Thiago de Lima Oliveira
POÉTICAS E POLÍTICAS DA SEXUALIDADE Masculinidade, identidade e diferença no circuito da pegação em João Pessoa (PB)
2013
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UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA PRÓ-REITORIA DE PÓS GRADUAÇAO E PESQUISA COORDENAÇAO DE INICIAÇAO CIENTÍFICA
RELATÓRIO FINAL DE ATIVIDADES PIBIC VIGÊNCIA 2012 / 2013
BOLSISTA Thiago de Lima Oliveira – UFPB (petraiospb@yahoo.com.br)
TÍTULO DO PROJETO Poéticas e Políticas da Sexualidade: reflexões etnográficas sobre a arena do movimento LGBT na Paraíba
ORIENTADORA Silvana de Souza Nascimento (DCS/ CCAE/ UFPB) (silvana@ccae.ufpb.br)
TÍTULO DO PLANO Práticas de Consumo e Identidades homoeróticas: mercado GLS e movimento LGBT em João Pessoa
João Pessoa – PB 2013
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Resumo Neste relatório apresento resultados finais da pesquisa de iniciação científica desenvolvida nos interstícios das práticas homoeróticas de sujeitos frequentadores de espaços de troca erótica e sexual entre homens na capital paraibana e os mecanismos de criação de uma nova cartografia da cidade manuseados por estes sujeitos. Em termos metodológicos a pesquisa caracteriza-se como um empreendimento etnográfico localizado no duplo cruzamento entre antropologia urbana e estudos de gênero e sexualidade, partindo de preceitos metodológicos de ambos os campos, e buscou compreender como, no desenvolvimento de suas práticas sociais, os sujeitos criam e significam os territórios ao mesmo tempo em que são criados e significados por eles. A perspectiva adotada para análise visa contemplar os microprocessos constitutivos das relações e interações que os sujeitos estabelecem entre si em tais lugares e como esses processos estão relacionados a práticas sociais mais amplas. A partir da categoria nativa de “ponto de pegação” problematizo a noção de circuito e trajetos desenvolvidos por estes sujeitos na tentativa de pensar uma nova cartografia da cidade a partir da coligação entre os territórios construídos e as práticas sociais desenvolvidas que ressignificam os usos tradicionais desses espaços. Os resultados apontam para um processo de construção da cidade que se desenvolve em seus eixos norte-sul e leste-oeste, construindo circuitos que se articulam a partir de interesses partilhados e expectativas em comum no que se refere à audiência destes territórios. Os territórios construídos pelos sujeitos em seus trajetos pela cidade inauguram novas formas de relacionar-se a cidade; os territórios também moldam as performances de gênero desenvolvidas pelos indivíduos de forma que tais estas sejam condizentes com a audiência e do tipo de relação estabelecida no lugar. Em tais espaços, a masculinidade assume posição central convertendo-se num capital a partir do qual as trocas são estabelecidas. Contrapondo-se a um dispositivo de visibilidade compulsória, os sujeitos com os quais desenvolvi a pesquisa reinventam estratégias de posicionamento e classificação que visam tornar mais maleáveis e flexíveis identidades popularizadas através das ações do movimento LGBT no Brasil. Palavras-chave: masculinidade; sociabilidades urbanas; homoerotismo.
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Índice Introdução................................................................................................................................................ 5 Metodologia ............................................................................................................................................ 9 Resultados e Análise ............................................................................................................................. 13 3.1 – Cartografia do circuito.................................................................................................................. 17 3.2 Arquiteturas sócio-corporais ........................................................................................................... 25 3.3 – Canibalismo e outras dissidências (des)identitárias ..................................................................... 27 3.4 - Pensando Interseccinalidades: raça, classe e preconceito nos territórios de pegação ................... 32 Considerações Finais ............................................................................................................................. 35 Referencial Bibliográfico ...................................................................................................................... 37
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Introdução No presente texto relato as atividades desenvolvidas entre julho de 2012 e julho de 2013 como parte do projeto “Poéticas e Políticas da Sexualidade”, que teve como objetivo produzir reflexões etnográficas sobre a arena do movimento LGBT1 na Paraíba, tomando como espaço privilegiado de análise espaços de sociabilidade e lazer segmentados para um público majoritariamente homossexual, o assim chamado Mercado GLS, na cidade de João Pessoa. Ainda nesse cenário, o objetivo do plano de trabalho “Práticas de Consumo e identidades homoeróticas” era o de problematizar as relações entre o movimento LGBT na Paraíba e a constituição de um amplo processo de construção, uso e significação dos mesmos espaços de sociabilidade por parte dos seus frequentadores. As questões implicadas no primeiro objetivo expresso acima, de repensar as relações históricas entre espaços de sociabilidade (marcados ou não como espaços GLS) e movimento LGBT 2 constituíram o cerne do semestre inicial de investigação e foram detalhadas e expostas de forma ampla no relatório parcial, apresentado em março do presente ano. Com o progresso da investigação e o refinamento dos dados anteriormente coletados, alguns fenômenos foram assumindo novos contornos e experiências e contatos em campo conduziram a um (necessário) desvio do foco inicial proposto para o trabalho. A observação e análise das relações entre práticas de consumo segmentadas e sua apropriação por parte de grupos com propostas de intervenção política e militância pró LGBT nos instigou a perceber lugares que eram majoritariamente frequentados por pessoas “homossexuais”, mas que não eram reconhecidos como sendo GLS, ou para usar as categorias nativas, lugares gays. Por vezes, seus frequentadores, ainda que assumindo práticas homoeróticas, não necessariamente reivindicavam para si identidades (políticas) como homossexual ou gay, investindo em outras produções discursivas caracterizadas por uma potência de desestabilizar e tornar mais maleável tais identidades não assumidas a priori. Ainda que por vezes se oponha em termos ideológicos e práticos a posicionamentos e recomendações emanadas do movimento LGBT – principalmente aquelas relativas aos usos e disciplinamento dos corpos em termos da constituição de relações estáveis e monogâmicas, estratégia essa que durante muitos anos persistiu como uma das principais frentes para construção de uma imagem positivizada da homossexualidade -, a construção e funcionamento de espacialidades de caráter homossocial, como cinemas pornôs e outros espaços de trocas eróticas não está vinculada a nenhuma espécie de “contracultura”. Ao contrário, acreditamos que, nos termos em que se configura 1
No contexto das reivindicações políticas e sociais em torno das identidades sexuais, de gênero e orientação sexual contemporâneas, a sigla LGBT aparece para designar, não sem algum embate, pessoas que se identificam ou são identificadas enquanto lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais. 2
Ao longo do texto empregaremos de maneira combinada os termos “movimento LGBT” e “militância pela diversidade de gênero e sexualidade”, sendo a primeira referente à atual configuração política e ideológica dos grupos ativistas no Brasil, e a segunda de forma para uma construção que busca contemplar os diversos momentos históricos desse mesmo ativismo. Para uma maior problematização da relação entre política interna e constituição do sujeito político LGBT ver Facchini (2005).
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atualmente, estas espacialidades conformam-se como alternativas dentro de um circuito de equipamentos que se suplementam. A leitura atenta da bibliografia sobre as relações homo+afetivas/sexuais/eróticas no Brasil, bem como uma análise a partir de perspectivas biográficas como a explorada por Perlongher (2008) e Barbosa da Silva (2005), apontam que se por um lado a construção e uso de espaços destinados a encontros (por muito tempo clandestinos) entre homens3 é muito anterior à emergência dos primeiros grupos ativistas homossexuais na década de 1970 (GREEN, 2002; PERLONGHER, 2008; TREVISAN, 2004;), por outro a existência de espaços como bares, boates e determinados equipamentos públicos da paisagem urbana que foram sendo apropriados por grupos homossexuais contribuiu de maneira fundamental para a manifestação e ebulição dessas iniciativas de militância política e cultural (FACCHINI, 2005). Deste princípio, acreditamos na existência de inter-relações e conexões entre o que chamaremos em termos nativos de “pegação”, e seu desdobramento mercadológico em “mercado GLS”, e o que posteriormente se constituiu como “movimento LGBT”. Contudo, acredito que seja preciso elucidar que, se em seu momento inicial de constituição, as militâncias pela diversidade sexual utilizaram-se dos “guetos”, com o processo de reconhecimento e visibilidade de tais grupos operaram conjuntamente alguns câmbios relacionais. A negociação com o Estado em torno da constituição de políticas públicas pró-homossexuais, em especial nos campos da saúde e segurança, se inclinou no sentido de constituir uma imagem higienizada da experiência homossexual (GARCÍA, 2009), donde se excluiu e mais uma vez largou-se a um lugar periférico os espaços de pegação, e em certa medida, o próprio mercado. Tomando como cumprida a responsabilidade de historicizar a criação e desenvolvimento de um mercado segmentado inserido numa ampla historiografia do lazer da capital paraibana que se delineou no relatório parcial, e também pela ampla discussão já presente na literatura sobre as relações entre prática de consumo e mercado, nos interessa nesse relatório introduzir uma nova perspectiva da relação entre os sujeitos e os lugares e as provocações que esse tipo de relação oferece ao movimento LGBT. Neste trabalho nos preocupamos em refletir sobre a experiência do homoerotismo masculino em um contexto de práticas sexuais dissidentes, e nesse conjunto, um contexto de práticas sexuais ainda pouco investigado pelas ciências sociais: a pegação. Por que então, pesquisar pegação? O interesse pelo tema surge em primeiro momento pela relevância que os espaços e a própria experiência da pegação tem na vida social dos grupos com quem tenho mantido contato; esses grupos em sua heterogeneidade envolvem pessoas que assumem as mais diversas identidades sexuais, envolvidos ou não com grupos de militância na região metropolitana de João Pessoa; apesar das divergências e distâncias sociais em graus diferentes os integrantes desses grupos enxergam na pegação um espaço de centralidade não apenas para suas relações e interesses 3
O foco e interesse do presente trabalho foi refletir e analisar as experiências do homoerotismo masculino essas espacialidades clandestinas; todavia é preciso reconhecer ainda a existência de um amplo sistema de trocas femininas, ainda muito pouco documentado e investigado nas ciências sociais.
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eróticos, mas também no estabelecimento de vínculos mais duradouros em termos de lazer e laços de parentesco. A esse primeiro argumento junta-se um desafio epistemológico de pensar formas de vivência homoeróticas além das políticas de visibilidade engendradas pelo movimento LGBT em seu percurso histórico e o estabelecimento de identidades políticas como homossexual, lésbica, transexual, etc. Por fim, o fenômeno da pegação está relacionado a um espaço de práticas sexuais dissidentes inseridos em um contexto mais amplo de práticas que tomam o sexo como forma de entretenimento; nesse aspecto, consoante Duarte (2005), tonar-se necessário repensar os processos de negociação em torno da normalização (ou não) de tais práticas em contextos instituições – o que pretendemos aqui fazer relacionando as políticas de visibilidade e as experiências de homens que praticam a pegação. Nesse aspecto, busco também contribuir para a ampliação do debate e construção de uma rede de interlocução acadêmica sobre as experiências do homoerotismo masculino e das implicações da pesquisa com/sobre sexo casual em diferentes contextos geográficos, políticos, relacionais e históricos que vem se delineando na última década nas ciências sociais, a exemplo dos trabalhos de Costa Neto (2005), Teixeira (2009). Gaspar Neto (2011), Souza (2012), Sester (2013), Braga (2013) e Zago (2009). Como sugere Alexandre Teixeira (2009), em sua pesquisa sobre territórios de pegação em Belo Horizonte, a temática do sexo ocasional entre homens ainda é um objeto de estudo recente e esteve atrelado, de forma secundária, à discussão de outras temáticas, tais como as dinâmicas de interação internas a grupos homossexuais, a prostituição e principalmente às pautas da saúde pública em especial com o avanço da epidemia de HIV/aids. Pouco interesse se tem dado à própria dinâmica do desejo e das interações entre estes sujeitos como uma possibilidade de reinvenção e potencial questionamento política. Dessa forma, ainda segundo Teixeira, podemos considerar o desinteresse por parte das ciências sociais na reflexão sobre o sexo, em especial em seus regimes dissidentes, como uma constatação da dificuldade de reconhecer aí alguma relevância. Essa aparente irrelevância de práticas como a pegação ainda pode estar atrelada a uma percepção do sexo como algo pertencente ao domínio do privado e do doméstico, crença que por sua vez ignora as interconexões estabelecidas entre sexo e política - e as consequências existentes por trás disso, como as implicações para a vida social, economia, usos dos corpos e prazeres, etc. – como anunciava Foucault (1999). Ao longo do texto apresento dados da etnografia desenvolvida entre sujeitos que frequentam os assim chamados espaços de pegação. Antes de prosseguirmos, acredito ser necessário problematizar o termo de modo a inseri-lo de forma apropriada na dinâmica das relações estabelecidas. O termo pegação é, por natureza, polissêmico e pode remeter a uma gama variada de práticas e lugares. Tais definições parecem convergir para um aspecto comum que é o estabelecimento de trocas eróticas ou sexuais de caráter furtivo, eventualmente adicionando-se também o aspecto não comercial, bem como o não envolvimento emocional obrigatório. São esses atenuantes que caracterizam e distinguem a pegação de outras categorias de sexo casual como a prostituição e o swing (troca de casais), por exemplo. A coocorrência desses elementos agregadores (sexo não heterossexual, sem finalidade
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reprodutiva, em local público, não monogâmico) é avaliada como negativa dentro de um conjunto de práticas sociais comprometidas com o disciplinamento dos corpos e prazeres; está localizada assim na zona das práticas sexuais dissidentes que Rubin (2012, p.18) convencionou chama de “mau sexo”. A autora sustenta ainda que há uma crença de que existe uma forma ideal de fazer, que supostamente deveria ser seguida por todos; por sua vez, essa noção sustenta uma segunda perspectiva de variação sexual como algo maligno. No plano das práticas sociais, os sujeitos que desenvolvem práticas sexuais consideradas limites, espúrias ou sujas podem estar sofrendo injustiças, um processo de “estigmatização erótica” pautado na hierarquização e atribuição de valores distintos, bem como emblemas de normalidade e naturalidade a um determinado conjunto de práticas em detrimento de outras. Esse tipo de estigmatização erótica atua não apenas sobre os sujeitos e suas práticas, mas também sobre a própria cartografia dos locais onde as práticas se desenvolvem. A prática de pegação pode ocorrer em locais comerciais destinados ao encontro entre sujeitos com afinidades e interesses em comuns, como saunas, boates, cinemas pornôs, ou em locais públicos improvisados para o encontro e o sexo, como parques, praças e a praia. Tais locais, em especial esses improvisados na paisagem urbana, geralmente são chamadas pelos caçadores4 como “pontos de pegação”, ou, às vezes, resumem a própria prática, sendo chamados propriamente de “pegação” apenas. A pegação pode ser nomeada de acordo com os lugares em que ocorre, de modo que não raramente se pode ouvir falar em “banheirão” ou “cinemão” para o tipo de encontro travado respectivamente nos banheiros e cinemas pornôs. Ainda que seja uma categoria nativa e usualmente manejada por grupos com práticas homoeróticas e homossexuais, o termo também pode ser aplicado a contexto de práticas heterossexuais, caracterizadas também pelo caráter furtivo e não comercial. Esse uso de linguagem mais ou menos compartilhada por vezes tem gerado atritos e conflitos, tendo em vista que a maior parte dos grupos virtuais disponíveis nas redes sociais é orientada para uma parcela de homens homossexuais; a inserção de sujeitos heterossexuais desavisados aparece eventualmente como conflituosa e pode ter respostas variadas, desde o xingamento e agressões recíprocas até investidas e convites por parte dos homossexuais para com os desavisados. Já em termos de relações offline5, esse tipo de encontro é marcado por outros fatores, como tentativas de assalto e agressões físicas, que eventualmente são noticiadas e reverberam nos grupos virtuais como uma espécie de aconselhamento e aviso para que determinados tipos de sujeito sejam evitados.
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Caçador remete à “caça”, outra forma pela qual a pegação pode ser chamada. Nesse aspecto, caçadores são aqueles sujeitos engajados na prática da pegação, que costumam frequentar espaços frequentemente públicos, ou virtuais, com o objetivo de encontrarem outros homens para relacionarem-se. Utilizo aqui como sinônimo para os frequentadores ou usuários dos pontos de pegação. 5 A pegação pode ocorrer também mediada pela internet, estabelecendo assim uma relação de suplementação que será apresentada mais a frente, na parte de análise. Nos termos deste trabalho a terminologia offline e online busca fugir a um julgamento simplista que reduz as relações mediadas por dispositivos conectados à internet como menos reais, ou imateriais. Offline refere-se assim às interações face a face e online àquelas estabelecidas por meio de computadores ou outros dispositivos que tornam possível acesso à internet.
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A experiência da pegação e seus múltiplos modos de subjetivação e construção de estratégias identitárias deixam perceber as tensões entre políticas públicas elaboradas em um processo de negociação entre Estado e movimentos sociais e as próprias vidas dos sujeitos. Esse diálogo, triplamente localizado (no Estado, nos movimentos sociais e nas vidas dos sujeitos) não se realiza de maneira pacífica e sem conflito, pelo contrário. Como será descrito mais adiante, na dinâmica das interações entre sujeitos nos espaços aqui etnografados, as dinâmicas entre identidades sexuais e performances de gênero constantemente se organizam em cadeias de inteligibilidade diversas, por vezes reforçando, por vezes desmantelando princípios de coerência entre sexo, gênero e desejo. Em última instância, essas performances em seu conjunto problematizam a questão levantada por Judith Butler (2003): é possível pensar políticas sem representações? Ainda segundo Butler (2003, p. 35), a configuração das políticas de representação em torno de marcadores sociais – como o nosso caso, marcadores relativos a gênero, orientação e preferências sexuais estigmatizadas - implica em um processo de eleição de grupos internos desejáveis e indesejáveis, compondo uma espécie de biopolítica (FOUCAULT, 1999). A partir desse princípio, é possível supor que há certas identidades que o movimento aceita e acolhe por se encaixarem nas políticas de visibilidade que são defendidas por tais grupos. A essa questão um dos participantes da investigação refere-se como “regras da viadagem”, um conjunto de normas e convenções que determinam padrões de comportamento socialmente toleráveis pelos grupos socialmente subalternizados. Opera-se assim uma cisão entre a pegação enquanto prática “anti-higiênica” e indesejável, e o modelo de relacionamento homoafetivo burguês; um câmbio de visibilidade entre estratégias sociais marcadas pelo segredo, sigilo e pela não identificação dos parceiros em torno de identidades sexuais marcadas. Nas páginas a seguir descrevo o percurso metodológico desenvolvido durante a construção da pesquisa, bem como os resultados obtidos durante a investigação. Meu objetivo principal é refletir sobre as performances de gênero e dispositivos classificatórios acionados pelos sujeitos que frequentam a pegação em dois tipos de espaço em especial: os banheiros de livre acesso e os cinemas pornôs. A investigação foi desenvolvida nos locais de pegação e com os frequentadores de tais espaços e contempla um período de observações, entrevistas e conversas informais realizadas entre fevereiro e agosto de 2013, por vezes inserindo e dialogando com dados coletados em uma pesquisa anterior, desenvolvida entre março e agosto de 2012 no âmbito do Programa de Extensão “Diversidade Sexual e Direitos Humanos na Paraíba”, do qual pude participar como voluntário ao longo do ano de 2012.
Metodologia A presente investigação se caracteriza como um empreendimento etnográfico, de natureza qualitativa e pautada por um enfoque relacional, com ênfase nas interações e conexões sociais estabelecidas entre a pegação em espaços comercial e não comercial e outros domínios da experiência social. No campo epistemológico, me interessa particularmente problematizar a complexidade e 9
heterogeneidade de posições, formas de relacionar-se e classificar a si mesmo e aos outros no concurso de práticas que visam interação erótica ou sexual entre homens. Em termos metodológicos, a pesquisa em torno de alguns temas no campo sexualidade ainda é vista com olhos inquisidores dentro das Ciências Sociais; olhares que questionam a relevância de discutir o sexo e a experiência sexual num espectro de conflitos étnicos e raciais, violência e opressões que seriam mais legítimas e urgentes de serem investigadas. Enquanto percurso etnográfico, durante a pesquisa busquei me aproximar dos diversos agentes e sujeitos envolvidos no processo de construção da pegação: proprietários de empreendimentos comerciais, como saunas, cinemas, além de pessoas que costumavam frequentar tais espaços, bem como os espaços públicos em períodos diversos durante o dia, de acordo com as dinâmicas próprias de cada lugar. A investigação foi articulada ainda com os espaços virtuais, que se mostraram importante fonte de dados e interlocução com sujeitos de várias origens, com interesses e modos de agência diversos. Dada a dinâmica das interações estabelecidas em ambos os espaços adotados aqui como locais prioritários de investigação, formas de interação que preservam a discrição e comedimento no uso das palavras e a amplo utilização do corpo como instrumento de fala, as formas de abordagem dos frequentadores teve também de adequar-se a essas peculiaridades. Em especial no que se refere às pesquisas nos banheiros, tive de desenvolver um conjunto de técnicas que tiveram como objetivo a descentralização da investigação na visão e que pudesse contemplar uma dimensão multissensorial de coleta de dados etnográficos. Em outros termos, o ambiente frequentemente pequeno e apertado dos banheiros, onde as interações são desenvolvidas em pequenos intervalos de tempo e organizadas segundo a disponibilidade de parceiros, em geral duplas, implicava a adoção de estratégias “voyeurísticas”, que seguem na direção daquilo que tenho chamado de “etnografia sinestesia” no afã de construir uma descrição minimamente densa (GEERTZ, 1989). A impossibilidade de acompanhar as interações em sua íntegra, bem como o pouco espaço para conversas e a contínua rejeição de entrevistas conduziram a necessidade de implementação de mecanismos de pesquisa mais sofisticado, que pudesse suprir as deficiências que a dinâmica causava à visão. Assim, o cenário da pesquisa teve de ser construído tomando por base outros elementos constantemente negligenciados na produção dos saber etnográfico: a ampliação da importância dada a sussurros, gemidos, fragmentos de diálogo; os cheiros, texturas. Entre o mau cheiro produzido pela junção de urina, lama e suor e a viscosidade de fluídos como espermas espalhados pelo piso e paredes de banheiros, cinemas, foram aglomerando-se as primeiras evidências para construção dos dados básicos dessa pesquisa. Entre trilhas escondidas nas entranhas dos trechos de mata atlântica na região do litoral pequenas clareiras deixam entrever aglomerados de preservativos usados e suas embalagens, restos de roupas e pedaços de papel utilizados com finalidades diversas durante os encontros. Nesse mesmo sentido, o posicionamento do corpo como mais um instrumento de pesquisa foi sumário; o corpo transformou-se não apenas num objetivo de investigação, mas também no próprio instrumento para construção da pesquisa.
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Ao longo de um ano e meio de pesquisa em territórios de pegação na capital paraibana tomo como constatada a impossibilidade de qualquer mimetismo absoluto. Esse mimetismo, possibilidade de não estar ali quando em verdade se está, tão crível e almejado pelos cientistas naturalistas, com sua ambição pelo controle e isolamento da amostra de condições externas é impraticável a partir da minha experiência de campo - e quiçá, em qualquer etnografia. Enquanto pesquisador não sou nativo tampouco pretendo sê-lo, mas acredito que certos contextos culturais e práticas sociais demandam a desconstrução de prerrogativa estabelecidas de modo anterior ao campo, nos termos de Favret-Saada (2005) é preciso deixar-se afetar, mesmo com a possibilidade de ver desmoronarem todas as certezas solidamente construídas enquanto cientistas. Acredito assim que a prática e a experiência etnográfica demandam a construção daquilo que Merleau-Ponty (1984) poeticamente coloca como um “novo órgão de conhecimento”. A construção do saber coloca-se assim não na possibilidade do mimetismo, mas no encontro das assimetrias e diferenças entre a visão do mundo do pesquisador e dos seus colaboradores, na tentativa de construção de um equilíbrio sutil (PEIRANO, 1995) que a etnografia implica. Assim como Malinowski e sua câmara não passaram despercebidas pelos trobriandeses, ninguém passa incólume, inobservado pela experiência da pegação. Em meio a poucas luzes e reduzidas palavras, a dialética do olhar assume posição central nas interações travadas no cinema e mais ainda no banheiro; não que as pessoas não conversem, contem piadas e gargalhem - pelo contrário, esses momentos são constantes e reinterados, por vezes agrupando todo o coletivo em torno de um tema que reverbera entre salas. Ninguém escapa ao olhar analítico do desejo, olhares capazes de desenhar e inscrever sobre os corpos alheios a avaliação das possibilidades e interesses. Nesse aspecto, Otávio6, - um dos interlocutores com os quais desenvolvi maior proximidade - cerca de três meses depois de nos conhecermos no Papai Cine Vídeo comenta sobre as impressões recíprocas quando nos conhecemos. Otávio: tem uns caras que acham que podem passar assim sem ninguém ver quando entra no cinema, mas isso não existe não, todo mundo repara. Pesquisador: É mesmo? Otávio: Oxe! Mas é claro. Eu, você, o carinha que eu peguei hoje... todo mundo é reparado, não dá pra fugir. Pesquisador: E tu lembra quando me conheceu? Otávio: Se lembro! [risos] Pesquisador: Essa é boa. Conta aí, quero saber então. Otávio: Só se você me disser o que pensou de mim quando entrou. Pesquisador: Fechado Otávio: Você parecia bem normal, tava conversando com um outro cara quando eu entrei lá na área [de fumantes], parecia bem interessante, tranquilo, boa pinta. Depois que o cara saiu eu achei que podia rolar e me aproximei e tal, daí percebi que você olhava demais pros outros, circulava, rodava demais... não parava quieto, ou parava demais.. ficava um tempão no mesmo lugar sem sair, e nem olhava. Acho que me chamou atenção que tu não parecia bichinha, afetado como tem uns caras aqui que tão mais pra travecão do que pra macho mesmo porque eu curto mesmo é macho, sabe, né? [concordo com a cabeça] Pesquisador: Daí você chegou e começou a conversar... 6
Todos os nomes são fictícios.
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Otávio: É, isso mesmo. Gosto de ir chegando... tem que ter pegada, mas também tem que ir no ritmo da pessoa, porque se não a gente roda o dia todo e não pega ninguém. [risos] Agora é tu, como foi quando me viu? Pesquisador: Foi mais ou menos parecido também. Não sabia que você tinha me visto conversando com outros caras nesse dia, mas eu lembro. Tava um mormaço só... e o único lugar que dava pra ficar era lá fora. Quando reparei em você, você tava olhando pra mim bem sério, mas meio que sorrindo, achei bem interessante, mas me contive, até tu chegar mais perto e começar a conversar.
Enquanto pesquisador, sou mobilizado pelas narrativas de meus colaboradores, e acredito que de forma recíproca, a proximidade que desenvolvi com alguns deles propicia o estabelecimento de vínculos que me viabilizaram o desenvolvimento da pesquisa7. Por algumas semanas pude discutir em momentos de preparação de textos parciais para alguns eventos minhas posições e análises, bem como solicitar que alguns interlocutores pudessem me explicar com algum nível de detalhamento suas impressões sobre os lugares e os sujeitos que o constroem. Na presente investigação opto por uma aproximação maior com os microprocessos constitutivos das relações entre os sujeitos e o espaço, dando ênfase às interações e interconexões que essas práticas sociais estabelecem com outras, performando assim um circuito. Nesse aspecto, acredito ainda que minha pesquisa não tem qualquer pretensão estatística ou de representatividade de um modelo social totalizante. Pelo contrário, tento apontar para possibilidades de vivência da sexualidade em tais espaços que se caracterizam como trajetórias que fogem a qualquer pretensão de padrão socialmente instituído, ainda que em alguns momentos apresente essa trajetórias em relação a um certo padrão observável nas falas dos próprios sujeitos e de seus parceiros de prática social. Assim, aproximamo-nos de Claudia Fonseca ao afirmar que: a força da etnografia está na sua capacidade de contar histórias. As histórias são escolhidas, apesar de nunca serem "típicas", são - quando exploradas em toda sua especificidade - sempre reveladoras. Ainda mais, contar histórias são é uma forma de transmitir algo do clima da revelação entre pesquisador e pesquisados, clima esse que é parte integrante dos "dados". (FONSECA, 2005, p. 263)
Em oposição a um plano geral, busco construir uma etnografia que privilegie pequenos enquadramentos, retratos em 3x4 das vivências dos sujeitos com quem trabalho. Dessa forma, os instrumentos de coleta de dados com que venho trabalhado constituem-se enquanto um misto de possibilidades oferecidas pela antropologia, sociologia e história, ferramentas que compõem um contínuo desde a pesquisa bibliográfica e documental, passando por entrevistas e fotografias e leitura das fotografias produzidas pelos interlocutores, até a etnografia em ambientes online e offline.
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Nesse aspecto, todos os depoimentos e análises relacionados às falas dos interlocutores com os quais pude desenvolver algum tipo de relação mais ou menos duradoura foram lidos e discutidos individualmente. O objetivo desse processo de negociação foi preservar a imagem que gostariam de produzir sobre si mesmos. A negociação deu-se com alguns conflitos, principalmente no que se refere às análises das condutas sociais e hierarquizações raciais no tópico de análises. Nesses casos, mesmo discordando dos argumentos de alguns interlocutores, mantenho minhas opiniões e análises por acreditar que não oferecem qualquer prejuízo ou dano aos sujeitos.
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Resultados e Análise A apresentação dos resultados no presente relatório será tomada em três momentos. No primeiro busco recompor a rede de lazer e sociabilidade orientada para sujeitos com práticas homoeróticas em João Pessoa, bem como os circuitos constitutivos que essa rede comporta, entre eles a pegação. No segundo momento caracterizo os espaços estudados, me detendo aos processos relacionais e interações tratadas nos dois espaços estudados. Finalizo o trabalho sinalizando para a confluência de marcadores sociais da diferença relacionados aos dispositivos de classificação e hierarquização de performances em ambos os espaços. *** Com o objetivo de delinear os espaços e equipamentos públicos e privados que compõem a rede de lazer e sociabilidade acionada por homens com práticas homoeróticas perguntamos a um total de 64 colaboradores onde eles costumam ir para encontrar ou fazer amigos, para paquerar ou em busca de sexo e curtição. Nesse processo identifiquei 31 lugares que envolvem desde espaços GLS, até espaços de trocas eróticas não comerciais, espaços físicos de caráter doméstico e comunidades e grupos no meio virtual. A mercê da forma e da natureza das interações nesses lugares eles foram agrupados em quatro grandes circuitos conforme entendidos por Magnani, ou seja, como a união de: estabelecimentos, espaços e equipamentos caracterizados pelo exercício de determinada prática ou oferta de determinado serviço, porém não contíguos na paisagem urbana, sendo conhecidos em sua totalidade apenas pelos usuários. (MAGNANI, 1996, p.46)
Os circuitos identificados conformam espaços diversos e que se orientam por regiões variadas da cidade. Alguns têm uma característica itinerante, passeando e transitando pelos domicílios de seus integrantes, outros podem acontecer ao acaso, em lugares abertos pré-determinados ou com período de permanência pouco garantido. São acima de tudo territórios em constante atualização e transformação que em certa medida também caracteriza as singularidades dos seus frequentadores enquanto sujeitos também em processo de mudança constante – ou não. Esses circuitos podem ser melhor visualizados no Quatro 1, que segue abaixo.
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Quadro 1 – Espaços de homossociabilidade em João Pessoa
Circuito
Classe do local
Local
Boates
Boate Sky Club Boate Vogue8 Carboni Empório café Relicário Bar Só Dellas HS Termas Termas Parahyba Termas Solar do Poente Cine Aquarium Cinema do Papai Cine Sex América Hotel Tambaú Praça do Bispo Praia do Bessa - Peixe Elétrico Praia do Bessa - Mag Shopping Praia do Cabo Branco (Tororó) Estacionamento do Estádio Ronaldão Farol do Cabo Branco ( também conhecido como Sofá da Hebe ou Matinha do Seixas) Banheiro da Biblioteca Central UFPB Banheiro da Rodoviária Municipal Banheiro do HiperBombreço Banheiro do Espaço Cultural Salas de Bate-Papo UOL Site Disponível.com Site Manhunt.net Grupos e comunidades nas redes sociais Facebook e Orkut Casas de Amigos Festas Privadas Grupos de Swing e Orgias
Bares CIRCUITO GLS Saunas
Cinemas Pornôs Praças e Áreas Abertas CIRCUITO NÃO COMERCIAL
Banheiros
Sites de relacionamento CIRCUITO VIRTUAL CIRCUITO DOMÉSTICO
Redes sociais Amizade/flerte Trocas sexuais
Como se observa, os locais identificados foram organizados para fins didáticos em quatro grandes circuitos: o circuito GLS, o circuito não comercial, o virtual e por fim, o circuito doméstico. O Circuito GLS é composto pelos equipamentos e espaços urbanos destinados a um público pagante caracteristicamente homossexual ou que simpatiza com a causa gay. Envolve bares, boates, cinemas pornôs e saunas que de agrupam (a) pela cobrança de ingressos ou consumo, e (b) por serem espaços de diversão e oferecer a possibilidade de encontrar outros iguais, seja para amizade, paquera ou sexo casual. Considerando a materialidade dos espaços é o maior circuito que pudemos identificar, sendo composto por doze estabelecimentos que se espalham pelas regiões não apenas do centro, mas também da zona sul, nos anos mais recentes, o que poderia apontar para um processo de expansão do mercado GLS na cidade do centro rumo aos bairros. O segundo circuito que pudemos identificar é aquele 8
Na época em que esse momento da pesquisa foi realizado, ambas as boates estavam em funcionamento. Em março de 2013 a boate Sky Club foi fechada após dois anos de funcionamento. Pouco meses depois, em maio de 2013, após o incêndio na Boate Kiss, na cidade de Santa Maria, e sua repercussão sobre os equipamentos de segurança na indústria de entretenimento noturno, a boate Vogue foi fechada por não ter condições estruturais para inclusão de uma saída de emergência. Atualmente há apenas uma boate segmentada para o público homossexual na cidade, a H. S. Dance, localizada na rua Afonso Campos, centro da capital. O espaço divide espaço ainda com a HS Sauna, funcionando a sauna durante a semana e em horário comercial, e nos fins de semana, a boate, que posteriormente foi rebatizada com o nome de Boate Summerfest.
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caracterizado pelas trocas eróticas e sexuais que se dão em espaços predominantemente não comerciais. É o circuito da pegação propriamente dito, como será descrito posteriormente. Os dois últimos circuitos de sociabilidade que pudemos identificar surgiram como uma novidade nos dados da pesquisa. Constituem espaços não necessariamente físicos, ou se físicos, de natureza itinerante, pudendo estar na esfera do espaço privado ou do espaço público. São os circuitos virtual e doméstico. O circuito virtual é aquele configurado pelos diversos espaços oportunizados pelas novas tecnologias comunicativas, especial a internet; estes espaços possibilitam às pessoas conhecer e interagir com outras de diversos outros territórios que partilham de interesses em comum. Nesse circuito predominam os sites no formato de redes sociais, a exemplo do Facebook, Orkut e outras páginas na internet especializadas para o público gay. Alguns desses sites são plataformas internacionalmente utilizadas como redes sociais, sejam especializadas ou direcionadas para o público gay. Além das redes sociais Fabebook e Orkut, os sites mencionados foram o Disponível e o Manhunt. O Disponível (ver Fig. 1), uma página brasileira direcionada para promover e divulgar encontros sexuais entre homens, mas que abriga também casais liberais e travestis. Os usuários da página dividem-se em duas modalidades, uma de conta gratuita, que limita a possibilidade de acesso a todas as ferramentas da página, e outra de Usuário Gold, onde através do pagamento de valores mensais é possível ter acesso a maiores vantagens e ferramentas disponibilizadas pelo site. Lá é possível adicionar fotos, vídeos, bem como visualizar as fotos e vídeos de outros usuários cadastrados que os permita acessar.
Figura 1: Página de abertura do portal Disponível.com
A outra página a que nossos colaboradores se referiram foi o site de relacionamentos Manhunt (ver Fig. 2), um dos maiores portais de relacionamento para homens do mundo. O site conta com
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milhões de usuários pelos cinco continentes, e semelhante ao Disponível, há a divisão entre usuários com conta comum, com acesso limitado aos recursos, e “usuários gold”, que pagam valores de associação para desfrutar das ferramentas integralmente. Além dos recursos de foto que podem ser públicas ou aberta para pessoas exclusivas, o site oferece a possibilidade de conversas entre usuários via chat. A página também é bastante usada por turistas, que costumam anunciar suas viagens e buscar parceiros que residam em outros estados, municípios e países, integrando assim diferentes geografias.
Figura 2: Página de abertura do portal Manhunt.net
Diferente de páginas como o Manhunt e o Disponível, cujas funções se resumem a possibilitar um espaço mais ou menos seletivo, ou especializado, para encontros entre homens, a função das redes sociais é mais ampla, incluindo desde a criação ou restauração de espaços de sociabilidade, até mesmo como plataforma de atualização e prevenção em níveis diversos, desde ameaças à segurança e integridade das pessoas, como no caso dos pontos de pegação, passando por denúncias de descaso e mau atendimento no caso dos comércios GLS, até mesmo a articulação de encontros e saídas coletivas em redes domésticas. Neste estudo não pretendo me deter a uma análise detalhada das dinâmicas de sociabilidade e as relações entre vivência online e offline que tais portais e grupos virtuais oferecem9. Meu objetivo aqui é de analisar como tais espaços suplementam os espaços físicos, suprindo e adicionando ferramentas de comunicação e interação entre os usuários. A função das comunidades e grupos é não apenas de manter ou possibilitar o estabelecimento de redes de sociabilidade, sejam elas frágeis ou mais duradouras, mas essencialmente de instrumentalizar os usuários para o que está acontecendo nos espaços físicos. Podem funcionar também como meio para atualizar-se nos códigos e novidades mais típicos do meio em que estão inseridos, funcionando como um importante espaço para negociação e 9
Para uma análise mais ampla e objetiva sobre esses aspectos ver a dissertação de Gibran Braga (2013) e Luiz Felipe Zago (2012) que buscam problematizar as relações entre performance, gênero e homoerotismo entre usuários de páginas destinadas a encontros entre homens
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demarcação das diferenças. Por fim, o circuito doméstico circunscreve os espaços de uso privado que são delimitados pelos sujeitos; são as reuniões de amigos, festas privadas, bem como alguns encontros de grupos de orgia e swing que acontecem de forma itinerante entre as casas de seus membros participantes. Esse circuito em especial, configura uma forma particular de redes de sociabilidade que se caracterizam por relações mais sólidas entre pessoas com maior nível de proximidade, geralmente se cruzando em mais de um grupo. Os circuitos não configuram instâncias isoladas e sem conectividade. Antes, por haver uma circulação entre os sujeitos há constantemente uma sobreposição e atualização constante dos espaços. Os grupos virtuais, por exemplo, constantemente funcionam como pontos de conexão entre redes domésticas e redes de pegação, possibilitando que os sujeitos se integrem, conheçam uns aos outros e desenvolvam algum grau de afinidade e conhecimento prévio que posteriormente pode desenvolver-se na forma de relacionamentos duradouros ou parceiras em determinados tipos de investimentos eróticos, a exemplo de equipes de sexo coletivo ou festas de swing. Nesse aspecto, faz-se urgente pensar também em formatos maleáveis entre circuitos, formas de categorização que permitam analisar a partir de uma perspectiva de interseção as confluências entre os espaços e formas de sociabilidade, a construção de territórios mistos e híbridos que possibilitam formas de relacionar-se mais fluídas e versáteis, territórios que se reinventam, se retorritorializam a partir das práticas sociais nele desenvolvidas. Tal perspectiva contribui também para uma leitura dos espaços comercial, doméstico e virtual a partir das categorias de rua e vice-versa: pedaços virtuais, encontros offline entre sujeitos próximos a partir de aplicativos que reúnem pessoas geograficamente próximas por dados via GPS. Enfim, formas de analisar que possibilitam relativizar o aspecto escorregadio das práticas sociais de rua, constantemente marcadas por um tom de impessoalidade, ancorando-as em níveis distintos de familiaridade e proximidade que se articulam a partir de interesses partilhados entre os sujeitos envolvidos.
3.1 – Cartografia do circuito Os pontos de pegação conformam um circuito nevrálgico por toda a cidade, inaugurando uma nova forma de construir a cidade, de perceber o espaço urbano. Constituem-se como espaços diversos, abertos ao público e de livre acesso, sejam pertencentes a instituições públicas ou a privadas. São pontos naquilo que lhes é mais preciso enquanto dissidência aos “lugares” de família ou pensados para o sexo e seus voluptuosos devotos. Demarcações que logo traçadas, podem escapar no instante seguinte. É o que nos apresenta Otávio: Não tem muito isso de planejar não. Em geral pode acontecer em qualquer lugar. Você está na rua, numa lanchonete ou num ponto de ônibus daí passa um cara, olha pra você... você sabe que ele curte, né? Então começa o lance, né? Daí pode ser que role por ali mesmo... mas claro tem uns lugares que você sabe que sempre vai ter cara afim, sempre vai ter gente querendo fazer pegação.
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“Sempre vai ter gente querendo fazer pegação”, mas onde? Como? Essas são variantes que se reinventam e deslocam-se espacialmente com absurda agilidade. A pegação e seus caçadores fogem e apropriam-se da precariedade, reinventam-se sobre o que é possível. Recortam e desenham uma nova cartografia da cidade. Espaços fugidios, voláteis e efêmeros, mais sociais que materiais. É o que argumenta o antropólogo francês Michel Agier (2011, p. 113-4): As concepções do lugar, principalmente as ligadas ao conceito de linhagens, mostram que, a forte densidade cultural de certos lugares, assim como a fixação que sentimos a seu respeito, vem de dimensões que não dependem diretamente das estruturas materiais urbanas. O sentido do lugar é condicionado estreitamente pela existência de uma troca simbólica e social da qual é o suporte.
Sendo assim, é justamente nesse sentido que, os pontos de pegação no seu contínuo fluxo de mostrar-se e esconder-se para revelar o caráter das práticas estabelecidas pelos seus usuários é organizado não em termos de uma materialidade do lugar, mas da possibilidade do espaço tornar possível ou não o estabelecimento das trocas. Mais adiante, assinala Agier “a questão sobre o espaço físico está bem presente, mas secunda, ou para usar uma expressão clássica e mais precisa, ‘é sobredeterminada’ pela simbólica das relações sociais que aí se localizam” (Idem, p.140). Lugares se reinventam e são interpretados a partir das práticas sociais nele estabelecidas. Uma praça que durante o dia é usada como espaço de passagem entre transeuntes e descanso por trabalhadores, ou lazer por famílias próximas, durante a noite pode converter-se uma vitrine de prostituição, ou num ponto de pegação. As múltiplas possibilidades do espaço. A sequência de imagens abaixo (Fig. 3, 4 e 5) ilustra bem o caráter improvisado dos pontos de pegação. Trata-se de um conjunto de fotos realizadas por Fernando, um jovem universitário que costuma frequentar um dos pontos na cidade, a praia do Seixas. Em seu trajeto o colaborador constrói uma nova cartografia do espaço, inaugurando uma nova forma de dispor e manejar o aparelho público. Trilhas, locais escuros, esquinas convertem-se pelo uso em novas possibilidades.
Figuras 3, 4 e 5: Trajetória de um nativo em um ponto de pegação em João Pessoa. A cartografia da cidade começa a desenhar-se desde seu início-fim. Já no terminal rodoviário de João Pessoal é possível observar a existência de locais - remodelados a partir do uso que seus frequentadores lhes dão - para trocas entre homens. Não raramente, no ir e vir de passageiros, no ritmo frenético de partidas e chegadas, homens nos mictórios do banheiro do terminal trocam fluídos, olhares e apertões. Estabelece-se aí um jogo de silêncios e não-ditos, um desvio de linguagem comum
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para um novo conjunto de códigos, uma forma variante de expressar-se. Pernas arqueadas, olhos atentos aos lados e a pia e seu espelho, localizados mais a frente; movimentos que, aquém da cotidianidade de uma urinada passageira, quando lidos em conjunto e contexto revelam estratégias do desejo, (in)convenções. Ali mesmo aproximam-se e conectam-se por meio do olhar, dos gestos; negociam e avaliam a possibilidade de uma troca que poucos instantes depois irá se converter em sexo, fluídos e cheiros. Há alguns anos, além dos banheiros, o piso superior do terminal, onde os acompanhantes e curiosos vislumbram o movimento dos passageiros, por muito tempo sediou também as trocas e encontros entre homens. A região do centro é recortada por uma variedade de espaços destinados à pegação, sejam os mais tradicionais, instituídos no imaginário dos frequentadores - como os cinemas pornôs e as saunas, localizados na região do Varadouro -, sejam outros menos conhecidos e de caráter efêmero; esses últimos, em geral, são estabelecidos a partir de encontros fortuitos entre usuários de outros espaços de troca já tradicionais, como acontece, por exemplo, na subida do terminal rodoviário em direção à Lagoa do parque Sólon de Lucena, nas imediações do Theatro Santa Roza, um dos estabelecimentos culturais mais antigos e prestigiados da cidade, e que é constantemente utilizado como espaço liminar entre os frequentadores do Cine Sex América, localizado ao lado. É lá que se conhecem, vez por outra flertam ou aguardam até que o trânsito na praça reduza para entrarem. Na região atrás do teatro ainda encontram-se relativamente próximos uma sauna e outros dois cinemas pornôs, além de algumas pousadas de baixo custo, onde pode é possível ficar a custo de menos de quinze reais por duas horas. O Cine Sex América se localiza na Praça Pedro Américo, ao lado do Teatro Santa Rosa e frente ao atual prédio onde funciona o gabinete do prefeito e outras secretarias de Estado. Em se tratando de cinemas pornôs, é o mais antigo em funcionamento na cidade, estando em atividade desde o início de 2004 e é propriedade do grupo pernambucano Ferreira, que tem outros espaços de exibição do gênero na cidade do Recife. O processo de construção e manutenção social do cinema está relacionado a um processo adverso, de declínio dos cinemas de rua, algo semelhante ao registrado por Vale (2000) na cidade de Fortaleza. Em João Pessoa, o Cine Sex América se consolidou na contramão de um processo de falência registrado pelos três cinemas então em funcionamento na capital, o Rex, o Plaza e o Municipal. Enquanto o primeiro transferiu-se para um shopping, onde atualmente estão localizados todos os cinemas da capital, os demais foram “decaindo”, transformando-se primeiramente em salas de exibição de filmes eróticos e pornôs, para em seguida fecharem, dando espaço a outros tipos de empreendimento, notoriamente uma loja de calçados e uma Igreja protestante pentecostal. O ar de legalidade e regularidade no funcionamento do cinema é exposto com certo grau de distinção por seus proprietários, quando comparado aos demais cinemas em funcionamento: o Papai Cine Video e o Cine Sex Aquarius. O Papai Cine Video foi inaugurado em meados de 2006 e está localizado na Rua Cardoso Vieira, rua atrás do Teatro Santa Rosa e, portanto, bem próximo do Cine Sex América. É o maior dos cinemas em funcionamento e tem um público tão grande quanto o América. Sua estrutura física é
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composta de cinco salas de exibição que reproduzem simultaneamente e durante todo o dia filmes pornográficos de classes diversas: heterossexuais, gays, bizarro, bissexuais e lésbicos. As superfícies de projeção variam de grandes telas a pequenos aparelhos de televisão ancorados nas paredes. Atualmente constitui-se como uma rede administrada pelos senhores Carlos, Ari e Edvaldo e que conta com filiais nas capitais de outros dois estados, além da Paraíba: Rio Grande do Norte (inaugurado em 2010), Teresina (inaugurado em 2008). Diferente do América e outros cinemas onde ocorrem pegação, tais como o etnografado por Vale (2000), o Papai, assim como seu vizinho, o Aquarius, não é um cinema propriamente dito. Trata-se de um antigo casarão art deco, como muitos dos prédios antigos na região, que foi improvisado para atender às necessidades do negócio. O prédio pode ser dividido em duas grandes áreas divididas por uma área para fumantes. Na primeira metade do cinema estão localizadas a bilheteria e o primeiro conjunto de salas de exibição. Logo ao atravessar a bilheteria, o usuário é confrontado com um negrume intenso. Exceto pelas luzes negras e pelo brilho da projeção não há iluminação interna. Logo à entrada estão localizadas um conjunto de três cabines individuais onde os caçadores podem masturbar-se enquanto assistem os filmes por pequenas aberturas. Em seguida à esquerda e à direita dividem-se as primeiras salas de exibição, que reproduzem respectivamente filmes de temática heterossexual e lésbicos. Em seguida, cada uma das salas dá acesso a outras, que se encontram no final com uma pequena abertura de pouco mais de um metro de largura que conecta as terceira e quarta salas de exibição, onde se apresentam, respectivamente, filmes como temática bissexual e pornografia bizarra (incluindo aqui pornografia com travesti). Segue-se então uma pequena área de fumantes e banheiro, que dá acesso ao segundo bloco do prédio onde se localiza a salas de exibição de filmes com temática gay, além de outras duas cabines privativas para casal e um underground onde, ao pagar um valor adicional, pode-se alugar o espaço por algumas horas para relações sexuais mais elaboradas. Em conversas com os clientes, um dos aspectos que o coloca entre os mais conhecidos e frequentados é a discrição. Contraditoriamente, o cinema está localizado em uma avenida de alto fluxo de veículos durante uma parte significativa do dia; além disso, frente à entrada se localiza um ponto de ônibus, onde muitas pessoas esperam pela chegada de conduções que levam aos bairros da zona leste e oeste, região onde estão concentrada boa parte dos bairros populares e mais distantes da cidade. Frequentemente pude observar caçadores que, ao saírem do cinema, optavam por tomar a condução em outros pontos de ônibus, evitando assim encontrarem-se novamente com outros caçadores que haviam encontrado há pouco, no interior do cinema. Por fim, o Cine Sex Aquarius é a filial de um cinema pornô de mesmo nome que tem sede no interior do estado, na cidade de Campina Grande. O Aquarius é o mais recente dos cinemas, tendo sido fundado em 2008. Tem um público consideravelmente menor, em relação aos demais, todavia é reconhecido como um dos melhores, justamente pela localização e discrição. Está localizado também na Avenida Cardoso Vieira, há poucos metros do Papai e uma rua atrás do América. Todavia, nada lhe chama a atenção dos caminhantes à rua. Uma fachada preta onde se desenha uma espécie de túnel
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negro com um pequeno aviso impresso em papel tamanho A4 indicando os valores e solicitando que os usuários não fiquem parados à porta. Em relação aos cartazes de sexo explícito colados à porta de entrada tanto no Papai quanto no América, o Aquarius é um equipamento modesto. Exibe dois filmes semanalmente, que são repetidos durante o dia em duas salas de exibição. Continuando o percurso é possível encontrar ainda outros espaços para pegação na região do Parque Solón de Lucena, seja à noite, na região dos bambuzais que desenham os quiosques e bares do parque, onde os homens costumam masturbar-se eventualmente com a presença de outros, seja, mais uma vez, nos banheiros públicos dos shoppings comerciais e populares, ou de grandes mercados, a exemplo do Hiper Bompreço, um point já tradicional e de relativo prestígio, por onde muitos caçadores já passaram ou costumam frequentar. Os pontos de pegação apresentam uma dinâmica elástica, o que favoreceu a sua permanência através de um dispositivo de constante atualização. Assim, espaços novos podem aparecer constantemente e serem frequentados por um número relativamente grande de pessoas e em breve, desaparecer. São processos contínuos e multiplicadores, apesar de efêmeros. A dinâmica social da pegação acompanhou o novo traçado urbanístico da cidade, não apenas em direção à praia, região onde hoje localizam-se a maioria dos pontos de pegação conhecidos e já famosos na cidade, como também acompanhou o desenvolvimento de certos bairros nas regiões mais afastadas do centro, como os bairros de Bancários, Mangabeira, Valentina, Cristo Redentor e Geisel, que posteriormente culminaram no desenvolvimento de um pequena mancha de espaços comerciais GLS, ou na consagração de alguns espaços como pedaços de sociabilidade entre homossexuais. A cidade não é composta por um aglomerado de pontos distribuídos pelo espaço e desconectados entre si. Não apenas estão localizados numa certa historicidade, que remete, muitas vezes, à necessidade de espaços formalmente destinados e projetados para encontros com caráter homossocial, como também são constantemente reorganizados e articulados pelos frequentadores nos seus trânsitos e circulação. Tais espaços funcionam também de forma suplementar a outros equipamentos, como cabarés e pousadas, espaços com funcionalidades muito próximas e que remetem a regimes e usos do corpo e da sexualidade que dialogam entre si. Homens idosos costumam frequentar simultaneamente Rua da Areia, em busca de contatos com profissionais do sexo, bem como rapazes jovens e dispostos a sexo em troca de algum tipo de retorno (financeiro ou material). A configuração de espaços de sociabilidade ao longo da paisagem não se configura de modo homogêneo. É possível afirmar, com base nos dados etnográficos, que desde a região do terminal Rodoviário no extremo oeste da cidade até os pontos de pegação que se apresentam na praia desenvolvem um contínuo que caracteriza as formas de interação, frequentadores e também as modalidades de práticas em cada espacialidade. Na Figura 6, abaixo, é possível vislumbrar os principais pontos de pegação na região do centro. Tais espaços se configuram como uma paisagem predominantemente popular: trabalhadores de regiões próximas, além de moradores de ruas e senhores idosos configuram a maior parte dos usuários desses lugares.
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Figura 6: Localização dos Pontos de Pegação na região do centro de João Pessoa. Banheiros (1: Hiper Bompreço; 2 – Terminal Rodoviário Severino Camelo). Cinemas Pornôs (1: Cine Sex América; 2: Cinema do Papai; 3: Cine Aquarius). Saunas (Sauna Thermas Paraíba) Os tipos que fogem a este padrão em geral são aqueles que fetichizam relações sexuais com pessoas mais pobres, relacionando o desempenho sexual com algum vestígio de “animalidade” dos homens das classes populares e/ou negros, sexualmente mais vorazes e dispostos sexualmente. Esses outros desejosos constantemente pertencem a outras classes sociais, são mais velhos e vem de outras regiões da cidade, dos bairros de classe média ou média alta. As relações entre esses sujeitos distintos também assumem características bem particulares, que serão problematizadas mais a frente. O processo de construção e estabelecimento de um circuito pegação na região do centro em João Pessoa está relacionado também ao próprio crescimento urbanístico da cidade, a partir da década de 1970. A região da praia, antes utilizada apenas como um espaço de veraneio começou a ser conectada com a região do centro e dos bairros tradicionais nos quatro sentidos (Jaguaribe a leste, Varadouro a Oeste, Tambiá a norte e Torre e Castelo branco a sul) com a construção da Avenida Epitácio Pessoa (Souza, 2005). Nesse movimento houve então um processo de transferência dos espaços de lazer do centro para a região das praias de Tambaú e Cabo Branco. Esse processo atualmente continua agora no sentido horizontal, com a expansão imobiliária e também dos centros de lazer e sociabilidade no sentido dos bairros do Bessa até Seixas e Altiplano Cabo Branco. Seguindo o sentido da Avenida Epitácio Pessoa em direção a praia observa-se também um processo de diferenciação social entre os grupos e espaços localizados no centro e seus frequentadores. A região contempla dois grandes espaços “oficializados” para a prática da pegação, além de alguns outros que acontecem de forma esporádica. Tais espaços são, o banheiro do Hipermercado Extra, na
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esquina da avenida Amazona, e os banheiros do Espaço Cultural José Lins do Rêgo, um dos locais mais tradicionais e comumente referido pelos interlocutores de pesquisa. Segundo Roger, 22 anos: O Espaço Cultural é um dos melhores! Sempre tem gente, e gente nova, se bem que ultimamente tem caído por conta da reforma e das coisas que tem lá... mas ainda assim vale a pena.
Roger faz referência ao processo de reforma do prédio, especialmente da biblioteca localizada no subsolo do prédio e de algumas outras dependências, como o Cine Banguê, todos localizados na dependência. O Espaço Cultural é um local destinado à realização de feiras, eventos e festas de caráter cultural na cidade. O Espaço sedia além da biblioteca, um teatro de arena, um cinema, um teatro comum, dois mezaninos com vista panorâmica que são utilizados para exposição, a galeria Archid di Picado, o planetário, além de uma enorme área aberta para realização de atividades diversas. O Espaço é administrado pela secretaria de cultura do Estado e nos últimos anos vem sendo utilizado como local para feiras de negócios e eventos de grande porte, mas de caráter comercial, o que, na opinião dos frequentadores da pegação que acontece lá, vem diminuindo a intensidade de visitas. Além disso, as feiras trazem consigo um grande número de funcionários que se distribuem nas tarefas de segurança e higienização de todos os espaços, inclusive de alguns dos banheiros usados prioritariamente, como o que se situa na frente da Galeria Archid di Picado, próximo ao mezanino 1. Assim, tem sobrado aos frequentadores quase sempre contentar-se com o baixo número de gente, quase sempre indesejável, como leigos e funcionários, nos outros banheiros ou no estacionamento, o que é evitado, tendo em vista os riscos à segurança. Nenhuma outra região pareceu adequar-se de maneira tão própria a prática da pegação como o litoral, o trecho das praias urbanas, em João Pessoa. Nesses locais pode-se encontrar diversos points que costumam ser frequentados, durante os mais diversos horários por jovens, homens maduros e mais velhos dos mais variados locais da cidade. O desenho desse trajeto do circuito é recortado horizontalmente e estende-se entre os extremos da cidade, da Ponta do Seixas e o lugar comumente conhecido como “Sofá da Hebe” até o extremo norte e a fronteira com a cidade de Cabedelo. Nessa primeira parte do trajeto, que delimita a região do Seixas e Cabo Branco, a região é fortemente caracterizada pela paisagem natural de vegetação de restinga, caracterizada por arbustos baixos, que se emaranham em labirintos por onde se dispersam e novamente se encontram corpos fugidios no jogo de esconder e mostrar-se que se executa na mata do Seixas. A região costuma ser bastante frequentada durante a manhã e tarde e devido ao acesso difícil, não costuma receber pessoas de classes sociais mais baixas, que geralmente não dispõem de carros ou motos para chegar lá. Todavia, a dinâmica deste espaço vem se alterando significativamente nos últimos anos. Essa mudança ocorreu principalmente em função da estrada da região no itinerário turístico da cidade desde 2009, aproximadamente com a inauguração da Estação Cabo Branco Ciência, Cultura e Arte, um empreendimento da prefeitura municipal que não apenas tornou a região que antes era conhecida
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apenas pelo farol do Cabo Branco - um dos cartões postais da cidade, sendo o extremo leste do continente americano – como também estimulou o crescimento imobiliário na região ao redor. Se por um lado esse novo fluxo de atividades, serviços e pessoas trouxe também mais facilidades de acesso e permanência na mata, também vem sendo visto como um processo de reacomodação dos antigos grupos de frequentadores. Não raro escuta-se entre as trilhas desenhadas a pegadas e preservativos que, nos últimos tempos, as coisas têm piorado e os assaltos se tornado frequentes por conta desses novos frequentadores. Ainda assim, o que parece haver é mais um processo de advertência e tentativa de reestruturação dos antigos grupos de frequentadores, que não querem perder o seu lugar e manter a forma como ele funcionava no que se refere a público, possibilidades de atividades, horários e outras coisas mais. Perguntando a alguns entrevistados se já haviam sido abordados de forma agressiva ou assaltados todos responderam negativamente, mas ainda assim reiteravam as recomendações para tomar cuidado, e se possível, ir para outro lugar. Ainda na região da praia do Seixas, descendo em sentido à zona norte da cidade, chega-se à Praça de Iemanjá, uma pequena praça adornada ao fundo com uma imagem da orixá Iemanjá que, há alguns anos, era usada pelos pescadores das regiões próximas para reunir-se para pesca. Atualmente, com o fim da tarde, a praça também serve como ponto de encontro entre rapares, geralmente mais velhos e de condição social mais pobre e que não gostam de subir a ladeira para o Seixas. As razões atribuídas frequentemente é o horário, que em geral, por ser durante a manhã, torna-se inacessível aos demais, mas também é registrada a queixa por parte de alguns pela forma como são olhados e muitas vezes ignorados na parte superior. Em Tambaú, nas imediações do famoso hotel que recebe o nome da praia, também é comum, durante a noite, vislumbrar na parte de trás, já na areia um intenso fluxo de homens, geralmente brancos, de classe média ou que adotam um estilo de vida próximo a isso em termos de roupas, gostos e preferências musicais. Não há muito espaço para a conversa e eventualmente, as relações resumemse em sexo oral ou masturbações em dupla. Dentre todos os pontos conhecidos no trajeto litorâneo do circuito da pegação, o Hotel, dada sua centralidade, é o único que recebeu ação ostensiva da polícia no sentido de estabelecer uma limpeza da região. As ações da polícia, através da cavalaria consistiam em rondas durante toda a noite na região que compreendia desde o Busto de Tamandaré até o Largo da Gameleira, na divisa entre as praias de Tambaú e Manaíra, sempre passando por trás do hotel a fim de coibir atentados violentos ao pudor e ator libidinosos praticados pelos frequentadores. Entre os usuários mais antigos, a exemplo de Renato que, segundo nos conta, costuma ir ao Hotel desde 2001, aproximadamente, quando chegou à cidade, vindo da região do brejo do estado, algumas pessoas chegaram as ser pegas, levadas à delegacia e moralmente constrangidas. Segundo Renato, essas apreensões aconteciam de forma disciplinar: por mais que houvesse grupos de 10, 20 pessoas, apenas um era levado pela cavalaria pra prestar esclarecimentos. O trajeto do litoral é fechado então com dois dos pontos mais nobres e frequentados na região: na zona divisória entre as praias de Manaíra e Bessa, próximo ao Mag Shopping, e o final da praia do
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Bessa, no trecho próximo à praia de Intermares, na fronteira entre os municípios de João Pessoa e Cabedelo. O primeiro trecho é bastante conhecido pela frequência de rapazes que gostam de relacionar-se com homens mais velhos, geralmente “pais de família” que costumam frequentar o local após a jornada de trabalho; ainda assim, o local abrange uma variedade de tipos consideráveis, em geral mais brancos e de classe social média ou superior. O tipo repete-se na região final do Bessa, nas imediações do antigo bar Peixe Elétrico, este sim, frequentado majoritariamente por pessoas que não apenas tem um estatuto social mais abastado, como também tem seus corpos mais adequados aos padrões de beleza então vigentes. Não raro encontram-se homens “sarados”, “bombados” e “barbies”, como são costumeiramente classificados nas categorias nativas.
3.2 Arquiteturas sócio-corporais A arquitetura do banheiro é parte constituinte da forma como os usuários manejam o espaço; tais usos engendram-se ainda naquilo que Teresa de Lauretis (1989) chama de “tecnologias de gênero”. Acompanhando a reflexão de Lauretis, Beatriz Preciado (s/d) sugere que, o uso dos banheiros não está relacionado às funções digestivas do corpo, mas antes ao gênero. O banheiro assume assim por dispositivos diversos representatividade análoga à percepção do sexo como lugar do privado, do indizível familiar. Essas relações dialógicas se através materializam-se através de biopolíticas de controle do gênero, espécie de patrulhamento que questiona qualquer possível ameaça, qualquer registro de expressão instável ou duvidosa de gênero (PRECIADO, s/d, p.3). A construção arquitetônica do espaço sinaliza bem para a natureza das relações que podem ser ali estabelecidas, bem como o que pode ser mostrado, o que deve ser reservado. A estrutura tradicional do banheiro masculino é compartimentada em três setores: pia, mictório e reservados. Na confluência entre Lévi-Strauss (1985) e Foucault (1999) é possível afirmar ainda que o processo de educação do corpo e suas reações, bem como do espaço e seus usos, são processos inseridos e mediados pelas regras culturais e práticas sociais dos grupos humanos. Tais processos são construídos e reencenados como se naturais fossem por meio de instituições e dispositivos como a família, escola, relações de trabalho, mídia, etc. Na arquitetura do banheiro cada espaço relaciona-se um uso e um elemento corporal que deve ser evidenciado ou ocultado. Assim, concebe-se o pênis como um “órgão público” na dinâmica das relações estabelecidas ali; homens podem olhar – ainda que não o devessem – os genitais alheios enquanto se posicionam em uma fileira de mictórios organizados geralmente ao fim do ambiente. Já bunda e ânus pertencem à esfera do privado, não porque o ato de defecar implique a necessidade de recolhimento, mas porque seu produto, os excrementos, está em outro domínio que não o da civilização. Como relembra Jorge Leite Júnior (2009), o processo de construção do meio social é um processo de construção corporal historicamente situado e perpassado por transformações: Os manuais de civilidade, que se espalharam por todas as cortes europeias durante o Renascimento, vão treinando a sensibilidade no sentido de aumentar o nojo e a vergonha para com tudo que lembre a “animalidade” do corpo humano e, por isso,
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contribua para a perda de status ou respeito ao tornar a pessoa mais próxima dos “rústicos” camponeses e outros desqualificados sociais. (...) Desta forma, em nossa cultura, pode-se afirmar que os excrementos são algo que deve ficar escondido, secreto, pois não pertence mais à dita civilização. Por isso vão para o esgoto, lugar afastado, foco de doenças e morte, local do “impuro” (LEITE JÚNIOR, 2009, p. 518).
Além dos aspectos envolvidos na invenção das tradições, é preciso reconhecer ainda que há nesse processo de interdição da bunda e do ânus um expressivo apelo ao gênero. Assim que o ânus é o reduto secreto da masculinidade. Dentro de um regime heteronormativo, para os homens, o ânus deve ser apenas uma válvula de excreção; exceto por isso, não deve se quer ser considerado um órgão. Todo esse processo de segmentação e hierarquização das partes e funções corporais sustenta uma mitologia que Preciado (2000) chama de “castração anal”, processo que concebe o ânus como sujo, privativo e menor. Tiveram que substituir o dano com uma ideologia de superioridade de modo que só se recordam de seu ânus ao defecar: como fantoches acreditam que são melhores, mais importantes, mais fortes. Esqueceram-se que sua hegemonia está assentada sobre sua castração anal. Com a castração do ânus surgiu, ao enfiar o dólar nas tripas úmidas de bebês, o pênis como significante despótico. O falo apareceu como mega$-pornô-fetiche-acessível da nova Disney-heterossexua-lândia (PRECIADO, 2000, p.137).
O processo de castração anal remete a um intenso investimento para destituição do ânus e suas relações com qualquer possibilidade de prazer. O ânus converte-se num espaço que afirma e valoriza a masculinidade pelo artifício da inviolabilidade. Se por sua vez a algumas partes do corpo, a exemplo das genitálias, corresponde um espaço que é privado ou sigiloso para certos grupos, o sexo também ocupa um lugar que é socialmente construído como devendo ser privativo e doméstico; sobre essa percepção adiciona-se ainda o parâmetro da normalidade e da regularidade, como se sendo assim, fosse natural e dado que devesse de fato ser assim. Mais uma vez, esse tipo de construção de variação sexual maligna corrobora para a criação de estigmas eróticos (RUBIN, 2012), que relevam à posições vulneráveis certas práticas sexuais e seus agentes (pense-se por exemplo no sexo intergeracional, no sexo pago, e até mesmo na pegação). Sobre a pegação masculina recai o estigma do sexo sujo e impessoal, da vida promíscua e do lugar da doença e da maleficência. Associada à clandestinidade e aspecto improvisado dos encontros, as trocas estabelecidas aí são tomadas como passíveis de contaminação em um sistema moral fortemente comprometido com o disciplinamento dos corpos; soma-se a isso ainda na capital paraibana a grande influência que os espaços e poderes religiosos exercem sobre a sociedade civil de forma geral. Com o crescimento das instituições religiosas pentecostais no estado, é possível afirmar ainda a confluência entre uma modalidade de poder transacional e tático destas instituições que conflui para uma dimensão maior, de poder estrutural (WOLF, 2003), que se mesclam às políticas públicas de saúde e acolhimento social, além de outros serviços públicos, como a segurança e a educação.
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3.3 – Canibalismo e outras dissidências (des)identitárias É importante considerar aqui a importância que a sexualidade assume na construção de identidades que mediam as situações sociais onde estes sujeitos estão inseridos, ou em termos mais específicos, estratégias de identificação que, tomando por base aspectos performativos do gênero (BUTLER, 2003) e da sexualidade, mediam as diversas possibilidades de interação que os sujeitos desenvolvem dentro dos territórios de pegação. Como afirmam Adriana Piscitelli, Maria Filomena Gregori e Sérgio Carrara ao comentarem sobre as abordagens em ciências sociais que inserem a sexualidade em um lugar central na construção das subjetividades contemporâneas: Esse conjunto de práticas, representações e atitudes em torno das trocas eróticas traduz uma dimensão interna dos sujeitos e, nesse sentido, é particular a uma determinada cultura. Por isso só seria possível recorrer à sexualidade como “explicação” quando o contexto cultural o autoriza. (...) Os contextos que autorizam essa explicação são aqueles nos quais há uma noção de pessoa, na qual interiorização e individualização modelam a subjetividade. Essa ideia de pessoa, o sujeito moderno ocidental, associada à noção de indivíduo como valor, só se encontraria em grupos sociais específicos (2005, p. 13).
Tais elementos estão presentes e são acionados na construção das performances e interações entre caçadores nos cinemas e banheiros; a continuidade e valorização de certo tipo de conduta não é de forma alguma um elemento dado, pelo contrário, é construído e constantemente negociado na medida em que aparece como um valor do indivíduo, valor esse que pode ser avaliado, medido e mensurado, posto em comparação junto a outros. A natureza das relações construídas no cinema encontram-se em uma zona intersticial entre aquilo que Gaspar Neto (2011) chama de "coeficiente de anonimato" e a constante análise da conduta e performance alheias. No banheiro permanecem preceitos similares: qualquer sujeito que entra é analisado e lido como passível ou não de estabelecer algum tipo de contato, e que tipo de contato é esse. Nestes espaços a masculinidade é um capital importante que orienta as possibilidades de sucesso nas interações estabelecidas entre os sujeitos. Estabelece-se então entre os sujeitos uma espécie de contínuo balizado por estratégias de classificação de si e dos outros que têm como propósito aproximar-se o máximo possível de um ponto extremo desejável e afastar-se de outro, por consequência, negativo e indesejado. Certo dia, em meados de setembro de 2013, durante uma conversa com Otávio e Neto, Bruno, interlocutores com quem mantinha contato há mais ou menos cinco meses, Bruno me relatava sobre seu último encontro com um senhor mais velho, na faixa dos quarenta anos: Porra, fazia tempo que eu não comia um macho daqueles, pense... chega deu gosto. A cabine apertada e o bicho tinha umas coxas, um peito bom de chupar e uma bunda que pelo amor de deus... se tem outra igual eu quero comer também. Tinha até um pau gostoso; ainda dei umas chupadas nele porque ele tava pedindo e um macho daqueles a gente não pode rejeitar. Pesquisador: E como ele era? Bruno: acho que tinha uns 40, cabelo baixo, troncadinho, voz massa, todo macho. Do jeito que era capaz que eu desse pra ele [risos] Neto: E tu agora tá dando também, é? Vai dar pra mim também?
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Bruno: Sai daí, pô! Sou viado não.. [todos riem] Pesquisador: E se não é viado é o que então? Bruno: sou macho, né?! Sou canibal! [todos riem]
Bruno continua o relato de suas aventuras sexuais e é acompanhado pelas perguntas e interrupções dos outros rapazes, que numa espécie de bricolagem narrativa, emprestam às experiências de Bruno as suas próprias, de modo que constroem um jogo onde as vivências do indivíduo são somadas na constituição de discursos de partilha e reconhecimento. Ao caracterizar seu parceiro, Bruno assume uma identidade sexual que independe da posição assumida no coito, e, ainda que a uma intimação mais pública rejeite ser tomado como sexualmente passivo, ou seja, penetrável, não coloca-a como algo impossível ou distante, mas sim como algo a ser negociado na própria interação e sobre o fluxo do desejo. Como observa Perlongher em seu estudo sobre a prostituição viril na década de 1980 em São Paulo, entre os michês a masculinidade é um valor a ser preservado, e por essa razão, o uso do ânus parece sempre impor uma tensão. Segundo o autor:
Não se trata de um mero jogo de espelhos invertidos, mas as transições entre hipervalorização de uma virilidade convencional que proscreve discursivamente o ânus como zona erógena (no plano da expressão) e o envolvimento em relações homossexuais cujo eixo gira em torno, precisamente, da sensibilidade anal (no plano do conteúdo), envolvem “transduções” lentas e tortuosas (PERLONGHER, 2008, p.221).
Dá-se assim que as performances masculinas, assim como na etnografia de Perlongher, em escalas diversas nos cinemas e banheiros está baseada numa hipérbole de gênero. No caso em questão, o uso do ânus permanece como um conflito na construção de uma performance desejável, mas que é resolvida mediante expressões do tipo “alguém tem que ceder”, que apontam para uma flexibilização das performances onde a posição assumida durante o sexo não implica uma penalização, falta ou ininteligibilidade, mas antes, uma variação necessária. Em outra conversa, dessa vez com Francisco, é possível observar em sua narrativa alguns elementos que lançam luz ao que nos relatou Bruno, possibilitando entrever alguns elementos prioritários de diferenciação entre esses “machos” e os “viados”. Francisco tem 43 anos, mora sozinho em uma região de prestígio da cidade, e se diz "infeliz no amor", razão pela qual costuma frequentar alguns cinemas e também páginas de bate-papo virtual e comunidades de pegação em redes sociais em busca de parceiros, geralmente garotos de programa. Sobre uma possível identidade sexual que pudesse atribuir a si mesmo ele comenta. Eu posso até ser gay, mas não sou como essas bichinhas por aí. Não ando saltitante, não sou afeminado, bichina, né? Não sou nem curto. Gosto de macho que curte, macho mesmo. Ontem no [bate-papo do site] Uol conheci um cara de Mandacaru; a gente abriu a webcam, era massa e tal,e marcou de se ver... quando parei na praça pra ver tava uma bicha gorda, um viadinho assim, daí eu liguei pra ver se era ele mesmo e uma voz que parecia uma moça!... Ela já tinha me percebido e entrou no carro, mas não tinha como rolar... dei um perdido nele e devolvi pro mesmo lugar,
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dizendo que não rolava, que não estava bem...ainda ontem mesmo ele me ligou e eu não atendi. Sou macho e curto macho, não esses viadinhos aí.
Ao negarem uma identidade/identificação enquanto "viadinhos", meus interlocutores não ignoram a possibilidade de virem a ser posicionados ou até mesmo a posicionarem-se enquanto homossexuais – “eu posso até ser” -, mas rejeitam as imagens socialmente construídas em torno da homossexualidade enquanto encenação de um gênero feminino, ou que segue em direção a este. Para fugir a estas imagens, as estratégias de negação, ocultação e reinvenção são as mais comuns. Por ocultação entendo a possibilidade de uma vivência homoerótica em paralelo a uma identidade heterossexual; esse tipo de estratégia é constantemente apresentado a respeito dos "pais de família", que em geral localizam-se num extremo desejável do contínuo de performances desenvolvidas no cinema. Certa vez me comentou Otávio a respeito de um senhor, segundo ele, pastor em uma igreja protestante "diz que é crente e vem pra trepar com os machos... se a mulher soubesse". Por sua vez, a reinvenção inaugura uma estratégia de estabelecimento de identidades mais flexíveis, organizadas segundo os interesses dos indivíduos e suas performances, como se verá adiante. Nas falas de Francisco e Bruno sobrepõem-se alguns aspectos já evidenciados anteriormente na fala de Otávio sobre os perfis de masculinidade desejáveis: o uso do corpo para movimentar-se, a voz, o léxico e o jeito de falar, símbolos como roupas, cortes de cabelo, enfim, compõem uma performatividade estratégica que é acionada com o propósito de construir uma imagem desejada. Neto, um dos interlocutores mais jovens com quem venho desenvolvendo a pesquisa, apresenta alguns elementos que parece sugerir tal processo de "performatividade localizada", uma estratégia de reinvenção e transformação constante dessa “masculinidade homoerótica”. Em conversa através do dispositivo de mensagens de uma rede social ele comenta, a respeito de si e dos outros colegas, em especial Bruno. Assim, eu não me acho muito diferente deles, apesar deles serem mais velhos. A gente tem os mesmos gostos, as vezes fica com os mesmos caras e tal... mas eu acho que, sei lá, sou mais livre mesmo... tipo no cinema eu as vezes vou de farda, as vezes de bermuda e camisa como eles, outras vezes vou do jeito do pessoal da minha idade. Acho que sou mais livre que eles, ou sei lá...
Durante a pesquisa também pude observar algo parecido entre outros frequentadores que encontrei em outros lugares onde desenvolvo a pesquisa, a exemplo de saunas e banheiros e boates. Assim, é possível sugerir que as performances são organizadas a partir das demandas de interação que cada espacialidade comporta; ainda que a masculinidade seja um capital importante em todas, acredito que há certos espaços mais exigentes enquanto outros são mais maleáveis, aceitando algumas variações questionadoras, que se situam em regiões de fronteira, a exemplo das saunas, que eventualmente recebem travestis e drag queens para apresentações artísticas e que, logo em seguida,
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são incorporadas na dinâmica de sedução dos espaços e conseguem desenvolver alguns relacionamentos sem grandes dificuldades10. Para meus interlocutores, as identidades sexuais que vivenciam (identidades no plural, porque constantemente são reordenadas a mercê das situações e interações que vivem) não tem a ver com as posições sexuais assumidas durante a transa em si, mas antes, a um conjunto variante de atos performativos (BUTLER, 2003) que compõem cadeias de inteligibilidade para o que pode ser entendido como masculino ou não. Seus corpos são "um conjunto de fronteiras, individuais e sociais, politicamente significadas e mantidas" (Ibdem, p. 59). Todavia, no jogo entre corpo, sexo, performance e identidades sexuais, nosso caso, é preciso ter em mente que tais encadeamentos são simultaneamente concebidos num primeiro momento como estabelecidos, naturais, fixos, imanentes, mas também podem ser flexibilizados de modo a aproximar-se o máximo possível de um extremo desejável: o macho. Estabelece-se assim um contínuo entre possibilidades êmicas de classificação que se significam os jogos corporais performativos desde um extremo "machudo" até um outro "travesti"11, como se observa no Quadro 02. Quadro 02: Contínuo de classificações êmicas em torno das performances masculinas MACHO “VIADO” Negões Militar (milico) Barbie Cafuçus Gay discreto Gay afeminado Ursos “Tia” Machudo Lolitos Travesti ++ -Fonte: Adaptado de Perlongher (2008, p. 157).
A identificação como machuco é reservada aos homens maduros, em geral casados, razão pela qual eventualmente são referidos como "pais de família", todavia, nunca a vi aplicada a qualquer pessoa negra ou com aparência que pudesse denunciar o pertencimento a uma classe social muito baixa, como onde estão inseridos pedintes e moradores de rua. Para estes, existe como que uma estratégia de "penalização" que por um lado fetichiza o corpo negro e o corpo proletário em identidades masculinas de negões e cafuçus, mas por outro lado reduz ou subordina seu valor de masculinidade a um modelo mais desejável, branco e burguês personificado no pai de família. Em 10
Para uma análise mais aprofundada sobre a presença de travestis em espaços de sociabilidade marcadas pela pegação ver Vale (2000) que apresenta uma etnografia do cine Jangada, em Fortaleza, evidenciando a presença de travestis que ali se prostituem. Tais processos de prostituição travesti, ou mesmo de frequência destas personagens não foram observados durante o campo, exceto por uma situação onde uma conhecida travesti da cidade apareceu lá, mas neste caso especial, estava "desmontada" ou seja, construiu para si um corpo e uma performance masculinos 11
Travesti aqui recebe uma significação diferente, não referindo-se necessariamente a uma identidade sexual travesti; antes, refere-se a tudo aquilo que é visto como um extremo "não-homem", não masculino, sem tampouco ser feminino. Para todos os fins, É uma marca de ambiguidade tomada como jocosa, e por vezes, que deve ser evitada.
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seguida tem-se padrões aceitáveis, mas que se localizam na medida do possível como "corpos regulares", que não estão num extremo de masculinidade idealizado, mas que também não seguem em direção a outro. Esses corpos geralmente são lidos como discretos, desejados e desejáveis na medida em que não denunciam trejeitos femininos, tampouco superevidenciam uma performance de masculinidade hiperbólica que dentro das interações do cinema é frequentemente questionada como "enrustida". Por fim, no ponto extremo aparecem performances pouco valorizadas, mas ainda assim utilizadas como forma de desqualificar as performances de possíveis concorrentes, e por tentar alavancar as do próprio sujeito. Nesse extremo aparecem homossexuais afetados, velhos (tias), ou com condutas que não são recebidas como aceitáveis para um homem (travestis). Observa-se assim que as "identidades" são manuseadas como parte constitutiva do jogo das trocas que a pegação no cinema suscita. São fixas e simultaneamente fluídas, a mercê dos interesses dos próprios caçadores. No entanto, é necessário averiguar ainda a existência de um mecanismo micro, que permite ao sujeito, por exemplo, flexibilizar sua performance para ser identificado como um gay discreto, ainda que em outros lugares não fosse; esse mecanismo micro coocorre com um mecanismo macro, conformado pelo tecido social daquele espaço, que têm o poder de acatar ou rejeitar tal flexibilidade, a exemplo de uma história narrada por Francisco a respeito de um encontro que teve com um senhor que se dizia discreto, mas que, ao encontrá-lo de pronto sentiu-se enganado ao encontrar com um homem mais velho que ele e também mais afeminado, enfim, uma "tia". Um olhar atento evidencia o quão inútil é pensar “identidades” nesses espaços como constituições fixas; se são fixas, são fixas na sua efemeridade, apenas durante os breves minutos dos encontros em que se faz necessário sustentar uma posição ou outra, em seguida são reconstituídas em outras formas de ser e estar que podem afirmar, negar ou ocultar as práticas anteriores. Sugiro assim a existência de "estratégia identitárias", dispositivos de diferenciação e reconhecimento acionados à medida das circunstâncias tão somente. As performances que acompanho têm como propósito favorecer o sucesso das interações dos sujeitos em busca de encontros corporais em um cinema pornô da cidade de João Pessoa. No que nos toca, tais performances são possibilidades acionadas à mercê da natureza e dos interesses envolvidos em cada interação dos sujeitos uns com os outros. Em termos gerais, a masculinidade é um mecanismo valorizado e evidenciado pelos sujeitos na busca de parceiros; assim, elementos corporais importantes para a conformação de tais performances, a exemplo da postura ao movimentar-se, da voz, a exposição ou insinuação do uso do pênis ou do ânus, além de demais formas de usar o corpo são importantes na medida em que indicam pistas, caminhos e possibilidades para as práticas sexuais ou eróticas a serem desenvolvidas. A valorização da masculinidade é acompanhada por um dispositivo recorrente de negação de um modelo socialmente construído de homossexualidade como valoração negativa, de base feminina, e que tais sujeitos não compartilham ou rejeitam, razão pela qual reinventam, negam ou ocultam formas de identidade consolidadas pelas políticas de visibilidade estabelecidas pelo movimento LGBT
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nos últimos 40 anos no Brasil. Nesse processo, é preciso ainda advertir para uma característica importante de que a afirmação de tal masculinidade é feita em detrimento da desvalorização de certas performances ou identidade sexuais relacionadas a uma esfera mais feminina. Esse processo de diferenciação com base em relações sob o princípio da oposição e da condicionalidade restritiva (posso até ser “X”, mas não igual a “x”) retoma elementos elaborados por Brah em sua noção de diferença como relação social, que se coloca como uma estratégia entre outras de estabelecer uma distinção. Segundo a autora, essa noção de diferença com base nas relações socialmente estabelecidas “sublinha a articulação historicamente variável de micro e macro regimes de poder, dentro dos quais modos de diferenciação tais como gênero, classe ou racismo são instituídos em termos de formações estruturadas” (2006, p. 363). No caso em estudo, o estabelecimento de práticas homoeróticas com outros homens não vincula necessariamente as identidades individuais dos seus praticantes à necessidade de assumir uma identidade “gay”, muitas vezes postulada com base em uma política compulsória de visibilidade afirmada em expressões do tipo: é importante sair do armário para viver uma sexualidade plena e feliz. As práticas homoeróticas de alguns sujeitos no circuito da pegação contestam essa via única, lhe oferecendo se não caminhos alternativos, pelo menos possibilidades que interrogam a necessidade de uma afirmação política gay, e suas implicações. É possível vislumbrar ainda que nesse contexto de práticas as hierarquizações estabelecidas se cruzam em vários momentos e se estabelecem em espaços outros que não o da reprodução de um modelo heteronormativo a ser replicado. Nesse caso o que é normativo é o desempenho de uma masculinidade muitas vezes cosmética, que se estabelece a partir da encenação de uma performance corporal desejável, aquém dos papéis assumidos durante a relação sexual.
3.4 - Pensando Interseccinalidades: raça, classe e preconceito nos territórios de pegação O público que conforma o que tenho chamado aqui de “caçadores” é bastante heterogêneo de modo que reduzi-lo a um padrão uniforme é ingênuo, quiçá inútil. Todavia, é notável a grande presença de pessoas de pele escura12 em relação a um padrão caucasiano, e também de tipos que são presumidos como de classes populares, pobres. Os negros, apesar de maioria, são temidos e estigmatizados pelos caçadores em termos gerais. Sobre eles recaem a suspeita de um assalto inesperado, da violência. Alguns relatos ouvidos durante as primeiras observações, em abril de 2012, não apenas nos banheiros e cinemas, mas nos demais locais em que desenvolvi a pesquisa (locais online e offline), pude escutar repetidamente a história de pessoas que desistiram de ficar especialmente nos banheiros enquanto um “negro suspeito” estivesse no banheiro. O negro suspeito 12
Ao decorrer do texto tenho chamado essas pessoas de “negras”, não sem conflitos, tendo em vista que esse não é uma autodesignação dos interlocutores; em alguns momentos apareceu como parte das falas dos próprios sujeitos, em outras não. Todavia, mesmo quando se colocam enquanto negros, colocam-se em situações e questões diversas, que não necessariamente fossem ser mantidas na medida em que se tratasse de suas relações dentro dos cinemas e banheiros.
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geralmente é descrito como aquele mal trajado, em geral com os pés sujos, símbolo de que esteve por muito tempo na rua, talvez morador de rua, usuário de drogas ou fugitivo. Mesmo quando bem trajados, nos banheiros as transações com os negros costumam ser mais demoradas: “demora a chegar num negão. Tem que sentir firmeza, saber que não é ladrão”. Danilo, um jovem de 21 anos, autodeclarado negro, corpulento e de olhos claros, num tom de verde acetinado me conta que, certa vez, enquanto estava em um dos banheiros do Espaço Cultural, após 15 minutos sem que ninguém se aproximasse dele, apareceu um jovem branco, aparentemente na sua faixa etária, pouco gordo. Após as trocas de olhares e conferir a “ferramenta” de Danilo, o rapaz o chamou pra que fossem pra outro banheiro, pouco frequentado, mas ainda dentro do Espaço. Chegando lá, todas as cabines vazias, o rapaz entra em uma delas e fecha a porta levemente. Danilo permanece do lado de fora sem entender. O rapaz diz que está sem as calças e pede pra que nosso ele tentasse arrombar a porta, sem fazer barulho, pra não atrair a atenção de eventuais seguranças ou pessoas próximas. Não entendendo o que estava acontecendo, pergunta o que está acontecendo, quando o seu parceiro responde: “sempre tive tesão em ser assaltado e estuprado por um negão”. A história que Danilo narra é um exemplo da estigmatização e simultânea fetichização que o marcador de raça exerce sobre os frequentadores dos locais que estudamos. Para muitos, não ser negro é um critério de garantia de parceiros, daí as inúmeras denominações para os tons de pele que buscam fugir à trágica afirmação de se ser negro. A matiz se esboça de forma dissimulada, estendendo-se desde o moreno escuro, passando pelo claro, latino, moreno jambo, bronzeado até as diversas matizes de branco. O fluxo ascendente nesta parábola cor x status está no sentido do branqueamento. O tipo branco, loiro e de olhos claros é absolutamente desejado; quando combinando com certos aspectos de uma performance de masculinidade lida como aceitável é disputado por (quase) todos. Ainda assim, esse tipo é pouco comum. Recorrentes são os embustes desse tipo europeu que os nativos chamam de alemão ou americano, em geral com homens de cabelos descoloridos, sejam totalmente loiros, o que é mais raro, seja com a aplicação de mechas claras. Esse recurso, todavia é bem característico das práticas desenvolvidas nos banheiros, onde os sujeitos podem ver uns aos outros por completo com ajuda da iluminação e principalmente nos cinemas, onde o tempo e a situação de maior conforto frente à surpresas inesperadas como a chegada de intrusos ou seguranças são menores. Ainda sobre os negros, exige-se dele uma postura hipermasculina e em geral que seja bem dotado, ou seja, que tem a genitália avantajada e erétil. Os homossexuais negros efeminados, ou com trejeitos são rechaçados e ridicularizados. São chamados de “viado podre”, “quem-quem” e outras nomenclaturas que remetem a uma posição inferior e debochada. O negro desejável passa por um processo de branqueamento. Luís, 32 anos, casado, pai de 2 filhos, diz que curte ser exclusivamente passivo, mas que, assim como Francisco, apresentando anteriormente, não se reconhece como gay. Também diz que não curte homens, a não ser que... se for aquele tipo, cabelo curtinho, nariz bonito, um preto mais clarinho e tal... meio forte, tipo macho mesmo! E claro, roludo... aí a gente dá. Mas assim é difícil, o que
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mais aparece são esses viadinhos de escola, que sobem a favela pro Espaço pra fingir que é homem, mas nada... [deboche] No Brasil, assim como em outros países multirraciais, observa Pinho (2012), o entrave entre corpos negros e brancos é testemunha de um processo mais amplo de hierarquização racial. Esse processo num nítido embate binário que ignora a multiplicidade de variantes, estabelece entre negros e brancos escalas cada vez mais árduas que tem como propósito subtrair às matizes miscigenadas a possibilidade de alcançar alguma proximidade com um ponto estabelecido como branco. Em um outro plano, esses corpos subalternizados são colonizados e colocados como possíveis objetos de um desejo colonizador. Como argumenta o autor: a diferenciação dos corpos e sua hierarquização colonial demandaram a regulação de corpos sexuados e racializados, justamente por meio de dispositivos de racialização e sexualização; um modo para proceder-se a distinção entre selvagens (negros, índios e mestiços) e civilizados (PINHO, 2012, p. 180). A inserção de uma masculinidade negra despótica a uma masculinidade hegemônica e branqueada (CONNELL; MESSERSCHIMIDT, 2013) pode esconder relações bem mais complexas, de modo que é preciso interrogar de que se trata essa dominação que supostamente o “negão” penetrador exerce. No campo dos estereótipos, essa distinção entre selvagens e civilizados a que Pinho se referiu tem condicionado o corpo negro ao lugar da selvageria, onde a “animalidade” e suas possíveis ou imaginadas relações com a potência, virilidade e fertilidade são características comuns nas exotização deste corpo, em geral apresentado de forma parcelada: pênis, braços, olhar sedento e compenetrado. Estimagtizado socialmente, fetichizado sexualmente, espera-se do negro uma disposição ao sexo contínua e inabalável, uma aparente dominação deste, que na verdade, manifesta-se como reprodução dos habituais esquemas de subalternização, onde o negro é um escravo sexual, a mercê dos desejos do seu submisso. O tipo cafuçu representa uma peculiaridade dos locais abertos onde o estrato social dos frequentadores é mais baixo. Verdadeiro fetiche para alguns, reproduz alguns dos estigmas dos negros, por vezes sendo a negritude uma das marcas do cafuçu. Cafuçus e negões compartilham, além do estatuto da cor, uma pressuposição de que pertencem a uma única classe social: a popular. Seriam assim, a partir de uma miríade de possibilidades de significações: negros e mulatos pobres. Em João Pessoa o termo cafuçu faz alusão ao tipo de personalidade normalmente exagerada, que tem sua representação máxima no bloco de pré-carnaval homônimo, onde a vaidade é reelaborada segundo as normas do excesso e do ridículo risível. Cabelos emaranhados, dentes sujos, perfumes baratos, celulares enormes, pentes e espelhos domésticos usados como portáteis, além da irreverência popularesca do falar alto, em um clima de conversa de porta entre vizinhas. Na gramática sexual, o tipo cafuçu é representado em geral por homens pardos ou negros, frequentemente magros com algum desalinho no código das roupas. A beleza não é um atributo exigido, ao contrário da masculinidade que é em suma elaborada como de maneira hiperbólica. Frequentemente o cafuçu é um trabalhador
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que tem a pegação como uma distração e investimento após as jornadas longas e cansativas. Nos banheiros da região do centro, como o da rodoviária e do supermercado Hiper Bompreço em geral são engraxates, flanelinhas, pedintes e outro miseráveis que ganham a vida oferecendo seus serviços a usuários das pequenas lanchonetes que se distribuem pelo parque. Assim como a fantasia do negro devorador, selvagem e bem dotado, são estabelecido para o cafuçu as mesmas expectativas quanto ao desempenho sexual. Espera-se que sejam brutos, truculentos, insaciáveis e que “usem” os corpos homossexuais, sinalizando uma possível inversão no padrão hegemônico de dominação da classe burguesa sobre trabalhadores. A violência também é um elemento a afastar a maioria dos frequentadores dos cafuçus, em geral tido como agressivos e marginais em potencial. Poucas pessoas aventuram-se e entrar nas cabines ou ficar a sós com um tipo destes nos banheiros. Nos últimos anos, nos conta um informante, com o crescimento da marginalidade juvenil e o surgimento das primeiras grandes gangues delinquentes conhecidas na capital paraibana como a Okaida e Estados Unidos, a atenção no contato com os cafuçus tem sido redobrada, afinal, “nunca se sabe quando uma pessoa qualquer é bandido, né?”. Tanto no desejo orientado ao negro quanto ao cafuçu observamos uma peculiaridade, uma riqueza simbólica que a diferenciam de outras trocas desenvolvidas nos meios de pegação entre outros tipos frequentantes. A aparente imagem de transgressão, de novas formas de dominação é sublimada ao olhar atento que revela uma sutileza dessas relações. Apesar de o esquema tradicional relacionar o penetrador/dominador como o masculino, o homem, e o penetrado/submisso com o feminino e a mulher (GREGORI, 2008), parece haver um deslocamento, onde ser sexualmente ativo não implica dominação ou violência de gênero nos seus formatos tradicionais. A utilização desse outro fetichizado, a meu ver, representaria mais uma forma de dominação, onde os marcadores de raça e estrato social são ativados como forma de objetificação do outro. Assim, negro e cafuçu não seriam dominadores, mas antes, objetos de desejo, aparatos sexuais subordinados e submetidos ao desejo dominador, tradicionalmente relacionado ao masculino, branco, de classes sociais superiores, mas que aqui é colocado como sexualmente passivo, penetrado ou penetrável.
Considerações Finais Considero a pegação como um sistema de relações inserido dentro de um conjunto maior de possibilidades e interesses sociais que se estabelecem dentro de uma rede que circunscreve diversos espaços e equipamentos de sociabilidade distribuídos pela paisagem urbana. A utilização desses espaços e equipamentos pelos caçadores e frequentadores dos espaços – materiais ou não - configura o delineamento de uma nova cartografia da cidade construída com base em uma lógica que toma como princípio norteador o sexo como forma de socialização e entretenimento. Esses espaços por suas vezes não atuam de forma isolada, mas conectam-se a outros lugares e territórios dentro e fora do circuito da pegação e das trocas eróticas (e afetivas) entre homens de forma geral, redes essas que podem se apresentar em diferentes níveis, mas que implicam deslocamentos e ressignificações do espaço. 35
As mestras trocas eróticas inauguram uma nova forma de relaciona-se com a cidade e seus espaços, relação essa que é inscrita não apenas na arquitetura dos lugares, mas também nas próprias possibilidades de uso do corpo (e sua superação). Público e privado, lícito e ilícito entram em confluência através de um processo de reapropriação do espaço e reinvenção do corpo que se materializam no instante da interação, da troca. Nesses espaços a conformação da masculinidade apresenta-se de forma distinta. No frisson das interações, homens – que não necessariamente identificam a si mesmos enquanto homossexuais – estabelecem um jogo corporal de sedução onde a linguagem é reduzida à escala do necessário. Nessas interações se por um lado a masculinidade aparece como importante para acúmulo de capital erótico, por outro não se apresenta de forma única e homogênea. Existem uma categorização de diversos modelos de masculinidades disponíveis que são acionados de modo a construir uma performance mais ou menos crível que viabilize aos sujeitos ter sucesso em suas investidas eróticas. Tais categorias se organizam num contínuo que se estabelece desde um ponto tomado mais ideal de “macho” e um oposto, que tem seu limiar na experiência da travestilidade. O desdobramento das categorias em subcategorias mostra ainda um esforço estratégico em recolocar-se o mais distante possível de uma categoria indesejável, em geral atribuída à feminilização dos corpos e da própria forma de apresentarse aos demais. As expressões de masculinidade performadas pelos sujeitos com quem eu venho trabalhando sugerem o desenvolvimento de estratégias identitárias que visam um uso elástico de categorias socialmente marcadas, ou até mesmo sua rejeição. Essa rejeição, todavia não é sem custo e são ancoradas em discursos depreciativos de formas de vivência da experiência homossexual marcadas por outras intenções e estética. Nesse processo diferenciação por rejeição entram em conflitos perspectivas e interesses sobre a necessidade e atuação dos organismos de militância pela diversidade sexual e de gênero. Acredito que a pegação não é um espaço menos politizado que os movimentos sociais, tendo em vista o intenso bombardeamento de biopolíticas que têm como propósito a construção de uma experiência higienizada, pautada na sobreposição do serviço de saúde e dos saberes biomédicos frente a diversas possibilidades de uso do corpo e dos prazeres que constituem uma espécie de variação sexual. Os movimentos sociais, por sua vez, tomam por princípio a impossibilidade do estabelecimento de políticas públicas sem representação, o que automaticamente excluiria as experiências eróticas de sujeitos adeptos de práticas como a pegação de sua agenda política; em casos de violência, por exemplo, o diálogo entre movimento e dissidentes é estabelecido em torno de uma identidade sexual homossexual presumida em razão do conteúdo homoerótico de suas práticas, não importando muito as tensões que essa relação esconde. O suposto enrustimento desses sujeitos que recusam assumir-se enquanto homossexuais é tomado como um impedimento para o progresso da militância, e a vida no armário é colocada, dentro e fora do movimento, como uma subvida, uma duplicidade que uma hora ou outra irá afetar negativamente o convívio social, de modo que é preciso decidir. Nesse aspecto,
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gostaria de questionar: não seria a vida fora do armário uma entrada em um novo armário? Que códigos, regras e princípios caracterizariam esse novo armário? Deixando as respostas para outro momento, acredito que os resultados da pesquisa foram positivos e contribuíram para uma maior ampliação do debate no ambiente acadêmico sobre regimes de sexualidade periféricos e dissidentes, que fogem aos padrões burgueses de homossexualidade como réplica da experiência heterossexual. Esses mesmos padrões, acredito eu, ainda que não se manifestam como
alternativas
politicamente
viáveis,
constituem-se
enquanto
importantes
pontos
de
questionamento em torno das próprias políticas de visibilidade, baseadas numa visão também naturalizada do desejo sexual como imanente e essencial, desejo que deveria compor um sistema coerente que dado como natural, é na verdade, construído (e destrutível).
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