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Ano 1 Edição 1 1.A

Florianópolis, quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Guerra $.A. Curso de Jornalismo da UFSC Atividade da disciplina Edição. Professor Ricardo Barreto Edição e Texto: Thiago Moreno Diagramação e Arte: Thiago Moreno Colaboração: Lucas Pasqual Impressão: Gráfica Postmix Novembro de 2010

A privatização do exército

Livro expõe massacres relacionados à Blackwater, empresa com a maior frota mercenária do mundo

O

secretário de defesa americano, Donald Rumsfeld, fez um dos seus primeiros discursos no Pentágono em 10 de setembro de 2001, um dia antes do ataque ao World Trade Center em Nova Iorque. Ele subiu ao microfone querendo propor uma solução para o problema que considerava uma ameaça à segurança dos Estados Unidos: a burocracia. Seu objetivo era anunciar uma nova política militar baseada na expansão do uso de serviços de empresas privadas nas guerras empreendidas pelos EUA no mundo. Entre essas companhias estava a Blackwater USA, de Erik Prince. Dali a menos de 24 horas, o vôo de número 11 da American Airlines se chocaria com o edifício norte das Torres Gêmeas, dezessete minutos antes do avião 175 da United Airs colidir com o prédio sul. O atentado causou a morte de 2811

pessoas e serviu como base para o governo de George W. Bush instituir o que chamou de “Guerra ao Terror”, uma busca internacional por terroristas islâmicos. Aproveitando-se da situação Prince criou, em 2002, uma corporação responsável por reunir frotas de soldados de aluguel, a Blackwater Security Consulting (BSW). Quando os americanos ocuparam o Iraque em 2003, a BSW conseguiu um contrato para proteger uma das figuras mais importantes em Bagdá, o embaixador Paul Bremer III. Foi o começo da internacionalização daquela empresa montada próximo ao pântano Great Dismal, em Moyock, Carolina do Norte, em 1996. Na época, era apenas um campo de treinamento de tiro e sobrevivência. Cresceu de forma lenta até 1998, quando os assassinatos de alunos em uma escola de Columbine fizeram o governo americano perceber a necessidade de militares trei-

nados para crises urbanas. A escolhida para habilitar forças especiais em suas instalações foi a Blackwater, que acabava de inaugurar uma área de tiros que simulava um colégio de ensino médio. O contrato firmado com a casa Branca para treinar milicias deu aos acionistas da companhia a chance de relacionarem-se com figuras do governo. Isso influenciaria a decisão sobre quem seriam as prestadoras de serviço contratadas durante a ocupação iraquiana. O livro Blackwater - a ascensão do exército mercenário mais poderoso do mundo (Companhia das Letras, 2008 - 1a edição), do jornalista Jeremy Scahill, denuncia a corrupção e a falta de controle sobre essas prestadoras de serviço militar. Mesmo que, em 2007, a Câmara dos Estados Unidos tenha aprovado uma lei sujeitando os combatentes privados a processos em tribunais civis, a fiscalização era quase impossí-

Blackwater. Jeremy Scahill vel. Primeiro porque em zonas de conflito as cenas dos crimes eram rapidamente destruídas ou alteradas e, mais importante, os investigadores teriam que ser protegidos pelos servidores das próprias empresas que estariam investigando. Por esses motivos, a Blackwater estava envolvida em diversas acusações e nunca

havia sido condenada. Em 2004, comandou um massacre contra manifestantes xiitas na região de Najaf. Em 2005, quatro dos seus homens foram mortos e mutilados na rua em Fallujah, umas das áreas mais perigosas do Iraque. As famílias das vítimas processaram a companhia por enviá-los sem carros blindados e com armas de baixo calibre. A própria emenda que os responsabiliza só foi criada depois de funcionários da BSW matarem 16 pessoas, aparentemente cidadãos desarmados, na praça de Nisour, em Bagdá. Hoje, o número de mercenários no Oriente Médio é igual ao de soldados do exército. De todas as corporações que oferecem privatização militar, a de Erik Prince é a que possui mais funcionários. Sem a atuação desses empregados, os EUA não tem como defender seus mandantes na região. Eles precisam cada vez mais de empresas como a Blackwater.

“Meu filho foi atingido na cabeça e ainda posso sentir o cheiro do sangue nos dedos”

Mohhamed Razzaq, pai de uma das vítimas da praça Nisour, duas semanas depois da chacina

Mercenários reagem a tiros O jornal The Weekly Standard divulgou, no fim de 2006, que cerca de 2,3 mil soldados espalhavam-se pelo mundo. No começo daquele ano, Erik Prince havia calculado um total de 1,8 mil soldados vinculados às suas companhias A empresa teria também uma reserva de 21 mil registrados que poderiam ser acionados em qualquer caso de necessidade. Prince disse ainda que uma média de 35 mil policiais e militares eram treinados por ano nas bases da Blackwater. Esses números mostram o crescimento da privatização de serviços essenciais de segurança

nos Estados Unidos. No Iraque, as corporações militares privadas haviam cobrado 766 milhões de dólares até 2004. A estimativa é de que esse valor tenha chegado a mais de 7 bilhões até a retiradas das tropas dos EUA. Isso representa quase 15% de todo o gasto com a reconstrução do país. O Gabinete Federal de Prestação de Contas dos EUA avaliou 21 gabinetes do Departamento de Defesa e descobriu que em 15 deles os prestadores privados somavam 88% da mão de obra. Recentemente, o jornal O Dia divulgou uma entrevista com o general Durval Nery, coordenador de pesquisas do Centro Brasileiro de Estudos Estratégicos (Cebres), em que afirma que a Blackwater está agindo no Brasil. Funcionários da empresa atuariam em plataformas de petróleo no pré-sal. A troca de nome foi uma tentativa da Xe de desvincular -se da ideia de massacres. Os métodos da companhia, porém, não mudaram, nem seu papel na guerra contra o Islã.

Scahill denuncia chacinas Em entrevista ao programa C-Span, o repórter americano Jeremy Scahill conta que aprendeu, na rádio da rede Democracy Now!, que “o jornalismo é mais uma relação de trocas do que um estudo acadêmico”. Hoje além de escrever para o jornal The Nation, dá palestras em universidades sobre o assunto que mais gosta: abusos cometidos por multinacionais em países pobres. Ganhou duas vezes o prêmio George Polk Book Award, da Long Island University, por suas reportagens denunciando o assassinato de dois ativistas ambientais por empresas de pretróleo na Nigéria. Seus textos costumam aparecer nos sites de notícia Commondreams, Huffington Post, Alternet e Counterpunch. Escreveu seu livro mais recente, Blackwater, depois de passar anos trabalhando na Iugoslávia e no Iraque. Com a obra, recebeu outro troféu Polk. Começou a ganhar notoriedade e, desde então, apareceu em diversos programas de TV, como o ABC World News, o CBS

Jared Rodriguez

A Blackwater USA mudou de nome e agora se chama Xe Services. Com a mudança, vieram alguns trabalhos novos. O site da empresa divulga os serviços de logística de distribuição de suprimentos, treinamento em campos especializados, fabricação de alvos para tiro, segurança pessoal, administração de recursos e auxílio em crises climáticas, fornecimento de itens bélicos e agenciamento de viagens. O que a companhia não divulga é que continua com milhares de homens no Oriente Médio. O departamento de Estado americano contabilizou, em 2008, 1450 soldados responsáveis por cuidar de diplomatas no mundo, sendo que apenas 36 estavam no Iraque. Na mesma época, a Blackwater tinha mais de mil agentes só em terras iraquianas. A Total Intelligence, subdivisão da multinacional que administra os serviços de inteligência, conta com 65 funcionários em tempo integral. Eles são espiões terceirizados que fazem o trabalho dos homens da CIA.

Khalid Mohammed - AP

Novo nome, mesmo hábito

Autor já ganhou três premios Evening News e o NBC Nightly News. Quando foi entrevistado por Jon Stewart, do The Daily Show, o apresentador criticou o livro, mas assim os mercenários ganharam fama, recebeu um pedido de desculpas ao vivo. Ele, também, já depôs duas vezes no congresso americano em casos contra prestadoras de serviço militar privadas. Em seu blog, define-se com certa sutileza e até humildade: “Eu gosto de tartarugas e, às vezes, escrevo sobre a companhia mercenária antigamente conhecida como Blackwater”.


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Ano 1 Edição 1 1.B

Florianópolis, quinta-feira, 11 de novembro de 2010 Susan Walsh - Associated Press

Guerra $.A. Curso de Jornalismo da UFSC Atividade da disciplina Edição. Professor Ricardo Barreto Edição e Texto: Thiago Moreno Diagramação e Arte: Thiago Moreno Colaboração: Lucas Pasqual Impressão: Gráfica Postmix Novembro de 2010

Blackwater é julgada por mortes e continua impune

A família cristã e conservadora do dono da guerra O sobrenome Prince é sinônimo de progresso na cidade de Holland. O patriarca da família, Edgar, empregava um quarto da comunidade em sua fábrica de utensílios automotivos, onde criou o acessório que o deixaria rico: o para-sol iluminado. O dinheiro que ganhava permitiu que ele doasse altas quantias para campanhas da direita cristã, causa que apoiava fervorosamente. A pesquisadora Russ Bellant, em seu livro The Religious Right in Michigan, afirma que a família foi a maior investidora de grupos como a Focus on the Family e a Family Research Council, organizações de extrema direita contrárias aos direitos dos gays e ao aborto. Erik Prince, o único filho homem, seguia as crenças do pai. No primeiro emprego que conseguiu, como estagiário da campanha do governo Bush, fez uma contribuição de 15 mil dólares ao comitê republicano. Desde então, já doou mais de US$220 mil para o partido. Após se formar, entrou para a marinha americana, onde permaneceu por quatro anos, até ser dispensado. Durante esse tempo, conheceu Al Clark, um dos mentores do seu batalhão. Ele sugeriu a Prince que montasse um campo de treinamento militar que centralizasse todas as necessidades dos contratantes. Em 1996 nasceu, então, a Blackwater Lodge and Training Center, o início do que se tornaria, apenas dez anos mais tarde, a gigantesca Blackwater Worldwide. Prince, que raramente dá entrevistas, é esquivo e superficial quando lhe perguntam sobre os processos que envolvem sua empresa. Ele parece não se afetar. Em 2007 declarou ao jornal Virginian Pilot: “Estamos fazendo a coisa certa e para além disso não posso me preocupar. Eu durmo o sono dos justos”.

N

os sete anos em que as empresas relacionadas à Blackwater USA estiveram no Iraque, auxiliando a ocupação americana, envolveramse em três massacres e foram acusadas de traficar insurgentes xiitas para serem torturados. Em 30 de março de 2004, quatro soldados da empresa foram brutalmente assassinados e mutilados no meio de uma praça de Fallujah, um dos principais centros da revolta contra a ocupação americana. Eles foram mandados para a cidade sem carros blindados, com armas de baixo calibre e menos pessoas do que prometia o contrato assinado entre a companhia e os contratados. As famílias das vítimas entraram com um processo, mas já se passaram seis anos e ainda não houve sentença final. A reação dos Estados Unidos ao atentado levou a um cerco intenso da cidade e à morte de centenas de civis. Uma semana depois, em An Najaf, funcionários da Blackwater comandaram um ataque contra defensores do exército Mádi, seguidores do

Protesto contra absolvição de funcionários da companhia que assassinaram iraquianos clérigo Muqtada-al-Sadr. Os mercenários estavam no telhado da Autoridade Provisória da Ocupação, prédio que tinham a missão de proteger. De longe, avistaram uma manifestação se aproximando e se prepararam para abrir fogo. Os oficiais dos EUA ainda não sabem quem começou o tiroteio que causou dezenas de mortes naquele dia. O vídeo gravado por um dos marines que estavam no edifício não revela o início do conflito, mas mostra claramente os oficiais da privatização dando ordens a cadetes do exército oficial. Em 2007, a prestadora de

serviços seria responsável pela chacina de dezesseis civis desarmados na Praça Nisour, no centro de Bagdá. Segundo com a investigação feita pelo FBI, os tiros foram disparados sem nenhuma provocação aparente. Testemunhas entrevistadas pelo The New York Times e o Washington Post, disseram que o tiroteio começou porque um carro chegou um pouco mais próximo do que poderia do comboio militar. No começo de 2010, o governo americano arquivou o processo das vítimas sobre a corporação, alegando que os promotores apresentaram provas ilegais.

O Iraque decidiu, então, abrir uma acusação dentro dos tribunais próprio país. Existe também a suspeita de que a Blackwater esteja usando sua força aérea para realizar tráfico de pessoas. Aviões transportariam prisioneiros de guerra para países que não respeitam os Direitos Humanos para lá torturá-los e interrogá-los. Outra polêmica é o possível treinamento soldados do Iraque para que lutem contra os insurgentes do próprio país. Os Estados Unidos instalaram uma cultura em que iraquianos matam seus conterrâneos.

EUA praticam um novo colonialismo O economista americano John Maynard Keynes tinha como lema para tempos de crise uma frase que traduz muito bem a atual situação econômica dos EUA: “Às vezes, vale a pena contratar alguém para cavar um buraco e outro para tapá-lo”. No caso, o buraco é a destruição causada nos países de religião islâmica. O Keynesianismo entrou em crise na década de 70, mas suas consequências ainda podem ser sentidas na terra do Tio Sam. O professor de economia da UFSC Pedro Antônio Vieira explica que “Um país como os Estados Unidos não pode se dar ao luxo de desistir dos conflitos de um dia para o outro. A quantidade de desempregados e o prejuízo sofrido nos setores

Daniel Rosenberg - MR Zine

Prince fala para Congresso

Shebab Ahmend - EPA

A companhia é acusada de assassinar civis no Iraque e traficar presos para serem torturados

Protestantes contra a privatização da previdência no Iraque de armamentos e do exército seriam enormes. Além disso, a casa Branca tem um interesse antigo no petróleo da região e está sempre tentando manter e legitimar o seu poder como dona do mundo.” “No Iraque, todas as formas de colonização formaram uma espécie de tempestade no país. Os EUA roubaram petróleo dos

iraquianos, utilizaram suas próprias empresas para reconstruir o país” explicou Naomi Klein em sua palestra no relançamento do livro de Jeremy Scahill em Nova Iorque. “Essa é uma nova forma de dominação. Retirase todo o poder de um Estado comprando o controle acionário de suas estatais. É o que eu chamo de Colonialismo 2.1.”

De acordo com o jornal The Wall Street Journal, na época da ocupação do Iraque, a Halliburton, principal empresa contratada para a reconstrução, cresceu sua receita de um para 16 bilhões de dólares. Companhias como essa exercem muita pressão sobre o Estado, ainda mais um altamente capitalista como os EUA, onde a política de desestatização está muito presente. Mas os valores da guerra também causaram rombos na economia. O custo de cada soldado variava de 400 a 700 mil dólares para servir durante toda o conflito. Os gastos totais com armas e suprimentos ultrapassaram os US$3 trilhões. Mesmo com os prejuízos, a ocupação não vai acabar.

“Pensem no que isso significa. Esses contratados podem assassinar impunemente”

Denis Kucinich, deputado americano


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