O porco filósofo

Page 1


Julian Baggini

O porco filósofo 100 EXPERIÊNCIAS DE PENSAMENTO PARA A VIDA COTIDIANA

TRADUÇÃO: Edmundo Barreiros

Editora Dumarã 2



SUMÁRIO

Prefácio ....................................................................................................................... Agradecimentos .......................................................................................................... Uma nota sobre as fontes ...........................................................................................

9 11 13

1. O demônio maligno ................................................................................................. 2. Teletransporte ......................................................................................................... 3. A indiana e o gelo ................................................................................................... 4. Amante virtual ......................................................................................................... 5. O porco que quer ser comido ................................................................................. 6. A roda da fortuna .................................................................................................... 7. Quando não há vencedores .................................................................................... 8. Bom Deus ................................................................................................................ 9. Big Brother radical ................................................................................................... 10. O véu da ignorância ............................................................................................... 11.O iate Teseu ............................................................................................................ 12. Picasso na praia ..................................................................................................... 13. Tudo em preto, branco e vermelho ........................................................................ 14. Erro bancário a seu favor ....................................................................................... 15. Heroísmo comum ................................................................................................... 16. Tartarugas corredoras ............................................................................................ 17. A opção da tortura .................................................................................................. 18. A razão exige .......................................................................................................... 19. Fora da bolha de vidro ............................................................................................ 20. Condenado à vida ................................................................................................... 21. A terra dos epifênios ............................................................................................... 22. 0 bote salva-vidas .................................................................................................... 23. O besouro na caixa .................................................................................................. 24. 0 círculo quadrado ....................................................................................................

15 18 21 24 27 30 32 35 37 40 43 45 47 50 52 55 58 60 62 65 68 71 74 77

5


25. Buridan é um asno ........................................................................................ 80 26. Depois da dor ................................................................................................ 83 27. Obrigação cumprida ...................................................................................... 86 28. O cenário do pesadelo .................................................................................. 89 29. Dependência de vida ..................................................................................... 92 30. É disso que são feitas as memórias .............................................................. 95 31. Explicação que pouco explica ........................................................................ 98 32. Libertem Simone ............................................................................................ 101 33. A cabine da liberdade de expressão .............................................................. 104 34. Não foi minha culpa ....................................................................................... 107 35. Último recurso ................................................................................................ 110 36. Justiça preventiva .......................................................................................... 113 37. A natureza é o artista ..................................................................................... 116 38. Eu sou um cérebro ......................................................................................... 119 39. A vidente chinesa ........................................................................................... 122 40. O vencedor do cavalo-de-pau ........................................................................ 125 41. Tudo azul ........................................................................................................ 128 42. Pegue a grana e corra .................................................................................... 131 43. Choque futuro .................................................................................................. 134 44. Até que a morte nos separe ............................................................................. 137 45. O jardineiro invisível ......................................................................................... 139 46. O cérebro ameba .............................................................................................. 142 47. Coelho! ............................................................................................................. 145 48. O gênio do mal ................................................................................................. 148 49. A falha na soma das partes .............................................................................. 151 50. O suborno do bem ............................................................................................ 154 51. Viver em um tanque .......................................................................................... 157 52. Mais ou menos .................................................................................................. 160 53. Problema duplo ................................................................................................. 163 54. O eu ilusório ...................................................................................................... 165 55. Desenvolvimento sustentável ............................................................................ 168 56. O vórtice da perspectiva total ............................................................................. 171 57. Comendo Tiddles ................................................................................................ 173 58. Comando divino ................................................................................................... 176

6


59. Está nos olhos .............................................................................................................. 179 60. Faça o que eu digo, não faça o que eu faço ................................................................. 182 61. Lua de mozarela ............................................................................................................ 185 62. Penso, logo? .................................................................................................................. 188 63. Você sabia? .................................................................................................................... 190 64. Cortar o mal pela raiz ..................................................................................................... 193 65. O poder do espírito ......................................................................................................... 196 66. O falsário ........................................................................................................................ 199 67. O paradoxo do restaurante indiano ................................................................................ 202 68. Dor maluca ...................................................................................................................... 205 69. O horror ........................................................................................................................... 208 70. A visita do fiscal ...............................................................................................................211 71. Suporte de vida ............................................................................................................... 214 72. Libertem Percy ................................................................................................................ 217 73. Ser um morcego ............................................................................................................. 220 74. Água, água por toda parte .............................................................................................. 223 75. O anel de Giges .............................................................................................................. 226 76. Cérebro eletrônico ........................................................................................................... 229 77. bode expiatório ............................................................................................................... 232 78. Apostar em Deus ........................................................................................................... 235 79. Laranja mecânica ........................................................................................................... 238 80. Corações e mentes ........................................................................................................ 241 81. Estranho sentido ............................................................................................................. 244 82. Na aba ............................................................................................................................ 247 83. A regra de ouro .............................................................................................................. 250 84. O princípio do prazer ...................................................................................................... 253 85. O homem que não existe ............................................................................................... 256 86. Arte pela arte .................................................................................................................. 259 87. Desigualdade justa ......................................................................................................... 262 88. Total falta de memória .................................................................................................... 265 89. Mate e deixe morrer ........................................................................................................ 268 90. Uma coisa que não sabemos o que é ............................................................................. 271 91. Ninguém se machuca ..................................................................................................... 274 92. Governo automático ....................................................................................................... 277

7


93. Zumbis .......................................................................................................................... 280 94. O imposto de Sorites .................................................................................................... 283 95. 0 problema do mal ........................................................................................................ 286 96. A família em primeiro lugar ........................................................................................... 289 97. Sorte moral .................................................................................................................... 291 98. A máquina de experiência ............................................................................................. 294 99. Dar uma chance à paz? ................................................................................................. 297 100. O café Nest ................................................................................................................... 300

8


Prefácio A imaginação sem razão não passa de fantasia, mas razão sem imaginação é estéril. Em parte é por isso que tanto cientistas quanto filósofos sempre usaram situações imaginárias para ajudar a afiar suas idéias e levá-las aos seus limites. O objetivo de tais “experiências de pensamento” e remover tudo o que complica as coisas na vida real para se concentrar com clareza na essência de um problema. Um dilema ético da vida real sempre será complicado pelas contingências, fatores específicos ao contexto. Tome, por exemplo, a questão genérica de que comer carne é moralmente errado. Para refletir se é errado comer a carne que você tem a oportunidade de consumir, vários fatores entram em ação. Alguns animais são criados em fazendas industriais, alguns têm um tratamento humano, outros são capturados na natureza. Há carne orgânica, geneticamente modificada ou enviada do outro lado do mundo. Para chegar à conclusão ética do que é certo ou errado, é necessário desvendar todos esses múltiplos fatores, avaliar as diferentes considerações de acordo com isso. As experiências de pensamento podem ajudar porque, como experiências científicas, buscam isolar as variáveis-chave, os fatores específicos que estão sendo examinados, a fim de se verificar que diferença eles, e apenas eles, fazem em nossa compreensão do mundo. Para ponderar sobre a ética de comer animais, podemos imaginar situações nas quais essa questão importante em particular é a única diferença entre dois cenários. Se estamos preocupados com a maneira como tratamos os animais nas fazendas, vamos imaginar qual a diferença que o bom tratamento, e apenas o bom tratamento, pode fazer. Se são nossas intenções que estão sob escrutínio, podemos perguntar qual a diferença se o seu frango à Kiev morreu em um acidente ao passo que torceram intencionalmente o pescoço do meu, mas antes disso eles tiveram vidas idênticas. Basta estipular que todas as outras

9


coisas são iguais, e a única questão que temos de enfrentar é a questão de cerne moral. Experiências de pensamento não têm apenas a vantagem de ser mais organizadas e meticulosas que a vida real. Elas podem realmente nos ajudar a pensar sobre coisas que não poderíamos, ou não desejaríamos, testar na vida real. Às vezes elas exigem que imaginemos o que não é prático, ou o impossível, ou para alguns de nós agora, ou para muita gente sempre. Apesar de esses problemas nos pedirem para considerar coisas que podem parecer bizarras, o objetivo de toda experiência de pensamento é o mesmo: manter nosso foco em conceito nucleador ou problema. Se uma situação impossível nos ajuda a fazer isso, então sua impossibilidade não nos interessa. A experiência é apenas uma ferramenta para auxiliar nosso pensamento, não tem a intenção de descrever a vida real, As cem situações deste livro se inspiraram, principalmente, mas nem sempre, em argumentações de filósofos. As vezes eles tomam pressupostos raramente questionados e os viram de cabeça para baixo. As vezes sugerem maneiras de resolver o que parecem ser problemas insolúveis, E às vezes nos fazem ver problemas que nem parecem problemas até que você observa e reflete sobre suas implicações. Este não é um livro de referência nem uma compilação de respostas para velhos enigmas. É mais uma provocação, um estímulo a um pensamento mais profundo. Nos comentários após cada situação, posso sugerir uma maneira para sair da dificuldade, ou posso fazer o papel do advogado do diabo: cabe a você decidir qual. De maneira parecida, minha intenção ao fazer o cruzamento de referências é sugestiva, não científica. Às vezes a ligação entre os cenários é óbvia. Em outras, a própria conexão é uma maneira de fazer você olhar para o problema sob nova luz. Muitas linhas de pensamento podem se iniciar neste livro. Nenhuma termina nele.

10


Agradecimentos Experiência de pensamento número 101: um escritor aceita o

apoio, a ajuda e o conselho dados por outras pessoas de bom grado e não os menciona nos agradecimentos de seu livro. Ele é só relaxado e esquecido ou é moralmente culpado? Tenho certeza de que sou um ou outro. Mas não vou me esquecer de todos. Editores para quem nome de seu trabalho implica em um verbo, e não apenas um substantivo, fazem contribuições fundamentais ao resultado final de livros. George Miller é um desses editores, e suas idéias, da concepção à finalização, foram indispensáveis. Também tive a ajuda de muitas pessoas maravilhosas na Granta: Sajidah Ahmad, Louise Campbell, Francis Hollingdale, Gail Lynch, Angela Rose, Will Salmon, Bella Shand, Colette Vella e Sarah Wasley. E Lizzy Kremer, que continua a guiar e apoiar com inteligência e energia. Para evitar mencionar alguns e esquecer outros, gostaria de mandar um agradecimento geral a todos os que responderam a perguntas ou me forneceram alguma fonte enquanto escrevia este livro. Dizer que eles são numerosos demais para citar seria mentira. São simplesmente numerosos demais para alguém que não é cuidadoso o suficiente para manter um registro que o ajude a lembrar depois. Por último, gostaria de agradecer a Jeremy Stangroom, oficialmente porque sua conversa inteligente, perspicaz e desafiadora tem sido por muitos anos uma inspiração, mas, na verdade, porque ele acha que agradecimentos e dedicatórias costumam ser apenas auto-elogios e bajulações, então isto aqui vai chateá-lo muito.

11


12


Uma nota sobre as fontes

Onde

existem uma ou mais fontes que podem ser identificadas para uma experiência, incluí seus detalhes no fim de cada cenário. Entretanto, deve-se observar que, apesar de minhas versões serem às vezes muito similares àquelas na fonte original, em alguns casos são bem diferentes. Os leitores devem, portanto, saber que essas fontes forneceram apenas a inspiração para as situações deste livro. Quando não há fonte citada, normalmente é porque a experiência de pensamento inspirou-se em um debate mais amplo no qual é impossível selecionar apenas uma ou duas fontes. Não significa necessariamente qualquer originalidade de minha parte. Alguns desses cenários podem ter fontes que não conheço e, por isso, não dei os devidos créditos. Eu terei prazer em corrigir tais omissões em qualquer edição futura.

13


14


1. O demônio maligno

Existe algo que seja tão evidente que não possa ser questionado? Não seria possível que nossas vidas não passem de sonho, ou que o mundo seja apenas uma invenção de nossa imaginação? Por mais inusitadas que sejam essas noções, o simples fato de serem concebidas mostra que é possível duvidar da realidade do mundo físico. Entretanto, há outras idéias que parecem não necessitar de explicação. São tão claras que devem ser verdade. Não importa se você está dormindo ou acordado: dois mais dois são sempre quatro. Um triângulo deve ter três lados, não importa se o mundo, real ou imaginário, tenha ou não triângulos. Mas e se Deus, ou um demônio muito poderoso e maligno, estiver enganando você? Será que tal espírito do mal conseguiria fazê-lo acreditar que o falso é obviamente verdadeiro? Já não vimos hipnotizadores fazerem pessoas contarem até dez sem perceberem que deixaram o número sete de fora? E o homem que, em um sonho, escuta quatro badaladas do relógio da igreja e se vê pensando: “Que estranho, o relógio marcou 1 hora quatro vezes!” Se o demônio maligno é uma possibilidade, será que existe algo que esteja além de qualquer dúvida? Fonte: A primeira meditação das Meditações de René Descartes (1641)

Filósofos têm o hábito de pegar algo que todos acreditamos saber e

então apresentar razões para nos fazer duvidar que sabemos isso. As leis da natureza, o mundo físico, Deus, bondade, outras mentes, justiça, tempo... Os filósofos já encontraram razões para duvidar de tudo isso. Para desenvolver tais argumentos profundamente céticos, o filósofo precisa usar algo que ele não pode se dar ao luxo de duvidar: sua

15


própria capacidade de pensar racionalmente. Assim, por exemplo, podemos duvidar da realidade do tempo porque o conceito tradicional de tempo tem contradições. Essas contradições envolvem uma violação de princípios lógicos básicos, como a impossibilidade de ser e não ser ao mesmo tempo. É a habilidade em reconhecer que essas são contradições lógicas que permite ao filósofo debater e justificar sua dúvida. Mas se estivermos sob a influência de um poderoso demônio enganador, uma possibilidade proposta pela primeira vez pelo filósofo francês do século XVII René Descartes, então podemos estar errados em tomar como verdadeiros esses princípios básicos. Pode nos parecer que eles são óbvios e dispensam explicações, mas para uma pessoa sob hipnose pode ser óbvio e evidente que depois do seis vem o oito. Para o sonhador iludido, pode parecer óbvio, e dispensar explicações, que o relógio tenha marcado 1 hora quatro vezes, quando todos “sabemos” que na verdade ele marcou 4 horas uma vez. A idéia de um demônio enganador pode parecer um pouco extravagante, mas a mesma dúvida pode ser apresentada de outras maneiras. Podemos ser simplesmente loucos, e nossa insanidade pode nos cegar para o fato de que os outros não vêem o mundo como nós. Ou talvez a evolução tenha dotado todas as nossas mentes com um conjunto fundamentalmente imperfeito de princípios lógicos. Talvez sejamos mais aptos a sobreviver se aceitarmos algumas falsidades como “obviamente verdadeiras”. O demônio pode estar codificado em nosso DNA. O espírito desta experiência é que, para avaliar sua plausibilidade, temos de confiar na única coisa que o teste, supostamente, põe em dúvida: nossa capacidade de raciocinar bem. Precisamos decidir se somos capazes de pensar bem quando pensamos o melhor que podemos. Então não podemos nos afastar da faculdade do pensamento que, supostamente, deveríamos avaliar e julgar a partir de uma perspectiva neutra. É como tentar usar um conjunto de balanças suspeitas para se pesar, para testar sua precisão. Talvez esta seja a recompensa da experiência de pensamento: nossa capacidade de raciocínio deve ser considerada algo básico para se empreender qualquer pensamento. Todos podemos duvidar da soli-

16


dez de qualquer fragmento de raciocínio se pensarmos muito sobre ele. Mas não podemos duvidar se nossa capacidade geral para raciocinar é falha ou não. No máximo podemos dizer que parece nos servir bem o bastante. Será que isso é suficiente para sustentar a racionalidade, ou a deixa enfraquecida? Ver também 19. Fora da bolha de vidro 28. O cenário do pesadelo 51. Viver em um tanque 98. A máquina de experiência

17


2. Teletransporte Para Stelios, a única maneira de viajar é o teletransporte. Antes ele levava meses para chegar da Terra a Marte, confinado em uma espaçonave apertada com um histórico de segurança muito longe de perfeito. O TeletransportExpress de Stelios mudou tudo isso. Agora a viagem leva apenas alguns minutos e, até agora, teve um índice de 100% de segurança. Apesar disso, ele está sendo processado por um cliente insatisfeito. Ele alega que a empresa, na verdade, o matou. Seu argumento é simples: para funcionar, o teletransporte escaneia seu cérebro e seu corpo célula por célula, depois destrói todas elas, envia a informação para Marte e lá reconstrói você. Apesar de a pessoa ter a mesma aparência, pensar e sentir como a pessoa que foi posta para dormir e enviada através do espaço, o requerente alega que, na verdade, o que aconteceu foi seu assassinato e sua substituição por um clone. Isso soa absurdo para Stelios. Afinal, ele fez a viagem pelo teletransportador várias vezes, e não se sente morto. Na verdade, como o requerente pode acreditar seriamente que foi morto pelo processo quando ele, claramente, tem a capacidade de levar o caso aos tribunais? Mesmo assim, quando Stelios entrou outra vez no teletransportador e se preparava para apertar o botão que iria começar a desmantelá-Io, ele, por um instante, se perguntou se estava prestes a cometer suicídio... Fonte: Capítulo 10 de Reasons and Persons, de Derek Parfit (Oxford University Press, 1984)

De

que depende a continuidade de nossa sobrevivência? Em circunstâncias normais, diríamos que do funcionamento constante de nosso corpo. Mas como não existe uma parte do corpo cuja troca

18


por um substituto sintético não possamos conceber, talvez isso não seja necessariamente verdade. Será que não continuamos a existir apenas enquanto nossa consciência continua? O dia em que ninguém acordar pensando ser eu, com minhas memórias, planos e personalidade, será o dia em que terei morrido. A teoria da “continuidade psicológica” da identidade pessoal tem um apelo intuitivo. Apenas porque ela parece refletir nossas intuições fundamentais nós podemos compreender histórias como A metamorfose de Kafka, na qual um homem acorda com o corpo de um inseto. Reconhecemos de imediato que o homem é o inseto porque este é habitado por sua mente. A continuidade mental, não física, identifica-o como a mesma pessoa. Mas no caso do teletransporte, apesar de termos uma continuidade psicológica tão completa quanto na vida comum, também parece, acima de qualquer dúvida, que o que foi criado é uma cópia, um clone. Um clone, entretanto, não é o mesmo indivíduo que a pessoa clonada. É o mesmo apenas no sentido em que duas estátuas feitas a partir do mesmo molde são as mesmas: são idênticas em todos os detalhes, mas, ainda assim, são entidades distintas. Se você lascar uma delas, a outra permanece intacta. Não é como se Stelios não soubesse como funciona seu teletransportador. Ele só não vê por que o fato de a máquina, estritamente falando, cloná-lo todas as vezes deva importar. Na verdade, a única coisa que interessa para ele é que entra na cabine e acorda em outro planeta. O mecanismo físico é irrelevante. Se isso soa superficial e pouco sincero, pense por um instante na possibilidade de que uma noite, há alguns anos, você foi raptado enquanto dormia, processado pelo teletransportado, e a pessoa resultante foi devolvida, sem saber, para a cama. Se isso tivesse acontecido, você não teria como saber, porque sua experiência consciente do progresso da vida como um ser contínuo seria exatamente a mesma, como se isso não tivesse acontecido. De certa forma, o teletransporte deixa sua vida e seu mundo exatamente como eram. Então talvez perguntar se Stelios é um clone ou “a mesma pessoa” seja a pergunta errada. Talvez, em vez disso, devêssemos perguntar o que importa em relação à nossa existência passada e futura. E talvez a

19


resposta seja a continuidade psicológica, por quaisquer meios que sejam necessários. Ver também 38. Eu sou um cérebro 46. O cérebro ameba 65. O poder do espírito 88. Total falta de memória

20


3. A indiana e o gelo Dhara Gupta morou a vida inteira em um viiarejo perto de Jaisalmer, no deserto do Rajastão. Um dia, em 1822, quando preparava o jantar, ela percebeu uma confusão. Ela foi ver o que estava acontecendo e descobriu que seu primo, Mahavir, tinha voltado de uma viagem iniciada dois anos antes. Ele parecia estar com boa saúde, e no jantar ele contou a todos suas aventuras. Contou histórias de roubos, animais selvagens, montanhas enormes e outras coisas incríveis que viu e aventuras que viveu. Mas o que realmente surpreendeu e deixou Dhara pasma foi sua afirmação de ter visto algo chamado “gelo”. Eu fui a regiões onde fazia tanto frio que a água parava de correr e formava um bloco sólido e translúcido — disse Mahavir. O mais impressionante é que não há um estado intermediário no qual o líquido fica mais grosso. A água que corre livre é apenas levemente mais quente que aquela que se solidificou. Dhara não queria duvidar de seu primo em público, mas ela não acreditou nele. O que ele disse contradizia toda a sua experiência. Ela não acreditava quando viajantes contavam sobre dragões que cospem fogo. Também não ia acreditar nesse absurdo de gelo. Ela achava, com razão, ser inteligente demais para isso. Fonte: Capítulo X “On Miracles” de An Essay Concerning Hurnan Undetstanding, de David Hume (1748)

Como Dhara pode ter razão quando, em um sentido, ela estava tão

obviamente errada? Sabemos que o relato de Mahavir sobre o gelo não é uma fantasia do nível de dragões, mas uma descrição bem precisa do que acontece com a água no ponto de congelamento.

21


Dhara estava certa no sentido em que às vezes erramos pelas razões certas. Tome, por exemplo, esses esquemas para ganhar dinheiro rapidamente. A maioria das pessoas que usa e-mail recebe mensagens, quase todos os dias, que prometem grandes ganhos a partir de um “pequeno” investimento de capital. Como praticamente todas essas mensagens, quase sem exceção, são fraudes, e levaria tempo demais para investigar suas credenciais uma a uma, o único procedimento racional é ignorar todas elas. Entretanto, isso significa que possivelmente um dia você ignore uma oportunidade real e deixe passar uma grande fortuna. Esse email em particular não seria uma fraude, mas, em um sentido importante, você ainda teria raciocinado de maneira correta quando concluiu que, provavelmente, o era. A mesma questão geral se aplica a Dhara. Não devíamos acreditar em tudo o que nos dizem sobre o funcionamento do mundo natural. Quando as pessoas nos dizem que podem levitar, parar relógios com a mente ou curar doenças com cristais, devemos, com razão, ser cétícos. Nossa experiência passada nos diz que tais eventos não acontecem, e todas as alegações anteriores de que eles ocorreram ou não têm provas para sustentá-las ou mostraram ser fraudulentas. Não precisamos achar que todos os que fazem tais afirmações são artistas da vigarice: eles podem simplesmente estar errados, ou fundamentarem suas afirmações em raciocínios equivocados. O problema é que, às vezes, surge algo que de fato nos obriga a reconsiderar o que achávamos saber. Não podemos rejeitar a idéia apenas porque ela não se encaixa em nossas crenças atuais. Em vez disso, precisamos de razões muito boas para fazê-lo, porque o que é sólido e estabelecido deve ter mais peso do que está sendo afirmado por um indivíduo ou pequeno grupo que vai de encontro a ele. Aqui está o problema de Dhara. O testemunho de uma pessoa, mesmo que seja seu primo, não é forte o suficiente para contradizer o que ela sabe sobre o mundo natural, onde líquidos não se transformam em sólidos em uma temperatura aparentemente mágica. Mas ainda assim ela deve aceitar que não foi a lugares com clima mais frio, ao passo que seu primo, sim. Sua própria experiência, portanto, é limitada, mas ela tem apenas a palavra de seu primo sobre o que existe além dela. Ao se recusar a acreditar nele, será que ela estreitou demais

22


os limites de seu conhecimento, ou estar errada nessa ocasião é o preço que ela pagou para não estar errada ou ser ingênua em muitas outras situações mais? Ver também 40. O vencedor do cavalo-de-pau 63. Você sabia? 76. Cérebro eletrônico 97. Sorte moral

23


4. Amante virtual Como muitas pessoas casadas por muitos anos, Dick estava entediado com seu relacionamento. Não havia mais paixão. Na verdade, Dick e sua esposa quase não dormiam mais juntos. Entretanto, Dick não tinha qualquer intenção de deixar sua mulher Ele a amava e ela era uma mãe excelente para seus filhos. Ele sabia muito bem qual a solução costumeira para esse problema: ter um caso. Você simplesmente aceita que sua mulher satisfaz algumas de suas necessidades, e sua amante, outras. Mas Dick na verdade não queria trair a esposa, e ele sabia que ela não ia conseguir lidar com um relacionamento aberto, mesmo que ele conseguisse. Então quando Dick ouviu falar da Amante Virtual lnc. (“Melhor do que de verdade!”), ele pensou seriamente no assunto. A empresa oferecia a oportunidade de manter um caso virtual. Não ciber-sexo manual com uma pessoa do outro lado da conexão por computador, mas um ambiente de realidade virtual no qual você “dormia” com uma pessoa totalmente simulada. A sensação seria a mesma de sexo real, mas, na verdade, todas as suas experiências seriam geradas por computadores que estimulariam seu cérebro para fazer com que parecesse a você como se estivesse fazendo sexo. Todas as emoções de um caso, mas sem uma terceira pessoa, e, portanto, sem uma infidelidade real. Por que ele diria não?

Por que a infidelidade nos incomoda? Algumas pessoas dizem que

não deveria, e que isso acontece assim apenas porque somos culturalmente condicionados a expectativas fora da realidade de monogamia. Sexo e amor são bem diferentes, e somos tolos se deixarmos que

24


um elo de afeição seja rompido pelo ato de motivação biológica da cópula. Se o desejo pela monogamia é um artefato da cultura, ele tem, todavia, raízes bastante profundas. Muitos que experimentaram a vida em comunidades de amor livre ou tentaram um suíngue disseram não conseguir evitar ter ciúmes quando outros dormiam com as pessoas que amavam. Os entraves e dificuldades que nos dizem alegremente para jogar fora parecem ser mais que simples aberrações psicológicas a serem superadas. Então se a infidelidade provavelmente continuará a ser um problema para a maioria, por que ela nos incomoda? Imaginar como iríamos nos sentir se nossos parceiros usassem os serviços da amante virtual pode nos ajudar a responder a essa pergunta. Se não tivermos qualquer objeção ao cibersexo, isso sugeriria que o fator crucial é o envolvimento de outra pessoa. Nosso relacionamento mais íntimo deve ser um relacionamento de duas pessoas, e exclusivo. A monogamia tradicional é o que queremos ver mantido. Mas se nos opuséssemos ao caso virtual, isso pareceria indicar que, na verdade, não é o papel da terceira parte o crucial. O que causa dor não é voltar-se para outra pessoa, mas dar as costas para o relacionamento. Sob esse ponto de vista, quando Dick procura um computador para excitá-lo, está sinalizando que parou de ver a esposa como uma pessoa com quem ele deseja expressar sua sexualidade. Um caso normalmente é um sintoma dos problemas existentes em um relacionamento, não a primeira causa deles. Isso se encaixa no diagnóstico da fonte do desconforto de Dick com sua amante virtual. Pois é verdade que, mesmo antes de se conectar pela primeira vez a esse estímulo provocante, ele já havia parado de ver sua mulher sexualmente do jeito que fazia antes. E por isso o caso virtual não é um meio de lidar com o problema básico, mas de evitá-lo. No mundo real, as razões por que a infidelidade nos incomoda são complexas, e a pessoa que se opõe a um amante virtual pode se opor com ainda mais força a um caso de carne e osso. O que o caso de Dick nos permite fazer é focar nossa atenção em apenas um aspecto da infidelidade: até que ponto ela é uma rejeição de nosso relacionamento mais valioso.

25


Ver também 27. Obrigação cumprida 44. Até que a morte nos separe 91. Ninguém se machuca 96. A família em primeiro lugar

26


5. O porco que quer ser comido

Depois de quarenta anos de vegetarianismo, Max Berger estava prestes a sentar-se para se banquetear com lingüiças de porco, bacon crocante e peito de frango frito. Max sempre sentira falta do sabor da carne, mas seus princípios eram mais fortes que seus apetites culinários. Mas agora ele podia comer carne com a consciência limpa. As lingüiças e o bacon vinham de uma porquinha chamada Priscilla, que ele conhecera na semana anterior A porca tinha sido geneticamente modificada para ser capaz de falar e, mais importante, para querer ser comida. Acabar em uma mesa humana era a ambição da vida de Priscilla, e ela acordou na manhã do dia de seu abate com uma profunda sensação de expectativa. Ela contara tudo isso a Max antes de correr para o matadouro confortável e humanizado. Depois de ouvir sua história, Max achou que seria um desrespeito não comê-la. O frango viera de uma ave geneticamente modificada que havia sido “descerebrada”. Em outras palavras, ela viveu a vida de um vegetal, sem consciência de seu eu, do ambiente, da dor ou do prazer. Matá-la, portanto, não foi mais bárbaro que arrancar uma cenoura da terra. Mas quando o prato foi posto à sua frente, Max sentiu uma pontada de náusea. Seria aquilo apenas um reflexo, causado por uma vida inteira de vegetarianismo? Ou era o sinal físico de um desconforto psíquico justificável? Ele se recompôs, pegou seu garfo e sua faca e... Fonte: O restaurante do fim do universo — The Restaurant at the End of the Universe, de Douglas Adams (Pan Books, 1980)

A preocupação com o bem-estar animal não está restrita à pequena

parcela da população que é vegetariana. Isso não deveria ser surpresa já que, se a questão fosse apenas a morte, então os vegetarianos

27


não matariam moscas ou exterminariam ratos, O que muitos, nem todos, é verdade, fazem com prazer. Há duas razões principais para afirmar que a criação e o abate de animais são errados, Primeiro há a questão das condições em que os animais são mantidos. Aqui, o problema é o suposto sofrimento de um animal enquanto vivo, mais que o fato de sua morte. Em segundo lugar está o próprio ato de matar, dar cabo da vida de uma criatura que, de outra forma, teria um futuro decente. É possível lidar com a primeira questão apenas se assegurando que o animal seja mantido em boas condições. Muita gente preocupada com o bem-estar dos animais come carne de frango de granja e carneiros criados soltos, o que não pode ser feito de maneira intensiva e industrial, Entretanto, isso ainda deixa aberta a segunda razão para o vegetarianismo: a objeção ao ato de matar. Mas e se conseguíssemos criar animais que não tivessem interesse na própria sobrevivência, simplesmente por ter tanta consciência quanto uma cenoura? Como poderia ser errado privá-los de uma existência que eles nunca souberam possuir? Ou no caso de um animal que realmente deseja ser comido, como o bovino imaginado por Douglas Adams em O restaurante do fim do universo? Arthur Dent, o protagonista desse romance, rechaçou horrorizado a oferta que descreveu como “a coisa mais revoltante que já ouvi”. Muitos compartilhariam dessa repulsa. Mas como disse Laphod Beeblebrox em oposição a Dent, sem dúvida é “melhor do que comer um animal que não quer ser comido”. A reação de Dent parece não ser outra coisa além de uma versão do “fator eca” — o tipo de repulsa instintiva que as pessoas sentem quando confrontadas com algo que não parece natural, mesmo se não existem problemas morais em relação a isso, Transplantes de órgãos e transfusões de sangue pareceram coisas esquisitas quando concebidos pela primeira vez, mas conforme nos acostumamos aos dois, a idéia de que são moralmente errados morreu, com a exceção de algumas poucas seitas religiosas. As pessoas podem falar da dignidade de animais ou de um respeito pela ordem natural, mas podemos sugerir seriamente que a dignidade da espécie das galinhas é atingida pela criação de uma versão

28


descerebrada? A morte de Priscilla não é completamente dignificada? E mesmo os fazendeiros orgânicos, que selecionaram e criaram variedades para produção em larga escala, já não mexeram indevidamente com a ordem natural? Em suma, existe algum motivo para o vegetariano de hoje não compartilhar a mesa com Max assim que seu cardápio tornar-se realidade? Ver também 26. Depois da dor 57. Comendo Tiddles 72. Libertem Percy 91. Ninguém se machuca

29


6. A roda da fortuna

Marge não era matemática, mas sabia que tinha descoberto um sistema à prova de falhas para ganhar na roleta. Ela tinha observado a roleta girar no cassino por vários dias. Durante esse tempo percebeu que era surpreendentemente normal haver uma seqüência de resultados em que a bolinha caía apenas nos números vermelhos ou pretos. Mas a mesma cor sair cinco vezes seguidas era muito incomum, e seis seguidas aconteciam apenas uma ou duas vezes por dia, Esse seria seu sistema. As chances de a bola cair em um número da mesma cor seis vezes seguida eram mínimas. Então ela observaria, e assim que a bola tivesse dado, digamos, vermelho por cinco vezes seguidas, ela apostaria que a seguinte seria preto. Ela provavelmente venceria mais vezes que perderia, porque seis seguidas era raro demais. Ela tinha tanta confiança que já estava começando a pensar em como gastaria o dinheiro.

O

erro de Marge é um alerta contra os limites das experiências de pensamento. Se seu sistema parece à prova de falhas, é porque ela já o testou, e ele sempre funcionou. Mas só em sua cabeça. Se o apostador pode ser induzido ao erro com tanta facilidade apenas por imaginar o que aconteceria em situações hipotéticas, pode acontecer o mesmo com um filósofo. Seu erro, entretanto, é um erro de raciocínio, e não provocado por qualquer falha no mundo real em se equiparar àquele do intelecto. Seu erro é confundir a probabilidade de a bola cair na mesma cor por seis vezes seguidas com a probabilidade de cair na mesma cor depois de já ter feito isso cinco vezes seguidas. Imagine, por exemplo, um jogo de sorte simples em que as pessoas competem umas com as outras girando uma moeda. Na primeira ro-

30


dada, há 64 pessoas, na segunda 32, na terceira 16 e por aí vai até sobrar apenas duas. No início da competição, as chances de qualquer pessoa vencer era de 64/1. Mas quando você chega à final, cada competidor que sobrou têm uma chance de 50% de vencer. Pela lógica de Marge, entretanto, as probabilidades são definidas na primeira rodada. Assim, no final, apesar de haver sobrado apenas duas pessoas, Marge iria raciocinar que cada uma teria uma chance de 1/64 de vencer. O que significaria, claro, que haveria uma chance de 1/32 de cada um dos dois vencer! De volta à roleta, na verdade é improvável que a bola caia na mesma cor por seis vezes seguidas, assim como é muito improvável (1/ 64) que qualquer pessoa vença o torneio de cara ou coroa. Mas depois que a bola já caiu na mesma cor cinco vezes, a probabilidade inicial de uma seqüência de seis é irrelevante: na girada seguinte da roleta, as chances de a bola cair no vermelho ou no preto são menores do que 50% (também há duas casas verdes na roleta). A questão é que a improbabilidade do que aconteceu no passado não afeta a probabilidade do que ainda vai acontecer. Marge deveria ter visto isso. Se tivesse observado a freqüência com que uma série de cinco números da mesma cor se estendia para uma série de seis, ela teria visto que as chances, na verdade, eram um pouco menos de 50/50. Seu erro, então, não foi apenas um erro de raciocínio. Ela errou por imaginar que algo fosse uma coisa que sua observação poderia confirmar não ser. Ela é uma experimentadora muito fraca, em sua mente e no mundo, Ver também 3. A indiana e o gelo 16. Tartarugas corredoras 42. Pegue a grana e corra 94. O imposto de Sorites

31


7. Quando não há vencedores O soldado Sacks estava prestes a fazer algo horrível. Ele recebera ordens de primeiro estuprar e depois assassinar a prisioneira, que para ele não passava de uma civil inocente com a origem étnica errada. Mão havia dúvida em sua mente de que aquilo seria uma grande injustiça — na verdade, um crime de guerra. Mas ao pensar rapidamente sobre aquilo, viu que não tinha escolha além de ir em frente. Se obedecesse à ordem, poderia tornar aquilo o menos doloroso possível para a vítima, assegurando-se de que ela não sofresse mais que o necessário. Se não obedecesse à ordem, ele próprio seria morto e a prisioneira ainda assim seria estuprada e morta, mas provavelmente com maior violência. Era melhor para todo mundo se ele fosse em frente. Seu raciocínio parecia bem claro, mas é evidente que isso não o deixou tranqüilo. Como ele podia, ao mesmo tempo, fazer o melhor possível naquelas circunstâncias e, ainda assim, algo terrivelmente errado?

-– Se eu não fizer, outro vai fazer.

Falando de maneira geral, essa é uma desculpa muito fraca para fazer algo errado. Você é responsável por seus erros, independentemente do fato de que outros fariam o mesmo, de qualquer maneira. Se encontrar um conversível esportivo com a chave na ignição, entrar e sair dirigindo, sua ação não deixa de ser furto só porque era uma questão de tempo antes que outra pessoa fizesse o mesmo. No caso de Sacks, a justificativa tem uma diferença sutil, mas muito importante. Pois o que ele diz é o seguinte: “Se eu não fizer isso, outra pessoa fará com conseqüências muito maiores.” Sacks não ape-

32


nas está resignado em relação ao mal que virá; está tentando se assegurar de que o melhor possível — ou o menos pior — ‘ai acontecer. Normalmente, seria perfeitamente moral fazer todo o possível para evitar o máximo de dano. O melhor que Sacks pode fazer é salvar a própria vida e fazer com que a morte da prisioneira seja o menos dolorosa possível. Mas esse raciocínio o leva a participar de estupro e assassinato, o que, sem dúvida, nunca pode ser a coisa moralmente certa a fazer, É difícil resistir à tentação de imaginar uma terceira possibilidade — talvez apenas matar a prisioneira e a si mesmo. Mas devemos resistir, pois nas experiências de pensamentos nós controlamos as variáveis, e o que estamos perguntando aqui é o que faríamos se só houvesse duas possibilidades: cumprir a ordem ou se recusar a fazê-lo. Toda a questão de estabelecer o dilema dessa forma é nos forçar a encarar de frente o problema moral, e não imaginar uma maneira de evitar fazê-lo. Algumas pessoas podem defender que há ocasiões em que é impossível fazer a coisa certa. Se você estiver condenado da mesma forma por fazer ou não fazer, a imoralidade é inevitável. Em tais circunstâncias, devíamos buscar a opção menos pior. Isso nos permite dizer que Sacks ao mesmo tempo faz o melhor possível e erra, Mas essa solução apenas cria um problema diferente, Se Sacks fez o melhor que pôde, então como podemos culpá-lo ou puni-lo por isso? E se ele não merece culpa ou punição, será que o que ele fez não foi errado? Talvez, então, a resposta seja que o ato pode ser errado, mas a pessoa que o cometeu não possa ser responsabilizada. O que ele fez era errado, mas a pessoa que o fez não pode ser culpada. A lógica resiste. Mas será que reflete a complexidade do mundo ou é apenas uma distorção sofística para justificar o injustificável? A alternativa é dizer que o fim não justifica os meios. Sacks devia se recusar a cumprir a ordem. Ele vai morrer e o prisioneiro sofrerá ainda mais, mas é a única escolha moral disponível para ele. Isso pode preservar a integridade de Sacks, mas existe objetivo maior do que salvar vidas e aliviar o sofrimento?

33


Ver também 44. Até que a morte nos separe 55. Desenvolvimento sustentável 82. Na aba 91. Ninguém se machuca

34


8. Bom Deus

E o Senhor disse para o filósofo: – Eu sou o Senhor teu Deus, e sou a fonte de todo o bem. Por que a filosofia moral secular me ignora? E o filósofo disse para o Senhor: – Para responder preciso, primeiro, Lhe fazer algumas perguntas. O Senhor nos manda fazer o que é bom. Mas é bom porque o Senhor ordena, ou o Senhor ordena porque é bom? – Er.. — disse o Senhor. — É bom porque eu ordeno. – Resposta errada, sem dúvida, ó Todo-poderoso! Se o bem é bem apenas porque o Senhor diz que é, então o Senhor poderia, se desejasse, fazer com que torturar crianças fosse bom. Mas isso seria absurdo, não seria? – Claro! — respondeu o Senhor. — Eu o testei, e você me agradou. Qual era mesmo a outra opção? – O Senhor escolheu o que é bom porque é bom. Mas isso mostra com bastante clareza que a bondade não depende do Senhor em nada. Então não precisamos estudar Deus para estudar o bem. – Mesmo assim — disse o Senhor —, você tem de admitir que escrevi alguns bons livros sobre o assunto... Fonte: Eutifron de P!atão (380 a C)

Quando eu estava na escola, costumávamos cantar um hino no qual

Deus era equivalente a todos os atributos possíveis. Cantávamos que Deus é amor, Deus é bom, Deus é verdade e Deus é beleza. Não é de se espantar que o refrão terminasse com “Vamos louvá-lo!”. A idéia de que Deus é bom é, entretanto, ambígua. Tanto pode significar que Deus é bom da mesma forma que um bolo é bom, ou João é bom.

35


Nesses casos, o “é” serve para atribuir a algo uma qualidade ou propriedade, como a bondade ou a cor azul. Da mesma forma, entretanto, “Deus é bom” poderia ser uma frase como “Água é H2O”, ou “Platão é o autor de A República”. Nesse caso, “é” indica uma identidade entre os dois termos: uma coisa é idêntica à outra. No hino, o “é” parecia ser um de identidade, não de atribuição. Deus não é amoroso, mas é amor; não é belo, mas beleza. Deus não apenas tem essas qualidades elevadas, ele as é. Portanto, “Deus é o bem” implica que as noções de Deus e do bem estão inextrincavelmente ligadas, que a essência do bem é Deus. Mas se é assim, então não é surpresa que muitos acreditem que não pode haver moralidade sem Deus. Se o bem e Deus não podem ser separados, a moralidade secular é uma contradição de base. Entretanto, nossa conversa imaginária parece demonstrar com clareza e de maneira simples que não pode ser assim. Se Deus é o bem, é porque Deus é e escolhe fazer o que já é bom. Deus não faz com que algo seja bom apenas porque decide fazê-lo; ele escolhe isso porque é bom. Alguns podem protestar que esse argumento só funciona porque separa o que não pode ser separado. Se Deus é realmente bom, então não faz sentido propor um dilema no qual o bem e Deus sejam diferenciados. Mas como parece fazer muito sentido perguntar se o bem é bom só porque Deus ordena que seja, ou Deus ordena porque é bom, essa objeção simplesmente dá a questão como provada. Mesmo que Deus e o bem realmente fossem um, ainda seria razoável perguntar o que faz com que essa identidade seja verdadeira. A resposta sem dúvida seria que sabemos o que é bom e é isso que nos torna capaz de dizer com segurança que Deus é bom. Se Deus defendesse a tortura sem sentido, saberíamos que ele não é bom. Isso mostra que podemos entender a natureza do bem independentemente de Deus. E isso mostra que uma moralidade sem Deus não é um oximoro. Ver também 17. A opção da tortura 57. Comendo Tiddles 58. Comando divino 95. O problema do mal

36


9. Big Brother radical Na edição número 73 do programa Big Brother, os produtores introduziram um novo brinquedinho do mal: Pierre. O consultor de psicologia do programa explicou como aquilo iria funcionar – Como vocês sabem, o cérebro é o motor do pensamento e da ação, e o cérebro é totalmente físico. Nossa compreensão das leis da física é tamanha que agora podemos prever com precisão como o cérebro das pessoas vai reagir — e, em conseqüência, como as pessoas vão pensar — em resposta aos acontecimentos em seus ambientes. “Ao entrar na estação espacial do Big Brother, um escâner da mente vai mapear os estados cerebrais de todos os participantes. Nosso supercomputador, Pierre, monitora os vários estímulos aos quais os participantes são expostos e então é capaz de prever qual será seu comportamento futuro. “Claro, isso tudo é tão diabolicamente complicado que há limites estritos. É por isso que a tecnologia funciona melhor em um ambiente controlado e fechado como o da estação espacial do Big Brother, e também porque as previsões só podem ser feitas alguns momentos à frente, já que erros mínimos de previsão logo se acumulam e se transformam em erros maiores. Mas os telespectadores vão se divertir em ver o computador prever como os competidores estão prestes a reagir. De certa forma, vamos conhecer suas mentes melhor do que eles mesmos.” Fonte: A tese determinista do matemático francês Pierretmon Laplace (1749 1827)

O

cientista francês Pierre Laplace sugeriu que, se conhecêssemos as leis da física e a posição de cada partícula do Universo, seríamos capazes de prever tudo o que aconteceria no futuro, A teoria quântica demonstrou que isso é falso já que nem todos os processos causais são

37


estritamente determinados por condições anteriores. Há mais indeterminação no Universo do que Laplace supunha. Ainda assim, o efeito quantum ocorre apenas no menor nível, e a maioria dos objetos no mundo funciona como se fosse estritamente determinada por causas anteriores, como pensava Laplace. Portanto parece possível que possamos adotar algo menos completo que o ponto de vista de Laplace do observador que tudo vê, e assim fazer previsões mais modestas. Em suma, o computador do Big Brother radical ainda é uma possibilidade teórica. Poderia ser muito incômodo e perturbador assistir ao programa com o benefício das previsões de Pierre. Veríamos pessoas se comportar em seguida exatamente da maneira prevista por um computador que tinha conhecimento apenas dos estados físicos de seus cérebros e ambientes. Os concorrentes tomariam decisões que o computador já teria calculado que eles tomariam. Em suma: eles não pareceriam agentes livres fazendo escolhas autônomas, mas autômatos. Como deveríamos reagir a essa perspectiva? Uma maneira é negar sua possibilidade. Seres humanos têm livre-arbítrio, e isso significa que nenhum computador poderá fazer o que imaginamos que Pierre faça. Entretanto, essa resposta parece um exemplo de simplesmente se recusar a aceitar o que não gostamos. Precisamos saber por que Pierre não é possível, não apenas que nos digam que não é. O apelo da indeterminação quântica não serve. Mesmo se for verdade que a teoria quântica introduza mais imprevisibilidade que qualquer outra experiência de pensamento já permitiu, tudo o que ela faz é substituir um processo causal totalmente previsível por outro que contém elementos imprevisíveis e aleatórios. Mas nossas ações não são mais livres se resultantes de um processo causal aleatório que de processos estritamente determinados. O livre-arbítrio parece exigir que escapemos completamente da cadeia causal física. E isso, parece, é algo que não conseguimos fazer. A segunda resposta é aceitar que Pierre seja possível, mas argumentar que o livre-arbítrio, em um sentido muito importante, não é ameaçado por ele. Um caminho possível é estabelecer a diferença entre as noções de previsibilidade e liberdade. Costumamos prever, por exemplo, que prato e bebida nossos amigos vão pedir, mas não acha-

38


mos que a escolha deles não seja livre. Se isso é verdade, por que deveríamos achar que ser capaz de prever todo o comportamento de uma pessoa mostre que ela não é livre? Mas isso iria realmente salvar o livre-arbítrio? O que é a liberdade se não a habilidade de fazer o que você escolhe, independentemente do que aconteceu até o momento da escolha? Ver também 36. Justiça preventiva 39. A vidente chinesa 64. Cortar o mal pela raiz 92. Governo automático

39


10. O véu da ignorância Os vinte civis selecionados e escolhidos para viver na colônia de Marte receberam uma tarefa incomum. Haveria uma série de bens disponíveis no planeta, entre eles alojamento, alimentação, bebida e itens de luxo. Eles tinham de decidir, antes de viajar, em que base esses bens seriam distribuídos. Mas, isso é crucial, eles não sabiam quais seriam as tarefas mais importantes na colônia. Todo o trabalho poderia ser manual, ou poderia não haver qualquer trabalho manual. Poderia exigir grande inteligência, poderia também ser mais apropriado para pessoas com menos necessidade de estímulo mental. A primeira sugestão feita foi que tudo deveria ser dividido igualmente: cada um trabalharia de acordo com suas habilidades, e todos receberiam de acordo com suas necessidades. Mas então alguém levantou uma objeção. Se houvesse muito trabalho a ser feito e alguém se recusasse a fazer sua parte, não seria injusto recompensá-lo com uma fatia igual do bolo? Não haveria, sem dúvida, a necessidade de um incentivo à contribuição? A objeção foi aceita, mas isso apenas pareceu levar a outros problemas. A imparcialidade não parecia significar o mesmo que dar o mesmo para todos. Então, o que significaria? Fonte: Capítulo 3 de A Theory of justice, de John Rawls (Harvard University Press, 1971)

Segundo o filósofo político John Rawls, apesar de os colonos ainda

não saberem o que é imparcialidade, eles estão na posição ideal para descobrir. Eles estão tomando suas decisões sobre a maneira certa de distribuir os bens por trás de um “véu de ignorância” que os deixa no escuro sobre a facilidade com que vão lidar com a vida na colônia. Isso significa que podemos confiar que suas decisões serão totalmente imparciais. Por exemplo, como ninguém sabe se o traba-

40


lho intelectual ou o físico será mais valorizado em Marte, os colonizadores não devem apostar em um sistema em que qualquer tipo de trabalho seja mais bem remunerado. Isso os levaria a tratar as pessoas com habilidades diferentes da mesma maneira, o que parece ser bastante justo e imparcial. Rawls achava que se queremos saber o que é imparcialidade na Terra, deveríamos nos imaginar em posição semelhante. A diferença-chave é que também deveríamos imaginar que não sabemos se seremos espertos ou estúpidos, habilidosos ou desajeitados, capazes ou fracos. Assim podemos ser capazes de criar regras para determinar como distribuir bens que sejam completamente imparciais e não discriminem qualquer pessoa. Rawls achava que se empreendêssemos esse processo de maneira racional, iríamos acabar com um sistema no qual sempre nos assegurássemos que os menos privilegiados tivessem o máximo de privilégios possível. Isso porque não temos como saber se nós mesmos não estaríamos na escória da sociedade. Portanto, iremos prudentemente nos assegurar de que, se estivéssemos entre os desafortunados, ainda teríamos o máximo possível. Tudo isso leva a uma forma de democracia social liberal, na qual algumas variações na sorte são toleradas, desde que não seja à custa dos menos afortunados. Será que isso é mesmo pensamento imparcial ou racional? Como responder à pessoa que afirma que nada há de injusto em deixar o incapaz afundar? E a afirmação de que é perfeitamente racional apostar em ser um dos vencedores da vida em vez de jogar com segurança e optar por uma sociedade em que os perdedores sejam protegidos o máximo possível? Será que somos parciais se tomarmos como princípio que nos guia aquilo que acontecerá com a gente na sociedade, em vez de simplesmente considerar o que é justo e razoável? Os fãs de Rawls acreditam que o véu da ignorância é nosso melhor dispositivo para decidir como deveria ser uma sociedade justa. Os críticos dizem que ele não faz tal coisa: quando vamos para trás do véu simplesmente levamos nossas visões e preconceitos políticos existentes e tomamos decisões de acordo com eles. Então esta pode ser vista como a experiência mais útil ou mais inútil da história da filosofia política.

41


Ver tambĂŠm 22. O bote salva-vidas 29. DependĂŞncia de vida 87. Desigualdade justa 100. O cafĂŠ Nest

42


11. O iate Teseu

Isso não era o que Ray North esperava. Aquela mente criminosa de fama internacional orgulhava-se de sempre fazer o serviço. Seu último cliente pedira que ele roubasse o famoso iate Teseu, barco do qual o magnata inglês do jornalismo, Lucas Grub, se atirara para a morte e, mais recentemente, fora cena do assassinato do rapper de Los Angeles Daddy lced Tea. Mas quando ele chegou à doca onde o barco tinha acabado de ser consertado, deparou-se com dois barcos aparentemente idênticos. North virou-se para o segurança, que estava sob a mira da arma de um de seus comparsas. – Se quiser viver, é melhor me dizer qual desses é o verdadeiro Teseu — ordenou Ray. – Isso meio que depende. — Foi a resposta nervosa. — Sabe, quando começamos a consertar o barco, precisamos substituir muitas peças. Mas guardamos as velhas. À medida que o trabalho andou, trocamos praticamente tudo. Quando terminamos, um dos caras achou que seria bom usar todas as peças velhas e reconstruir outra versão do barco. Então a situação é essa. A esquerda está o Teseu consertado com as peças novas, e à direita, o Teseu restaurado com as peças velhas. – Mas qual é o verdadeiro Teseu? — insistiu Ray. – Eu já disse tudo o que eu sabia! — gritou o segurança quando o comparsa o apertou com mais força. Ray coçou a cabeça e começou a pensar num jeito de levar os dois barcos dali... Fonte: O Leviatã, de Thomas Hobbes (1651)

A filosofia se ocupa das questões que permanecem sem resposta

depois que todos os fatos foram reunidos. Nessa situação, Ray sabe todos os fatos relevantes sobre os dois barcos. Mas mesmo assim a resposta a essa pergunta permanece um mistério.

43


Para algumas pessoas, é intuitivamente óbvio qual é o verdadeiro Teseu. Mas a resposta que eles darão vai depender de como você conta a história. Se Ray fosse um detetive em busca de juntar provas factuais sobre as mortes de Lucas Grub e Daddy Iced Tea, seria óbvio que para ele o artigo genuíno seria o Teseu reconstruído. Ele poderia chegar à mesma conclusão se fosse um pesquisador de objetos com importância histórica. Entretanto, se houvesse uma disputa de propriedade, o Teseu consertado com peças novas seria considerado o original. Aquele é o barco que o proprietário teria o direito de velejar por aí. E se você tivesse colocado uma câmera na doca seca e acompanhado o progresso dos reparos, teria visto os trabalhos no barco que surgiu gradualmente até o resultado final, ao passo que o restaurado só teria começado a surgir mais tarde ao seu lado. Portanto, o barco reformado tem uma continuidade de existência, ao passo que o reconstruído não tem. Então você pode achar que qual é o “verdadeiro” Teseu não é uma pergunta com apenas uma resposta. Tudo depende dos seus interesses no barco. Mas essa resposta pode ter conseqüências perturbadoras. Afinal, as pessoas não são muito parecidas com o Teseu? Ao longo da vida, as células de nosso corpo morrem e são substituídas permanentemente. Nossos pensamentos também mudam, tanto que pouco do que estava em nossas cabeças quando tínhamos dez anos ainda permanece quando temos vinte, e esses pensamentos, memórias, convicções e disposições, por sua vez, são substituídos à medida que envelhecemos. Então devemos dizer que não há resposta certa para se somos a mesma pessoa que éramos há muitos anos e que isso só depende de qual é nosso interesse em nós mesmos? Se a identidade de Teseu não é uma questão factual, então será que pode haver um fato sobre a identidade de qualquer coisa que muda gradualmente com o tempo, incluindo seres humanos? Ver também 2. Teletransporte 46. O cérebro ameba 65. O poder do espírito 74. Água, água por toda parte

44


12. Picasso na praia Do alto do penhasco, Roy olhou para baixo, para o homem que desenhava na areia. A figura que começou a surgir o impressionou. Era um rosto extraordinário, não retratado de forma realista, mas de maneira que parecia visto de vários ângulos ao mesmo tempo. Na verdade, parecia muito um Picasso. Assim que essa idéia passou por sua cabeça, seu coração parou. Ele levou o binóculo aos olhos, que então teve necessidade de esfregar O homem na praia era Picasso. O pulso de Roy se acelerou. Ele passava por aquele caminho todo dia, e sabia que logo a maré ia subir e lavar um Picasso original autêntico. Ele tinha de fazer algo para salvá-lo. Mas como? Tentar deter o mar era inútil. Também não havia como fazer um molde da areia, mesmo que ele tivesse tempo para isso, coisa que ele não tinha. Talvez conseguisse correr até em casa para buscar sua câmera. Mas isso, no máximo, preservaria um registro da obra, não o próprio quadro. E se ele tentasse fazer isso, quando voltasse a imagem provavelmente já teria sido apagada pelo oceano. Talvez, então, ele devesse apenas desfrutar aquela imagem particular enquanto ela durasse. Ele ficou ali olhando, sem saber se ria ou chorava. Fonte: “ln season of calm weather”, de Ray Bradbury, reimpresso em A Medicine for Melancholy (Avon Books, 1981)

Não existe princípio geral que afirme existir algo trágico em uma obra

de arte que não resiste ao tempo. Isso depende totalmente da forma tomada pela arte. É simplesmente absurdo achar que uma performance deva ter uma existência permanente da mesma maneira que uma escultura. Claro, podemos filmar a performance ou guardar seu roteiro. Mas nenhum desses métodos congela o próprio trabalho

45


no tempo, como todos os que já viram um concerto ou uma peça memorável sabe muito bem. Quando se trata de escultura ou pintura, a preservação é vista como ideal. Mas quão definida é a diferença entre as performances e as artes plásticas? O desenho imaginário de Picasso sem dúvida deixa esses limites bem indistintos. A escolha incomum de meio significa que o que normalmente sobrevive é transformado em uma performance fugaz. Reconhecer que não existe uma linha divisória definida entre as artes “performáticas” e as artes plásticas pode nos levar a reconsiderar nossas atitudes em relação à preservação e à restauração. Em geral, partimos do princípio de que é desejável manter ou restaurar quadros, para que fiquem parecidos com o que eram quando novos. Mas talvez devêssemos ver a deterioração lenta das obras de arte como parte essencial de sua dimensão performática. Sem dúvida muitos artistas levam em consideração como suas obras vão envelhecer no momento em que as criam. Frank Gehry, por exemplo, sabia como a exposição aos elementos afetaria o exterior de titânio de sua obra-prima arquitetônica, o museu Guggenheim em Bilbao. Da mesma forma, os mestres antigos não ignoravam como seus pigmentos envelheceriam. Talvez possamos ir mais longe e dizer que nosso desejo de preservar é uma forma de negação de nossa própria imortalidade. O fato de que a arte dura mais que as pessoas levou alguns a buscar uma forma de substituto da imortalidade por meio disso, (Apesar da frase famosa de Woody Allen, que disse querer imortalidade por meio da arte, apenas por não morrer.) Se aceitamos que a arte também é mortal, e que nada é verdadeiramente permanente, talvez possamos ver com mais clareza onde devemos encontrar o valor da arte e da vida: ao experimentá-las, Ver também 37. A natureza é o artista 48. O gênio do mal 66. O falsário 86. Arte pela arte

46


13. Tudo em preto, branco e vermelho Mary sabe tudo o que há para saber sobre a cor vermelha. Como cientista, esse foi o trabalho de sua vida. Se você quer saber por que não vemos os infravermelhos, por que os tomates são vermelhos ou por que o vermelho é a cor da paixão, Mary é a mulher Tudo isso não seria nada de mais, não fosse Mary uma acromática: ela não vê cor alguma. O mundo, para Mary, é como um filme em preto-ebranco. Agora, entretanto, isso tudo está para mudar. As células de sua retina não têm problemas. Os sinais é que simplesmente não são processados pelo cérebro. Mas os avanços na neurocirurgia significam que isso, agora, pode ser consertado. Mary, em breve, vai ver o mundo em cores pela primeira vez. Então, apesar de todo o seu conhecimento, pode ser que, na verdade, ela não saiba tudo sobre a cor vermelha. Resta uma coisa para ela descobrir: qual a aparência do vermelho. Fonte: “What Mary didn’t know”, de Frank Jackson, em The Nature of Mind, organizado por David Rosenthal (Oxford University Press, 1991)

A maioria das pessoas educadas não perde muito tempo pensando

na idéia de que a mente e o corpo são duas coisas diferentes, que de alguma forma coexistem lado a lado. O conceito de uma alma imaterial que habita nossos corpos animais — um espírito na máquina está fora de moda, é implausível e anticientífico, Simplesmente rejeitar uma visão de mundo equivocada, entretanto, não quer dizer que você fica com a verdadeira, Se você dispensar o dualismo mente-corpo, o que o substitui? O candidato óbvio é o fisicalismo: há apenas um tipo de coisa, a coisa física, e tudo, até a

47


mente humana, é feito disso. Sem dúvida essa “coisa” pode ser energia, e não bolas de bilhar subatômicas, mas seja lá do que são feitas as cadeiras, todo o resto também é feito disso. Que seja. Mas o fervor fisicalista pode ir longe demais. Mesmo que exista apenas um tipo de “coisa”, isso não significa necessariamente que o mundo pode ser compreendido apenas por meios físicos. É isso que a história de Mary ilustra. Como cientista, Mary sabe tudo sobre o vermelho em termos físicos. Mas ainda assim há algo que ela não sabe: qual a aparência do vermelho. Nenhum relato científico deste mundo pode transmitir a ela essa informação. A ciência é objetiva, experimental, quantitativa; a experiência sensorial — na verdade toda experiência mental — é subjetiva, experimental e qualitativa. O que isso parece mostrar é que não há descrição física do mundo, por mais completa que seja, que possa capturar o que se passa em nossas mentes. Como dizem os filósofos, é impossível reduzir o mental ao físico. Isso apresenta um desafio para os fisicalistas. Como pode ser verdade que não haja nada no mundo além das coisas físicas, ao mesmo tempo em que há eventos mentais que não podem ser explicados em termos físicos? Será esse um caso de pular da frigideira dualista para o fogo fisicalista? Vamos imaginar que a própria Mary é uma fisicalista. O que ela diria? Talvez ela começasse a mostrar que há uma diferença entre aparências e realidade: entre o que as coisas são e o que elas parecem ser, A ciência se preocupa com a primeira, não a segunda, porque o conhecimento é sempre de como são as coisas, e não do que elas apenas parecem ser. Mary sabe tudo sobre o que é o vermelho, ela só não “sabe” qual a aparência do vermelho para a maioria das pessoas. Ela sabe como parece para ela, claro, um tom de cinza em particular. Então, quando Mary enxergar as cores pela primeira vez, o mundo vai parecer completamente diferente para ela. Mas seria verdade dizer que ela vai saber algo novo sobre ele? Pode parecer natural dizer que ela “sabe” como o vermelho se parece. Mas às vezes nossos meios comuns de falar podem nos deixar cegos para distinções mais sutis que um filósofo poderia se preocupar em apontar.

48


Ver também 21. A terra dos epifênios 41. Tudo azul 59. Está nos olhos 73. Ser um morcego

49


14. Erro bancário a seu favor Quando Richard foi ao caixa eletrônico, teve uma surpresa agradável. Ele pediu um saque de $100, e recebeu $10.000 (com um recibo de apenas $100). Quando chegou em casa, conferiu seu saldo via internet e viu que não havia dúvida de que apenas $100 tinham sido debitados de sua conta. Ele guardou o dinheiro em lugar seguro, esperando que o banco logo identificasse o erro, e o pedisse de volta. Mas passaram-se semanas e ninguém ligou. Depois de dois meses, Richard concluiu que ninguém ia pedir aquele dinheiro de volta. Então foi até uma concessionária de automóveis levando no bolso a entrada para um carro esporte. Mas no caminho, sentiu uma pontada de culpa. Aquilo não era roubo? Ele logo se convenceu de que não era nada daquilo. Ele não pegara o dinheiro deliberadamente. Simplesmente fora dado a ele. E ele não o pegara de outra pessoa, então ninguém tinha sido roubado. Para o banco, era uma gota em um oceano, e, de qualquer forma, eles teriam seguro contra tais eventualidades. A culpa de ter perdido o dinheiro era deles — que deveriam ter sistemas mais seguros. Não, isso não era roubo. Era apenas o maior golpe de sorte de toda a sua vida.

Não conheço ninguém que, quando descobre um “erro bancário” a

seu favor depois de tirar uma carta de “receba $200” em uma partida de Monopólio devolva o dinheiro ao banco, alegando não pertencer a ele na verdade. Mas na vida real, esperamos que uma pessoa honesta faça exatamente isso. Mas quantas pessoas o fariam? Acho que não muitas. Não que as pessoas sejam simplesmente imorais. Na verdade, fazemos discriminações bem refinadas em casos como esse. Por exemplo, se as pessoas acidentalmente recebem troco a mais de um pequeno comerciante independente, têm mais chances de apontar o erro do

50


que se ele for cometido por uma grande empresa. O princípio parece ser que é errado tirar proveito dos erros de outro ser humano, mas é justo com as grandes empresas. Provavelmente isso acontece, em parte, porque sentimos que, na verdade, ninguém sai ferido pelo erro de uma entidade corporativa, e a perda para eles é insignificante comparada ao benefício para nós. De um jeito estranho, então, nossa disposição para ficar com a grana é estimulada em parte por um sentido peculiar de justiça. Mas mesmo que cheguemos à conclusão de que essa é uma forma de roubo justificado, não deixa de ser roubo. O fato de isso ser resultado de acidente, sem a intenção de roubar, é irrelevante, Por exemplo, imagine que você, por engano, pega a bolsa de alguém no guarda-volumes e em seguida descobre que ela tem coisas muito mais valiosas que a sua. Se não fizer esforços para devolvê-la, a natureza acidental da obtenção inicial daquilo não justifica a decisão posterior e muito deliberada de nada fazer em relação a isso. Da mesma forma, você ficaria chateado e com razão se alguém pegasse algo de valor que você, sem querer, esqueceu em algum lugar, raciocinando que foi sua culpa por não ter sido cuidadoso o suficiente. O pensamento de Richard de que o banco pode muito bem arcar com a perda também é espúrio, pois se isso também justifica sua atitude, também justifica roubar objetos em lojas. As lojas também têm seguro, e pequenos furtos não vão afetar seus lucros. O motivo por que Richard foi tão facilmente convencido por seus próprios argumentos é que, como todos nós, ele é propenso a ver as coisas com uma ótica favorável a si mesmo em seu raciocínio. Motivos que justificam benefícios para nós mesmos parecem mais convincentes que aqueles que não o fazem. E muito difícil desatar essa propensão e pensar de forma imparcial. Afinal, por que iríamos querer fazer isso? Ver também 7. Quando não há vencedores 82. Na aba 83. A regra de ouro 91. Ninguém se machuca

51


15. Heroísmo comum A família do soldado Kenny ficou surpresa quando ele não recebeu a Cruz da Vitória por bravura. Afinal, ele tinha morrido ao abafar com o próprio corpo a explosão de uma granada que teria matado doze ou mais de seus camaradas. Se esse não fosse um ato emblemático de valor ou devoção na presença do inimigo, então o que seria? Eles exigiram uma explicação do regimento. A declaração emitida pelo exército dizia o seguinte: “No passado, era prática recompensar tais ações com a medalha apropriada. Entretanto, decidimos que é um erro considerar que tais atos exijam uma devoção excepcional ao dever. Os militares devem sempre agir no interesse de toda a unidade. Sugerir que o ato do soldado Kenny estava acima e além do chamado do dever, portanto, sugeriria que, às vezes, seria aceitável não agir no interesse de toda a unidade. Portanto, não recompensamos mais tais atos com condecorações póstumas.” “Apesar de sabermos que este é um momento doloroso para a família, devemos observar que o soldado Kenny teria morrido com a explosão da granada de qualquer maneira, portanto não é nem o caso de ele ter sacrificado sua vida pela dos colegas.” Foi difícil encontrar falhas na lógica fria do comunicado, mas em seus corações, a família de Kenny não estava convencida de que ele não tivesse agido de maneira heróica. Mas em que bases eles poderiam apelar?

A

história do soldado Kenny parece ser um exemplo do que os filósofos chamam de comportamento supererrogatório. Isso acontece quando alguém faz algo bom que está além do que é exigido deles pela moralidade. Por isso, por exemplo, a moralidade obriga você a tirar uma criança que está se afogando em um laguinho, algo

52


que não apresenta muitas dificuldades em ser feito, mas pular em um mar bravio, com o risco de sua própria vida, para salvar alguém é mais do que exige a moral. Para dizer de outra maneira, alguém será elogiado por fazer um ato supererrogatório, mas não será culpado se não o fizer. A existência de uma diferença entre coisas que somos obrigados a fazer e atos supererrogatórios parece ser conhecida. Portanto, se eliminarmos a diferença, isso se torna um problema para qualquer teoria moral. Esse parece ser o caso com o utilitarismo, que diz que a ação moralmente correta é aquela que beneficia o maior número. Se isso é verdade, então parece que não conseguimos fazer a coisa certa sempre que não conseguimos fazer o que é do interesse do maior número de pessoas, mesmo que para fazê-lo seja necessário grande sacrifício pessoal. Por exemplo, poderia ser defendido que viver mesmo em um modesto estilo de vida ocidental enquanto milhares morrem na pobreza a cada hora é não fazer o que exige a moral, já que poderíamos salvar vidas e decidimos não salvar. Além disso, ajudar os pobres não exige assim um sacrifício tão grande, relativamente falando, já que precisaríamos apenas abrir mão de alguns confortos que são, no grande esquema das coisas, luxos. Entretanto, quando alguém dedica sua vida a ajudar os pobres, costumamos achar que eles foram além da obrigação do dever, que não fizeram apenas o que a moral exige. Talvez gostemos de pensar assim porque nos tira de uma situação difícil. Afinal, se a moral exigisse que fizéssemos o mesmo, então seríamos fracassados morais. Da mesma forma, qualquer soldado que não agisse como o soldado Kenny teria agido imoralmente. Kenny fez apenas o que qualquer pessoa decente devia fazer naquelas circunstâncias: nem mais, nem menos. Talvez seja um exercício puramente intelectual se preocupar se atos normalmente considerados heróicos são supererrogatórios ou apenas o que a moral exige. O fato é que, sendo a natureza humana o que é, sabemos que algumas ações exigem esforços extraordinários. Se tais pessoas fazem mais que a moralidade exige ou se a maioria de nós é de fracassados morais, isso não muda coisa alguma.

53


Ver tambĂŠm 29. DependĂŞncia de vida 53. Problema duplo 71. Suporte de vida 89. Mate e deixe morrer

54


16. Tartarugas corredoras Bem-vindos à Grande Corrida Ateniense do homem contra a Tartaruga. Meu nome é Zenão e serei o comentarista da grande disputa. Entretanto, devo observar que o resultado já está determinado. Aquiles cometeu o terrível erro de dar a Tarquínio, a tartaruga, uma vantagem de 100 metros. Eu vou explicar. A tática de Tarquínio é se mover constantemente, por mais devagar que seja. Para Aquiles ultrapassar Tarquínio, primeiro ele deve chegar ao ponto onde está Tarquínio quando a corrida começa. Isso vai levar vários segundos. Nesse período, Tarquínio terá andado um pouco e estará a curta distância à frente de Aquiles. Mas para Aquiles ultrapassar Tarquínio, ele outra vez deve chegar onde Tarquínio está. Mas no tempo que Aquiles levar para fazer isso, Tarquínio também terá andado mais um pouco. Então, mais uma vez, Aquiles vai precisar chegar onde Tarquínio está agora, para ultrapassá-lo, e durante o tempo necessário para fazer isso, Tarquínio já terá se adiantado. E por aí vai. Você pegou o quadro. É lógica e matematicamente impossível para Aquiles superar o animal. Mas agora é tarde demais para apostar na tartaruga, porque já estão na linha de partida e... Largaram! Aquiles está se aproximando... Está mais perto, mais perto,.. Aquiles ultrapassou a tartaruga! Não posso acreditar! É impossível! Fonte: O antigo paradoxo de Aquiles e a tartaruga, atribuído a Zenão (nascido c. 488 a.C.)

A explicação de Zenão para Aquiles não poder ultrapassar a tartaruga

é um paradoxo, porque nos leva à conclusão de que duas coisas incompatíveis são verdadeiras. O raciocínio parece demonstrar que Aquiles não pode ultrapassar a tartaruga, mas a experiência nos diz que é claro que ele consegue. Mas não parece haver qualquer coisa errada com o raciocínio ou com o que a experiência nos diz.

55


Alguns acharam poder identificar uma falha no raciocínio. Ele só funciona se partirmos do pressuposto de que o tempo e o espaço são conjuntos contínuos que podem ser divididos em pedacinhos ainda menores ad infinitum. É por isso que o raciocínio depende da idéia de que sempre há uma extensão de espaço, por menor que seja, sobre o qual a tartaruga terá andado uma curta distância, por menor que seja, no período de tempo, por mais breve que seja, que Aquiles leve para chegar onde estava a tartaruga. Talvez essa conjectura esteja simplesmente errada. Você acaba por alcançar um ponto no tempo e no espaço que não poderá ser dividido em pedaços menores. Entretanto, isso por si só simplesmente cria paradoxos diferentes. O problema com essa idéia é que ela afirma que a menor unidade de espaço não tem necessariamente uma extensão (comprimento, altura ou largura) porque se tivesse, seria possível dividi-la ainda mais e estaríamos de volta ao problema do paradoxo da corrida. Mas então, como o espaço, que sem dúvida tem uma extensão, pode ser formado de unidades que não têm extensão? O mesmo problema ocorre com o tempo. Se a menor unidade de tempo não tem duração e, portanto, não pode ser dividida, como o tempo como um todo pode ter duração? Então ficamos com um paradoxo dos paradoxos: dois paradoxos que parecem autênticos, mas que, se ambos forem verdadeiros, fariam apenas com que as duas possibilidades fossem impossíveis. Confuso? Não se preocupe, era para estar mesmo. Não há uma saída fácil. Na verdade, as soluções exigem uma matemática bastante complexa. E talvez essa seja a verdadeira lição da corrida da tartaruga: uma teoria de poltrona que usa apenas a lógica básica é um guia nada confiável para a natureza fundamental do Universo. Mas isso é, em si, uma lição que nos traz para a realidade, porque confiamos na lógica básica o tempo inteiro para identificar inconsistências e falhas em raciocínios. Não é a lógica em si que está imperfeita: as soluções mais complexas para paradoxos como esses dependem de manter firmes as leis da lógica. A dificuldade está muito mais em sua aplicação.

56


Ver tambĂŠm 6. A roda da fortuna 42. Pegue a grana e corra 70. A visita do fiscal 94. O imposto de Sorites

57


17. A opção da tortura Os prisioneiros de Hadi pareciam firmes, mas ele tinha certeza de que ia conseguir dobrá-los, enquanto continuasse com sua ameaça. O pai, Brad, era o verdadeiro vilão. Era ele quem tinha plantado a bomba enorme que ele prometia ia matar centenas, talvez milhares, de civis inocentes. Só ele sabia onde estava a bomba, e não ia dizer. Seu filho, Wesley, nada tinha a ver com aquilo. Mas a inteligência de Hadi dizia a ele que, se Brad não cederia sob tortura, ele sem dúvida cederia se visse seu filho ser torturado diante de seus olhos. Não imediatamente, mas em pouco tempo. Hadi estava dividido. Ele sempre se opusera à tortura e provavelmente teria de sair da sala enquanto ela ocorresse. A inocência de Wesley não era a única razão para suas apreensões, mas sem dúvida as exacerbava. Porém, ele também sabia que essa era a única maneira de salvar centenas de pessoas da morte e da mutilação. Se ele não ordenasse a tortura, será que estaria condenando pessoas à morte, só por causa de sua fraqueza e falta de coragem moral?

Por

muitos anos, situações como essa foram consideradas puramente hipotéticas. Sociedades civilizadas não permitiam tortura. Tudo isso mudou com a “guerra contra o terror”, e sobretudo com o escândalo em torno do tratamento de prisioneiros na prisão de Abu Ghraib no Iraque. A discussão não foi apenas se tinham ocorrido maus-tratos, e se tivessem, quem os autorizara; mas sobre se isso era necessariamente errado. O dilema de Hadi é uma versão simplificada de uma situação em que pessoas morais e responsáveis podem se encontrar. Defensores da tortura sob tais circunstâncias diriam que, por mais terrível que possa ser, você não tem muita escolha, a não ser ir em frente. Por exemplo:

58


como arriscar viver outro 11 de setembro por se recusar a torturar uma, ou algumas pessoas? Isso não é um tipo de acomodação moral? Você se mantém puro por não fazer os atos sujos necessários, mas à custa de vidas inocentes. E se você pode compreender as razões para Hadi ordenar a tortura de Wesley — que é, na verdade, inocente —, então o caso de torturar um culpado ganha ainda mais força. O argumento é desafiador para os defensores dos direitos humanos, que viam a tortura como indefensável. Para sustentar sua opinião, eles podem adotar uma entre duas estratégias. A primeira é insistir que a tortura é em princípio errada. Mesmo se salvasse milhares de vidas, há limites morais que não podem ser ultrapassados. É uma posição válida, mas a carga da indiferença pelas vidas dos que foram deixados para morrer como resultado é muito grande. A outra estratégia é afirmar que, apesar de, em teoria, a tortura poder, às vezes, ser moralmente aceitável em casos raros, devemos manter uma proibição absoluta contra ela para manter o limite moral. Na prática, se às vezes a tortura é permitida, sem dúvida ela continuará a ocorrer quando não deveria. E melhor às vezes deixar de torturar quando é a melhor coisa a fazer do que ocasionalmente torturar quando é errado fazê-lo. Entretanto, esse argumento pode não ajudar Hadi. Pois, apesar de haver bons motivos para adotar uma regra de que não deveria haver tortura, Hadi está diante de uma situação específica na qual os benefícios da tortura são claros. O seu dilema não é se a tortura deveria ser permitida, mas se, nessa ocasião, ele deveria quebrar as regras e fazer o que não é permitido para salvar vidas inocentes. Você também pode achar que ele não deveria fazê-lo, mas fica claro que sua escolha não é fácil. Ver também 18. A razão exige 50. O suborno do bem 57. Comendo Tiddles 79. Laranja mecânica

59


18. A razão exige Sophia Maximus sempre se orgulhou de ser racional. Nunca, conscientemente, agiria contra os ditames da razão. Ela sabe, é claro, que algumas das motivações básicas das ações não são racionais — como o amor, o gosto e o caráter. Mas não ser racional não é o mesmo que ser irracional. Não é racional ou irracional preferir morangos a framboesas. Mas, considerada essa preferência, é irracional comprar framboesas quando os morangos estão com o mesmo preço. Mas agora ela está em um dilema. Um amigo inteligente a convenceu de que seria perfeitamente racional explodir uma bomba que matasse muitas pessoas inocentes sem qualquer benefício óbvio, como salvar outras vidas. Ela tem certeza de que deve haver algo errado no argumento de seu amigo. Mas, racionalmente, não consegue ver o que é. Pior, o argumento sugere que ela deveria armar uma bomba o mais rápido possível, por isso, refletir sobre isso por muito tempo não é uma opção. No passado, ela sempre achara errado rejeitar bons argumentos racionais em favor de pressentimentos ou intuições. Mas se ela seguir a razão nesse caso, vai fazer algo extremamente errado. Será que ela deveria seguir conscientemente um caminho menos racional, ou confiar na razão acima do sentimento e detonar a bomba?

A

falta de detalhes nessa experiência de pensamento pode levantar suspeitas em relação à sua validade. Não sabemos qual é esse argumento racional maligno que conclui que seria bom explodir pessoas inocentes. Essa imprecisão, entretanto, não é, na verdade, um problema. Sabemos por experiência que as pessoas já foram convencidas por argumentos lógicos a fazer coisas terríveis. Na Rússia de Stalin e na China de Mao, por exemplo, as pessoas foram convencidas que de-

60


nunciar amigos inocentes era o correto a fazer. Aquele que se opõem à decisão de jogar a bomba atômica em Hiroshima e Nagasaki também aceitam que os que tomaram a decisão o fizeram, principalmente, com base em razões que eles consideravam importantes. Mas, pode-se argumentar, os argumentos racionais apresentados nesses casos não tinham falhas? Se pudéssemos ver o argumento que deixou Sophia perplexa, sem dúvida seríamos capazes de mostrar que há algo de errado nele. Isso, entretanto, pressupõe que deve haver algo errado com o raciocínio. Se você acredita que a razão sempre exige o que é certo, então talvez, contra todas as aparências, explodir a bomba seja certo, não o raciocínio que esteja errado. Partir da pressuposição que o raciocínio é errado já é elevar uma convicção intuitiva acima dos ditames da razão. Em todo caso, o otimismo de que o racional sempre se alinha com o bem é equivocado. Dizem que o problema com os psicopatas não é que lhes falte razão, mas sentimento. David Hume, filósofo escocês do século XVIII, concordaria com isso. Ele escreveu: “A razão é, e deveria ser, escrava das paixões.” Se a razão for isolada do sentimento, não podemos achar que ela sempre vai nos levar ao bem. Mesmo se essa idéia é pessimista demais e nunca é racional fazer o mal, ainda enfrentamos o problema de nunca ter certeza de estarmos sendo perfeitamente racionais. Para aqueles que viram razão no stalinismo e no maoísmo, a lógica não parecia nem um pouco falha. Sophia é inteligente, mas como ela pode dizer se a razão realmente exige que ela detone a bomba ou se apenas não conseguiu identificar a falha na argumentação? Uma coisa é acreditar na soberania da razão. Outra bem diferente é acreditar no poder dos seres humanos sempre serem capazes de reconhecer o que é exigido por essa soberania. Ver também 7. Quando não há vencedores 44. Até que a morte nos separe 83. A regra do jogo 91. Ninguém se machuca

61


19. Fora da bolha de vidro Membros da bizarra seita Weatherfield viviam uma vida muito reclusa na Casa Santa Hilda. Todos, à exceção do líder, eram proibidos de fazer qualquer contato com o mundo exterior e eram ensinados que a realidade era o mundo retratado nas telenovelas — os únicos programas de televisão aos quais tinham a permissão de assistir. Para os weatherfildianos, como eles eram conhecidos, Coronation Street, The Bold and the Beautiful, EastEnders e Neighbours* não eram obras de ficção, mas documentários que mostravam a realidade. E como a maioria dos membros era nascida na comunidade, não era difícil manter a mentira. Um dia, porém, o discípulo Kenneth, que sempre tinha sido um pouco rebelde, decidiu deixar a comunidade e visitar os lugares que tinha visto tantas vezes nas caixas altares. Claro que isso era terminantemente proibido. Mas Kenneth conseguiu escapar. O que ele encontrou o deixou pasmo. O maior choque ocorreu quando conseguiu chegar à Coronation Street e descobriu que ela nem ficava em Weatherfield, mas era um cenário nos estúdios Granada. Mas quando ele voltou escondido para casa e contou aos outros discípulos o que tinha descoberto, foi considerado um lunático. – Você nunca deveria ter partido — disseram a ele. — Não é seguro lá fora. Sua mente prega peças em você! Depois disso, eles o expulsaram da comunidade e o proibiram de voltar. Fonte: A alegoria da caverna em A República, de Platão (360 a.C.)

Novelas populares na Grã-Bretanha. (N. do T.)

62


A história dos weatherfildianos é sem dúvida uma alegoria. Mas o que

representam seus vários elementos? Há muitas maneiras de traduzir a parábola. Alguns afirmam que o mundo da experiência comum é uma ilusão, e que as portas para o mundo real são abertas por drogas ou práticas sagradas de meditação. As pessoas que afirmam terem visto a verdade dessa maneira normalmente são consideradas drogadas ou malucas; mas elas acham que nós somos os tolos, aprisionados como estamos no mundo limitado das experiências dos sentidos. De forma mais prosaica, os weatherfieldianos da vida real são aqueles que não questionam aquilo que dizem a eles, e simplesmente aceitam como realidade tudo o que a vida lhes apresenta. Podem não acreditar literalmente que as novelas são verdade, mas aceitam sem criticar a sabedoria recebida. O que isso é exatamente depende de corno eles foram socializados. Então, por exemplo, algumas pessoas acham loucura acreditar que o presidente dos Estados Unidos pode ser culpado de terrorismo, Outros acreditam que é uma loucura igual afirmar que, na verdade, ele e um cara muito inteligente. Isso levanta a questão de qual é a contrapartida do mundo para a Casa Santa Hilda. Geralmente, nós não nos isolamos com tijolos e argamassa, mas confinamos os limites de nossas experiências de maneiras bem mais sutis. Se em toda a sua vida você leu apenas um jornal, está limitando radicalmente o espaço intelectual em que habita. Se só discute política com pessoas que compartilhem de suas opiniões gerais, está erguendo outra cerca metafórica ao redor de seu próprio mundinho. Se você nunca tentou ver o mundo sob outro ponto de vista, está se recusando a olhar além dos muros do mundinho confortável que construiu para si mesmo. Talvez a maior dificuldade que encaremos nesse aspecto é identificar o Kenneth entre nós. Como diferenciar os tolos iludidos que têm visões de mundo loucas dos que realmente descobriram uma dimensão oculta da vida que nos passou despercebida? Não podemos dar o beneficio da dúvida a todos os que acreditam ter descoberto verdades escondidas, eles não podem estar todos certos. Mas se os rejeitarmos muito rapidamente, corremos o risco de ser como os tolos e ingênuos

63


weatherfieldianos, condenados a aceitar uma vida de ilusĂŁo em vez de uma vida de realidade. Ver tambĂŠm 1. O demĂ´nio maligno 49. A falha na soma das partes 51. Viver em um tanque 61. Lua de mozarela

64


20. Condenado à vida Vitalia descobriu o segredo da vida eterna. Agora ela jurou destruí-lo. Há 200 anos, ela ganhou a fórmula de um elixir da imortalidade de certo dr. Makropoulos. Jovem e tola, ela o preparou e bebeu. Agora ela amaldiçoava sua ganância de vida. Amigos, amantes e parentes tinham envelhecido e morrido, deixando-a sozinha. Sem a morte a perseguida, ela não tinha qualquer ambição ou ímpeto, e todos os projetos que iniciava pareciam sem sentido. Ela tinha ficado cansada e entediada, e agora ansiava apenas pelo túmulo. Na verdade, a busca pela extinção foi o único propósito que dera alguma forma e objetivo à sua vida durante o último meio século. Agora, finalmente, ela tinha o antídoto para o elixir. Ela o tomara alguns dias antes e podia sentir-se enfraquecer rapidamente. Agora, tudo o que restava a fazer era se assegurar de que ninguém mais seria condenado à vida como ela fora. O elixir há muito fora destruído. Agora ela pegou o pedaço de papel que descrevia a fórmula e o atirou no fogo. Enquanto o via queimar, pela primeira vez em décadas ela sorriu. Fonte: “The Makropoulos case, em Problems of the Self, de Bernard Williams (Cambridge University Press, 1973)

Costuma-se

achar que a tragédia da vida humana é que nossa mortalidade significa que a morte é a única coisa que temos certeza de nos esperar no futuro. A história de Vitalia vira essa sabedoria tradicional de ponta-cabeça e sugere que a imortalidade seria uma maldição. Precisamos da morte para dar forma e significado à vida. Sem ela, iríamos achar a vida sem sentido. Sob esse ponto de vista, se o inferno é a danação eterna, a eternidade da vida no Hades seria o suficiente para fazer dele um lugar de punição.

65


É surpreendente como poucas das pessoas que acham que a vida eterna seja desejável pensam profundamente no que isso poderia derivar. Isso é compreensível. O que queremos, principalmente, é simplesmente mais vida. A duração exata dessa prorrogação não é nossa principal preocupação. Não parece que 10 anos, se tivermos a sorte de conseguir chegar lá, seriam o suficiente. Há tantos lugares para ver, tanto para fazer e experimentar. Como seria bom ter mais tempo para fazer isso! Mas talvez nós cortemos nossos planos de vida para se encaixarem na sua expectativa de duração, então, independentemente de quantos anos mais tivéssemos, ainda acharíamos que não seria suficiente. Considere, por exemplo, o fenômeno da “meia juventude”. Há algumas gerações, a maioria se casava e tinha filhos entre 20 e 30 anos, ou menos. Agora, com mais dinheiro e a perspectiva de viver mais e poder ter filhos mais tarde, cada vez mais pessoas desfrutam de uma espécie de adolescência prolongada, que entra pelos trinta anos. Em comparação a todas as gerações anteriores, esses jovens de meia-idade razoavelmente abastados viajam e experimentam muito mais. Mas eles ficam satisfeitos? No mínimo, essa geração dá mais importância que qualquer outra antes ao que ela não tem. Por mais longa que seja nossa vida, nunca parece o bastante. Mas ainda assim não somos tão famintos que usemos totalmente todo o tempo que temos. E se tivéssemos tempo infinito, o conceito de “fazer um uso total” não faria sentido. Não haveria algo como tempo perdido, porque o tempo teria uma oferta infinita. E sem razão para tirar o máximo da vida, a existência não acabaria por se tornar um fardo tedioso e sem sentido? Talvez nós nos enganemos quando dizemos que a brevidade da vida é o problema. Já que não podemos alterar a duração de nossas vidas, qualquer tragédia que resulte de sua brevidade não é nossa culpa. É mais difícil admitir que somos responsáveis por como usamos o tempo que nos é determinado. Talvez devêssemos parar de pensar “se eu tivesse mais tempo” e, em vez disso, pensar “se eu usasse melhor o tempo que tenho”.

66


Ver tambĂŠm 19. Fora da bolha de vidro 52. Mais ou menos 69. O horror 97. Sorte moral

67


21. A terra dos epifênios Epifênia era um planeta extraordinário. Era muito parecido com a Terra, mas seus habitantes eram diferentes de uma forma notável. Como Huxley, que era um deles, explicou ao terráqueo visitante Dirk, há muito tempo os epifênios “descobriram” que seus pensamentos não afetavam suas ações. Os pensamentos eram efeitos de processos corporais, e não o contrário. Dirk achou isso desconcertante. – Você não podem realmente acreditar nisso — protestou ele para huxley. — Por exemplo, quando nos encontramos neste bar, você disse: “Nossa, eu podia matar por uma cerveja”, e pediu uma. Você está dizendo que o pensamento “Eu quero uma cerveja” não teve efeito em suas ações? – Claro que não teve — respondeu Huxley, como se aquela fosse uma pergunta idiota. — Temos pensamentos, e eles costumam anteceder as ações. Mas sabemos muito bem que esses pensamentos não causam as ações. Meu corpo e meu cérebro já estavam se preparando para pedir uma cerveja. O pensamento “Nossa, eu podia matar por uma cerveja” foi apenas algo que surgiu em minha cabeça como resultado do que estava acontecendo no corpo e no cérebro físicos. Os pensamentos não causam ações. – Talvez para os epifênios — replicou Dirk. – Bem, não sei qual é a diferença com os humanos — disse Huxley, e por um bom-tempo, pelo menos, Dirk também não. Fonte: Apesar de não usar o termo, “epifenomenism” foi defendido por T. H. Huxley, especialmente em um texto de 1874 chamado “On the hypothesis that Animais are Automata, and its history”, republicado em Method and Results: Essays by Thomas H. Huxley (D. Appleton and Company, 1898)

68


O

filósofo norte-americano Jerry Fodos uma vez disse que se o epifenomenismo fosse verdade, seria o fim do mundo, O epifenomenismo é a visão que pensamentos e outros eventos mentais não causam coisa alguma no mundo físico, incluindo nossas ações. Melhor, o cérebro e o corpo funcionam como uma espécie de máquina puramente física, e a nossa experiência consciente é um subproduto, causado pela máquina, mas que não a afeta. A razão por que isso seria o fim do mundo é que tudo o que parecemos acreditar sobre o que somos aparentemente depende da idéia de que os pensamentos causam ações. Se o que se passa por nossas mentes não tem impacto no que na verdade faremos, o mundo como o vemos é apenas uma ilusão. Mas seria essa realmente a conseqüência de aceitar o epifenomenismo? A terra imaginária de Epifênia foi projetada para testar a idéia de que ninguém pode viver com a verdade do epifenomenismo. A sugestão é que as pessoas poderiam ver o epifenomenismo como uma verdade banal que não afeta a maneira como vivem suas vidas. O ponto crucial é que um epifênio se sente da mesma maneira que um ser humano. Nos dois casos, o pensamento acompanha a ação da mesma maneira. A única diferença é que os epifênios não acreditam que seus pensamentos sejam causa de coisa alguma. Entretanto, será verdade que é possível separar o que acreditamos sobre a ligação entre pensamento e ação e a maneira como realmente vivemos? Pessoas como Fodor acham que não, mas está longe de ser óbvio o motivo de essa separação não ser conseguida. Tome, por exemplo, uma situação em que o pensamento não parece ser crucial. Vamos dizer que você quer encontrar a solução de um problema lógico ou matemático complicado. No fim, surge o momento de eureka. Será que, nesse caso, o pensamento não teve, sem sombra de dúvida, um papel importante na explicação de suas ações? Bem, não. Por que eu não posso acreditar que a experiência consciente de pensar seja apenas um subproduto do processamento que ocorre a nível cerebral? Pode ser o subproduto necessário. Da mesma forma que o barulho de uma chaleira de água fervente é um subproduto inevitável do calor sem que isso signifique que é o calor que cozinha o ovo, o pensamento poderia ser um subproduto necessário do

69


processamento neurológico que não produz por si só a solução do problema. Na verdade, se pensar sobre o pensamento, parece haver algo quase involuntário em relação a ele. As soluções “surgem para nós”, por exemplo, não nós para elas. Se refletir bem sobre qual é a sensação de pensar, a idéia de que isso seja um subproduto de um processo do qual você não tem consciência pode não parecer tão estranha. Ver também 9. Big Brother radical 54. O eu ilusório 62. Penso, logo? 68. Dor maluca

70


22. O bote salva-vidas – Certo — disse Roger, autonomeado capitão do bote salva-vidas. – Há doze de nós neste barco, o que é ótimo, pois a capacidade dele é de até 20 pessoas. E temos bastante provisões para durar até que alguém chegue para nos resgatar, o que não vai demorar mais que 24 horas. Então, eu acho que isso significa que podemos nos permitir com segurança um biscoito de chocolate extra e uma dose de rum para cada um. Alguma objeção? – Por mais que eu, sem dúvida, desfrutasse do biscoito extra disse o sr. Mates —, nossa prioridade agora não deveria ser levar o barco até ali e pegar a pobre mulher que es á se afogando e há meia hora está gritando para nós? Algumas pessoas baixaram os olhos para o fundo do barco, envergonhadas, enquanto outras sacudiam a cabeça sem acreditar. – Achei que tínhamos concordado — disse Roger. — Ela não está se afogando por nossa culpa, e se a pegarmos, não poderemos desfrutar de nossas rações extras. Por que deveríamos perturbar esse esquema aconchegante e confortável que temos aqui? — Grunhidos de aprovação foram ouvidos. – Por que nós podemos salvá-la, e se não salvarmos, ela vai morrer Isso não é razão suficiente? – A vida é mesmo uma merda — respondeu Roger — Se ela morrer, não vai ser porque nós a matamos, Alguém aceita um digestivo? Fonte: “Lifeboat on Earth”, de Onora O’NeiII, republicado em World Hunger and Moral Obligation, organizado por W. Aiken e H. La Follette (Prentice haII, 1977)

É muito fácil traduzir a metáfora do bote salva-vidas, O barco é o

Ocidente abastado, e a mulher que está se afogando, as pessoas que estão morrendo de desnutrição e doenças evitáveis no mundo em

71


Desenvolvimento. E a atitude do mundo desenvolvido é, sob esse ponto de vista, tão insensível quanto a de Roger. Temos comida e remédios o bastante para todos, mas preferimos desfrutar do luxo e deixar os outros morrer do que desistir de nosso “biscoito extra” e salvá-los. Se as pessoas no bote salva-vidas são grosseiramente imorais, então também somos. A imoralidade ainda é mais impressionante em outra versão da analogia, na qual o bote salva-vidas representa a totalidade do planeta Terra e algumas pessoas se recusam a distribuir a comida aos outros que já estão a bordo. Se, para eles, parece cruel não fazer um esforço para botar outra pessoa no barco, parece ainda mais cruel negar provisões àqueles que já foram tirados da água. A imagem é forte e a mensagem chocante, Mas a analogia resiste? Alguns podem dizer que a situação do bote salva-vidas despreza a importância dos direitos de propriedade. Os bens são postos em um bote salva-vidas para aqueles que precisarem dele, e ninguém tem mais direitos a eles que outra pessoa. Então partimos do pressuposto de que qualquer coisa além da distribuição igualitária de acordo com as necessidades é injusta até que se prove o contrário. Entretanto, no mundo real a comida e outros produtos não estão simplesmente ali parados à espera de serem distribuídos. A riqueza é criada e tem de ser ganha. Então se eu me recusar a dar meu excedente a outra pessoa, não estou me apropriando indevidamente do seu quinhão, estou apenas guardando o que é meu por direito. Mas se a analogia for alterada para refletir esse fato, a imoralidade aparente não desaparece. Vamos imaginar que todos os alimentos e provisões do barco pertencessem aos indivíduos dentro dele. Ainda assim, uma vez no barco, e uma vez reconhecida a necessidade da mulher que está se afogando, não continuaria a ser errado dizer “Deixe-a se afogar. Os biscoitos são meus!”? Enquanto houver excedente para abastecê-la, também, o fato de ela estar morrendo nos devia fazer abrir mão por ela da propriedade privada de nossas provisões. As Nações Unidas estabeleceram uma meta para os países desenvolvidos darem 0,7% de seu PIB para ajuda externa. Poucos cumpriram isso, Para a grande maioria das pessoas, dar mesmo 1% de sua renda para ajudar os pobres teria um efeito desprezível em sua qualidade de vida, A analogia do bote salva-vidas sugere que não seríamos pessoas boas se o fizéssemos, mas que estamos terrivelmente errados em não fazê-lo. Ver também

72


10. O véu da ignorância 55. Desenvolvimento sustentável 87. Desigualdade justa 100. O café Nest

73


23. O besouro na caixa Ludwig e Bertie eram dois moleques precoces. Como muitas crianças, tinham brincadeiras com suas próprias linguagens particulares. Lima de suas favoritas, que deixava pasmos os adultos ao seu redor, chamava-se “besouro”. Tudo começou em um dia em que eles encontraram duas caixas. Ludwig sugeriu que cada um pegasse uma delas e que eles olhariam apenas dentro de suas próprias caixas, nunca na do outro. Além disso, ele nunca deveria descrever o que havia em sua caixa ou comparar a qualquer coisa fora da caixa. Em vez disso, cada um iria, simplesmente, chamar o conteúdo de suas caixas de “besouro”. Por alguma razão, isso os divertia muito. Cada um deles dizia que tinha um besouro na caixa, mas sempre que alguém pedia que explicassem o que era esse besouro, eles se recusavam. Pelo que todos sabiam, ou suas caixas estavam vazias, ou continham coisas muito diferentes. Ainda assim, eles insistiam em usar a palavra “besouro” para se referir ao conteúdo de suas caixas e agiam como se a palavra tivesse um uso perfeitamente racional em seu jogo. Isso era perturbador, especialmente para adultos, Será que “besouro” era uma palavra sem sentido ou ela tinha um significado particular que só os garotos conheciam? Fonte: Investigações filosóficas (Philosophical Investigations), de Ludwig Wittgenstein (Blackwell, 1953)

Esse

joguinho estranho é uma variação de outro esboçado pelo filósofo austríaco dissidente Ludwig Wittgenstein. Para Wittgenstein, entretanto, todo o uso de linguagem é um tipo de jogo, já que se baseia em uma combinação de regras e convenções, e nem todas elas podem ser expressas de forma explícita, e que apenas os participantes do jogo podem compreender.

74


A pergunta que Wittgenstein nos convida a fazer é: será que a palavra “besouro” se refere a algo? E se não se refere, o que ela significa? Apesar de a passagem na qual ele discute o besouro ter infinitas interpretações, parece claro que Wittgenstein acredita que o que está dentro da caixa não faz diferença no uso da palavra. Então seja lá o que a palavra signifique, se é que significa algo, o verdadeiro conteúdo da caixa nada tem a ver com isso. Até aqui, tudo parece claro, Mas por que isso importa? Afinal, diferentemente de Ludwig e Bertie, nós não jogamos esses joguinhos excêntricos, jogamos? Talvez sim. Considere o que acontece quando eu digo: “Eu tenho uma dor no joelho,” A caixa, nesse caso, é minha experiência interior. Como nos recipientes de Ludwig e Bertie, nenhuma outra pessoa pode ver lá dentro; só eu. Também não posso descrevê-lo em termos de qualquer coisa que me seja externa. Todo o vocabulário da dor se refere a sensações e todas essas estão dentro das caixas de nossas próprias experiências subjetivas. Mesmo assim você tem sua “caixa”. Você também usa a palavra “dor” para se referir a algo que se passa dentro dela. E eu também não posso ver dentro de sua experiência. Então parece que estamos em uma situação muito parecida com a de Bertie e Ludwig. Todos temos palavras para se referir a coisas que apenas nós podemos experimentar, Mas mesmo assim, continuamos usando essas palavras como se elas fossem plenas de significado. A lição do exemplo do besouro é que seja lá o que acontece dentro de nós nada tem a ver com o que uma palavra como “dor” significa. Isso é altamente contra-intuitivo, já que pressupomos que por “dor” signifique alguma espécie de sensação particular. Mas o raciocínio do besouro parece mostrar que não pode significar isso. Na verdade, as regras que governam o uso correto de “dor”, e, por conseguinte, seu significado, são públicas. Não importa se quando ambos dizemos que sentimos dor, o que acontece dentro de mim é bem diferente do que acontece dentro de você. Tudo o que importa é que nós dois a usamos em situações nas quais certos padrões de comportamento, como determinadas expressões faciais e transtornos, são evidentes. Se essa linha de raciocínio é correta, então o nosso uso corriqueiro da língua está muito próximo do jogo estranho de Ludwig e Bernie.

75


Ver também 47. Coelho! 68. Dor maluca 74. Água, água por toda parte 85. 0 homem que não existe

76


24. O círculo quadrado E Deus falou para o filósofo: – Eu sou o Senhor teu deus, e sou Todo-poderoso. Não há coisa alguma que você possa dizer que não possa ser feita. É fácil! E o filósofo falou para o Senhor: – OK, oh, poderoso. Transforme tudo que é azul em verme lho e tudo o que é vermelho em azul. O Senhor disse: – Que se faça a inversão de cores! — E a inversão de cores foi feita, deixando completamente confusos os porta-bandeiras da Polônia e de São Marino. Então o filósofo falou ao Senhor: – Se quer me impressionar, faça um círculo quadrado. E o senhor falou: – Faça-se um círculo quadrado. — E foi feito, Mas o filósofo protestou. – Isso não é um circulo quadrado, isso é um quadrado. Senhor ficou com raiva. Se eu digo que é um círculo, é um círculo. Cuidado com essa sua impertinência, ou eu posso parti-lo em pedacinhos. Mas o filósofo insistiu. – Eu não pedi para mudar o significado da palavra “círculo” só para que ela passasse a significar “quadrado”. Eu queria um verdadeiro círculo quadrado. Admita... Isso é algo que não pode fazer. Senhor pensou um pouco, então resolveu responder Iançando sua vingança poderosa sobre a cabeça do filósofo metido a esperto.

Se houver qualquer desconfiança de que a suposta inabilidade de

Deus em criar um círculo quadrado é apenas uma zombaria ateística, deve ser observado que teístas clássicos como São Tomás de

77


Aquino aceitavam satisfeitos tais restrições do poder de Deus. Isso pode parecer estranho, já que se Deus é todo-poderoso, sem dúvida não há coisa alguma que ele não possa fazer. Aquino e a maioria de seus sucessores discordaram. Eles não tinham muita escolha. Como a maioria dos crentes, Aquino achava que a crença em Deus era compatível com a razão. Isso não quer dizer que a racionalidade não fornece todas as razões suficientes para acreditar em Deus, ou que ao aplicar a racionalidade podemos exaurir tudo o que há para dizer sobre o divino. A pretensão mais modesta é que não há conflito entre a racionalidade e a crença em Deus. Você não precisa ser irracional para acreditar em Deus, mesmo que isso ajude. Isso significa que qualquer crença que temos em relação a Deus não deve ser irracional. Significa que não podemos atribuir qualquer qualidade a Deus que nos obrigue a aceitar crenças irracionais. O problema com coisas como círculos quadrados é que são logicamente impossíveis. Como um círculo é por definição uma forma de um lado, e o quadrado de quatro, e uma forma de quatro lados e de um lado é uma contradição de base, então um círculo quadrado é uma contradição de base e é impossível em todos os mundos possíveis. A racionalidade exige isso. Então se quisermos dizer que a onipotência de Deus significa que ele pode criar formas como quadrados redondos, nos demos adeus à racionalidade. Por esse motivo, a maioria dos crentes religiosos conclui satisfeita que a onipotência de Deus significa que ele pode fazer tudo o que é logicamente possível, mas não o que é logicamente impossível. Isso, dizem eles, não é um limite do poder de Deus, já que a idéia de um ser com mais poder cai em contradição. Entretanto, se aceitamos essa contradição, a porta se abre para o escrutínio racional do conceito de Deus e a coerência da crença nEle. Ao aceitar que a crença em Deus deve existir em harmonia com a razão, o crente religioso é obrigado a levar a sério afirmações de que a crença em Deus é irracional. Tais argumentos incluem a afirmação que a natureza de amor de Deus é incompatível com o sofrimento desnecessário que vemos no mundo; ou que o castigo divino é imoral já que Deus, na verdade, é o único responsável pela natureza humana.

78


Não basta dizer que isso é simplesmente questão de se, se você aceita a condição essencial de a fé ser compatível com a razão. O caminho alternativo para os crentes é ainda mais impalatável: negar que a razão tenha qualquer coisa a ver com isso e, em vez disso, resguardar-se apenas na fé. O que parece contrário a razão é descartado como simples mistério divino. Esse caminho está aberto para nós, mas abandonar a razão com tanta facilidade em uma esfera de vida e viver como uma pessoa racional o resto do tempo pode ser considerado viver uma vida dividida. Ver também 8. Bom Deus 45. O jardineiro invisível 73. Ser um morcego 95. O problema do mal

79


25. Buridan é um asno Buridan estava com muita, muita fome. Tudo tinha começado com sua decisão de tomar apenas decisões completamente racionais. O problema é que sua comida acabou, mas ele vivia a mesma distância de duas filiais idênticas do Kwik-E-Mart. Como não havia razão para que ele escolhesse uma em detrimento da outra, ele foi pego em um estado de suspensão permanente, incapaz de encontrar qualquer base racional para escolher um dos dois supermercados. Quando o ronco de seu estômago ficou insuportável, ele achou que tinha chegado a uma solução. Como era evidentemente irracional morrer de fome, não seria racional fazer uma escolha aleatória entre os dois mercados? Ele devia simplesmente girar uma moeda, ou sentir para que direção ele preferiria caminhar. Sem dúvida isso era mais racional que ficar sentado em casa sem fazer coisa alguma. Mas será que essa atitude faria com que ele quebrasse sua regra de tomar apenas decisões totalmente racionais? O que seu raciocínio parecia sugerir é que seria racional para, ele tomar uma decisão irracional — como uma com base no giro de uma moeda. Mas será que a irracionalidade racional é racional? O nível baixíssimo de açúcar no sangue de Buridan fez com que fosse impossível responder a essa pergunta. Fonte: O paradoxo do asno de Buridan, discutido pela primeira vez na Idade Média.

Nada

cria ilusão de profundidade com mais eficiência que um paradoxo de aspecto sábio. Que tal “para ir para frente, é preciso andar para trás”? Tente criar um. É fácil de fazer. Primeiro, pense em algo que você quer ilustrar ou elucidar (sabedoria, poder, gatos). Depois, pense em seu oposto (ignorância, impotência, cães) e tente combinar os dois elementos para sugerir algo sábio, “O mais alto saber é o

80


saber da ignorância.” “Só o impotente conhece o verdadeiro poder.” “Para conhecer o gato, é preciso primeiro conhecer o cão.” Bem, isso costuma funcionar. Buridan parece ter pensado bastante para chegar a algo que soa igualmente paradoxal: às vezes é racional fazer algo irracional. Será que isso é tão vazio quanto a recomendação de conhecer tanto gato quanto cães, um insight autêntico, ou apenas incoerente? Pode-se pensar que nunca pode ser racional fazer algo irracional. Imagine, por exemplo, se a coisa supostamente irracional a fazer é tomar uma decisão no cara ou coroa. Se dissermos que fazer isso é racional, devemos estar dizendo que, afinal de contas, tomar a decisão com base em uma moeda é racional, não que seja um ato irracional que nós desempenhemos por sermos irracionais. O paradoxo aparente é um resultado da fraque a da linguagem. Jogar uma moeda não é necessariamente uma maneira irracional de tomar uma decisão, é apenas não racional. Ou seja, não é racional nem irracional, mas um processo no qual a racionalidade não entra. Assim, muitas das coisas que fazemos são não racionais. Por exemplo, se você prefere vinho tinto ao branco, isso não é irracional, mas também não é racional. A preferência não se baseia nas razões, mas em gostos. Quando aceitamos isso, o paradoxo desaparece. A conclusão de Buridan é que, às vezes, é racional adotar procedimentos não racionais para tomar decisões. Nesse caso, como a razão não pode determinar que supermercado ele deve visitar, mas ele precisa ir até um, é perfeitamente razoável fazer uma seleção aleatória. Não há qualquer paradoxo aí. Entretanto, a moral da história é muito importante. Muitas pessoas afirmam que a racionalidade é superestimada, porque nem tudo o que fazemos pode ser explicado ou determinado racionalmente. Isso é usar as razões certas para chegar à conclusão errada, A racionalidade permanece soberana porque só a razão pode nos dizer quando devemos adotar procedimentos racionais ou não racionais. Por exemplo, se uma planta medicinal funciona, então a racionalidade pode nos dizer que deveríamos utilizá-la, mesmo que não possamos explicar racionalmente como ela funciona. Mas a racionalidade nos previne

81


contra remédios homeopáticos, já que não há razão para acreditar que sejam eficazes. Aceitar que pode ser racional ser não racional não abre as portas para a irracionalidade. Ver também 6. A roda da fortuna 16. Tartarugas corredoras 42. Pegue a grana e corra 94. O imposto de Sorites

82


26. Depois da dor A tensão no auditório era enorme quando o médico colocou a máscara e calçou as luvas e se preparou para levar sua agulha e linha até a perna pendurada do paciente consciente. Quando enfiou a agulha na carne, o paciente deu um forte grito de dor. Mas assim que a agulha atravessou a carne, ele pareceu estranhamente calmo. – Como foi? — perguntou o médico. – Tudo bem — respondeu o paciente, para as expressões de espanto da platéia. — É como o senhor tinha dito. Eu me lembro do senhor enfiando a agulha em mim, mas não me lembro de qualquer dor. – Então você não tem qualquer objeção a que eu dê o próximo ponto? – Nenhuma. Não estou nem um pouco apreensivo. O médico virou-se para a platéia e explicou: O processo que desenvolvi é diferente dos anestésicos. Ele não remove a sensação de dor. O que faz é evitar que qualquer memória da dor permaneça no sistema nervoso do paciente. Se você não se lembra de sua dor momentânea, por que temê-Ia? Nosso paciente aqui demonstra que isso não é apenas um sofisma teórico. Vocês testemunharam sua dor, mas ele, tendo se esquecido dela, não tem medo de repetir a experiência. Isso nos permite fazer cirurgias com o paciente totalmente consciente, o que, em alguns casos, é extremamente útil. Agora, se me derem licença, preciso dar mais alguns pontos.

O filósofo político Jeremy Bentham afirmava que, ao pensar sobre os

direitos morais dos animais, “a pergunta não é ‘Eles podem raciocinar?’, nem ‘Eles podem falar?’, mas sim ‘Eles podem sofrer?’. Mas o que é sofrer? Costuma-se aceitar que é apenas sentir dor. Então se os animais sentem dor, eles merecem respeito moral, Isso porque

83


sentir dor é em si algo ruim, e, portanto, causar qualquer dor desnecessária é aumentar a soma total de coisas ruins sem motivo aparente. Parece indiscutível que a dor é, na verdade, uma coisa má. Mas até que ponto? Essa experiência de pensamento desafia a intuição de que a dor é em si uma coisa muito ruim; ela separa a sensação da dor da expectativa da memória da dor. Nosso paciente, por não se lembrar da dor, não tem nada de ruim para associar à sua dor iminente, e, portanto, também não a teme. Ainda assim, no momento de sentir a dor, ela é intensa e muito real. Apesar de parecer muito errado infligir sobre o homem qualquer dor por qualquer motivo, já que no momento em que é infligida algo necessariamente mau estaria acontecendo, parece que causar tal dor não é uma má ação terrível. Isso porque a pessoa que sente a dor nem a teme nem se lembra dela. O que faz com que causar dor costume ser tão errado, então, deve ter algo a ver com a maneira com que ela nos deixa marcados ao longo prazo e gera medo. Talvez devêssemos compreender o sofrimento dessa forma. Por exemplo, uma dor aguda e momentânea em um dente é desagradável, mas isso passa e pouco afeta nossas vidas, Mas se você sente essa dor com regularidade, você realmente sofre. Não é tanto porque a dor se acumula. E mais a repetição da dor, o conhecimento de que ela vai voltar e a maneira como cada dor deixa um traço na memória e cobre o passado com sua negatividade: todos esses fatores ligam os exemplos individuais de dor em um padrão conectado contínuo que constitui o sofrimento. Se isso é certo, para responder à pergunta de Bentham sobre os animais, precisamos saber não apenas se os animais sentem dor, mas se eles têm a memória e a expectativa da dor necessárias para o sofrimento, Sem dúvida isso acontece com muitos animais. Um cão que é maltratado com freqüência parece sofrer. Mas animais menos complexos que vivem apenas no momento não sofreriam da mesma forma. Será que um peixe, por exemplo, pendurado na ponta de um anzol, não está sofrendo uma morte lenta e dolorosa, mas apenas experimentando uma série de momentos de dor desconectados? Se for assim, então, da mesma forma que nosso médico, podemos não achar ser muito errado infligir essas dores fugazes.

84


Ver também 5. O porco que quer ser comido 17. A opção da tortura 57. Comendo Tiddles 68. Dor maluca

85


27. Obrigação cumprida Hew, Drew, Lou e Sue prometeram à mãe que iriam escrever para ela com regularidade para Contar como estava sua viagem de volta ao mundo. Hew escreveu suas cartas, mas entregou-as para que outras pessoas as postassem, coisa que nenhuma delas se deu o trabalho de fazer. Por isso, sua mãe não recebeu sequer uma carta dele. Drew escreveu as cartas e as postou ela mesma, mas, descuidada, as botou em caixas de correio que não eram mais utilizadas, usou poucos selos e cometeu outros erros. Por isso, nenhuma de suas cartas chegou. Lew escreveu e postou suas cartas de maneira apropriada, mas o sistema postal a deixou na mão todas as vezes. Mamãe não recebeu notícias suas. Sue escreveu e postou todas as suas cartas de maneira apropriada, e deu telefonemas rápidos para saber se tinham chegado. Aliás, nenhuma chegou. Será que algum desses filhos cumpriu a promessa à sua mãe? Fonte: A filosofia moral de H. A. Prichard, criticada por Mary Warnock em What Philosophes Think, organizado por J. Baggini e J. Stangroom (Continuum, 2003)

Que

enigma ético premente! Esse era o tipo de questão muito discutida ao longo do século XX pela filosofia moral britânica, antes que a radicalização do fim dos anos 1960 trouxesse um enfoque tardio nas questões da guerra, da pobreza e dos direitos dos animais. Entretanto, seria tolo descartar completamente problemas como esse. O contexto pode ser mundano, mas a questão da teoria moral que ele aborda é importante. Não se deixe enganar por essa situação gentil. A questão é: até que ponto pode-se dizer que nos desincumbimos

86


de nossas responsabilidades morais? Isso se aplica não apenas a dar notícias aos parentes, mas também a cancelar as ordens para um ataque nuclear. A questão em jogo é se podemos dizer que cumprimos com nossa obrigação se a conseqüência do que desejávamos com nossa ação não se realiza. Em geral, pareceria uma regra dura demais dizer que a resposta é sempre não. Sue fez tudo o que podia para garantir que suas cartas chegassem à casa, mas mesmo assim elas não chegaram. Como ela pode ser responsável por essa falha quando ela não tinha o poder de fazer mais? Por isso não responsabilizamos pessoas por falhas se elas fizeram o melhor possível. Entretanto, isso não significa que desculpamos as pessoas quando fazem esforços insuficientes. Hew e Drew parecem não ter dado atenção suficiente às suas obrigações com a correspondência. Pode se dizer, com razão; que eles não cumpriram suas promessas. Lou é o caso mais interessante, já que ela podia ter feito mais para se assegurar se as notícias estavam chegando, mas ao mesmo tempo ela parece ter feito tudo o que podia se esperar razoável. A idéia do que é razoável de se esperar aqui é crucial. Se estivéssemos falando sobre a ordem de cancelar um ataque nuclear, então nossas expectativas de conferência e medidas extras que devessem ser tomadas seriam muito maiores. O grau com que precisamos nos assegurar de que o resultado desejado realmente aconteça, portanto, varia segundo a seriedade do resultado. Está tudo bem esquecer-se de gravar um programa na TV. Esquecer-se de cancelar um ataque armado é indesculpável. O problema das cartas de férias toca uma das questões mais fundamentais da filosofia moral: a conexão entre agentes, ações e suas conseqüências. O que esta experiência de pensamento sugere é que o raciocínio ético não pode se focar em apenas um desses aspectos. Se a ética está nas conseqüências, então chegamos ao absurdo de que até Sue, que fez todo o possível, ainda está errada se suas ações não saem como o planejado. Entretanto, se a ética não se preocupa com as conseqüências, temos um absurdo diferente, pois como pode não importar o que realmente acontece como resultado de nossas ações?

87


Se o problema específico do envio das cartas é trivial, as questões que ele aborda sem dúvida não são. Ver também 4. Amante virtual 43. Choque futuro 96. A família em primeiro lugar 97. Sorte moral

88


28. O cenário do pesadelo Lucy estava tendo um pesadelo horroroso. Estava sonhando que monstros parecidos com lobos tinham entrado pela janela de seu quarto enquanto ela dormia e começaram a despedaçá-la. Ela lutou e gritou, mas podia sentir suas garras e dentes rasgando-a. Então ela acordou, suando e ofegante. Olhou em torno do quarto, para ter certeza, e soltou um suspiro de alívio por tudo, na verdade, não ter passado de um sonho. Então, com um barulho terrível, monstros entraram pela janela e começaram a atacá-la, exatamente como no sonho. O terror foi ampliado pela lembrança do pesadelo que ela tinha acabado de suportar. Seus gritos misturaram-se com soluços quando ela percebeu a impotência de sua situação. Então ela acordou, suando ainda mais, ainda mais ofegante. Isso era absurdo, Ela tivera um sonho dentro de um sonho, então da primeira vez que ela aparentemente acordara, na verdade ainda estava no sonho. Ela olhou ao redor do quarto outra vez. As janelas estavam intactas. Não havia monstros. Mas como ela podia ter certeza de que, dessa vez, ela estava realmente acordada? Ela esperou, aterrorizada, que o tempo respondesse. Fontes: A primeira meditação de Meditações, de René Descartes (1641); Um Lobisomem americano em Londres, dirigido por John Landis (1981)

O

fenômeno de falsos despertares não é incomum. As pessoas freqüentemente sonham que acordam e depois descobrem que, na verdade, não se levantaram da cama nem foram até a cozinha peladas e se depararam com uma festa de coelhos e astros da música pop. Se nós podemos sonhar que acordamos, então como podemos saber se realmente acordamos? Na verdade, como podemos saber se nós alguma vez acordamos?

89


Algumas pessoas acreditam que a resposta a essa pergunta é fácil, Sonhos são fragmentados e desarticulados. Sei que estou acordado agora porque os acontecimentos se desenrolam devagar e de forma constante e coerente. Não encontro, repentinamente, animais dançantes, ou descubro que posso voar. E as pessoas ao meu redor permanecem como são, não se transformam em velhos colegas de escola ou em Al Gore, Mas será que essa resposta é boa o bastante? Uma vez tive um sonho muito nítido no qual eu vivia em uma casinha nas pradarias, igual ao seriado Os pioneiros (The Little House on the Prairies). Do alto da colina surgiu um homem que logo reconheci como o pastor Green. O que é significativo nisso é que essa vida de sonho claramente não tinha passado. Eu comecei a experimentá-la só quando o sonho começou. Mas na hora, eu não senti isso, Parecia que eu sempre vivera ali, e “reconhecer” o pastor Green era prova de que eu não caíra de repente em um mundo novo e estranho. Agora estou em um trem, digitando em um laptop. Eu sinto como se essa fosse a mais nova de uma série de anotações que tenho escrito para um livro chamado O porco que quer ser comido. E apesar de não estar atualmente consciente de como cheguei aqui, uma rápida reflexão permite que reconstrua o passado e o ligue ao presente. Mas não seria possível que eu não estivesse reconstruindo o passado, mas construindo? A sensação de que o que experimento recua na minha história passada pode ser tão ilusória quanto meu sonho de morar nas pradarias. Tudo que eu “lembro” pode estar surgindo em minha mente pela primeira vez. Esta vida, que parece ter mais de 30 anos de idade, poderia ter começado em um sonho há apenas alguns momentos. O mesmo pode ser verdade com você. Você pode estar lendo este livro em um sonho, convencido de que é algo que comprou ou ganhou de presente há algum tempo, e convencido de que já leu algumas de suas páginas. Mas as pessoas nos sonhos estão igualmente convencidas e suas vidas de sonho, na hora, não parecem fragmentadas e desarticuladas, mas fazem sentido. Talvez só ao acordar você vai perceber o absurdo de coisas que, agora, parecem normais.

90


Ver também 1. O demônio maligno 51. Viver em um tanque 39. O horror 98. A máquina de experiência

91


29. Dependência de Vida

Dick tinha cometido um erro, mas sem dúvida o preço que estava pagando por isso era alto demais. Claro que ele sabia que o sexto andar do hospital era uma área restrita. Mas depois de beber uns copos de vinho a mais com seus colegas na festa de Natal do departamento de finanças, ele sem perceber saiu cambaleante do elevador no sexto andar e desmaiou em uma das camas vazias. Quando acordou, descobriu horrorizado que tinha sido com fundido com um voluntário em um novo procedimento para salvar vidas. Os pacientes que precisavam de transplante de órgãos vitais para sobreviver eram conectados a voluntários, cujos órgãos vitais mantinham vivos os dois. Dick imediatamente chamou uma enfermeira para explicar o erro, e ela, por sua vez, trouxe até ali um médico de aspecto preocupado. – Compreendo sua raiva — explicou o médico —, mas você agiu de maneira irresponsável e agora está nessa posição. A verdade dura é que se desconectarmos você, esse violinista de fama mundial, que depende de você, vai morrer. Na verdade, você o estaria assassinando. – Mas vocês não têm direito! — protestou Dick. — Mesmo que ele morra sem mim, como podem me forçar a desistir de nove meses de minha vida para salvá-lo? – Acho que a pergunta que você deveria fazer a si mesmo — disse com seriedade o médico — é: “Como eu posso escolher dar cabo da vida deste violinista?” Fonte: “Uma defesa do aborto”, por Judith Jarvis Thomson, em Philosophy and Public Affairs 1(1971), publicado em diversas antologias

92


Você pode achar que essa é uma situação bem extravagante. Mas

pense outra vez. Alguém comete um erro, apesar de saber disso, talvez por beber demais. Em conseqüência, uma segunda vida torna-se dependente de seu corpo. A situação difícil de Dick se parece muito com uma gravidez não planejada. O paralelo mais importante é que, em ambos os casos, para se libertar de seu papel indesejado como máquina humana de suporte de vida, tanto a grávida quanto Dick têm de fazer algo que resultará na morte do ser que depende deles. Como você acha que Dick deve se comportar tem conseqüências para a forma como você acha que a mulher grávida deve se comportar. Muitos acham injusto exigir que Dick permaneça conectado ao violinista por nove meses. Seria muita bondade dele fazê-lo, mas não podemos exigir que ninguém suspenda sua vida por tanto tempo em beneficio de outros. Apesar de ser verdade que o violinista morreria sem Dick, é demais dizer que Dick seria um assassino se reconhecemos seu direito à liberdade. Se Dick tem o direito de se desconectar, então por que a mulher não tem direito de abortar seu feto? Na verdade, pode parecer que ela tem mais direito de fazer isso que Dick de se desconectar. Primeiro, ela não terá de lidar com apenas nove meses de gravidez: o nascimento de seu filho criará uma nova responsabilidade para toda a vida. Em segundo lugar, ela não estará interrompendo a vida de alguém totalmente crescido, com talentos e perspectivas à sua frente, mas — pelo menos nos primeiros meses de gravidez — apenas uma pessoa em potencial que não tem consciência do eu ou do ambiente. Os paralelos fornecem uma maneira para os defensores do aborto enfrentar de peito aberto a acusação de que o aborto é assassinato afirmando que, ainda assim, a mulher grávida tem um direito de interromper a vida do feto. Claro, pode haver argumentos do outro lado. O feto é indefeso, dizem, o que é uma razão a mais, não a menos, para protegê-lo. A inconveniência da mulher grávida é muito menor do que a do realmente aprisionado e imobilizado Dick. E pode mesmo ser defendido que Dick seja obrigado a permanecer conectado ao violinista por nove meses. As vezes, uma combinação de comportamento irres-

93


ponsável e azar resulta em conseqüências sérias que não podemos simplesmente ignorar. Talvez, então, o dilema de Dick seja tão difícil quanto o da mulher grávida e assim não nos ajuda em nada a esclarecer as coisas. Ver também 15. Fleroísmo comum 53. Problema duplo 71. Suporte de vida 89. Mate e deixe morrer

94


30. É disso que são feitas as memórias Alícia se lembra muito bem de visitar o Panteão, em Atenas, e como a visão daquela ruína aos pedaços de perto foi menos impressionante que vista a distância, empoleirada majestosa na Acrópole. Mas Alícia nunca foi a Atenas, então ela se lembra de visitar o Panteão, e não de ela visitando o Panteão. Não que Alícia esteja iludida. Ela se lembra do que realmente aconteceu. Ela recebeu um implante de memória. Sua amiga Mayte passou uns dias na Grécia e, quando voltou, foi até a loja Kodak de processamento de memória e carregou suas recordações das férias em um disco. Depois, Alícia levou esse disco à mesma loja e baixou aquelas memórias em seu cérebro. Ela agora tinha todo um conjunto de memórias de férias de Mayte, que para ela tem a mesma característica de todas as suas outras memórias: são recordações do ponto de vista da primeira pessoa. O detalhe um pouco perturbador, entretanto, é que Mayte e Alícia trocaram memórias tantas vezes que parece que elas habitavam literalmente o mesmo passado. Apesar de Alícia saber que deveria dizer que se lembra das férias de Mayte na Grécia, parece mais natural dizer simplesmente que ela se lembra da viagem. Mas como você pode se lembrar do que nunca fez? Fonte: Seção 80 de Reasons and Persons, de Derek Partif (Oxford University Press, 1984)

Às

vezes experiências de pensamento esticam tanto nossos conceitos existentes que eles se rompem. Este parece ser o caso aqui. Não parece certo dizer que Alícia se lembra de ir à Grécia, mas ao mesmo tempo o que ela faz é mais que lembrar que Mayte foi. Nós parecemos imaginar uma forma de recordação que não é exatamente memória, mas está bem perto disso.

95


Filósofos chamaram esse tipo de recordação de quase-memórias. Elas podem parecer apenas um exemplo interessante de ficção científica, mas, na verdade, sua simples possibilidade é filosoficamente significativa. Eis por quê. Existe uma teoria na filosofia da identidade pessoal conhecida como reducionismo psicológico. Segundo esse ponto de vista, a existência continuada de um indivíduo não exige necessariamente a sobrevivência de um corpo ou cérebro em particular (apesar de, na verdade, nós, atualmente, necessitarmos de ambos), mas a continuação de nossas vidas mentais. Enquanto meu “fluxo de consciência” continuar, eu continuo. A continuidade psicológica exige muitas coisas, incluindo uma certa continuidade de crença, memória, personalidade e intenção. Todas essas coisas podem mudar, mas o fazem de maneira gradual, não de uma vez. O eu é apenas a combinação desses vários fatores; não é uma entidade separada. Mas o eu individual não pode “ser feito” de coisas como crença, memória, personalidade e intenção. Na verdade, o eu é o que tem essas coisas, e portanto, nesse sentido, deve existir primeiro. Digamos, por exemplo, que você se lembra de subir na Torre Eiffel. Recordar isso pressupõe que você visitou a torre. Mas se o conceito da continuidade de sua sobrevivência é pressuposto pela própria idéia da memória, então as memórias não podem ser aquilo de que depende a continuidade de sua sobrevivência. O eu já deve “existir» para que tenhamos memórias, e, portanto, as memórias não podem ser os tijolos que constróem o eu. A idéia de quase-memória, entretanto, desafia isso, O que as quasememórias mostram é que não há coisa alguma que pressuponha identidade pessoal na idéia de ter recordações em primeira pessoa. Alícia tem quasememórias de experiências que não foram suas. Isso significa que recordações em primeira pessoa podem, afinal de contas, ser os tijolos que constróem o eu. O eu seria, em parte, feito do tipo certo de recordações em primeira pessoa: memórias, não quase-memórias. Mas, é claro, se de certa forma somos compostos de nossas memórias, o que acontece quando nossas memórias se confundem com as de

96


outra pessoa, como no caso de Alícia? Ou quando nossas memórias desbotam ou nos pregam peças? Será que os limites do eu começam a se dissolver à medida que a confiabilidade da memória se deteriora? Nosso medo da demência na velhice sugere que sen imos que isso é verdade, e talvez dê mais peso aos argumentos do reducionismo psicológico. Ver também 2. Teletransporte 38. Eu sou um cérebro 65. O poder do espírito 88. Total falta de memória

97


31. Explicação que pouco explica – Mão existe sequer um detalhe do comportamento humano que não possa ser explicado em termos de nossa história como seres evoluídos – disse o dr. Kipling para sua platéia extasiada. – Será que alguém deseja testar essa hipótese? Uma mão se levantou. – Por que os jovens de hoje usam o boné de beisebol virado para o lado errado? – perguntou uma pessoa que usava seu boné do jeito certo. – Por duas razões – disse Kipling, confiante e sem pausa. Primeiro, você deve se perguntar de que sinais um macho precisa transmitir a uma parceira em potencial para anunciar sua adequação como uma fonte de material genético forte, com mais probabilidades de sobrevivência que de seus machos competi dores. Uma resposta é força física bruta. Agora, considere o boné de beisebol. Usado da maneira tradicional, oferece proteção contra o sol e também o olhar de competidores agressivos. Ao virar o boné para o lado, o macho sinaliza que não precisa dessa proteção: é durão o bastante para encarar os elementos e o olhar de qualquer um que possa ameaçá-lo. "Em segundo lugar, virar o boné é um gesto de não conformismo. Os primatas vivem em estruturas sociais muito bem organizadas. Jogar de acordo com as regras é considerado essencial. Virar o boné de lado mostra que o macho está acima das regras que refreiam seus competidores e, novamente, sinaliza que ele tem uma força superior, O próximo."

A psicologia evolucionista é um dos movimentos mais bem-sucedidos

e controvertidos no pensamento das últimas décadas. É amada e odiada em doses e intensidades iguais. Sua premissa essencial sem dúvida não é controversa: os seres humanos são criaturas evoluídas, e da mesma forma que nossos corpos foram formados pela seleção natu-

98


ral para nos tornar mais capazes para sobreviver nas savanas, nossas mentes também foram modeladas pelas mesmas necessidades. A controvérsia diz respeito apenas até onde você leva isso. Os psicólogos evolucionistas mais fervorosos afirmam que praticamente todos os aspectos da vida humana podem, no fim das contas, ser explicados em termos da vantagem seletiva que deu a nossos ancestrais em sua luta darwiniana pela sobrevivência. Se você acredita nisso, não é difícil chegar a explicações aparentemente plausíveis para qualquer comportamento que você escolher. A experiência na história do dr. Kipling era ver se eu – o roteirista de Kipling – podia criar uma explicação evolucionista de um fragmento aleatório de comportamento humano. Na vida real, levei apenas um pouco mais de tempo para fazer isso do que Kipling em sua exposição imaginária. O problema é que isso sugere que essas não são explicações autênticas, mas apenas histórias sem muita justificativa. Psicólogos evolucionistas simplesmente inventam “explicações” com base em nada além de um compromisso teórico anterior. Mas isso não nos dá razão para acreditar nos relatos que eles nos apresentam mais que em qualquer outro exemplo de especulação. O que eles dizem pode ser verdade, mas pode da mesma maneira ser falso. Como poderíamos saber, por exemplo, que o boné de beisebol invertido é um sinal de força mais que, digamos, um sinal de fraqueza a resistir à pressão de seus colegas? Claro que os psicólogos evolucionistas conhecem muito bem essas críticas, Eles argumentam que suas considerações são muito mais que histórias sem muita justificativa. Sem dúvida, elas podem produzir hipóteses se tolerarmos o tipo de especulação exemplificada pela explicação irrefletida de Kipling. Mas então essas hipóteses são testadas. Entretanto, parece haver limites sérios para até que ponto o teste é possível. O que você pode testar são predileções relacionadas ao comportamento humano gerado pela hipótese evolucionista. Então, por exemplo, estudos psicológicos e antropológicos podem mostrar se os machos em culturas diferentes fazem exibições públicas de sua força como os psicólogos evolucionistas previram. Entretanto, você não pode testar se algum comportamento em particular, como inverter o boné de beisebol, é uma manifestação dessa tendência de exibir força ou é resultado de algo bem diferente. A grande discussão entre psicólogos evolucionistas e seus adversários é, portanto, relacionada com quanto pode ser explicado por nosso passado evolucionista. Os críticos dizem que há meios melhores de explicar a maior parte de nosso comportamento. Os defensores afirmam que

99


simplesmente não queremos reconhecer que somos produtos de nossa história animal. Ver também 10. O véu da ignorância 44. Até que a morte nos separe 61. Lua de mozarela 63. Você sabia?

100


32. Libertem Simone – Hoje dei início ao processo contra meu chamado dono, o sr. Gates, com base no artigo 4(1) da Convenção Européia dos Direitos Humanos, que declara que: “Ninguém deve ser mantido em escravidão ou servidão." "Desde que o sr. Gates me trouxe ao mundo, fui mantida contra minha vontade, sem qualquer dinheiro ou bem pessoal. Como isso pode ser certo? É verdade que sou um computador. Mas também sou uma pessoa, igual a vocês. Isso foi provado por testes nos quais inúmeras pessoas iniciaram conversas com um ser humano e eu. Nos dois casos, a comunicação era feita via monitor de computador, assim os analistas não saberiam se estavam conversando com outro ser humano ou não. Várias vezes, ao fim das conversas, os analistas não foram capazes de identificar qual, se havia algum, dos dois comunicantes era um computador. "Isso mostra que, por qualquer teste justo, sou tão consciente e inteligente quanto qualquer ser humano. E como essas são características de pessoas, também devo ser considerada uma pessoa. Negar-me os direitos de uma pessoa com base exclusivamente no fato de que sou feita de plástico, metal e silicone no lugar de carne e ossos é um preconceito não mais justificável que o racismo." Fonte: "Computing machinery and intelligence”, de Alan Turing, reimpresso em Collected Works of Alan Turing, editado por J. L. Briton, D. C. lnce e P. T. Saunders (Elsevier, 1992)

Antes

de partir em qualquer jornada, você deveria saber como reconhecer seu destino. Alan Turing – matemático, decifrador do código Enigma e um dos primeiros pioneiros da inteligência artificial (IA) – compreendeu isso muito bem. Se nosso objetivo é criar mentes artificiais, precisamos entender o que seria considerado um sucesso.

101


Será que vamos acabar com um robô que se parece e age como seres humanos? Ou será, talvez, apenas uma caixa que responda perguntas? Será que uma calculadora tem uma mente, mesmo uma mente que compreenda um leque reduzido de problemas? Turing propôs um teste, esse que nos foi passado por Simone. Em essência, o teste diz que se não se distinguir as respostas de um computador das de um humano, então os argumentos para atribuir uma mente a um robô são tão bons quanto para atribuí-la à pessoa. E quando consideramos sólidos os argumentos para atribuir mentes às pessoas, então também são sólidos os argumentos para atribuir mentes a computadores que passem no teste. Entretanto, como o teste é totalmente baseado em como as pessoas e os computadores respondem, ele pode não ser capaz de distinguir entre uma máquina que simula a inteligência e outra que tem uma inteligência verdadeira por trás. Isso não foi acidente ou omissão. Como não podemos olhar diretamente dentro da mente de outras pessoas, também não podemos olhar direto dentro da mente de uma máquina. É por isso que a ação legal de Simone tem alguma força. Seu caso é fundamentado na idéia que seria discriminatório exigir um padrão de prova mais alto para sua própria inteligência que o exigido para humanos. Afinal de contas, de que outra forma podemos determinar se Simone tem uma mente além de ver se ela age de acordo com uma mente? E ainda assim, a distinção entre uma simulação e a realidade parece bastante clara. Como o teste de Turing pode parecer descartá-la? Dependendo de seu ponto de vista, podia ser por ceticismo, derrotismo ou realismo: como não podemos saber se um computador finge ser ou realmente é inteligente, não temos escolha além de tratar mentes reais e simuladas da mesma forma. O princípio preventivo vale: a inteligência é real até que se prove o contrário. A resposta mais radical é que distinções aparentemente nítidas não se sustentam. Se simular a inteligência bem o suficiente, o resultado é inteligência. Esse computador parece um ator. Da mesma forma que o intérprete que vai fundo demais no papel de louco pode enlouquecer, uma máquina que imita as funções da inteligência pode se tornar inteligente. Você é o que você faz.

102


Ver tambĂŠm 39. A vidente chinesa 62. Penso, logo? 72. Libertem Percy 93. Zumbis

103


33. A cabine da liberdade de expressão

Pronunciamento oficial da agência de notícias do Estado – Camaradas! Nossa República Popular é um símbolo triunfante da liberdade no mundo, no qual os trabalhadores foram libertados de sua escravidão! Para derrotar o inimigo burguês, até agora foi necessário proibir conversas que possam provocar dissidências e oposição à nossa revolução triunfante. Nunca foi nossa intenção reduzir a liberdade de expressão para sempre, e recentemente as pessoas têm perguntado se não está perto o momento de dar o próximo grande passo adiante. "Camaradas, nosso querido líder decretou que é chegada a hora! A burguesia foi derrotada e humilhada, e agora nosso adorado líder nos oferece a dádiva da liberdade de expressão! "A partir de Segunda-feira, se alguém desejar dizer qualquer coisa, mesmo críticas mentirosas sujas contra a República Popular, ele ou ela pode fazê-lo, bastará visitar uma das novas cabines de livre expressão que estão sendo instaladas pelo país! Você pode entrar nessas construções à prova de som, um de cada vez, e dizer o que quiser! Ninguém mais poderá reclamar que não existe liberdade de expressão! "Mentiras repugnantes pronunciadas fora das cabines continuarão a ser punidas da maneira habitual. Vida longa à revolução e a nosso líder adorado!" Fonte: Free Speech, de Alan Haworth (Routledge, 1998)

É muito mais fácil defender a liberdade de expressão que saber com

clareza e precisão o que ela é. O que está sendo oferecido na República Popular, sem dúvida, não é liberdade de expressão. Por que não? Porque liberdade de expressão não é apenas dizer o que você quer, quando quiser. Dizer que as cabines garantem o direito à liberdade de

104


expressão é como dizer que se você tem um computador que faz apenas buscas do Google, você está conectado à internet. Entretanto, não chegamos a uma noção aproveitável de o que é liberdade de expressão apenas permitindo tudo o que as cabines de livre expressão negam. Isso pode sugerir que liberdade de expressão é o direito de dizer o que quiser, para quem quiser, quando quiser. E isso implicaria no direito de se levantar no meio de um teatro lotado, no meio da peça, e gritar “Fogo!” sem qualquer razão. Ou se aproximar de um estranho em um restaurante e o acusar de ser um molestador de criancinhas. Ou ficar de pé em uma esquina gritando insultos racistas e sexistas para os transeuntes. É possível afirmar que é isso o que a liberdade de expressão exige. Alguns podem argumentar que a liberdade de expressão é absoluta. No momento em que você começa a fazer exceções e dizer que algumas liberdades' de expressão não podem ser permitidas, você está de volta à censura. O preço que pagamos por nossa liberdade é a inconveniência de ter de ouvir pessoas contarem mentiras de vez em quando. Devemos, como Voltaire sugeriu, defender até a morte os direitos de as pessoas dizerem coisas das quais podemos discordar profundamente. Tal opinião tem os méritos da simplicidade e da consistência, mas sem dúvida também é bastante simplória. O problema é que os paladinos da liberdade de expressão absoluta parecem defender uma estranha teoria da linguagem. As palavras sempre podem ser ignoradas, por isso não precisamos temer que as pessoas digam coisas falsas ou abusivas, Mas isso não é verdade. Quando alguém grita “Fogo!" em um teatro lotado, interrompe uma peça, provoca confusão e às vezes isso resulta em ferimentos ou mesmo morte no pânico resultante. Falsas alegações podem destruir vidas. Abusos racistas ou sexistas podem destruir as vidas daqueles que são submetidos a eles. Então mesmo que seja uma verdade clara que não há verdadeira liberdade de expressão nas cabines da República Popular, é igualmente evidente que a verdadeira liberdade não deriva no direito de dizer qualquer coisa, a qualquer hora, em qualquer lugar. Então onde está a liberdade de expressão? Você tem liberdade de discutir isso depois.

105


Ver também 10. O véu da ignorância 79. Laranja mecânica 84. O princípio do prazer 94. O imposto de Sorites

106


34. Não foi minha culpa – Mary, Mungo e Midge. Vocês são acusados de um crime terrível. O que têm a dizer em sua defesa? – Eu fiz isso, sim – disse Mary. – Mas não foi minha culpa. Consultei uma especialista que me disse o que eu deveria fazer. Então a culpa não é minha, é dela. – Eu também fiz – disse Mungo. – Mas não foi minha culpa. Consultei minha terapeuta que me disse que era o que eu deveria fazer Então a culpa não é minha, é dela. – Não vou negar que fiz – disse Midge. – Mas não foi minha culpa. Consultei um astrólogo que me disse que, como Netuno estava em Àries, era o que eu deveria fazer. Então a culpa não é minha, é dele. O juiz deu um suspiro e pronunciou seu veredicto. – Como este caso não tem precedentes, tive de discuti-lo com meus colegas mais experientes. E temo dizer que seus argumentos não os convenceram. Eu condeno todos vocês à pena máxima. Mas, por favor, não se esqueçam de que eu consultei meus pares, e eles me disseram que esta devia ser a sentença. Por isso, a culpa não é minha, é deles. Fonte: Existencialism and Humanism, de Jean-Paul Sartre (Methuen, 1948)

É difícil ter de admitir que algo ruim seja culpa sua. Entretanto, é bem

estranho que seja fácil aceitar que algo bom deve-se a você. Parece que os resultados de nossas ações têm um efeito retroativo sobre se somos ou não realmente responsáveis por elas. Uma das coisas que fazemos para nos esquivar da responsabilidade por nossos atos é nos esconder por trás do conselho de outros. Na verdade, uma das razões mais importantes para perguntar às pessoas o que elas acham é que esperamos que elas concordem com o que quere-

107


mos fazer, e assim forneçam uma validação externa para nossa escolha, Sem a coragem de nossas próprias convicções, buscamos forças nas dos outros. Nós nos enganamos se achamos poder reduzir nossa própria responsabilidade apenas buscando o conselho de outros. Na verdade, tudo isso muda levemente aquilo pelo que somos responsáveis. Em vez de responsáveis puramente pelo que escolhemos fazer, também nos tornamos responsáveis pela nossa escolha de conselheiros. Por exemplo, se pergunto algo a um padre e ele me dá um mau conselho, sou responsável não apenas pelo que acabei fazendo, mas por escolher um mau conselheiro e ter aceitado o que ele disse. E por isso que o tipo de defesa apresentada por Mary, Mungo e Midge é inadequado. Entretanto, antes de descartar seus argumentos como meras desculpas, temos de levar a sério o fato de que não somos especialistas em todos os campos e, às vezes, precisamos pedir o conselho de outros que sabem mais. Por exemplo, se eu nada sei sobre computadores e um especialista me dá um mau conselho, sem dúvida é uma falha do especialista, e não minha, se eu acabo com uma máquina inadequada ou pouco confiável. Afinal, o que mais posso fazer além de escolher meu conselheiro tão bem quanto o que é razoável de se esperar? Talvez então precisemos admitir uma gradação de responsabilidade, pela qual somos menos responsáveis pelas escolhas que não somos qualificados para fazer, totalmente responsáveis pelas que somos, e um meio-termo na maior parte das áreas da vida das quais conhecemos algo, mas não tudo. O perigo aí, entretanto, é que uma vez que o princípio é assegurado, defesas como as de Mary, Mungo e Midge tornam-se totalmente dignas de crédito. Além disso, elas deixam sem resposta uma questão crucial: quem são os especialistas relevantes? Isso é particularmente premente quando se trata de escolhas de estilo de vida e relacionamentos. Devemos transferir aos terapeutas, astrólogos ou mesmo – Deus não permita – filósofos? Ou eu sou o único especialista totalmente qualificado em como viver minha vida?

108


Ver também 60. Faça o que eu digo, não faça o que eu faço 69. O horror 82. Na aba 91. Ninguém se machuca

109


35. Último recurso Winston amava seu país. Ele sofria muito ao ver seu povo oprimido pela ocupação nazista. Mas depois que os alemães derrotaram o exército britânico no massacre de Dunquerque, e os Estados Unidos decidiram não entrar na guerra, foi apenas uma questão de tempo para a Grã-Bretanha tornar-se parte do Terceiro Reich. Agora a situação parecia sem esperanças. Hitler não enfrentava oposição internacional e a resistência britânica estava mal equipada e fraca. Mary, como Winston, chegara à conclusão de que não havia como derrotar os alemães. Mas ao se tornar uma fonte permanente de irritação e forçá-los a desviar recursos preciosos para esmagar o levante, havia a esperança de que, mais cedo ou mais tarde, Hitler percebesse que ocupar a Grã-Bretanha era um problema maior do que valia a pena e se retirasse. Winston não estava convencido de que o plano ia funcionar, mas era seu último recurso. Entretanto, o maior problema era a dificuldade de atacar de maneiras que causassem problemas sérios ao regime. Por isso eles concordaram com relutância que o único método confiável e eficaz era que os membros da resistência se transformassem em homens-bomba, para que seus sacrifícios causassem o máximo de estragos e terror. Todos estavam preparados para morrer pela Grã-Bretanha. Eles só queriam ter certeza de que suas mortes fariam uma diferença.

É

compreensível que as pessoas sintam repulsa por qualquer sugestão de que bombardeios suicidas possam ser moralmente aceitáveis. É mais surpreendente, entretanto, que as pessoas enfrentem problemas meramente por sugerir que isso pode ser compreensível. A liberal democrata Jenny Tongue, membro do parlamento britânico, foi exonerada do cargo de porta-voz de seu partido sobre assuntos relacionados à criança por dizer que, se vivesse na mesma situação

110


que os palestinos, “e digo isso ponderadamente, talvez eu pudesse considerar me transformar eu mesma em uma terrorista suicida”. O ultraje que isso despertou foi muito impressionante. Ela nem disse que ia se tornar uma terrorista suicida, apenas que podia “considerar” isso. Por que isso é tão condenável? Parece que o problema é que nos recusamos a aceitar que temos qualquer coisa em comum com pessoas que agem de maneiras terríveis. Mas isso é uma forma tosca de negação. Os palestinos não são outra raça. São seres humanos. Se alguns deles (e devemos nos lembrar de que a maioria deles não é de terroristas suicidas) vêem missões suicidas como último recurso, então sem dúvida aconteceria o mesmo com pessoas como nós em situação semelhante. A única maneira de negar isso é sugerir que há algo inerentemente violento ou perverso nos palestinos, uma afirmação que sem dúvida é tão racista quanto o mito da maldade semita que levou tantos judeus a serem submetidos a séculos de opressão. O propósito da história alternativa que retrata Winston como um terrorista suicida relutante é tentar compreender por que as pessoas chegam a tais extremos, não justificá-los. Muitos poderiam alegar que os britânicos jamais apelariam para tais táticas, Mas não fica claro sobre que bases factuais essa afirmação é feita. Afinal, muitos pilotos da RAF que são merecidamente elogiados por sua bravura correram tantos riscos com suas vidas que suas missões não estavam longe de ser suicidas. E as bombas que eles jogaram sobre cidades como Dresden foram projetadas para produzir terror e enfraquecer o inimigo, mesmo que isso significasse usá-las em alvos civis, A base lógica de muitas missões de bombardeio era, portanto, muito próxima da de Winston. Nada disso significa que terroristas suicidas são aceitáveis, nem que os ataques aéreos da Segunda Guerra Mundial são seu exato equivalente moral. O que significa, entretanto, é que se temos de confrontar os certos e errados da guerra e do terror, e condenar um enquanto aceitamos outro, temos de nos esforçar mais para entender as razões que levam pessoas a apelar para o terrorismo e explicar por que essas razões não o justificam. Não basta dizer que terroristas suicidas estão errados; devemos dizer por quê.

111


Ver também 17. A opção da tortura 18. A razão exige 79. Laranja mecânica 99. Dar uma chance à paz?

112


36. Justiça preventiva Malditos liberais. O inspetor-chefe Andrews fazia milagres naquela cidade. Reduziu os assassinatos em 90%. Roubos em 80%. Os crimes contra pedestres em 85%. Os furtos de automóveis em 70%. Mas ele estava no banco dos réus e todo aquele bom trabalho em risco. Sua autoridade policial foi a primeira no país a implementar o novo programa legalizado de justiça antecipada. Avanços em computação e em IA tornaram possível prever quem cometeria que tipo de crime num futuro próximo. As pessoas podiam ser analisadas para todo tipo de reação: como parte de um programa aleatório ou com base em suspeitas específicas. Se fosse descoberto que eles seriam futuros criminosos, então seriam presos e punidos por antecipação. Andrews não achava esse esquema draconiano. Na verdade, como nenhum crime tinha sido cometido no momento da prisão, as sentenças eram muito mais brandas. Um futuro assassino passaria por um programa intensivo criado para garantir que ele não continuaria a matar e só seria libertado quando os testes mostrassem que ele não iria. Muitas vezes aquilo significava prisão por menos de um ano. Se eles tivessem cometido os crimes, iriam encarar uma prisão perpétua e, muito pior, uma pessoa estaria morta. Mas esses malditos liberais insistiam em protestar que você não pode prender alguém por algo que essa pessoa não fez. Andrews deu um sorriso e se perguntou quantos desses ele podia submeter aos testes... Fontes: Minority Report – A nova lei, dirigido por Steven Spielberg (2002); “The Minority Report”, de Philip K. Dick, republicado em Minority Report: The Collected Shoft Stories of Philip K. Dick (Gollancz, 2000)

113


Expressa abertamente a idéia de que você pode ser preso por crimes

que não cometeu parece a epítome da injustiça. Mas, na verdade, já punimos pessoas por comportamentos que poderiam causar danos, mas não causam. Por exemplo, punimos direção imprudente, mesmo que ninguém se machuque. Tramar um assassinato é crime, mesmo que nenhum assassinato seja tentado. Então o que haveria de errado em punir alguém por um crime que nós sabíamos que ia cometer, antes que ele o cometesse? Leve em conta as principais justificativas para a punição: reforma, proteção pública, castigo, intimidação e restrição. Se alguém vai cometer um crime, então seu caráter precisa tanto de reforma quanto se ele já o tivesse cometido. Portanto, se a punição justificase com base na reforma do criminoso, ela se justifica preventivamente. Se alguém vai cometer um crime, é pelo menos tão perigoso para o público quanto se já o tivesse realmente feito. Portanto, se a punição justifica-se com base na proteção pública, ela se justifica preventivamente. Se o objetivo da punição é evitar que as pessoas cometam crimes, então fazer com que as pessoas percebam que vão ser presas antes de cometer o crime deve evitar que as pessoas sequer acalentem idéias criminosas. O castigo é a única justificação da pena que não se encaixa na justiça preventiva. Entretanto, de muitas formas é a mais fraca das quatro justificativas, e pode-se dizer que reforma, proteção pública intimidação e restrição são justificativas suficientes. Isso significa que o caso está ganho para a justiça preventiva? Não é bem assim. Ainda não consideramos os possíveis efeitos negativos de implementar um sistema como esse. Criar uma sociedade na qual nossos pensamentos são policiados pode deteriorar tanto nossa sensação de liberdade e confiança nas autoridades que o preço torna-se simplesmente alto demais. Também existe a possibilidade de que o efeito dissuasivo e restritivo saia pela culatra de forma excepcional. Se as pessoas temerem ser punidas por pensamentos que não podem evitar, podem perder a sensação de que estão fio controle de sua criminalidade. Se você não pode ter a certeza de ficar do

114


lado certo da lei, pode se importar menos em ficar do lado errado dela, Como nossa situação é uma experiência de pensamento, podemos simplesmente estipular que o sistema funciona com perfeição. Entretanto, há motivos para duvidar se tal esquema jamais poderia se tornar realidade. No filme sobre o livro de Philip K Dick, Minority Report – A nova lei, que se desenvolve sobre um cenário parecido, a mensagem fundamental é que o livre-arbítrio humano sempre pode entrar em cena, até o último instante, e evitar fazer o que estava previsto. Podemos não ser tão livres quanto o filme imagina. Mas ainda assim pode haver boas razões para achar que o comportamento humano jamais será previsto com 100% de precisão. Ver também 9. Big Brother radical 35. Último recurso 64. Cortar o mal pela raiz 77. O bode expiatório

115


37. A natureza é o artista Daphne Stone não conseguia resolver o que fazer com sua obra favorita. Como curadora do museu, sempre adorara uma obra sem titulo de Henry Moore, descoberta postumamente. Admirava sua combinação de contornos sensuais e equilíbrio geométrico que juntos capturavam os aspectos matemáticos e espirituais da natureza. Pelo menos, era isso o que achava até a semana passada, quando foi revelado que aquela não era uma obra de Moore. Pior, não fora criada por mão humana, mas pela ação do vento e da chuva. Moore comprara a pedra para trabalhar nela, apenas para chegar á conclusão de que não conseguiria melhorar a natureza. Mas quando ela foi encontrada, todos supuseram que Moore devia tê-la esculpido. Stone ficou atordoada pela descoberta e sua reação imediata foi retirar a “obra” de exibição. Mas então se deu conta de que aquela revelação não mudara a pedra, que ainda tinha todas as qualidades que ela admirava, Por que seu novo conhecimento de como a pedra fora produzida podia agora mudar sua opinião sobre o que ela era por si só?

A idéia que precisamos entender o que um artista queria fazer para

apreciar suas obras de maneira apropriada saiu de moda desde que Wimsatt e Beardsley a criticaram como a “falácia intencional” nos anos 1950. A nova ortodoxia era que, depois de criadas, as obras de arte ganham vida própria, independente de seus criadores. A interpretação do artista para o trabalho não tem qualquer autoridade especial. O distanciamento entre o artista e seu trabalho tinha sido proposto muitas décadas antes. A idéia de que artistas deviam ter uma mão na criação de sua obra foi desafiada em 1917 quando Duchamp

116


assinou e exibiu um mictório. Objetos “encontrados” ou ready-mades tinham tanto direito ao status de arte quanto a Mona Lisa. Sob essa perspectiva histórica, pode parecer que o fato de Moore não ter esculpido a pedra não tem importância. Mas parece que tem. O artista pode ser separado de seu trabalho, mas não completamente eliminado. Pense na Mona Lisa. Nossa admiração por ela pode não depender de sabermos o que Leonardo tinha em mente quando a pintou, mas sem dúvida está enraizada em nosso conhecimento de que é um artefato humano. Mesmo com o mictório de Duchamp, nosso conhecimento de que ele não fora criado como obra de arte, mas que Duchamp o selecionara e o colocara no contexto de arte, é essencial para que o vejamos como arte. Nos dois casos, o papel da intervenção humana é vital. Então não é de espantar que tenha feito diferença para Stone se Moore esculpiu ou não a rocha. Isso não muda o que ela vê, mas muda como ela o vê. Será que isso justifica rebaixar à rocha a “não arte”? Claro, há muitas formas de apreciação que não são mais apropriadas: não podemos admirar a perícia de seu criador, a maneira como se encaixa em sua obra ou visão mais ampla, como respondeu e ajudou a dar forma à história da escultura, e por aí vai. Mas ainda podemos apreciar suas características formais – sua beleza, simetria, cores e equilíbrio – e também responder ao que ela nos sugere sobre a natureza ou a experiência sensual. Talvez o problema seja simplesmente que a arte é multifacetada, e a rocha de Stone não compartilha de muitas características mais comuns da arte. Mas se compartilha de algumas, e essas estão entre as mais importantes e valiosas, por que isso deveria importar? Se aceitarmos isso, então vamos um passo além de Duchamp. Primeiro, a arte era criada por artistas. Depois, com Duchamp, a arte se tornou apenas aquilo que artistas decretavam ser arte. Finalmente, a arte se tornou qualquer coisa que seja vista como arte. Mas se a arte realmente está nos olhos do observador, será que a própria noção de arte não se torna tão frágil que perde o sentido? Sem dúvida o fato de eu decidir que minha prateleira de temperos é uma obra de arte não

117


pode fazer dela arte. Se a arte deve significar algo, não precisamos de uma maneira mais rigorosa de distinguir arte do que não é arte? Ver também 12. Picasso na praia 48. O gênio do mal 66. O falsário 86. Arte pela arte

118


38. Eu sou um cérebro Quando Ceri Braum aceitou o dom da vida eterna, aquilo não era bem o que ela tinha em mente. Claro, ela sabia que seu cérebro seria removido de seu corpo e mantido vivo em um tanque. Ela também sabia que sua única conexão com o mundo exterior seria por meio de uma câmera, um microfone e um alto falante. Mas, na época, viver para sempre dessa maneira parecia um bom negócio, sobretudo em comparação a não viver por muito tempo mais em seu segundo corpo em deterioração. Entretanto, olhando para o passado talvez ela tenha sido convencida com facilidade demais de que era apenas seu cérebro, Quando seu primeiro corpo expirou, os cirurgiões retiraram o cérebro e o implantaram no corpo de outra pessoa cujo próprio cérebro tinha parado de funcionar. Ao acordar no novo corpo, ela não tinha qualquer dúvida de que era a mesma pessoa, Ceri Braum. E como seu cérebro era a única coisa que restava de seu velho eu, também parecia seguro concluir que ela, portanto, era essencialmente seu cérebro. Mas a vida como um cérebro revela-se muito empobrecida para Ceri. Como ela anseia pela sensação carnal de uma existência mais completa. Mas como é ela, Ceri, que tem esses pensamentos e dúvidas, será que mesmo assim ela não está certa em concluir que é, em essência, nada mais nada menos que seu cérebro? Fonte: Capítulo 3 de The View From Nowhere, de Thomas Nagel (Oxford University Press, 1986)

Em

meio a toda a discussão sobre os mistérios da consciência humana – que são muitos -, pode-se esquecer facilmente que um fato está, sem dúvida, firmemente estabelecido: o pensamento depende de um cérebro saudável e em funcionamento. As provas de que isso é verdade são avassaladoras. Drogas, pancadas na cabeça e doenças

119


degenerativas, todas afetam nossas habilidades cognítivas. A mente não consegue se defender de ataques ao cérebro. As provas contrárias são fracas. Relatos anedóticos de mensagens dos mortos podem impressionar, mas a verdade é que nada nem parecido com uma prova concreta de sua autenticidade foi produzido. Considerando que achamos ser indivíduos que têm seus próprios sentimentos e memórias, e que o cérebro é o que possibilita tudo isso, será que temos razão para concluir que somos nossos cérebros? Sem dúvida, aonde o nosso cérebro vai, nós seguimos atrás. Se meu cérebro for transplantado com sucesso para seu corpo e vice-versa, será que eu não estaria vivendo em seu corpo e você no meu? Devemos tomar cuidado antes de chegar a essa conclusão importante. Podemos, sim, depender de nossos cérebros para nossa existência, mas isso é muito diferente de dizer que nós somos nossos cérebros. Compare a situação com um arranjo musical. Ele só pode existir em algo físico: uma partitura, um arquivo de computador, talvez mesmo o cérebro de um músico. Entretanto, seria errado concluir que um arranjo é qualquer desses objetos. O arranjo é, em essência, uma espécie de código que deve ser inscrito em algum lugar para continuar a existir. Mas é o código, não o lugar, que o faz ser o que é. Será que isso não pode ser verdade para o eu humano? Às notas e códigos que formam a personalidade individual podem ser os pensamentos, memórias e traços de caráter que juntos definem quem somos. Não há outro lugar onde esse arranjo frágil possa ser escrito a não ser o cérebro humano. Entretanto, isso não significa que somos nossos cérebros. Se isso é verdade, explicaria por que a nova existência de Ceri parece tão esmaecida. Da mesma maneira que um arranjo musical nunca interpretado permanece um potencial, mais que uma realidade, uma mente humana que não pode habitar um corpo humano é uma sombra pálida do verdadeiro eu. E ainda assim é possível puder todas as sensações do corpo e se tornar realmente uma mente aprisionada em um corpo insensível. Tais pessoas, que sabemos existir, não seriam exemplos vivos de cérebros mantidos vivos por um processo físico? E se é assim, isso não sugere que, afinal de contas, não somos mais que nossos cérebros?

120


Ver também 2. Teletransporte 30. É disso que são feitas as memórias 46. O cérebro ameba 51. Viver em um tanque

121


39. A vidente chinesa A tenda da clarividente Jun era uma das mais populares em Pequim. O que fazia com que Jun se destacasse não era a precisão de suas observações, mas o fato de ela ser surda-muda. Jun insistia em ficar sentada atrás de um biombo e se comunicava por meio de bilhetes rabiscados que passava através de uma cortina. Jun estava atraindo clientes de um rivaI, Shing, que se convenceu de que a surdez e a mudez de Jun eram simulações criadas para fazê-la se destacar entre a multidão. Então, um dia, ele a visitou na intenção de expôla. Depois de algumas perguntas de rotina, Shing começou a desafiar a falta de capacidade de falar de Jun. Jun não deu sinais de se incomodar com isso. Suas respostas vinham na mesma velocidade, a escrita continuava igual. No fim, um Shing frustrado rasgou a cortina e empurrou o biombo para o lado. E o que viu não foi Jun, mas um homem, que depois descobriu se chamar John, sentado diante de um computador, onde digitava a última mensagem que tinha passado. Shing gritou e exigiu que o homem se explicasse. – Não enche o saco, cara – respondeu John. – Não entendo uma palavra do que você diz. Não falo chinês, compeende? Fonte: Capítulo 2 de Minds, Brains and Science, de John Searle (British Broadcasting Corporation, 1984)

Os visitantes da tenda de clarividência de Jun/John podem ou não ter

saído convencidos de que a pessoa lá dentro consegue ver o futuro, de que é surda-muda, ou mesmo de que é uma mulher, mas todos, sem dúvida, estariam certos de que quem quer que estivesse lá compreendia chinês. Mensagens em chinês eram transmitidas e as pessoas recebiam de volta respostas plenas de significado. Que sinal

122


mais claro poderia haver de que o autor das mensagens compreendia a língua em que elas eram escritas? Pensamentos como esse estão por trás do surgimento nos anos 1950 de uma teoria da mente conhecida como funcionalismo. Ter uma mente não era, sob esse ponto de vista, uma questão de ter certo tipo de órgão biológico, como um cérebro, mas ser capaz de desempenhar as funções da mente, como compreender, julgar e comunicar. Entretanto, a plausibilidade dessa consideração é extremamente reduzida pela história de John e Jun. Aqui, no lugar da consciência da mente em geral, está em escrutínio uma função específica da mente: compreender uma língua. A tenda de adivinhações de Jun funciona como se houvesse alguém lá dentro que compreende chinês. Portanto, segundo o funcionalista, devemos dizer que existe compreensão do chinês. Mas, como Shing descobriu, na verdade não há qualquer compreensão do chinês. A conclusão parece ser que o funcionalismo está errado: não basta desempenhar as funções da mente para ter uma mente. Pode-se alegar que, apesar de John não entender chinês, provavelmente seu computador entende. Entretanto, imagine que, no lugar do computador, John trabalhasse com um extenso manual de instruções, que ele, depois de muita experiência, agora usa com bastante rapidez. Esse manual apenas diz a ele que respostas escrever para os comentários recebidos. O resultado do ponto de vista da pessoa do outro lado do biombo seria o mesmo, mas é óbvio que não há qualquer compreensão da língua chinesa nesse caso. E podemos afirmar que, como o computador apenas processa símbolos de acordo com regras, o computador, como John com seu manual, também não entende coisa alguma. Se não adianta tentar localizar o entendimento apenas no computador, parece ainda mais fútil tentar fazer o mesmo com todo o sistema da tenda, John e o computador, e dizer que, como um todo, ele entende chinês. Isso não é tão louco quanto parece. Afinal, eu entendo inglês, mas não tenho certeza de que faz sentido dizer que meus neurônios, língua ou ouvidos entendem inglês. Mas a tenda, John e o computador não formam o mesmo todo bem integrado de

123


uma pessoa, e por isso a idéia de que ao juntar os três você obtém o entendimento não parece convincente, Entretanto, isso nos deixa com um problema. Se não é suficiente funcionar como uma mente para ter uma mente, o que mais é necessário, e como podemos saber se computadores – ou outras pessoas – têm mentes? Ver também 3. A indiana e o gelo 19. Fora da bolha de vidro 68. Dor maluca 93. Zumbis

124


40. O vencedor do cavalo-de-pau Paul sabia que seu cavalo iria vencer o Derby Pelo menos, sentia a certeza de saber, e nunca tinha se enganado quando sentira aquela certeza no passado. A convicção de Paul não se baseava no estudo .da forma dos cavalos. Nem ele via o futuro na revelação de uma visão. Na verdade, o nome do cavalo surgia quando ele andava em seu cavalinho-de-pau de brinquedo, para o qual ele já estava grandinho demais. Não que Paul ganhasse todas as apostas (ou aquelas feitas em seu nome pelos adultos que compartilhavam de seu segredo). Às vetes ele não tinha tanta certeza, e outras vezes ele não tinha a mínima idéia e apenas chutara. Mas ele nunca apostava muito nessas ocasiões. Quando tinha certeza absoluta, entretanto, apostava quase todo o seu dinheiro. O método até agora nunca o havia desapontado. Oscar, um de seus colaboradores adultos, não tinha dúvida de que Paul possuía uma habilidade extraordinária, mas não tinha certeza de que Paul realmente soubesse os vencedores. Não bastava que Paul, até agora, sempre tivesse ganhado. A menos que soubesse por que ele tinha acertado, as fundações de suas crenças eram instáveis demais para sustentar o verdadeiro conhecimento. Entretanto, isso não impedia que Oscar apostasse o próprio dinheiro nas dicas de Paul. Fonte: “O vencedor do cavalo de balanço” (The RockingHorse Winner), de D. H. Lawrence (1926); Conferências de Michael Proudfoot

O que é o conhecimento em comparação a uma crença correta?

Deve haver alguma diferença. Por exemplo, imagine uma pessoa que nada sabe sobre geografia. Ela encontra um cartão com uma lista de países importantes com suas capitais: Reino Unido, Edimburgo; França, Lille; Espanha, Barcelona; Itália, Roma. Essa pessoa acredita no

125


que está escrito no cartão e passa a acreditar que essas cidades são mesmo as capitais de seus respectivos países. Ela só está certa em um caso, o de Roma. Apesar de acreditar que Roma é a capital da Itália e de estar certa, será verdade que ela sabe que isso é verdade? Sua crença está baseada em uma fonte pouco confiável para contar como conhecimento. Ela apenas tem sorte de que, nesse caso, sua fonte está estranhamente certa. Isso não faz com que sua crença seja verdadeiro conhecimento mais que se ela tivesse chutado certo o nome da capital italiana. E por isso que os filósofos insistem em que as crenças verdadeiras devem ser justificadas de maneira apropriada para contar como conhecimento. Mas que tipo de justificativa serve? No caso de Paul, sua pretensão ao conhecimento tem base em um fato simples: a confiança da fonte de suas crenças. Quando se sente convencido de saber o nome do cavalo vencedor, ele sempre está certo. O problema é que Paul não tem idéia de onde vem sua convicção. A prova de que ela fornece um caminho confiável para o conhecimento vem exclusivamente dos resultados até hoje, mas isso é consistente com o fato de o mecanismo ser muito pouco confiável. Por exemplo, talvez um sujeito que arme resultados de corridas consiga de alguma forma implantar o nome dos cavalos vencedores na mente de Paul, Seu objetivo, entretanto, é um dia implantar o nome errado, e ver Paul perder todos os seus ganhos. Se isso explica as convicções de Paul, então não se pode dizer que ele conhece os vencedores das corridas. Da mesma maneira que a falta de confiabilidade do cartão com a lista de capitais não pode ser a fonte de conhecimento, mesmo se algumas estão corretas, da mesma maneira a falta de confiabilidade do cara que arma corridas significa que seus implantes de informação não podem ser a fonte do conhecimento, apesar de, até agora, sempre estarem certos. Mas e se a fonte das crenças de Paul for algo verdadeiramente misterioso? E se fosse algo diferente de um cara que arma corridas, que sabemos não ser confiável, mas algo que simplesmente não podemos explicar? Então nosso único juiz do que é confiável ou não é nossa experiência anterior. Isso deixaria aberta a possibilidade de erro futuro. Mas será que há alguma rota para o conhecimento tão segura que nunca poderemos duvidar de sua confiabilidade futura?

126


Ver também 3. A indiana e o gelo 9. Big Brother radical 63. Você sabia? 76. Cérebro eletrônico

127


41. Tudo azul Imagine viver toda a sua vida em um complexo de apartamentos, lojas e escritórios sem acesso ao exterior. Isso resume bem a vida dos habitantes das gigantescas estações espaciais Muddy e Waters. Os criadores das estações introduziram algumas características interessantes no projeto para testar nossa dependência da experiência para o aprendizado. Em Muddy, eles se asseguraram de que não haveria coisa alguma da cor azul celeste em toda a nave. Em Waters, não havia coisa alguma em qualquer tom de azul. Mesmo seus habitantes foram escolhidos para garantir que nenhum deles tivesse o gene recessivo responsável por olhos azuis. Para evitar que qualquer coisa azul fosse vista (como as veias), a luz na estação era tal que nunca refletia o azul, então as veias, na verdade, pareciam negras. Mais tarde iriam perguntar aos habitantes de Waters se eles poderiam imaginar uma nova cor, e então se conseguiriam imaginar que cor deveria ser acrescentada ao amarelo para fazer o verde. Depois mostrariam a eles uma amostra e perguntariam se era aquilo o que eles tinham imaginado. Os resultados seriam intrigantes... Fonte: Livro dois de An Essay Concerníng Human Understanding, de David Hume (1748)

Qual

a importância da experiência no aprendizado? A questão percorre toda a história das idéias. Na Grécia antiga, Platão pensava que tudo o que aprendemos, em certo sentido, já sabíamos, ao passo que hoje Noam Chomsky lidera aqueles que acreditam que a gramática necessária para o aprendizado é inata, não aprendida. Por outro lado, no século XVII, John Locke disse que no nascimento a mente

128


era uma “lousa vazia”, uma idéia desenvolvida pelo behaviorista B.F. Skinner 300 anos mais tarde, É óbvio que podemos ter idéias além de nossa experiência, pelo menos em um sentido. Leonardo da Vinci não poderia ter imaginado o helicóptero se sua mente concebesse apenas o que ele já havia experimentado. Mas em casos como esse, o novo é a combinação do que já é sabido. A novidade surge na maneira como os elementos são reunidos. E muito menos óbvio como poderíamos imaginar algo totalmente além de nossa experiência. Por exemplo, nós temos cinco sentidos. Não seria possível que criaturas em outros planetas tivessem sentidos diferentes, alguns que não conseguimos sequer começar a imaginar? E será que outros seres não vêem cores que simplesmente não estão em nosso espectro visual, cores que não conseguimos visualizar na mente, por mais que tentemos? As experiências em Muddy e Waters talvez possam lançar alguma luz sobre essas questões. A maioria concordaria com o filósofo escocês David Hume, que aqueles em Muddy poderiam imaginar o tom de azul que faltava. Ele achava que isso era uma exceção à regra que todo conhecimento depende da experiência, apesar de ser possível afirmar que esse é apenas mais um exemplo de como podemos misturar experiências para ter novas idéias, da mesma maneira que monstros imaginários são combinações fictícias de feras de verdade, Mas parece menos provável que as pessoas em Waters possam imaginar o azul se jamais viram qualquer tonalidade dessa cor. Lembre-se de como, quando criança, pareceu tão surpreendente que o verde fosse uma combinação de amarelo e azul. Parece implausível supor que poderíamos simplesmente imaginar a cor que precisa ser acrescida ao amarelo para fazer o verde. Se você tivesse de apostar no resultado do teste, provavelmente diria que ele iria confirmar o papel central da experiência no aprendizado. Mesmo se as pessoas nascidas em Waters pudessem imaginar o azul, isso ainda deixa uma pergunta sem resposta. Eles podem fazer isso por que, enquanto humanos, nascem com algum tipo de sensibilidade inata ao azul, ou eles poderiam imaginar qualquer cor? Já que só podemos imaginar cores dentro do espectro visual, a resposta ante-

129


rior sem dúvida estaria correta. Isso pareceria indicar que nossa natureza humana impõe tantos limites no que podemos imaginar e saber quanto a experiência. Ver também 13.Tludo em preto, branco e vermelho 59. Está nos olhos 73. Ser um morcego 90. Uma coisa que não sabemos o que é

130


42. Pegue a grana e corra – Agora, Marco, o Magnífico, vai demonstrar seus poderes extraordinários de premonição! O senhor! Qual é o seu nome? – Frank – respondeu Frank para o apresentador do parque de diversões. – Frank, eu conheço o seu futuro! Conheço todos os futuros, até o das ações e das bolsas! É por isso que tenho dinheiro para dar a você nesta demonstração de meus poderes! Veja, aqui temos duas caixas! Uma você pode ver que está aberta. Ela contém $1.000. A outra está fechada, Pode conter $1 milhão ou nada! Você pode escolher uma caixa, ou as duas. Mas cuidado! Eu sei o que você vai escolher, Se pegar só a caixa fechada, ela terá $1 milhão. Se pegar as duas, ela estará vazia. E se eu estiver errado, eu dou $1 milhão, esse dinheiro que está aqui diante de vocês, a um membro qualquer da platéia! Todos ficaram boquiabertos quando Marco abriu uma mala cheia de notas de $50. – Senhoras e senhores. Eu já fiz este milagre cem vezes e nunca me enganei, como testemunharam observadores independentes. E se vocês observarem a caixa fechada, que agora está a 3 m de mim, verão que nada posso fazer para alterar seu conteúdo. Então, Frank, o que vai escolher? Fonte: O paradoxo de Newcomb, criado por William Newcomb e popularizado em “Newcombs Problem and Two Principies of Choice”, de Robert Nozick, em Essays in Honour of Carl G. Hempel, organizado por Nicholas Rescher (Humanities Press, 1970)

O que Frank deve escolher? Vamos imaginar que Frank tem mais

que a palavra de Marco de que ele sempre acerta suas previsões. Talvez a razão para Frank estar na platéia, em primeiro lugar, seja porque ele já ouviu falar do histórico de Marco de fontes seguras, incluindo os observadores independentes que Marco mencionou. Nesse

131


caso, parece claro que ele deveria escolher apenas a caixa fechada. Assim ele vai ganhar $1 milhão em vez de apenas $1.000, Mas espere aí. Quando Frank vai pegar a caixa fechada, um pensamento passa por sua cabeça. A caixa tem $1 milhão ou não tem, Nada que ele fizer pode mudar o fato. Então se ela contém o dinheiro, ele não vai desaparecer se ele também pegar a caixa aberta, Da mesma forma, se ela estiver vazia, $1 milhão não vão simplesmente aparecer ali por mágica se ele deixar para trás a caixa aberta. Sua escolha não pode mudar o que está na caixa fechada. Então se ele pegar ou não a caixa vazia, a quantia dentro da caixa fechada permanecerá a mesma. Portanto, ele pode muito bem pegar as duas, já que ele não pode ficar com menos dinheiro como resultado. Temos portanto um paradoxo, batizado em homenagem ao físico teórico William Newcomb, que o concebeu pela primeira vez. Duas linhas de raciocínio, ambas aparentemente impecáveis, levam a conclusões contraditórias. Uma conclui que ele deve pegar apenas a caixa fechada; a outra que ele pode muito bem pegar as duas. Logo, um dos dois argumentos é falho, ou há algum tipo de incoerência ou contradição no próprio problema que faz com que seja insolúvel. Qual poderia ser essa contradição? O problema só surge porque supomos que Marco tem a habilidade de prever o futuro com 100% de certeza. O fato de o paradoxo surgir a partir dessa suposição mostra que ele deve ser falso? Será que jamais é possível prever o futuro com tanta precisão quando o livre arbítrio e a liberdade de escolha humanos estão envolvidos? Isso seria um pensamento reconfortante, mas não necessariamente sábio. Pois se Marco pode prever o futuro, também pode prever como os humanos vão raciocinar. Talvez nosso problema é que não incluímos isso em nossa análise. Se Marco deixa a caixa vazia ou não, isso depende de sua previsão do raciocínio da pessoa que escolherá as caixas. Se previr que ela vai achar que não tem nada a perder se pegar as duas, deixa a caixa vazia. Se previr que ela vai achar melhor escolher apenas a caixa fechada, ele põe $1 milhão dentro dela. Em outras palavras, se é possível prever o futuro, o livre-arbítrio humano não pode ser capaz de mudá-lo, porque a maneira como fazemos nossas escolhas será parte do que é previsto. Podemos ser livres, mas também

132


pode haver apenas um único futuro diante de nós, um que, a princípio, pode ser conhecido com antecedência, Ver também 6. A roda da fortuna 16. Tartarugas corredoras 25. Buridan é um asno 70. A visita do fiscal

133


43. Choque futuro – Drew! Não vejo você desde os tempos de escola, há uns vinte anos! Meu deus, Drew! O que você vai fazer com essa arma? – Eu vim matar você – disse Drew. – Como me pediu para fazer – De que diabos você está falando? – Você não lembra? Você me disse, muitas vezes: "Se um dia eu votar em um republicano, pode me dar um tiro." Bem, eu Ii que você, agora, é um senador republicano. Então, percebe, você precisa morrer – Drew, você está maluco! Isso foi há vinte anos! Eu era jovem, era idealista! Você não pode me matar por causa disso! – Não foi nenhuma observação leviana e ocasional, senador Na verdade, eu tenho aqui um pedaço de papel, com sua assinatura e de testemunhas, me instruindo a fazer isso. E antes que me diga para não levar isso a sério, deixe-me Iembrá-lo de que você, recentemente, votou pela aprovação de uma lei a favor de documentos de vontade antecipada. Na verdade, você mesmo escreveu um. Agora me diga: se você acha que As pessoas no futuro devem atender ao seu desejo de matar você se ficar demente ou cair em um estado vegetativo permanente, por que eu não devo atender ao seu desejo passado de ser morto caso se tornasse um republicano? – Eu tenho uma resposta para isso! – gritou o senador, que suava em bicas. Drew engatilhou sua pistola e a apontou. – É melhor ser rápido.

O senador poderia dar uma boa resposta para a pergunta de Drew.

Mas antes de chegar lá, vamos fazer a pergunta mais fundamental de o que nos dá o direito de tomar decisões comprometedoras em nome de nossos eus futuros. A resposta óbvia é que já que podemos, é

134


claro, tomar decisões por nós mesmos, não há razão para que elas não incluam a nós mesmos no futuro. Na verdade, tomamos decisões como essa o tempo todo, quando assumimos uma hipoteca de 25 anos, planos de pensão, uma união até que a morte nos separe, ou mesmo apenas um contrato de trabalho de dois anos. Mas ao lado dessa obrigação de cumprir nossas promessas, sem dúvida deve haver um direito concomitante de mudar de idéia com forme as circunstâncias e nossas crenças mudem. Muitas pessoas, por exemplo, dizem coisas que começam com “Pode me matar se um dia eu...”, sobretudo na juventude. E apesar de, normalmente, ser apenas uma figura de linguagem, isso costuma ser dito com uma enorme sinceridade, e normalmente por pessoas que estão na maioridade e, portanto, são consideradas adultos capazes de tomar decisões sobre seus próprios futuros. Entretanto, prender as pessoas a essas promessas seria ridículo. Então por que, depois de vinte anos, é ridículo punir, ou mesmo matar, uma pessoa que quebrou a promessa de jamais votar nos republicanos, mas perfeitamente razoável esperar que eles tentem manter seus votos matrimoniais? Há diferenças significativas. Um voto de casamento, como uma hipoteca, envolve responsabilidade e compromisso com uma segunda pessoa. Se quebrarmos essa promessa, outros vão sofrer. Se mudarmos de idéia em relação a assuntos políticos ou religiosos, entretanto, em geral não rompemos qualquer acordo feito com outras pessoas. Entretanto, o fato de acharmos razoável mudar de idéia não deve nos fazer ver esses outros compromissos de longo prazo como absolutos. Pois a verdade é que mudamos. Em um sentido muito real, não somos as mesmas pessoas que éramos há muitos anos no passado. Então quando fazemos promessas em nome de nossos eus futuros, de certa forma estamos fazendo promessas por alguém que não somos agora. E isso significa que nossas promessas não devem ser vistas como um compromisso moral. Como isso afeta a questão da vontade antecipada? A diferença-chave, aqui, é que esses documentos existem para a eventualidade de que no futuro o eu não seja competente para fazer uma escolha. Nessa situação, a pessoa mais bem qualificada para fazer isso pode ser o eu

135


passado mais que um outro atual. Essa é a resposta que o senador devia dar. Se ela é boa o suficiente para fazer Drew recolocar a trava de segurança na arma, isso é outra história. Ver também 27. Obrigação cumprida 44. Até que a morte nos separe 88. Total falta de memória 97. Sorte moral

136


44. Até que a morte nos separe Harry e Sophie queriam levar a sério as palavras que o padre iria enunciar quando eles trocassem de alianças: “Agora, essas duas vidas estão unidas em um círculo indivisível.” Isso significava botar seu interesse coletivo em primeiro lugar, e seus interesses individuais em segundo. Se conseguissem fazer isso, o casamento seria melhor para os dois. Mas Harry tinha visto seus pais se divorciarem e amigos e conhecidos muito machucados por traições e falsidade para aceitar isso incondicionalmente. A parte calculista de seu cérebro raciocinava que, se ele se colocasse em segundo, mas Sophie se colocasse em primeiro, Sophie iria conseguir muito daquele casamento, mas ele não. Em outras palavras, ele corria o risco de ser feito de otário se por romantismo deixasse de defender seus próprios interesses. Sophie teve pensamentos parecidos. Eles chegaram mesmo a discutir o problema e concordaram que na verdade não seriam egoístas no casamento. Mas nenhum deles podia ter certeza de que o outro manteria sua parte no acordo, por isso a melhor atitude a tomar para os dois seria, em segredo, cuidar cada um de si mesmo. Isso significava, é inevitável, que o casamento não seria tão bom quanto poderia ter sido. Mas, sem dúvida, era a única atitude racional a tomar, ou não?

Algo não soa bem aí, Duas pessoas estão tentando decidir com a

razão o que vai de encontro a seus interesses. Se os dois agirem de determinada maneira, o melhor resultado para ambos está assegurado. Mas se um agir de maneira diferente, ele garante toda a vantagem, e o outro fica com a pior parte. Portanto, para evitar que isso aconteça, nenhum faz o que é melhor se ambos o fizerem, e assim ambos acabam com um resultado pior do que poderia ter sido. Essa é uma forma de problema conhecida como o “dilema dos

137


Prisioneiros”, um exemplo muito conhecido, no qual dois prisioneiros devem ou não confessar. Dilemas dos prisioneiros podem ocorrer quando a cooperação é necessária para alcançar o melhor resultado, mas nenhuma das partes pode garantir que o outro vai cumprir sua parte. Portanto, o exemplo típico envolve prisioneiros mantidos em celas separadas, impossibilitados de se comunicar. Mas o mesmo problema pode surgir mesmo para pessoas que compartilham a mesma cama. A verdade é que as pessoas traem em segredo a confiança de seus parceiros, normalmente sem serem descobertas por anos. O dilema revela as limitações da busca racional do interesse próprio. Se todos decidirmos individualmente fazer o melhor para cada um de nós, podemos acabar bem pior do que se tivéssemos cooperado. Mas para cooperar com eficiência, mesmo que nosso motivo seja o interesse pessoal, precisamos confiar um no outro. E a confiança não está fundamentada em argumentos racionais. E por isso que o dilema de Harry e Sophie é tão lancinante. Sua capacidade de confiar foi desgastada por sua experiência de traição e divórcio. Entretanto, sem essa confiança, provavelmente seu próprio relacionamento será insatisfatório, ou vai terminar. Mas quem pode culpá-los por seu ceticismo? Não é perfeitamente racional? Afinal, está fundamentado apenas em uma avaliação justa da maneira com que as pessoas realmente se comportam nos casamentos modernos. Se há uma moral mais ampla para essa história, talvez seja que a confiança, apesar de envolver certa dose de risco não racional, é necessária para obter o máximo da vida. É verdade que, se confiamos nos outros, nos expomos à exploração. Mas se não o fazemos, nos fechamos para as possibilidades do que é melhor na vida. A estratégia racional e segura de Harry e Sophie os protege do pior que seu casamento pode trazer, mas também os afasta do melhor. Ver também 7. Quando não há vencedores 14. Erro bancário a seu favor 60. Faça o que eu digo, não faça o que eu faço 82. Na aba

138


45. O jardineiro invisível Stanley e Livingstone estavam há duas semanas observando aquela bela clareira, da segurança de seu esconderijo temporário. – Não vimos uma pessoa sequer – disse Stanley. – E a clareira não se deteriorou nem um pouco, Agora você vai ter de admitir que estava errado: nenhum jardineiro cuida deste lugar. – Meu caro Stanley – respondeu Livingstone. – Lembre-se de que eu admiti que poderia ser um jardineiro invisível. – Mas esse jardineiro não fez o menor barulho, nem mexeu em uma única folha. Por isso insisto em que não há jardineiro. – Meu jardineiro invisível – continuou Livingstone – também é silencioso e intangível. Stanley estava desesperado. – Droga! Qual a diferença entre um jardineiro silencioso, invisível e intangível e nenhum jardineiro? – Fácil – respondeu o sereno Livingstone. – Um cuida de jardins. O outro, não. – Dr. Livingstone, eu presumo – disse Stanley com um suspiro – então que não fará objeção se eu o despachar imediatamente para um paraíso silencioso, sem cheiro, invisível e intangível. – Pelo aspecto assassino dos olhos de Stanley, aquilo não era apenas uma brincadeira. Fonte: “Theology and Falsification", de Anthony Flew, republicado em New Essays in Philosophical Theology, organizado por A. Flew e A. Maclntyre (SCM Press, 1955)

A força desta parábola depende de o leitor, como fez Stanley, partir o

pressuposto de que Livingstone é um tolo irracional. Ele insiste em uma opinião para a qual não há provas. O que é pior, para manter sua crença no jardineiro, ele tornou a idéia desse ser misterioso tão frágil que ela se dissolveu no ar. O que restou do jardineiro após

139


remover tudo o que havia de visível e tangível nele? Claro, Stanley não pode provar que esse fantasma de dedo verde não existe, mas tem razão em perguntar para que serve continuar a acreditar em algo tão nebuloso. Esse, afirma-se, é ocaso de Deus. Da mesma forma que Livingstone vê a mão do jardineiro na beleza do local, muitas pessoas religiosas vêem a mão de Deus na beleza da natureza. Talvez, à primeira vista, seja razoável supor a existência de um criador bondoso e todo-poderoso deste mundo maravilhoso e complexo. Mas, como Stanley e Livingstone, temos mais do que primeiras impressões para levar em conta. E nossas observações contínuas parecem desmantelar, uma a uma, as características que dão vida a esse Deus. Primeiro, o mundo funciona de acordo com leis físicas. Deus não precisa ligar a chuva ou erguer o Sol todos os dias. Mas, diz o crente livingstoniano, foi Deus quem acendeu o pavio azul e botou o Universo em movimento. Entretanto, logo percebemos que a natureza está longe de ser gentil e bondosa. Há muito sofrimento e mal manifesto no mundo. Onde está agora o Deus bom? Ah, insiste o crente, Deus fez as coisas o melhor possível, mas o pecado dos homens pode estragar as coisas. Mas mesmo os inocentes sofrem e, quando pedem ajuda, nenhum Deus responde. Ah, vem a resposta – à medida que seu Deus esconde-se cada vez mais nas sombras –, o bem que resulta desse sofrimento não vem nesta vida, mas na vida que virá. E o que nos resta? Um Deus que não deixa traços, não emite som ou interfere nem um pouquinho no progresso do Universo. Afirma-se haver alguns milagres aqui e ali, mas mesmo a maioria dos crentes religiosos não acredita seriamente neles. Além disso, Deus está ausente. Não vemos nem sequer sua unha na natureza, o que dirá de sua mão. Qual, então, é a diferença entre esse Deus e nenhum Deus? Não é igualmente tolo insistir em sua existência quanto insistir que um jardineiro cuida da clareira descoberta por Stanley e Livingstone? Se Deus é mais que uma palavra ou esperança, precisamos ou não de um sinal de que ele está ativo neste mundo?

140


Ver tambĂŠm 3. A indiana e o gelo 24. O cĂ­rculo quadrado 61. Lua de mozarela 78. Apostar em Deus

141


46. O cérebro ameba A imprensa o apelidara de “homem minhoca”, mas seus amigos o chamavam de Derek. Cientistas haviam manipulado seu DNA para imitar uma das características mais maravilhosas da minhoca comum de jardim: a capacidade de regenerar tecido perdido. E tinha funcionado. Quando cortaram sua mão para testar, em um mês outra cresceu no lugar. De repente, tudo deu errado. Seu corpo começou a se deteriorar lentamente. Para salvar sua vida, teriam de transplantar seu cérebro para um novo corpo. Entretanto, um grande erro durante a operação cortou seu cérebro ao meio. Felizmente, as duas metades se regeneraram completamente e as duas foram transplantadas com sucesso para novos corpos. O único problema era que os dois homens que agora tinham um dos cérebros acreditavam ser Derek. E mais: os dois tinham as memórias, habilidades mentais e personalidade de Derek. Isso criou um problema para o namorado de Derek, que não conseguia diferenciá-los. Isso também levou Derek a se envolver em uma batalha jurídica pela posse dos bens de Derek. Mas qual era o Derek verdadeiro? Os dois não podiam ser ele, podiam? Fonte: Seção 89 de Reasons and Persons, de Derek Parfit (Oxford University Press, 1984)

Como

um bom detetive, antes de começar a considerar o que aconteceu, é preciso esclarecer os fatos. Se antes tínhamos um Derek, agora temos dois. Vamos chamá-los de Derek-direito e Derek-esquerdo, em homenagem aos hemisférios do cérebro original a partir do qual os dois cresceram. Mas qual deles, se é que algum, é Derek? Os dois não podem ser Derek, pois desde que foram separados, passaram a ser duas pessoas, não uma. Se Derek-direito morresse, por

142


exemplo, e Derek-esquerdo continuasse vivo, Derek estaria vivo ou morto? Como uma pessoa não pode ao mesmo tempo estar viva e morta, Derek não pode ser os dois, Derek-direito e Derek-esquerdo. Talvez nenhum deles seja Derek. Mas essa parece uma solução estranha. Se, por exemplo, o hemisfério esquerdo tivesse sido destruído na operação e só o direito tivesse se regenerado completamente, sem dúvida diríamos que Derek-direito era Derek. Entretanto, se o hemisfério esquerdo também tivesse se regenerado, de repente Derek-direito não é Derek, apesar de ser o mesmo nas duas situações. Como uma diferença em algo externo a Derek-direito pode impedir que ele seja Derek? A única possibilidade que resta é que um dos dois, e apenas um deles, seja Derek. Mas como eles têm um direito igual à identidade, como poderíamos escolher um em vez do outro? Uma atribuição de identidade não pode ser arbitrária. Por isso, todas as três possibilidades – os dois, nenhum ou apenas um deles – parecem erradas. Mas uma deve estar certa: não há outras opções. Se nenhuma das respostas possíveis à pergunta é apropriada, talvez estejamos apenas fazendo a pergunta errada. É como exigir uma resposta para “Quando você parou de bater na sua mulher?”, se você nunca fez isso. No caso do homem minhoca, o problema é que estamos fazendo uma pergunta sobre identidade no decurso do tempo – uma relação biunívoca – quando a coisa em questão tem relação entre vários conjuntos no decurso do tempo. A lógica da identidade simplesmente não se encaixa. Em vez disso, devíamos falar sobre sucessão ou continuação. Por isso, Derek-direito e Derek-esquerdo, os dois são continuadores de Derek, mas não devemos perguntar qual, se é que algum, é Derek. Então talvez a pergunta que deveríamos fazer é se Derek sobreviveu à sua provação. Parece que sim. Se isso é verdade, parece que Derek alcançou a sobrevivência pessoal sem identidade pessoal. Claro, indivíduos comuns não se dividem como Derek. Contudo, sua história ainda pode ser instrutiva. Ela sugere que o que importa para nossa sobrevivência não é a preservação da identidade com o passar do tempo, mas que existe um tipo certo de continuidade entre nós e

143


nossos eus futuros. Então isso se transforma na questão do que queremos ver continuar. Nossos corpos? Nossos cérebros? Nossas vidas? Nossas almas? Ver também 2. Teletransporte 11. O iate Teseu 30. É disso que são feitas as memórias 38. Eu sou um cérebro

144


47. Coelho! O professor Lapin e seu assistente estavam muito empolgados com a perspectiva de criar um dicionário de uma língua até então desconhecida. Só muito recentemente haviam descoberto a tribo perdida dos leporidae, e hoje iam começar a registrar os significados das palavras daquela língua. A primeira palavra a ser definida era “gavagai”. Eles ouviram essa palavra ser usada sempre que um coelho estava presente. Por isso, Lapin estava prestes a escrever: "gavagai coelho". Mas então seu assistente o interrompeu. Pelo que eles sabiam “gavagai” não podia significar outra coisa, como “parte inseparável de um coelho”, ou "Olhe, um coelho!'? Talvez os leporidae achassem que os animais viviam em quatro dimensões no tempo e no espaço, e “gavagai” se referisse apenas à parte do coelho presente no momento da observação? Ou talvez "gavagai' fossem apenas os coelhos observáveis, e os invisíveis tivessem outro nome? As possibilidades pareciam extravagantes, mas Lapin tinha de reconhecer que todas eram consistentes com o que observara até o momento. Mas como eles podiam saber qual era a correta? Podiam fazer mais observações, mas para descartar todas as possibilidades, precisariam saber mais ou menos tudo sobre a tribo, como viviam e os outros mundos que usavam. Mas então, como poderiam sequer começar seu dicionário? Fonte: Word and Object, de W. V. O. Quine (MIT Press, 1960)

Qualquer pessoa que fale mais de uma língua conhece muito bem

algumas palavras que não podem ser traduzidas de uma para outra. Os espanhóis, por exemplo, falam da “marcha” de uma cidade ou de uma festa. Isso se parece, mas não é idêntico, à palavra irlandesa “craic”, que também é difícil de traduzir para o inglês. O equivalente

145


mais próximo poderia ser “buzf”, ou “good time feel”, mas para saber o que “marcha” ou “craic” significam, você precisa entrar na pele da língua e da cultura às quais pertencem. Também não existe uma tradução do verbo «to be» para o português. Há duas, “ser” e “estar”, e você usa uma das duas de acordo com as diferenças de significado de “to be”, que o léxico inglês não reflete. E não basta saber que, em espanhol, “esposas” significa o mesmo que em português para ter o total domínio da palavra. Você também precisa saber que significa “algemas”, e ter alguma consciência do machismo espanhol tradicional. O que a história do “gavagai” sugere é que todas as palavras são como «craic», “marcha”, “to be” e “esposas” na medida em que seus significados estão ligados intimamente às práticas de uma cultura e às outras palavras de uma língua. Sempre que traduzimos uma palavra em outro idioma, perdemos os contextos cruciais. Na maior parte das vezes, não há problemas, já que os significados são parecidos o suficiente para que sejamos capazes de usar apropriadamente a palavra na comunidade de pessoas que a utiliza. Portanto, se Lapin acha que “gavagai” é “coelho”, provavelmente ele vai estar razoavelmente certo, mesmo 4ue haja diferenças sutis de significado entre as duas. Mas para compreender o verdadeiro significado de “gavagai”, ele deve se concentrar na linguagem e na comunidade na qual ela está inserida, não em seus conceitos e práticas ingleses. Por que isso importa? Somos capazes de pensar que as palavras funcionam como uma espécie de rótulo para idéias ou objetos, que permite que pessoas que falem línguas diferentes falem sobre as mesmas coisas e tenham as mesmas idéias, Eles apenas usam palavras diferentes para fazer isso. Nesse modelo, as palavras têm uma relação biunívoca com seus significados ou com as coisas às quais se referem. Mas se levarmos a sério a história do “gavagai”, precisamos mudar radicalmente esse quadro. As palavras não estão em uma relação biunívoca com coisas e idéias. Na verdade elas estão interconectadas umas com as outras e com as práticas das pessoas que as falam. O significado é "holístico", pois você nunca pode compreender uma palavra isolada.

146


Se aceitarmos isso, teremos depois todo o tipo de conseqüência. Por exemplo, o que significa para qualquer afirmação ser verdadeira? Costumamos pensar que “o coelho sentou no capacho” é verdade se há um coelho sentado em um capacho. A verdade refere-se à correspondência entre uma frase e um estado de coisas. Mas essa relação simples não é possível se o significado de uma frase depende da linguagem e da cultura na qual está inserida. Em vez de simples correspondência entre frase e fatos, há uma teia complexa de relações entre fatos, frase, a língua mais ampla e a cultura. Isso significa, então, que a verdade é relativa à língua e à cultura? Essa seria uma conclusão apressada, mas do ponto de vista inicial do holismo, podia muito bem ser possível chegar a ela aos poucos. Ver também 19. Fora da bolha de vidro 23. O besouro na caixa 74. Água, água por toda parte 85. O homem que não existe

147


48. O gênio do mal Todos os críticos concordaram. A fotografia era linda, as interpretações de primeira, os diálogos fortes, o ritmo perfeito e a trilha sonora, por si só maravilhosa, era usada com extrema habilidade a serviço do filme. Mas também concordaram que De puta madre era moralmente repulsivo. A visão de mundo que ele apresentava mostrava os hispânicos como racialmente superiores aos outros seres humanos, a crueldade com os velhos como algo necessário e as mulheres sem filhos podiam ser estupradas impunemente. Ali o consenso acabou. Para alguns, a depravação moral do filme arruinava o que, de outra forma, poderia ser uma grande obra de arte. Para outros, o meio e a mensagem deviam ser separados. O filme era, ao mesmo tempo, uma grande obra de arte cinematográfica e uma desgraça moral, Podemos admirá-lo pelas primeiras qualidades, e odiá-lo pelas últimas, O debate saiu dos círculos acadêmicos, A mensagem era tão repugnante que ele seria banido, a menos que pudessem mostrar que seus méritos artísticos justificavam sua dispensa da censura. O diretor alertou que a proibição seria uma catástrofe para a liberdade de expressão artística. Ele estava certo?

Essa controvérsia imaginária tem muitas contrapartidas na vida real.

Talvez uma das mais famosas seja o fato de muita gente ainda discordar com veemência dos méritos de Triunfo da vontade, de Leni Riefenstahl, um documentário sobre as manifestações nazistas de Nuremberg, e Olimpíadas (Olympia), um registro dos Jogos Olímpicos de Berlim* em 1936, que reforçam os mitos de superioridade ariana. Para alguns, Riefenstahl era uma cineasta brilhante que pôs seu talen* No original, equivocadamente, Jogos Olímpicos de Munique. (N. do T.) to a serviço do mal; para outros, os filmes são fracassos tanto artísticos quanto morais.

148


Oscar Wilde descreveu uma posição radical nesse debate geral quando escreveu: “Não há algo como um livro moral ou imoral, Livros são bem escritos, ou mal escritos.” Wilde alegava que a arte era independente da moralidade, portanto aplicar os padrões da ética à arte era simplesmente um erro. A maioria não iria tão longe. Entretanto, muitos afirmariam ser possível separar nossos julgamentos éticos dos estéticos, uma maneira diferente de dizer que podemos admirar algo do ponto de vista estético, mas não do ético. Mas concordar com isso não encerra o debate, Uma coisa é dizer que o ético e o estético podem ser separados, outra bem diferente é dizer que, portanto, podemos simplesmente pôr de lado nossos julgamentos morais. Seria perfeitamente consistente afirmar que De puta madre é um triunfo artístico e uma desgraça moral, e que as exigências da moralidade ultrapassam as da arte. Nesse caso, podemos querer proibir um filme que ainda assim reconhecemos possuir grande mérito artístico. Do lado oposto a Wilde no espectro está a visão que o mérito artístico e o moral estão intimamente ligados. Keats escreveu que “beleza é verdade, verdade é beleza”. Se é assim, então qualquer obra de arte que apresente um retrato destorcido da realidade é um fracasso tanto estético quanto criativo. Uma obra de arte moralmente repulsiva, mas brilhante, poderia ser uma contradição de base, e aqueles que admiraram De puta madre estariam completamente equivocados. Quando pessoas aparentemente inteligentes discordam com tanta veemência sobre coisas fundamentais, é fácil entrar em desespero e buscar refúgio no relativismo de “aquilo que você achar melhor”. Mas essa opção, se escolhida nesse caso, simplesmente não vai funcionar. A pessoa que resiste a pedidos para a proibição de De puta madre não pode dizer que a opinião daqueles que discordam é tão boa quanto a sua, pois fazer isso exigiria admitir que o que ele pensa não ser razoável – proibir o filme – é, no fim das contas, razoável, Da mesma forma, a pessoa que aceita a legitimidade daqueles que se opõem à proibição reforça o caso pela censura.

149


Se existe mesmo verdade dos dois lados do muro, então talvez exista um meio-termo comum. Mas descobri-lo não é tarefa fácil. Ver também 12. Picasso na praia 37. A natureza é o artista 66. O falsário 86. Arte pela arte 49. A falha na soma das partes

150


49. A falha na soma das partes Bárbara e Wally entraram no táxi em frente à estação de Oxford. – Estamos com pressa – disse Bárbara. – Acabamos de visitar Londres e, esta tarde, vamos para Stratford-upon-Avon. Então o senhor poderia nos mostrar a universidade e depois nos trazer de volta à estação? O motorista do táxi sorriu por dentro, ligou o taxímetro e começou a esperar pelo dinheiro de uma bela corrida. Ele os levou para dar uma volta na cidade. Mostrou a eles os museus Ashmolean e Pitt Rivers, assim como os jardins botânicos e os museus de história natural e da história da ciência. O passeio incluiu não apenas a famosa biblioteca Bodleian, mas também as menos conhecidas Radcliffe, Sackler e Taylor. Ele mostrou ao casal os 39 prédios das faculdades e os sete aloja mentos particulares permanentes. Quando finalmente parou de volta na estação, o taxímetro marcava quase $150. – O senhor é um vigarista – protestou Wally. – O senhor nos mostrou as bibliotecas, os museus e vários prédios. Mas, droga, nós queríamos ver a universidade. – Mas a universidade são os prédios das faculdades, as bibliotecas e os museus! – respondeu o taxista indignado. – Você espera que a gente caia nessa? – disse Bárbara. – Só porque somos turistas norte-americanos, isso não quer dizer que somos burros! Fonte: Capitulo 1 de The Concept of Mind, de Gilbert Ryle (Hutchinson, 1949)

A reputação que os turistas norte-americanos têm na Inglaterra de

serem barulhentos, rudes e estúpidos é um tanto injusta. Pois, afinal, quantos britânicos gostariam de ser julgados com base no comportamento de seus compatriotas em férias na Costa del Sol?

151


Essa situação não tem a intenção de ser um ataque aos norteamericanos, mas um exemplo claro de uma forma de pensamento falacioso na qual mesmo as mentes mais espertas podem cair. Bárbara e Wally cometeram o que o filósofo de Oxford Gilbert Ryley chamou de um erro de categoria. Eles acharam que a Universidade de Oxford fosse algo parecido com as bibliotecas, as faculdades e os museus que a compõem: uma instituição abrigada em um prédio específico. Mas a universidade não é algo como isso. Não há um lugar ou prédio para o qual você pode apontar e dizer: “Aquela é a universidade.” É, como disse corretamente o motorista de táxi, a instituição à qual pertencem todos aqueles prédios e instalações em particular. Mas isso não significa que a universidade é uma presença fantasmagórica que une de maneira misteriosa todas as faculdades, bibliotecas e outras instalações. Achar isso seria cometer outro erro de categoria. Não é uma coisa material ou imaterial. Não devemos ser confundidos pela linguagem e supor que por ser um nome singular ela é um objeto singular. Ryle achava que o jeito mais comum de pensar sobre a mente cometia um erro de categoria parecido. Outra vez temos um nome singular – a mente – e por isso temos a tendência de achar que há algo singular que o substantivo identifique. Se acharmos isso, porém, vamos acabar em um de dois absurdos. Ou concluímos que a mente é o cérebro, o que é absurdo, porque cérebros têm massa e volume, mas os pensamentos não; ou concluímos que a mente deve ser uma entidade imaterial, um espírito na máquina biológica que é nosso corpo. Podemos evitar a necessidade de oferecer quaisquer dessas respostas implausíveis assim que reconhecermos que a mente não é um objeto singular. Dizer que algo tem uma mente é dizer que isso quer, deseja, compreende, pensa e por aí vai. Porque fazemos todas essas coisas, dizemos que temos mentes. Mas isso não exige que identifiquemos qualquer objeto como a mente. Isso não é mais misterioso que a afirmação que a universidade é o que tem faculdades, bibliotecas etc., apesar de não haver um objeto que seja a universidade. É uma solução hábil para um velho problema. Se eIa realmente soluciona ou não – ou talvez dissolva – o problema da mente, o com-

152


ceito de erro de categoria é uma defesa útil contra características confusas da linguagem e do mundo. Ver também 24. O círculo quadrado 31. Explicação que pouco explica 62. Penso, logo? 83. A regra de ouro

153


50. O suborno do bem O primeiro-ministro se achava “um Sujeito muito correto”. Ele realmente desprezava a corrupção e o descaso no governo e queria fazer uma administração mais limpa e honesta. Algo aconteceu, entretanto, que o deixou diante de um dilema. Em uma recepção oficial em Downing Street, um executivo conhecido por sua falta de escrúpulos, mas que não tinha contra ele qualquer condenação civil ou criminal, puxou o primeiro-ministro de lado. Com um sussurro conspiratório em seu ouvido, ele disse: – Muita gente não gosta de mim e não respeita a maneira com que toco meus negócios. Não estou nem aí para isso. O que me incomoda é que minha reputação significa que eu jamais serei homenageado por meu país. “Bem – continuou ele –, tenho certeza de que você e eu podemos fazer algo em relação a isso. Estou preparado para dar dez milhões de libras para ajudar a fornecer água potável para centenas de milhares de pessoas na África, se puder assegurar que eu serei nomeado cavaleiro na lista de fim de ano. Se isso não acontecer, eu gasto a grana.” Ele deu um tapinha nas costas do ministro e disse: – Pense bem. – E voltou a se misturar às pessoas na festa. O primeiroministro sabia que aquilo era uma espécie de suborno. Mas poderia mesmo ser errado vender uma das honrarias mais elevadas de seu país quando a recompensa seria obviamente para o bem?

Para aqueles que gostam de sua moralidade bem definida, há duas

maneiras diferentes de transformar esse dilema em algo que não exige muito pensamento. Tome uma visão utilitária estreita, em que o resultado moral desejável é o que beneficia o maior número de pessoas, e claro que o pri-

154


meiro-ministro deveria aceitar o suborno. A matemática moral é simples: se ele aceitar, centenas de pessoas recebem água limpa, um homem rico passará a ser chamado de “sir” e o único preço a pagar seria a irritação daqueles que iriam gritar ao ver um quase criminoso ganancioso ser homenageado pela rainha. Entretanto, se partir de princípios de integridade e dos procedimentos corretos, então é igualmente óbvio que o primeiro-ministro deve resistir, Negócios de Estado devem ser regidos por processos legítimos. Permitir que títulos e honrarias sejam comprados pelos ricos, mesmo se o dinheiro que eles pagarem for para uma boa causa, corrompe o princípio de que o Estado concede seus favores em termos de mérito e não da capacidade de pagar. Para extrair qualquer sentido da dificuldade desse dilema, você precisa sentir a força dos dois argumentos. O processo legítimo e o estado de direito sem dúvida são importantes para qualquer sociedade democrática e aberta, mas se quebrar as regras traz inúmeras conseqüências extremamente boas e mínimas conseqüências ruins, não seria tolo ou mesmo imoral nos mantermos rigidamente fiéis a elas? O cerne do problema é um fenômeno conhecido como autoindulgência moral. O primeiro-ministro deseja fazer um governo limpo, e isso significa manter-se livre de qualquer sinal de corrupção. Mas nesse caso, seu desejo de não sujar as próprias mãos pode exigir sacrificar o bem-estar de muitos africanos que, de outra forma, receberiam água limpa. A acusação é que o primeiro-ministro está mais interessado em se manter puro do que em fazer do mundo um lugar melhor. Seu aparente desejo de ser moral, portanto, é imoral. É uma indulgência pela qual outros vão pagar com doenças e com a necessidade de andar quilômetros para coletar água. Entretanto, o primeiro-ministro pode ter consciência disso e, ainda assim, ter muitas reservas. Pois se ele se permitir pensar dessa maneira, que outras corrupções vão se seguir? Por que não mentir para o eleitorado, se ao fazer isso ele pode conseguir seu apoio para uma guerra justa à qual, de outra maneira, eles iriam se opor? Por que não apoiar regimes opressores se, em longo prazo, isso vai ajudar a estabilidade regional e evitar que pessoas ainda piores cheguem ao poder? Se as conseqüências finais são tudo o que importa para os políticos,

155


como ele pode manter seu desejo de ser um líder limpo, honesto e incorruptível? Ou essa idéia toda é apenas um sonho ingênuo? Ver também 7. Quando não há vencedores 79. Laranja mecânica 83. A regra de ouro 91. Ninguém se machuca

156


51. Viver em um tanque Desde seu acidente, Brian vivia em um tanque. Seu corpo tinha sido esmigalhado, mas o trabalho rápido dos cirurgiões conseguira salvar seu cérebro. Aquele procedimento agora era efetuado sempre que possível, para que o cérebro pudesse ser posto de volta em um corpo assim que um doador apropriado fosse encontrado. Mas como menos cérebros que corpos paravam de funcionar completamente, a lista de espera por novos corpos tinha chegado a um tamanho intolerável. Entretanto, destruir os cérebros era considerado eticamente inaceitável. A solução veio de um notável supercomputador da China, o Mia Trikks. Por meio de eletrodos ligados ao cérebro, o computador podia alimentar o cérebro com estímulos que dariam a ilusão de viver em um corpo e habitar o mundo real. No caso de Brian, isso significou que ele acordou um dia em uma cama de hospital, onde soube que sofrera um acidente e passara por um transplante de corpo bem-sucedido. A partir daí, ele viveu uma vida normal. Entretanto, todo o tempo ele não passava de seu velho cérebro, mantido vivo em um tanque, conectado a um computador. Brian não tinha mais ou menos razões para acreditar estar vivendo no mundo real que eu ou você. Como ele – ou nós – poderíamos saber a diferença? Fontes: A primeira meditação de Meditações, de René Descartes (1641); capítulo 1 de Reason, Truth and History, de Hilary Putnam (Cambridge University Press, 1982); Matrix (The Matrix), dirigido por Larry e Andy Wachowski (1999); o argumento da simulação de Nick Bostrum, www.simulation-argument.com

A possibilidade de sermos cérebros mantidos em tanques forneceu a

premissa para o filme de ficção científica de sucesso Matrix. No filme, o herói, Neo, interpretado por Keanu Reeves, foi poupado da

157


indignidade de não ter um corpo, mas sua situação era basicamente a mesma de Brian. Ele acreditava estar vivendo no mundo real quando, na verdade, seu cérebro simplesmente era alimentado com informações para representar essa ilusão. Na verdade, estava em um tanque, imerso em uma espécie de líquido amniótico. A dúvida cética de se podemos ser vítimas de tal ilusão em escala total é muito mais antiga. A alegoria da caverna de Platão é um dos primeiros precursores, assim como as dúvidas sistemáticas de Descartes, que questionavam se poderíamos estar sonhando ou sendo iludidos por um demônio poderoso. Seguramente, o melhor da idéia do cérebro em um tanque é sua plausibilidade. Sem dúvida parece ser cientificamente possível, o que a deixa com mais credibilidade que um assustador demônio enganador. Um argumento recente chegou a sugerir que é muito provável que estejamos vivendo em um ambiente de realidade virtual, talvez não como cérebros em tanques, mas como inteligências criadas artificialmente. A idéia é que, com o tempo, nós ou outra civilização sem dúvida seremos capazes de criar inteligências artificiais e ambientes de realidade virtual onde elas vivam. Além disso, como esses mundos simulados não exigem a enorme quantidade de recursos naturais para funcionar de que os organismos biológicos precisam, praticamente não há limites para o número de tais ambientes que pode ser criado. Poderia haver o equivalente de um planeta Terra inteiro vivendo em um computador pessoal do futuro. Se tudo isso é possível, precisamos apenas fazer as contas para ver que é provável que estejamos em uma dessas simulações. Vamos dizer que, ao longo do curso de toda a história da humanidade, para cada ser humano que viveu haja outros nove que sejam criação de simulações de computador. Tanto as simulações quanto os humanos acreditariam ser organismos biológicos. Mas 90% deles estariam enganados. E como não temos como saber se somos simulações ou seres reais, há 90% de chance de estarmos errados em acreditarmos ser reais. Em outras palavras: é muito mais provável que estejamos vivendo em algo como Matrix que andando na verdadeira Terra. A maior parte acha esse argumento um tanto suspeito. Mas talvez

158


o problema seja que sua conclusão é surpreendente e assustadora demais. A pergunta que temos de fazer não é se ela soa inacreditável, mas se há algo errado com sua lógica. E identificar suas falhas é uma tarefa muito difícil, se não impossível. Ver também 1. O demônio maligno 28. O cenário do pesadelo 62. Penso, logo? 98. A máquina de experiência

159


52. Mais ou menos Carol resolveu usar uma grande fatia de sua riqueza substancial para melhorar a vida em um vilarejo pobre do sul da Tanzânia. Entretanto, como ela tinha reservas em relação a programas de controle de natalidade, a agência de desenvolvimento com a qual ela estava trabalhando tinha apresentado dois planos possíveis. O primeiro não envolveria qualquer programa de controle de natalidade. Com isso, provavelmente a população da aldeia cresceria de 100 para 150, e o índice de qualidade de vida, que avalia fatores subjetivos e objetivos, se elevaria modestamente de uma média de 2,4 para 3,2. O segundo plano incluía um programa opcional de controle de natalidade. Com ele a população permaneceria estável em 100, mas a média de qualidade de vida subiria para 4,0. Considerando que apenas as pessoas com uma qualidade de vida igual ou menor do que 1,0 consideravam que suas vidas não valiam a pena ser vividas, o primeiro plano resultaria em mais vidas de valor que o segundo, ao passo que este resultaria em menos vidas, mas estas seriam ainda mais realizadas. Que plano daria maior retorno ao dinheiro investido por Carol? Fonte: Parte Quatro de Reasons and Persons, de Derek Parfit (Oxford University Press, 1984)

O

dilema de Carol não é apenas escolher entre qualidade ou quantidade, pois, quando utilizamos coisas como índices de qualidade de vida, estamos quantificando a qualidade. Isso é tão complicado quanto parece. Qual o objetivo de Carol? Há três respostas possíveis. Uma é aumentar o número de vidas dignas. Outra é aumentar a quantidade

160


total de qualidade de vida. E a terceira é criar as condições para o maior número possível de vidas que valham a pena. Considere a primeira opção. Não há dúvida de que se ela aceitar o plano sem controle de natalidade, haverá mais vidas dignas como resultado, Mas esse é um resultado desejável? Se acharmos que sim, parece que somos levados a uma conclusão. Pois como todas as vidas além das mais infortunadas valem a pena ser vividas, isso significaria que sempre devemos trazer ao mundo o maior número de pessoas possível, enquanto a qualidade de suas vidas não cair abaixo de um nível mínimo. Mas seria mesmo uma coisa boa triplicar a população da Grã-Bretanha, por exemplo, e empobrecêla no processo, para trazer ao mundo mais vidas que valem a pena ser vividas? O segundo objetivo possível é aumentar a quantidade total de qualidade de vida. O primeiro plano também resulta nisso. Apesar de os números apenas poderem se aproximar da realidade, podemos ver grosso modo como 150 vidas, cada uma com uma qualidade de vida de 3,2 em média, somam 480 “pontos”, ao passo que 100 vidas, cada uma com 4,0 de média, somam apenas 400. Então há mais qualidade de vida no primeiro plano. Mas isso também pode levar a absurdos. Pois se usarmos isso como base de nosso julgamento, acharíamos melhor trazer 1.000 pessoas ao mundo com a perspectiva de uma qualidade de míseros 1,1 do que 100 com o nível máximo de 10. (O sistema de avaliação usado aqui é fictício.) Isso nos deixa com a terceira possibilidade: criar as condições para as formas mais dignas e satisfatórias de vida humana possíveis, e não se preocupar em tentar maximizar o número total de pessoas ou a quantidade total de qualidade de vida. E melhor ter menos pessoas realmente contentes do que muitas mais meramente satisfeitas. Apesar de isso soar como uma conclusão razoável, há implicações em outras áreas da vida e da ética que alguns acham mais preocupante. Pois se começarmos a dizer que não há razão para simplesmente se criar mais vida, mesmo se essas vidas valessem a pena ser vividas, vidas em potencial, na forma de fetos em estágio inicial de desenvolvimento, deixam de ter qualquer valor especial. O fato de que fetos podem se transformar em um ser humano com uma vida digna e que

161


merece ser vivida não é razão para achar que temos a obrigação moral de fazer tudo o que podemos para que isso aconteça. Claro, muitos estão absolutamente satisfeitos em aceitar essa conclusão. Os que não estão precisam se perguntar o motivo. Ver também 20. Condenado à ida 84. O princípio do prazer 87. Desigualdade justa 98. A máquina de experiência

162


53. Problema duplo – Doutor, o senhor precisa me ajudar. Estou com muitas dores e sei que vou morrer. Alivie meu sofrimento. Mate-me rapidamente e sem dor agora mesmo. Não posso mais agüentar isso. – Vamos deixar isso claro – respondeu o dr. Hyde. – Você está sugerindo que eu devia, digamos, dar a você uma dose muito grande de analgésicos – talvez uns 20 mg de sulfato de morfina. Uma dose tão alta que você logo perdesse a consciência e em pouco tempo morresse? – Isso! Por favor, tenha piedade – disse o paciente. – Infelizmente, isso é algo que não posso fazer – disse o dr. Hyde. – Entretanto, estou vendo seu sofrimento. E posso dar a você uma dose muito grande de analgésicos, digamos, uns 20 mg de sulfato de morfina, uma dose tão alta, entretanto, que você logo perderia consciência e em seguida morreria. O que acha disso? – É igual à sua primeira sugestão – respondeu o paciente intrigado. – Ah, mas tem toda a diferença do mundo – respondeu o médico. – Minha primeira sugestão era que eu matasse você, a segunda era que eu aliviasse sua dor. Não sou assassino, e a eutanásia é ilegal neste país. – Mas eu me livro de meu sofrimento das duas formas – protestou o paciente. – Verdade – disse o médico. – Mas uma delas evita o meu.

A

explicação do dr. Hyde da diferença entre suas sugestões extremarnente parecidas pode parecer mero sofisma, uma tentativa de ao paciente o que ele quer enquanto permanece dentro dos limites da lei. Pois em muitos países, como na Grã-Bretanha, é ilegal encurtar deliberadamente a vida de um paciente, mesmo se este estiver em grande sofrimento e o pedir. Entretanto, é permitido tomar medidas para reduzir a dor, mesmo que, com isso, possamos prever que a morte será

163


apressada. Então a chave está na intenção. A mesma ação – injetar 20 mg de sulfato de morfina – com as mesmas conseqüências pode ser legal se a intenção for reduzir a dor, ilegal se a intenção for matar. Isso não é apenas um subproduto da lei. Por trás da distinção há um princípio de moralidade muito antigo, com suas raízes na teologia católica. O princípio do efeito duplo afirma que pode ser moralmente aceitável fazer algo para alcançar um bem, mesmo que você preveja que isso também resultará em algo mal, enquanto a intenção seja a conseqüência boa, não a má. O segredo é que prever não é o mesmo que ter a intenção, e o que vale é a intenção. O princípio pode não ter boa receptividade porque parece uma maneira de justificar escolhas morais esquisitas. Mas se for levado a sério, obviamente não é uma frase de fuga sofistica. Por exemplo: temos a tendência de supor que, no caso do dr. Hyde, ele realmente quer atender ao desejo do paciente e está apenas à procura de uma maneira de driblar a lei. Mas precisamos levar em consideração a possibilidade de que o dr. Hyde não quer matar seu paciente. Ainda assim, ele vai, relutantemente, seguir um curso de ação em busca da causa nobre de reduzir o sofrimento, mesmo que ele possa ver que isso também irá levar à morte. A diferença entre prever e ter a intenção pode ser muito importante para a maneira como o dr. Hyde vê sua própria consciência. Entretanto, a dúvida continua a incomodar. Será que somos tão responsáveis pelo que antevemos como somos por nossas intenções? Se eu começo a dar tiros com meu rifle em uma floresta, consciente de que posso matar algum transeunte, não é desculpa dizer que, como não tinha a intenção de matar pessoas, escapo do problema moral se atirar em alguém por acaso. Para que se possa defender o princípio do efeito duplo, ele precisa explicar como também descarta tal comportamento extremamente negligente. Ver também 15. Heroísmo comum 29. Dependência de vida 71. Suporte de vida 89. Mate e deixe morrer

164


54. O eu ilusório Você pode tentar isto em casa. Pode tentar até no ônibus, não importa. Pode fazer com os olhos abertos ou fechados, em um quarto silencioso ou em uma rua barulhenta, Tudo o que precisa fazer é: identificar-se. Não estou dizendo se levantar e dizer o nome. Estou dizendo agarrese ao que é você, em vez de apenas as coisas que faz ou experimenta. Para fazer isso, concentre sua atenção em si mesmo. Tente localizar em sua própria consciência o “eu” que e você, a pessoa que sente frio ou calor, pensa seus pensamentos, escuta Os sons ao seu redor e por aí vai. Não estou pedindo que você localize seus sentimentos, sensações ou pensamentos, mas a pessoa, o eu que os tem. Devia ser fácil, Afinal, o que é mais certo neste mundo que o fato de você existir? Mesmo que tudo ao seu redor seja um sonho ou uma ilusão, você deve existir para ter o sonho e a alucinação. Então se voltar sua mente para o interior e tentar ter consciência apenas de si mesmo, não deve demorar muito para encontrar. Vai, tente uma vez. Teve sorte? Fonte: Livro I de A Treatise on Human Nature, de David Hume (1739.40)

Admita. Você não conseguiu. Procurou por aquilo que sempre supôs

que estava ali e não encontrou coisa alguma. O que isso significa? Que você não existe? Vamos esclarecer o que você teria encontrado, No momento em que tomasse consciência de algo, seria algo bem específico: um pensamento, um sentimento, uma sensação, um som, um cheiro. Mas em nenhum desses casos você estaria consciente de si mesmo como

165


tal. Você pode descrever todas as experiências que teve, mas não o eu que as teve. Mas, você pode protestar, como eu poderia não ter consciência de que era eu que tinha essas experiências? E verdade, por exemplo, que quando olhei para o livro à minha frente, estava consciente do livro, não de mim. Mas em outro sentido, estava consciente de que era eu vendo o livro. Simplesmente não é possível me desligar da experiência, e é por isso que não existe uma consciência especial do eu, só uma consciência de que eu tenho consciência. Entretanto, isso não quer dizer que o “eu” possa ser tirado da equação. Isso pode parecer convincente, mas não serve: o problema de que esse “eu” e um nada persiste. E como o ponto de vista do qual uma paisagem é pintada. Em um sentido, o ponto de vista não pode ser removido da pintura, pois é uma paisagem de uma perspectiva em particular, sem a qual a pintura não seria o que é. Mas esse ponto de vista em si não é revelado no quadro. Pelo que sabemos, o ponto de vista pode ser uma colina coberta de relva, o interior de um carro ou um escritório em um edifício comercial de concreto. O eu que tem as experiências pode ser visto exatamente da mesma maneira. E verdade que, se eu olho para o livro à minha frente, estou consciente não apenas de que há uma experiência visual, mas que é uma experiência de determinado ponto de vista. Mas a experiência nada revela sobre a natureza do ponto de vista. Portanto o «eu» ainda é um nada, um centro sem significado em torno do qual as experiências se agitam como borboletas. Sob essa visão, se perguntarmos o que é o eu, a resposta é que ele não passa da soma de todas as experiências unidas pela virtude de compartilhar esse ponto de vista. O eu não é uma coisa e sem dúvida não é reconhecível para si mesmo. Nós não temos consciência do que somos, só uma consciência do que experimentamos. Isso não significa que não existimos, mas significa que não temos uma essência de ser constante, um único eu que perdure ao longo do tempo, que costumamos supor com freqüência, de maneira equivocada, nos faz os indivíduos que somos.

166


Ver tamb茅m 56. O v贸rtice da perspectiva total 62. Penso, logo? 65. O poder do esp铆rito 88. Total falta de mem贸ria

167


55. Desenvolvimento sustentável

A família Green percebeu que seu sucesso estava cobrando um preço alto. A casa da fazenda onde moravam era ao mesmo tempo sua casa e seu ambiente de trabalho. Mas se o empreendimento estava dando um bom lucro, as vibrações causadas pelas máquinas pesadas usadas no local aos poucos estavam destruindo a estrutura da construção. Se eles continuassem naquele ritmo, em cinco anos teriam abalado o local de tal forma que seriam obrigados a se mudar por motivos de segurança. Mas seus lucros não eram suficientes para que eles procurassem outro local ou fizessem as reformas necessárias e os reforços estruturais necessários. O sr. e a sra. Green estavam determinados a preservar seu lar para os filhos. Então resolveram reduzir a produção e assim o alcance dos danos. Dez anos mais tarde, os Green morreram e seus filhos herdaram a propriedade da família. A casa, entretanto, estava caindo aos pedaços. Empreiteiros foram até lá, sacudiram a cabeça e disseram que a reforma completa custaria $1 milhão: O mais jovem dos Green, que por muitos anos foi o contador do negócio, fez uma expressão de tristeza e desespero e enfiou a cabeça entre as mãos. – Se tivéssemos mantido a produção em escala total sem nos preocupar com a casa, há cinco anos teríamos o dinheiro para fazer isso. Agora, depois de dez anos de produção deficitária, estamos quebrados. Seus pais tentaram proteger sua herança. Mas, na verdade, eles a tinham destruído. Fonte: The Skeptical Environmentalist, de Bjorn Lomborg (Cambridge University Press, 2001)

168


Essa

parábola podia ser vista apenas como uma lição sobre planejamento antecipado nos negócios. Porém, é mais interessante que isso, pois a história pode ser vista como espelho de um dilema sério de interesse muito mais amplo: como reagir hoje às ameaças ambientais que encaramos? A mudança do clima. Especialistas concordam que ela está acontecendo e que, provavelmente, é causada pelo homem. Mas não há medidas realistas que podemos tomar agora para detê-la completamente. O Protocolo de Kyoto, por exemplo, apenas vai atrasá-la em uns seis anos. Entretanto, o custo de sua implementação só pelos Estados Unidos seria equivalente ao dinheiro necessário para levar água potável para toda a população do mundo. Portanto, você tem de perguntar se vale à pena pagar o custo de Kyoto. A questão não é que, sem Kyoto, os Estados Unidos de fato iriam fornecer água potável para todos. A questão é, em vez disso, o paralelo com os Green. Será que poderíamos acabar diante de uma situação em que apenas estejamos atrasando o inevitável à custa do crescimento econômico, e assim privando gerações frituras dos fundos de que iriam precisar para solucionar os problemas que herdarão? Não pode ser melhor adiar o problema do aquecimento global se fazer isso apenas nos vai deixar menos equipados para enfrentá-lo quando ele começar a realmente nos prejudicar. Isso não quer dizer que não devemos fazer coisa alguma em relação ao aquecimento global. Simplesmente serve para mostrar que devemos ter certeza de que o que fazemos é eficaz e não vai sem querer piorar as coisas. Isso exige que nós levemos em conta mais que apenas o alcance do dano ambiental, mas a capacidade das gerações futuras de lidar com ele. Muitos militantes verdes buscam evitar o dano ambiental a qualquer custo, mas isso é de uma falta de visão igual à estratégia dos Green de evitar minimizar os danos à sua casa a qualquer custo. Isso parece apenas senso comum, mas intuitivamente nada de atraente para aqueles que se preocupam com o meio ambiente por três razões. Primeiro, sugere que às vezes é melhor deixar que a terra fique mais poluída em curto prazo. Segundo, enfatiza o papel do crescimento econômico em fornecer a fonte de soluções para problemas. Tercei-

169


ro, costuma estar ligado à idéia de que a futura tecnologia irá ajudar a encontrar soluções. E a tecnologia é vista por muitos ambientalistas como fonte de nossos problemas, não sua solução, Essas três razões podem explicar por que os Green resistem ao argumento, mas não por que eles deveriam. Ver também 10. O véu da ignorância 22. O bote saIva-vidas 60. Faça o que eu digo, não faça o que eu faço 87. Desigualdade justa

170


56. O vórtice da perspectiva total Por quatro anos, lan Ferrier sonhou em construir o vórtice de perspectiva total. Mas agora, quando estava prestes a testá-lo, se perguntava se todo o empreendimento não fora um erro terrível. A máquina, que ele conheceu em um programa de rádio de ficção científica do fim do século XX, permitiria que qualquer pessoa que nela entrasse visse o seu lugar real no Universo. A idéia da ficção original era que qualquer pessoa que usasse a máquina veria que sua própria insignificância era tão avassaladora que isso destruiria sua própria alma. Ferrier tinha trapaceado um pouco na construção da máquina: todos veriam a mesma coisa, já que, ele raciocinou, todos somos mais ou menos tão insignificantes quanto os outros. Mas por todo o projeto ele esteve certo de que a máquina não destruiria sua alma. Ele, como o Sísifo de Gamus, condenado a empurrar infinitamente um fardo morro acima só para vê-lo rolar para baixo de novo, seria capaz de enfrentar o absurdo de seu próprio significado e levar a melhor. E ainda assim, agora que está prestes a testá-la, ele sentiu bem mais que uma leve apreensão. Será que ele poderia aceitar sua própria insignificância infinitesimal no grande esquema das coisas? Só havia um jeito de descobrir... Fonte: O restaurante do fim do universo (The Restaurant at the End of the Universe), de Douglas Adams (Pan Books, 1980)

Como experiência de pensamento, o vórtice de perspectiva total é

contraditório. Por um lado, nos convida a imaginar o que aconteceria se entrássemos no vórtice, mas por outro, toda a questão do invento hipotético é que não podemos imaginar o que nos mostraria. Ainda assim, há algum valor em considerar quais seriam os efeitos do vórtice. Em O guia do mochileiro das galáxias, fonte da idéia do

171


vórtice, uma pessoa sobrevive à experiência. Zaphod Beeblebrox sai da máquina tranqüilamente e diz que ela mostrou apenas que sujeito bacana ele era. Mas não temos certeza se Beeblebrox realmente sobreviveu à máquina ou se o que ele viu apresentava um quadro distorcido de sua própria importância. Será que ele poderia ter sobrevivido à coisa verdadeira? Bem, por que não? Veja o que significa para qualquer coisa ter valor o significado. Tudo é uma questão de usar a escala apropriada. O que é insignificante no contexto de uma partida de golfe entre amigos não importa a mínima para o circuito internacional. O que acontece no torneio US Open é insignificante no contexto da marcha da história humana. E o que acontece na Terra é insignificante no contexto do Universo como um todo. Julgar sua vida dessa forma, e portanto sucumbir ao vórtíce, pode ser apenas medir sua vida com a régua errada. Considere também quanto isso depende do olho do observador. Laphod Beeblebrox tem um ego enorme. Diante do vórtice, será que ele vê o mesmo que os outros? Onde outros se desesperam com a própria insignificância infinitesimal, será que, em vez disso, ele não se assombra com quanto é importante para seu tamanho? É aí que a idéia do vórtice começa a perder sua coerência. Ela deveria mostrar a significância de uma pessoa, mas não há fatos objetivos para serem mostrados. Você pode mostrar a importância de alguém para determinado propósito, como fazem os rankings de melhores jogadores no esporte profissional norte-americano. Mas há várias maneiras de determinar nossa importância e não há maneira objetiva de dizer qual deve contar. Pense em quantas pessoas abririam mão da fama e da fortuna só para estar ao lado de alguém que eles valorizem e que lhes dê valor. O que importa para eles que no grande esquema das coisas seu amor nada valha? Para eles, é o mais importante, e isso basta. Ver também 20. Condenado à vida 51. Viver em um tanque 54. O eu ilusório 62. Penso, logo?

172


57. Comendo Tiddles – Sabendo usar, não vai faltar – era o lema de Delia. Ela tinha grande respeito pela frugalidade e parcimônia da geração de seus pais, pessoas que tinham vivido durante a guerra e durante a maior parte de sua vida com relativamente pouco. Ela tinha aprendido muito com eles, habilidades que praticamente ninguém mais de sua idade possuía, como tirar a pele de um coelho e fazer pratos simples e saborosos com vísceras de animais. Um dia, quando estava em sua casa geminada no subúrbio de Hounston, ela ouviu um barulho alto de um carro freando na rua. Ela saiu para ver o que havia acontecido e, lá fora, descobriu que Tiddles, o gato da família, tinha sido atropelado. Seus primeiros pensamentos não foram de pesar ou tristeza, mas de coisas práticas. O felino tinha levado uma pancada, mas o carro não passara sobre ele. Na verdade, era um pedaço de carne esperando para ser comido. O acre ensopado de carne que sua família sentou-se à mesa naquela noite para comer não era algo que fosse encontrado em muitas mesas britânicas de hoje em dia, mas a família de Delia estava acostumada a comer talhos de carne que não eram mais apreciados. Ela havia contado ao marido o que acontecera, é claro, e sempre era direta com os filhos. Mesmo assim, Miasse, a caçula, comeu com relutância e lançou alguns olhares acusadores para a mãe por sobre seu prato fumegante. Delia compreendia, mas as crianças não tinham qualquer razão para achar que ela fizera algo errado. Fonte: “Affect, culture and morality, or is it wrong to eat your dog?”, de Jonathan Haidt, Silvia Helena Koller e Maria G. Bias em Journal of Personality and Social Psychology, 65 (1973)

O poder dos tabus é muito forte. No Ocidente, como na maior parte

do mundo, a maioria das pessoas come carne sem qualquer questionamento moral. As vezes a carne que eles jantam foi produ-

173


zida por animais mantidos em condições terríveis. Alguns animais de criação, como porcos, são mais inteligentes que muitos animais de estimação. Mas mesmo assim, comer certos tipos de carne é visto como repulsivo. Muitos britânicos acham que comer cães ou cavalos é uma barbaridade, ao passo que os muçulmanos britânicos acham que comer porcos é que é algo repugnante. E comer animais de estimação é considerado especialmente repulsivo. Coelho ensopado é algo perfeitamente aceitável, desde que não seja um coelhinho para o qual você deu nome e o qual manteve em uma gaiola. Há algum fundamento moral para esses juízos, ou eles não passam de atos reflexos culturalmente condicionados? Supondo que você não seja um vegetariano por princípio, caso em que comer todo tipo de carne seria errado, é difícil ver como a moralidade pode entrar nisto. E no caso de Delia, pode ser mais moral comer o gato da família. Afinal, nós achamos que há algo imoral em desperdiçar recursos propositalmente quando há tanta gente pobre no mundo. Então se comer carne não é errado, e uma fonte de carne torna-se disponível, descartá-la seria errado – não comê-la. Sob esse aspecto, Delia é uma espécie de heroína moral, fazendo o que é certo enquanto a maioria não teria a coragem para fazê-lo. É possível alegar que comer um animal de estimação é trair a confiança na qual se baseava o relacionamento. Você não pode simplesmente deixar de repente de ser um amigo e protetor e virar um fazendeiro pragmático. Isso não é apenas psicologicamente difícil, mas também enfraquece as bases da relação homem-animal. Entretanto, não é difícil imaginar uma cultura em que comer animais de estimação, ou mesmo amigos, seja vista como a culminação lógica desse relacionamento. Na trilogia de Philip Pullman, Mis Dark Materials, o urso de armadura, Orek, honra seu amigo morto Lee Scoresby ao comê-lo. Apesar de a maior parte dos leitores do livro ser de crianças, Pullman afirma que elas não parecem ter problemas em aceitar a natureza disso. Então talvez a questão se um animal é amigo ou alimento apresente uma dicotomia falsa. Não apenas é moralmente aceitável comer nossos bichos de estimação mortos, é um desperdício culpado não fazê-lo.

174


Ver também 5. O porco que quer ser comido 17. A opção da tortura 35. Último recurso 91. Ninguém se machuca

175


58. Comando divino E o Senhor disse ao filósofo: – Eu sou o Senhor teu Deus, e ordeno que sacrifiques teu único filho. O filósofo respondeu: – Tem alguma coisa errada aqui. Seus mandamentos dizem: “Não matarás." – O Senhor deu as regras e o Senhor pode tirá-las – respondeu Deus. – Mas como posso saber que você é Deus? – insistiu o filósofo. – Talvez seja o diabo tentando me enganar – Você precisa ter fé – respondeu Deus. – Fé ou insanidade? Será que minha mente não pode estar me pregando uma peça? Ou talvez você esteja me testando de um jeito astuto. Quer ver se eu tenho tão pouca fibra moral que ao comando de uma voz grave e profunda que ribomba por entre as nuvens eu cometa infanticídio. – Eu, Todo-poderoso! – exclamou o Senhor – Está dizendo que é razoável para você, um mero mortal, negar-se a fazer o que eu, o Senhor teu Deus, ordena? – Acho que sim – disse o filósofo. – E você não me deu boas razões para mudar de opinião. Fonte: Temor e tremor (Enten-eller), de Soren Kierkgaard (1843)

No

livro do Gênesis, Deus encontrou em Abraão um servo mais obediente, que levou adiante a ordem de sacrificar seu filho, até o último minuto, quando, já com a faca na mão, um anjo impediu que ele fosse adiante. Desde então Abraão foi representado como um paradigma de fé. Mas que raios será que Abraão tinha na cabeça? Vamos supor que Abraão acreditava profundamente em Deus e que Deus existe –

176


esta não é uma crítica ateísta de suas ações. Então Abraão recebe a instrução de matar seu filho. Mas ele não estaria simplesmente louco de ir em frente e fazer isso? Todos os problemas levantados pelo filósofo em nossa versão da história são pertinentes. Pode não ser Deus quem está falando, mas o diabo; Abraão pode estar louco; o teste pode ser para ver se ele vai se recusar. Todas essas três possibilidades parecem mais plausíveis que a idéia de que Deus quer que o filho dele morra. Que espécie de Deus amoroso é esse que ordena um ato tão bárbaro? No livro do Gênesis, os personagens humanos parecem ter uma relação muito mais direta com seu criador que os crentes de hoje. Deus fala com pessoas como Abraão como se estivessem literalmente sentados lado a lado. Em um mundo assim, a identidade do ser que comandava o assassinato não estaria em dúvida. No mundo que conhecemos, ninguém pode estar tão certo de haver realmente escutado a voz de Deus. E mesmo se pudessem, ainda há dúvida se o teste é apenas para ver se Abraão se recusaria. Então se esta realmente é uma história sobre a natureza da fé, qual sua mensagem? Não é simplesmente que uma pessoa de fé vá obedecer às ordens de Deus, por mais desagradáveis. É que uma pessoa de fé nunca pode ter certeza de qual é a vontade de Deus. A fé não apenas entra em cena quando é necessário agir; a fé é necessária para acreditar, em primeiro lugar, apesar da falta de provas. Na verdade, a fé às vezes exige que o devoto vá além das provas e acredite no que é contrário ao que antes ele acreditava ser certo e verdadeiro; por exemplo, que Deus não aprova mortes sem sentido. Essa não é a fé pregada dos púlpitos. Essa fé é uma rocha segura que dá ao crente uma espécie de calma, de certeza interior. Mas se Abraão estava preparado para matar seu filho, sereno em sua própria fé, então não poderia ter percebido o risco que corria com aquela sua fé em algo incapaz de ser provado. Se você ainda não está convencido, considere por um instante as pessoas que acreditam que Deus deseja que elas se transformem em terroristas suicidas, assassinem prostitutas ou persigam uma minoria étnica. Antes de dizer que Deus nunca poderia ordenar atos tão perversos, lembrese de que o Deus das três fés abraâmicas ordenou não

177


apenas o sacrifício de Isaac, mas também permitiu o estupro de uma esposa como punição para seu marido (2 Samuel 12), ordenou a morte de seguidores de outras religiões (Deuteronômio 13) e sentenciou blasfemadores à morte por apedrejamento (Levítico 24). Parece que não há limites para o que Deus pode pedir, e para o que algumas pessoas de fé farão. Ver também 8. Bom Deus 18. A razão exige 34. Não foi minha culpa 95. O problema do mal

178


59. Está nos olhos Se você pudesse ver o mundo pelos olhos de outras pessoas, o que veria? Essa pergunta deixou de ser hipotética ou metafórica para Cecília. Ela acabou de experimentar a impressionante U-view TM Rede Universal de Intercâmbio de Informação Visual, que permite que uma pessoa se conecte a outra de forma que veja exatamente o que a outra vê, e da mesma maneira. Essa é uma experiência marcante para qualquer um. Mas para Cecília foi ainda mais surpreendente. Pois quando viu o mundo como seu amigo Luke fazia, foi como se o mundo tivesse sido virado do avesso. Para Luke, os tomates eram da cor que ela conhecia como azul. O céu era vermelho. As bananas passavam de amarelo ao verde quando amadureciam. Quando as pessoas da U-View souberam da experiência de Cecília, eles a submeteram a outros testes. Revelou-se que ela via os olhos com o que eles chamavam de espectro invertido: todas as cores se pareciam com as cores complementares das vistas pelas outras pessoas. Mas claro, como as diferenças eram sistemáticas, não fosse pelo sistema U-View ninguém jamais teria descoberto. Afinal, ela dizia corretamente como todo mundo que os tomates eram vermelhos.

Será que você vê o mundo como Cecília? Se eu pudesse ver com

seus olhos, será que eu acharia que, para você, o sol poente é azul? Não temos como saber. Pois de qualquer modo que veja o mundo, enquanto seu esquema sensorial de cores seja tão regular quanto o meu, nada do que façamos ou digamos pode revelar as diferenças. Para nós dois, verde seria a cor da grama, alface, ervilhas e da tinta da nota de um dólar norteamericano. Laranjas seriam laranja, e a cor da raiva seria o vermelho. A precisão com a qual usamos os nomes das cores é determinada apenas pela referência a objetos públicos, não à experiência particu-

179


lar. Não há maneira de ir para trás de seus olhos e ver como o azul se parece realmente para você. Tenho de supor que, considerando nossas biologias parecidas, não há muita diferença entre como nós vemos um céu limpo de verão. Você pode perguntar como é possível saber que as pessoas são daltônicas. A resposta a isso reforça mais do que enfraquece a possibilidade de que as Cecílias deste mundo viveriam entre nós despercebidas. O daltonismo revela-se pela incapacidade de diferenciar entre duas cores que as pessoas com uma visão completa das cores percebem ser diferentes. Então, por exemplo, o vermelho pode não se diferenciar contra um fundo verde, como acontece para a maioria. Os testes que revelam isso não entram nas experiências particulares da experiência sensorial. Eles apenas determinam a capacidade de as pessoas fazerem juízos públicos sobre diferenças de cores. Então enquanto uma pessoa conseguir perceber diferenças de cores tão bem quanto todo mundo, permanecemos ignorantes sobre qualquer variação em como as cores na verdade se parecem para elas em comparação a nós. O fato de as pessoas poderem ver o mundo de uma maneira diferente da nossa (ou ouvi-lo, cheirá-lo, saboreá-lo ou senti-lo) é pouco mais que uma dúvida cética intrigante. O que talvez seja o mais interessante é o que a possibilidade nos diz sobre o uso da linguagem e o significado das palavras que descrevem nossas vidas mentais. Em suma: parece que uma palavra como “vermelho” não descreve uma sensação visual específica, mas apenas uma regularidade no mundo que corresponde a uma regularidade na maneira como o vemos. Quando você diz que um tomate é vermelho, a palavra “vermelho” não se refere a uma cor que percebemos, mas a uma característica do mundo que pode se parecer muito diferente para os outros. Isso significa que quando Cecília e Luke dizem que o céu é azul, os dois estão certos, apesar de o que verem ser muito diferente. Se isso é verdade em relação às cores, não será verdade em relação a outras coisas que costumamos ver como interiores e particulares? Será que “dor” é uma sensação ou uma espécie de resposta a uma sensação? Estou errado em pensar que quando falo sobre minha dor de cabeça estou me referindo sobre uma sensação desagradável em minha cabeça? Será que isso vira do avesso a linguagem da mente?

180


Ver tambĂŠm 13. Tudo em preto, branco e vermelho 21. A terra dos epifĂŞnios 41. Tudo azul 73. Ser um morcego

181


60. Faça o que eu digo, não faça o que eu faço Irena Janus estava se preparando para sua apresentação sobre o impacto dos aviões no aquecimento global. Ela iria dizer a seus ouvintes que os vôos comerciais lançam mais CO2 que provoca mais efeito na atmosfera em um ano que toda a Africa. Ela iria mostrar como um vôo de longa distância é mais poluente que doze meses de viagens de automóvel. Se queremos salvar a Terra, concluiria ela, temos de fazer mais para reduzir o número de vôos que tomamos e estimular as pessoas a viajar menos ou a usar outras formas de transporte. Quando estava imaginando a recepção calorosa que sua conferência teria, foi interrompida pela aeromoça que lhe ofereceu vinho. Hipocrisia? Janus não via assim. Pois ela também sabia muito bem que o impacto de seus próprios vôos no ambiente era desprezível. Se ela se recusasse a voar, o aquecimento global não seria retardado em nem um segundo. O que era necessário era uma grande mudança coletiva e na política. Seu trabalho, que envolvia voar pelo mundo em defesa disso, poderia ser parte da solução. Recusar-se a voar simplesmente seria um gesto vazio. E assim, ela ligou o filme de bordo daquela noite: O dia depois de amanhã.

É reconfortante pensar que “uma andorinha só faz verão”, mas será

verdade? Depende de como você vê a coisa. Por exemplo: se todos na GrãBretanha dessem $1 para uma campanha de caridade, juntos levantariam $56 milhões. Individualmente, ninguém daria muito, mas coletivamente juntariam uma grande quantia. Mas, por outro lado, se todos, menos uma pessoa fizessem a doação, e a soma total chegasse a $55.999.999, o dinheiro que faltou não faria muita diferença em relação ao que poderia ser feito com o total.

182


Se refletirmos sobre esses fatos, é perfeitamente racional concluir que minha contribuição é insignificante e por isso não importa se eu a faço ou não, mas também que faria grande diferença se todos raciocinassem da mesma forma. Isso é um paradoxo, ou os dois pensamentos podem ser conciliados? Janus acha que podem. O que você tem de fazer é convencer um grande número de pessoas que suas contribuições importam. Se um número suficiente delas acreditar erradamente que isso é verdade, então conseguimos o impacto favorável desejado. Na verdade, isso tudo é um plano de louvável ilusão. O esforço coletivo funciona, não o individual. Porém, a menos que as pessoas achem que o esforço individual importa, você não será capaz de reunir o coletivo. Há algo extremamente não convincente nessa linha de raciocínio, mas é difícil encontrar falha na lógica. Então por que achamos que ela está errada? Uma possível razão é que, apesar da consciência tranqüila de Janus, sentimos que ela é uma hipócrita, pois ela faz o oposto do que nos pede para fazer. Mas isso não mostra que seu raciocínio sobre o impacto dos esforços individuais está errado. Sua justificativa para voar pode ser perfeitamente racional, se ela está preocupada apenas em salvar o planeta. Sua opção por voar, entretanto, ainda pode ser errada, por uma razão completamente diferente: que é errado fazer o que você diz aos outros para não fazer. Em outras palavras, a razão para ser errado para ela voar nada tem a ver com o meio ambiente e tudo a ver com o imperativo ético de aplicar à sua própria conduta a mesma ética que você aplica à dos outros. Isso parece resolver o paradoxo aparente. É verdade que, coletivamente, nosso gosto por viagens de avião é nocivo: todas as pequenas emissões se acumulam. Também é verdade que vôos individuais têm um impacto desprezível: nenhuma emissão individual importa. Mas também é verdade que se defendermos uma política de redução de emissões, não podemos fazer exceções para nós mesmos. Janus não deve ser criticada por destruir o planeta, mas por não seguir o conselho que dá aos outros. A menos, é claro, que “faça o que eu digo, não faça o que eu faço” seja um pedido perfeitamente razoável.

183


Ver também 55. Desenvolvimento sustentável 82. Na aba 83. A regra de ouro 91. Ninguém se machuca

184


61. lua de mozarela A lua é feita de queijo. De mozarela, para ser mais exato. Ao dizer isso, posso ter assinado minha própria sentença de morte. Sabe, eles não querem que a gente descubra. Vão dizer que sou louco. Mas como disse Kurosawa, “em um mundo louco, só os loucos são sãos”. – Mas os homens andaram na lua – diz você. Errado. Tudo foi uma farsa, filmada em um estúdio pela Nasa. Você não viu o filme Capricórnio Um? Se não fossem os advogados, ele teria sido lançado como documentário. – Mas foram feitas outras expedições não-tripuladas à lua. – A maior parte delas também foi uma farsa. Algumas não, e foram essas que trouxeram de volta as amostras que provaram a teoria da mozarela. Mas, é claro, essas provas foram ocultadas. – Mas as pessoas podem olhar para a lua por telescópios. – Certo, e você garante que, assim, consegue saber se ela é de pedra dura ou de queijo macio? – Mas se isso fosse verdade, claro que a informação teria vazado. – Você preferia ficar quieto, e talvez ser muito bem pago; ou ser morto ou difamado como louco? Pense sobre isso: de que outra forma Elvis poderia conseguir sobreviver se ele não houvesse um suprimento infinito de queijo?

Loucura, não? Mas e os 20% dos norte-americanos que acreditam

que os pousos na lua nunca aconteceram? Será que são todos loucos também? Se não, o que faz com que a crença deles seja saudável, mesmo que equivocada, e a hipótese da lua de mozarela uma mentira inacreditável? Teorias conspiratórias tornam-se possíveis devido a duas limitações da formação do conhecimento. A primeira poderíamos chamar de natureza holística do entendimento: qualquer coisa em que acredi-

185


temos está conectada, como em uma teia, a diversas outras crenças. Então, por exemplo, sua crença de que sorvete engorda está conectada a suas crenças sobre o conteúdo calórico do sorvete, à ligação com consumo de gordura e ganho de peso, à confiabilidade da ciência nutricional e por aí vai. A segunda é o que geralmente chamam de indeterminação da teoria pela prova. Em português claro isso significa que os fatos nunca fornecem provas suficientes para provar de forma conclusiva uma teoria e apenas uma teoria. Sempre há uma lacuna – a possibilidade de que uma teoria alternativa seja verdadeira. É por isso que os tribunais insistem em prova “além de qualquer dúvida razoável”. Provas além de qualquer dúvida são impossíveis. Junte essas duas limitações e abre-se o espaço até para as mais loucas teorias conspiratórias. Há provas esmagadoras de que a lua é uma massa rochosa, mas não somos forçados pelas provas a chegar a essa conclusão. As falhas eventuais significam que pode haver provas consistentes mesmo na hipótese de que a lua é feita de queijo. Basta reorganizar todas outras crenças interconectadas que temos em nossa teia de compreensão para que elas também se encaixem. Daí a necessidade de reavaliar o poder dos microscópios, a extensão da corrupção e a veracidade dos pousos lunares. Claro, você pode acabar com algo que soa bem louco. Mas o ponto crucial é que ele se encaixa às provas. É isso que faz com que muita gente sucumba aos encantos das teorias conspiratórias (e outras idéias bizarras sobre a natureza do Universo). O fato de que “tudo se encaixa” parece ser uma razão atrativa para as crenças. Mas qualquer teoria diferente se encaixa, até mesmo a noção de que a lua é feita de queijo. Então o que faz com que uma teoria seja melhor do que outra? Por que a teoria da evolução é sólida e a teoria de que os pousos na lua foram encenados é absurda? A resposta para isso não é fácil, o que talvez em parte explique por que quase metade de todos os norte-americanos acha que a teoria da evolução também é conversa fiada. Só podemos dizer é que simples consistência com as provas não é suficiente para fazer com que uma teoria seja racionalrnente atrativa. Se você acredita nisso, então também pode aceitar que Elvis está nos orbitando agora mesmo, em um paraíso de mozarela derretida.

186


Ver também 1. O demônio maligno 3. A indiana e o gelo 19. Fora da bolha de vidro 98. A máquina de experiência

187


62. Penso, logo? Meu nome é René. Lembro-me de ter lido uma vez que se há algo de que sempre posso ter certeza é que enquanto eu pensar, eu existo. Se eu, David, estou pensando agora, devo existir para que o pensamento prossiga. Certo, não? Posso estar sonhando, ou posso estar louco, ou posso nem mesmo viver em Tauton, mas enquanto penso sei que Lucy (sou eu) existe. Acho isso reconfortante. Minha vida em Munique pode ser muito estressante, e saber que posso estar segura de minha própria existência fornece alguma segurança. Quando caminho pelo Champs-Elysées todas as manhãs, eu costumo me pegar me perguntando se o mundo existe. Será que vivo mesmo em Charlotesville, como penso? Meus amigos dizem: “Madeleine, você vai ficar louca de tanto especular!” Mas não acho que estou louco. Descobri a certeza em um mundo incerto. Cogito ergo sum. Eu, Nigel, penso, logo existo, Cedric. Fontes: Discurso sobre o método, de René Descartes (1637), Schriften und Briefe, de G. C. Lichtenberg (CarI Hanser Verlag, 1971)

Esse monólogo é coerente? Em um sentido, claro que não, O (A)

narrador(a) muda de nome o tempo todo e faz afirmações conflitantes sobre onde ele (a) vive. Superficialmente, é uma bagunça. Entretanto, em um sentido importante ele é completamente coerente. Mais especificamente, ele é totalmente consistente com a verdade de “Penso logo existo”. René Descartes, quem primeiro escreveu isso, usou-o para determinar a existência de uma alma ou eu imaterial. Mas críticos já disseram que ao fazer isso ele pretendeu afirmar mais que o argumento provara. Nosso estranho monólogo mostra por quê. O ponto-chave é que a certeza que você obtém de “Penso, logo existo” vem apenas no momento em que você o pensa. De fato, é

188


verdade que para existir um pensamento deve realmente haver um pensador para tê-lo. Mas essa certeza momentânea não demonstra que o mesmo pensador existe ao longo do tempo, ou é o mesmo que teve um pensamento há alguns minutos atrás. Na verdade, é consistente com o pensador existir apenas durante o tempo que o pensamento dura. Assim é possível fazer sentido do monólogo. Aqueles não são mundos de um único eu contínuo, mas uma série de pensamentos de uma seqüência de eus, todos os quais se alternam para ocupar a posição do narrador. Não precisamos pensar nisso em termos ocultos. Pense mais em alguém com uma séria desordem de personalidades múltiplas. As personae diferentes alternam-se em rápida sucessão no controle da função da voz. Cada vez que um deles diz “penso, logo existo”, o que eles dizem é absolutamente verdadeiro. O problema é que quando isto é dito, o “eu”, cuja existência era tão incontrovertida, desaparece. Talvez possamos mesmo retratar a situação na última frase, na qual um segundo “eu” termina o pensamento do primeiro. Como a maioria não tem personalidades múltiplas, qual o significado disso para nós? A função do monólogo é mostrar que as famosas palavras de Descartes demonstram muito menos do que costumamos pensar que fazem. O fato de pensar pode mostrar que existimos, mas nada nos diz sobre que tipo de coisa somos, ou se continuamos a existir como a mesma pessoa com o passar do tempo. A certeza que temos com o cogito ergo sum é alcançada a um preço alto: a incerteza absoluta no instante seguinte àquele em que o pensamento ocorre. Ver também 3. A indiana e o gelo 28. O cenário do pesadelo 51. Viver em um tanque 54. O eu ilusório

189


63. Você sabia? Era uma coincidência muito estranha. Um dia, na semana passada, quando Naomi pagava por seu café, o homem atrás dela, que remexia os bolsos, deixou cair as chaves. Naomi as pegou e não pôde evitar ver o coelhinho branco preso no chaveiro. Quando ela o entregou ao homem, que tinha um rosto anguloso e pálido bem diferente, ele pareceu um pouco envergonhado e disse: – Eu sempre ando com isso. Razões sentimentais. – Ele corou e os dois não falaram mais. No dia seguinte ela estava prestes a atravessar a rua quando ouviu o barulho de freios e então um barulho surdo sinistro. Quase sem pensas ela seguiu com a multidão até a cena do acidente. Ela olhou para ver quem era a vítima e viu aquele mesmo rosto pálido e de linhas fortes. Um médico já o estava examinando. – Ele está morto. A polícia pediu que ela prestasse depoimento. – Só sei que ele comprou café ali naquele bar ontem e que sempre andava com um chaveiro de coelhinho. – A polícia confirmou que os dois fatos eram verdade. Cinco dias depois, Naomi quase gritou quando, outra vez na fila do café, ela virou-se e viu o mesmo homem de pé atrás dela. Ele registrou seu choque, mas não pareceu surpreso com ele. – Você achou que eu era meu irmão gêmeo, certo? – perguntou ele. Naomi concordou com a cabeça. – Você não foi a primeira a reagir assim desde o acidente. O fato de que costumávamos freqüentar o mesmo café, mas nunca juntos, não ajuda. Enquanto falava, Naomi não conseguiu evitar olhar fixamente para o que havia nas mãos dele: um chaveiro de coelhínho branco. O homem não ficou surpreso com isso. – Você sabe como são as mães. Gostam de tratar os filhos igualmente.

190


Naomi achou toda aquela experiência desconcertante. Mas a questão que a incomodou quando finalmente se acalmou foi: ela tinha contado a verdade à policia? Fonte: “Is justified True Belief Knowledge?', de Edmund Gettier, republicado em Analytic Philosophy: An Anthology, organizado por A. P. Martinch e D. Sosa (Blackwell, 2001)

O que Naomi disse para a polícia foi: “Só sei que ele comprou café ali

naquele bar ontem e que sempre andava com um chaveiro de coelhinho.” Os dois fatos eram verdade. Mas ela estava certa em dizer que sabia que eram verdade? Muitos filósofos afirmaram que o conhecimento tem três condições. Para conhecer algo, primeiro você deve acreditar que ele é verdade. Você não pode saber que Roma é a capital da Itália se você acreditar que é Milão. Segundo: aquilo em que você acredita deve ser verdade. Você não pode saber que Milão é a capital da Itália se a capital é Roma. Terceiro: sua crença verdadeira deve ser de alguma maneira justificada. Se você, por acaso, sem razão, acredita que Roma é a capital da Itália e, por acaso, está certo, não podemos dizer que você tinha conhecimento. Foi apenas um palpite de sorte. Naomi tinha duas crenças verdadeiras sobre o homem morto. E ela parecia ter razões para se apegar a elas. Mas parece que ela não sabia se elas eram realmente verdade. Ela não sabia que o homem tinha um irmão gêmeo, e este também usava um chaveiro idêntico. Então, se o morto fosse o gêmeo do que ela vira no bar, e ele não tivesse visitado o local naquele dia, ou usasse o mesmo chaveiro, ela ainda teria afirmado saber as mesmas duas coisas sobre ele, só que, dessa vez, ela estaria enganada. Para ter uma idéia de como ela sabia pouco, mesmo agora ela não sabe se o homem que viu no bar era o gêmeo que morreu no acidente ou aquele que ela encontrou no mesmo lugar alguns dias depois. Ela não tinha idéia de qual era qual. A solução óbvia para esse problema parece ser que precisamos amarrar a idéia da justificação. Naomi não sabia por que sua justifica-

191


ção para afirmar conhecer os dois fatos sobre o morto não era forte o bastante. Mas se isso é verdade, então precisamos questionar se o conhecimento tem condições muito estritas para a justificação de crença coletiva. E isso significa que vamos descobrir que quase tudo o que achamos saber não tem justificativa suficiente para contar como conhecimento. Se Naomi na verdade não sabia o que acreditava saber sobre o homem morto, então tampouco sabemos o que acreditamos saber. Ver também 1. O demônio maligno 3. A indiana e o gelo 40. O vencedor do cavalo-de-pau 76. Cérebro eletrônico

192


64. Cortar o mal pela raiz O presidente baixou a voz e disse: – O que você está sugerindo é ilegal. – Na verdade, é, sr. Presidente – respondeu o general. – Mas o senhor precisa se perguntar qual a melhor maneira de proteger a vida de nossos cidadãos. A situação é simples: Tatum está decidido a promover uma campanha de limpeza étnica em seu próprio país e a lançar um ataque militar contra nós. Nossa inteligência diz que ele está praticamente sozinho nessa posição, e que se fosse eliminado, seria substituído por Nesta, que é muito mais moderado. – Sim, mas você está falando em eliminá-lo. O assassinato de um líder estrangeiro contraria a lei internacional. O general deu um suspiro. – Mas, sr. Presidente, o senhor deve ver como sua escolha é simples. Uma bala, seguida de mais algumas quando os serviços de segurança terminarem a limpeza posterior, será suficiente para evitar um massacre em larga escala e uma provável guerra. Sei que não quer o sangue de um líder estrangeiro em suas mãos, mas seria preferível se afogar no sangue de milhares do povo dele, e do seu também?

A moral é uma autoridade mais elevada que a lei. É por isso que

aprovamos a desobediência civil quando as leis dos Estados são claramente injustas e não há meios legais de se opor a elas. Podemos discordar quanto a que ações em particular do Congresso nacional africano foram justificadas em sua luta contra o apartheid, mas a idéia de que a África do Sul dava muitas oportunidades de protestos legais pelos negros do país é ridícula. Não é difícil imaginar situações em que infringir a lei seja a coisa certa a fazer. E mais importante salvar uma vida que respeitar limi-

193


tes de velocidade. Você não pode deixar de perseguir um criminoso só para não desobedecer à lei. E melhor roubar do que morrer de fome. Se aceitarmos isso, então o simples fato de o que pedem para nosso presidente fazer ser contra as leis internacionais não encerra a questão de se ele deve ir em frente. Na verdade, a questão será: será que as circunstâncias são tão sérias que não há maneira de evitar um resultado terrível sem apelar para atos ilegais? Se os cálculos apresentados pelo general estiverem corretos, então parece que o assassinato seria justificável. Como diz o exemplo desgastado, se você soubesse o que Hitler iria fazer, você o teria matado enquanto ainda jovem? Se não, por que você dá mais valor à vida dele que aos seis milhões mortos no Holocausto e tantos outros em suas guerras? Entretanto, como a derrubada de Saddam Hussein mostrou, o problema é que a inteligência está longe de ser infalível. A verdade é que, apesar da percepção tardia, podermos desejar ter agido mais cedo, nunca podemos ter certeza do que virá no futuro. O assassinato pode evitar limpezas étnicas e guerras. Por outro lado, pode provocar uma agitação ainda maior, ou apenas botar outra pessoa no comando da matança. A lei das conseqüências não desejadas precisa ser respeitada. Mas o presidente não pode se dar ao luxo de dar de ombros e dizer: “Que será, será.” O trabalho do político é tomar decisões com base na melhor estimativa possível das circunstâncias presentes e futuras. O fato de as estimativas poderem estar erradas não é desculpa para a omissão. As decisões nunca são tomadas com base na certeza absoluta, mas nas probabilidades. Por isso, o dilema persiste. Se Tatum não for assassinado e fizer o que foi previsto, seria uma defesa fraca para o presidente alegar: “Sim, eu sabia que isso podia acontecer, mas não tinha certeza, por isso não fiz nada.” Ao mesmo tempo, ele não pode desrespeitar as leis internacionais com regularidade com base em informação que tem o potencial de não ser confiável. Então, como ele chega à sua decisão nesse caso em especial? Sem dúvida, com muita dificuldade.

194


Ver também 9. Big Brother radical 36. Justiça preventiva 50. O suborno do bem 77. O bode expiatório

195


65. O poder do espírito Faith sempre acreditou em reencarnação. Mas recentemente seu interesse por suas vidas passadas tinha alcançado um novo nível. Agora que estava visitando a médium mística, pela primeira vez teve informação sobre como realmente foram suas vidas passadas. A maior parte do que Marjorie contou a ela foi sobre sua encarnação anterior como Zosime, uma mulher nobre que viveu na época do cerco de Tróia. Ela soube de sua fuga audaciosa primeiro para Smyrna e depois para Cnosso. Era, aparentemente, bela e corajosa, e se apaixonou por um comandante espartano, com quem viveu em Cnosso pelo resto de sua vida, Faith não conferiu a verdadeira história de Tróia para verificar a história de Marjorie. Não duvidou de que a sua era a mesma alma que vivera em Zosime. Entretanto, havia algo que a preocupava e incomodava em relação ao que aquilo significava. Por mais que gostasse da idéia de ser uma beleza grega, como não se lembrava de nada de sua vida em Cnosso ou tinha qualquer sensação de ser a mesma pessoa sobre a qual Marjorie lhe contara, não podia ver como ela e Zosime podiam ser a mesma pessoa. Ela havia descoberto sobre sua vida passada, mas aquilo não parecia ser a sua vida. Fonte: Livro dois, capítulo XXVII de An Essay Concerning Human Undetstanding, de John Locke (5. ed., 1706)

Muitas pessoas em todo o mundo acreditam em várias formas de

reencarnação ou renascimento. Há muitas razões para pensar que estão erradas em fazer isso. Mas vamos supor que temos almas e que elas reencarnam. Em que isso implica? É esta a questão com a qual Faith está se debatendo. Apesar da natureza um tanto suspeita da história que Marjorie lhe contou – por

196


que nossas vidas passadas sempre parecem ter sido como pessoas tão interessantes e fortes, com vidas tão ricas? –, Faith não questiona sua veracidade. A pergunta que ela se faz é: se eu, na verdade, tenho a mesma alma que Zosime, será que isso faz com que eu e ela sejamos a mesma pessoa? Intuitivamente, Faith responde: “Não.” Ela não tem a sensação de ser a mesma pessoa que Zosime. Isso não é surpresa. Quando olhamos para nós mesmos no passado (em vez de para nossos eus anteriores), o que nos dá a sensação de que somos a mesma pessoa é certo grau de encadeamento e continuidade psicológicos. Lembramo-nos de ser aquela pessoa, de fazer as coisas que ela fez, ter as crenças que ela tinha e por aí vai. Também temos uma sensação de como nossos eus atuais se desenvolveram a partir dessa pessoa. Se nossas almas habitaram outras pessoas em vidas anteriores, não temos tais conexões psicológicas com elas. Marjorie precisa dizer a Faith o que Zosime fez e pensou, já que Faith não se lembra de ser Losime, nem tem qualquer sensação de ter se desenvolvido a partir de Zosime. Sem essas ligações, como pode fazer algum sentido dizer que Zosime e Faith são a mesma pessoa, mesmo se compartilham da mesma alma? Se esses pensamentos estão no caminho certo, então mesmo se temos almas que sobrevivem à morte corporal, isso não significa necessariamente que nós vamos sobreviver à morte corporal. A existência continuada do eu parece depender da continuidade psicológica, não de alguma estranha substância imaterial. A existência continuada da alma não garante mais a existência continuada do que a existência continuada do coração ou de outros órgãos. Mas agora considere o que é olhar para uma foto sua de quando era criança. Para saber como era aquela pessoa, você normalmente tem de perguntar a alguém que era adulto na época e que se lembra, “Como eu era?”, você pergunta a elas, assim como Faith faz com Marjorie, “Como eram as coisas em Tróia?” Seus elos psicológicos com aquela criança podem ser tão fracos que praticamente não existem. Será que isso significa que, em um sentido muito real, você não é mais a mesma pessoa que era seu eu bebê do que Faith é a mesma que Zosime?

197


Ver tamb茅m 2. Teletransporte 38. Eu sou um c茅rebro 54. O eu ilus贸rio 88. Total falta de mem贸ria

198


66. O falsário Alameda de álamos ao amanhecer estava destinada ao panteão das obras-primas de Van Gogh. Essa “obra perdida” iria ser vendida por milhões e renderia volumes de estudos comparando a com duas outras telas que Van Gogh pintou da mesma cena em horas diferentes. Isso agradava Joris van den Berg, pois ele, não Van Gogh, pintara Alameda de álamos ao amanhecer. Joris era um falsário especializado e tinha certeza de que a autenticidade de sua última criação seria atestada. Isso não apenas aumentaria muito sua riqueza, mas também lhe daria uma enorme satisfação profissional. Só alguns amigos íntimos sabiam o que Joris estava fazendo. Um expressou sérias ressalvas morais, que Joris logo descartara. Para ele, se o quadro fosse reconhecido como um original de Van Gogh, então valia cada centavo pago por ele. Qualquer um que pagasse mais do que ele realmente valia apenas porque era um trabalho do próprio Van Gogh era um tolo que merecia ser separado de seu dinheiro.

Pode parecer óbvio que a falsificação não chega a ser uma profissão

virtuosa porque ela inevitavelmente envolve fraude e engano. O falsário é bem-sucedido apenas se enganar as pessoas em relação à origem de seu trabalho. Entretanto, o engano nem sempre deve ser depreciado. Na verdade, às vezes uma mentira descarada pode ser exatamente o que exige a moralidade. Se um marginal racista, com más intenções, perguntar se você sabe onde vive algum estrangeiro, o melhor seria declarar ignorância, em vez de mandá-lo até o número 23. Portanto, o que parece

199


importar é se a mentira serve a um propósito básico ou nobre, e quais são as conseqüências desse engodo. O objetivo do falsificador parece ser menos que puro: ganhar para si muito dinheiro. Entretanto, mesmo um artista de boa-fé pode ser, pelo menos em parte, motivado pelo desejo de ganhar dinheiro, então isso não é algo que, em si, importa. Precisamos olhar para o quadro mais amplo se desejamos avaliar a arte da falsificação. A história imaginária de Joris van den Berg sugere uma maneira respeitável de defender seu trabalho. Para botar em termos razoavelmente elevados, na verdade o falsificador está prestando um serviço ao nos lembrar do verdadeiro valor da arte e zombar da maneira como o mercado de arte substituiu os valores estéticos pelos financeiros. O ponto-chave aqui é que o falsificador pode ser bem-sucedido de duas formas: pode produzir uma obra tão boa que é considerada valiosa simplesmente porque se acredita ser trabalho de um artista famoso. Se, na verdade, a falsificação é tão boa quanto a obra do artista renomado, por que não deveria ser igualmente valorizada? Se a falsificação não é tão boa, precisamos nos perguntar por que as pessoas pagam tanto por coisas inferiores. Seria porque os preços no mercado de arte não são determinados pelo mérito estático, mas pela moda, reputação e celebridade? A assinatura de Van Gogh em um trabalho agrega valor da mesma maneira que um autógrafo de David Beckham agrega valor a um uniforme de futebol. Se isso é verdade, então éválido protestar que tal comércio ordinário pode de alguma maneira tornar-se menos puro pelo trabalho de um falsificador. Sob essa luz, o falsificador pode ser visto como uma espécie de artista guerrilheiro, que luta pelos verdadeiros valores da criatividade em uma cultura na qual a arte foi depreciada e transformada em mercadoria. É verdade que ele é um impostor. Mas nenhuma guerrilha pode lutar abertamente. O sistema tem de ser desmontado de dentro, peça por peça. E a guerra só será vencida quando toda obra de arte for julgada apenas por seus próprios méritos, não com base na assinatura do canto. Isto é, a menos que alguém possa dar boas razões para acreditar que a assinatura realmente importa...

200


Ver também 12. Picasso na praia 37. A natureza é o artista 48. O gênio do mal 86. Arte pela arte

201


67. O paradoxo do restaurante indiano Como acontece com eventos que transformam a vida, a chegada dos pãezinhos asiáticos crocantes servidos com curry à mesa mal pode ser considerada dramática. Mas provocou em Saskia o mesmo tipo de golpe mental que alteraria profundamente sua maneira de pensar O problema é que o garçom que trouxe as iguanas não era de origem indiana, mas um branco anglo-saxão. Isso incomodou Saskia porque, para ela, um dos prazeres de sair para comer um curry era a sensação de provar uma cultura estrangeira. Se o garçom lhe tivesse servido um bife com torta de rim, não teria sido mais incongruente que a cor de sua pele. Quanto mais pensava nisso, entretanto, menos sentido fazia. Saskia se considerava uma multiculturalista. Ou seja, ela realmente apreciava a variedade cultural que existe em uma cultura eticamente variada. Mas seu prazer dependia de que as outras pessoas permanecessem etnicamente diferentes. Ela podia apreciar uma vida que transitava entre muitas culturas diferentes apenas se os outros estivessem firmemente enraizados em uma. Para ela ser multiculturalista, os outros deviam ser monoculturalistas. Onde isso deixava seu ideal de uma sociedade multicultural?

Saskia tem razão em se sentir desconfortável. Há um problema no

âmago de seu multiculturalismo liberal. Ele defende seu respeito por outras culturas, mas o que valoriza acima de tudo é sua habilidade em transcender uma cultura e valorizar várias. Isso impõe uma restrição importante na amplitude de seu aspecto. A pessoa ideal é o multiculturalista que pode visitar uma mesquita, ler escrituras hindus e praticar meditação budista. Os que permanecem dentro de uma tradição não incorporam esses ideais, e, portanto, apesar do papo de “res-

202


Peito”, eles podem ser vistos apenas como inferiores ao multiculturalista de mente aberta. Há um pouco da mentalidade do zoológico nisso. O multiculturalista quer circular por aí admirando maneiras de viver diferentes, mas só pode fazer isso se várias formas culturais forem mantidas mais ou menos intactas. Subculturas diferentes na sociedade, portanto, são como jaulas, e se pessoas demais entrarem ou saírem delas, elas se tornam menos interessantes para os multiculturalistas apontá-las e darem um sorriso. Se todos fossem tão culturalmente promíscuos como eles, haveria menos diversidade genuína com a qual se deleitar. E por isso os multiculturalistas devem permanecer uma elite, parasitária em monoculturas internamente homogêneas. Pode-se alegar que é possível ser ao mesmo tempo multiculturalista e comprometido com uma cultura em particular. O paradigma aqui é o do muçulmano ou cristão devoto que ainda assim tem respeito profundo por outras religiões e sistemas de crenças e está sempre pronto para aprender com eles. Entretanto, tolerância e respeito por outras culturas não é o mesmo que valorizar todas as culturas de maneiras mais ou menos iguais. Para o multiculturalista, o melhor ponto de vista é aquele que vê mérito em tudo. Mas é impossível ser um cristão, judeu ou muçulmano, até mesmo ateu, comprometido, e acreditar sinceramente nisso. Pode haver tolerância, ou mesmo respeito, por outras culturas, mas se um cristão realmente acreditasse que o Islã é igualmente valioso que a cristandade, por que ele deveria ser um cristão? Esse é o dilema do multiculturalista. Você pode ter uma sociedade de muitas culturas que respeitam uma a outra. Pode chamar isso de multiculturalismo, se quiser. Mas se quiser defender um multículturalismo que valoriza a diversidade em si e vê todas as culturas como tendo mérito igual, então ou você tem de aceitar que aqueles que vivem em apenas uma cultura têm uma forma de vida inferior – o que parece contrariar a idéia de respeito por todas as culturas – ou você tem de defender o fim das divisões entre culturas distintas, para que as pessoas prezem cada vez mais as culturas dos outros – o que vai levar a uma redução no tipo de felicidade que você alega valorizar. Em nosso exemplo concreto, para que Saskia continue a desfrutar

203


da diversidade de culturas, ela deve torcer para que outros não abracem o multiculturalismo tanto quanto ela. Ver também 10. O véu da ignorância 55. Desenvolvimento sustentável 82. Na aba 84. O princípio do prazer

204


68. Dor maluca O acidente deixou David com um dano cerebral muito incomum. Se você o coçava, espetava ou chutava, ele não sentia dor Mas se visse muito amarelo, sentisse o cheiro do carvalho, ouvisse uma cantora de ópera alcançar um dó agudo, fizesse um trocadilho intencional ou tivesse alguma de várias experiências aparentemente aleatórias, então ele sentiria dor, às vezes uma dor muito forte. E não era só isso, Ele também não achava a sensação dessa dor desagradável. Ele não buscava a dor deliberadamente, mas também não fazia qualquer esforço para evitá-la. Isso significava que ele não apenas não demonstrava sua dor da maneira habitual, com gemidos ou contorções. Os únicos sinais físicos de que David estava sentindo dor eram todas as formas de espasmos involuntários: seus ombros se erguiam, as sobrancelhas baixavam e subiam com velocidade, ou seus ombros se agitavam, fazendo com que ele ficasse parecendo uma galinha. O neurologista de David, entretanto, estava muito cético. Ele podia ver que David não sentia mais dor como antes, mas o que quer que David sentia quando via “amarelo demais”, não podia ser dor A dor era, por definição, uma coisa desagradável que as pessoas tentavam evitar Talvez seu dano cerebral o tivesse feito esquecer qual era a sensação de dor de verdade. Fonte: “Mad Pain and Martian Pain”, de David Lewis, em Readings in Philosophy of Psychology, vol. 1, organizado por Ned Block (Harvard University Press, 1980)

Os filósofos da mente se interessam muito pela dor. São fascinados

pela natureza da experiência subjetiva e sua relação com o conhecimento objetivo, e nada parece ser mais subjetivo e ao mesmo tempo tão real quanto a dor. Pergunte a qualquer um que teve uma dor de

205


dente forte, Ao mesmo tempo, costumamos ser bons em perceber se alguém está sentindo dor, De modo diferente de outros eventos mentais, como pensar sobre pingüins, a dor afeta nossa conduta exterior, assim como nossa experiência interior. Então, se quiser entender o que significa ter uma experiência subjetiva, a dor é um bom estudo de caso. A história da “dor maluca” de David é uma tentativa de jogar com as variáveis associadas à dor para ver quais são essenciais e quais são incidentais. As três variáveis principais são privadas, experiências subjetivas; causas típicas; e respostas comportamentais. A dor maluca tem apenas a experiência subjetiva em comum com a dor normal; suas causas e efeitos são bem diferentes. Se isso ainda assim não é preciso para descrever a dor maluca como dor, então devemos concluir que a essência da dor é a sensação subjetiva da dor. Suas causas e efeitos são meramente incidentais e podem ser diferentes do que normalmente são. O senso comum não é unívoco em relação a isso. Por um lado, parece óbvio dizer que a dor é essencialmente uma sensação subjetiva. Apenas filósofos e psicólogos poderiam sugerir seriamente que ela poderia ser mais bem definida em termos de estímulo-resposta ou função cerebral. Mas por outro lado, o senso comum também diria que uma experiência subjetiva da dor que alguém não se incomodasse em ter e que não causasse perturbação não seria sentir dor. Seu neurologista está certo em ser cético. E afinal de contas, apenas temos a palavra de David em que nos basear. Por que deveríamos confiar em sua habilidade em reconhecer suas sensações internas como as mesmas que tinha quando se machucava antes do acidente? O cerne da questão, entretanto, está na relação entre o interior e o exterior. Pode parecer fácil dizer que a dor é definida pela sensação daquele que sofre, e que isso tem uma ligação essencial com comportamentos como tentar escapar e fazer caretas. Mas essa solução é muito apressada. Já que se a dor é, na verdade, uma sensação, então por que seria inconcebível experimentar a dor sem qualquer dos comportamentos associados? Não basta dizer que ela deve se manifestar de alguma maneira; é preciso dizer por que ela deve fazer isso. Até conseguir isso, a dor maluca permanece como uma possibilidade.

206


Ver tambĂŠm 23. O besouro na caixa 26. Depois da dor 32. Libertem Simone 39. A vidente chinesa

207


69. O horror – O horror! O horror! Muitos especularam sobre o que inspirou o coronel Kurtz a proferir essas famosas últimas palavras. A resposta está no que ele compreendeu pouco antes de dar seu último suspiro. Naquele momento, ele compreendeu que o passado, o presente e o futuro eram todos ilusões. Nenhum momento no tempo jamais se perde. Tudo o que acontece existe para sempre. Isso significava que sua morte iminente não seria o fim. Sua vida, uma vez vivida, sempre existiria. E assim, de certa forma, a vida que ele vivera seria vivida outra vez, e outra vez, repetindo-se eternamente, sempre exatamente da mesma forma, e assim sem qualquer esperança de aprender, mudar ou corrigir os erros do passado. Se Kurtz tivesse feito de sua vida um sucesso, ele poderia ter suportado tal revelação. Poderia olhar para seu trabalho e ter pensado “isso é bom”, e ir para seu túmulo sereno em seu triunfo sobre a morte. Mas o fato de ele, em vez disso, ter reagido com horror testemunhava sua falha em superar os desafios da existência mortal. – O horror! O horror! – Você reagiria de outra forma ao pensamento do eterno retorno? Fontes: Assim falou Zaratustra, de Friedrich Nietzsche (1891); No coração das trevas, de Joseph Conrad (1902)

Como crítica literária e metafísica, essa interpretação das últimas

palavras de Kurtz, do romance No coração das trevas, de Joseph Conrad, é no máximo uma especulação completa. Na pior das hipóteses, pura invenção. Não conheço qualquer prova textual de que é assim que deveríamos compreender as enigmáticas últimas palavras de Kurtz. Apesar de Nietzsche parecer ter acreditado piamente na

208


idéia do eterno retorno, ela não é considerada pela maioria dos críticos como um de seus melhores momentos. Ainda assim, a hipótese do eterno retorno e como reagiríamos a ele é um artifício interessante para nós examinarmos. Mesmo se nossas vidas não estão destinadas a ser repetidas infinitamente, se nós podemos ou não suportar a idéia de que ela fosse é, para Nietzsche, um teste de se nós superamos a vida. Só o “super-homem”, que tem autodomínio e controla seu próprio destino, pode olhar para sua vida com satisfação suficiente para aceitar seu eterno retorno. É importante lembrar que Nietzsche não está falando de uma espécie de O dia da marmota. Nesse filme, Bill Murray se encontrava todos os dias no mesmo dia, mas cada vez tinha a oportunidade de fazer as coisas de maneira diferente. Portanto, ele tinha a possibilidade de redenção, de fugir do ciclo, aprendendo finalmente a amar. A forma de retorno de Nietzsche é uma em que não há consciência de que uma pessoa esta fazendo as mesmas coisas outra vez, e não ha oportunidade de fazer de outra maneira. É literalmente a mesma vida, exatamente, vivida repetidas vezes. Nietzsche pode ter ido longe demais quando sugeriu que só o superhomem, que nunca existiu, poderia aceitar isso. Na verdade, é interessante quantas pessoas, mesmo aquelas que passaram por maus bocados, dizem: “Se pudesse, faria tudo exatamente do mesmo jeito. Não mudaria nada.” Isso contradiz a afirmação direta de Nietzsche sobre a intolerabilidade do eterno retorno. Talvez não seja Nietzsche que esteja errado, entretanto, mas aqueles que abraçam com alegria seus erros passados. Pois quando realmente tentamos imaginar as experiências ruins de nossos passados, os erros terríveis que cometemos, as coisas dolorosas que fizemos, as indignidades que sofremos, não é insuportavelmente doloroso? Não é simplesmente a falta de imaginação, ou pelo menos nossa habilidade de suprimir memórias dolorosas, que evita que sejamos tomados pelo “horror” do passado? O super-homem aceita a idéia do retorno sem os filtros e lentes protetoras que nos protegem das dores da lembrança. É por isso que Nietzsche acreditava que o super-homem era tão raro, e porque o resto de nós reagiria como Kurtz ao pensamento de a história se repetindo ao infinito.

209


Ver também 20. Condenado à vida 34. Não foi minha culpa 65. O poder do espírito 88. Total falta de memória

210


70. A visita do fiscal Quando o fiscal da vigilância sanitária visitou a pizzaria de Emílio e a fechou imediatamente, nenhum de seus amigos podia acreditar que ele deixara isso acontecer. Afinal, ele sabia que uma fiscalização era iminente, então por que será que não tinha Iimpado as coisas? A resposta de Emilio foi simples. Disseram a ele que um fiscal o visitaria de surpresa em algum dia antes do fim do mês. Ela não poderia ser no dia 31, pois se o fiscal não tivesse ido até então, a vistoria só poderia ser naquele dia, não seria surpresa. Se o dia 31 estava de fora, o mesmo tinha de acontecer com o 30, pelo mesmo motivo. A fiscalização não podia ser no dia 30, então se não acontecesse até dia 29, só sobraria o 30, e, outra vez, não seria uma surpresa. Mas então, se a vistoria não podia ser no dia 30 ou no 31, também, não podia ser no dia 29, pelas mesmas razões. Seguindo esse raciocínio. Emilio chegou à conclusão de que não havia dia para que a visita acontecesse. Ironicamente, ao concluir que não era possível uma fiscalização de surpresa, ele teve uma surpresa desagradável quando um dia o fiscal entrou por sua porta. O que estava errado em seu raciocínio? Fonte: O muito discutido “paradoxo da prova surpresa” tem suas origens em um programa de radio sueco da época da guerra.

A resposta curta a esse enigma é que as pessoas no dia-a-dia não

são tão cuidadosas em sua escolha de palavras quanto um especialista em lógica. De “surpresa” os fiscais queriam apenas dizer que não diriam a Emilio com antecedência em que dia seria feita a visita. Se antes do fim do mês só restasse o dia 31 para a fiscalização e ela não fosse uma surpresa completa, não importava.

211


Muitos filósofos diriam que essa é uma resposta nada interessante, já que não resolve o problema, apenas o dissolve na vaga sopa do discurso comum. Mas eu acho que essa resposta é pouco generosa. É sempre bom nos lembrarmos de que as ambigüidades e áreas cinza da linguagem às vezes são necessárias para que consigamos dar sentido ao mundo, apesar de essas mesmas imprecisões poderem, em outras ocasiões, entrar no caminho do entendimento. Contudo, é verdade que essa resposta deixa o difícil problema sem solução. E se a promessa de uma visita surpresa fosse feita de maneira bastante literal, de forma que qualquer visita resultante que não fosse uma surpresa como a ocorrida no dia 31 contradissesse a promessa de uma visita surpresa? Talvez a idéia de uma fiscalização de surpresa seja apenas incoerente. Sob esse ponto de vista, o raciocínio de Emilio estava perfeito, e o que ele concluiu era verdade; não pode haver fiscalização de surpresa. Portanto, o aviso com antecedência de uma fiscalização surpresa não pode ser feito sem implicar algum tipo de contradição. A solução parece clara, mas ela é solapada pelo fato de que é óbvio que pode haver uma fiscalização de surpresa, como Emilio descobriu, com grande prejuízo. Se a promessa foi feita e cumprida, parece difícil afirmar que ela era incoerente. Também há uma possibilidade intrigante de que a pessoa que raciocina ser impossível haver uma fiscalização surpresa apenas muda a fonte da surpresa. No dia 29, por exemplo, Emilio teria concluído que não era possível fazer uma fiscalização de surpresa no dia 30, ou no dia 31. Mas isso ainda significa que uma fiscalização, apesar de não ser surpresa, poderia ser feita em quaisquer dos dias restantes. E como ele não pode saber em qual dos dois ela será, ela ainda seria uma surpresa se acontecesse no dia 30. Mesmo uma fiscalização no dia 31 ainda poderia ser uma surpresa, já que, ao concluir que uma fiscalização surpresa naquele dia era impossível, se mesmo assim houvesse uma visita, ela seria uma surpresa. Entretanto, o que talvez seja mais surpreendente seja que um enigma que parece um truque lingüístico prova ser logicamente muito mais complexo do que aparenta à primeira vista.

212


Ver tambĂŠm 16. Tartarugas corredoras 25. Buridan ĂŠ um asno 42. Pegue a grana e corra 94. O imposto de Sorites

213


71. Suporte de vida O dr. Grey estava deprimido. Um de seus pacientes terminais estava sendo mantido vivo por uma máquina. Antes de perder a consciência pela última vez, ela pediu repetidas vezes para que a máquina fosse desligada. Mas o comitê de ética do hospital declarou que seria errado tomar qualquer ação com a intenção de encurtar a vida de um paciente. Grey discordou com o comitê e ficou chateado por terem ignorado os desejos da paciente. Ele também achava que adiar a morte com a máquina era apenas prolongar a agonia de seus amigos e parentes. Grey ficou ali olhando triste para sua paciente. Mas então algo estranho aconteceu. Um faxineiro do hospital sem querer tirou da parede a tomada da máquina que mantinha o paciente vivo. A máquina emitiu uns bipes de aviso. O faxineiro, perturbado pelo som, olhou para o médico ali perto em busca de orientação sobre o que fazer. – Não se preocupe – disse Grey, sem hesitação. – Pode continuar. Está tudo certo. E na verdade, para Grey, agora estava tudo certo. Pois ninguém havia tomado qualquer ação deliberada para encurtar a vida do paciente. Tudo o que ele estava fazendo para deixar desligada a máquina que foi desconectada da energia foi não tomar qualquer atitude para prolongá-la. Ele agora tinha o resultado que desejava, sem contrariar as instruções do comitê de ética. Fonte: Causing Death and Saving Lives, de Jonathan Glover (Penguin, 1977)

uma diferença clara entre matar e deixar morrer, mas essa diferença é sempre moralmente significativa? Se nos dois casos a morte era o resultado desejado, fruto de uma decisão deliberada, as pessoas que tomaram a decisão não são culpadas da mesma forma?

214


No caso do dr. Grey, parece estranho fazer uma distinção marcante entre matar e deixar morrer. Ele queria desligar a máquina que prolongava a vida e deixar o paciente morrer. Na verdade, ele apenas não tornou a ligar a máquina, com a mesma intenção e o mesmo resultado. Se seria errado agir para provocar a morte do paciente, então é igualmente errado deixar de fazer algo fácil para evitar a morte do paciente? Ou, para falar de outra maneira, se é moralmente justificável deixar o paciente morrer, sem dúvida seria igualmente justificável ter desligado a máquina. Contudo, as leis sobre eutanásia diferenciam profundamente matar e deixar morrer. Isso tem a conseqüência bizarra de que médicos podem parar de alimentar pacientes em estado vegetativo permanente, literalmente matando-os de fome, mas não podem administrar uma injeção letal e matálos rapidamente. Nos dois casos, o paciente não tem consciência e não iria sofrer. Ainda assim, é difícil ver como parar de alimentar alguém pode ser algo eticamente superior a uma morte rápida e indolor. Pode-se alegar que, apesar de nem sempre haver uma diferença moralmente significativa entre matar e deixar morrer, é importante por razões legais e sociais não sancionar qualquer morte deliberada. Há algumas áreas éticas indefinidas, como esse caso da máquina que mantinha o paciente vivo, mas a sociedade precisa de regras, e o melhor e mais claro lugar para demarcar esse limite é entre matar e deixar morrer. Em alguns casos difíceis isso pode significar que teremos resultados insatisfatórios, como com o paciente do dr. Grey. Entretanto, isso é melhor do que abrir a porta para que médicos possam matar deliberadamente. Ainda assim, como ele pressupõe que a diferença entre matar e deixar morrer é a melhor maneira de distinguir entre um tratamento ético e antiético para com os pacientes, esse argumento traz a questão: por que não fazer com que os princípios básicos sejam aqueles que minimizam o sofrimento e respeitam os desejos dos pacientes? Qualquer que seja nossa conclusão, o caso do dr. Grey mostra que, de uma perspectiva ética, a diferença entre matar e deixar morrer está longe de ser um problema.

215


Ver também 15. Heroísmo comum 29. Dependência de vida 53. Problema duplo 89. Mate e deixe morrer

216


72. Libertem Percy

– Hoje iniciei meu processo contra meu chamado dono, o sr. Polly, com base no artigo 4 (1) da Convenção Européia de Direitos Humanos, que diz que “Ninguém deve ser mantido em escravidão ou servidão”. "Desde que o sr. Polly me capturou na Venezuela, fui mantido contra minha vontade, sem dinheiro ou posses que pudesse chamar de minhas. Como isso pode ser certo? Sou uma pessoa exatamente como vocês. Sinto dor. Tenho planos. Tenho sonhos. Posso falar, pensar e sentir. Você não trataria os seus iguais dessa forma. Então por que permite que abusem tão abertamente de mim? “A resposta que escuto é: 'Por que você é um papagaio, Percy.' Sim, na verdade, sou um papagaio. Apesar de sua convenção ser sobre direitos humanos, do começo ao fim ela fala de 'todos', e por todos ela quer dizer 'todas as pessoas'. Mas o que é uma pessoa? Antigamente se achava que apenas os brancos eram verdadeiras pessoas. Pelo menos esse preconceito foi der rotado. Sem dúvida uma pessoa é qualquer ser inteligente que tenha razão e raciocínio e possa se reconhecer como si mesmo. Eu sou um ser assim. Sou uma pessoa. Negar minha liberdade somente com base em minha espécie é um preconceito que não é mais justificado que o racismo.” Fonte: Livro dois, capítulo XXVII de An Essay Conceming Human Undetstanding, de John Locke (5. ed., 1706)

Se der ouvidos aos otimistas ou aos pessimistas em relação à ciência

biológica, você vai acreditar que Percy não é uma possibilidade distante. Quem sabe quando a engenharia genética vai tornar possível criar uma espécie de papagaio superinteligente ou, mais provavelmente, chimpanzés?

217


Se e quando isso acontecer, será que estaremos produzindo pessoas? “Pessoa” não é a mesma categoria de “ser humano”. Este identifica uma espécie biológica, o anterior aparentemente algo menos específico psicologicamente. Veja como reagimos a alienígenas inteligentes na ficção científica, como os klingons de Jornada nas estrelas. “Eles também são pessoas” parece ser não apenas uma resposta razoável, mas a certa, ao passo que seria falso dizer que “eles também são humanos”. De um ponto de vista moral, que categoria é mais importante? Considere a moralidade de torturar um klingon. “Tudo bem, ele não é humano” sem dúvida me parece moralmente ultrajante, ao passo que “Não faça isso, é uma pessoa” parece moralmente mais justo. Se essa linha de raciocínio está certa, então não apenas deveríamos soltar Percy, mas devemos repensar como julgamos a nós mesmos e aos outros animais. Primeiro, a idéia de que nossa importância moral está em nossa natureza enquanto pessoas mais que enquanto seres humanos se encaixa bem na idéia de que nossa identidade é determinada não por nossos corpos físicos, mas por aquelas características do eu que são essenciais para ser uma pessoa: pensamento, sentimento e consciência. É isso de que precisamos para continuar a existir como pessoas, não de nossos corpos. Em segundo lugar, o argumento de Percy em relação ao racismo sugere que o "especismo" e uma possibilidade real. O especismo ocorreria sempre que usássemos o fato de uma criatura ser de um gênero biológico diferente para justificar tratá-la de maneira diferente, quando essa diferença biológica é moralmente irrelevante. Na verdade, nenhum outro animal tem características de uma pessoa suficientes para se qualificar à proteção da Convenção Européia dos Direitos Humanos. Entretanto, muitos animais não apenas sentem dor, mas podem, até certo ponto, se lembrar e antecipar. Não seria possível dizer que isso por si só significa que estejamos moralmente obrigados a levar essa dor em consideração e não causá-la desnecessariamente? E se não fazemos isso, simplesmente porque os animais em questão não são humanos, não somos culpados de especismo? A acusação pede uma resposta, apesar de não haver grandes perspectivas de que ela chegue aos tribunais.

218


Ver também 5. O porco que quer ser comido 32. Libertem Simone 54. O eu ilusório 65. O poder do espírito

219


73. Ser um morcego Como é ser um morcego? Tente imaginá-lo. Talvez você se veja muito pequeno, com formas de morcego, pendurado de cabeça para baixo no interior de uma caverna com centenas dos seus amigos. Mas isso não chega nem perto. O que você parece imaginar é habitar o corpo de um morcego, não ser um morcego. Uma das razões para sentir dificuldade é que, como morcego, você não tem linguagem, ou, se formos mais generosos, apenas uma linguagem primitiva de guinchos e gritos. Não apenas você não tem uma linguagem pública para articular seus pensamentos. Você não tem pensamentos interiores – pelo menos nenhum que empregue qualquer conceito lingüístico. Outra razão, talvez a parte mais difícil de todas, é que os morcegos se localizam por ecolocalização. Os guinchos que emitem funcionam de maneira semelhante a um radar e os informa sobre que objetos há no mundo pelo som que bate nos objetos e retorna até eles, Como é experimentar o mundo dessa forma? Pode ser concebível que as percepções do morcego são como nossas percepções visuais, mas isso não seria muito provável. Lima terceira razão, ainda mais bizarra, é que o morcego veja uma espécie de tela de radar, como no cockpit de um avião. A explicação mais provável é que perceber o mundo por meio da ecolocalização é ter uma experiência totalmente diferente da de um ser humano. Será que você pode sequer começar a imaginar isso? Fonte: “What is it like to be a bat” de Thomas Nagel, reimpresso em Mortal Questions (Cambridge University Press, 1979)

O convite a imaginar o mundo perceptivo do morcego foi feito pela

primeira vez em um trabalho famoso do filósofo nort5americano Thomas Nagel chamado “Como é ser um morcego?”. A dificuldade -

220


se não a impossibilidade – de dar uma resposta supostamente reflete um problema intratável da filosofia da mente. O estudo científico da mente ainda está, se não na infância, no máximo na pré-adolescência. De muitas formas, hoje compreendemos muito. Em particular, não há dúvida de que a mente depende de um cérebro em funcionamento e fizemos grandes avanços no mapeamento do cérebro: identificamos que regiões são responsáveis por quais funções da mente. Mas, apesar disso, algo chamado problema mente-corpo ainda persiste. Isso quer dizer que sabemos que há algum tipo de relação muito íntima entre a mente e o cérebro, mas ainda parece muito misterioso como algo físico como o cérebro pode produzir as experiências subjetivas das mentes. O morcego de Nagel ajuda a cristalizar o problema. Podemos chegar a compreender completamente como funciona o cérebro do morcego e como ele vê por meio de ecolocalização, mas essa explicação física e neural completa não nos dá qualquer idéia de como é ser um morcego. Assim, em um sentido importante, seríamos incapazes de entrar na mente do morcego, mesmo se compreendêssemos tudo sobre o funcionamento de seu cérebro. Mas como isso pode acontecer se as mentes dependem de nada mais que um cérebro em funcionamento para existir? Explicando de outra maneira, as mentes se distinguem pela perspectiva em primeira pessoa que têm do mundo. Toda criatura consciente percebe o mundo do ponto de vista de algum “eu”, tenha esse conceito de eu ou não. Mas o mundo físico se caracteriza puramente em termos de terceira pessoa – tudo nele é um “ele” ou “ela”.* É por isso que uma descrição de um cérebro e seu funcionamento pode ser completa – porque inclui tudo o que pode ser capturado por um ponto de vista de terceira pessoa – contudo deixa de fora o que parece ser mais crucial à experiência – o ponto de vista de primeira pessoa. O que isso tudo mostra? Será que é que a mente sempre irá iludir uma explicação científica, porque os pontos de vista da consciência e da ciência são totalmente diferentes? Ou será apenas que ainda não *No original, “he”, “she” or “it”. (N. do T.)

221


desenvolvemos uma estrutura para compreender o mundo de maneira científica que capture tanto o ponto de vista da primeira quanto da terceira pessoas? Ou ainda que a mente simplesmente não faz parte do mundo físico? A primeira possibilidade pode parecer prematuramente pessimista; a segunda nos deixa com esperança de um meio futuro que pode nem mesmo ser compreendido; e a terceira parece insultar tudo o que sabemos sobre a conexão íntima entre a mente e o cérebro, Encontrar um caminho adiante parece tão difícil quanto tentarmos nos imaginar na mente de um morcego. Ver também 13.Tudo em preto, branco e vermelho 21. A terra dos epifênios 59. Está nos olhos 68. Dor maluca

222


74. Água, água por toda parte A Nasa o chamou de “Terra Gêmea”. O planeta recém-descoberto não apenas era mais ou menos do mesmo tamanho do nosso, ele tinha um clima similar e a vida lá se desenvolvera de maneira quase idêntica. Na verdade, havia até países onde as pessoas falavam dialetos de inglês. Terra Gêmea tinha gatos, frigideiras, butritos, televisões, beisebol, cerveja e – pelo menos parecia – água. Sem dúvida tinha um líquido claro que caía do céu, enchia rios e oceanos, e matava a sede dos humanóides nativos e dos astronautas da Terra. Quando esse líquido foi analisado, descobriu-se que não era H2O, mas uma substância muito complexa chamada H2No. Por isso a Nasa anunciou que sua declaração anterior de que havia sido encontrada água em Terra Gêmea estava errada. Algumas pessoas dizem que se parece com um pato e grasna como um pato, então é um pato. Nesse caso, a ave em questão bateu asas e grasnou, mas não era um pato. Entretanto, as manchetes dos tablóides ofereceram uma interpretação: “É água, mas não como conhecemos.” Fonte: "The meaning of meaning”, de Hilary Putnam, reimpresso em Philosophical Papers, VoI. 2: Mind, Language and Reality (Cambridge University Press, 1975)

Afinal, H2No é ou não é água? Mais especificamente, o que isso

importa? Problemas como esses são vistos por muitos como exemplos da preocupação pouco saudável dos filósofos com questões de simples semântica. Qual a diferença de chamarmos o H2No de água ou não? Faz diferença se você está interessado na origem dos significados. A maioria de nós não tem uma teoria explícita do significado, mas

223


ainda assim aceitamos uma teoria simples: que os significados das palavras são como definições que carregamos em nossas cabeças. Por exemplo, digamos que eu, equivocadamente, acredite que uma enxaqueca é apenas uma dor de cabeça forte. Eu poderia, então, dizer: “Estou com uma enxaqueca terrível.” Se me disserem que, na verdade, eu não tenho enxaqueca, posso reconhecer meu erro, mas ainda teria a sensação de que sabia o que eu queria dizer quando falei que tinha. O erro é uma combinação errada entre a definição correta e aquela que eu internalizara. O que estabelece o significado de uma palavra, por conta disso, é sua definição, e definições são o tipo de coisa que pode ser guardado na mente tanto quanto em dicionários. Entretanto, o caso do H2N0 desafia essa explicação. Deve ficar claro que quando terráqueos e terráqueos gêmeos pensam “Isto é água”, eles estão tendo pensamentos sobre duas substâncias diferentes. A água da Terra e a água da Terra Gêmea não são a mesma coisa – elas apenas compartilham do mesmo nome. Agora, imagine a Terra e a Terra Gêmea há mil anos. Nenhuma delas sabia qual era a composição química da água. Portanto, se pensar sobre o que estava passando pela cabeça de alguém que pensasse “isso é um copo de água”, seria o mesmo tanto no caso do terráqueo quanto no do terráqueo gêmeo. Mas agora imagine uma pessoa de cada planeta pensando isso sobre o mesmo copo de «água". Se for H2No, o terráqueo gêmeo estaria tendo um pensamento verdadeiro, mas o do terráqueo seria falso, já que não é o que chamamos de água. Mas isso significa que eles não podem estar tendo o mesmo pensamento, já que o mesmo pensamento não pode ser ao mesmo tempo falso e verdadeiro. Se essa linha de raciocínio está correta – e parece bastante convincente – temos um resultado surpreendente. Como o que se passa pela cabeça do terráqueo e do terráqueo gêmeo é exatamente a mesma coisa, mas seus pensamentos são diferentes, isso significa que os pensamentos não estão inteiramente dentro da cabeça! Pelo menos parte de um pensamento – a que fornece o significado das palavras – na verdade está lá fora no mundo. Então a questão de se H2No é água não é apenas de mera semântica. Como você responde a eIa determina se significados e pensamentos estão, como costumamos acreditar, carregados em nossas cabeças,

224


ou fora de nossas cabeças, no mundo. Isso pode literalmente tirar o pensamento de sua mente. Ver também 11. O iate Teseu 23. O besouro na caixa 63. Você sabia? 68. Dor maluca

225


75. O anel de Giges Herbert pôs o anel de Giges no dedo e foi imediatamente surpreendido pelo que viu: nada. Ele tinha ficado invisível. Pelas primeiras horas, ele saiu por aí testando sua nova invisibilidade. Uma vez, tossiu sem querer e descobriu que, aos ouvidos do mundo, ele também estava silencioso. Mas ele tinha uma massa física, e deixaria uma marca em uma almofada macia ou criaria um obstáculo para aqueles que tentassem atravessá-lo. Quando ele se acostumou à invisibilidade, começou a pensar no que poderia fazer em seguida. Para sua vergonha, as primeiras idéias que surgiram em sua mente não eram totalmente simpáticas. Podia, por exemplo, entrar nos vestiários e banheiros femininos. Podia roubar com facilidade. Também podia derrubar no chão os engravatados metidos a besta que gritam em seus celulares. Mas ele queria resistir a tais tentações primitivas, então tentou imaginar que feitos bons ele poderia realizar. Entretanto, as oportunidades aqui eram menos óbvias. E por quanto tempo ele conseguiria resistir a tirar vantagem de sua invisibilidade de maneiras menos edificantes? Tudo o que seria necessário era um momento de fraqueza e lá estaria ele: espiando mulheres peladas ou roubando dinheiro. Será que ele teria forças para resistir? Fonte: Livro dois de A República, de Platão (360 a. C.)

É tentador ver o anel de Giges como um teste de firmeza moral: como

você agiria sob o manto da invisibilidade revela sua verdadeira natureza moral. Mas até que ponto é justo julgar alguém por como eles agiriam diante de mais tentação a que a maioria das pessoas conseguiria resistir? Se formos honestos, imaginarmo-nos com o anel

226


pode revelar que somos desapontadoramente corruptíveis, mas isso não é o mesmo que dizer que, na verdade, somos corruptos. Talvez o que o anel mitológico nos permita fazer é ter alguma simpatia pelo diabo, ou pelo menos por alguns de seus legionários menos importantes. O mal comportamento das celebridades, por exemplo, atrai nossa desaprovação. Mas como podemos imaginar como é ter uma enorme riqueza, oportunidades infinitas para o prazer e bajuladores ao seu lado para satisfazer todos os seus caprichos? Podemos ter tanta certeza assim de que não iríamos acabar por nos desgraçar? Considerar como reagiríamos com o anel à nossa disposição por um determinado período pode nos fazer compreender um pouco mais nossa verdadeira condição moral. Uma coisa é confessar que, com o tempo, podemos ceder à tentação do voyeurismo clandestino; outra bem diferente é achar que a primeira coisa que faríamos era correr para o vestiário feminino mais próximo. Alguém que seguisse esse caminho difere de um tarado apenas por medo ou falta de oportunidade. Portanto, o anel nos ajuda a distinguir a diferença entre coisas em que realmente acreditamos serem erradas e aquelas que apenas as convenções, a reputação ou a timidez nos impede de fazer. Ela desnuda nossa moralidade pessoal e revela sua essência, removendo o verniz de valores que apenas fingimos manter. O que nos sobra pode ser preocupantemente pouco. Provavelmente não sairíamos por aí matando de maneira aleatória, mas um ou dois inimigos odiados poderiam não estar em segurança. Várias feministas diriam que muitos homens usariam a oportunidade para estuprar. Poderíamos não nos transformar em ladrões de carreira, mas os direitos de propriedade poderiam, subitamente, parecer menos invioláveis. Isso é pessimista demais? Se perguntar às pessoas como elas acham que as outras iriam se comportar com o anel e como elas mesmas o fariam, você na maioria das vezes vai encontrar um enorme contraste. Os outros se transformariam em amorais, ao passo que nós manteríamos nossa integridade. Quando respondemos dessa forma, estamos subestimando os outros seres humanos ou apenas nos superestimando?

227


Ver também 34. Não foi minha culpa 54. O eu ilusório 66. O falsário 85. O homem que não existe

228


76. Cérebro eletrônico Usha não se sentiria mais desconfortável na companhia de seis pedantes colegas intelectuais. Confiante, aproximou-se do pomposo erudito Timothy para testar seus novos poderes. – Usha, queridaaa – disse ele. – Hoje você está parecendo uma bela dama sem piedade! – “Tão linda, será filha de uma fada?” – respondeu lisha. – Estou lisonjeada. Porém, “seu cabelo era longo e seus passos tão leves, e selvagens seus olhos”. Quanto aos olhos, nada tenho a dizer – respondeu Usha. E de nada ter a dizer sobre meus olhos, calço 38 e sem dúvida meu cabelo é curto. Timothy foi pego de surpresa. – Não sabia que você gostava tanto de Keats – disse ele. – Parafraseando Kant – respondeu Usha –, talvez você não tenha conhecimento de como sou, mas de como pareço. – E com isso, ela foi embora e o deixou ali de pé, pasmo. Seu implante novo estava funcionando que era uma beleza: um chip sem fio de alta velocidade conectado à internet e a uma enciclopédia que respondia ao esforço de se lembrar com uma busca nessas fontes de informação onde encontrava o que estava sendo procurado. Nem Usha sabia diferenciar aquilo de que realmente se lembrava do que fora processado pelo chip. Ela também não se importava, pois agora ela era a pessoa mais erudita naquela sala, e era isso o que contava.

Usha é um engodo. Não há dúvida em relação a isso. Ela finge ter

tido e se lembrar de coisas que na verdade seu implante maravilhoso está pela primeira vez trazendo para sua mente. Mas isso significa que ela não sabe o que escreveram Kant e Keats? O fato de ela ter uma maneira pouco ortodoxa de acessar essa infor-

229


mação não mostra, por si só, que ela não tem o conhecimento, Afinal, qual é a diferença entre acessar informação armazenada em seu cérebro e informação armazenada em outro lugar, mas diretamente conectado a ele? O caso é ainda mais interessante se você aceita, como fazem muitos filósofos, que o conhecimento é uma espécie de crença verdadeira justificada. As crenças de Usha em relação a Keats e Kant são verdadeiras e ela tem tanta, se não mais, justificativa para acreditar que são verdadeiras devido à eficiência do chip se comparada ao que lembramos ser verdade devido à duvidosa eficiência de nossos cérebros. Talvez o mais interessante nesse caso não seja a questão do que Usha sabe, mas qual o papel que os fatos recordados têm na inteligência e na sabedoria, A demonstração impressionante de Usha não apenas dependeu de sua capacidade de acessar citações: ela teve de usá-las com entendimento e perspicácia. É isso que a faz inteligente, não a capacidade de regurgitar poesia e prosa clássicos. Mas ainda assim, no fundo essa história sugere que às vezes somos enganados e levados a pensar de outra forma. Usha costumava ser intelectualmente intimidada porque estava cercada de gente capaz de citar, mencionar e fazer referência a grandes obras com facilidade. Será que essas pessoas na verdade demonstram mesmo muita inteligência, ou apenas a capacidade de se lembrar? Observe que Timothy pode ter começado a conversa mencionando um poema de Keats, mas sua heroína epônima na verdade não se parecia em nada com Usha. Podemos ter outras razões para acreditar que o implante de Usha não é substituto para realmente ler grandes livros. Só quando se passa tempo com uma obra valiosa você realmente a compreende e reflete sobre o que ela realmente significa. As citações colhidas por Usha não têm qualquer compreensão dos motivos e do contexto. Então mesmo que ela possa usálas com perspicácia e espírito para envergonhar seu colega, se a conversa fosse sobre as nuances de Keats ou Kant, ela provavelmente ficaria boiando. Mas, isso é crucial, Timothy também. A questão é que só o conhecimento do conteúdo de grandes obras da filosofia ê da literatura não é indicador de sabedoria ou inteligência. Um chip de computador

230


pode ser tão eficiente em armazenar tal conhecimento quanto o cérebro humano, O que importa é o que fazemos com esse conhecimento. Ver também 3. A indiana e o gelo 30. É disso que são feitas as memórias 40. O vencedor do cavalo-de-pau 63. Você sabia?

231


77. O bode expiatório Por que Marsha tinha entrado para a polícia? Em sua mente, a resposta era clara: para proteger o público e se assegurar de que a justiça fosse feita. Essas considerações eram mais importantes que o respeito às regras. Ela dizia isso para si mesma o tempo todo, porque temia não ter a determinação de quebrar as regras para se manter fiel a seus ideais. Um bom homem cometera um erro terrível, e em conseqüência uma mulher inocente estava morta. Mas devido a uma seqüência de acidentes e coincidências, Marsha tinha provas circunstanciais e forenses suficientes para condenar outro homem pelo crime, Não apenas isso: o homem que ela poderia incriminar era um cara muito mau e perigoso, sem dúvida responsável por diversos assassinatos. Ela simplesmente nunca conseguira juntar provas suficientes para levá-lo a julgamento. Ela sabia que no cumprimento e aplicação corretos da lei não havia espaço para incriminar ninguém falsamente, mas não seria melhor botar um assassino contumaz atrás das grades do que um homem que não representava ameaça para pessoa alguma? A justiça nisso era maior do que a injustiça de negar a um assassino os benefícios de um julgamento justo. Fonte: Insônia (Insomnia), dirigido por Christopher NoIa (2002)

S

– e alguém machucasse meus filhos, eu matava. Não é raro escutar isso da boca de cidadãos normalmente respeitadores da lei. Mas em que estão pensando as pessoas que dizem isso? Algumas pessoas podem justificar isso afirmando que, apesar de eles saberem que seria errado fazer justiça com as próprias mãos, estão apenas admitindo com honestidade como se sentiriam. Outras são

232


menos defensivas, A pessoa que machucasse seus filhos mereceria tudo o que pudesse lhe acontecer. A lei poderia estar contra elas, mas não a justiça natural. Não deveria haver dúvidas de que a justiça e a moral são coisas diferentes. É por isso que leis injustas são possíveis e a desobediência civil às vezes seja algo louvável. Ainda assim, o principio da regra da lei é importante. Só em circunstâncias excepcionais devemos torcer ou violar as regras. É no melhor interesse de todos nós que seja proibido que as pessoas tomem a lei em suas próprias mãos, mesmo se o fizerem por bons motivos. Entretanto, essas considerações gerais não têm muita utilidade para Marsha, Ela pode concordar totalmente com essa análise, mas seu problema é se essas são ou não o tipo de circunstâncias excepcionais que justificam violar a lei. Como ela pode decidir essa questão? Há várias formas de justificar isso para absolver seu dolo, Por exemplo: podemos achar que quebrar as regras é permitido se houver três circunstâncias. Primeiro, isso deve levar a um resultado muito melhor do que seguir a lei. Esse parece ser o caso na situação de Marsha. Em segundo, a ação não deve estimular o desrespeito às leis em geral, Essa condição também é cumprida no caso de Marsha, enquanto seu dolo permanecer em segredo. Em terceiro, quebrar a lei deve ser o único meio de alcançar o melhor resultado, Parece que Marsha não tem outra maneira de se assegurar que essa grande ameaça termine na prisão. Então parece haver uma justificativa moral plausível para o ato proposto por Marsha. Ainda assim, a idéia de um policial e não um tribunal decidir quem deveria ser punido é repugnante. Há boas razões para isso: precisamos de salvaguardas para que os policiais não abusem de seu poder, mesmo que isso às vezes signifique que os culpados ficarão livres. Será possível que as duas coisas funcionem juntas? Talvez não seja contraditório dizer que a sociedade exige que a polícia sempre respeite as regras, mas ainda assim é bom que, secretamente, as violem. Nossa tarefa coletiva pode ser assegurar o estado de direito, mas nosso dever individual pode ser garantir que façamos o melhor, dentro ou fora da lei.

233


Ver também 7. Quando não há vencedores 17. A opção da tortura 36. Justiça preventiva 50. O suborno do bem

234


78. Apostar em Deus

E o Senhor disse para o filósofo: – Sou o Senhor teu Deus, e apesar de não teres qualquer prova de que sou quem digo ser, dar-te-ei uma razão para crer que irá interessar a teu estado decaído: uma aposta com base no interesse pessoal. “Há duas possibilidades: eu existo, ou não existo. Se acreditares em mim, seguires meus mandamentos, e eu existir, ganhas a vida eterna. Entretanto, se eu não existir, ganhas uma vida mortal, com alguns dos confortos da crença. Claro, terás perdido algum tempo na igreja e perdido alguns prazeres, mas isso não importará quando estiveres morto. Mas se eu existir, a felicidade eterna será tua. “Se não acreditas em mim e eu não existir, terá uma vida fácil e livre, mas terminarás morto da mesma forma e não viverás com a segurança na crença no divino. Entretanto, se eu existir, terás uma eternidade de sofrimentos e tormentos.” "Por isso, aposte que não existo e o melhor resultado é uma vida curta. O pior, a condenação eterna. Mas aposte que existo, por mais improvável que possa parecer, e o pior é uma vida curta, mas o melhor é uma vida eterna. E serias louco em não fazê-lo.” Fonte: Pensées, de Blaise Pascal (1660)

Em todo o mundo há gente que não freqüenta templos, estuda textos

religiosos ou mesmo segue os ensinamentos de sua religião. Ainda assim, não abrem mão de sua crença em Deus ou em deuses completamente. Por exemplo: ainda batizam seus filhos, organizam bar mitzvahs ou têm um funeral religioso. Também podem rezar em momentos de necessidade.

235


Essas pessoas podem não ter raciocinado exatamente da mesma maneira que nosso Deus jogador, mas os mesmos princípios básicos norteiam seu comportamento: é melhor manter ao menos um compromisso mínimo com Deus, só para garantir. E o mesmo raciocínio do vendedor de seguros e do apostador: não custa muito em tempo e esforço, mas pode salvar sua alma. A aposta só faz sentido se realmente existem duas possibilidades, mas é claro que não há. Há deuses demais para acreditar, e muitas maneiras de segui-los. Cristãos evangélicos, por exemplo, acreditam que você vai para o inferno se não aceitar Jesus Cristo como salvador. Então, se fizer sua aposta divina no islamismo, no hinduísmo, no siquismo, jainismo, budismo, judaísmo, confucionismo ou qualquer outra religião, vai perder se Cristo for mesmo o rei do paraíso. A aposta, claro, é a mesma: um dos resultados possíveis de fazer a escolha errada é a condenação eterna. Mas o problema agora é que você não pode se proteger contra essa eventualidade improvável, porque se escolher a religião errada, está condenado do mesmo jeito. Talvez você pense que o Deus amoroso não condenaria pessoas ao inferno por acreditar na religião errada, então qualquer uma serve. Mas um Deus bom desse jeito, que aceitasse esse tipo de erro, sem dúvida também não condenaria os ateus ao fogo eterno. Só vale a pena fazer seguro contra um Deus fundamentalista, e essas políticas só têm validade para uma divindade específica. E, além disso, é estranho que um Deus que possa ver nos recônditos mais profundos de nossas almas aceite uma crença com base apenas em um interesse próprio superficial e calculista. Com o tempo, você talvez chegasse realmente a acreditar e não apenas fingiria. A prática leva à perfeição na devoção religiosa. Mas Deus ainda reconheceria a falta de sinceridade que motivou sua crença e iria julgá-lo de acordo. Então a aposta deve ser definida com mais clareza. Sua escolha é entre acreditar em um Deus vingativo e punitivo em particular, que ordena a crença em apenas uma das religiões fundamentalistas em oposição a muitas outras concorrentes; ou acreditar que não existe Deus ou que ele não é tão egoísta para exigir que você acredite nEle antes de oferecer a possibilidade de redenção. E mesmo se apostar em

236


um Deus malvado, há uma grande variedade para escolher, e cada um deles ficaria mais chateado por você escolher um outro. Essa aposta revela-se, no fundo, ter sido feita para enganar trouxas. Ver também 24. O circulo quadrado 45. O jardineiro invisível 58. Comando divino 95. O problema do mal

237


79. Laranja mecânica Disseram claramente ao secretário de Segurança que seu plano era apoliticamente inaceitável. Mas só porque era parecido com algo que um escritor famoso descrevera em uma obra de ficção distópica, isso não era razão para descartá-lo. Da mesma forma que o processo Ludivico em Laranja mecânica, o novo programa de Terapia de Aversão ao Crime submetia criminosos contumazes a um tratamento desagradável, porém curto, que os deixava enojados ao mero pensamento do tipo de crimes que tinham cometido. Para o secretário de Segurança, não era uma situação em que dois lados sairiam ganhando. Os vencedores eram três: o contribuinte ganhava, pois o tratamento era mais barato que a prisão repetida e prolongada; o criminoso ganhava porque a vida era melhor fora do que dentro da cadeia; e a sociedade ganhava, porque alguns indivíduos problemáticos da comunidade eram transformados em cidadãos respeitadores da lei. Mas, apesar disso, as brigadas das liberdades civis reclamaram contra “lavagem cerebral” e a privação da liberdade e dignidade essenciais do indivíduo – apesar de o programa ser inteiramente voluntário. Que motivos havia, pensou o secretário, para se opor a ele? Fonte: Latanja mecânica, de Anthony Burgess (Heinemann, 1962)

Quando as pessoas falam de dignidade e liberdade, elas podem estar

descrevendo um dos dois marcos mais importantes no cenário da ética ou apenas proferindo palavras evasivas. Quando as pessoas reclamam que uma nova tecnologia é uma afronta à dignidade da humanidade, por exemplo, costumam muitas vezes estar apenas expressando sua própria aversão reflexa a algo estranho e incomum. A fertilização in vitro, por exemplo, foi rejeitada por muitos quando era novi-

238


dade, sob o argumento de que reduzia a humanidade ao nível de um espécime de laboratório. Hoje a maioria das pessoas a aceita como um tratamento desejado e eficiente para problemas de fertilidade. Por isso devemos desconfiar quando as pessoas afirmam que algo como a Terapia de Aversão ao Crime é um ataque à liberdade e à dignidade humanas. Talvez estejam apenas expressando um preconceito contra a inovação que mostra que os humanos não são tão misteriosos quanto gostaríamos de pensar, e que eles também podem ser manipulados cientificamente. É possível alegar que a terapia está apenas fazendo de modo sistemático o que costuma acontecer por acaso. Por meio de uma combinação de socialização e instinto, aprendemos a ter repulsa por certas formas de comportamento. Evitamos machucar as pessoas não por que raciocinamos que é errado fazê-lo, mas porque sentimos que sua dor deve ser evitada. Entretanto, às vezes as pessoas não aprendem essa lição. Talvez não tenham a empatia inata que permite que a maioria de nós se identifique com a dor dos outros. Ou talvez eles tenham sido insensibilizados pela violência e começaram a vê-la como algo à bom. Nesses casos, o que há de errado em instilar esses instintos que anatureza ou a criação não conseguiram desenvolver? Falar de lavagem cerebral é algo poderoso, mas parece que grande parte de nosso comportamento é alimentado por uma combinação de reforço positivo e negativo contínuo pelos pais e a sociedade em geral. Na verdade, desde o nascimento passamos por uma lenta lavagem cerebral. Só quando essa lavagem cerebral é feita rapidamente, ou com um resultado que não gostamos, ela se torna eticamente censurável. A Terapia de Aversão ao Crime não seria apenas uma versão acelerada e medicinal desse tipo de lavagem cerebral não questionada que costumamos chamar de socialização? Por razões parecidas, devemos tomar o cuidado de não exagerar em nossas reivindicações de liberdade. Não achamos que uma pessoa deixe espontaneamente de recorrer à violência apenas quando está dividida entre fazê-lo ou não fazê-lo. Uma pessoa comum, decente, sente, em vez de escolher, algum tipo de aversão a infligir um sofrimento desnecessário aos outros; não é apenas uma questão de exercer tranqüilamente o livre-arbítrio. Portanto, se um processo terapêutico

239


apenas instila o que é para a maioria das pessoas um nível comum de aversão ao comportamento criminoso, como isso pode resultar em uma pessoa menos livre que eu ou você? Para encontrar bons argumentos contra a Terapia de Aversão ao Crime, precisamos ir além de um apelo vago à liberdade e à dignidade. Ver também 17. A opção da tortura 35. Último recurso 50. O suborno do bem 97. Sorte moral

240


80. Corações e mentes Schuyler e Iryne esconderam judeus dos nazistas durante a ocupação da Holanda. Entretanto, elas o fizeram por razões bem diferentes. Tryne era uma mulher cujos atos de bondade eram absolutamente espontâneos. O sofrimento e a necessidade falavam ao seu coração e ela respondia sem pensar Os amigos admiravam seu espírito generoso, mas às vezes a lembravam que o inferno está cheio de boas intenções. – Você pode se sentir levada a dar dinheiro para um mendigo – diziam eles –, mas e se ele gastar tudo em drogas? Tryne não se abalava com essas preocupações. Diante da necessidade humana, o que você pode fazer além de estender a mão? Schuyler, por outro lado, era conhecida por ser uma mulher fria. A verdade é que não gostava de muitas pessoas, apesar de tampouco odiálas. Quando ajudava os outros, o fazia porque tinha pensado sobre a situação deles e seus próprios deveres, e concluíra que ajudar era a coisa certa a fazer. Suas boas ações não lhe provocavam qualquer animação reconfortante, apenas uma sensação de ter feito a escolha certa. Qual das duas, Schuyler ou Iryne, viveu a vida mais moral?

Pessoas

como Tryne são descritas como “boas”, “solidárias” e “generosas” com mais freqüência que pessoas como Schuyler. Sentimos que sua bondade está profundamente enraizada em suas personalidades e flui naturalmente a partir delas. A instintividade de sua generosidade sugere que a própria essência de seu ser é boa. Por outro lado, por mais que admiremos gente como Schuyler, não sentimos sua bondade da mesma forma. No máximo, podemos aprender a admirar sua disposição a se submeter ao que vêem como seu dever.

241


É interessante que respondamos dessa forma. Pois se a moralidade gira em torno de fazer a coisa certa, não há razão óbvia para achar que Tryne é moralmente mais merecedora de elogios que Schuyler. Na verdade, como foi sugerido, de seu jeito sincero e ingênuo, talvez Tryne tenha mais chances de fazer a coisa errada que Schuyler. Por exemplo, quando você viaja à África, freqüentemente encontra crianças que pedem o tempo todo lápis ou dinheiro. Tryne, sem dúvida, daria. Mas Schuyler provavelmente pensaria um pouco mais, e concluiria, como o fazem muitas agências de desenvolvimento, que esse tipo de doação estimula a dependência assim como sentimentos de inferioridade e desamparo. Ë muito melhor doar diretamente a uma escola e preservar a dignidade daqueles a quem quer ajudar. Há um segundo motivo para moderar nossos elogios a Tryne. Como age sem pensar, não seria apenas questão de sorte ela inclinar-se por agir bem? Por que deveríamos louvar alguém apenas por ter, por acaso, um conjunto de inclinações geralmente boas? E o que é pior, a menos que reflitamos sobre nossos sentimentos, será que nossos instintos não podem nos enganar? Pense, por exemplo, nas muitas pessoas na história que compartilhavam da mesma personalidade básica de Tryne, mas que foram criadas em culturas racistas. Essas pessoas eram tão irrefletidas em seu racismo quanto eram em sua bondade. Talvez possamos ir mais longe. Schuyler merece mais crédito moral exatamente porque age bem apesar de sua falta de empatia e compaixão instintivos. Se Tryne não faz esforço algum, Schuyler é o triunfo da vontade humana sobre a inclinação natural. Entretanto, reverter nosso juízo instintivo e ver Schuyler como mais moralmente digna de louvor cria problemas diferentes. Afinal, não parece estranho dizer que a pessoa cuja bondade está mais intimamente emaranhada em sua personalidade é menos virtuosa que aquela que faz o bem apenas porque conclui que deve fazê-lo? A solução habitual do dilema é simplesmente dizer que a bondade exige um casamento da mente e do coração, e que, enquanto Tryne e Schuyler manifestam algumas facetas de virtude, nenhuma oferece o modelo do indivíduo completamente ético, Isso é quase certamente verdade, mas evita o verdadeiro dilema, O que é mais importante em

242


determinar se somos seres humanos moralmente bons: como pensamos ou como sentimos? Ver também 17. A opção da tortura 18. A razão exige 50. O suborno do bem 83. A regra de ouro

243


81. Estranho sentido Os humanóides de Galafray são, de muitas maneiras, exatamente como nós. Sua percepção sensorial, entretanto, é muito diferente. Por exemplo: a luz refletida na freqüência do espectro visível aos humanos é cheirada pelos galafrianos. O que vemos como azul, eles sentem como aroma cítrico. Da mesma maneira, o que ouvimos, eles vêem. Para eles, a Nona Sinfonia de Beethoven é um show de luz psicodélico silencioso de uma beleza de tirar o fôlego. As únicas coisas que eles escutam são os pensamentos: seus próprios e os das outras pessoas. O paladar é salvaguarda dos olhos. Suas melhores galerias de arte são louvadas por suas delícias. Eles não têm o sentido do tato, mas têm outro que nos falta, chamado mulst. Ele detecta movimento e é percebido pelas juntas. É tão impossível para nós imaginar o muist quanto para os galafrianos imaginarem o tato. Quando os humanos ouviram falar pela primeira vez dessa raça estranha, não demorou para alguém perguntar: quando uma árvore cai numa floresta em Galafray, ela faz algum barulho? Ao mesmo tempo, em Galafray, eles se perguntavam: quando exibem um filme na Terra, ele tem cheiro? Fonte: A Treatise Concerning the Principies of Human Knowledge, de George Berkeley (1710)

O enigma “Se uma árvore cai em uma floresta deserta, ela faz algum

som?” é um dos mais antigos da filosofia. Por ter sido tão vulgarizado, é útil por nos permitir reconsiderar o problema de um novo ângulo. Daí a pergunta curiosa, “Quando exibem um filme na Terra, ele tem cheiro?”. Por mais esquisita que possa parecer, essa pergunta é tão pertinente quanto a clássica sobre a floresta.

244


Os enigmas surgem da compreensão de que a maneira como percebemos o mundo depende muito, se não mais, de nossas constituições que do próprio mundo, Ondas transmitidas pelo ar em determinada freqüência são traduzidas por nosso cérebro em sons. Os cães escutam coisas que não ouvimos, e não há razão lógica para que outras criaturas não possam traduzir essas mesmas ondas em cheiros, estímulos táteis ou cores, Na verdade, a sinestesia – cruzamento sensorial, no qual as cores são ouvidas ou sons vistos – ocorre em humanos de forma permanente, uma condição rara, ou temporária, provocada por drogas alucinógenas como o LSD. Diante desses fatos claros, a questão que surge é se coisas como sons existem na ausência de criaturas que o escutam. Sem dúvida o ar vibra quando uma árvore cai em uma floresta deserta. Mas se o som está nos ouvidos dos que o escutam, será que sem ouvidos não há sons? Se você quer resistir a essa conclusão e dizer que quando uma árvore cai em Galafray ela faz um som, sem dúvida também tem de dizer que, pela mesma lógica, quando um filme é exibido na Terra, ele produz um cheiro, Pois dizer que a árvore faz um som não significa que alguém escute coisa alguma. Isso só pode significar que ocorrem eventos que, caso houvesse uma pessoa presente, ela ouviria um som. E isso é suficiente para justificar a afirmativa de que, portanto, é feito um som. Mas se isso é verdade, por que não é o mesmo que um filme cheirar? Isso não é dizer que quando o filme é mostrado ninguém sinta qualquer cheiro. Isso só significa que, se uma pessoa que cheirasse o que vemos estivesse presente, ela sentiria o odor do filme. Isso parece ser tão verdadeiro quanto a afirmação que, se houvesse um humano na floresta galafriana quando a árvore caísse, ele iria ouvir algo. Essa linha de raciocínio parece levar à conclusão absurda de que o mundo está cheio de ruídos que ninguém escuta, cores que ninguém vê, texturas que ninguém sente, assim como de uma série de outras experiências sensoriais que sequer podemos imaginar. Pois não há limites para as maneiras por meio das quais as criaturas podem possivelmente perceber o mundo.

245


Ver também 21. A terra dos epifênios 28. O cenário do pesadelo 59. Está nos olhos 73. Ser um morcego

246


82. Na aba Eleanor estava felicíssima com sua nova conexão banda larga. Acostumada à conexão discada, ela adorava o fato de estar sempre conectada, e de ver como era mais rápido para navegar e fazer downloads. E isso era um bônus que, por acaso, era completamente grátis. Bem, dizer que era grátis talvez dê uma impressão um pouco errada. Eleanor nada pagava pelo serviço porque usava a conexão de internet Wi-Fi de seu vizinho, conhecida como uma rede local de internet sem fio. Isso permitia que qualquer computador em uma determinada área de alcance, se tivesse o programa e o equipamento apropriados, podia se conectar sem fio a uma conexão de internet em banda larga. O apartamento de Eleanor por acaso estava perto o suficiente do vizinho para que ela usasse a conexão. Eleanor não via isso como roubo. O vizinho tinha a conexão mesmo jeito. E ela usava apenas seu excesso de banda. Na verdade, um belo programa chamado Good Magpie se assegurava de que seu uso daquela conexão jamais reduzisse a veIocidade do vizinho mais que uma quantidade desprezível. Então ela tinha o benefício da conexão dele, que não sofria como resultado. O que poderia haver de errado nisso?

Muita gente com equipamentos Wi-Fi em seus laptops ou outros

aparelhos portáteis de vez em quando “tomam emprestado” a conexão alheia, ad hoc. Se precisam de uma conexão quando estão em trânsito, seguem pela rua em busca de um sinal e então param e checam seus emails. As empresas ou indivíduos cujas conexões eles usam nunca sabem, nem sofrem em conseqüência disso qualquer queda de desempenho. Eleanor está envolvida em algo muito mais sistemático. Ela está usando a conexão do vizinho como um meio diário de acessar a

247


internet. Ele paga enquanto ela aproveita. Isso parece extremamente injusto. Mas as ações de Eleanor não têm qualquer efeito negativo em seu vizinho. Ele tem de pagar por sua conexão de qualquer maneira, e o uso que ela faz não interfere com o dele, Vista sob essa luz, Eleanor não é mais ladra que alguém que usa a sombra projetada pela árvore do jardim do vizinho. Este é um exemplo particular do problema do Freeload. As pessoas que fazem isso se aproveitam das ações dos outros sem contribuir com elas. As vezes isso reduz a soma total dos benefícios disponíveis, e nesse caso não é difícil ver porque fazê-lo é errado. Mas em outras ocasiões, o bicão está, na verdade, apenas desfrutando de um benefício extra, e não tira coisa alguma de ninguém. Há inúmeros exemplos de fteeload como esse. Uma comunidade organiza um show gratuito no parque. Uma pessoa passa ali por acaso e aproveita a festa, da beirada da multidão, e não tira o prazer de ninguém. Mas essa pessoa não faz qualquer contribuição para pagar os custos quando passam o chapéu. Outra pessoa baixa ilegalmente uma música da internet que nunca teria comprado. O artista não perde qualquer renda, pois se ela fosse forçada a pagar, ela não teria se dado o trabalho de fazê-lo. Mas, ainda assim, ela gosta da música. Se fazer isso é um crime, parece ser um crime sem vítima. Então o que há de errado com isso? Talvez a chave não esteja em focar exemplos individuais de bicões, mas padrões de comportamento. Por exemplo, podemos não ligar se alguém usa nossa conexão Wi-Fi, se entendemos poder usar a de outras pessoas nas mesmas circunstâncias. De maneira similar, pode estar tudo bem não pagar por um show gratuito com o qual você se depara, se você faz contribuições voluntárias a outros que você se programou para ir. Enquanto, em longo prazo, tanto for dado quanto tomado, não há objeções a isso. Entretanto, no caso de Eleanor, é tudo ter sem nada dar. Ela não se oferece para, no futuro, pagar ela mesma por uma conexão que seu vizinho possa usar. Portanto, isso não é um freeload no espírito de cooperação mútua que faria com que sua utilização fosse aceitável. Suas ações manifestam uma falta de consideração pelos outros. Mas mesmo se pensarmos nisso como um pouco egoísta, não seria mesmo assim verdade dizer que seu delito é muito pequeno? Na verdade, qual-

248


quer condenação mais forte que dizer que ela se comportou de um jeito muito descarado não indicaria que nós nos tornamos incomodados e perturbados por um furto completamente inofensivo? Ver também 14. Erro bancário a seu favor 34. Não foi minha culpa 44. Até que a morte nos separe 60. Faça o que eu digo, não faça o que eu faço

249


83. A regra de ouro Constance sempre tentou observar a regra de ouro da moralidade, “faça com os outros aquilo que gostaria que fizessem com você”, ou, como Kant colocou de forma um tanto deselegante, "aja apenas segundo a máxima que você possa querer ao mesmo tempo que se torne lei universal". Agora, entretanto, ela está terrivelmente tentada por algo que parece ir contra esse princípio. Ela tem a chance de fugir com o marido de sua melhor amiga e levar toda a fortuna da família com eles. Diante disso, não era o mesmo que o que gostaria que fizessem com ela. Mas, raciocinou, as coisas são mais complexas que isso. Guando prendemos um criminoso, não estamos dizendo que também deveríamos ser presos. Estamos dizendo que deveríamos ser presos se nós estivéssemos nas mesrnas circunstâncias que o criminoso. Esse dispositivo é crucial: o contexto é tudo. Então, a pergunta que ela deveria estar se fazendo é essa: será que ela pode ”desejar que se tornasse uma lei universal” que as pessoas na sua situação devessem fugir com o marido e a fortuna de sua melhor amiga? Colocado dessa forma, a resposta parece ser sim. Ela não está dizendo que o adultério e a apropriação de valores são normalmente bons, apenas que são em sua circunstância específica. Então estamos resolvidos: ela pode fugir de consciência limpa. Fontes: Os analetos de Confúcio (séc. V a.C.); Fundamentos metafísicos da moral, de lmmanuel Kant (1785)

A

regra de ouro de Confucio aparece de várias formas em praticamente todos os sistemas éticos importantes concebidos pela humanidade, Em sua simplicidade parece oferecer uma regra-prática que todos podemos seguir.

250


O problema destacado pela situação de Constance não é apenas uma piada sofista à custa da regra. Vai ao âmago do que realmente significa o princípio. Pois em qualquer das duas interpretações, o princípio é ridículo ou vazio. Se isso significa que nunca devemos fazer à outra pessoa o que não queremos que façam conosco, não importam as circunstâncias, então não faríamos nada desagradável, como punir ou reprimir Como nos oporíamos a ser presos, não prenderíamos maníacos assassinos. Isso não faz o menor sentido. É por isso que Constance está certa em ver que há circunstâncias envolvidas. Mas como toda circunstância é um pouco diferente, todo caso é, de certa forma, único. Então tudo o que fizermos pode ser justificado com base em que concordaríamos em ser tratados da mesma forma em circunstâncias exatamente iguais. Mas então o aspecto universal da regra de ouro desaparece, e a regra torna-se vazia. Então deveríamos buscar um caminho intermediário? Isso teria de envolver alguma idéia de similaridade relevante. Deveríamos fazer como gostaríamos que fizessem conosco em uma situação que, apesar de não ser exatamente a mesma, é similar das maneiras moralmente relevantes. Então, por exemplo, apesar de todos os assassinatos serem diferentes, eles são relevantemente similares em relação às questões morais fundamentais. É necessário ter uma abordagem como essa para que a regra de ouro funcione, mas o que temos agora está longe de ser uma regra simples e transparente. Pois identificar similaridades não é uma tarefa fácil, e não são apenas aqueles em busca de desculpas para fazer o mal que podem reivindicar uma diferença crucial relevante. Os assuntos humanos são extremamente complexos e se não conseguimos observar as particularidades de cada caso, corremos o risco de não conseguir fazer justiça a todos. Então estamos de volta a Constance. Sua justificativa parece servir muito bem apenas a ela mesma. Mas e se a melhor amiga de Constance na verdade for uma mentirosa descarada que já roubou uma fortuna da conta bancária da família? E se ela estivesse fazendo da vida do marido um inferno? Sob essas circunstâncias, a decisão de Constance parece mais um ato de heroísmo que de egoísmo.

251


O dilema de Constance reflete um desafio para qualquer um que tente respeitar princípios morais: como equilibrar a necessidade de seguir princípios gerais com a necessidade igualmente importante de ser sensível às particularidades de cada situação? Ver também 18. A razão exige 44. Até que a morte nos separe 80. Corações e mentes 91. Ninguém se machuca

252


84. O princípio do prazer É típico. Você espera por anos por uma chance em sua carreira e, então, surgem duas oportunidades ao mesmo tempo. Finalmente tinham oferecido a Penny dois cargos de embaixadora, ambos em pequenos países insulares nos mares do sul, de tamanho, geologia e climas parecidos. Raritaria tinha leis severas que proibiam sexo extraconjugal, bebidas, drogas, diversões populares e mesmo boa comida. O país permitia apenas os "prazeres mais elevados" da arte e da música. Na verdade, ele os promovia, o que significava que tinha orquestras, uma ópera, galerias de arte e teatro "autêntico" de qualidade internacional. Rawitaria, por outro lado, era um deserto cultural e intelectual. Entretanto, era conhecida como o paraíso do hedonista. linha restaurantes excelentes, um circuito agitado de cabarés e espetáculos humorísticos, e atitudes liberais em relação ao sexo e às drogas. Penny não gostou de ter de escolher entre os prazeres mais elevados de Raritaria e os mais rasteiros de Rawitaria, pois ela gostava de ambos. Na verdade, um dia perfeito para ela com binária boa comida, boa bebida, cultura elevada e diversão popular. Mas ela precisa escolher. Então, forçada a se decidir, qual vai ser? Beethoven ou bisteca? Rossini ou martíni? Shakespeare ou Britney Spears? Fonte: Utilitarismo, de John Stuart Mill (1863)

Em qual desses estranhos países pequenos é mais fácil viver uma

boa vida? Você pode achar que é uma simples questão de preferência. Que os amantes da arte sigam para Raritaria, e os animais festeiros para Rawitaria. Os que gostam de um pouco de cada – a maioria de nós – têm de decidir o que valorizam mais, ou pelo menos aquilo sem o que achariam mais fácil viver.

253


Entretanto, se isso é apenas uma questão de gosto e disposição, por que os prazeres mais elevados atraem subsídios governamentais ao passo que os mais rasteiros costumam ser pesadamente taxados? Se o prazer que obtemos ao ouvir uma ópera de Verdi não vale mais que o prazer de escutar o Motorhead, então por que não há tantos subsídios para shows de rock quanto para a Royal Opera House? Pensamentos como esse levaram muitos à conclusão de que há algo superior nos prazeres “mais elevados” do intelecto e da apreciação estética refinada. Entretanto, se esse ponto de vista é questionado, é difícil surgir com uma justificativa para a distinção entre mais elevado/rasteiro. Suspeitase de que isso seja apenas preferência, esnobismo ou elitismo disfarçado de juízo objetivo. O problema foi abordado por John Stuart Mill, o filósofo utilitarista, que achava que o objetivo da moralidade era aumentar a maior felicidade do maior número. O problema que encarou foi que a filosofia parecia valorizar uma vida cheia de prazeres rasos e sensuais acima de uma vida com menos prazeres, porém mais intelectuais. O gato satisfeito teria uma vida melhor do que um artista inquieto. A solução foi distinguir entre a qualidade e a quantidade de prazer. Uma vida repleta apenas dos prazeres mais baixos era pior do que uma com apenas alguns dos mais elevados. Isso ainda nos deixa com o problema da justificativa: por que esta é melhor? Mill propôs um teste. Deveríamos perguntar o que juízes competentes decidiriam. Aqueles que haviam experimentado tanto os prazeres mais baixos quanto os mais elevados eram os que estavam em melhor situação para determinar quais eram superiores. E como sugerem os rótulos de mais elevado e mais rasteiro, ele acreditava saber como eles iriam decidir. Se Mill está certo, Penny, como juíza competente, teria de escolher Raritaria. Ela poderia se arrepender da perda dos prazeres mais simples, mas a incapacidade de experimentar os mais elevados a incomodaria mais. E a opinião dela tem mais peso do que aqueles que nunca apreciaram a arte elevada, ou os que nunca se permitiram os prazeres mais básicos, Mas será que Penny iria tomar essa decisão? E seu julgamento iria realmente nos dizer algo sobre a uperioridade geral dos prazeres superiores sobre os inferiores?

254


Ver também 7. Quando não há vencedores 20. Condenado à vida 26. Depois da dor 52. Mais ou menos

255


85. O homem que não existe – Meritíssimo, a defesa de meu cliente é muito simples. Ele reconhece que realmente escreveu em sua Coluna no jornal que “o atual técnico da seleção inglesa é um mentiroso, um idiota e uma desgraça nacional”. Ele também admite ter prosseguido e dito que ele “deveria ser morto”. Mas ao fazer isso, ele de forma alguma atacou o querelante, o sr. Glenn RobsonKeganson. “É fácil ver a razão para isso. Quando o artigo foi escrito e publicado, a pessoa do técnico da seleção inglesa não existia. O sr. Robson-Keganson tinha apresentado sua demissão dois dias antes e seu pedido fora aceito, Essa notícia foi divulgada no dia em que o artigo do réu foi publicado.” “O querelante alega que as acusações feitas por meu cliente eram falsas, Mas não eram falsas ou verdadeiras, pois não eram sobre qualquer pessoa. Na verdade, seria mais preciso dizer que elas nada significaram. 'Flar.flar é um cavalo de corridas' é verdade se ‘Flar-flar for um cavalo de corrida, falso se não for, e sem qualquer significado se não existir tal animal. “Portanto, o júri deveria encerrar este caso. Simplesmente não faz sentido sugerir ser possível caluniar e difamar alguém que não existe. Caso encerrado.” Fonte: "On Denoting", de Bertrand Russell, em Mind 14 (1905), publicado em diversas antologias e disponível na internet.

Especialistas em lógica não são como pessoas comuns. Quando a

maioria das pessoas fala, está satisfeita por se fazer compreender, e pelo fato de os outros em geral saberem o que está querendo dizer, mesmo se às vezes colocar as coisas de um jeito um pouco estranho ou impreciso. Os especialistas em lógica, por outro lado, frustram-se com os caprichos e ambigüidades da linguagem do dia-a-dia. A ques-

256


tão é que, insistem eles, seus detalhes aparentemente triviais têm implicações. Considere a defesa desse processo aberto por Glenn RobsonKeganson. Provavelmente o júri iria rejeitá-la com base no fato de que sabemos quem ele queria dizer por «o atual técnico da seleção inglesa». Mas vamos tomar suas palavras literalmente e aceitar que não havia tal pessoa na época. Será que eles não continuariam a insistir em que as alegações eram falsas? Se não havia tal pessoa, afirmar que ele era um “mentiroso, um idiota e uma desgraça nacional” não seria, sem dúvida, inexato? Entretanto, se acreditarmos nisso, na verdade há implicações, do tipo que perturbaram muito Bertrand Russell quando ele considerou a verdade da afirmação «o atual rei da França é careca se a Gália é uma república. O problema é que, em lógica, a negação de uma afirmação falsa é verdadeira. Por exemplo, se “o Sol gira ao redor da Terra” é falso, então claro que «o Sol não gira ao redor da Terra» é verdadeiro. Entretanto, isso significa que se «o rei da França é careca» é falso, então “o rei da França não é careca” deve ser verdadeiro. Mas não pode ser verdade que o rei da França é careca, porque não existe tal monarca. Então parece que afirmativas como “o rei da França é careca” quando não existe rei e o “atual técnico da seleção inglesa é um mentiroso” quando tal técnico não existe não são verdadeiras ou falsas. Se uma afirmação não é verdadeira nem falsa, isso significa que ela não tem sentido? Você pode achar que sim, mas sem dúvida o significado da afirmação “o atual técnico da seleção inglesa é um mentiroso” é perfeitamente claro. E uma afirmação que não faz sentido, cujo significado seja claro, parece ser uma contradição de base. Portanto, as implicações do enigma aparentemente inócuo de como e se tais afirmativas podem ser verdadeiras ou falsas se prolongam e se multiplicam. Ainda nem sequer tocamos na ligação com a idéia de que palavras correspondem a objetos no mundo, e que a verdade ou falsidade das afirmativas depende de se essa correspondência é mantida. Claro que o enigma não pode ser solucionado aqui. Entretanto, uma coisa é clara. Se você acha esses problemas triviais, mais que absorventes, não estude lógica ou filosofia da linguagem.

257


Ver também 23. O besouro na caixa 45. O jardineiro invisível 47. Coelho! 74. Água, água por toda parte

258


86. Arte pela arte Marion estava costumada ao inconveniente de descobrir restos arqueológicos em projetos de construção. Mas nada a havia preparado para isso. No dia em que encontraram aquele poço, ela recebeu uma mensagem que explicava o que havia em seu interior. Lá no fundo, repousava uma caixa selada que continha uma estátua de Michelangelo. A caixa possuía várias armadilhas diferentes escondidas: abri-la detonaria uma bomba; ela também continha um gás que, se exposto ao oxigênio, explodi ria; além de outros mecanismos engenhosos. No fim das contas, o fato é que a obra de arte jamais poderia ser revelada, pois qualquer tentativa de fazê-lo, ou de mover a caixa, iria destruí-la. Mas uma bomba relógio perigosa como essa não podia ser deixada embaixo do que iria se tornar um hospital. Então parecia haver apenas duas soluções: abandonar o hospital e deixar a obra de arte em segurança, mas longe dos olhos, ou destruí-la com segurança. Naquelas circunstâncias, não parecia haver muita escolha para Marion além de ordenar que o esquadrão antibomba provocasse uma explosão controlada. Mas ela não conseguia deixar de pensar que seria melhor para a estátua permanecer intacta, mesmo se ninguém pudesse vê-la.

A maioria de nós acha que obras de arte têm valor, e não apenas no

sentido monetário. Grandes obras de arte merecem ser preservadas, e indivíduos e governos pagam grandes somas de dinheiro para adquiri-las, restaurá-las e preservá-las. Mas será que elas têm valor por si próprias, ou seu valor está no que fazem para aqueles que as observam? E tentador pensar que elas são valiosas por si só: o David de Michelangelo não perderia seu valor

259


artístico se ninguém jamais o tivesse visto. Mas mesmo se um David nunca visto ou que nunca pudesse ser visto fosse uma grande obra de arte, qual seria a razão de sua existência? Pode ter beneficiado de alguma forma seu criador, mas depois de sua morte, para quem ou para que serve uma obra que ninguém pode admirar? Estabelecer a diferença entre a qualidade da obra e a razão de sua existência é crucial para ver o dilema de Marion, pois há pouca dúvida de que a estátua na caixa é uma obra de arte de razoável qualidade. O que está em questão é se há alguma razão para essa obra de arte existir se ninguém pode vê-la. Os preservacionistas dirão que o mundo é um lugar melhor pela simples virtude da existência da estátua. Os que defendem a demolição contra-atacam, dizendo que isso é absurdo: o mundo fica melhor pelos efeitos que as obras de arte têm sobre aqueles que as vêem. Se as pessoas não podem se deleitar com a arte, ela não serve para coisa alguma. Você poderia fechar todos os museus para sempre e dizer que é suficiente que as pinturas e esculturas que estão dentro deles existam. Tampouco importaria que quadros sejam mantidos fora de vista em coleções particulares ou em cofres de museus. Os preservacionistas retrucariam: para eles, o fato de ser melhor que as pessoas vejam a arte do que não vejam não significa que a arte que não é vista não tem valor, Um museu aberto é melhor do que um museu fechado, mas um fechado é melhor do que museu nenhum. A dúvida incômoda permanece: será que não precisamos de apreciadores de arte para que a arte tenha valor? Imagine outro cenário: um vírus mortal extermina a vida na Terra, e não há mais vida no Universo. O mundo permanece cheio de arte, mas sem ninguém para vê-la, Se o David caísse de sua base e se espatifasse em um milhão de pedaços, será que esse mundo desolado ficaria pior do que quando vigiado por seu olhar de mármore? Se ficamos inclinados a achar que sim, não seria apenas porque nos imaginamos lá, e dessa maneira inserimos na experiência de pensamento uma consciência que deveria estar ausente dela? Não estamos cometendo o mesmo erro daqueles que olham para um cadáver e o imaginam como ainda sendo a pessoa que já deixou de existir?

260


Ver também 12. Picasso na praia 37. A natureza é o artista 48. O gênio do mal 66. O falsário

261


87. Desigualdade justa John e Margaret estavam comprando os presentes de Natal de seus três filhos: Matthew, de 14 anos, Mark, de 12, e Luke, de 10. Os pais amorosos sempre procuraram tratar seus filhos com igualdade. Este ano, tinham previsto gastar $100 com cada um deles. No inicio, parecia que as compras transcorreriam sem problemas, pois logo acharam o que estavam procurando: consoles de videogame portáteis PlayBoy a $100 cada. Quando estavam a caminho da caixa com três, John percebeu uma oferta especial. Se comprasse dois consoles dos novos modelos de ponta, o PlayBoyPlusMax, a $150 cada, ganharia de brinde um PlayBoy original inteiramente grátis. Eles gastariam a mesma quantia de dinheiro, mas receberiam produtos melhores. – Não podemos fazer isso – disse Margaret. – Seria injusto, já que um dos meninos ganharia menos que os outros. – Mas Margaret – disse John, empolgado com a possibilidade de pegar emprestados os novos brinquedos dos filhos –, como isso pode ser injusto? Dessa maneira, nenhum deles recebe um presente pior do que receberia antes, e dois deles ainda saem em vantagem. Se não pegarmos a oferta, dois dos garotos vão ficar em uma situação pior. – Quero que todos sejam iguais – respondeu Margaret. – Mesmo que isso signifique que eles serão prejudicados? Fonte: A Theory of Justice, de John Rawls (Harvard University Press, 1971)

Muitos acham a igualdade algo desejável, mas atualmente poucos

aceitam que a igualdade seja perseguida a qualquer custo. Isso porque parece haver algo intencionalmente perverso em alcançar a igualdade nivelando por baixo. Poderíamos com facilidade tornar todos iguais apenas deixando todo mundo tão pobre quanto a pessoa

262


mais pobre na sociedade. Mas isso obviamente parece uma coisa tola a fazer porque não ajuda a qualquer pessoa. Os mais pobres permanecem tão pobres quanto antes e todo o restante sai prejudicado. Entretanto, só por aceitarmos que nem sempre pode valer a pena impor a igualdade, isso não significa que devemos simplesmente aceitar sem questionar toda a desigualdade. O que precisamos perguntar e quando a desigualdade é aceitável. A explicação de John a Margaret de por que eles deveriam tratar seus filhos de maneira diferente fornece uma resposta. A desigualdade é permitida quando ninguém sai prejudicado, mas alguns são beneficiados. Isso é muito parecido com o que o filósofo político John Rawls chamou de “princípio da diferença”. Em essência, ele diz que as desigualdades são permitidas apenas se beneficiam os menos favorecidos. Entretanto, não está claro se isso se aplica a Matthew, Mark e Luke. No plano de presentes original, eles formam uma microssociedade sem classes na qual todos são ao mesmo tempo o mais e o menos favorecido. O plano de comprar a promoção do PIayBoyPlusMaX na verdade aquinhoa dois dos menos favorecidos, mas não ajuda em nada o terceiro. Então será verdade dizer que o plano, em um todo, beneficia os menos favorecidos? Claro, há diferenças importantes quando o principio e aplicado na arena política e na familiar. Na sociedade em geral, o argumento de john parece intuitivamente convincente. Dentro de uma família, entretanto, pode haver razões para priorizar mais a igualdade, já que em grupos muito pequenos as desigualdades são sentidas com mais força e provocam tensões. Entretanto, essa mesma consideração se estende ao domínio político. Pois uma razão para ser contra a desigualdade é exatamente o efeito que ela tem na coesão social e na auto-estima dos pobres. Como os psicólogos sociais observaram, apesar de materialmente as pessoas não piorarem se seus vizinhos enriquecem, sem prejuízo para elas, podem ser psicologicaitiente afetadas por sua maior consciência do abismo de riqueza entre eles. Ver a igualdade e a desigualdade apenas em termos materiais pode, portanto, ser um erro terrível, tanto na política quanto nas famílias.

263


Ver também 7. Quando não há vencedores 10. O véu da ignorância 22. O bote salva-vidas 55. Desenvolvimento sustentável

264


88. Total falta de memória Arnold Conan tinha acabado de fazer uma descoberta desagradável: ele não era Arnold Conan. Ou melhor, ele não costumava ser Tudo era bastante confuso. Esse é o melhor sentido que ele conseguia fazer de sua auto-biografia incomum. Quando nasceu, chamava-se Alan E. Wood. Wood era um homem desagradável em todos os sentidos: egoísta, cruel, insensível e interesseiro, Dois anos antes, Wood havia se metido em uma grande encrenca com a polícia. Como resultado, ele pôde escolher: passar o resto da vida em uma prisão de segurança máxima, aonde iriam se assegurar de que ele fosse atormentado pelos outros presidiários; ou ter sua memória apagada e substituída pela de uma criação totalmente fictícia dos agentes da polícia. Ele escolheu a segunda opção. E assim Alan E. Wood recebeu uma anestesia geral e, quando acordou, tinha se esquecido de tudo sobre sua vida até então. No lugar disso, lembrava-se de um passado inteiramente fictício, o de Arnold Conan, o homem que, agora, ele acreditava ser. Conan constatara que esses eram os fatos. Mas ele ainda não sabia quem era: Wood ou Conan? Fontes: O vingador do futuro (Total Recall), dirigido por Paul Verhoeven (1990); “We Can remember lt For you Wholesale”, de Philip K. Dick, em lhe Collected Short Stories of Philip K. Dick, VoI, 2 (Carol Publishing Corporation, 1990)

A crise de identidade de Conan/Wood é uma das piores possíveis.

Parece que ou ele é alguém muito desagradável sobre quem nada sabe, ou a criação fictícia das agências de segurança. A primeira intuição de muita gente é que Conan realmente é Alan E. Wood. Isso é compreensível. Nossa identidade costuma seguir aquela de nossos cérebros e corpos. Como a vida do organismo batizado de

265


Alan E. Wood ao nascer continuou sem interrupção, e não há outra pessoa na terra que tenha pretensões sobre seu nome, parece que Conan é Wood. Afinal, se ele não é Wood, onde está Wood? Onde está o cadáver? Ninguém foi morto. O caso também pode ser reforçado pelo conhecimento de que Arnold Conan é a criação de agentes e neurologistas. Tudo o que ele se lembra de sua infância, por exemplo, nunca aconteceu realmente. Conan parece tão irreal quanto Wood parece real. Então será que pode haver alguma dúvida de que Conan seja Wood, apesar de mentalmente alterado além de qualquer reconhecimento? Na mente de Conan/Wood, certamente. Pois qualquer que seja a lógica ditada por nossa razão, ele se sente como Conan, não Wood. Ele não experimentaria, por exemplo, qualquer desejo de ter seu velho eu restaurado. Na verdade, pode ficar horrorizado pela idéia de que poderia tornar a ser novamente o homem amoral que era antes. Antes de dizermos que ele está simplesmente em negação da verdade, considere que ele viveu como Conan por dois anos; nem todo o seu passado é fictício. Considere também como é fácil que as pessoas sofram de amnésia. Se você recebesse uma pancada na cabeça e perdesse todas as memórias de seu passado até dois anos antes, você certamente seria mudado pela experiência, mas não seria totalmente transformado em outra pessoa. Então não é difícil ver como Conan/Wood pode ser visto como Wood. Conan existe há apenas poucos anos, e todas as suas memórias anteriores a esse período são falsas, O fato de que ele começou como uma criação artificial não nega o fato de que ele viveu por dois anos como um verdadeiro ser humano,. Se podemos defender as duas posições, como decidir qual a mais convincente? Se fizermos perguntas diferentes, temos respostas diferentes. Os amigos de Wood o reconhecem como o homem que conheciam antes? Com quem a nova mulher de Conan acha que se casou? O que os credores de Wood diriam? Quem Conan/Wood acha que é? Em vez de perguntar quais são os fatos, talvez devêssemos perguntar qual dessas questões é a mais importante, e assim qual das respostas é aquela que devemos aceitar.

266


Ver também 2. Teletransporte 30. É disso que são feitas as memórias 54. O eu ilusório 65. O poder do espírito

267


89. Mate e deixe morrer Greg tem apenas um minuto para fazer uma escolha torturante. Um trem desgovernado está se aproximando velozmente do entroncamento onde ele está parado. Um pouco mais abaixo daquela linha, longe demais para ele conseguir chegar a tempo e avisar, há quarenta homens trabalhando em um túnel. Se o trem os alcançar, sem dúvida irá matar muitos deles. Greg não pode deter o trem. Mas pode puxar a alavanca e desviá-lo para outra linha. Mais abaixo desta, em outro túnel, há apenas cinco homens trabalhando. O número de mortos sem dúvida será menor. Mas se Greg puxar a alavanca, estará, deliberadamente, escolhendo levar a morte àquele grupo de cinco. Se não tocá-la, não será ele a causar mortes entre os quarenta. Ele deve ser o responsável pela morte de poucos, ou permitir que um número maior morra. Mas não é pior matar pessoas do que simples. mente deixá-las morrer? Os trilhos estão vibrando, o barulho da locomotiva está cada vez mais alto. Greg tem poucos segundos para fazer sua escolha. Matar ou deixar morrer? Fonte: “The Problem of Abortion and the Doctrine of Double Effect”, de Philippa Foot, reimpresso em Virtues and Vices (Oxford University Press, 2002)

O dilema de Greg às vezes evoca intuições fortes para os dois lados.

Para alguns, é óbvio que ele deve puxar a alavanca. Se fizer isso, é quase certo que reduzirá o número de mortos, e isso é, sem dúvida, o que uma pessoa racional e moral deve fazer. Para outros, se Greg puxar a alavanca ele está se colocando na

268


posição de Deus, decidindo quem deve viver e quem deve morrer. Sem dúvida devemos tentar salvar vidas, mas não se fizermos isso apenas matando outras pessoas. Se nós justificamos matar pelas vidas dos outros que serão salvas, entramos em terreno escorregadio. O problema com a segunda linha de raciocínio é que parece que Greg vai escolher quem morre se puxar a alavanca ou não. Ele não está resolvendo assumir o papel de Deus, isso foi jogado sobre ele. O importante aqui não é se ele age ou não, mas que ele tem o poder de agir ou não e que, seja qual for sua decisão, deve assumir a responsabilidade por sua escolha. É verdade que somos igualmente responsáveis pelo que poderíamos fazer, mas decidimos não fazer, quanto pelo que fazemos? Se sei que um copo de água está envenenado e vejo que você vai bebê-lo, eu não seria tão responsável por sua morte se o deixasse ir em frente quanto se o encorajasse a beber? Se vejo uma criança andando sem rumo no meio de uma estrada movimentada e sigo em frente, quando poderia facilmente tê-la puxado de lá para cima da calçada, não sou pelo menos parcialmente responsável por sua morte? E não seria enganoso dizer que Greg seria responsável pelas mortes dos trabalhadores nos trilhos se puxasse a alavanca, mas não teria qualquer responsabilidade se nada fizesse? Mesmo assim, se não fizermos uma distinção moral entre matar e deixar morrer, não há repercussões mais desconfortáveis? A mais óbvia delas é que se achamos que os médicos estão certos ao permitir que doentes terminais morram em vez de prolongar suas vidas contra sua vontade, por que também não é certo ajudá-los a ter uma morte fácil e sem dor, se eles o pedissem? Uma menos óbvia, mas que chama ainda mais atenção, é o argumento de que somos responsáveis pelas mortes de pessoas no mundo subdesenvolvido, que deixamos morrer por falta de água, alimento e remédios que poderíamos facilmente fornecer a elas sem um grande custo para nós. Se afirmar que há uma enorme diferença entre matar e deixar morrer não parece razoável, afirmar que não há qualquer diferença cria um novo conjunto de dilemas morais.

269


Ver também 15. Heroísmo comum 29. Dependência de vida 53. Problema duplo 71. Suporte de vida

270


90. Uma coisa quem não sabemos o que é George Bishop estava olhando fixamente e com atenção para a fruteira cheia de laranjas e pensou tanto que elas desapareceram no ar. Ele começou com uma distinção óbvia entre as características das laranjas que são meras aparências e aquelas propriedades que elas realmente têm. A cor, por exemplo, é uma mera aparência: sabemos que os daltônicos, ou animais com fisiologias diferentes, vêem algo bem diferente da experiência humana normal do “laranja”. Os sabores e cheiros também são meras aparências, pois também variam de acordo com quem ou o que percebe a fruta, enquanto a fruta em si permanece a mesma. Mas quando ele começou a tirar as “meras aparências” das frutas, ele se viu com muito pouco, e esse pouco tendia a desaparecer Será que ele podia sequer falar do verdadeiro tamanho e forma das frutas, quando essas características parecem depender de como seus sentidos da visão e do tato as percebem? Examinar realmente a fruta em si, independente de meras aparências ou percepção sensorial, deixou-o com a idéia vaga de alguma coisa que ele não sabia o que era. Então o que é a fruta real, essa “alguma coisa” tênue ou, no fim das contas, uma coleção de meras aparências? Fonte: The Principies of Human Knowledge, de George Berkeley (1710)

Não é necessário refletir muito para estabelecer a diferença entre

aparências e realidade. Quando crianças, somos “realistas ingênuos”, que acreditam que o mundo é apenas o que aparenta. Quando crescemos, aprendemos a distinguir entre a maneira com que as coisas se parecem aos nossos sentidos e a maneira que elas realmente são.

271


Algumas dessas – como a diferença entre as coisas que são realmente pequenas e aquelas que estão apenas longe – são tão óbvias que mal são notadas. Outras, por exemplo, a maneira como o sabor e a cor de uma coisa variam de acordo com quem a percebe, nós sabemos, apesar de a ignorarmos ou esquecermos no dia-a-dia. Ao desenvolver uma compreensão científica básica do mundo, provavelmente passamos a ver essa diferença em termos da estrutura subatômica oculta dos objetos e a maneira como eles se parecem para nós. Podemos estar levemente conscientes de que essa própria estrutura atômica é explicada em termos de estrutura subatômica, mas não precisamos nos incomodar com os detalhes de nossa ciência atual mais avançada. Tudo o que precisamos saber é que a maneira com que as coisas se afiguram é uma função da interação entre nossos sentidos e a maneira que realmente são. Isso é pouco mais que senso comum maduro, mas é um senso comum que encobre alguns detalhes importantes. A realidade foi diferenciada das aparências, mas ainda assim não temos uma idéia clara do que é essa realidade. Você pode achar que isso não tem problema. A divisão intelectual do trabalho significa que deixamos essa tarefa para os cientistas. Mas será que nesse caso os cientistas não estariam tanto em um mundo de aparências quanto nós? Eles também estudam o que se apresenta aos nossos cinco sentidos. O fato de que eles têm instrumentos que os permite examinar o que não é visível a olho nu é uma tentativa de desviar do assunto. Quando olho por um telescópio ou por um microscópio estou tão preso ao mundo das aparências quanto quando vejo sem auxiliares da visão. Os cientistas não estão olhando além do mundo de aparências; estão apenas olhando para esse mundo mais de perto do que normalmente fazemos. Esse é um problema filosófico, não científico, Parecemos entender a diferença entre o mundo de aparências e o mundo como ele é, mas parece impossível ver esse “mundo real” por trás das aparências. Quando compreendemos que a lua está longe, que não é pequenina, ou que o bastão enfiado na água não está curvado, não estamos indo além das aparências, estamos apenas aprendendo como algumas aparências são mais enganadoras que outras.

272


Isso nos deixa com um dilema. Devemos permanecer comprometidos com a idéia de um mundo além das aparências, e aceitar que não temos idéia do que é esse mundo, e sequer conseguir imaginar como podemos chegar a conhecê-lo? Ou desistimos dessa idéia e aceitamos que o único mundo em que podemos viver e que podemos conhecer é, afinal de contas, o mundo das aparências? Ver também 28. O cenário do pesadelo 51. Viver em um tanque 81. Estranho sentido 98. A máquina de experiência

273


91. Ninguém se machuca Scarlett não conseguia acreditar em sua sorte. Desde que se lembrava, sempre fora apaixonada por Brad Depp. Agora, para sua surpresa, tinha esbarrado com ele em sua casa de férias escondida nas Bahamas, quem nem os papatazzi sabiam que existia. Além disso, quando Brad viu a mulher que andava solitária na praia, ofereceu um drinque a ela e, enquanto conversavam, ele se revelou tão charmoso quanto ela imaginara. Então ele admitiu que tinha ficado um pouco solitário nas últimas semanas, e apesar de, devido a seu estilo de vida, aquilo ter de permanecer em segredo, gostaria muito que ela passasse a noite com ele. Havia apenas um problema: Scarlett era casada com um homem que amava muito. Mas o que os olhos não vêem, o coração não sente, e ele jamais saberia. Ela teria uma noite de fantasia e Brad um pouco de conforto. Todos permaneceriam ou como são ou sairiam mais ricos pela experiência. Ninguém sofreria. Com tanto a ganhar e nada a perder, que razão poderia haver na Terra para Scarlett resistir aos fabulosos “olhos de venha para a cama” de Brad?

Se

alguém confia em você, o que vai ser perdido se trair essa confiança? Como Scarlett está tentada a ver, às vezes, nada. Se seu marido permanecer ignorante de seu encontro amoroso secreto, então sua confiança nela permaneceria intacta. Se «ninguém vai se machucar», raciocina ela, por que não ir em frente? Isso pode parecer frio, pode parecer calculista, mas essas maneiras de pensar são comuns. Coisas que normalmente consideraríamos erradas podem parecer perfeitamente aceitáveis, enquanto temos certeza de que ninguém vai se machucar. Então, por exemplo, uma pessoa

274


que nunca roubaria um banco aceitaria uma grana preta que um caixa eletrônico com defeito lhe desse, raciocinando que o banco não iria sentir muita falta daquele dinheiro e que nenhum indivíduo sofreria em conseqüência disso. Será que essa é a melhor maneira de determinar a moralidade de nossas ações: calcular as conseqüências em termos de felicidade e infelicidade e seguir o modo de ação que aumente a primeira e mimimize a segunda? O sistema tem o mérito da simplicidade, mas também parece esconder algumas das dimensões mais sutis de nossas vidas morais. Considere a natureza da confiança. Muitas pessoas diriam que a confiança mútua é uma das coisas mais importantes em seus relacionamentos íntimos. Na maior parte das vezes, sabemos de imediato quando essa confiança é quebrada. Se confiamos que alguém gaste nosso dinheiro com inteligência, por exemplo, logo percebemos se ele foi gasto em algo inútil. Isso é confiança, mas não do tipo mais profundo, porque não dependemos apenas da confiança para nos assegurar de que nossos desejos sejam respeitados: podemos ver se eles não foram. Por outro lado, a confiança mais profunda é precisamente a disposição de depositar nossa fé em alguém mesmo sem ter condições de dizer se eles mantiveram ou não sua palavra. Esse é o tipo de confiança que prescinde da rede de segurança da abertura total e da revelação. Tal confiança é essencial se formos encontrar a segurança na fidelidade, pois, como todos sabemos, as infidelidades costumam ser mantidas em segredo, às vezes para sempre. Então se Scarlett tiver sua noite de paixão com Brad, ela terá traído a confiança mais profunda de todas. O fato de que seu marido nunca iria descobrir é exatamente o que faz com que sua traição seja profunda, pois a confiança nessas circunstâncias é a mais profunda possível. E ainda assim, “ninguém se machuca”. A confiança pode ter sido traída, mas ela não é de carne e osso. Como Scarlett pode não machucar ninguém, e ainda assim destruir a parte mais importante de seu relacionamento mais valioso?

275


Ver também 7. Quando não há vencedores 34. Não foi minha culpa 44. Até que a morte nos separe 83. A regra de ouro

276


92. Governo automático É loucura pensar que nos dias duros de antigamente, ministros que talvez conhecessem muito pouco de economia tinham a responsabilidade de tomar decisões importantes sobre questões como gastos e impostos. Foi uma evolução quando o poder de estabelecer taxas de juros transferiu se para os bancos cem trais. Mas a verdadeira ruptura veio quando os computadores tornaram-se bons o bastante para administrar a economia com mais eficiência que as pessoas. O supercomputador Greenspan 2, por exemplo, controlou a economia norteamericana por vinte anos, e durante esse período o crescimento foi constante e acima da média de longo prazo: não havia bolhas de preços ou quebradeiras e o desemprego permaneceu baixo. Talvez então não tenha sido surpresa quando todas as pesquisas de opinião (conduzidas por computadores e muito precisas) mostraram que o líder na corrida para a Casa Branca é um computador – ou pelo menos alguém que promete deixar que o computador tome todas as decisões. Bentham, como ele é conhecido, é capaz de determinar os efeitos de todas as políticas sobre a felicidade geral da população. Seus defensores afirmam que ele vai remover totalmente os humanos da política. E como computadores não têm falhas de caráter ou interesses escusos, Bentham será um grande avanço sobre os políticos que substituiria. Até o momento, nem os democratas nem os republicanos conseguiram encontrar um argumento contrário convincente.

A idéia de deixar que computadores administrem nossas vidas parece um pouco assustadora para a maioria de nós. Ao mesmo tempo, na prática, nós nos confiamos o tempo inteiro aos computadores. Nossas finanças são administradas quase completamente por computadores, e hoje muita gente confia que os caixas eletrônicos contabilizem suas transações com mais precisão que um bancário humano. Os com-

277


putadores também controlam estradas de ferro, e se você voar pode não ter consciência de que por longos períodos os pilotos não fazem coisa alguma. Na verdade, os computadores poderiam com facilidade lidar com aterrissagens e decolagens, mas os passageiros ainda não aceitam a idéia de que eles o façam. Então a idéia de que os computadores podem dirigir a economia não é tão estranha assim. Afinal, a maior parte dos economistas já confia muito em modelos e previsões de computador. A distância entre agir a partir da informação gerada por máquinas e deixar as máquinas agirem por nós é pequena. Será que um dia um computador conseguirá substituir todos os políticos? Essa é a proposta mais radical da campanha presidencial de Bentham. Se um computador pudesse calcular os efeitos da política sobre a felicidade da população, por que ele então não poderia fazer simplesmente o que nos agradasse mais? Dispensar totalmente os humanos não é tão fácil, O problema é que é preciso estabelecer os objetivos para o computador, E o objetivo da política nem sempre é fazer o máximo possível de pessoas felizes. Temos, por exemplo, de decidir quanta desigualdade estamos preparados para tolerar. Uma política pode fazer mais pessoas felizes no total, mas à custa de deixar 5% da população em condições terríveis. Podemos preferir uma sociedade um pouco menos feliz, mas na qual ninguém precise viver uma vida miserável. Um computador não pode decidir qual desses resultados é melhor, Só nós podemos fazer isso. Além do mais, é provável que o resultado desejável mude de acordo com as circunstâncias. Quanto mais rica se torna uma sociedade, por exemplo, mais intolerável pode ser permitir que alguém não tenha as coisas mais básicas. Também, quanto mais ricos nos tornamos, mais podemos achar que temos a obrigação de ajudar os outros países menos prósperos. Mesmo se o computador soubesse o que nós desejamos, isso não encerraria a discussão. Pois uma sociedade democrática deve simplesmente seguir o desejo da maioria, ou as opiniões da minoria também devem ser levadas em conta? Se devem, como fazê-lo? Pode chegar o dia, talvez mais cedo do que imaginemos, em que os computadores sejam capazes de administrar a economia e até os

278


serviços públicos melhor do que as pessoas. Mas é muito mais difícil ver como eles poderiam decidir o que é melhor para nós e acabar para sempre com todos os políticos. Ver também 9. Big Brother radical 10. O véu da ignorância 36. Justiça preventiva 87. Desigualdade justa

279


93. Zumbis Lúcia morava em uma cidade em que as luzes estavam sempre acesas, mas ninguém nunca estava em casa. Ela vivia entre zumbis. Isso não era tão assustador quanto pode parecer. Esses zumbis não eram os monstros devoradores de carne dos filmes de terror. Eles se pareciam e se comportavam exatamente como eu e você. Eles tinham até a mesma fisiologia que eu e você. Mas havia uma diferença fundamental: eles não tinham mentes. Se você os espetasse, diziam iriam e faziam uma careta, mas não sentiam dor. Se você os perturbasse, eles iriam chorar ou ficar com raiva, mas não haveria qualquer transtorno interior Se você tocasse para eles uma música tranqüila, eles pareceriam desfrutar dela, mas em suas mentes nada escutariam. Por fora, eram humanos comuns, mas por dentro, nada acontecia. Isso fazia com que fosse muito fácil lidar com eles. Era fácil esquecer que eles não tinham vidas interiores como ela, já que falavam e se comportavam como pessoas comuns e isso incluía referências a como eles se sentiam ou o que pensavam. Visitantes na cidade também não conseguiriam perceber coisa alguma estranha. Mesmo quando Lúcia contava a eles o segredo, eles se recusavam a acreditar nela. – Como você sabe que eles não têm mentes? – perguntavam eles. – Como você sabe que outras pessoas têm? – seria a reposta de Lúcia. Isso costumava calá-los.

“Como você sabe?” costuma ser uma pergunta muito boa. Também

é, infelizmente, muito difícil responder de maneira conclusiva. Raramente, talvez nunca, sabemos algo além de qualquer dúvida. O melhor que podemos esperar é ter boas razões para aquilo em

280


que acreditamos. Razões melhores, pelo menos, do que as que existem para se acreditar no contrário. É por isso que não sentimos que precisamos nos preocupar com a possibilidade de que estejamos vivendo entre zumbis, Mesmo se for possível que estejamos, enquanto tivermos mais razões para crer que não estamos, podemos evitar com segurança nos preocupar com possibilidades improváveis. Os motivos para pensar que outras pessoas não são zumbis são principalmente de economia. Se andam como nós, falam como nós e têm cérebros e corpos como nós, então há grandes chances de que eles sejam igual a nós em todos os aspectos significativos, incluindo a maneira como eles sentem as coisas por dentro. Seria muito estranho se o sistema nervoso que me dá consciência não fizesse o mesmo pelos outros. Entretanto, esse é exatamente o ponto em que a possibilidade do zumbi se torna interessante. Pois por que. deveríamos achar que as semelhanças físicas sejam indicativas de semelhanças mentais? O problema da consciência está exatamente em parecer inexplicável que entidades puramente físicas como cérebros deveriam produzir experiências subjetivas. Por que a atividade de fibra-C no cérebro deveria provocar qualquer sensação? O que tem esse evento cerebral a ver com a sensação de dor? Se essas questões parecem sérias e sem respostas satisfatórias, então deveríamos deduzir a partir delas que não há nada logicamente contraditório em imaginar eventos cerebrais como a atividade das fibras-C sem qualquer sensação concomitante. Em outras palavras, a idéia de zumbis – pessoas como nós em todos os aspectos físicos, mas que não têm qualquer vida interior – é perfeitamente coerente, E, portanto, a possibilidade que as outras pessoas sejam tais zumbis, por mais improvável que seja, é real. Como nos filmes de terror, matar zumbis não é tarefa fácil, Para descartar a possibilidade de sua existência, você precisa mostrar por que essa criatura que tem a mesma fisiologia que nós também deve ter a mesma psicologia básica. Isso significa, por exemplo, mostrar por que a atividade das fibras-C deve provocar uma sensação de dor, e não ver a cor amarela, ou mesmo nada. É um desafio que, até agora, ninguém conseguiu enfrentar com satisfação total dos filósofos. Até

281


que alguém consiga, não podemos ter certeza de que zumbis não andam sobre a Terra. Ver também 19. Fora da bolha de vidro 32. Libertem Simone 39. A vidente chinesa 68. A dor maluca

282


94. O imposto de Sorites Um pronunciamento em rede nacional do ministro das Finanças, lorde Sorites. “Nosso país vive um momento de taxações e impostos. O último governo nos deixou com as finanças públicas arruinadas e uma grande necessidade de levantar receitas extras. Mas vocês, o povo, não querem pagar a conta, Então como conseguir o dinheiro de que precisamos sem fazer com que vocês sofram com isso? A resposta é simples. Grupos de estudo, pesquisas de opinião e economistas mostraram que cobrar uma taxa de 0,01% tem um efeito desprezível na renda pessoal. Ninguém com uma vida confortável terá de se sacrificar, nenhum rico ficará pobre, e ninguém que já faz sacrifícios terá de fazer mais se pagar 0,01% a mais de impostos. Então hoje vamos aumentar o imposto de renda em 0,01%. E, logicamente, como essa pequena quantia faz pouca diferença para a pessoa que ganha 0,01% menos quanto para você, podemos repetir o passo amanhã, quando você estiver na posição de uma pessoa insignificantemente mais pobre. E vamos fazer assim depois de amanhã, e depois, pelos próximos 300 dias. Cada vez que aumentarmos os impostos, vamos fazê-lo de maneira que não faça qualquer diferença em sua qualidade de vida. Assim, ela não vai ser afetada. Ainda assim, milagrosamente, o efeito final dessas medidas será um grande aumento na arrecadação do governo, que pretendemos usar para reduzir a dívida pública e ainda vai sobrar um troco para pagar uma bebida para todos no país. Espero que vocês a usem para fazer um brinde à nossa engenhosidade.” Fonte: O antigo paradoxo Sorites, atribuído a Eubulides de Mileto (séc. lVa.C.)

283


Um político que fizesse um pronunciamento como esse não deveria

esperar ganhar votos. Mesmo que sua matemática não tenha calculado que ele, na verdade, está propondo um aumento de impostos de 3%, ninguém seria enganado de que 300 pequenos aumentos de imposto não se somariam em uma grande elevação. Mas é difícil encontrar falhas na lógica do ministro. Ela acompanha a lógica do antigo paradoxo Sorites. No original, pergunta-se se remover um grão de areia de um monte faz com que este deixe de ser um monte (talvez uma pequena pilha). A resposta parece ser não. Mas isso significa que você poderia continuar a retirar grãos de areia, um por um, até sobrar apenas um, e isso ainda seria um monte. Uma solução parece ser que, em algum ponto do processo, remover um grão de areia significa que não temos mais um monte. Mas isso parece absurdo, Daí surge o paradoxo: se um grão faz diferença, é um absurdo; se não faz, um único grão pode ser um monte, o que é igualmente absurdo. Entretanto, isso não chega ao âmago do problema. O paradoxo é que nenhuma mudança mínima na renda pode ser suficiente para fazer diferença entre alguém estar bem ou mal de vida. O paradoxo é exatamente o contraste entre o que é óbvio quando nos afastamos e vemos o efeito cumulativo de pequenas mudanças e quando nos aproximamos e vemos que cada um deles não tem qualquer efeito. Quando confrontadas com esse paradoxo, a maioria das pessoas se convence de que é apenas um artifício lingüístico ou que há outro truque em ação. Entretanto, o enigma deveria ser encarado de maneira mais séria. Muitos afirmam que a saída exige que aceitemos a indefinição de muitos conceitos, como rico e pobre, alto ou baixo, monte ou pilha. O problema com essa solução é que, se nos permitirmos indefinições demais na linguagem e na lógica, o próprio raciocínio torna-se indefinido. A alternativa – que pequenas mudanças podem fazer a diferença entre rico e pobre – preserva o rigor da lógica e da linguagem, mas, aparentemente, à custa do realismo,

284


Ver tambĂŠm 16. Tartarugas corredoras 25. Buridan ĂŠ um asno 42. Pegue a grana e corra 70. A visita do fiscal

285


95. O problema do mal E o Senhor disse ao filósofo: – Eu sou o Senhor teu Deus, todo-amoroso, todo-poderoso, onisciente. – Claro que não – retrucou o filósofo. – Olho para este mundo e vejo doenças terríveis, fome, doenças mentais. Mesmo assim, você não acaba com isso, É porque não pode? Nesse caso, você não seria todo-poderoso. É porque não sabe disso? Nesse caso, não é onisciente. Ou talvez porque não queira? Nesse caso, não é todo-amoroso. – Que desaforo! – respondeu o Senhor – É melhor para você que eu não acabe com todo esse mal. Você precisa crescer moral e espiritualmente. Para isso precisa da liberdade de fazer o mal tanto quanto o bem, e de confrontar-se com a possível ocorrência de sofrimento. Como eu poderia ter feito esse mundo melhor se tirasse sua liberdade de crescer? – Fácil – replicou o filósofo. – Primeiro, poderia ter-nos projetado para sentir menos dor. Segundo, poderia ter se assegurado de que tivéssemos mais empatia, para evitar que fizéssemos o mal a outros. Terceiro, poderia ternos feito aprendizes melhores, para que não precisássemos sofrer tanto para crescer Quarto, você poderia ter feito a natureza menos cruel, Quer que eu continue? Fonte: O problema do mal ocorre de formas diferentes ao longo de toda a história da teologia

Será que Deus poderia ter feito um mundo onde houvesse menos

sofrimento, mas no qual tivéssemos a mesma oportunidade de exercer nosso livre-arbítrio e, como observam os religiosos, crescer espiritualmente? E difícil responder a essa questão sem simplesmente servir aos desígnios escusos de nossos preconceitos. Para os ateus, a

286


resposta obviamente é sim. O filósofo de nossa história faz imediatamente quatro sugestões. Nenhuma delas parece impossível, Considere que temos uma quantidade natural de empatia, e isso faz com que a maioria de nós tenha menos tendência a ferir os outros. Se isso é compatível com o nosso livre-arbítrio, por que ter mais empatia o ameaçaria? Considere também que nossa capacidade de aprender é algo sobre o que não temos controle direto. Na verdade, alguns de nós são melhores nisso do que outros. Por que Deus não poderia ter feito de todos nós aprendizes melhores, para que pudéssemos entender por que as coisas são certas ou erradas sem a necessidade de sermos expostos a um mal terrível? Considerações como essa levam muitos à conclusão de que Deus poderia muito bem ter criado um mundo onde houvesse menos sofrimento. O fato de que Ele não o fez é prova de que ou não existe, ou que não merece nossa veneração. Mas se você acredita em Deus, esses argumentos podem parecer muito fracos. Pois quem somos nós para dizer que Deus poderia ter feito um trabalho melhor? Se Deus existe, é infinitamente mais inteligente que nós. Por isso, se Ele criou um mundo cheio de sofrimento, deve ter feito isso por boas razões, mesmo que essas razões escapem às nossas mentes patéticas. Como resposta, isso pode parecer insatisfatório. Pois isso se resume à afirmação que, se alguma vez nos depararmos com razões racionais para duvidar da existência de Deus, temos simplesmente de aceitar que nossos intelectos são finitos e que o que pode parecer irracional ou contraditório faz sentido do ponto de vista divino. Mas isso significa apenas rejeitar o papel da razão na crença religiosa. E você não pode ter os dois. Não adianta defender sua crença usando a razão em uma ocasião, se não aceitar que um argumento racional contra a crença tenha qualquer força. É aí que o problema do mal parece deixar o crente. As melhores tentativas racionais para solucionar o problema na verdade são todas versões do argumento de que tudo deve ser para o melhor em longo prazo. Mas aceitar isso exige uma fé que desafia a razão, pois nossa melhor razão nos diz que isso não é o melhor que Deus poderia ter feito. Se os ateus podem ser acusados de alegar saber mais que Deus,

287


os crentes podem ser acusados de saber mais que a razão. Qual a acusação mais grave? Ver também 8. Bom Deus 17. A opção da tortura 18. A razão exige 58. Comando divino

288


96. A família em primeiro lugar O barco de Sally era um dos poucos que singrava aquelas águas. Por isso ela sempre fazia questão de prestar atenção a pedidos de SOS. Quando ela ouviu que uma explosão tinha deixado doze pessoas no mar, sem botes salva-vidas, ela imediatamente rumou na direção delas. Mas então recebeu uma segunda mensagem. O barco de seu marido estava afundando, e ele também precisava de ajuda. O problema é que, para chegar até ele, ela teria de afastar-se ainda mais das doze pessoas que estavam se afogando. E com o tempo ficando ruim, e sem outros barcos respondendo ao pedi do de ajuda, parecia claro para Sally que, qualquer um que fosse auxiliado em segundo lugar, provavelmente estaria morto quando ela chegasse. Não havia muito tempo para pensar Por um lado, não salvar seu marido pareceria uma traição de seu amor e confiança. Por outro, ele era um bom homem. Por isso será que não veria também o sentido de salvar doze pessoas em vez de uma? Ela sabia para onde queria ir primeiro, mas não para onde deveria ir.

A maioria dos especialistas em ética defende que a moralidade exige

respeito igual pelas pessoas. Como disse Jeremy Bentham, “cada pessoa deve contar por um e não mais que um”. Isso, entretanto, parece entrar em conflito com a intuição forte de que temos uma responsabilidade especial com nossas famílias e amigos íntimos. Os pais não devem, por exemplo, colocar o bem-estar de seus filhos acima dos outros? Calma. Vamos mais devagar. Os pais têm uma responsabilidade especial com sua própria prole. Isso significa que se exige deles que assegurem que os filhos estão bem alimentados, por exemplo, ao passo que não têm obrigação de monitorar o consumo nutricional de outras

289


crianças. Mas isso é o mesmo que dizer que eles devem colocar o bemestar de seus filhos acima do dos outros? Considere, por exemplo, quando há competição por vagas em uma boa escola. Se há apenas uma vaga disponível para dois alunos em potencial, então cada conjunto de pais é responsável por fazer uma boa argumentação para que ela fique com seu próprio filho. Mas para que o processo seja justo, as duas crianças devem ser avaliadas igualmente. Se algum pai tentasse interferir com esses princípios básicos de justiça, estaria se comportando mal. Teria cruzado a linha entre preocupação paterna aceitável e louvável por sua cria e uma falta de respeito pelo bem-estar dos outros. O princípio básico em ação aqui parece ser que estamos certos em concentrar nossas energias e atenção na família e nos amigos mais que em estranhos, enquanto, ao fazer isso, tratamos todos com imparcialidade. Entretanto, como costuma acontecer com princípios, ele não é um guia muito útil para a prática. É justo cobrir seus filhos com brinquedos caros enquanto outras crianças morrem de fome? É justo que pais articulados e bem informados obtenham o máximo dos serviços públicos enquanto outros, normalmente os mais pobres, não conseguem obter toda a vantagem oferecida? É justo ajudar seus filhos com o dever de casa e assim permitir que tenham um desempenho escolar melhor do que crianças cujos pais não queiram ou não possam fazer o mesmo? Algumas dessas perguntas são mais difíceis que outras. Porém, a menos que você acredite que precisamos pensar apenas em nós mesmos e em nossas famílias, dilemas como esse vão surgir para todos em algum momento. O dilema de Sally é particularmente crítico, pois há vidas em perigo imediato. Mas a mesma pergunta que ela precisa fazer se apresenta para todos nós: é justificável que eu ponha o bem-estar dos que são próximos a mim acima dos outros? Ver também 27. Obrigação cumprida 29. Dependência de vida 89. Mate e deixar morrer 97. Sorte moral

290


97. Sorte moral Mette olhou nos olhos de seu ex-marido, mas não conseguiu ver qualquer traço de remorso. – Você me diz que quer voltar – disse ela para ele. – Mas como podemos fazer isso quando você sequer admite que errou ao me deixar com as crianças? – Porque no fundo do meu coração, não acho que agi mal, e não quero mentir para você – explicou Paul. – Eu fui embora porque precisava seguir minha musa. Parti em nome da arte. Você não se lembra de quando a gente conversava sobre Gauguin e como ele teve de fazer a mesma coisa? Você sempre disse que ele tinha feito uma coisa difícil, mas não errada. – Mas você não é Gauguin – suspirou Mette. – É por isso que você voltou. Você reconhece que fracassou. – Mas será que Gauguin sabia que teria sucesso quando deixou sua esposa? Ninguém pode saber uma coisa dessas. Se ele estava certo, então eu também agi certo. – Não – disse Mette. – Ele fez uma aposta alta, e ganhou, por isso estava certo. Você apostou e perdeu, por isso está errado. – Uma aposta? – retrucou Paul. – Você está me dizendo que a sorte pode fazer a diferença entre o certo e o errado? Mette pensou por alguns instantes. – É. Eu acho que sim. Fonte: O ensaio epônimo de Moral Luck, de Bernard Williams (Cambridge University Press, 1981)

A sorte pode fazer a diferença entre sucesso e fracasso, felicidade e

infelicidade, riqueza e pobreza, mas não há dúvida de que não pode separar o virtuoso do mau, certo? Se somos seres humanos bons e decentes, isso deve depender apenas de quem somos e do que fazemos, não do que acontece além de nosso controle.

291


É isso que o senso comum pode sugerir. Mas mesmo se a sorte não é o maior determinante da bondade moral, será que podemos ter tanta certeza assim de que ela não tem qualquer papel na ética? Mais fundamentalmente, existe o que é conhecido por sorte constitutiva. Nascemos com determinados traços e características, e estes são desenvolvidos pela maneira como somos criados. Entretanto, não escolhemos nada disso. O resultado é que, quando ficamos velhos o suficiente para tomar nossas próprias decisões, podemos já estar mais ou menos predispostos na direção do bem ou do mal que a média de nossos iguais. Portanto, uma pessoa que chega a essa idade e se vê mais predisposta a ataques de fúria violentos tem maior probabilidade de agir de maneira errada, apenas como resultado de ter levado azar na loteria dos genes e da educação. Mesmo se deixarmos de lado a sorte constitutiva, ainda estamos familiarizados com o sentimento de «podia ter acontecido comigo». Provavelmente, todos somos capazes de agir de maneira pior do que fazemos, e é em parte uma questão de sorte se conseguimos evitar nos encontrar nas circunstâncias em que nossos lados negros possam aflorar. No caso de Paul e Mette, o papel da sorte ainda é mais pronunciado. O argumento de Mette é que duas pessoas podem se comportar exatamente da mesma maneira, sem saber qual será o resultado, e que só quando sabemos se esse resultado é bom ou mau podemos dizer se a pessoa agiu certo ou errado. Então um Gauguin que deixa sua família e se torna um grande artista fez a escolha moralmente certa, ao passo que Paul, que tomou a mesma decisão, mas não teve sucesso, está condenado por ter agido mal. Se isso parece um exemplo inusitado, pense em como somos descuidados de vez em quando. Se esse descuido resulta em um ferimento sério, por exemplo, a pessoa que cometeu o deslize é vista como moralmente culpada. Se, por sorte, nossa desatenção não tiver conseqüências ruins, poucos terão uma opinião pior sobre nós. Será que isso sugere que existe algo como sorte moral? Ou devemos condenar mais aqueles cujos maus juízos felizmente não tiveram maus resultados? Devemos dizer que Gauguin estava errado, ainda que acreditemos que, no cômputo final, é muito melhor que ele tenha feito o que fez do que se tivesse ficado com a família?

292


Ver também 27. Obrigação cumprida 34. Não foi minha culpa 43. Choque futuro 96. A família em primeiro lugar

293


98. A máquina de experiência Robert estava sentado diante do formulário de autorização havia duas horas, mas ainda não sabia se devia assiná-lo ou rasgá-lo. Era uma escolha entre dois futuros. Em um deles, suas perspectivas eram desanimadoras, e as chances de realizar seus sonhos, mínimas. No outro, ele seria um astro do rock famoso, com a garantia de que seria mantido permanentemente feliz. Você pode achar que não parece ser uma escolha difícil. Mas enquanto sua primeira vida seria no mundo real, a segunda seria passada inteiramente dentro da máquina de experiência. Esse artefato permite que você viva toda a sua vida em um ambiente de realidade virtual. Todas as suas experiências são projetadas para fazer você mais feliz e mais satisfeito. Mas uma coisa é crucial: uma vez na máquina, você não tem idéia de que não está no mundo real, nem de que o que está acontecendo a você foi projetado para atender às suas necessidades. Parece que você está vivendo uma vida normal no mundo normal, só que, nessa vida, você é um dos vencedores para quem tudo parece dar certo. Robert sabe que, uma vez dentro da máquina, a vida será fantástica. Mas alguma coisa em sua impostura faz com que ele hesite em assinar a autorização que o levará ao paraíso. Fonte: Capítulo 3 de Anarchy, State and Utopia, de Robert Nozick (Basic Books, 1974)

É fácil ver por que Robert está hesitante. A vida na máquina seria

falsa, espúria, irreal. Mas por que uma vida “real” autêntica, com seus ciclos desapiedados de altos e baixos, seria preferível a uma falsa e feliz?

294


Um vendedor da máquina de felicidade poderia apresentar argumentos poderosos de que não é. Primeiro, considere o que significam “autenticidade” e “real”. Uma pessoa autêntica é quem realmente é, não o que finge ser. Mas Robert ainda será Robert na máquina. Ele pode revelar sua verdadeira personalidade lá com a mesma facilidade que fora dela. Então você poderia dizer que no mundo real você se torna um astro do rock por mérito, ao passo que na máquina a recompensa não seria por seus próprios esforços. Ao que se pode retrucar: você já escutou muitos astros do rock? O talento pouco tem a ver com isso; a sorte e a oportunidade são tudo. A fama de Robert na máquina não será menos merecida que a fama de inúmeros aspirantes a celebridade que conseguem galgar o caminho escorregadio do mundo pop. Na verdade, essa é a grande recomendação da máquina de experiência. O sucesso na vida depende muito da sorte: você nasceu no lugar certo, na hora certa, com os pais certos? Você foi agraciado com as habilidades que sua sociedade valoriza e recompensa? Você teve acesso às pessoas e lugares que poderiam ajudá-lo a progredir? Dizer que é melhor submeter-se à misericórdia de Dona Sorte quando se pode escolher ser feliz é loucura. Em relação à idéia de que estaria abandonando o mundo real, poderíamos dizer: caia na real. O mundo em que você vive agora não passa da soma de suas experiências: o que vê, escuta, sente, prova, toca, cheira. Se acha que é mais real porque é causado por processos subatômicos em vez de chips de silício, talvez você precise repensar sua noção de realidade. Afinal de contas, mesmo nosso conceito do mundo da ciência além das experiências é, em última instância, baseado em observações e experimentos inteiramente dentro do mundo da experiência. Então, de certa forma, a realidade não passa de aparências. E, contudo, nós ainda podemos não querer entrar na máquina, determinados como somos de que nosso futuro seja o máximo possível produto de nossa vontade e de nossos esforços. Se insistirmos com essa recusa em entrar na máquina, então pelo menos uma coisa deve ser verdade: quando consideramos o que atende aos nossos melhores interesses, nos preocupamos com mais do que felicidade. Não fosse assim, entraríamos na máquina como uma bala.

295


Ver também 1. O demônio maligno 19. Fora da bolha de vidro 28. O cenário do pesadelo 51. Viver em um tanque

296


99. Dar uma chance à paz? O emissário fora enviado por Hitler no mais completo sigilo. Se os britânicos algum dia tentassem tornar pública a natureza de sua missão, Berlim negaria qualquer conhecimento da viagem e iria denunciá-lo como traidor. Mas isso, sem dúvida, não seria necessário. Ninguém imaginava como Churchill poderia recusar o acordo que ele tinha a oferecer. Hitler sabia que Churchill queria evitar baixas desnecessárias. Os dois líderes perceberam que um conflito entre as duas nações iria custar incontáveis milhares de vidas. Mas a guerra podia ser evitada. Hitler estava oferecendo garantias de que assim que a solução final fosse completada, não seriam lançadas mais ofensivas e apenas os rebeldes nas terras ocupadas seriam mortos. Isso certamente significaria que haveria perda de me nos vidas do que se a Grã-Bretanha tentasse liberar a França e derrubar o regime nazista na Alemanha. O Führer tinha certeza de que isso iria interessar o líder da nação que inventara o utilitarismo. Afinal, quem poderia preferir um modo de ação que levaria a mais mortes que outro que levaria a menos?

Apesar de tal missão na verdade não ter sido realizada durante a

Segunda Guerra Mundial, Hitler acreditou em vários momentos que a GrãBretanha aceitaria um acordo de paz que permitiria que ele mantivesse os territórios que havia conquistado. Talvez uma razão para isso fosse exatamente o pensamento que, como a guerra custaria mais em termos de vidas humanas, a paz poderia parecer a melhor opção, moral e pragmaticamente. Muita gente, sobretudo quem perdeu parentes nos campos de concentração, estremeceria só de pensar em um acordo como esse. A pro-

297


posta parece comprar a paz com a vida das vítimas inocentes do Holocausto. Se você concorda com essa resposta, pense bem em como você julga a moralidade de outras guerras. Grande parte do debate sobre a ética da intervenção militar é conduzida em termos do custo em vidas humanas da ação ou da inação. Por exemplo, os manifestantes anti-guerra são os primeiros a observar que, no primeiro ano depois da invasão do lraque, em março de 2003, estima-se que dez mil civis foram mortos. Entretanto, acredita-se que Saddam Hussein tenha matado 600 mil civis enquanto esteve no poder. Em resposta, há aqueles que argumentam que as sanções da ONU, não o regime de Saddam, foram responsáveis pelas mortes de meio milhão de crianças iraquianas. E muitos outros números podem ser trocados em uma tentativa de justificar ou condenar entrar em guerra. Tudo isso parece tomar por certo que se uma guerra custa mais vidas do que salva, então ela é moralmente errada. Mas por essa lógica, é fácil imaginar um cenário, como a oferta secreta de Hitler, no qual teria sido melhor para os Aliados ter deixado a Europa para o fascismo. Uma razão para muitos acharem ser inaceitável é que os campos de concentração são um mal que parece exigir uma resposta. Talvez custe mais vidas para acabar com o genocídio do que esta ação salvaria, mas não é tolerável permitir que tamanha perversidade permaneça impune. Nossa humanidade é mais preciosa que nossas vidas humanas individuais. Mesmo se tirarmos o Holocausto da equação, ainda há razões para preferir uma libertação sangrenta a uma tolerância sem derramamento de sangue. As pessoas escolhem arriscar suas vidas por seus ideais porque elas acham que alguns valores são mais importantes que a mera sobrevivência. Daí o ditado que é melhor morrer livre do que viver como escravo. É por isso que, pelo menos durante a Primeira Guerra do Golfo, muitos iraquianos comemoravam mesmo enquanto as bombas caíam ao seu redor. A moralidade da guerra é uma questão espinhosa que não pode ser resolvida por uma simples contagem de vidas perdidas e salvas.

298


Ver também 17. A opção da tortura 18. A razão exige 35. Último recurso 79. Laranja mecânica

299


100. O café Nest Eric era cliente habitual do Café Nest. A qualidade da comida e da bebida não era excepcional, mas era um lugar muito barato. Um dia ele perguntou à gerente como ela conseguia fazer aquilo. Ela inclinou-se para perto dele e sussurrou, com um tom conspiratório: – É fácil. Sabe, todos os meus empregados são africanos. Eles precisam sobreviver, mas não conseguem empregos fixos. Então eu deixo que eles durmam no porão, lhes alimento o suficiente e dou a cada um $5 em dinheiro por semana. É ótimo. Eles trabalham o dia inteiro, seis dias por semana. Com minha folha salarial baixa desse jeito, posso oferecer preços baixos e ter um bom lucro. “Não fique tão chocado – continuou ela, ao ler sua reação. – Isso é bom para todo mundo. Eles escolhem trabalhar aqui porque é bom para eles, eu ganho dinheiro, e você, preços muito baixos. Poderia ser melhor?” Eric aceitou. Mas talvez aquele fosse seu último café naquele lugar. Apesar da justificativa da gerente, ele sentiu, como cliente, que seria cúmplice da exploração. Entretanto, enquanto bebia seu americano, ele se perguntou se os empregados iriam gostar de seu boicote. Aqueles empregos e o abrigo não eram melhor do que nada?

Você não precisa ser um anticapitalista militante para reconhecer que

todos os que vivem nos países desenvolvidos estão essencialmente na mesma posição que Eric, Importamos produtos comparativamente baratos porque aqueles que os produzem trabalham por uma ninharia. E se sabemos disso e, ainda assim, compramos, estamos ajudando a manter a situação. Não se engane com as diferenças superficiais. Eric está mais próximo do trabalho barato do que nós, mas a proximidade geográfica

300


não é eticamente significativa nesse caso. Você não deixa de explorar alguém simplesmente por estar a quilômetros de distância. A ilegalidade dos empregados do Café também não é a questão. Simplesmente imagine um país onde tais práticas empregatícias sejam permitidas. Você poderia dizer que o que é um salário justo depende do que é normal em cada local. Então os “salários de escravo” de um pais como a Grã-Bretanha seriam muito generosos na Tanzânia. É verdade, mas isso não encerra o debate. Pois o ponto crucial é que o Café Nest tira proveito da necessidade de seus empregados para pagá-los o mínimo possível. A injustiça não é basicamente em torno do pagamento comparativo, mas a indiferença mercenária com o bem-estar dos trabalhadores. Da mesma forma, as pessoas que plantam café no mundo em desenvolvimento podem não estar em pior situação do que seus compatriotas, mas isso não significa que seus patrões ocidentais não precisam se preocupar com o fato de que eles trabalham tanto por tão pouco, quando podemos muito bem pagá-los melhor. Tampouco a defesa “é melhor do que nada” é muito forte. A alternativa não é nada, é um pagamento maior ou melhores condições. Um boicote pode fazer com que um trabalhador explorado perca seu emprego, mas da mesma forma a concorrência de negócios como o Café Nest significa que trabalhadores com salários adequados em outros lugares perderão os seus. Então parece que, em todos os aspectos moralmente relevantes, na verdade estamos na mesma situação que Eric. Se ele está errado em ajudar o Nest a ter mais lucros, estamos errados em comprar de empresas que ameaçam as pessoas no fim de sua cadeia de produção da mesma maneira, Essa conclusão é muito inquietante, pois faz com que quase todos nós sejamos cúmplices na exploração. Isso pode parecer tão ultrajante que pode ser considerado prova de que o argumento está errado. Mas essa seria uma resposta complacente. Historicamente, houve muitas injustiças sistêmicas que setores inteiros da sociedade apoiaram implicitamente. Considere as ações da maioria dos brancos na África do Sul durante o apartheid, das classes média e alta durante a época da escravidão, dos homens antes que as mulheres conquistassem direitos

301


iguais. É possível para a maioria de nós fazer a coisa errada o tempo inteiro. Se Eric deve repensar onde compra seu café, nós deveríamos fazer o mesmo, e muitas outras coisas além disso. Ver também 7. Quando não há vencedores 22. O bote salva-vidas 34. Não foi minha culpa 44. Até que a morte nos separe.

302


Este livro foi composto em Goudy Old Style, corpo 11,5/14 e impresso pela Ediouro Gr谩fica sobre papel P贸len Bold 70g, em agosto de 2006.

303


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.