Os Morangos Silvestres de Ingmar Bergman
por Lincoln Secco * A filmografia de Ingmar Bergman pode ser vista a partir de três dilemas: a infância, o amor e a história. Dos três elementos, o terceiro é o menos visível. O primeiro foi o mais explorado de maneira consciente. O segundo poderia ser definido mais como a falta de amor ou as sucessivas tentativas de conquistá-lo. Bem, é sob esta ótica que se vai ler a obra de Bergman neste artigo. Não toda ela, mas especialmente seu filme Morangos Silvestres (Smultronstället, 1957). Este filme ajunta a totalidade da problemática bergmaniana. Desde o problema da infância, do amor e da história, até o de Deus. Tema tão presente em o Sétimo Selo (Det Sjunde Inseglet, 1956) e que retorna em Fanny e Alexander (Fanny Och Alexander, 1982). História Já no início dos anos 60 Jörn Donner tratou do substrato cultural, histórico e político dos filmes de Ingmar Bergman. Seus temas não poderiam ser tratados numa outra época ou numa outra sociedade. Em primeiro lugar pela própria incapacidade do diretor adaptar-se a outra realidade. Liv Ulmann conta em seu livro Mutações, a estranheza dela mesma e também de Bergman em relação ao comportamento norte-americano (Liv Ulmann foi esposa de Bergman e uma de suas maiores atrizes, ao lado de Ingrid Thulin e Bibi Anderson). Em segundo lugar, o cinema é ao mesmo tempo arte e indústria, e em nenhum lugar fora da Europa Ocidental e, talvez, especialmente fora da Suécia, um diretor poderia contar, inicialmente, com a dependência da burocracia estatal e com a independência do imediatismo do mercado. A Suécia do pós-segunda guerra estava dividida entre o projeto de construção do seu Welfare State e a culpa diante do silêncio e da "neutralidade" de muitos diante do nazismo. Também não se explicaria o peso e a densidade dos diálogos na obra bergmaniana sem a tradição teatral sueca e nórdica em geral, de Strindberg ou Ibsen, e sem a tradição cinematográfica de Viktor Sjöström, por exemplo. A produção de uma sociedade avançada, no aspecto material, permitiu a concentração incisiva nos problemas mais angustiantes e existenciais do homem moderno. Entretanto, a história só nos importa na medida em que é filtrada por indivíduos. Para Bergman, esses indivíduos não são alegorias, mas símbolos, encarnações concretas de situações históricas de vida e até de classe. Suas anotações prévias aos textos que serviram de base a Cenas de um casamento (Scener ur ett Äktenskap, 1973) e Vida de Marionetes (Ur marionetternas liv, 1980) são bastante explícitas a esse respeito. No primeiro caso ele diz: "Johan e Marianne sã filhos de convenções bem precisas, e formados dentro da ideologia da segurança material. Jamais consideraram os princípios burgueses em que vivem, como restritivos ou falsos. Organizam-se dentro de um padrão de vida que estão dispostos a transmitir para os descendentes. Suas atividades políticas anteriores são mais uma confirmação dessa idéia do que uma contradição".
Este filme, produzido para a televisão sueca, não escapou a certos exageros acerca do comportamento de Marianne. De tal sorte que parte de suas reações pareceu até mesmo a Liv Ulmann (a atriz que a interpretou) um tanto inverossímil. A reclamação de Liv Ulmann, em entrevista a David Outerbridge, procede, mas para Bergman o mais importante era levar os personagens ao paroxismo. Em Vida de Marionetes, ele ressalta isto melhor: "Por que surge uma reação de curto-circuito numa pessoa totalmente bem adaptada e bem estabelecida?". Em Face a face (Ansikte mot Ansikte, 1975), Bergman escreve: "Desta maneira, começou a personagem principal do nosso filme a tomar forma: um ser humano bem integrado na sociedade, capaz e disciplinado, uma profissional bem conceituada na sua carreira, bem casada com um talentoso colega, e rodeada daquilo que se pode chamar as coisas boas da vida. É o desmoronamento rápido e chocante desse caráter excepcional e seu doloroso renascimento que eu tentei descrever". Amor A falta de amor está vinculada a inúmeros filmes de Bergman e à sua própria vida. Nenhum resumo poderia ser melhor do que uma única narrativa do personagem Viktor, de Sonata de Outono (Herbstsonate ou Hostsonat, 1978): "Quando eu perguntei a Eva se ela queria se casar comigo, ela endireitou-se e disse que não me amava. Eu perguntei se ela amava outra pessoa. Ela disse que era incapaz de amar".
O filme Trölosa (Infiel), de Liv Ulman (com roteiro de Bergman) tem várias seqüências explicitamente autobiográficas. A fuga de David e Marianne para Paris. O sexo. A decepção. A infinita capacidade de destruição mútua de um casal. O abandono da filha à luta feroz dos adultos. Basta ler sua autobiografia, Lanterna Mágica, e ver um autor teatral em fuga com a amante para... Paris. Em Morangos Silvestres a falta de amor está resumida em uma cena terrível. Isak Borg amou Sara, mas ela casou-se com outro. Depois de velho, ele é levado por um homem em seu sonho. Param diante de uma clareira na floresta. Lá está sua uma mulher num ato sexual. O homem diz: "Muitos esquecem uma mulher que morreu há trinta anos, alguns guardam um doce retrato fugidio, mas você pode lembrar esta cena em sua memória. Parece estranho? Terça feira, primeiro de maio, 1917. Você estava exatamente aqui, e ouviu e viu precisamente o que aquele homem e aquela mulher fizeram". Como muito bem notou Jörn Donner, a importância da cena não está no ato, mas nas palavras da mulher. Ela planeja ir para casa e contar tudo ao marido. Ela já sabe o que ele irá dizer: "Pobre garota, eu sinto tanta pena de você. Exatamente como se fosse um deus. E eu irei chorar e direi: você tem realmente pena de mim. E ele dirá: eu sinto uma pena terrível de você e, então, eu chorarei mais e perguntarei se ele pode me esquecer, e ele dirá: você não deveria
pedir para esquecer você. Eu nada tenho a esquecer, mas ele não sentirá nenhuma de suas palavras porque ele é completamente frio...". A posse de sua mulher por outro homem já importa pouco. Isak é frio. A combinação de "Is" (gelo) e "Borg" (fortaleza) foi apenas uma coincidência, como acentuou o próprio Bergman em seu livro Imagens. Como se estivesse morto. Uma das primeiras cenas do filme é seu sonho. Ele se vê num caixão. Depois se prepara para viajar de Estocolmo até Lund, onde receberá o título de Doutor Honoris Causa em uma universidade. Esta cerimônia parece extremamente fúnebre. A sua mãe também é fria. O seu filho também é frio e deseja morrer. Qual a origem dessa frieza? No filme a mãe de Isak sente frio no ventre. Isto remete a uma passagem autobiográfica de Bergaman: "Eu tinha a impressão de que certas crianças nasciam de úteros frios". A chave explicativa é, portanto, a infância.
Infância
O princípio de Morangos Silvestres é, de fato, a infância. Victor Sjöström, o grande diretor e ator sueco, tinha 78 anos quando atuou em Morangos Silvestres. Em 1916, durante uma crise na vida pessoal, Sjöström resolveu viajar de bicicleta por partes do país que ele sabia que tinha vivido na infância. Esta viagem coincide com o papel desempenhado agora por ele, aos 78 anos de idade. Todavia, o próprio Bergman, em entrevista a Björkman, Sima e Manns, dá a explicação sobre a origem do roteiro:
"Um dia, era de manhã cedo, peguei a estrada para Dalécarlie. Saí de Estocolmo às 4 ou 5 horas. Uma hora depois, aproximadamente, eu estava em Uppsala. (...). Vovó morava na rua Nedre Slottsgatan, número 14, em frente ao Skrapan, a escola, vocês sabem. Era um edifício muito velho e ela tinha um apartamento imenso. No longo corredor, tinha um banheiro com as paredes forradas de veludo. Os aposentos eram grandes, havia relógios de parede que tocavam, tapetes enormes, e móveis imponentes. O interior não tinha mudado desde que minha avó mudou para lá, recém-casada. Era um pouco a reunião do mobiliário de duas famílias burguesas, com quadros da Itália, esculturas e palmiers. Era lá que eu morava, de tempos em tempos, quando era pequeno, e este meio me marcou fundo. Em suma, neste dia, chegando em Uppsala, me veio subitamente a idéia de dar uma volta no número 14 da rua Slottsgatan. Era no outono, o sol começava a se mostrar atrás da Catedral e os relógios soavam 5 horas. Eu entro no pequeno pátio, que era recoberto de pedra redonda, subo as escadas e no momento em que pego o puxador da porta de serviço, que tinha ainda um vidro despolido colorido, digo a mim mesmo de repente: imagine um pouco, você abre a porta, e o que você vê, a velha Lalla, a velha cozinheira, com seu grande avental. Ela está preparando a sopa de aveia, como ela fez tantas vezes quando eu era pequeno. De um golpe só podia abrir a porta da minha infância".
Ora, Morangos Silvestres é a viagem de um velho num único dia entre Estocolmo e Lund. E, ao mesmo tempo, conta os sonhos que ele tem durante a viagem. A volta à infância. Sua história. A história de um bacteriologista envolto numa tradição que é apresentada pelo diretor como fúnebre, morta, de um país que já não mais existe. Entre a infância e a coroação de sua história de vida, medeia a amada que não se casou com Isak. Enfim, entre a história acabada e a infância nostálgica, um amor perdido para sempre. Bibliografia Estas referências bibliográficas são breves e sumárias. Não foi possível fazer uma pesquisa acurada dos inúmeros estudos sobre o cineasta sueco. A bibliografia limita-se aos poucos livros que há na biblioteca pessoal do autor, todavia não especializada em cinema. Alguns outros livros citados existem em português (pela editora Nórdica) e não aparecem nesta bibliografia: O Ovo da Serpente, Sonata de Outono e Fanny e Alexander.
Ingmar Bergman. Cenas de um casamento. Rio de Janeiro: Nórdica, s.d.p. Sétima edição. Ingmar Bergman. Face a face. Rio de Janeiro: Nórdica, s.d.p., 126 p. Terceira edição. Ingmar Bergman. I quattro film. Sorrisi di uma notte d´estate. Il settimo sigillo. Il posto delle fragole. Il volto. Torino: Einaudi, 1961, 311 p. Ingmar Bergman. Imagens. São Paulo: Martins Fontes, 2001, 441 p. Ingmar Bergman. Lanterna Mágica. Rio de Janeiro: Ed. Guanabara, 1988, 292 p. Terceira edição. Ingmar Bergman. The magic Lantern. London: Penguin Books, 1988, 312 p. Ingmar Bergman. The marriage scenarios. Scenes from a marriage. Face to face. Autumn sonata. New York: Pantheon Books, 1983, 407 p. Ingmar Bergman. Vida de Marionetes. Rio de Janeiro: Nórdica, 1980, 145 p. Segunda edição. Carlos Armando. O planeta Bergman. Belo Horizonte: Oficina de Livros, 1988, 342 p. David Outerbridge. Liv Ulmann sem falsidades. Rio de Janeiro: Nórdica, 1979, 95 p. Jörn Donner. The films of Ingmar Bergman from Torment to All these women. New York: Dover, 1972,276 p. Liv Ulman. Opções. Rio de Janeiro: Nórdica, 1985, 239 p. Terceira edição. Liv Ulmann. Changing. New York: Bantam Books, 1978, 307 p. Stig Björkman et. Al.O cinema Segundo Bergman. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978, 245 p. Tino Ranieri. Ingmar Bergman. Firenze: La Nuova Itália, 1974, 121 p.
* Lincoln Secco, Historiador. http://www.mnemocine.com.br/cinema/crit/morangossilvestres.htm
Bergman homenageia Freud mais que sonhos em comum por Claudia Bavagnoli*
No final do século XIX, especificamente em 1895, nasceram oficialmente a Psicanálise e o cinema: Sigmund Freud publicou seus primeiros estudos e Louis Lumière fez a primeira projeção cinematográfica a um público pagante. Durante o amadurecimento de ambos, profissionais desses e de outros campos como realizadores cinematográficos, psicanalistas e pensadores em geral perceberam relações entre tais áreas e se dedicaram a estudá-las. Hugo Mauerhofer foi quem idealizou uma situação cinematográfica. Nesta não devem existir distúrbios audiovisuais, apenas as emissões provenientes do filme, deixando o espectador totalmente afastado do mundo exterior à sala de projeção, o que acarreta uma fuga voluntária da realidade cotidiana. Fazer filmes é O espectador assiste ao filme semi- imobilizado e mergulhar até as mais anonimamente isolado, no escuro, condição que gera profundas raízes, até o afinidade com o estado do sono, possibilitando então que mundo da infância. a situação cinematográfica assuma uma função psicoterapêutica. - Bergman Edgar Morin, em O Cinema ou Homem Imaginário, aponta as anomalias que aparentam o cinema e o sonho, as características para- hipnóticas da sessão cinematográfica: obscuridade, encantamento por meio da imagem, descontração "confortável", passividade e impotência física. Como ocorre durante o sonho, Morin verificou a projeção-identificação do espectador com o filme. As analogias entre cinema e sonho, ao unirem seus diversos elementos constituintes - o escuro, o isolamento, a alucinação, a projeção... - fazem com que o cinema seja visto como um simulacro do sonho. Especulando, nota-se que o tempo de duração da fase do sono na qual se sonha, REM (Rapid Eye Moviment), dura cerca de 90min, aproximadamente, a mesma duração dos filmes. Segundo a cineasta brasileira Ana Carolina: "de noite somos todos diretores de cinema, porque um sonho é como um filme que cada um de nos faz com inteira liberdade." O presente trabalho não será conduzido pelas relações entre sonho e cinema, assunto que ainda hoje gera estudos, mas pela análise de um filme em especial, no qual o sonho é tematizado: Morangos Silvestres (Smultronstället) de Ingmar Bergman, Suécia, 1957.
Morangos Silvestres conta a história de um médico e professor aposentado, Isaak Borg (Victor Sjostrom), que aos 78 anos será homenageado com o título honorário da Universidade de Lund, sua cidade natal, a qual abandonara em favor de Estocolmo. Desde a véspera até a chegada em Lund, Borg é invadido por recordações do passado que confrontam o seu presente. Sonhos, devaneios e flashbacks conduzem-no a um mergulho no inconsciente, fazendo-o perceber que seu temperamento áspero e distante impossibilita o envolvimento afetivo com familiares e amigos, protegendo-o do sofrimento e, por outro lado, isolando-o. A constatação da velhice e solidão trazem a presença iminente da morte, incitando-o a repensar sua vida durante o percurso que faz até Lund. O desencadeador dessa viagem introspectiva é o sonho que teve na noite anterior à partida para a sua celebração. Em um ensaio intitulado O outro lado do sonho em Morangos Silvestres tal sonho é analisado por Eduardo Peñuela Cañizal. Utilizando-se de modelos semânticos de metáfora e a visão freudiana dos processos oníricos, ele inicia a análise tomando por base os comentários e a sinopse que o próprio Bergman faz sobre o filme e sua vida, reunidos no livro Imagens. Quanto à sinopse, Bergman se limita a relatar que Borg receberá uma homenagem em Lund e, na noite de véspera, sonha estar em uma cidade desconhecida e despovoada, onde um caixão cai de um carro funerário deixando escapar uma mão que o agarra: o morto tem a sua aparência. Peñuela observa que a descrição limita-se a uma parte do conteúdo manifesto do sonho: não são mencionados a figurativização do carro-carruagem, seu suposto percurso por ruas vazias, a velocidade que a carruagem adquire ao perder a roda e o barulho da queda do caixão. O enorme relógio sem ponteiros que denota um tempo imensurável também é ignorado. Os comentários recortados por Peñuela de Imagens sobre a época da criação do roteiro, mostram o diretor sueco num momento tumultuado: separava-se de Bibi Anderson e revivia conflitos com seus pais. Bergman compara a condição de seu personagem com a de seu pai e com a própria: privação de relações humanas, necessidade de se impor, introversão e fracasso apesar do sucesso profissional. Escreveu sobre a dificuldade de assistir aos próprios filmes por estes serem concebidos em todo seu corpo, principalmente nos intestinos. Peñuela compara também cartas desse período que Bergman troca com amigos ao relato que Borg faz no prólogo do filme. As revelações coincidem: angústia, solidão, isolamento e preocupação com o trabalho em processo. A vida de Bergman, extradiegética, dialoga com a vida do personagem que cria, intradiegética - mesmo se tratando de modalidades textuais diferentes, uma real e outra ficcional, há vozes ressonantes nesses dois textos: os traços psicológicos dos dois indivíduos. O sonho em questão é interpretado por Peñuela de acordo com a teoria freudiana que, resumidamente, defende a idéia dele ser composto por dois conteúdos: o manifesto (como o sonho se apresenta na memória) e o latente (os "pensamentos do sonho", a significação). Esses conteúdos são apresentados como duas versões do mesmo assunto em duas linguagens diferentes: o manifesto seria a transcrição pictórica do latente, seus caracteres devem ser individualmente transpostos para a linguagem do sonho ser interpretada. Os mecanismos fundamentais do trabalho do sonho são: condensação, deslocamento, figuração e elaboração secundária (Freud, 1987,p 270-298). Segundo Peñuela, a condensação é enunciada no sonho de Isaak com a sobreposição de imagens, originando uma mistura de corporalidades diferentes. O deslocamento é percebido com a duplicidade de Isaak Borg, dentro e fora do caixão
puxando a si mesmo, com a liberação do compromisso temporal e racional. Implementando esse raciocínio, ressalvo a presença do relógio sem ponteiros que, ao invés de fazer tic-tac, bate como um coração, desnorteando o velho professor que procura alívio nas sombras; e também indico a presença de um homem com as feições fechadas e presas no centro do rosto, como um umbigo, que ao cair no chão, apesar de parecer uma estátua oca, sangra. Quanto ao conteúdo latente, Peñuela reflete a significação de tal sonho partindo do paradigma da alimentação: o cineasta afirmara que seus filmes foram concebidos nos intestinos e Borg é chamado a almoçar no prólogo do filme, antes de serem dados os créditos que precedem o sonho com a carruagem vinda por ruas tortuosas que ao perder a roda e liberar o caixão sai em disparada. Por metáforas, Peñuela observa: "a carruagem teria partido de um necrotério- estômago trazendo o caixãoexcremento até que sua traseira- ânus o arrojasse para fora". O sentido latente dessa seqüência se faz presente por meio de uma representação metafórica da defecação. Peñuela acredita que Bergman utilizou como modelo para esse simulacro de sonho a obra de Freud intitulada "Analises de la fobia de un niño de 5 años (el pequeño Hans) (1993), na qual há passagens em que Hans relata ao pai problemas que tinha para defecar por meio de metáforas: "as carruagens carregadas podem virar, são como barrigas cheias, por isso assustam; já as vazias não". Seu ensaio, sustentado pela teoria freudiana da "Interpretação dos sonhos", dialoga o sonho de Borg e o caso do pequeno Hans. Mas Peñuela também nos mostrou que Borg e Bergman dialogam. Conclui-se então que Bergman, utilizando-se do sonho de Borg, seu provável simulacro, livra-se de fatos que pesavam e incomodavam sua vida, conseguindo, depois de certo esforço, andar mais livremente. Acredito que não apenas esse sonho, mas que diversas situações do filme dialoguem com as teorias psicanalíticas de Freud: Morangos Silvestres, enquanto mergulha no passado e inconsciente de Borg, homenageia a psicanálise ao retratar alguns seus diversos conceitos. Os procedimentos do sonho, condensação e deslocamento, como já mencionado, são sempre anunciados por meio da sobreposição de imagens e da falta de lógica, respectivamente. Enquanto Borg sonha, delira ou tem um flashback, as imagens do filme formam-se sempre por meio da confusão gerada pela junção de dois ou mais fotogramas, e o personagem Borg aparece em todas essas situações, independente da época da vida a ser retratada, com o corpo envelhecido, até quando é levado de volta à sua juventude e se encontra com Sara, seu puro e primeiro amor. Sara descreve o jovem Isaak como "gentil, fino, honesto e sensível", contrariando a maneira que ele nos é apresentado: "um velho egoísta". Subentende-se que essa transformação em seu comportamento teve uma causa: o fato da amada ter-lhe trocado pelo irmão inútil fez com que endurecesse, afastando-se do convívio social por medo de sofrer. Poderia ser entendido esse fato como um trauma? O "egoísmo" que lhe é atribuído por sua fiel empregada e por sua nora doce nora Marianne é de serventia a Freud para a caracterização dos sonhos, no sentido em que "o ego bem amado aparece em todos eles (sonhos)". "O egoísmo é o interesse que o ego tem por si mesmo" (Laplanche, 1995). Egoísta é aquele que pensa em si visando se proteger, é uma pulsão de auto-conservação. Em um de seus sonhos, Borg está em companhia de Sara, que lhe mostra um espelho pedindo-lhe que se olhe: ele titubeia, como se não conseguisse se encarar.
O espelho reflete alguma verdade: será que ele a teme ou lhe desagrada? Contrariando Narciso, Borg foge de sua imagem, da verdade e do que mais lhe traria algum encanto, pois é assim que há tempos permanece com sua carcaça rija, distanciando-se de tudo que poderia torná-lo volúvel. O casal que gera um acidente na estrada é formado por uma mulher que sofre de males não diagnosticados (não apresentam causas somáticas), e por um homem que a ridiculariza, chamando-a de fingida e apresentando-a como atriz. A reação incrédula e debochada do marido para com a esposa, uma provável histérica, pode ser comparada à atitude dos doutores colegas de Freud diante das idéias deste sobre a histeria. Ainda uma última passagem traz alusão à teoria psicanalítica. Quando a mãe de Isaak Borg pega uma caixa de recordações, diz ter dado risadas de recadinhos que duas irmãs escreveram ao pai: "Ao meu pai, quem mais amo no mundo" e "Vou me casar com papai". Ela agiu da mesma maneira irônica que os congressistas presentes na divulgação da teoria que Freud denominou "Complexo de Édipo". *
Realizei apenas um levantamento de coincidências entre algumas teorias freudianas e passagens do filme de Bergman, as quais me levam a pensar em Morangos Silvestres também como uma homenagem à Freud e ao seu trabalho, mas nunca o limitando a isso. Não acredito que essa seja a leitura totalitária do filme, mas sim que colabore para seu entendimento. Acho interessante a presença de inúmeras cenas que remetem à psicanálise e absurdo seria ignorá-las. Contudo, Morangos Silvestres é um belíssimo filme sobre o tempo, a memória e o reencontro, uma obra- prima em que Bergman explora a vida e a morte com incrível sensibilidade.
Referência Bibliográficas: BERGMAN, Ingmar. Imagens. São Paulo, Martins Fontes, 1996. CAÑIZAL, Eduardo Peñuela. O outro lado do sonho em Morangos Silvestres In Galáxia. São Paulo, EDUC, 2001. FREUD, Sigmund. A interpretação dos sonhos In Obras Completas, vol. IV 1987. LAPLANCHE e PONTALIS. Vocabulário da psicanálise. São Paulo, Martins Fontes, 1995. MAUERHOFER O, Hugo. A psicologia da experiência cinematográfica In A experiência do cinema: antologia. org. Ismail Xavier. Rio de Janeiro, Graal, 1993. MORIN, Edgar. Cinema ou Homem Imaginário. Lisboa, Moraes Editores,1980 *Claudia Bavagnoli é Mestre em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP
http://www.mnemocine.com.br/cinema/crit/bergman_claudia.htm
L. G. Miranda Leão (cinema) "Morangos Silvestres", de Ingmar Bergman
À imitação da nossa galáxia, a obra de Ingmar Bergman desenvolve-se não em circunferência mas em espiral. Uma espiral da qual cada revolução engrandece o círculo, aperfeiçoando-o. Nessa trajetória em busca da perfeição, o autor às vezes se detém, como se para abranger com um lance d'olhos o caminho palmilhado. O maior anel da espiral brilha, então, com singular esplendor e parece esconder o restante. O filme é suficiente por si mesmo: se não torna inúteis os outros, ultrapassa-os irremediavelmente. "Morangos Silvestres" ascende a essa última categoria e engloba, por sua temática, todas as idéias acolhidas por nosso cineasta, toda sua filosofia, ou antes sua ontologia. Eclipsa ele, em surpreendente síntese, os dezenove filmes que já conhecemos e os encerra a todos, porém com algo de novo. PROUST E JOYCE Bergman - como se tem destacado aqui nos "Cahiers" - é como que assediado por uma eterna interrogação. Pergunta metafísica sem resposta possível, capaz de devolver os protagonistas à própria situação da qual procuram escapar. No entanto, o pessimismo bergmaniano não é absolutamente negativo. Uma saída apresenta-se sempre, porque necessária. E essa necessidade o autor parece experimentá-la profundamente, quando afirma: "Quero acreditar numa idéia superior, a qual se pode chamar Deus". Dotados de vontade e de perseverança, os personagens de Bergman sobrepujam, o mais das vezes, o absurdo da existência tomando consciência disso. O Dr. Isaac Borg1, herói dos "Morangos Silvestres", interroga-se, como seus predecessores, e chega às mesmas conclusões. Se parece aproximar-se da indagação um pouco mais, suas inquietações também não são de qualidade diversa. Este filme marca um ponto de chegada, mas igualmente um ponto de partida. Os jovens que o Dr. Borg encontra em seu caminho - o casal desunido, do carro acidentado, o filho e a nora - terão de interrogar-se por sua vez. Sem dúvida, reaparecerão em algum filme futuro em gestação. Lançar o problema não é resolvê-lo. Mas, ao falar em ponto de partida, não são eles que eu tinha em mira. Pensava eu no próprio Bergman, em seu trabalho de cenarista e de diretor cinematográfico. Até aqui ele acentuava tanto o lado psicológico como o lado metafísico. "Enquanto as Mulheres Esperam", por exemplo, distinguia-se ao pintar-nos seus sentimentos. "A Prisão" e, mais tarde, "O Sétimo Selo" abordavam problemas mais abstratos. Agora, assistimos pela primeira vez a uma síntese perfeita dessa dupla tendência. Se fosse necessário, a todo custo, comparar "Morangos Silvestres" a outro filme, evocaria eu "O Sétimo Selo", cujo herói me parece um parente próximo do Dr. Borg. No entanto, a diferença salta aos olhos. A busca da superestrutura do Dr. Borg não é mais uma alegoria e, sim, um retrato psicológico de um novo gênero, pelo menos no domínio do cinema. À análise do tipo proustiano, acrescenta-se a reconstituição, à maneira de um Joyce, da unidade sintática da afetividade, através de constante recurso às camadas profundas da personalidade. Nesse sentido, considero "Morangos Silvestres" o mais original dos filmes de Bergman. SUBJETIVIDADE TOTAL
O abandono da montagem retrospectiva ("flashback" ou "retour en arrière") em favor da utilização sistemática do processo onírico constitui, sem dúvida, a inovação mais saliente do filme. Quatro sonhos ocupam mais da metade do entrecho cinematográfico e, longe de sublinhar o "já conhecido" (como, por exemplo, em "A Prisão"), fazem parte integrante da progressão dramática. Bergman dirige-se resolutamente para uma espécie de interiorização da consciência do herói, método só levemente ventilado por ele anteriormente. O cinema, como sói acontecer, exterioriza os sentimentos pelo jogo fisionômico dos atores, pelas afinidades entre os personagens, pelas situações nas quais se colocam e pelos diálogos. E sabíamos a que ponto Bergman se distinguia na utilização desses meios a fim de tornar inteligível o mundo interior e descrever os estados d'alma. Mas, fosse qual fosse a profundidade atingida, Bergman não poderia contentar-se em permanecer apenas nesse plano. Corporifica ele em seus filmes os símbolos evocativos de velhos "avantguardistas", e o faz com satisfação. Porém, continua a sugerir o subjetivo por meios puramente objetivos. Com "Morangos Silvestres" Bergman tenta uma experiência: ao abandonar o psicológico habitual, ele procura adaptar ao cinema o método metapsicológico. Seu personagem não será somente o que parece, mas ainda o que esconde nas profundezas do psiquismo. Essa parte rechaçada do indivíduo, o mundo secreto que cada um leva em si, reaparece na ocasião através da linguagem especial do sonho. Transmutando-se em verdadeiro psicanalista, Bergman sonda o inconsciente de seu herói. Todo espectador, mesmo pouco familiarizado com a psicanálise, reconhecerá de passagem as representações hauridas no arsenal dos símbolos oníricos de Freud: tanque, escada, prego que fere, ruas desertas, casas abandonadas, corredores, relógio sem ponteiros, etc. Encontra-se, de certo modo, transportado ao próprio interior da personalidade do herói. Tudo respira aqui à subjetividade, não só os sonhos mas também a realidade. O que poderia ser o evoluir objetivo do dia do Dr. Borg não é senão a relação elaborada, condensada, do que ele faz. Só os quatro planos precedendo o genérico parecem escapar a essa interiorização. Assim também estão cuidadosamente separados do restante. "Morangos Silvestres" é o filme da subjetividade total, é, enfim, a narração cinematográfica na primeira pessoa do singular (ego), a qual não tem necessidade de prender-se à técnica da chamada "câmara subjetiva". O TERCEIRO GRAU Bergman convida, portanto, o espectador a penetrar, por si, no mundo interior do personagem. Ou melhor: ele o convida a transformar-se numa espécie de analista do terceiro grau, isso porque em "Morangos Silvestres" três análises se superpõem. Primeiramente, a auto-análise do herói. Em seguida, sua análise por Bergman (o que vem a ser uma auto-análise do autor); enfim, uma participação quase forçada do público nas duas análises precedentes. Bergman não fornece senão o essencial. Certos aspectos do personagem e da sua vida simplesmente esboçados deixam o caminho aberto para a interpretação. Assim, abstém-se de precipitar o espectador na lógica artificialmente preconcebida, e reserva ao Dr. Borg uma ambigüidade suficiente para dotá-lo de vida e de realidade. Detentor de riqueza nova, o filme pode parecer desconcertante à primeira vista. Sua própria inovação obriga o espectador a adotar um novo método de aproximação. Foi, sem dúvida, para não forçar demais as coisas que Bergman rompeu com seu estilo
habitual, reduzindo prodigiosamente os movimentos de câmara, multiplicando os planos fixos, interditando os efeitos habituais da representação onírica. Experimentando um senso quase "rosselliniano" da economia de meios, os dois sonhos mais simbólicos (o primeiro e o terceiro) emocionam pela rispidez do tom e pelo despojamento da decoração. Poder-se-ia até mesmo censurar-lhe o desenvolvimento por demais lógico das partes oníricas (sobretudo o segundo e o quarto sonhos), as quais parecem conduzir o sonho ao nível de procedimento, semelhante a um "retour en arrière". Mas essa crítica me parece ao mesmo tempo justa e falsa. Justa porque o sonho elabora e jamais repete o real. Falsa, porque, primeiramente, os acontecimentos "revividos" relacionam-se a episódios aos quais o herói não tinha realmente assistido; Borg não aparece nunca em seus próprios sonhos, senão sob a forma atual de ancião de setenta e oito anos; enfim, tendo escolhido o método metapsicológico, Bergman deve incorporar aos sonhos, de qualquer maneira, um começo de interpretação a fim de torná-los inteligíveis. O MÓVEL E O ESTÁTICO Tudo isso parece multiplicar as convenções. Que importa? O próprio cinema não é uma convenção? O que afasta da realidade os cineastas nos conduz aqui ao cerne do verdadeiro. Uma vez mais Bergman revela seu domínio do cenário. Seu filme assume até mesmo um aspecto de "tour literário"2. Mas somente na aparência, porque se Bergman, roteirista, se impõe aqui mais do que noutras obras, Bergman diretor cinematográfico e condutor de atores permanece inteiramente presente atrás da novidade do tema. O prazer do estático, assinalado nos quatro planos que precedem o genérico, constitui uma espécie de chave metodológica da realização: maior fixação nas partes concernentes ao estado de velhice, maior mobilidade nos sonhos. A estética se justifica: o mundo interior do herói é mais fluido em relação a sua aparência rígida e austera. O que é mais admirável na construção do filme é o constante transporte do sonho para a realidade e da realidade para o sonho. Por meio de uma dialética sutil, estendendo-se sobre um período de vinte e quatro horas, fatos, gestos e sonhos, contados pelo herói, fundem-se a fim de sugerir-nos ao mesmo tempo seu retrato e sua evolução, seu caráter e sua situação - uma palavra, o que há de eterno e o que há de particular. A descrição "psicanalítica" confere a esse retrato um verdadeiro suspense, um sentimento de expectativa e de descoberta progressiva. A concentração sobre um só personagem (contrariamente ao costume do autor-diretor) culmina numa espécie de perfeição, depuração e aprofundamento dos temas bergmanianos. Não desejaria começar aqui um ensaio de interpretação e crítica psicanalítica de "Morangos Silvestres", mas alguns exemplos me parecem necessários para mostrar como a metapsicologia termina por ligar-se à metafísica, porque a psicanálise é um método de psicologia clínica e não uma regra de conduta ou uma filosofia da existência. A FUGA PERANTE A REALIDADE OU O "MORTO VIVO" Em quatro planos e quatro frases, o Dr. Borg revela-se desde o início. Por trás de sua atitude austera, sua solidão voluntária, de manias erigidas como regras de viver, intui-se facilmente um conjunto de medidas destinadas a dissipar uma ansiedade profunda. Não
me aventurarei a sustentar a tese da neurose. O Dr. Borg explica-se nestes termos sobre sua solidão. "Nossas relações com outros se limitam sobretudo a críticas". O medo da contradição! Conhece-se, porém, a fragilidade das ofensas de que se cercam os egocêntricos. E, na véspera de receber a consagração do triunfo "aparente" (o jubileu médico), o ancião vê ruir todo o edifício! O primeiro sonho, áspero e fatal, revela a angústia diante da morte próxima e a solidão que já é o começo do nada; sublinha ele, como se verá, a identificação com o pai (o relógio sem ponteiros). Conforme acontece muitas vezes na realidade, esse sonho influi na vida evocada do herói que decide, após discussões com sua governante e sua nora, fazer uma peregrinação aos próprios lugares da infância e da adolescência. Lá, junto ao morangueiro silvestre, ele adormeceria. Em sonho, veria, como algo vivido, a cena inicial da traição da querida prima, Sara, a cuja cena ele não assistiu na realidade. Aparecem, também, a nostalgia dos "amores infantis" e o caráter dominador da mãe. Borg e seu pai estão fora (na pesca): seu meio de defesa diante da realidade exprime-se pela fuga. Ao despertar, uma transposição para a realidade determina o sentido do sonho, Borg encontra uma verdadeira Sara de dezoito anos, acompanhada de dois pretendentes: um jovem racionalista, sério, é sem dúvida seu próprio personagem (o rigor bíblico do jovem Borg equivale à incredulidade); e o outro, ao mesmo tempo fantasioso e seguro de si mesmo, representa o irmão que outrora arrebatou Sara (note-se o deslocamento: contrariamente ao irmão, ele se destina ao ofício de pastor). Outro encontro, o de um casal desunido, evoca seu próprio casamento. Enfim, uma visita a sua mãe ainda viva esclarece o caráter frio desta, e dá a pensar que forte desequilíbrio reinava na constelação familiar. Não se vê senão no fim o pai e a mãe juntos. Aqui, uma foto de família que os representa é considerado sem valor pela idosa senhora. Borg parece querer dissimular o desentendimento dos pais. A cena dos brinquedos indica que o médico se apega desesperadamente a todos os sinais de uma época na qual a desunião ainda não existia. No arremate com o segundo sonho compreende-se que a traição de Sara reforçou ainda mais no personagem central a idéia de impossibilidade da felicidade no mundo dos adultos; presente-se, entretanto, que ele vai destruir com as próprias mãos todas as ocasiões de felicidade, até mesmo seu casamento, procurando reproduzir as duas situações iniciais: o desentendimento dos pais e a traição de Sara (pode-se mesmo indagar se não é ele o artífice dessa traição, como o será em relação à traição da própria mulher). O terceiro sonho confirma tudo quanto se viu. A imagem de Sara embalando o filho relembra o nível de fixação infantil de Borg. E o exame, sonho banal que cada um conhece, adquire em Bergman uma significação metafísica que reanimará o sentimento de culpabilidade do seu personagem. Sob os traços do marido encontrado após o acidente, o examinador, depois de haver constatado o fracasso de Borg, o conduz junto ao tanque no qual assistira à traição de sua mulher. Novamente a impossibilidade de amar (a escada incinerada). Matou ele a mulher e o amante, ou então a coisa se processou como a mulher a descreve no sonho? O filme não explica claramente. Parece que a segunda interpretação seja a melhor, pois no episódio evocado pela nora o filho de
Borg afirma: "Eu não era desejado numa união que se constituiu num inferno". Foi preciso que Borg e sua mulher ficassem juntos. O PARAÍSO REENCONTRADO O sentido desses sonhos aparece lentamente a Borg: "Foi como se eu quisesse dizer-me uma coisa que no fundo eu não queria entender... que estou morto, embora viva". Através do inconsciente revelado pelos sonhos e os acontecimentos desse dia, o velho médico toma pela primeira vez consciência de seus verdadeiros problemas. "Nessa seqüência estranha de acontecimentos", diz ele, "eu vislumbraria uma causalidade notável". Procura ele mudar, abrir-se ao mundo. Em vão: as portas permanecem fechadas. Somente a jovem Sara e a nora lhe manifestam certa simpatia. Borg fica como que presa da inquietação. É-lhe necessário corrigir a concepção da infância e reencontrar um lenitivo: livrar-se das fixações de outrora. Vem, então, o quarto sonho, que conclui o filme. Borg vê-se (com a idade de 78 anos, como sempre) à procura de seus pais, e não os encontra. A prima Sara o conduz para baixo de uma árvore, próximo a um golfo. Do outro lado, o pai e a mãe participam de um piquenique em atmosfera de idílio. O paraíso perdido foi, enfim, reencontrado. Convém notar ser esta a primeira vez na qual se vê o pai. Trata-se na verdade de uma cena real reencontrada, ou então de uma ilusão elaborada pelos sonhos? O filme não permite separar essa questão. Entretanto, isso pouco importa, porquanto na última imagem, quando Borg desperta, ele parece ter compreendido a própria natureza de suas inquietações. Esse final nos transporta ao início, aos quatro planos precedentes ao genérico, no qual se vê Borg redigir um manuscrito, sem dúvida sobre a experiência que ele acaba de viver. A maneira pela qual se descreve como maníaco solitário descobre-nos o caminho percorrido. Em um canto, um cão estende-se, novo companheiro (em nenhum lugar, aliás, isso é problema), porque após essas vinte e quatro horas, tão ricas em descobertas, o Dr. Borg não pode mais ficar completamente só. O retiro voluntário agora se tornou forçado. E esse início, que é um fim, encerra toda a conclusão do filme no tocante às idéias mais abstratas: ambigüidade da condição humana, impotência do homem sempre em atraso no instante mesmo da felicidade, a frágil passagem em face do absurdo, a eterna questão do nascimento e da morte ... Idéias abstratas e gerais, porque o Dr. Borg testemunha por isso as peculiaridades de toda a humanidade. "Um homem", dizia Sartre, "é toda a Terra". Nesse sentido, "Morangos Silvestres", filme totalmente subjetivo, transforma-se em obra verdadeiramente cósmica. (Traduzido por L. G. de Miranda Leão e J. W. Nogueira de Queiroz do "Cahiers du Cinéma", nº 95, maio 1959) » É curioso realçar a analogia das iniciais com as de Bergman; aliás, parece uma contração do nome do autor-diretor: Isaac Borg = Ingmar Bergman. » Hoveyda diz não querer insistir sobre esse ponto, desenvolvido por Eric Rohmer em sua crítica de "No Limiar da Vida" (Au Seuil de Ia Vie) (nº 94 do "Cahiers").
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A Noite e Morangos Silvestres: quando os gênios dizem adeus Morte. O abandono físico, o aprisionamento às lembranças e o apelo através de imagens virtuais. Um velho clichê sempre volta à tona ao se afirmar que a morte é a grande certeza da vida. É evidente que todos um dia irão morrer, mas são várias e infindáveis questões filosóficas que a envolvem. Quando Woody Allen brinca com a morte ao dizer que não a teme, mas que não quer estar lá quando ela chegar, ele demonstra o quanto seus mistérios ainda o afligem (assim como afligem a maioria das pessoas). É realmente estranho como a morte é capaz de trazer para tão perto alguém que está longe ou que mesmo não conhecemos pessoalmente – como no caso do acidente no Aeroporto de Congonhas há poucos dias. O ser humano tem a capacidade de sofrer pelo próximo, em um sentimento chamado de compaixão. É possível chorarmos por um acidente em que ninguém ali era conhecido e podemos sentir a falta de uma pessoa que nunca esteve presente fisicamente na nossa vida. De uma tacada só - no mesmo dia - nos foram levados dois gênios. Pela manhã, na Suécia, Ingmar Bergman morreu em casa, no local onde filmara algumas de suas obras. Michelangelo Antonioni faleceu à noite – interessantemente durante a noite, período da jornada diária bastante presente em sua obra. Curiosamente, mesmo que de maneiras bastante diferentes, ambos os diretores faziam da morte também um grande tema a ser discutido em suas respectivas obras. Implícita ou explicitamente, a morte é retratada em seus filmes, como em O Sétimo Selo de Bergman e Passageiro: profissão repórter de Antonioni. A morte é usada como uma metáfora para várias questões filosóficas em relação à vida, mostrando o quanto somos limitados e frágeis. Não tenho uma ligação muito forte com Bergman, apesar de respeitar e admirar muito sua obra. Mas o primeiro filme dele que vi e que me marcou bastante foi Morangos Silvestres – depois assisti a O Sétimo Selo, ainda mais marcante. Já com Antonioni o diálogo é mais próximo, sendo o diretor italiano um dos grandes responsáveis por minha cinefilia. Seu primeiro filme por mim visto fora A Noite. As imagens de Antonioni exerceram em mim uma pujança fundamental para a crença de que o cinema é capaz de ser melhor que nossa própria vida. Decidi partir das duas obras (Morangos Silvestres e A Noite) para relembrar e homenagear os dois cineastas que com certeza deixarão saudades a todos nós e, principalmente, ao cinema. Ingmar
e
seus
morangos
silvestres
Ser sueco é, acima de tudo, ser alguém conhecedor das intermitências do tempo, ser uma pessoa que sabe lidar com os contornos de efemeridade temporal rara. A Suécia é um país frio em grande parte do ano, além de possuir uma densidade demográfica pequena e uma taxa de criminalidade também assaz reduzida. Há, para a maioria dos suecos, um certo sentimento de nada ocorre ou ocorrerá aos seus arredores e de o tempo é uma coisa que sempre se esticará um pouco mais. A literatura do país escandinavo é fortemente marcada por essa característica – principalmente na literatura sueca moderna inaugurada pelas primeiras obras de August Strindberg. Woody Allen certa vez disse que Ingmar Bergman fora o maior artista que o cinema já tivera em todos esses tempos. De certo, Ingmar tivera um controle do primeiro plano e um domínio do tempo que poucos outros conseguiram na história do cinema. Seu cinema se volta para si mesmo, busca nas entranhas do ser a explicação de alguns dos sentidos guias da existência, seja ela física, seja espiritual. O cineasta Bergman foi capaz de metaforizar através de imagens todas as inquietações do homem Ingmar. Ao buscar na própria existência, nas próprias aflições, desejos, medos e sentimentos, Bergman consolida uma obra intimista que não teme em hora alguma a exposição e que prima principalmente pela verdade de seu discurso cinematográfico e também de vida. O diretor sueco recorre, em grande parte de sua obra, ao retrato feminino, centrando-se na filmagem do corpo da mulher, no primeiro plano, no olhar que consegue fazer da câmera um objeto intrusivo e captador de emoções. Entretanto, em Morangos Silvestres, ao invés da figura feminina, tem-se um homem que busca se encontrar ao revisitar seu passado. Ele procura entender como fora sua vida ao viajar para receber um prêmio. Com a morte de Bergman, é impossível não relembrar do filme e usar o mesmo como uma certa revisão da ordem do diretor. O tempo é lento e imensurável – visto no relógio sem ponteiros em uma das cenas -, a câmera, muitas vezes fixa, contempla as ações do personagem de Victor Sjöström (o diretor e ator sueco é uma grande referência de Bergman). É uma viagem freudiana para se explicar o homem – até porque existe o componente onírico para a construção imagética dentro do filme. O sonho do personagem com a própria morte traz o questionamento do quão a vida passa despercebida. Tudo é enquadrado e montado para dar ao filme um tom fúnebre e de solidão. Mesmo nas câmeras subjetivas temos a impressão da angústia
daquele personagem que se encontra em fase de encontro temporal e físico. Há um eterno conflito pessoal e de relação com as pessoas, de compreensão existencial do médico que vê sua vida orientada e garantida apenas por aquela viagem. O clima é, sim, de uma marcha final, de uma finitude próxima. Se em O Sétimo Selo, Max Von Sydow joga xadrez com a Morte, em Morangos Silvestres, Bergman não encontra o adversário para o jogo. Há uma procura constante, uma explicação existencial para a vida – e que lhe dê suporte. Explicação essa que, de certa forma, Bergman sempre buscou mesmo sem a certeza e a vontade exata de encontrá-la. Foi em um desses dias de uma vida longa que ele encontrou a morte. O tempo passa devagar para o sueco. Bergman compreendia muito bem a força do tempo e, ao longo de toda a vida, fez das articulações do cinema uma alternativa de driblá-lo, mesmo que um dia soubesse que moveria a peça errada e seria vencido.
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