Saúde Mental em Foco

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ANO 05

IMPRESSO E ON-LINE - BOLETIM Nº 20 TIRAGEM: 2.000 - SET/OUT/NOV/DEZ - 2012

NÃO

VAG AS

CONFIRA TAMBÉM

Notas

Especial

Perfil

IN 49 e RN 241 preocupam clínicas

Decodificando a Saúde Mental

Na onda da ciência

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CANAL ABERTO

AVANTE

É verdade que as instituições asilares foram o berço dos hospitais psiquiátricos. No início, quando ninguém sabia o que fazer com as pessoas sofredoras de transtornos mentais, grandes hospícios foram criados. Os pacientes viravam moradores, não existia muita opção de tratamento, e décadas se passavam entre muros, sem nenhuma perspectiva de mudança. Os primeiros tratamentos, hoje condenados, foram os eletrochoques. Eram uma alternativa terapêutica para tirar um paciente de um estado irreversível de letargia. Mas também podiam ser uma escolha radical e malfadada, utilizada como penitência aos insanos e inquietos. Vieram então os medicamentos, as psicoterapias, a terapia ocupacional, o tratamento multidisciplinar. Se olharmos em perspectiva, podemos pensar: quanto evoluímos na saúde mental! Basta espiar a grama do vizinho, no entanto, para morrermos de inveja. Refiro-me a outros campos da saúde, que deram saltos incríveis em tão pouco tempo. As vacinas, por exemplo, permitiram que doenças banais deixassem praticamente de existir. Milhões de dólares são investidos ao redor do mundo em busca da cura da Aids, do diabetes. Milhares de cientistas se debruçam em suas lâminas, ansiosos por desvendar o câncer e oferecer à humanidade a sua redenção e cura. Mas, e o cérebro? Em que pé estamos nas pesquisas relacionadas ao funcionamento de nosso mais surpreendente equipamento? O quanto sabemos a respeito da depressão, do Alzheimer, das inúmeras demências, da esquizofrenia? Muitos são os estudos, certamente. Pergunto-me, no entanto, se empreendemos esforço e dinheiro suficientes. O que me intriga, neste cenário, são dois aspectos. O primeiro deles é ver gente que se diz especialista no assunto afirmar que a doença mental é uma forma de ver o mundo. E que não é preciso internar nem medicar. Esse discurso raso, que beira a irresponsabilidade, já li e ouvi diversas vezes. E ele vem acompanhado da luta antimanicomial que, embora legítima, perdeu-se no caminho de suas próprias ideologias. O segundo ponto que me causa insônia é que vivemos a Era dos transtornos mentais. Alertas mundiais já foram feitos para o aumento no número de pessoas que sofre, cada dia mais, com depressão, ansiedade, transtorno bipolar, consequentes abusos de álcool e outras drogas. Enfim, uma bola de neve que só cresce. O que não vemos crescer são os investimentos em saúde mental. No Brasil, o financiamento público nesta área representa apenas 2% de tudo que é gasto na Saúde. Os leitos especializados fecham. A prevenção está à mingua. E assim caminhamos, sem perspectiva de melhora. Nesta edição, debatemos um pouco esta dicotomia, com matéria de capa sobre a falta de leitos em Saúde Mental, em especial no Estado de São Paulo. Mas também arejamos nossas mentes com reportagem especial sobre a psiquiatria sob a perspectiva cientifica. Me enche de ânimo saber que a USP, por exemplo, realizou a segunda edição de seu Congresso de Clínica Psiquiátrica, no segundo semestre deste ano, tendo como tema central os avanços da ciência. Fico motivado com gente inteligente que estuda de maneira minuciosa e persistente o nosso cérebro. Gente tão brilhante que consegue unir áreas distintas do conhecimento e enxergar cérebro e mente como algo único e surpreendente, sem radicalismos ou discursos prontos. Gente que encara a ciência não como um enigma, mas como resposta. Acredito em pessoas que dão o primeiro passo. Em quem arrisca. Em quem transgride e pensa à frente. Pessoas assim nos levam adiante. *Ricardo Mendes é coordenador do departamento de Saúde Mental do SINDHOSP

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EXPEDIENTE Saúde Mental em Foco é uma publicação do SINDHOSP

DIRETORIA: EFETIVO Dante Ancona Montagnana (presidente) EDITORA: Ana Paula Barbulho (MTB 22170) REDAÇÃO E REVISÃO: Ana Paula Barbulho, Aline Moura e Fabiane de Sá EDITORAÇÃO ELETRÔNICA: Carlos Eduardo, Thiago Alexandre (Marketing) COLABORARAM NESTA EDIÇÃO: Ricardo Mendes, coordenador de Saúde Mental do SINDHOSP CIRCULAÇÃO: Entre diretores e administradores de hospitais psiquiátricos e clínicas PERIODICIDADE: Trimestral FOTOS MATÉRIA CAPA: Thinkstock DEMAIS FOTOS: Thinkstock e divulgação CORRESPONDÊNCIAS PARA: Assessoria de Imprensa R. 24 de Maio, 208 - 9º andar CEP: 01041-000 - São Paulo - SP Tel. (11) 3331-1555 - Fax: (11) 3222-6914 jornaldosindhosp@sindhosp.com.br


NOTAS

USP TERÁ INSTITUTO MULTIDISCIPLINAR DE

ÁLCOOL E OUTRAS DROGAS

O Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP anunciou a criação do Instituto de Álcool e Drogas (IAD). Sua diretriz será a construção de um modelo integral de atendimento a usuários de drogas, por meio da realização de estudos e pesquisas, contemplando também a formação acadêmica e a capacitação de recursos humanos para atuação na área. Na assistência, serão oferecidos os seguintes serviços à população: Unidade de Internação: o prédio do IAD foi projetado para abrigar enfermarias para internação de pacientes adultos e adolescentes. Ambulatório especializado em Dependência Química: o IAD comportará uma unidade destinada ao funcionamento de ambulatório de alta complexidade para atendimento de dependentes químicos, inclusive com outros transtornos psiquiátricos, como depressão e ansiedade. Centro de Atenção Psicossocial/ Álcool e Drogas (CAPSad): está prevista a criação de um ambiente humanizado e inclusivo, adequado ao seguimento da proposta terapêutica interdisciplinar de usuários de diferentes substâncias, portadores ou não de comorbidades psiquiátricas ou clínicas. O foco terapêutico será a estabilização e desintoxicação, articulada com a reabilitação, e cuidados continuados dos pacientes. Pela

natureza dos tratamentos a que se destina, o projeto do CAPSad estabelece, ainda, a prevenção de violência, suicídio e uso de substâncias nas dependências do IAD. Centro de Referência Especializado de Assistência Social (Creas): atua com foco na família a partir de situações vivenciadas que necessitem de atenção especializada e continuada, a fim de prover os direitos socioassistenciais, por meio da potencialização de recursos e capacidade de proteção. Também estão previstos programas de capacitação gratuitos de curta, média e longa duração a profissionais que atuem com dependência química no interior do Estado de São Paulo e nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste. No ensino, destaca-se o programa de Residência Multiprofissional em Saúde Mental com Ênfase em Dependência Química, que está sendo estruturado. O objetivo é oferecer, a partir de 2013, oito vagas anuais para a formação de profissionais na área. Além disso, linhas de pesquisa com foco na dependência química têm se fortalecido, o que intensifica o número e relevância das publicações no tema e contribui para devolver à sociedade o investimento que tem sido feito por todos os órgãos públicos em relação ao crack e outras drogas. Os investimentos giram em torno de R$ 59 milhões. O projeto do prédio está concluído e o início da construção está previsto para fevereiro de 2013. Serão 62 leitos de internação, sendo 12 para o cuidado à criança e ao adolescente usuários de drogas e 10 leitos exclusivos para o tratamento de funcionários e alunos da comunidade USP. O edifício contará com cinco andares, sendo um destinado ao CAPS e ambulatório, um ao Creas e três andares com unidades de internação e ainda, um subsolo com os serviços administrativos e de apoio. O edifício do IAD estará localizado na Rua do Cotoxó, no bairro Pompeia, em São Paulo, onde hoje está o Hospital de Retaguarda de Cotoxó, do HC. (Jornal da USP)

IN 49 E RN 241 PREOCUPAM CLÍNICAS DE SAÚDE MENTAL Entre as clínicas psiquiátricas que atendem planos de saúde no Estado de São Paulo, algumas não recebem reajustes em suas diárias e taxas há nove anos. Esta foi uma das constatações da última reunião realizada pelo departamento de Saúde Mental do SINDHOSP, em 21 de novembro (na sede da Fehoesp). Ricardo Mendes, coordenador do departamento, presidiu a reunião. E classificou a situação dos prestadores como “indigna”. Com a colaboração de Danilo Bernik, coordenador do departamento de Saúde Suplementar, os participantes tomaram nota de informações importantes, como o fim do prazo para o cumprimento da Instrução Normativa nº 49, da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). Segundo Bernik, terminou o prazo para que as operadoras de planos de saúde se manifestassem a respeito dos ajustes que deveriam fazer em seus contratos, prevendo índices de reajustes periódicos para sua rede de prestadores. Ele recomendou que as clínicas procurem formalmente os planos, em busca de ne-

gociação. O não cumprimento da IN 49 pode gerar sanção comercial e multa às operadoras. A instrução foi editada pela ANS na tentativa de impor mais regularidade nos contratos firmados no mercado. A regra vale para todas as relações comerciais, inclusive as estabelecidas com hospitais e clínicas psiquiátricas. Outra mudança que preocupa os prestadores é a Resolução Normativa nº 241, um desdobramento da CMED 3, que proibiu a comercialização de medicamentos de uso restrito a hospitais por meio do preço final ao consumidor. Para equilibrar os custos dos hospitais e clínicas - que vinham compensando a defasagem no valor de suas diárias e taxas com a cobrança -, a ANS publicou a resolução. A proposta é que cada prestador apresente aos planos, e negocie junto a eles, a melhor maneira de transpor os custos antes cobertos pelos medicamentos de preço final a outros pagamentos. “É possível negociar uma taxa de manuseio, armazenamento e ministração do medicamento, em cima do preço de fábrica, além de propor adequação de valores de outras áreas”, explicou Bernik.

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MATÉRIA DE CAPA

NÃO HÁ

VAGAS O Estado de São Paulo registrará, até o fim de 2012, o fechamento de inúmeros hospitais psiquiátricos que possuíam convênios com o Sistema Único de Saúde (SUS). Somente na região de Sorocaba, no interior paulista, são mais de 600 leitos em processo de extinção, que funcionavam em instituições forçadas a fecharem as portas por inúmeros motivos, desde denúncias de mau funcionamento até inviabilização econômica por conta da política adotada pelo governo federal. Em geral, a alegação dos gestores é de que as instituições foram sendo asfixiadas economicamente, de forma gradual. Em média, uma diária paga pelo Ministério da Saúde (MS), hoje, gira em torno de R$ 35,00, afirmam os dirigentes. O valor, segundo eles, engloba as cinco refeições ao dia, os serviços médicos e de enfermagem, hotelaria e ministração de medicamentos. Por outro lado, o MS reconhece que não é mais de seu interesse manter hospitais psiquiátricos em sua rede de assistência em Saúde Mental. Na Consulta Pública nº 19, publicada no Diário Oficial da União em 5 de novembro último, a pasta define: “o hospital especializado em psiquiatria pode ser acionado para o cuidado das pessoas com sofrimento mental nas regiões de saúde enquanto o processo de implantação e expansão da Rede de Atenção Psicossocial ainda não se apresente suficiente, devendo ser priorizada a expansão e qualificação dos demais pontos de atenção da RAPS para dar continuidade ao processo de substituição de leitos em hospitais psiquiátricos”. Para Sergio Tamai, psiquiatra e ex-coordenador de Saúde Mental da Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo, este é um circulo vicioso. “Vejo a situação dos hospitais psiquiátricos, hoje, semelhante ao drama que vivem muitos familiares de pacientes. O desgaste para oferecer assistência é tanto que se perdem as condições do cuidar. Em geral, o familiar adoece, e fica sem condições de ajudar o doente. Vejo os hospitais desta maneira”, afirmou, durante evento da Federação das Santas Casas e Hospitais Beneficentes do Estado de São Paulo (Fehosp), na capital paulista, em 13 de novembro. O fenômeno de extirpação de vagas não é exclusividade do Estado mais populoso do país. Repete-se no Paraná, Rio de Janeiro, Bahia, Amazonas, entre outras capitais que enfrentam dilemas na assistência. Para Ricardo Mendes, coordenador do departamento de Saúde Mental do SINDHOSP, é lamentável o caminho escolhido pelo ministério, de deixar os hospitais morrerem aos poucos. “O MS sabe das condições precárias em que vivem muitas instituições. Vai deixando, até que surge uma denúncia. Então monta uma diligência, vai lá e decreta o fechamento da instituição, como se ninguém soubesse da precariedade da situação. É criminoso. Lamento que o governo tenha optado pelo asfixiamento, e não por investir em uma política integrada que qualificasse as instituições, para que elas fizessem parte de uma rede”. As que conseguem sobreviver contam com parcerias locais, celebradas mediante a necessidade real vivida pelos municípios brasileiros. Em encontro da Fehosp, no dia 13 de novembro, representantes de hospitais de diversas cida-

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des paulistas falaram sobre como tem sido sua luta para manter as portas abertas. Em São José do Rio Preto, o Hospital Dr. Adolfo Bezerra de Menezes, por exemplo, preocupa-se com salários atrasados de seus colaboradores. Sobrevive graças a uma renda extra, gerada pelo serviço de telemarketing, e às parcerias seladas com as prefeituras da região, que complementam as diárias pagas pelo Ministério da Saúde. Em Araras, na Clínica Antonio Luiz Sayão, a luta dos dirigentes é agora para se livrar da dependência do SUS. No entanto, quando a instituição resolveu entregar os leitos, ninguém do Ministério da Saúde apareceu para realocar os pacientes. “Eles tinham 90 dias para retirar os pacientes. Nada aconteceu. Foram 180 dias sem nenhuma medida, porque eles simplesmente não tinham para onde mandar. Ao final de quase dois anos, ainda restavam 200 pacientes SUS, sem destino, internados lá”, afirmou Ismael Biaggio. Em Franca, o Hospital Allan Kardec enfrenta as mesmas mazelas, acrescidas de um problema que bate à porta de todas as cidades brasileiras: o uso de drogas por menores infratores. Segundo Wanderlei Cintra, tornou-se comum a internação de menores usuários de drogas, em geral infratores, em seu hospital. “O governo não quer mais os hospitais psiquiátricos, mas eu sirvo para internar menores infratores, mesmo que


MATÉRIA DE CAPA minha instituição não seja preparada e adequada ao atendimento de crianças e adolescentes. Enfrentei juízes e promotores por conta disso, e a Promotoria da Infância e Juventude moveu ação civil pública, que determinou a construção de uma área especialmente para este atendimento”. Atualmente, o Estado de São Paulo conta com pouco mais de 13 mil leitos de internação para o tratamento de doentes mentais. Isso equivale a uma relação de 0,23 leito por mil habitantes, quando a recomendação da Organização Mundial de Saúde (OMS) é de um para mil. A recomendação nacional, do próprio Ministério da Saúde, é de 0,45 leito/ mil habitantes. Mesmo menor, o índice não consegue ser atingido. Em levantamentos aleatórios realizados pelo SINDHOSP em novembro último, os números demonstram a escassez de leitos e a falha na política de substituição. Na região de Guarulhos e Alto Tietê, por exemplo, existem quase três milhões de habitantes, apenas 57 leitos psiquiátricos (todos em hospitais gerais), e nenhum hospital psiquiátrico especializado. O dado leva à surpreendente conta de 0,019 leito psiquiátricos/mil habitantes. Vale lembrar que a região conta com 12 Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), equipamento considerado o mais importante da rede de assistência criada pelo ministério, mas que em sua maioria não possui leitos para internação. Cinco cidades do Alto Tietê não possuem nenhum centro, entre eles Biritiba-Mirim, Guararema, Poá e Salesópolis.

O fechamento de leitos preocupa devido ao aumento da demanda de doentes mentais não só no Brasil, mas em todo o mundo. Estimativas indicam que 20% da população do planeta têm algum distúrbio mental. Entre eles, o que mais aflige os municípios brasileiros é a ascensão do crack e de outras drogas, que demandam internação para tratamento. Pesquisa da Confederação Nacional dos Municípios realizada em 3.950 cidades brasileiras mostra que 98% delas já enfrentam problemas com o crack. Há casos em que a internação é necessária, como na desintoxicação de viciados em drogas e álcool, nos surtos psicóticos, onde há riscos de suicídio, nas esquizofrenias paranoides, quando os pacientes estão incontroláveis e violentos e também em alguns casos de transtorno obsessivo compulsivo. Antes da chamada “Reforma Psiquiátrica” existiam cerca de 120 mil leitos psiquiátricos no Brasil. De 2001 para cá, foram fechados 84 mil. Para Paulo Roberto Rogich, da diretoria do SINDHOSP, o Ministério da Saúde asfixia os hospitais, mas não encontra saída para o aumento da demanda. “Ao mesmo tempo em que a política do governo federal é de asfixiar os hospitais psiquiátricos por meio de pagamentos irrisórios, o Ministério Público manda internar compulsoriamente os pacientes usuários de álcool e outras drogas. Estamos virando manicômios judiciais. Os próprios CAPS, que foram criados para supostamente sanar o problema da atenção, encaminham pacientes para internação em nossas instituições, as mesmas que o ministério quer ver fechadas”, conclui.

A região metropolitana de Campinas, que inclui 19 municípios e conta com uma população de quase três milhões de habitantes, também sofre com a desassistência. Lá, existem 382 leitos psiquiátricos SUS (em hospitais gerais ou não) e 69 particulares. Levando em conta leitos particulares e SUS, a região possui 0,15 leito psiquiátricos/mil habitantes. São 34 CAPS, cuja distribuição se mostra irregular. Para se ter uma ideia, em Itatiba, que possui 104 mil habitantes, existem dois CAPS. Já em Sumaré, com uma população duas vezes maior (246 mil), existe apenas um CAPS. Santo Antonio de Posse, que possui 21 mil habitantes, tem um CAPS; em contrapartida, Nova Odessa não tem nenhum, mesmo registrando mais que o dobro em população (52 mil habitantes). No Brasil, há cerca de 35 mil leitos, ou 0,18 para cada grupo de mil habitantes. “Isso ocorre devido à política equivocada, de desospitalização, adotada pelo Ministério da Saúde há alguns anos e que levou ao fechamento de milhares de leitos especializados em saúde mental no país. E o pior: isso não veio acompanhado pela garantia de uma rede extra-hospitalar formada por Centros de Apoio Psicossocial, os CAPs, residências terapêuticas e outras ações”, afirma o presidente do SINDHOSP, Dante Montagnana.

Sergio Tamai


ESPECIAL

DECODIFICANDO A

SAÚDE MENTAL Por Aline Moura

Iniciado ainda em 1990, o Projeto Genoma Humano anunciou a conclusão do sequenciamento genético em 2003, levando a comunidade científica a um dado surpreendente e inicialmente frustrante: esperava-se encontrar 100 mil genes humanos, mas foram revelados 23 mil. O que nos diferencia, entretanto, de outras espécies menos complexas é a capacidade variante de nossos genes, que chega a uma possibilidade de três milhões de combinações. Não bastasse tamanha diversidade, nossa formação não depende apenas dos fatores biológicos, mas também da interação do biológico com o ambiente, o que pode trazer consequências inimagináveis. Para se ter uma ideia, segundo o professor Jair de Jesus Mari, da Unifesp, já se sabe que qualquer agressão precoce cerebral durante a formação do indivíduo – isto é, na gravidez – pode contribuir para o início de um quadro psicótico no futuro. A interação entre predisposição genética e o meio ambiente é chamada pelos especialistas de epigenética. O termo resume o conceito de que, ao longo da vida, podemos silenciar ou ativar genes conforme a maneira como vivemos, o que comemos, os traumas por que passamos etc. É esta premissa que vem sendo utilizada por cientistas ao redor do mundo para estudar as causas, as consequências, os tratamentos possíveis e as novas drogas direcionadas às doenças mentais, sejam neurológicas ou psiquiátricas. Na opinião de Alysson Muotri, biólogo molecular formado na Unicamp e professor da faculdade de Medicina da Universidade da Califórnia, tais constatações só tem sido possíveis porque a comunidade, aos poucos, vem abandonando o conceito de que cérebro e mente devem ser estudados de maneiras distintas. “Desde a década de 30, cérebro e mente vêm sendo estudados de forma separadas. Hoje, já admitimos que as doenças psiquiátricas têm origem biológica. Na verdade, tudo é neurociência. E conseguimos ver estudos mais voltados para esta união”, sentencia o pesquisador, que é pós-doutorado em neurociência e células-tronco pelo Instituto Salk, da Califórnia. Em sua opinião, esta visão equivocada é um dos motivos que tem levado os pesquisadores a dar mais atenção aos estudos relacionados a outras doenças, como Aids e câncer. Doenças que matam, em geral, atraem mais interesse da indústria farmacêutica. Os transtornos relacionados ao espectro da psiquiatria, no entanto, são os que mais incapacitam, embora não causem diretamente a maioria de mortes. Segundo Jair de Jesus Mari, 1/3 das doenças incapacitantes do Brasil são relacionadas a distúrbios neuropsiquiátricos. “Mas o país aplica apenas 2% de seu orçamento de saúde em prevenção e tratamento de doenças mentais”, considera. A despeito disso, novas descobertas despontam mundo afora. Em 2003, ano de conclusão do Projeto Genoma, um importante estudo, publicado na Revista

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Science, trouxe novo paradigma à ciência. O artigo revelava as conclusões de um longo acompanhamento, feito com 1.037 crianças, do primeiro ano de idade até os 27. Ao colherem as salivas dos bebês e dos adultos após 26 anos, pesquisadores descobriram que um polimorfismo em determinado gene (que o transforma em alelo curto) é preponderante para depressão. O mesmo estudo avaliou a predisposição genética, ligada a outro polimorfismo, relacionada à exposição a efeitos ambientais adversos, como urbanicidade, maconha e outras drogas. Resultado: o uso de maconha, por exemplo, aumenta em 10,2 vezes a chance de pessoas portadoras deste gene de desenvolverem psicose. Serão então que, no futuro, poderemos mapear nossos genes e conhece-los tão profundamente a ponto de adequar nosso estilo de vida às predisposições genéticas individuais? Ao menos em teoria, sim. Recentemente, anunciou-se, por exemplo, a chegada ao Brasil de um serviço de mapeamento genético completo, ao preço módico de R$ 23.900. Além do valor proibitivo, há quem ainda duvide que o sequenciamento genético puro e simples sirva para alguma coisa. Mas para a pesquisadora Mayana Zatz, do Centro de Estudos do Genoma Humano, as informações contidas em nossos genes são muito mais acessíveis do que imaginamos, principalmente se bem analisadas. “Há uma interação complexa entre a genética e a experiência, o que tem tudo a ver com o neurodesenvolvimento”. Segundo ela, o estudo detalhado dos genes não será útil apenas para o diagnóstico. “A prescrição de medicamentos também poderá chegar a um nível de detalhamento que leve em conta o estudo do mapa genético para se receitar”, afirmou, durante participação no II Congresso de Clínica Psiquiátrica, promovido pela Universidade de São Paulo no segundo semestre deste ano. A questão da ética, no entanto, espreita a ciência. “Vivemos dilemas importantes. Há um consenso internacional, por exemplo, de não submeter crian-


ESPECIAL ças a testes genéticos preditivos de doenças sem tratamento que possuem manifestação tardia. Qual o benefício que a criança e a sua família terão se souberem?”, questiona Mayana. A cientista traça um paralelo entre o câncer de mama, uma doença que já é possível ser prevista segundo o código genético, e o Alzheimer. “Muitas mulheres querem saber sobre suas chances de desenvolver câncer de mama para se prevenirem, porque há o que fazer. Mas a maioria dos adultos, quando colocada à prova, prefere não saber se possui chance de desenvolver Alzheimer”.

óvulos de sapo, em 1962. O feito de Shinya Yamanaka, décadas depois, foi reprogramar células em humanos, trabalho que culminou em publicação na revista Cell, em 2007. Yamanaka e Gurdon acabam de levar o Prêmio Nobel de Medicina, de 2012.

O que intriga, no entanto, são os caminhos diversos que códigos genéticos idênticos podem seguir. A ciência já sabe, por exemplo, que gêmeos monozigóticos apresentam diferenças epigenéticas, isto é, se desenvolvem de forma diferente em cada indivíduo. Segundo Mayana Zatz, as doenças genéticas não são necessariamente hereditárias. O contrário também é verdadeiro, isto é, o código genético não pode ser considerado uma sentença.

Muotri e seus amigos, na Califórnia, têm promovido pequenas revoluções nos estudos relacionados ao autismo, graças às pesquisas genéticas. E já se utilizaram da reprogramação celular para fazer suas descobertas. Com suas pesquisas, Muotri conseguiu curar, em laboratório, um neurônio autista com síndrome de Rett, um tipo grave de autismo. O feito só foi possível porque células adultas de autistas puderam ser reprogramadas em neurônios. “Revelamos defeitos em sinapses e mostramos a reversibilidade da condição em neurônios humanos, quebrando outro dogma, agora da neurociência”, escreveu Muotri, em seu blog chamado “Espiral”, que mantel no Portal G1, direcionado à comunidade brasileira. Os estudos agora avançam na busca de novas drogas, na reprogramação e repetição da cura em outros tipos de autismo e, finalmente, nos futuros testes fora das culturas de células, diretamente nos pacientes.

Estudos recentes também alertam para o fato de que características de personalidade têm componente genético de até 50%. Pesquisa comandada pela cientista Elaine Fox e publicada na revista Proceedings of the Royal Society sugere que uma variante no gene transportador de serotonina estaria relacionada à tendência individual de encarar os fatos de maneira mais otimista ou pessimista. Segundo Mayna Zatz, a pesquisa intrigou especialistas, e a ela mesma, porque verificou uma relação entre o gene LL e o otimismo. De acordo com o estudo, entre 97 pessoas testadas, 16 eram LL (os otimistas) e 36 eram CC (consideradas pessimistas). Isso significa que, da amostra, apenas 16% dos britânicos eram otimistas. Um estudo paralelo no Brasil mostrou, de um universo de 197 pessoas, que 78 são LL e 32 são CC. Isto é, 40% da amostra é otimista. Para Mayana, esses estudos precisam ser confirmados em diferentes populações, mas revelam uma tendência plausível do brasileiro em ser mais otimista. Mais do que isso: “Todos nós entendemos que pessoas com diabetes precisam tomar insulina, mas não temos nenhuma compreensão ou simpatia para aquelas que vivem de mau humor, chutando o balde, reclamando do mundo. Será que elas têm a variante pessimista no gene transportador da serotonina; seria possível compreendê-las melhor porque são geneticamente infelizes?”. Apesar de muitas perguntas ainda sem respostas, a ciência deu um salto nos últimos anos. Mal a sociedade chegou a uma conclusão sobre ser ético ou não o uso de células-tronco embrionárias em pesquisas científicas, um médico ortopedista japonês quebrou paradigmas sobre a possibilidade de uma célula adulta se transformar em uma célula pluripotente (que tenha capacidade de se reprogramar e se transformar em qualquer tecido). Até então, o inglês John B. Gurdon havia conseguido reprogramar células de

Para Alysson Muotri, o rápido reconhecimento da academia, com a concessão do Nobel, é merecido e deve trazer novo impulso aos cientistas. “O dogma caiu. Eles provaram que é possível transformar um tipo de célula em outro, como pele em neurônio”. O impacto desta descoberta, segundo Muotri, ainda está por vir, principalmente no que diz respeito à reprogramação celular e modelagem de diversas doenças humanas.

Outro grupo, da mesma universidade, mapeou alterações genéticas relacionadas a uma forma bem específica de autismo familiar, relacionada à epilepsia. Os cientistas sequenciaram a família desses pacientes, encontraram a base genética da doença, e descobriram qual gene era alterado. Ao estudar este gene, descobriram que seu metabolismo era defeituoso por conta da falta de um aminoácido. O próximo passo foi reproduzir a condição do autismo em cobaias animais. Uma tarefa difícil, segundo Muotri, já que o autismo é uma doença tipicamente humana. Mas os resultados foram surpreendentes, uma vez que os animais autistas, submetidos a uma dieta rica em aminoácidos, foram curados. “Logo depois, por não se tratar de medicamento e sim de uma dieta nutricional, estes aminoácidos foram introduzidos na dieta dos pacientes. O que eu sei, porque acompanho bem de perto, é que os pacientes estão muito melhores. Agora serão feitos testes de cognição. É verdade que existem diversos tipos e graus de autismo. Se um tratamento deu certo para um paciente, não significa que dará certo para outro. Mas com o custo baixo do sequenciamento genético, será possível sequenciar todos os pacientes e propor tratamentos personalizados”, revela Muotri.


PERFIL

NA ONDA DA

CIÊNCIA

Em uma de suas raras passagens pelo Brasil, o biólogo Alysson Muotri participou, em junho deste ano, do TEDxFortaleza, desdobramento local de um evento anual realizado na Califórnia, sob iniciativa da organização sem fins lucrativos chamada TED (Tecnologia, Desenvolvimento e Design), devotada ao conceito “Ideias que merecem ser espalhadas”. A missão do grupo é promover breves e interessantes palestras, sobre os mais diferentes temas, proferidas por mentes brilhantes (saiba mais em www.ted.com). Sem sombra de dúvidas, Muotri é uma dessas mentes. Não à toa, foi convidado a falar no TEDx. E tem aparecido bastante na mídia internacional, por conta de seus feitos em laboratório. Muotri desconstrói o mito do cientista nerd de óculos garrafais. Ainda não chegou aos 40 anos, pratica surfe e ioga, e fala com assustadora simplicidade de temas complexos demais à maioria das pessoas. A sensação que dá, depois de uma conversa com o neurocientista, é de que a ciência, afinal, pode ser acessível e compreensível. Em tom otimista, Muotri conversou com o Saúde Mental em Foco em 1º de novembro, via Skype. O brasileiro radicado nos Estados Unidos é mais um de nossos bons cientistas atraídos para o exterior. Formou-se em biologia pela Unicamp, doutorou-se em biologia genética pela USP e alçou voo em 2002, quando foi se pós-doutorar na Califórnia. Em neurociência e surfe. A sua contribuição mais significativa para a ciência, até agora, não é nada modesta. Muotri conseguiu reprogramar células de tecidos periféricos (pele, especificamente) e transformá-las em neurônios. Por si só, a experiência já é bombástica. Isso porque permite que células da pele de um paciente autista, por exemplo, sejam retiradas e reprogramadas em neurônios. “Com células-tronco embrionárias, não teríamos a base genética do indivíduo autista”, explica Muotri. Além disso, ao conseguir reprogramar qualquer célula, os cientistas tiram de seu caminho problemas éticos e religiosos. Tendo em mãos esta poderosa ferramenta, Muotri partiu para os estudos propriamente ditos, que comparam o funcionamento de células neuronais de pessoas normais e de autistas. “A primeira coisa que constatamos é que os neurônios dos autistas são levemente menores. Também que possuem menor número de espinhas neuronais, responsáveis pelas sinapses”, resume. A partir daí, sua equipe começou a estudar possíveis drogas que agissem para melhorar essas sinapses. E curassem o autismo, ao menos em laboratório. Isso foi em 2010. E a cura foi descoberta, inicialmente para um tipo raro de autismo, denominado síndrome de Rett. No início de 2012, o feito se repetiu, para o autismo clássico. Obviamente, os experimentos ainda são iniciais e, na visão de Muotri, demoram a ser testados em pacientes. Mas ele acredita: “Não acho que a cura para o autismo será impossível. A questão é até que ponto o autismo poderá ser reversível”. Alysson Muotri também contou ao Saúde Mental em Foco sobre experimentos realizados na Universidade da Califórnia, e que se utilizam da tecnologia para desenvolver uma diversidade de terapias. Os tablets, por exemplo, têm sido muito empregados para fazer a interface entre a comunicação do paciente autista com o mundo. “Talvez ele não fale comigo, não se comunique do jeito que a gente espere, mas ele consegue identificar o que é uma banana através de uma figura de banana no tablet. Ele pode não conseguir falar banana, mas ele sabe o que é, e a identifica”. A realidade virtual, segundo Muotri, também tem ajudado a decodificar como funciona o cérebro de um autista. Exposto a uma simulação

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Alysson Muotri

altamente controlada por meio de sensores, o autista se vê num ambiente virtual realístico, e reage de maneira diferente se comparado a pessoas normais. “Estamos aprendendo muito com isso. Uma pessoa normal chega numa sala e, se encontra uma pessoa sentada, foca seus olhos e sua atenção nesta pessoa. O autista não. A presença de outra pessoa, para ele, representa apenas um objeto. É como mapear a maneira autista de ver o mundo”, conta. Engajado na busca pela cura do autismo, Alysson Muotri afirma que seu objetivo é criar um Centro de Excelência para os estudos do Autismo no Brasil. Seu desejo é que o país entre na rota da ciência de forma mais desbravadora. “Me preocupa o fato de o Brasil estar ficando para trás”, afirma, com a convicção de quem convive com uma realidade de pesquisa e acesso a financiamentos completamente diversa da que existe por aqui. Nos Estados Unidos, empresas privadas patrocinam estudos, pessoas físicas mantém a cultura de doar quantias para causas em que acreditam, e a burocracia é menor. “Acho que é uma questão cultural. Sei de atitudes que acabaram mudando no Brasil por caminhos um tanto estranhos, mas que deram certo. Um exemplo é o cinto de segurança. Foi preciso criar uma lei que proibisse dirigir ou andar de carro sem cinto, multando os motoristas. Com o tempo, isso modificou o hábito das pessoas”, compara, com o jeito didático de explicar seus pensamentos. E arremata, otimista: “Acredito que a mudança de cultura pode chegar com força ao Brasil”. (AM)


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