentes e extrínsecos sistemas filosóficos desenvolvidos no Brasil.

II- CONTEXTO HISTÓRICO Em 1555, D. João III entrega o controle do sistema de ensino português à ordem dos jesuítas. Os inacianos nos duzentos anos ulteriores traçaram os rumos tomados pela cultura portuguesa, imperando de forma absoluta 5. O programa educacional jesuíta tinha como objetivo principal conter os avanços da Reforma, o que culminou em uma drástica ruptura entre a tradição humanista renascentista portuguesa, adormecidas pelos princípios da anacrônica Filosofia Escolástica. Tal feito afasta Portugal das verdadeiras diretrizes de sua história6. Esta cisão com a tradição portuguesa repercute, conseqüentemente, no sistema educacional colonial, que também ficara sob a responsabilidade dos inacianos. 5

Cf. COSTA, J. C. Contribuição à História das Idéias no Brasil, Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1967. p. 32. 6 Cf. COSTA, J. C. Contribuição à História das Idéias no Brasil, Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1967. p 23.

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A Companhia de Jesus imperou absoluta na península ibérica até a chegada da congregação oratoriana na primeira metade do século XVIII, apoiados por D. João V. Instalando em Portugal suas próprias escolas, os oratorianos substituem os já obsoletos livros empregados pelos jesuítas por obras mais recentes. Sendo que já a partir de 1730 começam a surgir as críticas à lógica Escolástica. . Em 1746 a obra o “Verdadeiro Método de Estudar”, de autoria do padre oratoriano Luis Antonio Verney, ganha grande repercussão em Portugal 7. Nesta obra, Verney crítica duramente o sistema pedagógico jesuíta fazendo defesa da filosofia cartesiana e do dito empirismo mitigado de Bacon e Hume. Em 1759, durante o governo de José I, o Ministro Pombal, inspirado nos escritos de Verney, dá início as suas reformas educacionais que tinham por objetivo substituir o modelo pedagógico jesuíta que, segundo ele, era a grande causa da estagnação mental portuguesa. Em outras palavras, Pombal, com suas reformas, visava adequar Portugal ao espírito moderno. Contudo suas idéias estavam ainda muito longe das que agitavam a Europa no período. Se por um lado Pombal introduzia a filosofia cartesiana e o empirismo inglês em seu modelo educacional, por outro censurava as obras de Spinosa, Hobbes, Voltaire, Diderot, entre outros. É certo que as reformas pombalinas culminaram em certos avanços no sistema educacional português, entretanto, no que tange a manutenção das políticas coloniais suas reformas foram desastrosas.

“Este ministro” diz Antonio Ribeiro Sanchez, “quis um impossível político; quis civilizar a nação e ao mesmo tempo fazê-la escrava: quis espalhar a luz das ciências filosóficas e o mesmo tempo elevar o poder real ao despotismo.8”

7

Cf. COSTA, J. C. Contribuição à História das Idéias no Brasil, Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1967. p. 47. 8 Apud. BRAGA, T, História da Universidade de Coimbra. Vol III, p. 569. COSTA, J. C. Contribuição à História das Idéias no Brasil, Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1967. p 57.

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Como nos diz Cruz e Costa, o grande paradoxo das reformas pombalinas reside em seu apelo à modernização e a ilustração associado, ao mesmo tempo, ao ideal de querer “conservar a nação um viveiro de eunucos intelectuais 9.” Embora posteriormente, no reinado de Maria I, tenha havido uma retaliação ante as reformas pombalinas, já não havia mais a possibilidade de retorno ao modelo educacional jesuíta. Os rebentos do programa de Pombal se encarregaram a não deixar que suas conquistas caíssem por terra. Sendo este novo período marcado por uma maior lucidez intelectual e pela simpatia por novas formas do pensar. É dentro deste contexto histórico que se insere a obra de Diogo Antônio Feijó.

III- DIOGO ANTONIO FEIJÓ E OS PRIMÓRDIOS DO KANTISMO NO BRASIL Em 1912, Eugênio Egas publicou a obra “Diogo Antonio Feijó”. Este livro, composto por dois volumes, consiste, além dos estudos de Egas, de alguns compêndios cuja autoria é atribuída ao próprio Regente do Império. Dentre estes escritos, dois em especial merecem nossa atenção, tendo em vista que se tratam dos mais antigos estudos conhecidos, produzido no Brasil, que adotam, explicitamente, princípios preconizados pela doutrina de Kant. Este fato passara despercebido até 1949, ano em que Miguel Reale trás novamente a tona estes escritos esquecidos pelos anais da história. Intrigado com a “redescoberta” de grandiosa importância do campo da História das Idéias no Brasil, Miguel Reale tratou logo de se certificar quanto à autenticidade dos documentos. Por conseguinte, ele verificou que Octávio Tarquínio de Sousa, eminente biógrafo de Feijó, tinha conhecimento de tais escritos. Usando as palavras do próprio historiador, “a inconfundível ortografia em que 9

Cf. COSTA, J. C. Contribuição à História das Idéias no Brasil, Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1967. p. 56.

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estão ambos escritos não merece deixar duvidas quanto a sua autoria 10”. A obra “Necrologia do Senador Diogo Antonio Feijó”, publicada por Mello de Morais em 1861 também faz uma menção a escritos que converge com a descrição da publicação do inicio do século passado, “um curso de filosofia racional e moral

também por um compêndio seu, extraído de autores notáveis e das doutrinas kantianas até então desconhecidas no local11”. A leitura dos escritos reeditados por Reale não nos deixa quaisquer dúvidas quanto a ambos estarem se referindo a um texto comum nas referências supramencionadas. Não satisfeito com as informações obtidas, Reale procurou o próprio Eugênio Egas a fim de encontrar uma prova cabal que atestasse a legitimidade dos compêndios atribuídos a Feijó.

Foi nessa oportunidade que fiquei sabendo que os referidos trabalhos de Filosofia haviam sido confiados a Eugênio Egas pelo Doutor Jorge Tibiriçá, antigo presidente do Estado de São Paulo. Tal informação foi-me confirmada por Dona Anita Tibiriçá, filha do antigo chefe do governo paulista, tendo ela esclarecido que um de seus antepassados, João Tibiriçá de Piratininga, havia sido efetivamente aluno do padre em Itu, dele recebendo os “cadernos de filosofia”, conservados como relíquia de família12.

Tendo em vista a dúvida quanto ao título geral do compêndio, Miguel Reale e Luís Washington Vita reeditaram os escritos de Egas sob o título “Cadernos de Filosofia”, pelo mesmo motivo acima apresentado. Provem desta reedição todos os subsídios utilizados para confecção do presente artigo.

10

Apud. SOUSA, O. T. Diogo Antônio Feijó. Rio de Janeiro, 1942, p. 29. FEIJÓ, D. A, Cadernos de Filosofia (Introdução e notas de Miguel Reale),Grijalbo, São Paulo, 1967, p. 29. 11 Apud. Escrita por XXX. Necrologia do Senador Diogo Antonio Feijó (publicada por Mello de Morais), Rio de Janeiro, 1861. p. 6. FEIJÓ, D. A, Cadernos de Filosofia (Introdução e notas de Miguel Reale),Grijalbo, São Paulo, 1967, p. 29. 12 FEIJÓ, D. A, Cadernos de Filosofia (Introdução e notas de Miguel Reale). Grijalbo, São Paulo, 1967, p. 10.

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Infelizmente Reale não pôde ter acesso aos escritos originais de Feijó, pois, segundo consta, foram destruídos em um incêndio. Portanto, tudo o que resta sobre os escritos de Feijó é a publicação de Egas. Não se sabe ao certo a que ponto vão as alterações por ele realizadas durante a edição. Mas o certo é que Egas contraria o plano do autor quanto à disposição dos capítulos. Como nos aponta Reale, a advertência de Feijó, extraída de seus escritos dedicados a Lógica, ao qual mostraremos na passagem a seguir, deixa evidente a anterioridade do capítulo referente às investigações metafísicas. “Os estados da alma relativos à verdade já

foram observados em Metafísica13”. Do mesmo modo, o antigo Integralista defende a tese de que os dois compêndios apresentados por Egas tratam-se na verdade de trabalho único. A meu ver tal ilação se faz perfeitamente plausível, tendo em vista que diversas questões tratadas nos capítulos referentes à Lógica e Metafísica são reiteradas nas páginas de Feijó dedicadas a Filosofia moral. No tocante ao período em que foram redigidos os compêndios, segundo evidências, deve ter ocorrido em algum momento entre os anos de 1818 e 1821, ou seja, durante os anos que Feijó residiu em Itu. Chegamos a esta conclusão tendo em vista que seus escritos consistiam em roteiros de aulas de Filosofia. É verdade que o futuro Regente do Império já lecionava desde 1808, todavia, foi apenas no período supramencionado que ele ministrou aulas sobre a disciplina. Quanto ao problema da autenticidade dos documentos, devemos lembrar que mesmo os críticos do estudo de Reale, no sentido pejorativo da palavra, não põem em duvida a legitimidade dos escritos divulgados por nosso jusfilosófo brasileiro. Estes se empenham sim em minimizar a importância dos “Cadernos de

Feijó”, alegando que suas reflexões não passam de noções obsoletas de racionalismo abstrato, sistema este que, aliás, o próprio Kant se empenhou em demolir. 13

FEIJÓ, D. A, Cadernos de Filosofia (Introdução e notas de Miguel Reale), Grijalbo, São Paulo, 1967, p. 116.

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Reale rebate alegando que jamais contestou que os escritos de Feijó continham noções, hoje superadas, acerca da doutrina de Kant, fato este facilmente justificável pela precariedade das fontes em que os precursores do kantismo no Brasil se valiam (abordaremos mais minuciosamente esta questão no decorrer do artigo). Por hora, devemos esclarecer que o que está em jogo aqui não é se Feijó conseguiu reproduzir fielmente o projeto original de Kant, o que seria praticamente impossível a alguém que recebeu toda sua formação em nosso país naquele período, visto que ainda começava a surgir os primeiros estudos sobre Kant fora da Alemanha. O que torna os escritos de Feijó tão especiais, assim como outros possíveis escritos que se perderam com o tempo, é o simples fato de estudiosos brasileiros, ainda em princípios do século XIX, adotarem, decididamente, o criticismo kantiano em nosso país14. Além de Martim Francisco, Diogo Antonio Feijó e Monte Alverne, várias fontes indicam que haviam outros disseminadores do kantismo em São Paulo no início do século XIX. Este é um dado considerável, tendo em vista o pequeno número de letrados e a ausência de centros universitários no país no período. Em contraponto, como nos aponta o historiador português Cabral de Moncada, o interesse real pela filosofia de Kant em Portugal se dá apenas em 1834, quando começa a florescer em seu país os ideais liberais 15. Até então os portugueses se valiam a esquemas da escolástica, do empirismo sensista e do racionalismo wolffiano. Lembrando que esta correlação apontada por Moncada entre Kant e o Liberalismo não é condição necessária, embora existam evidências que a importação do kantismo tanto no Brasil quanto em Portugal seja fruto deste 14

FEIJÓ, D. A, Cadernos de Filosofia (Introdução e notas de Miguel Reale), Grijalbo, São Paulo, 1967, p. 45. 15 Apud. MONCADA. C. de. Subsídios para uma História da Filosofia do Direito em Portugal, 2ª ed, Coimbra, 1938. FEIJÓ, D. A, Cadernos de Filosofia (Introdução e notas de Miguel Reale), Grijalbo, São Paulo, 1967, p. 22.

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casamento. O fato de o Brasil passar por este processo muito antes de Portugal nos induz a dizer que muito antes do ato formal da Proclamação da Independência já havia se iniciado em nosso país o processo de libertação ideológica ante a Metrópole. Sendo a busca de uma nova ordem política e jurídica o motivo da implantação da doutrina de Kant em nosso meio cultural. Embora Kant não seja propriamente um pensador liberal, suas idéias sobre o Direito e sobre e o estado, assim como sua teoria sobre a liberdade, desperta a simpatia dos liberais. Kant se empenhou contra as formas de inatismo, que segundo os racionalistas abstratos comanda nossas ideias. Kant proclama curiosamente o direito da liberdade como algo inato a nossa condição humana, adotando, portanto, uma postura comum a dos liberais. A influência de Kant em Feijó, portanto, não reside propriamente na influência do criticismo, mas sim nas suas reflexões desenvolvidas no plano ético e social, onde Kant sofre influência de Rosseau 16. Em outras palavras, Feijó chega a Kant por via liberal. Pela causa mesma Kant no século XIX é entendido como uma das grandes figuras do Liberalismo. É nítido que o conceito de liberdade adotado por Feijó em seus cadernos se vale do pensamento kantiano, sobretudo, no que tange a defesa da necessidade de uma harmonia entre liberdade individual e coletiva. Todo homem é, portanto, obrigado a respeitar este direito e não pode embaraçar o exercício de liberdade de outrem, senão quando injustamente atentar contra seus direitos. O direito de liberdade pode considerar-se como o mesmo direito de propriedade, pois a liberdade é uma propriedade pessoal, inata, essencial do homem17.

16

REALE, M, Filosofia em São Paulo. 2ª Ed ( restaurada e revisada). Grijalbo, São Paulo, 1976. p. 19. FEIJÓ, D. A, Cadernos de Filosofia (Introdução e notas de Miguel Reale), Grijalbo, São Paulo, 1967, p. 145. 17

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Devemos salientar que os estudos de Miguel Reale não nos possibilitam afirmar que Diogo Antonio Feijó seja o introdutor da doutrina de Kant no Brasil. Todavia, suas reflexões nos permitem chegar a conclusões esclarecedoras. Considerando que Feijó escreveu seus cadernos no final da década de 10 do século XIX, podemos descartar a hipótese de que a obra “Compêndio de Filosofia” de Monte Alverne tenha sido a precursora das diretrizes tomadas pela doutrina de Kant no Brasil, visto que sua obra data de 1833. Além de Alverne, há a hipótese de que Martim Francisco tenha escrito o primeiro estudo sobre Kant em nosso país. Respaldando esta hipótese, fontes indicam que Martim Francisco já ministrava aulas sobre Kant, em nosso país já em 1803, antes mesmo da morte do filósofo de Königsberg. Em um artigo publicado em 1922 seu neto, de mesmo nome, alegou ter recebido de Lúcio Campelo manuscritos de seu avô supostamente datados de 1808 ou 180918. Entretanto, só foram publicados alguns fragmentos destes escritos, que segundo consta, consistiam de oito densos cadernos. Lamentavelmente o documento nunca foi reproduzido na íntegra, caindo novamente no esquecimento. José Salgado Martins afirma, conforme o descoberto em suas pesquisas, que a doutrina de Kant também já era estudada no Rio Grande do Sul em 180319. Lembrando que Reale não desconsidera a possibilidade de Feijó ter sido influenciado por Martim Francisco. Indícios como a grafia atípica do nome Kant com a letra “c” pode ser a evidência de que Feijó tenha sido discípulo de Martim Francisco. Por outro lado, pode também indicar que ambos bebem de uma fonte comum, tese esta defendida por Miguel Reale.

18

Apud. Francisco. M. (III). Dum Manuscrito, Ver. Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, vol XXXI, Rio de Janeiro 1933-1934. FEIJÓ, D. A, Cadernos de Filosofia (Introdução e notas de Miguel Reale), Grijalbo, São Paulo, 1967, p. 16. 19 Apud MARTINS. S, Breve História das idéias no Rio Grande do Sul, Revista Brasileira de Filosofia, 1972, fasc. 87. p 325.

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Sabemos que o pensamento kantiano chega ao Brasil, inicialmente, por intermédio das interpretações produzidas pelos franceses. No caso especifico da obra de Feijó, Reale acredita haver fortes evidências que apontam para o fato de que seus escritos tomavam como base a obra “ Filosofia de Kant ou Princípios

Fundamentais da Filosofia Transcendental” de Charles Villers, publicado em francês em 1801. Este fato é confirmado por Laerte Ramos de Carvalho em sua obra “Feijó e o Kantismo” de 1952. O artigo “ Reise in Brasilien” produzido pelos estudiosos J. B. von Spix e C. F. P. Martius em 1823 na Alemanha, menciona a utilização dos escritos de Villers em 1818 em São Paulo, respaldando a afirmativa de Reale. o estudo de Filosofia, que antes era aqui, assim como na maioria das escolas brasileiras, ensinada por um livro antiquado, modelado pela teoria de Brucher, tomou outro rumo recentemente, desde que a filosofia de Kant se tornou acessível aos pensadores brasileiros, pela tradução de Villers20.

Quanto à citação acima Reale adverte que não se tratava de uma tradução da obra de Kant, mas sim uma interpretação da obra do filósofo alemão realizada por Villers. O Culturalista brasileiro também frisa que não há nada que nos permite concluir que Feijó tenha se valido apenas do estudo de Villers em seus escritos, lembrando os trabalhos de Degerando, Buhle e Madame de Stael que poderiam muito bem ter sido utilizados por Feijó, assim como pelos demais precursores da doutrina de Kant no país.

20

Apud. SPIX. J. B. von e MARTIUS. C. F. P. Viagem pelo Brasil. Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, 1939. FEIJÓ, D. A, Cadernos de Filosofia (Introdução e notas de Miguel Reale), Grijalbo, São Paulo, 1967. p. 20.

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CONCLUSÃO Percebemos, a partir do estudo de Miguel Reale, que os primeiros desenvolvimentos das idéias de Kant no Brasil datam do início do século XIX, período este em que ainda começavam a surgir os primeiros estudos em francês acerca da obra do filósofo de Königsberg. Como nos aponta Moncada, o kantismo no Brasil precedeu em algumas décadas a chegada desta doutrina na Metrópole. O significado desta afirmação é extremamente significativo, visto que temos aqui resquícios de autonomia intelectual em relação ao projeto ideológico da metrópole antes mesmo da vinda da família real para o Brasil. Todavia, mesmo diante de uma descoberta desta magnitude, os compêndios de História das Idéias ainda hoje, em sua maioria, insistem em dizer que os primeiros passos da emancipação cultural e intelectual do Brasil ante a antiga metrópole só se deram após o ato formal da independência em 1822. Este fato se explica pelo kantismo ter chegado a nosso país por intermédio dos Liberais. O não reconhecimento da importância dos Cadernos de Filosofia de Antônio Feijó se deve a disputas ideológicas decorrentes do espírito estreito da intelectualidade brasileira que insiste em não considerar as elucubrações desenvolvidas por estudiosos de outras orientações. Estes são movidos por paixões que os cegam inteiramente a realidade que escapa aos princípios preconizados em sua linha de pensamento, fugindo a quaisquer espécies de dialogo, transformando a intelectualidade

brasileira

em

um

arquipélago

repleto

de

intelectuais

ensimesmados. Movidos por interesses políticos se esquecem do princípio fundamental da filosofia “o amor a verdade”. Como já dizia Olavo Bilac em 1915,

“Sem ideal, não há nobreza de alma; sem nobreza de alma, não há desinteresse; sem desinteresse não há coesão; sem coesão, não há pátria”.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS COSTA, J. C. Contribuição à História das Idéias no Brasil, Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1967. FEIJÓ, D. A, Cadernos de Filosofia (Introdução e notas de Miguel Reale), Grijalbo, São Paulo, 1967. REALE, M, Filosofia em São Paulo. 2ª Ed (restaurada e revisada). Grijalbo, São Paulo, 1976. TOBIAS, J. A. História das Idéias no Brasil, EPU, São Paulo, 1987.

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ANGÚSTIA EM PERSONA, DE INGMAR BERGMAN: APONTAMENTOS KIERKEGAARDIANOS Alexandro F. Souza Mestre em Ciência da Religião/UFJF Doutorando em Ciência da Religião/UFJF alephsouza@gmail.com “Anjo ou animal, jamais o homem poderia sentir a angústia. Contudo, considerando que é uma síntese, pode senti-la e tanto mais intimamente a sente, mais aumenta a sua humana grandeza”. Soren Kierkegaard. O conceito de angústia, p. 157.

“A ansiedade que sentimos, todos os sonhos não realizados, a crueldade inexplicável, o medo da morte, a visão dolorosa da nossa condição terrestre desgastou nossa esperança de uma salvação divina. Os gritos de nossa dúvida contra a escuridão e o silêncio são uma prova terrível da nossa solidão e medo”. Persona, Ingmar Bergman

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Filme de 1966, com roteiro e direção do sueco Ingmar Bergmann [19182007], Persona, que no Brasil recebeu o título de Quando duas mulheres pecam, narra o relacionamento entre uma atriz, que recusa o contato com o mundo apesar de sua aparente saúde física e psíquica, e sua enfermeira. Depois de uma malograda apresentação de Electra, a atriz Elisabeth Vogler decide se internar no que parece ser uma clínica psiquiátrica. No entanto, como aparenta ser uma pessoa saudável que, deliberadamente se recusa a falar, a sua médica recomenda uma temporada de descanso e encarrega uma de suas enfermeiras, Alma, de cuidar da atriz. A atriz e sua enfermeira seguem para o destino escolhido e, durante a recuperação de Vogler, as duas acabam se aproximando, numa estranha cumplicidade onde uma parece confundir-se com a outra. Como toda obra de arte, o filme se abre a diversas possibilidades de interpretação. A mais imediata, sugerida talvez pelo título da obra1, encontra amparo na teoria psicológica de Carl Gustav Jung [1875-1961] e na sua teoria da persona que, segundo o autor suiço, “[...] representa um compromisso entre o indivíduo e a sociedade, acerca daquilo que 'alguém parece ser': nome, título, ocupação, isto ou aquilo [...]”2. O conceito de persona da psicologia junguiana se coaduna bem com aquilo que, queremos crer, é representado no filme, e o próprio Bergman admitia essa possibilidade de interpretação3. Como diz a médica à atriz Elisabeth Vogler, a questão do filme se resume àquilo que se é em sociedade e o que se é realmente, ou, em termos junguianos, “[a] persona é um complicado sistema de relação entre a consciência individual e a sociedade; é uma espécie de máscara destinada, por um lado, a produzir um determinado efeito sobre os outros e por outro lado, a ocultar a

1

Persona era o nome da máscara usada pelos atores no teatro grego. A palavra deriva-se do verbo “personare” (soar através de). 2 JUNG, Carl Gustav. O eu e o inconsciente, p. 32. 3 Perguntado em uma entrevista se lhe aprazia essa interpretação junguiana da sua obra, Bergman afirma: “Acho isto muito bem dito e é uma fórmula que se aplica bem, também, ao meu filme. Para mim, estes seres que primeiro trocavam suas máscaras e depois subitamente dividem a mesma máscara, era fascinante”. BERGMAN, Ingmar. In: O cinema segundo Bergman. BJÖRGMAN, Stig et alii, p. 164.

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verdadeira natureza do indivíduo”4. Segundo o pensamento junguiano, tal concessão à coletividade significa um auto-sacrifício, uma rejeição do si-mesmo (self) em favor de uma figura ideal advinda do exterior 5. O si-mesmo é mascarado em favor de expectativas alheias e se perde em sua individualidade. Ao falarmos em extravio da individualidade surge-nos, entretanto, um outro caminho também interessante de abordagem da obra de Ingmar Bergman em questão. Abandonando a trilha aberta pelo pensamento junguiano, podemos tentar uma uma interpretação de Persona a partir da filosofia de Soren Kierkegaard [18131855], mais notadamente a partir do seu conceito de angústia, explanado na obra de mesmo nome6.

A angústia segundo Kierkegaard Em O conceito de angústia, Kierkegaard define a angústia como a pura possibilidade da liberdade do indivíduo. O indivíduo é a relação entre alma e corpo. Relação essa orientada para a interioridade e que pode ser denominada de espírito. Entretanto, no mesmo momento em que se coloca como espírito, o indivíduo também se coloca como angústia, uma vez que descobre que toda a sua existência é um puro possível, absoluta liberdade que repousa sobre o Nada. Segundo Kierkegaard: A angústia pode ser comparada à vertigem. Quando o olhar imerge num abismo, existe uma vertigem que nos chega tanto do olhar como do abismo, visto que nos seria impossível deixar de o encarar. Esta é a angústia, vertigem da liberdade, que surge quando, ao desejar o espírito estabelecer a síntese, a liberdade imerge o olhar no abismo das suas possibilidades e agarra-se à finitude para não soçobrar.7

4

JUNG. Op. cit. p. 68. Ibidem, p. 69. 6 KIERKEGAARD, Soren. O conceito de angústia. 7 KIERKEGAARD. Op. cit., p. 66. 5

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Sem um sentido, a não ser o dado por si mesmo em sua total liberdade; sem um destino, a não ser o atribuído por si mesmo, o indivíduo descobre-se absolutamente livre para a sua própria realização; descobre que o seu “eu” não é dado, o que é dada é a pura possibilidade de realização desse “eu”. Sem ter onde apoiar-se, o indivíduo sente a angústia de estar entregue à sua própria responsabilidade. Como diz Gilles em sua História do existencialismo e da

fenomenologia, “[s]ó na medida em que for capaz de sofrer a prova desse abandono será [o indivíduo] existencialmente livre”8. Para Kierkegaard a angústia é ambígua, pois, ao mesmo tempo que abre as possibilidades para o indivíduo, mostra também que não há nenhuma garantia de realização de alguma dessas possibilidades. O indivíduo é convidado ao risco e, naturalmente sente o medo de abandonar o já conhecido, o familiar. Procurando escapar da pura possibilidade, pode o indivíduo mergulhar na imediaticidade, procurando assim mascarar a sua angústia. Em O conceito de angústia, Kierkegaard procura também apreender as formas de manifestação desse fenômeno. Para o autor dinamarquês, a angústia pode ser objetiva ou subjetiva. No primeiro caso é a angústia do espírito que sonha em ser livre, é o reflexo interior da liberdade como puro possível. Nas palavras de Kierkegaard: Em tal estado existe calma e descanso; porém existe, ao mesmo tempo, outra coisa que, entretanto, não é perturbação nem luta, porque não existe nada contra que lutar. O que existe então? Nada. Que efeito produz, porém, este nada? Este nada dá nascimento à angústia. [...]. Sonhador, o espírito projeta a sua própria realidade, que é um átimo, e a inocência vê sempre e sempre, diante de si, este nada.9

Já a angústia subjetiva é justamente a angústia da vertigem, o descobrir-se lançado em meio à pura possibilidade. Segundo Giles, “[a] condição dessa 8 9

GILES, Thomas Ransom. História do existencialismo e da fenomenologia, p. 44. KIERKEGAARD. Op. cit., p. 45.

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potencialidade indeterminada é a angústia. O indivíduo sente a precariedade da sua situação, mas é a própria liberdade que o impede de escapar da angústia” 10. Essa angústia pode ser encontrada sob a forma da angústia do Mal ou da angústia do Bem, está última designada também como o demoníaco. A angústia subjetiva mostra-se no momento em que o espírito mergulha no abismo da liberdade e descobre-se como pura possibilidade. Nas palavras de Kierkegaard, em tal momento “[...] tudo se modificou, e quando a liberdade se levanta, acha-se culpada” 11. A angústia do Mal, uma das formas da angústia subjetiva caracteriza-se como a negação desse momento em que o Indivíduo descobre-se como pura possibilidade. A outra forma da angústia subjetiva, a angústia do Bem, ou o demoníaco, caracteriza-se como uma escolha da liberdade pelo fechamento em si mesma, uma escolha pela não-liberdade. Segundo Kierkegaard, “[n]a inocência, a liberdade não era estabelecida como tal e o seu possível equivalia no indivíduo à angústia. A relação inverte-se no demoníaco. A liberdade coloca-se, aqui, como não-liberdade, e está, efetivamente, perdida, e o seu possível equivale outra vez à angústia” 12. A angústia, essa constante e amarga companheira é, segundo Kierkegaard, insuperável. O indivíduo está sempre diante da realização ou não de suas possibilidades. Como bem lembra Giles, para Kierkegaard, “[a] angústia é a expressão de uma perfeição da natureza humana, pois é só através dela que o homem poderá elevar-se à existência autêntica”13.

10

GILES. Op. cit., p. 44. KIERKEGAARD.Op. cit., p. 66. 12 Ibidem, p. 26. 13 GILES. Op. cit., p. 44. 11

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A angústia em Persona

- A angústia na a-espiritualidade: Alma O indivíduo é uma síntese entre alma e corpo, síntese essa suportada pelo espírito. Tal espírito tende a tornar-se mais forte com o aprofundar da relação, com o voltar-se para o interior de si mesmo e isso se traduz na busca de uma existência autêntica à despeito do risco de sua não realização. Aqui a angústia toma parte como esse convite à realização de si mesmo, descortinando para o indivíduo as suas possibilidades. O oposto de tal atitude é a a-espiritualidade, onde o indivíduo ainda não realizou o salto qualitativo e sua liberdade é apenas um mero devaneio. Para Kierkegaard, “[a]inda que na a-espiritualidade a angústia, do mesmo modo que o espírito, seja abolida, permanece aí como expectativa” 14. Ao tocar nesse ponto do pensamento

kierkegaardiano,

nossa

intenção

é

procurar

observá-lo

no

comportamento de uma das personagens da obra de Bergman. Alma, a jovem enfermeira sente que o seu caminho já está traçado: ela se casará com Karl-Henrik, terá filhos e continuará com o seu trabalho de enfermeira, uma vocação “herdada” de família. Como ela própria afirma, “[...] tudo isto está predestinado [...]”. Em tal personagem a liberdade não se efetiva e seu espírito vive a sonhar com outras possibilidades de realização. Tais divagações aumentam com o contato com Elisabeth Vogler; para Alma, a atriz “[...] pode fazer o que quiser [...]”, enquanto ela não tem o que pensar. Assim, no contato com Elisabeth Vogler, Alma sente que seu espírito é pequeno demais para dar conta do problema da atriz que, como veremos mais adiante, é justamente o oposto da a-espiritualidade de Alma. Em suas conversas com a atriz, a enfermeira deixa transparecer sua ingenuidade e uma certa falta de sentido para a sua existência, que se resume a incorporar a si atitudes alheias. Dessa forma Alma toma parte numa orgia à beira-mar e assume, também, atitudes de Elisabeth. Pode-se, nesse sentido, falar em uma persona, no 14

KIERKEGAARD. Op. cit., p. 101.

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mesmo sentido junguiano de uma máscara utilizada em detrimento de sua própria autenticidade. Essa afirmação se coaduna com o pensamento de Kierkegaard, pois, como diz o autor em O conceito de angústia, o indivíduo na a-espiritualidade pode assumir atitudes alheias, manifestando uma certa interioridade que, na verdade, não possui: O homem a-espiritual pode afirmar completamente as mesmas coisas que o espírito mais bem dotado, apenas com a diferença de que não as afirma em razão do espírito. A orientação a-espiritual transforma o homem numa máquina falante, que pode aprender de cor seja uma ladainha filosófica, seja qualquer profissão de fé ou discurso demagógico.15

Em sua a-espiritualidade, Alma presente que algo não está bem, que a sua existência pode se tornar algo maior do que é no momento. Assim, ao mesmo tempo em que afirma ser preguiçosa demais para mudar, afirma também que isso a faz sentir-se culpada, que isso a angustia. Ao ler a carta de Elisabeth Vogler, Alma se reconhece na existência um tanto ingênua descrita pelo olhar mordaz da atriz, o que a leva a iniciar um processo de desagregação de seu “estilo” existencial, processo esse que poderia levá-la à afirmação de si como indivíduo autêntico, mas que parece redundar no mais absoluto fracasso quando, no confronto com Elisabeth, ela não consegue mais articular-se de maneira coerente.

A angústia do Bem: Elizabeth Vogler

No outro extremo temos a atriz Elisabeth Vogler. Bonita, bem sucedida nos palcos e na vida pessoal, nada parece lhe faltar, como bem lembra a enfermeira Alma no início do filme. Entretanto, apesar disso, ela se recusa a manter contato com o mundo, decidindo fechar-se em si mesma. “Eu viveria assim para sempre”, 15

Ibidem, p. 99.

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diz ela, “em silêncio, vivendo uma vida reclusa, com poucas necessidades, sentindo minha alma finalmente se acalmar”. Pode-se afirmar que antes do episódio do palco, Elisabeth e Alma eram bem parecidas. Como Alma, Elisabeth levava uma existência sem um sentido, sem a busca de sua própria autenticidade. Sua profissão é uma metáfora de sua própria vida, máscaras que vêm e vão ao sabor do instante, sem nenhum engajamento profundo. Mas, algo no palco lhe revela a insensatez de sua vida e, angustiada, a atriz sente a precariedade de sua existência. Esse algo que abre o reino da pura possibilidade para Elisabeth é o instante, um “piscar de olhos” que desvela os fundamentos da existência humana. Esse instante experimentado por Elisabeth, segundo Giles: [É] o ponto de ligação entre o eterno e o temporal. É a forma do tempo que toca a eternidade. No instante o indivíduo faz uma opção entre o estádio estético e o ético, opção que é a plenitude do presente e o prognóstico do futuro, objeto de um futuro que volta como passado. Trata-se de pensar o instante, permanecendo ao mesmo tempo no interior do devir, pois o paradoxo da existência consiste em penetrar na existência consciente de estar bem além dela.16

O instante, esse momento em que o temporal e o eterno se tocam é também um momento de vertigem do espírito, momento em que o indivíduo é convocado a uma existência autêntica que pode ou não ser aceita. Elisabeth Vogler opta por viver na imediaticidade, num estranho jogo de cena onde a sua liberdade deseja fechar-se como não-liberdade. De maneira livre, a atriz recusa o salto para uma existência autêntica, representado na película pelo seu mutismo e pela recusa das responsabilidades de esposa e mãe.

Em nossa tentativa de analisar a obra de Bergman a partir do pensamento 16

GILES. Op. cit., p. 50.

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kierkegaardiano, poderíamos dizer que Elisabeth Vogler apresenta a angústia do Bem, ou seja, como espírito ela nega as suas possibilidades. Essa manifestação da angústia é denominada por Kierkegaard de o demoníaco e pode manifestar-se como o hermetismo, tal como apresentado por Elisabeth Vogler: O demoníaco constitui a não-liberdade que se deseja fechar sobre si mesma. Ato impossível, visto que a não-liberdade será sempre conservar uma relação que permanece ainda quando pareça inteiramente desaparecida, e a angústia mostra-se a partir do momento em que haja contato.17

A liberdade, que é sempre comunicação e comércio com o mundo torna-se mutismo e negação da comunicação; negação essa que é, mais uma vez, angústia. E essa é justamente a atitude de Elisabeth Vogler, o fechamento em si mesma, negação do contato com o mundo e negação de sua própria liberdade. Porém, em seu exílio de si mesma, Elisabeth é constantemente “invadida” pela realidade, seja através de uma música no rádio, seja através das imagens da TV, onde um monge põe fogo em seu próprio corpo18.

Conclusão: Podemos, então, traçar um retrato esquemático da angústia em Persona. Num extremo encontramos Alma e seu estado de a-espiritualiade e, no outro, Elisabeth e sua recusa da liberdade. Em comum, as duas personagens possuem a angústia, comum a todos os seres humanos, mas que na especificidade de Persona, é uma angústia que leva uma a invejar a própria condição da outra e vice-e-versa. Alma, em sua angústia, tateia um sentido para sua existência, encontrando em 17

KIERKEGAARD. Op. cit., p. 127. O corpo que Elisabeth vê incinerar-se é do monge budista Thich Quang Duc, nascido em 1897, que se sacrificou até a morte numa rua movimentada de Saigon, em 11 de junho de 1963. Enquanto seu corpo ardia sob as chamas, o monge manteve-se completamente imóvel. Não gritou, nem sequer fez um pequeno ruído. Seu ato foi uma forma de protesto contra a perseguição da elite católica vietnamita ao budismo. 18

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Elisabeth uma espécie de modelo a ser invejado. Por sua vez, Elisabeth recusa a sua liberdade e inveja a “existência inocente” de Alma. Dessa forma, uma deseja “trocar” de persona com a outra ou, como na atitude vampiresca de Elisabeth, uma deseja “sugar” o ser da outra, fugindo assim às suas próprias condições. Assim vemos as duas “soarem” através de suas próprias inautenticidades, uma buscando refugiar-se na máscara alheia em detrimento de suas próprias individualidades. Em ambos os caso o que temos é o fracasso: em sua tentativa de imitação de Elisabeth, Alma acaba colocando a sua própria existência em risco, representada pela desagregação da linguagem e incapacidade de expressar seus pensamentos de maneira racional. Elisabeth, por sua vez, retomará suas atividades no palco, do teatro e da existência, continuando a representar um papel e negando a sua própria liberdade, O resultado de tais atitudes em ambas termina num círculo vicioso, mais uma vez angústia, essa amarga e fiel companheira que está sempre a lembrar o indivíduo de sua vocação para a autenticidade.

Referências Bibliográficas: BERGMAN, Ingmar. Persona. Quando duas mulheres pecam. Versátil Seleções, 2006 [1966], 84”, DVD. BJORGMAN, Stik et alii. O cinema segundo Bergman. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978. GILES,

Thomas

Ransom.

História

do

existencialismo

e

da

fenomenologia. São Paulo: EPU, 1975. JUNG, Carl Gustav. O eu e o inconsciente. Petrópolis: Vozes, 1978. KIERKEGAARD, Soren. O conceito de angústia. São Paulo: Hemus, 1968.

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ROSENBLATT, Helena (ed.). The Cambridge Companion to Constant. New York: Cambridge University Press 2009, 416 pág.

Marco Antonio Barroso Mestre em Ciência da Religião/PPCIR-UFJF, Doutorando em Ciência da Religião/PPCIR-UFJF

Quando procuramos nas mais conhecidas obras de história da filosofia, dificilmente encontramos o nome de Benjamin Constant de Rebecque (1767-1830). No Brasil o nome deste autor se encontra, quase exclusivamente, ligado às questões do pensamento político – o que não é para menos, uma vez que sua obra influenciou decisivamente nosso destino histórico. Durante algum tempo a produção intelectual rebecquiniana caiu no quase total esquecimento; todavia, um movimento de redescoberta desta obra vem se realizando nos últimos anos nos Estados Unidos, na França, e principalmente na Suíça (terra natal do pensador). Segundo acentua Ricardo Vélez Rodríguez, um dos principais estudiosos do pensamento político de Constant, no Brasil, “temas como a representação, o controle moral do poder, a limitação da soberania popular, a monarquia como poder neutro, os direitos inalienáveis do cidadão à vida, à liberdade e às posses, o sentido da moderna democracia foram objeto de análise do pensador francês. [...]. As suas teses continuam tendo rara atualidade, conforme frisa um de seus mais

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importantes estudiosos contemporâneos.”1 Benjamin é notadamente um liberal, que dedicou grande parte de sua vida à ação pública e aos escritos sobre a representatividade, enfatizando a liberdade como bem maior da humanidade. Ao contrario do que se possa imaginar, a obra de Constant de Rebecque não se resume ao pensamento político. Nesta retomada da obra de Rebecque, outras facetas do autor também vem aparecendo. Por exemplo, sua obra literária

Adolphe, que nos anos 90 teve releitura em dois filmes. A respeito da vertente literária da obra rebecquiniana, frisa o historiador da arte, Arnold Hauser, que foram Constant de Rebecque e Mme. de Staël os autores mais criativos do romantismo literário francês, à revelia de Napoleão. Embora não fosse um filósofo, pelo menos não no sentido ortodoxo do termo, podemos encontrar em toda obra rebecquiniana um fundo comum – um esforço racional para explicar a realidade humana, levando em conta toda sua complexidade. Dentro da vasta obra deixada por Constant de Rebecque, encontramos livros que vão da teoria política à literatura, passando pela filosofia e história da religião. Destacando-se, por exemplo, os livros Principes de politique, manancial de reposição sobre as teorias da representatividade; a narrativa, já citada,

Adolphe, obra clássica do romantismo psicológico francês; ou, o seu De la religion, aclamado na contemporaneidade por fenomenólogos ou cientistas da religião, tais como van der Leew ou Michael Meslin. Como mostra deste novo movimento em torno ao pensamento de Constant de Rebecque, temos o recente livro The Cambridge Companion to

Constant, organizado e editado pela professora Helena Rosenblatt (do History at Hunter College and the Graduate Center of the City University of New York ), que se apresenta na forma de uma coletânea de ensaios críticos, sobre a vida e a obra do autor em questão. Os presentes textos foram elaborados por algumas das 1

Ricardo VELÉZ RODRÍGUEZ. O liberalismo francês – a tradição doutrinaria e sua influência no Brasil. Juiz de Fora, 2002, p.53. disponível em: www.institutodehumanidades.com.br

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principais autoridades hodiernas na interpretação do pensamento do autor ao qual se dedica a coletânea. Um verdadeiro painel internacional de pesquisadores, composto por norte-americanos, ingleses, franceses e um autor italiano – o que demonstra a força com que vem sendo retomada a meditação de Benjamin Constant em paragens estrangeiras. O livro é composto de três partes, que convergem sobre os principais campos temáticos desenvolvidos ao longo das obras escritas pelo autor ao longo de sua vida. Somam-se a estas partes introdução e conclusão. Nem todos os ensaios são originais, sendo, na verdade, a maioria deles capítulos de outras obras, dedicadas parcial ou integramente ao pensamento de Constant de Rebecque. A introdução é escrita por Dennis Wood, considerado pela crítica especializada como um dos mais importantes biógrafos de Constant na contemporaneidade, sendo este o autor da biografia crítica Benjamin Constant: A

Biography (1993). Na introdução, Wood, traça os dados biográficos do autor francosuíço, ligando-os ao desenvolvimento de sua vida política e intelectual. A escrita é conduzida de forma clara e profunda, possibilitando ao leitor perceber a estreita ligação entre as diversas dimensões que compõe o caráter de Benjamin Constant de Rebecque, homem de vida conturbada, mas de intelecto robusto e privilegiado. A primeira seção do volume denomina-se “The Political Thinker and Actor”, é a peça mais substancial, em matéria de número de páginas, que compõe o livro; isto se dá, com certeza, porque, como muito bem acentua seu título, é nela que encontraremos a repercussão da vida e escritos políticos de Constant – que possui grande apelo nos meios acadêmicos em geral, mas principalmente entre os norteamericanos. Aqui se encontra o ensaio de Marcel Gauchet, “Liberalism’s Lucid Illusion”, que foi publicado originalmente em francês no livro De la liberté chez les

Modernes, (Paris: Livres de Poche, 1980); em seguida, temos “The Liberty to Denounce: Ancient and Modern” de Stephen Holmes, em que o autor retoma a

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meditação de Constant sobre a liberdade dos modernos comparada a dos antigos, e a influência que ela teve sobre a formatação da compreensão do direito constitucional moderno, reflexão rebecquiniana extremamente cara aos povos de língua inglesa, tal como acentua a editora da obra em apreço (Cf. p.xi). Na mesma trilha do ensaio anterior, temos o professor inglês Jeremy Jennings, “Constant’s Idea of Modern Liberty”, que faz a análise da atualidade do texto Da liberdade dos

modernos compara aquela dos antigos. Os outros três ensaios subseqüentes situam a reflexão de Constant no seio do liberalismo de seu próprio tempo, principalmente através de sua atuação prática no senário francês dos períodos pós-revolucionários e da restauração, são eles: “Benjamin Constant and the Terror” do pesquisador italiano Stefano de Luca, “Constant’s Thought on Slavery and Empire” de Jennifer Pitts, e “Benjamin Constant as a Second Restoration Politician” do canadense Robert Alexander. A segunda seção (The Psychologist and Critic) compõe-se de quatro ensaios, que procuram focalizar a faceta de Constant como psicólogo e analista social. De modo multidisciplinar são abordados temas nos campos da literatura, filosofia da história e psicologia. No primeiro ensaio Steven Vincent, em “Constant and Women”, analisa, através dos escritos autobiográficos de Constant, a conturbada relação do autor com o gênero feminino e a contribuição daquelas para a forte construção intelectual do mesmo, mas, ao mesmo tempo, para sua fraqueza de caráter. “Individualism and Individuality in Constant”, de Gerald Izenberg, relata a contribuição da idéia romântica de individualidade para a construção do pensamento político de Rebecque. Em seu ensaio “Literature and Politics in Constant”, Patrick Coleman cria uma ponte interpretativa acerca da produção literária, propriamente dita, do pensador franco-suíço e sua produção política. E no ultimo ensaio da segunda seção, “The Theory of the Perfectibility of the Human Race”, Etienne Hofmann, através de uma pesquisa histórica e filosófica, analisa o conceito de perfectibilidade, chave para a compreensão das idéias de verdade, cogitationes.org

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política e religião na obra do autor. Por fim, na terceira e ultima seção do livro ora apresentado, encontramos aquela parte da meditação de Constant de Rebecque, que fora por muito tempo deixada de lado – muito provavelmente, devido à secularização e ao ateísmo em que se fechou o mundo acadêmico francês, entre os fins do século XIX e meados do século XX, que tornou a religião subproduto de outras formas de representação social. Falamos, pois, do Constant de Rebecque que procura, através da crítica e da história das religiões, construir uma filosofia da religião que se sustenta no sentimento religioso e que tem como seu contraponto, e ao mesmo tempo seu complemento, as religiões positivas. Em “The Analyst and Historian of Religion” temos a participação daquele que talvez seja mais completo interprete vivo da obra rebecquiniana: Tzvetan Todorov. No ensaio “Religion According to Constant”, ressalta a originalidade e a atualidade da obra prima, ainda muito desconhecida, à qual Constant se dedicou por toda sua vida, De la religion considerée dans sa

sources, ses formes et ses developpements; em sua analise, Todorov, observa a citada obra como sendo uma daquelas que dá origem à “antropologia da religião” – assim como van der Leew já havia destacado, usando a nomenclatura mais apropriada de fenomenologia da religião, e aproximando a importância de De La

religion àquela de Über die Religion de Schleiermacher. Já Bryan Garsten, “Constant on the Religious Spirit of Liberalism,” destaca a ligação entre a postura liberal de Rebecque e seu posicionamento diante das religiões; aponta a defesa de uma postura neutra do Estado frente à diversidade religiosa, o anti-clericalismo e o caráter privado do sentimento religioso, tal como formulado por Constant de Rebecque. Para finalizar a última seção, Laurence Dickey, procura demonstrar com o pensamento do autor franco-suíço está relacionado à longa tradição filosófica teísta, isto em “Constant and Religion: ‘Theism Descends from Heaven to Earth’.”

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Como conclusão do volume, Rosenblatt, destaca a recepção das teorias de Benjamin Constant de Rebecque, tanto nos E.U.A quanto na França, destacando a multiplicidade de interpretações que foram dadas a elas. A editora também explana sobre a reputação póstuma do autor, sobre o quase esquecimento em que suas idéias caíram e sobre a retomada, que vem acontecendo nos últimos anos, do pensamento daquele que foi um dos mais importantes teóricos franceses do período napoleônico. A conclusão que se chama “Eclipses and Revivals: Constant’s Reception in France and America 1830–2007” foi publicada originalmente por Rosenblatt em seu livro Liberal Values: Benjamin Constant and the Politics of

Religion (Cambridge University Press, 2008). Apresentado o conteúdo do livro The Cambridge companion to Constant, acreditamos que ele possa ser de grande utilidade, tanto para aqueles que pretendam aprofundar seus estudos sobre Benjamin Constant de Rebecque quanto para aqueles que, já possuindo certa bagagem acadêmica ou cultural, queiram se iniciar nestes estudos – isto porque, a obra em questão apresenta um panorama geral dos assuntos que formam léxico rebecquiniano. Contudo, por serem escritos por especialistas do assunto, os ensaios aprofundam de forma enriquecedora as temáticas às quais são dedicados – o que possivelmente atrapalharia um aluno iniciante em assuntos acadêmicos, ou sem o resguardo cultural que é demandado pelo texto.

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KROKER, Arthur & WEINSTEIN, Michael A., “Data Trash: The Theory of the Virtual Class”, New York, St. Martin’s Press, 1994, 165 pág. Ronaldo Pimentel Licenciado e Bacharel em Filosofia – UFJF Mestre em Lógica e Filosofia da Ciência – UFMG pimentelrp@yahoo.com.br

Data Trash é um livro que investiga o fetichismo por trás da realidade virtual. O que leva um casal de adolescentes a postarem para o mundo virtual cenas de sexo no TwitCam? O que leva a uma mulher traída a postar o knockout dado na amante do marido no YouTube? O que leva as pessoas a consumirem tecnologia? Entre outras barbaridades comuns no mundo virtual, o que está por trás de atos como esses é o desejo de virtualização, aquilo que sustenta a cultura digital.

Data Trash é um livro de teoria crítica sobre a cultura digital que segue a linha nietzschiana de pensamento. Aqui, Nietzsche tem um netbook e um modem. Nietzsche pensava que o ideal ascético retirava o homem do mundo em que vive, negando a vida em prol de algo que nem se sabe se existe como a vida eterna fora do mundo. Na verdade, o ideal ascético é uma das utilidades da vontade de potência. Se não podemos realizar os nossos desejos aqui nesse mundo trágico que ao mesmo tempo nos dá prazer e dor, então projetamos a existência de um mundo além através da vontade de potência, vivemos a ascese moral nesse mundo cogitationes.org

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negando todos os prazeres da carne. Matando-nos, fazemos nossas malas e nos mudamos para o mundo imaginário do além-vida. O mesmo acontece na era digital em Data Trash. A vontade de potência aqui é isomorfa ao desejo de virtualização. A frase da capa nos diz: “a cheirar as flores virtuais e a contar os mortos por atropelamento da supervia digital”. Os mortos são aqueles que se matam em vida para viver o ideal ascético proporcionado pela realidade virtual. A carne dos mortos, o que tem de real, é aquilo que faz o asfalto do caminho que leva a todos para dentro da realidade virtual, o paraíso do qual os histéricos partidários da experiência telemática nunca querem sair. O mundo virtual é uma espécie de mundo inexistente, produto de um emaranhado de fibra ótica e impulsos elétricos. O mundo virtual está devidamente armazenado em bancos de dados espalhados pelo mundo. O mundo digital progride no estado da arte de designers, computação e de efeitos psicológicos feitos para nos determos cada vez mais dentro dessa realidade. O papel do mundo virtual é proporcionar uma experiência, a experiência telemática do corpo, um corpo sem corpo que pode realizar tudo o que quiser no mundo virtual. Lá a pessoa pode ter prazeres que nunca teria na realidade, pode ter milhares de amigos que nunca irá conhecer na vida real. Sexo sem contato... Redes de amigos... Pseudônimos... Plataforma Moodle... Wikipedia... Na verdade, a pessoa pode morrer em vida, desde que continuem vivas as suas experiências do corpo telemático. A realidade virtual é o software. O nosso corpo, a nossa vida comum, é o

hardware. Curiosamente, o software nega a existência do hardware nesse caso, matando-o metaforicamente. Assim como o padre asceta, o tecnocrata digital é o responsável por nos deter dentro do mundo digital. Existem dois tipos de tecnocratas digitais. Os visionários que fazem o prospecto daquilo “que podem ganhar” com a realidade virtual de modo a nos deter cada vez mais dentro dessa realidade em prol de “um sistema operacional amigável” ou de uma rede social qualquer e os cientistas que

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criam os mecanismos para a sustentação de toda a realidade virtual, são aqueles que fazem a manutenção da supervia digital. Bill Gates, Steve Jobs, todos vendem uma ideologia, a tecnotopia: compre o novo Windows, o novo pacote Office, o novo

Mac Book ou o iPhone. Ou compre ou não terá acesso à realidade virtual. Os tecnocratas detêm a ideologia: a tecnotopia. Os tecnocratas são os detentores do poder hoje porque hoje tudo é informação. A informação está armazenada em algum data wirehouse da Sun Micro

Systems, ou em algum Mac Book, ou foi processada no pacote Office ou manipulada por um banco de dados criado por algum pacote de desenvolvimento da Embarcadero Technologies, etc. Deter o conhecimento tecnológico para o lucro? Não. Porque dinheiro é apenas mais um bit num campo de banco de dados. A supervia digital é como se fosse uma estrada. Tomamos uma estrada porque estamos interessados em ir para algum lugar, o mesmo acontecendo com quem entra na supervia digital. O endereço é a realidade virtual que não está em lugar nenhum, é apenas produto de um circuito elétrico comandado pelo tecnocrata. Aqueles que entram na supervia digital pagam o pedágio ao tecnocrata, são atropelados e mortos, da sua carne é feito o asfalto que leva à realidade virtual. Tomamos o rumo da realidade virtual pela supervia digital e nesse momento, negamos a nossa existência enquanto seres reais e podemos ser o que quisermos dentro do mundo digital. Por exemplo, o pedófilo pode ser a criança mais tenra. Lá, o pedófilo mata a sua realidade de um adulto traumatizado e renasce dentro da experiência do corpo telemático da criança sem traumas. Tudo devidamente sustentado pelo desejo de virtualização, pela experiência telemática, pela tecnotopia. A tecnotopia vende a idéia de que existe uma grande comunidade virtual onde todos se comunicam não importa onde estejam. Nessa comunidade virtual, existem várias possibilidades de interações sociais virtuais. Há comunidades de

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desenvolvimento virtuais, etc. O que acontece aqui é que a pessoa pode ter várias dessas experiências virtuais, mas pode ser que na realidade da pessoa seja totalmente antissocial. Portanto, a tecnotopia vende a possibilidade de alguém ser algo que não condiz com a sua realidade, e, portanto, não muda em nada a sua realidade. A tecnotopia transforma as pessoas em esquizóides, vivem na borda de um mundo irreal e de um mundo real que estão a negar a todo momento. E pagam ao tecnocrata para isso. A tecnotopia é contraditória. Tudo resulta em poder para o tecnocrata enquanto que alguém tem uma experiência telemática ilusória. Por trás da tecnotopia estão os ansiosos pela experiência telemática que não aceitam nenhum tipo de crítica, ao mesmo tempo em que compram todas as idéias vindas dos tecnocratas que sustentam a realidade virtual. A idéia é adaptar-se para a realidade virtual e tornar-se um consumidor ávido dessa realidade. Morre-se numa supervia digital que não existe, seduzido por uma elite que detém a informação. Tudo que é real degrada-se perante a tecnotopia. Uma vez dentro das experiências telemáticas proporcionadas pela realidade virtual, não há mais sentido em realizar os desejos sexuais mais infantis no mundo real. Tudo está a um clique. Tudo é infantilizado para sermos pegos pelos desejos mais infantis. Não há, para a tecnotopia, fronteiras internacionais. A tecnotopia instalou a economia virtual, o capitalismo a toda parte, o “capitalismo da Nintendo” em que os mecanismos perversos do capitalismo real são mapeados em sistemas capitalistas irreais do mundo virtual. Pague com o seu cartão Visa para ter acesso à determinada informação ou realização do desejo ou não entrará na comunidade. Tudo roda sobre o software do capitalismo virtual. Uma vez sobre o capitalismo virtual, nenhum valor cultural é mantido, tudo é recombinado, implementado e criptografado. Análises mais profundas sobre a economia virtual podem ser encontradas no livro.

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O objetivo da tecnotopia é seduzir. Esse processo ocorre pelas imagens. As imagens não possuem um valor artístico nesse caso. Elas apenas são propagandas, para nos tomar por aspectos emocionais. Cada imagem é um link que nos leva para dentro da realidade virtual. Qualquer coisa que venha a ser representada é liquidificada em códigos, em rotinas de programação úteis para nos direcionar ao caminho do pedágio do tecnocrata. O livro termina com uma reflexão sobre história e a realidade virtual. A história é um arquivo de dados virtual onde estão contidos os que foram seduzidos pela experiência telemática. Nesse caso, a história é uma grande experiência telemática. O corpo é capaz de ser recombinado através de códigos dentro dessa história, recortado, copiado e colado. Na realidade, todos estão mortos (metaforicamente). Porém, na realidade virtual, todos podem estar vivos. Tudo acontece como se fosse na atualidade. No arquivo da história virtual, não há tempo, já que o que está acontecendo na realidade virtual pode ser reprogramado e recombinado infinitas vezes para acontecer de novo e do modo como se quer que aconteça. Isso porque uma história virtual nunca existiu, assim como uma realidade virtual nunca existiu. Porém, o desenvolvimento das tecnologias e o poder sedutor da tecnotopia geram um “fim da história” expresso numa grande realidade virtual atemporal, reprogramável pelo tecnocrata. Claro, isso é apenas um cenário filosófico, mas que nos chama a atenção para lançarmos um olhar crítico para o que está acontecendo à nossa volta em relação às barbaridades on-line que reverberam em nosso mundo real. Data Trash é uma leitura obrigatória para filósofos, comunicadores e educadores ou para qualquer um que lida com as tecnologias contemporâneas.

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