Arte, Realidade: o realismo em Dalcídio Jurandir

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Universidade Federal do Pará Instituto de Letras e Comunicação Faculdade de Letras Pós-Graduação em Estudos Literários

Thiago Gonçalves Souza

ARTE, REALIDADE: A CONSTRUÇÃO FICCIONAL E O REALISMO DALCIDIANO EM MARAJÓ E BELÉM DO GRÃO-PARÁ

Belém-Pará Abr/2012


Thiago Gonçalves Souza

Arte, Realidade: a construção ficcional e o realismo dalcidiano em Marajó e Belém Do Grão-Pará

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários da Universidade Federal do Pará, como exigência para obtenção do título de Mestre. Orientadora: Profª. Drª. Marlí Tereza Furtado.

Belém-Pará Abr/2012 2


Thiago Gonçalves Souza

Arte, Realidade: a construção ficcional e o realismo dalcidiano em Marajó e Belém do Grão-Pará

Banca examinadora

______________________________________________________ Profª. Drª. Marlí Tereza Furtado (orientadora) ______________________________________________________ Prof. Dr. Roberto Acízelo Quelha de Souza (avaliador) ______________________________________________________ Prof. Dr. Sílvio Augusto de Oliveira Holanda (avaliador) ______________________________________________________ Profª. Drª. Germana Maria Araújo Sales (Suplente)

Belém-Pará Abr/2012

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Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP) – Biblioteca do ILC/ UFPA-Belém-PA ____________________________________________ Souza, Thiago Gonçalves, 1985Arte, realidade : a construção ficcional e o realismo dalcidiano em Marajó e Belém do Grão Pará / Thiago Gonçalves Souza ; orientadora, Marlí Tereza Furtado. --- 2012. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal do Pará, Instituto de Letras e Comunicação, Programa de Pós-Graduação em Letras, Belém, 2012. 1. Jurandir, Dalcídio, 1909-1979 – Marajó - Crítica e interpretação. 2. Jurandir, Dalcídio, 1909-1979 – Belém do Grão Pará – Crítica e interpretação. 3. Realismo na literatura. I. Título.

CDD-22. ed.869.909 ____________________________________________________

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Agradecimentos Aos meus pais, pelo apoio, compreensão e incentivo. À Wanessa, por sua simples existência amada. (Agradeço a ela também suas muitas, frequentes e impertinentes questões, as quais, passado o abalo inicial da arrogante certeza, sempre contribuíram para o alargamento de meus horizontes, intelectuais e sentimentais). À família da Wanessa, d. Jaci, Isabelly, Duda, Luís, Manu, Victor, Andréa e Joãozinho, por momentos que não cabem em simples palavras. Ao Will, ao Duque e à Dulcinéia, grandes amigos. Aos que lá estavam quando desbravei os territórios da pós-graduação e que me fizeram tomar gosto por ela: Edimara, Jose, Francisco Ewerton Chico, Regina e Thaís Pompeu. Aos compagnons de route: Paulo Valente, Lady Ândrea, Marcelo Brasil, Priscila Lira e Elissandro. Aos amigos da Sala 8, Alinnie, Tayana, Alan, Vanessa, Shirley, Kelly, Joyce e Thaís. Aos funcionários da biblioteca do PPGL, em especial Regina e Rejane, pela sempre simpatia. À professora Germana Sales, madrinha no mundo acadêmico. Aos professores Roberto Acízelo e Fernanda Lemos, da UERJ, por terem alterado a rota de minhas reflexões. Ao professor Sílvio Holanda, pelas sugestões instigantes apresentadas na Qualificação deste trabalho. À professora Marlí, pela convivência enriquecedora nos últimos anos e por ter me reapresentado a Dalcídio Jurandir. A CAPES, pela concessão da bolsa de estudos.

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A mais perfeita filosofia natural outra coisa não faz senão entreter durante algum tempo a nossa ignorância; como, talvez, a mais perfeita filosofia moral ou metafísica serve apenas para descobrir mais vastas regiões de ignorância. E assim a observação da cegueira e da fraqueza humana é o resultado de toda filosofia e vem ao nosso encontro em todas as esquinas a despeito de nossos esforços para evitá-la e fugir-lhe. (David Hume, Investigação sobre o Entendimento Humano)

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Resumo O escritor Dalcídio Jurandir, autor de uma profusa produção literária, enfeixada em onze romances, não restringiu, porém, sua atividade ao universo ficcional, tendo contribuído ativamente em diversos periódicos, principalmente de orientação comunista, por um período de cerca de vinte anos, dos anos 30, quando ainda residia em Belém, capital do estado do Pará, aos anos 50, já estabelecido no Rio de Janeiro, para onde se transportara no início da década de 40, a fim de dar continuidade à carreira literária. Essa volumosa produção periódica engloba uma gama de gêneros, como a crônica, a reportagem, o artigo e a crítica literária. Este trabalho se debruça sobre uma série de textos veiculados pelo periódico Imprensa Popular na década de 50, com particular atenção a três deles, intitulados Romances, Romance, realidade e história e A realidade histórica no romance, todos de 1954, nos quais o romancista-crítico se ocupa, dentre outros títulos, de Os Subterrâneos da Liberdade, lançados por Jorge Amado naquele mesmo ano. Nos textos, Dalcídio Jurandir, analisando o que seriam impropriedades do trabalho de Amado com o dado histórico, enceta uma discussão sobre a relação entre a História e o Romance e chega à consideração do realismo socialista e sua introdução no meio literário nacional, mostrando-se, ainda que de modo sutil, reticente com relação à validade do estilo soviético como meio de representação das problemáticas da realidade brasileira. Averiguada a dificuldade em alinhar o pensamento de Dalcídio Jurandir sobre o romance com as diretrizes do realismo socialista, o trabalho foi conduzido no sentido de depreender, pela análise de dois romances seus, Marajó (1947) e Belém do Grão-Pará (1960), a especificidade da construção artística do autor, a qual, se se esquiva do realismo socialista, não abre mão da intenção realística da representação literária, valor que norteia seu plano estético. Na investigação dessa especificidade, foram salientados os usos de elementos tradicionais dos contos maravilhosos (rei, príncipe, Borralheira, em Marajó; os Três Porquinhos, em Belém do Grão-Pará), subvertidos e desconstruídos com o intuito de atingir uma representação crítica das dinâmicas sociais e, então, uma imagem das próprias transformações históricas em sua complexidade e tragicidade, segundo a visão marxista do desenvolvimento histórico, compartilhada pelo autor. Palavras-chave: Dalcídio Jurandir; Realismo; Realismo socialista; História e Romance.

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Abstract Dalcídio Jurandir, author of a large literary production (eleven novels), did not restricted his activity to this fictional universe, but contributed actively with many journals and magazines, chiefly the communists ones, within a period of twenty years closely: from the 30’s, when he find himself living in Belém, state of Pará, to the 50’s, already living in Rio de Janeiro, to where he went in the beginning of the 40’s to give continuity to his literary career. This production covers a diverse number of genres, like chronicle, reportage, article and literary criticism. This work purposes the lecture of a group of texts published at Imprensa Popular in the first half of the 50’s, with a particular attention to three of them, entitled Romance, Romance, realidade e história and A realidade histórica no romance, which lead a discussion about Jorge Amado’s Os Subterrâneos da Liberdade. Analyzing “improperties” in the work of Amado on the historical knowledge, Dalcídio Jurandir discusses the relation between History and Novel, reaching the question of Socialist Realism and his introduction in the national literature: the author shows himself very cautiously about the soviet style’s validity in representing the problems of Brazilian reality. Recognizing the difficulty to harmonize Dalcídio Jurandir’s literary thought and practice and the guide lines of Socialist Realism, the work makes efforts to apprehend the particularity of the novelist’s artistic construction, analyzing two of his novels: Marajó (1947) and Belém do Grão-Pará (1960). The analysis points to the use of fairy tales’ traditional elements (the King, the Prince and Cinderella, in Marajó, and the Three Little Pigs, in Belém do Grão-Pará), but subverted and de-constructed, having as goal the critical representation of social dynamics and, then, an image of historical transformations in its tragic complexity, according to the Marxist vision of historical development, shared by Dalcídio Jurandir. Keywords: Dalcídio Jurandir; Realism; Socialist Realism; History and Novel.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO.................................................................................................... 10 CAPÍTULO I: AUTONOMIA E FUNÇÃO, ESTÉTICA E POLÍTICA .....

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1.1. Por uma arte independente: a autonomia artística em fins do século XIX e início do século XX........................................................................................ 15 1.2.As tarefas da arte: a arte e a revolução............................................................ 25 1.3.Dalcídio Jurandir: o intelectual na arena dos conflitos................................... 33 CAPÍTULO II: DE REALIDADE E REALISMOS: ELEMENTOS DO PENSAMENTO DE DALCÍDIO JURANDIR SOBRE ROMANCE E REALIDADE....................................................................................................... 42 2.1. O Realismo: a ascensão do romance e o realismo formal.............................. 2.2. O realismo socialista: um realismo para uma realidade socialista.................. 2.3. György Lukács: a defesa do realismo crítico.................................................. 2.4. O realismo em Dalcídio Jurandir, ou Entre o ideal e o concreto, é preciso ter cautela........................................................................................................ CAPÍTULO III: A EMERGÊNCIA DO REAL NO CHOQUE ENTRE O ENCANTO E A HISTÓRIA (I): UMA LEITURA DE MARAJÓ................ . 3.1. Do conto maravilhoso ao anticonto: a afirmação trágica do mundo injusto... 3.2. Missunga: a tragédia do príncipe que assume o trono.................................... 3.3. Alaíde: da injustiçada Borralheira à afirmação de si......................................

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CAPÍTULO IV: A EMERGÊNCIA DO REAL NO CHOQUE ENTRE O ENCANTO E A HISTÓRIA (II): UMA LEITURA DE BELÉM DO GRÃO-PARÁ......................................................................................................... 102 4.1. Belém do Grão-Pará: o sopro revolucionário da História.............................. 102 4.2. Entre o Tempo e a Ruína: a decadência nortista como imagem das transformações históricas................................................................................ 114 CONSIDERAÇÕES FINAIS.............................................................................. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS...............................................................

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INTRODUÇÃO

Dalcídio Jurandir (1909-1979) foi um dos nomes que, ao lado de outros como os de Astrojildo Pereira e Alina Paim, tiveram fundamental importância para a produção cultural da intelectualidade comunista no Brasil. Ao lado da atividade como romancista, na qual constam dez romances do ciclo denominado Extremo Norte1 e ainda Linha do Parque (1959), conduziu uma profícua colaboração para diversos periódicos de orientação socialista nas décadas de 40 e 50, produzindo reportagens, crônicas, ensaios e crítica literária – sempre orientado segundo sua aguda consciência política. Este trabalho se debruça sobre textos de Dalcídio Jurandir, principalmente ensaios e crítica literária, veiculados na imprensa esquerdista, que apresentem suas considerações a respeito de arte e literatura, da função do intelectual, do romance e do realismo. A análise dos textos do escritor se divide em quatro capítulos. O primeiro apresenta as forças antagônicas que caracterizaram o artístico, incluindo aí o literário, em fins do século XIX e início do XX, e que apresentaram propostas distintas para perceber a relação entre arte e sociedade no mundo moderno: os partidários de uma “arte pela arte”, ou “artepuristas”, como diria Plekhanov (1964), cuja posição teve como característica imediata o fechamento mais ou menos consciente para as questões político-sociais mais urgentes, e os que assumem, tendo como marco a Revolução de 1917 (mas também eventos anteriores, como a Comuna de Paris), um compromisso justamente com as questões políticas prementes, transformando a tarefa política em objetivo final da realização artística. Se os adeptos do primeiro grupo advogaram a favor de uma nova linguagem artística capaz de retomar a subjetividade e a pureza de sua experiência do mundo, criticando a representação objetiva, figurativa, e alcançando a linguagem abstrata (Kandinsky, Malevitch, T. S. Eliot, por exemplo) como manifestação radical de sua tendência, os membros do segundo grupo terminaram por estabelecer, em nome da acessibilidade da arte à esfera das massas e da inteligibilidade da representação da experiência do homem em sociedade, a linguagem figurativa e realista como o ideal estético de sua produção (o que, ressalte-se, não se estabeleceu sem um intenso debate interno).

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A designação “Extremo Norte” enfeixa um total dez romances, tendo seu início em Chove nos Campos de Cachoeira (1941), passando por Marajó (1947), Três Casas e um Rio (1958), Belém do Grão-Pará (1960), Passagem dos Inocentes (1963), Primeira Manhã (1967), Ponte do Galo (1973), Os Habitantes (1976), Chão dos Lobos (1976) e Ribanceira (1978).

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Dois grupos que, portanto, se diferenciaram radicalmente por conta da posição política concreta que tomaram: a estética experimental (“irrealista”, “abstrata”) das vanguardas históricas corresponde a uma tomada de posição de distanciamento (embora crítico) para com a realidade cotidiana, no intuito de resgatar a pureza da relação homem/mundo; a estética realista mostra-se, por seu turno, como a concretização de um ideal de participação da arte em meio às massas, para contribuir na sua educação e organização com vistas a uma ação de subversão revolucionária. Apresentar um esquema polarizado da esfera artística pode parecer uma simplificação demasiadamente grosseira. No entanto, essa estratégia se justifica por tentar reconstruir a compreensão que o grupo social a que se ligava Dalcídio Jurandir tinha da configuração e das tarefas da arte: os militantes comunistas afirmaram a bipartição do mundo entre “capitalismo” e “socialismo”, “reacionários” e “progressistas”, e outros binarismos. O escritor paraense, de modo algum, se esquiva, nos textos aqui estudados, de tal representação. Observar tal polarização é importante para ter em mente o significado da posição tomada por Dalcídio Jurandir, a qual se dá basicamente no sentido da integração à corrente politizadarevolucionária e de oposição à outra, entendida como “alienada”, “aburguesada”, etc. O primeiro capítulo se fecha então com considerações acerca da representação que o romancista constrói sobre o papel do intelectual e da arte em meio a uma configuração que, tal como se mostra, demanda energicamente uma postura. Identificadas as duas orientações que polarizam a prática artística, um trabalho sobre a questão estética em Dalcídio Jurandir, intelectual militante comunista, deve focar sobre a segunda delas, a de diretriz política e de estética realista. O segundo capítulo apresenta, em um primeiro momento, considerações gerais sobre o conceito de realismo, o qual, aparecendo no século XVIII como característica predominante do romance que então emerge, se consolida em meados do século XIX como estética de contestação a partir da obra do pintor Gustave Courbet. Em seguida, aprofunda alguns pontos do desenvolvimento dessa orientação, considerando os seus dois grandes elementos no século XX, pelo menos para a tradição marxista 2: o realismo socialista e o realismo crítico, os quais, de certa maneira, protagonizam o grande debate em torno do realismo – o primeiro, como a orientação oficial proposta pelo Partido já na década de 30 quando do I Congresso dos Escritores Soviéticos e seguindo nessa posição até os anos 80; o segundo, como uma espécie de debate alternativo, mas sem se nomear abertamente como tal, conduzido principalmente por György Lukács, dos anos 30 ao fim dos anos 60. 2

Por conta do recorte temporal que circunscreve o objeto de estudo deste trabalho, não considerarei correntes mais contemporâneas que se ligam à estética realista, como o fotorrealismo, o romance-reportagem, etc.

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Ainda no segundo capítulo, apresentamos as reflexões de Dalcídio sobre o realismo e o romance, a partir dos textos Romances, Romance, realidade e história e A realidade histórica no romance, veiculados pelo periódico Imprensa Popular em 1954, quando do lançamento da série Os Subterrâneos da Liberdade, de Jorge Amado. O que se mostra é que há, da parte de Dalcídio Jurandir, uma competente assimilação dos principais pontos da discussão realizada no interior da tradição estética marxista. Porém, o escritor recusa-se a fazer, tão simplesmente, a propaganda do realismo socialista: sem deixar de apontar as vantagens e a importância do estilo, cerca sua recepção da necessidade de avaliar as possibilidades concretas que o realismo socialista poderia oferecer na interpretação e na análise da realidade brasileira e suas necessidades específicas. As particularidades da compreensão de Dalcídio Jurandir sobre o papel do realismo, cercando de cautela o realismo socialista e abrindo as perspectivas para um trabalho mais próximo do realismo crítico lukacsiano, podem ser observadas em sua construção ficcional. O cotejo entre a discussão estética e sua realização na obra constitui o cerne do terceiro e do quarto capítulos, dedicados principalmente à análise de dois romances do autor: Marajó, lançado em 1947, e Belém do Grão-Pará, de 1960. Conhecendo os espaçamentos que existiam entre a feitura das obras do escritor e sua efetiva publicação, é possível estabelecer algumas datas aproximadas de elaboração das obras: sabe-se que Marajó, sob o título de “Marinatambalo”, fora inscrito, junto com Chove nos Campos de Cachoeira, no concurso da editora Vecchi, em 1941, cabendo o primeiro prêmio a este último; isso leva a elaboração de Marajó pelo menos à década de 30, época em que Dalcídio apenas inicia sua vida militante junto às ações da Aliança Nacional Libertadora, movimento de mobilização política para a luta contra a influência fascista; Belém do Grão-Pará, por sua vez, sendo publicado em 60, provavelmente remonta a algum momento dos anos 50, época da militância mais aguerrida do autor. Temos, portanto, dois romances de momentos bem distintos de sua vida e de sua relação com a política – um do início e um do auge, digamos assim, sendo Belém do Grão-Pará praticamente contemporâneo do pensamento de Dalcídio Jurandir sobre a relação entre romance e realidade. Os dois romances, apesar de terem sido concebidos em momentos tão distintos, guardam entre si um ponto de contato: ambos trabalham ostensivamente com questões histórico-políticas entrelaçadas, de modo indissociável, à trama ficcional. Dialogam ainda a partir de outro ponto importantíssimo, que, à primeira vista, dificilmente pode ser relacionado com o primeiro: o aproveitamento, na estrutura narrativa, de elementos do conto maravilhoso (Märchen), tal como os estudos de Andre Jolles [1972] o caracterizam. Vicente Salles, em seu texto Chão de Dalcídio

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(1993), já havia atentado para tal fato na composição de Marajó a partir do tema da personagem Orminda, a qual o estudioso lê em paralelo com a personagem D. Silvana, de um “rimance” tradicional de origem ibérica. Mas é possível ver os elementos do maravilhoso compondo o romance como um todo, e não apenas como aproveitamentos incidentais de um ou outro personagem: Rei, Príncipe e Borralheira estruturam a narrativa de Marajó. Tal aproveitamento também aparece em Belém do Grão-Pará, mais diretamente ligado à narrativa dos Três Porquinhos em correspondência com a história dos três Alcântaras, a qual é o próprio suporte da narrativa de Alfredo, o protagonista. Em outro momento, também Marlí Tereza Furtado e Luís Guilherme dos Santos Júnior atentaram, em seus respectivos estudos, para a penetração do imaginário na tessitura da narrativa de Dalcídio Jurandir. O que pretendemos aqui é expandir o que esses estudiosos identificaram neste ou naquele romance para o nível de um plano estético abrangente de construção narrativa, o qual repousaria sobre o uso e apropriações de elementos do maravilhoso, mas com um intuito de desconstrução desse mesmo maravilhoso no seu choque com a realidade que emerge. Assim, o conto maravilhoso é manipulado no sentido da construção de um anticonto (Antimärchen), ainda seguindo a definição de Andre Jolles. O anticonto inverte a positividade original do conto em uma negatividade crítica que, em Dalcídio Jurandir, se origina de sua cosmovisão marxista. Marajó se apresenta assim como o anticonto da persistência de formas de opressão, naturalizadas pela prática histórica de dominação perpetrada pelas elites latifundiárias, diante das quais o esforço individual de transformação mostra-se vão; mas mostra também o produto dialético da exploração: a criação da consciência do explorado enquanto explorado, o que dá margens à afirmação de si. Belém do Grão-Pará ilustra, por sua vez, o inexorável caminho de dissolução das classes dominantes, varridas do palco histórico pelo sopro das classes populares, conforme o papel de protagonista que a filosofia marxista da história concede a elas. O capítulo IV fecha-se com algumas considerações e problematizações acerca da recepção crítica de Dalcídio Jurandir, vendo nela duas linhas principais, a “regionalizante” e a “universalizante”: a primeira compreendendo as leituras da obra do romancista que, de algum modo, a atrelam à representação de referentes tais como a situação econômica da época pós-ciclo da borracha, as condições de vida do “homem amazônico”, etc.; a segunda, as leituras que afirmam, vaga e categoricamente, a obra de Dalcídio como representação de “dramas humanos”, logo, universal. Procuraremos tomar posição própria no conjunto da recepção crítica dalcidiana aproveitando indicações presentes nos estudos de Pedro Maligo e Marlí Tereza Furtado, bem como o conceito lukacsiano de “particularidade”,

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enquanto modo de superar a oposição entre o regional e o universal presente na valoração tradicional da obra de Dalcídio Jurandir. A prática literária do autor de Belém do Grão-Pará mostra-se, pois, profundamente alicerçada na tradição estética marxista que se constituiu no decorrer da primeira metade do século XX. O mérito do escritor não está em uma contribuição inovadora à discussão teórica, mas se apresenta na sua assimilação profunda e realização peculiar no plano ficcional, que permite, sem dúvida, considerá-lo como integrante do rol dos “verdadeiros realistas”, para utilizar uma expressão recorrente em Lukács. Recusando-se a recriar literariamente a superfície dos acontecimentos, Dalcídio manipula criativamente a herança do imaginário maravilhoso para, com ela, desvelar os mecanismos profundos da vida social, segundo a concepção de mundo fundamentada na filosofia marxista. Para complementar esta Introdução, é preciso dizer algo a respeito da escolha dos romances analisados. Fora os dez romances reunidos sob a designação de Ciclo do Extremo Norte, Dalcídio Jurandir produziu um romance sob encomenda do próprio Partido Comunista, intitulado Linha do Parque, de 1959. Seria de se imaginar, então, que uma análise sobre as reflexões a respeito do romance e do realismo, cuja autoria é de um intelectual comunista militante, atentasse de algum modo para seu romance especificamente proletário. Tal não se realizou aqui. E justamente pela condição de exceção que Linha do Parque apresenta: a de ter sido concebido como um projeto de encomenda e ser o único romance do autor que se atrela diretamente à ordem partidária. Curiosamente, o autor manteve certa distância entre sua atividade partidária e sua produção (sendo o já citado Linha do Parque o único romance do escritor editado pela linha “Vitória”, ligada diretamente ao Partido Comunista), o que não contradiz a constatação de que seu pensamento está plenamente de acordo com a tradição estética comunista. Tal relação pode ser ilustrada da seguinte maneira: Dalcídio, que, como já dito, também foi repórter, produziu reportagens sobre as más condições de vida e trabalho do vaqueiro marajoara, mas Marajó, que traz em seu enredo as condições de vida na ilha, nem de perto pode ser confundido com uma reportagem. Dalcídio não fez de seus romances plataforma panfletária do Partido, apesar de basear sua prática artística de modo bastante coeso na visão comunista de mundo e de arte. Assim, escolhemos não considerar, neste momento, Linha do Parque, o que deve ser feito em outra oportunidade, considerando essa sua posição de exceção no conjunto da obra e tendo em vista outros objetivos e outras chaves de leitura.

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CAPÍTULO I AUTONOMIA E FUNÇÃO, ESTÉTICA E POLÍTICA

1.1. Por uma arte independente: a autonomia artística em fins do século XIX e início do XX O Estado tem razão em não me encomendar uma decoração para um edifício público, pois ela se chocaria contra as idéias da maioria; e eu também estaria errado em aceitar, uma vez que não me restaria outra alternativa senão enganá-lo ou mentir a mim mesmo. (Paul Gauguin, 1899)

A autonomia da arte moderna se manifesta, na tradição europeia, primeira e principalmente na recusa da imitação e da compreensão da arte como cópia do objeto, em uma reação nítida à pintura acadêmica do último quartel do século XIX, como a empreendida por pintores como WilliamAdolphe Bouguereau (1825-1905) e Gustave Boulanger (1824-1888), mas também ao advento e popularização da fotografia – já que, muitas vezes, os pintores acadêmicos são depreciados por fazerem da arte da pintura um equivalente direto do ato de fotografar. Essa recusa da imitação 3, assumida como um dos pilares da arte moderna, é, todavia, ela mesma, um segundo momento no processo histórico de autonomização da arte – que tem, paradoxalmente, na conquista do realismo e do objeto empírico, seu primeiro momento. Entenda-se: no plano gnosiológico, a ruptura com o realismo medieval que atribuía a realidade à constância abstrata dos universais abriu espaço para a emergência do nominalismo, o qual aproximou o conhecimento humano da concretude do particular; esse processo promoveu a secularização da prática artística, enfraquecendo seus laços com obrigações cultuais e com a representação alegórico-conceitual típica da arte medieval e aproximando o olho humano da realidade fenomênica: o Gótico, as pinturas de Giotto, a construção que Dante realiza dos homens no Inferno em sua Comédia, a pintura renascentista e a holandesa são exemplos desse processo.

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Evitaremos falar, ao nos referir-nos à arte moderna, de uma tendência antirrealista – pelo simples fato de que, nos documentos deixados, artistas e pintores ligados ao questionamento da figuração do objeto muitas vezes empreendem suas críticas baseando-se em um realismo que pretende ir além da superficialidade do objeto empírico, atingindo o cerne da coisa mesma – ou do objeto ou da experiência humana. Por isso se falará, antes, em questionamento da representação, da cópia, da imitação ou da figuração.

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A conquista do real nos quadros religiosos e nas miniaturas dos livros da Idade Média é um dos momentos mais excitantes da história da arte europeia. Pedras, flores e animais, roupas e utensílios: o fundo dourado dos quadros é motivo de uma epifania profana: epifania do mundo visível, revelação dos objetos. Ao ‘realismo’ metafísico da Alta Idade Média [...] se seguiu o nominalismo do medievo tardio, que reconhecia a realidade dos objetos materiais individuais, assim começando o conhecimento moderno da realidade4. (SAGER, 1991, p. 20).

Herbert Read, um dos primeiros a empreender uma tentativa de compreensão global e sistemática da arte moderna, em seu livro Arte de Agora (cuja primeira edição é de 1933), identifica a arte moderna com o processo artístico em direção ao abandono do objeto outrora conquistado, rompendo com uma tradição que se baseava num “desejo de reproduzir de algum modo exatamente aquilo que o olho vê” (READ, 1991, p.40) e conduzindo a “Uma arte que renunciou ao desejo de reproduzir a aparência do mundo real – que, de fato, nunca concebeu este objetivo [...]” (Idem, ibidem, p. 42): A meta de cinco séculos de esforço europeu é abertamente abandonada. A aparência real do mundo visível não é mais de importância primordial. O artista busca algo debaixo das aparências, algum símbolo plástico que será mais significativo quanto à realidade do que pode ser qualquer reprodução exata. [...] A diferença toda entre o movimento moderno na arte e a tradição que prevalecera durante os cinco séculos precedentes está expressa nessa substituição do descritivo pelo simbólico como a meta da arte. (Idem, ibidem, p. 43-44)

Paul Cézanne e Van Gogh são considerados precursores do processo. Mas é Paul Gauguin (1848-1903) quem se mostra como exemplo mais contundente da tendência, tanto que logo se tornaria uma referência para simbolistas e subjetivistas da arte finissecular. O pintor diria: Um conselho, não pinte excessivamente de acordo com a natureza. A arte é uma abstração; extraia-a da natureza meditando diante dela e pense mais na criação que resultará. É o único meio de subir em direção a Deus fazendo como nosso Divino Mestre, criar. (CHIPP, 1999, p. 56)

G-Albert Aurier (1865-1892), crítico ligado a Gauguin, formularia essa recusa da imitação do modo mais nítido, durante esse período. Aproximando-se de uma teoria simbolista cujas bases ele assenta em um idealismo de extração platônica, profundamente influenciado pelo swedenborguismo 4

“La conquista de lo real en los cuadros religiosos y en las miniaturas de los libros de la Edad Media es uno de los momentos más excitantes de la historia del arte europeo. Piedras, flores y animales, ropajes y utensilios: el fondo dorado de los cuadros es motivo para una epifanía profana: epifanía del mundo visible, revelación de los objetos. Al “realismo” metafísico de la Alta Edad Media [...] se siguió el nominalismo tardomedieval que reconocía realidad a los objetos individuales materiales, comenzando así el moderno conocimiento de la realidad.”

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em voga, Aurier defenderia uma arte “ideísta”, em que a representação figurativa se tornaria secundária diante da necessidade fundamental de expressar a Ideia. Em texto de 1891, ele afirmaria veementemente: É evidente – e afirmá-lo chega às raias da banalidade – que existem na história da arte duas grandes tendências contraditórias que, sem contestação, dependem, uma da cegueira, outra da clarividência desse “olho interior do homem” mencionado por Swedenborg, a tendência realista e a tendência “ideísta” [...] A finalidade formal e última da pintura, já o disse, não pode ser a representação direta dos objetos – e isso se aplica também às outras artes. Sua finalidade é exprimir as Idéias, traduzindo-as em uma linguagem especial. (Idem, ibidem, p.85-86)

A arte moderna começa a se apresentar como proposta alternativa ao realismo (compreendido como vontade de imitar o objeto do mundo exterior): é o “olho interior”, e não mais o exterior, quem deve ditar o modo de representação. Assentado que o objeto a ser representado já não se conforma com a aparência do real, o questionamento dos artistas volta-se para o modo de representar tal objeto: emerge a necessidade de uma nova forma de linguagem que expresse a nova sensibilidade a constituir-se, pois, se a linguagem da representação realista, principalmente com o desenvolvimento da profundidade e da perspectiva, se consolida conforme o olho caminha para o objeto, o afastamento do objeto e o virar-se para as regiões do subjetivo e do simbólico demandariam uma alteração no desenvolvimento dos recursos expressivos. Eis a segunda linha assumida tradicionalmente como característica da arte na modernidade: a discussão em torno da forma. O crítico de arte Clement Greenberg (1909-1994) identifica o percurso histórico da arte moderna como o desenvolvimento dialético da pureza formal nos diferentes meios artísticos. A pintura, por exemplo, abandona cada vez mais os elementos narrativos, para se concentrar no que lhe é essencial: a cor e a superfície plana; a poesia, por sua vez, concentra-se na purificação da palavra, seguindo o caminho da divisa mallarmeana: “dar um sentido mais puro às palavras da tribo”5. Segundo Greenberg, no texto “Modernist Painting”, de 1960:

O que se procurou explicitar não foi somente aquilo que seria único e irredutível na arte em geral, mas também aquilo que seria único e irredutível em cada arte particular. Cada uma teve de determinar, por meio de suas próprias operações e trabalho, o efeito que lhe era exclusivo. Com isso, é certo que viria a delimitar e

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“Donner un sens plus purs aux mots de la tribu.”

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restringir sua área de competência, mas também, ao mesmo tempo, a apropriar-se de sua área com maior segurança. Logo se pôde ver que o que era único e próprio de cada arte coincidia com o que era único na natureza de seu medium. A tarefa de autocrítica tornou-se a de eliminar, do meio de seus efeitos específicos, todo e qualquer efeito que pudesse advir do medium de qualquer outro tipo de arte. Assim, cada arte seria dada em sua ‘pureza’, e nela encontraria a garantia de seus padrões de qualidade e também de sua independência. ‘Pureza’ quer dizer autodefinição, e a empresa da autocrítica em arte tornou-se a da autodefinição [...]6. (GREENBERG, 2011a)

Greenberg nos fornece elementos que acabaram se enraizando nas interpretações acerca da modernidade em arte, como a tendência formalista e a experimentação de linguagens – apesar de que, na leitura do crítico norte-americano, essas características atuem de forma a justificar e legitimar a arte abstrata contemporânea na articulação entre teleologia e apologia que perpassa sua argumentação: a abstração contemporânea é o produto legítimo de todo o processo de “depuração formal” da arte moderna (COMPAGNON, 1996). No entanto, atentemos para a questão da busca pela “pureza” da forma, pois veremos que ela subjaz à variedade de projetos estilísticos da modernidade. Com o termo “pureza” aplicado à forma não pensamos em uma restrição à forma propriamente dita, mas antes na busca, por esses artistas modernos, da correlação mais apropriada entre forma e objeto, na qual a forma corresponde ela mesma à expressão do próprio objeto. A questão diz respeito à problemática ampla da representação: qual objeto representar e como representá-lo. Com o deslocamento do objeto representado, o qual, não mais apreendido no mundo exterior, volta-se para uma esfera diversa apreensível apenas pelo “olho interior”, na subjetividade ou em outros graus da realidade, os diversos grupos modernistas propõem, no decorrer do século XX, o que entendem por forma mais apropriada para a apreensão do representado. Nesse sentido, a lição dos expressionistas e, em particular, de Wassily Kandinsky (18661944), constituirá o ponto de inflexão radical na questão da representação na arte moderna com a emergência do abstracionismo na linguagem pictórica, sendo exemplar das transformações por que passava o campo artístico.

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“What had to be exhibited was not only that which was unique and irreducible in art in general, but also that which was unique and irreducible in each particular art. Each art had to determine, through its own operations and works, the effects exclusive to itself. By doing so it would, to be sure, narrow its area of competence, but at the same time it would make its possession of that area all the more certain. “It quickly emerged that the unique and proper area of competence of each art coincided with all that was unique in the nature of its medium. The task of self-criticism became to eliminate from the specific effects of each art any and every effect that might conceivably be borrowed from or by the medium of any other art. Thus would each art be rendered ‘pure’, and in its ‘purity’ find the guarantee of its standards of quality as well as of its independence. ‘Purity’ meant self-definition, and the enterprise of self-criticism in the arts became one of self-definition [...]”.

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Van Gogh, Gauguin, Cézanne, todos elaboraram, com maior ou menor obstinação, um pensamento a respeito da capacidade expressiva da cor tomada em si mesma. Mas é o russo Kandinsky quem elabora uma das mais radicais considerações a respeito da expressividade dos elementos autônomos. Para ele, em “O efeito da cor”, de 1911, a cor pode comunicar as mais profundas significações psíquicas, prescindindo totalmente da figura: De um modo geral [...] a cor é um meio de exercer influência direta sobre a alma. A cor é a tecla. Os olhos são martelo. A alma é o piano com suas várias cordas. O artista é a mão que, tocando esta ou aquela tecla com propósito definido, faz vibrar a alma humana. (CHIPP, 1996, p. 153)

A música utilizada como imagem a ilustrar o processo artístico da pintura é sugestiva neste trecho. Um paralelo herdado sem dúvida de antecessores como os simbolistas, que, por sua vez, buscaram nas fontes schopenhauerianas a capacidade da Música em adentrar as profundezas metafísicas, sem necessitar da mediação de imagens representativas. Porém, é em “Sobre a questão da forma”, de 1912, que o artista estabelece, de maneira mais elaborada, as direções da questão representativa na arte. Kandinsky liga a forma à necessidade expressiva da subjetividade – encontrando aí a medida da “pureza” formal, ou seja, a capacidade de expressar o espiritual sem o intermédio sensível de uma figura, mas diretamente pela ação da forma sobre o espírito.

O posicionamento a adotar em face de uma obra é o de permitir que a forma atue sobre a alma. E, através dela, o conteúdo (o espírito, a ressonância interior). [...] [...] em última análise, devemos concluir que o importante não é se a forma é pessoal ou nacional, ou se tem estilo; nem se ela corresponde ou não aos principais movimentos contemporâneos; nem se ela guarda ou não semelhanças com muitas ou poucas outras formas; o mais importante na questão da forma é se ela se originou ou não de uma necessidade interior. (Idem, ibidem, p. 157)

Não se deve identificar a posição de Kandinsky com um subjetivismo radical. Pelo contrário, é um impulso realista que permitirá ao pintor uma identificação, célebre, entre “Grande Realismo” e “Grande Abstração”. A tradição realista contra a qual Kandinsky aponta o Espiritual é justamente a mimética e figurativa, com a qual, como vimos, a arte moderna busca romper. O pintor russo identifica essa mimese tradicional a uma superficialidade sensível que, se fora indispensável para o desenvolvimento do homem, é agora prescindível, de acordo com uma concepção espiritualista de desenvolvimento histórico, na qual a época contemporânea aparece como preliminar de uma grande época de liberdade espiritual.

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1. A dissolução da vida material inanimada do século XIX, ou seja, derrubada dos suportes do material, considerados os únicos resistentes; a decomposição e a dissolução dos componentes isolados. 2. A construção de uma vida psíquico-espiritual do século XX, que estamos vivenciando e já se manifesta e ganha corpo através de formas fortes, expressivas e determinadas. Esses dois processos são os dois lados do “movimento atual”. (Idem, ibidem, p. 159)

A emergência da abstração deu-se também nas obras de outros artistas, como Piet Mondrian (1872-1944), Kasemir Malevitch (1878-1935), Vladimir Tatlin (1885-1956), Naum Gabo (18901977), entre outros. Mondrian, por exemplo, já em 1919, partindo também de concepções espiritualistas segundo as quais o moderno se abre para a manifestação do interior e afasta-se da exterioridade natural, faria a defesa de seu neoplasticismo e do uso das linhas e da cor puras como formas expressivas, em “Realidade natural e realidade abstrata”:

A nova plasticidade não pode, por conseguinte, tomar forma através de uma representação (natural) concreta, a qual – mesmo no sentido universal – sempre indica, de uma maneira ou de outra, o individual; a menos que oculte em si o universal não poderá, portanto, ocultar-se naquilo que caracteriza o individual, ou seja, a forma e a cor naturais, mas deverá expressar-se na abstração da forma e da cor, quer dizer, na linha reta e na cor primária claramente definida. Esses meios de expressão universais foram descobertos na pintura moderna pelo caminho da abstração da progressão conseqüente da forma e da cor. Uma vez encontrados, seguiu-se a representação exata das relações isoladas, e com isto o elemento essencial e fundamental de qualquer emoção plástica do belo. (Idem, ibidem, p. 325)

Mondrian recusa a representação natural e depara-se com a necessidade de desenvolver, para expressar esferas diversas da experiência, uma outra linguagem que comunique diretamente o universal, encontrando-a no apelo direto da pura cor e da pura forma. Movimento paradigmático da posição que Greenberg identifica como cerne do modernismo em arte. Os caminhos da abstração, ou da representação não-figurativa, serviram-nos para ilustrar, a partir do exemplo radical de Kandinsky e do abstracionismo, como a mudança na percepção do que deveria ser representado conduziu a uma alteração nos próprios modos da representação. Os recursos expressivos herdados da tradição realista foram profundamente questionados pelas diversas vertentes abertas a partir de fins do século XIX e início do XX: instaura-se uma ruptura com a representatividade mimética e exploram-se outros rincões do ser e da existência, empreendendo, na esteira desses abalos, a experimentação de formas diversas de expressão. Assim, podemos

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identificar pelo menos dois elementos que subjazem à diversidade de formas assumida pelas vanguardas históricas europeias: a quebra com a representação objetal e a busca por formas de expressão que correspondam e concretizem as experiências empreendidas no terreno da representação. Antes de darmos o passo que nos levará do terreno da estética para o da política, a fim de relacionar os dois nos termos do entrelaçamento entre o questionamento estético, a recusa da vida política e a defesa da autonomia da prática artística, quero esboçar um panorama da reverberação dos movimentos vanguardistas de início do século XX na arte latino-americana, com o objetivo de mostrar que a problemática posta pela vanguarda europeia encontra abrigo nos interesses modernistas latino-americanos, enraizando-se entre eles e fomentando suas experimentações. Logo, o que se percebe é que as gerações de 10 e 20 da América Latina seguem as grandes linhas traçadas pelas vanguardas de além-mar, utilizando-as, é claro, para fins específicos dentro de um contexto específico. A postura de recusa da tradição estética figurativa dos movimentos europeus encontraria abrigo em Vicente Huidobro. O chileno, considerado o iniciador dos movimentos de vanguarda na América Latina (SCHWARZ, 2008, p. 48), demonstraria uma recusa da representação como cópia da natureza, semelhante à que se consolidava na Europa. O “Manifesto Non serviam”, de 1914, diz:

Eis que uma bela manhã, depois de uma noite de sonhos primorosos e doces pesadelos, o poeta se ergue e grita à sua mãe Natureza: Non Serviam. Com toda a força de seus pulmões, um eco otimista e tradutor repete nas brenhas: “Não te servirei”. [...] Non serviam. Não hei de ser teu escravo, mãe Natureza; serei teu amo. Admito que te servirás de mim. Não quero e não posso evitá-lo; mas eu também me servirei de ti. Hei de possuir minhas árvores que não serão como as tuas, hei de possuir minhas montanhas, meus rios e meus mares, hei de possuir meu céu e minhas estrelas. (Idem, ibidem, p.102-103)

A posição de Huidobro radicaliza-se na afirmação do poder criativo da arte independente da Natureza, ou melhor, igualando-se a ela justamente na capacidade de criar. Esta crença no poder demiúrgico do artista constitui o núcleo de seu Criacionismo: em texto de 1921, ele diria que “[...] a época que começa vai ser eminentemente criativa. O homem abala o jugo, rebela-se contra a Natureza como outrora Lúcifer se rebelara contra Deus”, complementando que “Não se trata de imitar a Natureza, mas de atuar como ela; não de imitar suas exteriorizações, mas seu poder exteriorizador” (Idem, ibidem, p. 111).

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Se Huidobro se concentraria na criação em si, o jovem Jorge Luis Borges, influenciado pelo expressionismo, reivindicaria para a arte a busca da sensação em si, a partir da estética do Ultraísmo, no início da década de 20: “Eu procuro [em meus esforços líricos] a sensação em si, e não a descrição das premissas espaciais ou temporais que a rodeiam” (Idem, ibidem, p. 133). Também Mário de Andrade se posicionaria de acordo com o questionamento vanguardista da representação: em seu Prefácio Interessantíssimo, que abre o livro de poemas Paulicéia Desvairada, de 1922, diria: [...] Arte não/ consegue reproduzir natureza, nem este é seu/ fim. Todos os grandes artistas, ora consciente/ (Rafael das Madonas, Rodin do Balzac,/ Beethoven da Pastoral, Machado de Assis do/ Brás Cubas), ora inconsciente (a grande/ maioria) foram/ deformadores da natureza./ Donde infiro que o belo artístico será tanto mais/ artístico, tanto mais subjetivo/ quanto mais se/ afastar do belo natural. Outros infiram o que/ quiserem. Pouco me importa. (ANDRADE, 1922, p. 18)

A recusa da arte como reprodução do natural, sua aceitação como deformação, como subjetividade, são tópicos na pauta de toda discussão da e sobre a arte de vanguarda no início do século XX. Na seção “Falação”, do livro de poemas Pau Brasil, Oswald de Andrade dá a ver as influências interiorizadas das críticas à representação do objeto: “Contra a argúcia naturalista, a synthese. Contra a copia, a invenção e a surpresa.” (ANDRADE, s/d, p. 20). Em outro momento: “A deformação através do impressionismo e do symblo. O lyrismo em folha.” (Idem, ibidem). Assim, no modernismo latino-americano de 20, o que se realça é o momento de agitação estética com a incorporação das conquistas formais apresentadas pelas vanguardas europeias. No entanto, essa lição não é apenas repetida, mas sim posta a serviço dos interesses dos modernistas, mostrando-se como um instrumento de questionamento estético e político (LAFETÁ, 2000): os dois eixos articulados, tratando especificamente do caso brasileiro, pela questão da identidade nacional. Acabamos de vislumbrar, ainda que brevemente, um ponto em que o estético e o político se articulam no modernismo brasileiro. Tal articulação também se dá nos movimentos vanguardistas de contestação estética da Europa, embora ali seja mais oblíquo e se manifeste basicamente de modo negativo: a relação entre estética e política na modernidade europeia se dá justamente na negação da política. A arte, desde meados do século XIX, já encara com o espírito transtornado as consequências do desenvolvimento da sociedade industrial. Eric Hobsbawn, falando do período entre 1789 e 1848, afirma: “se fôssemos resumir as relações entre o artista e a sociedade nesta época

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em uma só frase, poderíamos dizer que a Revolução Francesa inspirava-o com seu exemplo, que a revolução industrial com seu horror [...]” (HOBSBAWN, 2010, p. 403). A influência da Revolução Francesa parece esmaecer a partir de 1840, com a consolidação da burguesia como classe hegemônica de papel contrarrevolucionário (como bem o testemunha o romance de Flaubert A Educação Sentimental, de 1869), mas o horror diante da dinâmica industrial é, sem dúvida, uma constante que se estende até o século XX. A prática artística busca, a partir de então, manter-se distante da vida cotidiana, acusada de amesquinhar-se cada vez mais sob a expansão do estilo de vida capitalista e no seu objetivo por lucro e mercado. Marx e Engels, no Manifesto do Partido Comunista, de 1848, manifestam a percepção das transformações profundas acarretadas pela burguesia na própria noção de “humano”, a qual pode ser generalizada para grande parcela dos artistas e intelectuais da época.

[A burguesia] Dissolveu a dignidade pessoal no valor de troca e substituiu as muitas liberdades, conquistadas ou decretadas, por uma determinada liberdade, a do comércio. [...] Transformou o médico, o jurista, o sacerdote, o poeta e o homem de ciência em trabalhadores assalariados” (MARX; ENGELS, 2008, p. 12-13)

Décadas depois, no fim do século, é possível constatar a continuidade dessa percepção catastrófica pelo depoimento de G.-Albert Aurier:

As faculdades mais nobres de nossa alma estão se atrofiando. Dentro de cem anos seremos uns brutos cujo único ideal consistirá na cômoda satisfação das funções orgânicas; graças à ciência positiva, voltaremos à animalidade pura e simples. É preciso reagir. É preciso voltar a cultivar em nós as superiores qualidades da alma. É preciso que voltemos a ser místicos. É preciso reaprender o amor, fonte de toda compreensão. Mas, ai!, já é tarde para reconquistar o amor em sua integridade primitiva. O sensualismo do século nos ensinou a ver na mulher apenas um bocado de carne destinada a aplacar nossos apetites materiais. O amor da mulher não mais nos é permitido. O ceticismo do século nos ensinou a ver em Deus apenas uma abstração nominal talvez inexistente. O amor de Deus não mais nos é permitido. Um só amor ainda nos resta, o das obras de arte. Atiremo-nos pois sobre essa última tábua de salvação, tornemo-nos místicos da arte. (CHIPP, 1996, p. 85)

Adentrando o século XX, vamos ver em Greenberg, no seu Avant-garde and Kitsch, de 1939, a afirmação de que o distancimanto e a recusa da sociedade são pressupostos para a constituição da arte de vanguarda moderna – e não apenas a sociedade burguesa mesquinha, mas a política como um todo, inclusive a revolucionária: “Sendo verdade que a vanguarda foi bem sucedida

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em ‘despregar-se’ da sociedade, ela o fez para dar as costas e repudiar tanto a política revolucionária quanto a burguesa. A revolução foi deixada dentro da sociedade [...]”.7 (GREENBERG, 2011b).

Este movimento de recusa da realidade, no plano sócio-político, está na base do questionamento do conceito de realidade, no plano estético. Assim como a arte volta-se a si mesma no caminho de sua autonomização, há o deslocamento do objeto representado do exterior para o interior (ou do sujeito, ou da coisa, de qualquer modo, para além da superfície). É assim que, para Metzinger, em texto de 1912, “o realismo profundo se transforma insensivelmente em espiritualismo luminoso.” (CHIPP, 1996, p. 211). Palavras de sentido semelhante podem ser encontradas em muitos outros artistas da vanguarda, dos expressionistas aos cubistas – aqueles voltando-se para os recônditos vitais do homem, estes para as dimensões não exploradas do objeto. É assim que a atitude de afastamento e abstenção política se relaciona fundamentalmente com as questões estéticas. Esses dois planos – a abstenção política e a questão da experimentação estética – são defendidos ao mesmo tempo ao serem fundidos em um único conceito, que é o da autonomia da arte sob a forma da “arte pela arte”. A autonomia legitima o fechamento da prática artística nas duas direções: fecha-se para a vida política exterior e volta-se para si, na liberdade de manusear os próprios processos artísticos e suas tradições próprias, na autorreferencialidade que é característica de parte da produção artística até a contemporaneidade. A intenção de recusar a vida política é o primeiro, e maior, ponto de divergência entre os que defendem radicalmente a autonomia da arte em seu afastamento para com o mesquinho cotidiano da política e da sociedade, e os que defendem uma base político-participativa para a prática artística, configurando uma linha de oposição em que se confrontam, de um lado, a autonomia e a pureza estética e, de outro, a função e a participação. A tendência que ganha destaque no Ocidente, mais fortemente no decorrer da década de 30, remonta, por sua vez, a esse segundo grupo, cuja tradição radica principalmente (mas não exclusivamente) na Rússia da Revolução de Outubro de 1917 – que, sendo o resultado de um movimento interno de combate à tradição czarista, foi compreendida como possibilidade de uma nova e promissora alternativa aos impasses da cultura capitalista e suas contradições. Em nome dessa promessa, numerosos artistas em diversos países do mundo negariam a “arte pela arte”, defendendo a “arte pela revolução”. Dalcídio Jurandir estaria entre eles.

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Yet it is true that once the avant-garde had succeeded in ‘detaching’ itself from society, it proceeded to turn around and repudiate revolutionary as well as bourgeois politics. The revolution was left inside society [...].

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1.2. As tarefas da arte: a Arte e a Revolução Ora, é preciso escolher. A Revolução cortou o tempo ao meio. (Leon Trotski, Literatura e Revolução)

Para que cheguemos aos anos 50 e tenhamos uma percepção mais concreta das significações subjacentes às posições tomadas por Dalcídio Jurandir enquanto intelectual comunista e empenhado, é preciso remontar aos elementos que constituíram, em um processo histórico, a base epistemológica de sua atitude crítica perante a arte. Essa base está diretamente ligada à tradição russa de conflito social contra o regime czarista, a qual, encontrando-se com as formulações de Marx e Engels através principalmente da figura de V. I. Lenin (1870-1924), desembocará na Revolução de 1917 e na constituição da União Soviética. Quando dizemos “diretamente ligada”, assinalamos para que não se tome a tradição russa como exclusiva, no que diz respeito à relação entre arte e política nos séculos XIX e XX. Tenha-se em vista, por exemplo, as experiências francesas, com a Comuna de Paris, na década de 70 do século XIX, e seus efeitos sobre os intelectuais; os expoentes do socialismo utópico, Saint-Simon e Fourier, que também pensaram a arte em termos de ação social; a agitação da social-democracia alemã e a ligação do poeta Heinrich Heine com as questões sociais; etc. Todavia, o projeto instaurado na Revolução Russa constituir-se-á no núcleo irradiador das diretrizes da relação entre arte e política, quer na forma stalinista, quer na trotskista, sendo referência praticamente obrigatória para o intelectual que, no século XX, quisesse discutir as possibilidades de diálogo entre o artístico e o social. Eduardo de Assis Duarte ilustra como os acontecimentos ligados à Revolução Russa atuaram como catalisador da agitação política no terreno das artes:

A revolução soviética estabelece um divisor de águas a partir do qual se constrói um dos maiores fenômenos intelectuais do século, consubstanciado no engajamento entusiasta dos compagnons de route – escritores e artistas empenhados na utopia da sociedade livre e igualitária. [...] [...] O fato é que, das simpatias vagas ao engajamento militante, no mundo inteiro muitos “trabalhadores da palavra” – para ficarmos com a expressão de Henri Barbusse – vão se alinhar com a esquerda ou batalhar abertamente pela revolução. (DUARTE, 1996, p. 18-19)

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Os escritos de Lênin serão a pedra fundamental das políticas sociais, econômicas e culturais do Estado soviético, contendo em si muitos dos elementos que se desenvolverão no decorrer da história do regime e da política dos diversos Partidos Comunistas. Não levantamos a discussão acerca da legitimidade da apropriação realizada pela política cultural stalinista das afirmações de Lênin: o fato é que ela reclama junto a estas sua autoridade, e o que pretendemos aqui é apenas realçar quais características do pensamento leniniano acerca de arte e literatura puderam subsidiar as práticas posteriores do Estado soviético. Por isso, indicaremos a seguir aspectos do pensamento leniniano concernentes às tarefas da educação, da cultura e da arte, as quais constituem elementos indissociáveis da tarefa maior de construção de uma cultura socialista. Lênin nunca elaborou uma doutrina estética propriamente dita, e suas considerações acerca de arte e literatura são tão esparsas quanto as de Marx e Engels. Todos eles tinham em vista interesses diversos, políticos, econômicos ou filosóficos, tangenciando questões literárias quando estas se aproximavam daquelas que constituíam o cerne de seu interesse. Como diz Miguel Lendinez, “Lênin foi um personagem dedicado inteiramente à política ativa, prática, e a tudo o que pudesse se relacionar a ela de modo instrumental, ou seja, a tudo o que pudesse contribir para que avançasse rumo a seus objetivos políticos mais urgentes 8.” (LÊNIN, 1975, p. 11). Assim, suas considerações sobre literatura vêm profundamente imiscuídas nas discussões sobre política – inclusive aquelas que são consideradas suas maiores e mais significativas contribuições na esfera da literatura: os artigos sobre Tolstói e sobre a literatura de partido. Lênin escreveu vários artigos sobre o autor de Guerra e Paz, no intervalo entre 1908 e 1911, veiculados por vários periódicos social-democratas. De modo geral, neles o político elogia a capacidade que o escritor demonstrou de, mesmo não “compreendendo” a direção histórica dos acontecimentos que representava, ter expressado o descontentamento, a surda revolta crescente no seio das classes populares russas e do campesinato contra os proprietários e a burguesia. Mas, ao lado da sensibilidade para o descontentamento social, a incompreensão e a falta de visão para o devir histórico teriam levado Tolstói a desenvolver, segundo Lênin, uma ideologia da resignação pela fuga a um misticismo passivo e não-violento, chamada pelo articulista de “tolstoísmo”, o qual se alastrou pela mentalidade russa e, em certa medida, teria retardado o desenvolvimento de uma consciência revolucionária.

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“Lenin fue un personaje dedicado por entero a la política activa, práctica, y a todo lo que con ella pudiera relacionarse de una manera instrumental, es decir, a todo lo que pudiera hacerle avanzar hacia sua objetivos políticos más apremiantes.”

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Em León Tolstói, espelho da revolução russa, de 1908, Lênin deixa claro sua leitura do escritor russo com base na aproximação de sua obra com as questões sociais da revolução, já que, para o político, todo grande artista traz o reflexo, em sua arte, dos grandes movimentos sociais: “[...] se nos encontramos na presença de um artista de verdadeira grandeza, esse artista deve ter refletido, pelo menos em suas obras, algum aspecto essencial da revolução 9.” (Idem, ibidem, p. 37). Aponta também o cerne da grande contradição que perpassa a obra de Tolstói, aquela resposta mística e passiva à vontade de transformação que crescia nas massas oprimidas: “Tolstói refletiu o ódio acumulado, a aspiração já madura a uma vida melhor, o desejo de libertar-se do passado; mas também a imaturidade dos sonhos, a falta de educação política, a apatia diante da revolução 10.” (Idem, ibidem, p. 42). No entanto, a “crítica literária” realizada por Lênin mostra-se, antes de tudo, como crítica política a uma ideologia nociva ao despontar da revolução, o tolstoísmo, e que precisa ser superada rumo à ação revolucionária:

Graças à agitação obstinada e organizada dos sociais-democratas revolucionários, não só o proletariado socialista, mas também as massas democráticas do campesinato impulsionarão definitivamente os combatentes, cada vez mais resolutos, com riscos cada vez menores de caírem em nosso pecado histórico, o tolstoísmo!11 (Idem, ibidem, p. 42)

Os artigos sobre Tolstói são considerados fundamentais para depreender a interpretação leniniana da arte como reflexo, a qual expandirá a leitura marxista sobre arte para além de um “psicologismo de classe” popularizado, sobretudo, por Georg Plekhanov, o qual circunscrevia a criação artística aos limites da ideologia de classe, influenciado ainda pelo formalismo neokantiano. Plekhanov questiona: “Que sentido tem para um homem que não se interessa pela luta ou pela sociedade dedicar-se a ser observador da luta social? Tudo o que a essa luta se refere provocar-lhe-á um tédio insuportável.” (PLEKHANOV, 1964, p. 50). A argumentação do teórico se orienta para a afirmação de que a criação literária é determinada apenas pela intenção consciente, a qual se limita à condição de classe. Se tal é o caso, fica então vetado ao escritor depreender a realidade em sua globalidade complexa e contraditória, o que é fundamental para a interpretação do reflexo artístico a 9

“[...] si nos encontramos en presencia de un artista de verdadera grandeza, ese artista ha tenido que reflejar en sus obras al menos, algún aspecto esencial de la revolución.” 10 “Tolstoi reflejó el odio acumulado, la aspiración ya madura a una vida mejor, el deseo de liberarse del passado; y la inmadurez de los sueños, la falta de educación política, la apatía ante la revolución.” 11 “Gracias a la agitación obstinada y organizada de los social-democratas revolucionarios, no sólo el proletariado socialista, sino también las massas democratas del campesinado, impulsarán definitivamente adelante a los luchadores, cada vez más aguerridos, cada vez menos capaces de caer en nuestro pecado histórico, en el tolstoismo!”

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partir de Lênin: se fosse como Plekhanov defende, Tolstói, pertencendo à nobreza russa, nunca poderia ter “refletido” tão profundamente as movimentações subterrâneas da sociedade de seu tempo. A amplitude do reflexo artístico em Lênin será fundamental, como veremos posteriormente, para o pensamento lukácsiano acerca do realismo crítico. Portanto, em Lênin, a literatura não se submete diretamente à ideologia compreendida como “um sistema de crenças característico de uma classe ou grupo” (WILLIAMS, 1979, p. 60), não sendo expressão direta do interesse de classe do autor. A criação artística adentra as movimentações complexas e contraditórias do social, desempenhando um papel mais cognoscitivo que ideológico, para usar a distinção identificada por Sanchez Vásquez:

[...] na atualidade, partindo de suas [de Lênin] considerações sobre as grandes criações dos escritores realistas, é sublinhado – em face de uma interpretação meramente ideológica – o valor cognoscitivo da obra artística. Enquanto, segundo a concepção ideológica, o artista dirige-se para a realidade a fim de expressar sua visão de mundo, e com ela sua época e sua classe, ao passar-se do plano ideológico para o cognoscitivo sublinha-se, antes de mais nada, sua aproximação à realidade. (VÁSQUEZ, 1978, p. 32)

No entanto, Lênin não aprofundou ou desenvolveu sua concepção de literatura nem os modos de relação desta com o social e a consciência individual. As contribuições posteriores às considerações leninianas buscam elementos de outras áreas de seu pensamento: o próprio Lukács, por exemplo, apropria-se da teoria do conhecimento apresentada pelo político russo em Materialismo e empirocriticismo, para desenvolver a noção de “reflexo”. Se as questões propriamente estéticas permaneceram, infelizmente, em um nível apenas superficial, Lênin articulou melhor a questão da contribuição das artes à política revolucionária e partidária. O artigo A Organização do Partido e a Literatura do Partido, de 1905, é considerado como o documento canônico no que concerne à proposta de participação explícita da literatura na vida partidária. No entanto, é preciso ter em vista o contexto político muito particular em que ele foi produzido: vivia-se um momento de abertura política, com a legalização dos partidos de oposição ao regime czarista e da imprensa partidária. Todavia, Lênin desconfia dessa “democratização”, que ele percebe mais como manobra política para mitigar os ânimos daqueles que participaram das agitações de 1905. É nesse sentido que ele clama por uma literatura que, assumindo posição, não se deixe levar pelas relativizações e que se mantenha firme na luta pela causa do trabalhador, assumindo-a aberta e explicitamente. O uso posterior que Zdhanov faz do texto leniniano o abstrai

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de seu contexto específico, transformando-o em fórmula que estabelece a submissão da literatura aos desígnios do Comitê Central do Partido Comunista. Em A literatura de Partido, pode-se ler a afirmação de que a literatura deve integrar-se no corpo do trabalho político levado adiante pelo Partido (ainda o Partido Social-Democrata):

A literatura deve se converter em uma parte da causa geral do proletariado, ser “mola e engrenagem” do grande mecanismo social-democrata, uno e indivisível, posto em movimento pela totalidade da vanguarda consciente de toda a classe trabalhadora. A literatura deve chegar a ser uma parte integrante do trabalho organizado, metódico e unificado do partido social-democrata12. (LÊNIN, 1975, p. 73)

Essa integração é a ideia-base, a mensagem principal do texto – e a que será enfatizada no transcurso das relações entre o Partido e as artes. No entanto, no mesmo artigo, pode-se observar também a atitude de Lênin acerca da questão da dirigibilidade das artes pela política: uma atitude de ressalva, que tem em vista as especificidades criativas do trabalho artístico. Para Lênin, a literatura “[...] se presta menos que qualquer outra coisa a semelhante equação mecánica, à nivelação, ao dominio da maioria sobre a minoria 13” (Idem, ibidem, p. 73), e demanda “[...] um lugar mais amplo à iniciativa pessoal, às inclinações individuais, ao pensamento e à imaginação, à forma e ao conteúdo14.” (Idem, ibidem). A relativa “abstenção” de Lênin acerca da discussão sobre literatura e arte, todavia, vai cedendo lugar, conforme o político russo se estabelece no papel de chefe de Estado, a uma atitude de centralização da atividade literária, cujo referencial passa a ser os interesses políticos diretos de consolidação da Revolução. Essa centralização está implícita na própria concepção que Lênin tem da organização partidária, já apresentada em Que Fazer?, de 1900. Em 1914, ele criticaria a diversidade de tendências levantadas por grupos intelectuais dentro do movimento proletário – preocupado com a possível desintegração da organização unificada de classe que, segundo ele, era o único modo de conduzir uma ação efetiva:

12

“La literatura debe convertirse en una parte de la causa general del proletariado, ser “ruedecita y tornillo” del grande mecanismo social-demócrata, uno e indivisible, puesto en movimiento por la totalidad de la vanguardia consciente de toda la clase obrera. La literatura debe llegar a ser una parte integrante del trabajo organizado, metódico y unificado del Partido Social-Demócrata.” 13 “[...] se presta menos que cualquier otra cosa a semejante ecuación mecánica, a la nivelación, al domínio de la maioría sobre la minoría.” 14 “[...] un lugar más amplio a la iniciativa personal, a las inclinaciones individuales, al pensamiento y a la imaginación, a la forma y al contenido.”

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Cada grupo de intelectuais pode editar um folheto ou uma revistinha, proclamandose ‘tendência’, como por exemplo, o grupinho do filósofo antimarxista Bogdánov, ou o grupinho de Trotski, ou o grupinho de N. Guimmer e demais elementos que vacilam entre os populistas e os marxistas. [...] É particularmente ridículo que os intelectuais fundadores de grupinhos e “tendências” falem de “unidade” ao mesmo tempo em que destroem a união dos operários. (LÊNIN, 1979, p. 102-104).

Na década de 20, a centralização torna-se imperativo para a construção da sociedade socialista. É neste período que a cultura é dirigida para uma finalidade fundamentalmente pedagógica – e é aqui que se gesta a função da literatura como educação, com o escritor no papel de “engenheiro de almas”, segundo a posterior formulação stalinista. As declarações de Lênin sobre a tarefa da educação são exemplares dessa orientação. O discurso à União da Juventude Comunista, de 3 de Outubro de 1920, é diretamente voltado para a questão da educação. Em sua fala, Lênin identifica dois momentos da Revolução: a de destruição da velha sociedade, com a instituição das bases necessárias à nova, e a construção da nova sociedade – sua geração só poderia realizar a primeira parte da tarefa, cabendo aos jovens o trabalho segundo de edificação.

[...] é precisamente à juventude que incube a verdadeira tarefa de criar a sociedade comunista. Porque é evidente que a geração de militantes educada na sociedade capitalista pode, no melhor dos casos, realizar a tarefa de destruir as bases do velho modo de vida capitalista baseado na exploração. No melhor dos casos poderá realizar a tarefa de criar um regime social que ajude o proletariado e as classes trabalhadoras a conservar o poder nas suas mãos e a criar uma sólida base, sobre a qual só poderá edificar a geração que começa a trabalhar, já em condições novas, numa situação em que não existem relações de exploração entre os homens. (LÊNIN, 1980, p. 386)

Lênin defende então que a juventude só poderá desempenhar seu papel de construção, por sua vez, se aprender o verdadeiro comunismo: “[...] devo dizer que essas tarefas da juventude em geral e das uniões da juventude comunista e de quaisquer outras organizações em particular poderiam exprimir-se em uma só palavra: aprender”. (Idem, ibidem). O revolucionário especifica o que caracterizaria a tarefa de aprendizagem segundo a ótica comunista: o ensino e a aprendizagem não se desvinculam da atividade prática, do contato com as dinâmicas sociais, assim rejeita o que entende por “ensino livresco”, para ele típico da cultura burguesa, em que se dissociam o ensino e a vida prática, transformando o conteúdo aprendido em matéria abstrata. A aprendizagem do

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comunismo deve ser de tal forma ligada à vida, que ele apareça como algo naturalmente decorrente dela própria – e não como o conteúdo a ser decorado de uma cartilha revolucionária.

[...] devemos compreender que o velho ensino livresco, a velha aprendizagem de cor e o velho amestramento devem ser substituídos pela capacidade de se apropriar de toda a soma de conhecimentos humanos, e apropriar-se deles de tal modo que o comunismo não seja em vós algo aprendido de memória, mas seja pensado por vós mesmos, seja uma conclusão necessária do ponto de vista da educação moderna. (Idem, ibidem, p. 390)

Lênin estabelece ainda o fundo sobre o qual a educação deve ser empreendida e do qual não pode ser divorciada – a moral e a ética comunista, as quais estão “[...] por completo subordinada aos interesses da luta de classe do proletariado” (Idem, ibidem, p. 392). É a luta do proletariado que aparece, portanto, como o imperativo ético que embasa a educação comunista. Esta última se orienta por uma visão de mundo que entende a realidade como a realidade da luta de classes, na qual o proletariado se destaca como classe revolucionária. Se a educação deve se inserir na realidade prática, ela deve, então, participar da “luta de classes”. Mas, ao mesmo tempo, ela deve se ligar à ética comunista, que é o apoio à classe operária na sua luta contra outras classes. Logo, a educação deve ser orientada pelo interesse da classe operária em sua luta. A questão é que é o Partido que dá expressão sistemática a esses interesses, organizando-os sob a forma de ação efetiva e direcionada. Assim, a educação deve submeter-se, enfim, às diretrizes do Partido, porta-voz da classe operária. “A União Comunista da Juventude só justificará o seu nome, só justificará que é a União da jovem geração comunista, se ligar cada passo da sua instrução, educação e formação à participação na luta comum de todos os trabalhadores contra os exploradores.” (Idem, ibidem, p. 394). A posição a respeito da tarefa da educação é coextensiva à tarefa cultural em sentido amplo: esta deve ser inserida no movimento prático da vida social, tendo como base a ética comunista de compromisso com a causa proletária dentro da luta entre classes, ou seja, as diretrizes partidárias que manifestam o interesse do proletariado. Em discurso de 3 de Novembro de 1920 aos Comitês de Instrução Política, Lênin afirmaria: “O principal, que deve obrigar os camaradas a participar juntamente conosco no trabalho de conjunto de cultura e de instrução, é a questão da ligação da instrução com a nossa política” (Idem, ibidem, p. 400). Com o estabelecimento do Poder Soviético, a tarefa se direcionará para a utilização dos meios culturais tanto na tarefa de educação da

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mentalidade socialista junto às massas, quanto de consolidação da ditadura do proletariado e da linha partidária bolchevique. Ainda na década de 20, Lênin tomaria resoluções enérgicas na área artística, concretizando então, por meio de decretos, a integração da literatura ao corpo do Partido, que expusera na década anterior em A literatura de Partido, dando continuidade à sua política de centralização partidária. Declarou obrigatória a submissão do Proletkult 15 ao Poder Soviético e à sua ditadura do proletariado:

[...] o Congresso de toda Rússia do Proletkult repudia de modo mais enérgico, como incorretas em teoria e prejudiciais na prática, quaisquer tentativas de inventar uma cultura particular própria, de se fechar nas suas próprias organizações isoladas, de delimitar os domínios de trabalho do Comissariado do Povo da Instrução e do Proletkult ou de implantar a “autonomia” do Proletkult dentro das instalações do Comissariado do Povo da Instrução, etc. Pelo contrário, o congresso impõe a todas as organizações do Proletkult a obrigação incondicional de se considerarem inteiramente órgãos auxiliares da rede de instituições do Comissariado do Povo da Instrução e de realizarem as suas tarefas como parte das tarefas da ditadura do proletariado, sob a direção geral do Poder Soviético [...] (Idem, ibidem, p. 399)

As diretrizes de Lênin passam a contrastar profundamente com a efervescência artística da Rússia pós-17, que acompanhou a efervescência revolucionária da esfera política. O caso de Maiakovski é ilustrativo dessas transformações: um dos maiores nomes da vanguarda russa alinhouse aos bolcheviques, defendendo a arte na linha da esquerda e apoiando intensamente a Revolução. O destino trágico do poeta, no entanto, mostra muito sombriamente o desfecho de tais relações. Mas é preciso, antes de tudo, compreender as causas sociais que estão na base da linha política que se afirmou como dominante: a necessidade de, saindo do caos de uma violenta Guerra Civil, manter o movimento de consolidação da nova realidade, canalizando esforços para um objetivo pontual, o que levou a uma concentração e enrijecimento do movimento em diretrizes que não comportavam divergências. Quando da morte de Lênin e da consolidação de Stálin à frente do Partido Comunista da URSS, o fazer artístico encontrava-se já fortemente subordinado aos interesses do aparelho de poder construído. As décadas de 30 e 40 assistirão, então, à elaboração formal dessa relação de 15

O Proletkult (abreviatura para o termo russo equivalente a “Cultura Proletária”) foi um movimento artístico e cultural simpatizante com o direcionamento da Revolução, mas que se recusava, todavia, a ser integrado como elemento subordinado do Partido Comunista, apresentando uma proposta alternativa para o desenvolvimento das artes e da cultura. O médico, escritor e filósofo Aleksandr Bogdánov é seu representante mais conhecido.

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dominância – um modelo estético batizado de Realismo Socialista, que deveria empreender, na forma artística, a tarefa de construir a realidade idealizada pela revolução política.

1.3. Dalcídio Jurandir: o intelectual na arena dos conflitos

As lutas sociais se transcrevem na sociedade contando com os intelectuais, no sentido mais abrangente do termo, como seus cronistas, seus estimuladores, seus escudeiros... (Horácio Gonzalez, O que são intelectuais?) A esfera da arte mostra-se, desde fins do século XIX partida em duas linhas que opõem a autonomia e a função – oposição que, no decorrer da primeira metade do século XX, tenderá a se acentuar. Os “autonomistas” agregam a seu conjunto de reivindicações a liberdade formal de experimentação: autonomia e liberdade formal são, como vimos, contrapartidas estéticas de sua reivindicação de abster-se e distanciar-se da vida cotidiana amesquinhada pela cultura burguesa capitalista. Os “partidaristas”, no entanto, caminham cada vez mais seguramente para o sacrifício da liberdade formal em nome do projeto de uma liberdade humana alcançada pelo trabalho da revolução política, à qual subordinam sua prática artística. Temos, portanto, a constituição de uma polarização que se mostrará mais profunda conforme os acontecimentos políticos do século apresentem aos artistas um mundo também radicalmente polarizado: as tensões que conduzirão à II Guerra (1939-1945), dividindo o mundo entre o Eixo e os Aliados, e à Guerra Fria (1945-1989), que levará o conflito entre Capitalismo e Comunismo até praticamente fins do século. É sob o esquema da polarização que Dalcídio Jurandir lê o mundo. No texto publicado em Imprensa Popular, no início da década de 50, saudando a publicação da carta de Vissarion Belinski a Gogol no periódico Para Todos, ele diz: Enquanto os jornais “sadios” publicam os documentos mais característicos da corrupção intelectual, em moda nos apodrecidos círculos culturais das classes dominantes, nossas revistas enfrentam todas as dificuldades materiais para publicar documentos como a “Carta da Prisão”, de Thaelman (“Para Todos”, n. 8), como a “Carta a Gogol” (Para Todos, n. 9). [...] Os pífios e repugnantes repórteres “sadios” se preocupam em lançar sobre os leitores a indignidade de um Genot, que faz o elogio puro e simples de seus colegas ladrões, pederastas e traidores. Nossas revistas revelam notícias sobre o florescimento cultural na URSS e nas democracias populares. [...]

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Os suplementos “sadios” pregam abertamente a mentira, pois o anticomunismo é sua melhor matéria paga. Tentam oferecer como literatura as drogas herméticas, o saudosismo chinfrin, as “obrinhas” em que escorrem as miudezas, pretendendo fazer esquecer tudo o que possa estar ligado ao nosso tempo, à nossa realidade. Exibem um degradante espetáculo de castração intelectual, de covardia e trapaça, descaramento e gratuidade. [...] (JURANDIR, s/d)

Os “apodrecidos” e os que “florescem”; os “degradados” e os “sãos”; os “covardes” e os “corajosos”: esse tipo de binarismo, todavia, não pode ser imputado tão simplesmente a uma “ingenuidade” da parte do escritor. Tal esquema tem suas raízes profundas no referencial teórico de que ele se apropria: o pensamento stalinista e sua doutrina marxista-leninista. Já a visão marxista do desenrolar da História, tal como apresentada por Marx e Engels no Manifesto do Partido Comunista, conduz a um ápice em que se opõem ferozmente a burguesia e o proletariado, os exploradores e os explorados: “Toda a sociedade se divide, cada vez mais, em dois grandes campos inimigos, em duas grandes classes diretamente opostas: a burguesia e o proletariado.” (MARX; ENGELS, 2008, p.9). Lênin aprofundaria o antagonismo, com a necessidade de firmar as bases do estado pós-revolucionário: “A nossa missão fundamental consiste, entre outras coisas, em contrapor a nossa verdade à ‘verdade’ burguesa e em impor o seu reconhecimento.” (LÊNIN, 1980, p. 401) É este antagonismo radical, oriundo de uma cosmovisão específica, que se mostra ao escritor marajoara como o “eixo semantizador [...] regulado por um saber tido como veraz, que agencia u m universo delimitado de conceitos, convenções, estilos de vida e modos de pensar.” (MORAES, 1995, p. 80). Dalcídio Jurandir pertence assim ao grupo de intelectuais que encontra no marxismo um sistema de conceitos que apresenta uma imagem global da realidade, prometendo a compreensão objetiva das leis de seu desenvolvimento, respostas aos anseios éticos dos intelectuais diante da “desumanização” do homem (alienação, fetichização, despersonalização, etc.) e também a possibilidade de ação transformadora/revolucionária advinda da força objetiva do proletariado. Segundo Michael Löwy:

O marxismo enquanto sistema coerente, científico e revolucionário, surge a muitos intelectuais radicalizados como a única teoria que explica e desvenda a verdadeira causa da reificação, da dominação sufocante do quantitativo, da despersonalização da vida, da degradação dos valores, da guerra, que não é outra senão o capitalismo. O marxismo atrai os intelectuais não somente por seu rigor científico, pelo caráter global e universal de sua concepção de mundo, mas também porque propõe a abolição radical da hegemonia do valor de troca sobre a vida social, e porque ele é capaz de mostrar uma força social real que tende para este objetivo: o proletariado revolucionário. (LÖWY, 1979, p. 8)

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No texto O exemplo de F. Caneca e Silva Jardim, publicado em Para Todos no ano de 1951, é o próprio romancista quem indica a importância dos conceitos fornecidos pelo marxismo enquanto princípios de compreensão e interpretação da realidade nos níveis “objetivo” e “ético”, apontados acima:

Essas ideias progressistas nos dão a conhecer as leis do desenvolvimento social, mostram como se está construindo o socialismo numa quinta parte do mundo, como as lutas dos países coloniais e semi-coloniais rebentam as seculares algemas que mantinham no atraso e na miséria milhões de seres humanos. Indicam a solução do problema de nossa independência e consequentemente do problema de nossa cultura [...] (JURANDIR, 1951a)

Os conceitos do sistema marxista são aplicados não só nos níveis amplos da compreensão objetiva das leis de desenvolvimento social e de uma ética humanista universal (a luta de libertação contra a miséria e a exploração colonial), mas também se voltam para a problemática específica da realidade nacional, cuja percepção conduz à compreensão do papel das artes e das letras na sociedade brasileira. Para Dalcídio Jurandir, o principal problema da realidade brasileira de então é a “política imperialista norte-americana” e seu neocolonialismo. Se a luta antifascista mobilizara as frentes no período de 30 e 40, os textos dos anos 50 apontam exaustivamente para a denúncia da “traição” do governo getulista ao se alinhar com o capitalismo imperialista e neocolonial, demandando um novo movimento em prol da independência do país: Estamos numa época em que se encontra “em ordem do dia a total liquidação de todo o sistema colonial do imperialismo” e em que o “desenvolvimento e a intensificação da luta de libertação nacional são a contribuição mais eficiente dos povos coloniais e dependentes à luta comum do campo mundial da paz”. E para essa luta e para a situação em que se acha o Brasil, submetido a um governo de traição nacional, “a indiferença e o silêncio, o conformismo e a passividade já constituem, no momento, um crime de lesa pátria. (Idem, ibidem)

Mergulhado na avaliação que polariza as relações sociais na oposição entre “capitalismo norte-americano” (polo investido de uma semântica negativa, em torno da qual gravitam noções como degradação, decadência, exploração, mentira) e “socialismo soviético” (investido, por sua vez, de uma semântica positiva, de valores tais como progresso, vida, liberdade e verdade),

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reverberando as tensões da Guerra Fria, Dalcídio Jurandir transfere essa polarização para o campo cultural, identificando a partir desse esquema a função do intelectual e a posição a ser tomada. Para ele, como para Marx e Engels, para Lênin e para a tradição marxista a que se ligava, não há meio termo. Ainda em O exemplo de F. Caneca, o escritor declara: “Os intelectuais brasileiros sabem que os dois caminhos estão definidos. Não há terceiro. Ou escolhem o caminho de Truman e se afogarão na lama da derrota e da decomposição imperialista ou escolhem o caminho revolucionário, que é o caminho do triunfo.” (Idem, ibidem). Ou isto ou aquilo. Com o conhecimento das “ideias progressistas” que esclarecem, de modo tão óbvio, os rumos certos para o desenvolvimento da sociedade e do homem, o intelectual não pode ter dúvidas com relação ao caminho a seguir:

Diante da estagnação das artes, da literatura, das ciências, diante do crescimento calamitoso da ignorância e do analfabetismo em nosso país, os nossos intelectuais não podem ter outra conduta decente senão a de colocar-se ao lado das ideias progressistas que orientam já metade da população do globo. (Idem, ibidem)

Dalcídio Jurandir condena não apenas os intelectuais, artistas e escritores que assumem o “partido” imperialista, mas aqueles que, na ilusão de manterem-se neutros, reivindicando autonomia, acabam por fazer o jogo do inimigo: a recusa em levantar a bandeira do comunismo (a do povo, a da liberdade) é o suficiente para formalizar a acusação de traição, de apoio aos partidários da miséria e da guerra. Em A conferência dos chanceleres e a propaganda de guerra, ele afirma:

A luta irreconciliável entre os dois campos, o democrático e o imperialista, se reflete nitidamente entre os nossos intelectuais. Em que lugar se colocam aqueles intelectuais que tudo aceitam, tudo silenciam ou utilizam os métodos do diversionismo e da deturpação dos fatos, os métodos da “neutralidade” e do anticomunismo? No mesmo lugar onde se colocam os mais cínicos e mais ignóbeis propagandistas de guerra. Haverá diferença entre o silêncio de cumplicidade de um sr. Álvaro Lins e um sr. Austregésilo, da publicidade guerreira dos Diários Associados? De uma maneira geral, todos estão de acordo. Que diferença pode haver entre o sr. Schmidt, que quer a “guerra sagrada” e o sr. Bandeira, que deseja bastar-se a si mesmo para ser feliz e manda o mundo para o diabo? Que diferença há entre d. Raquel de Queiroz que, em seu folhetim, numa revista cafajeste, faz a apologia dos tiras, os mesmos que espancam a matam os partidários da paz e o sr. Carlos Drummond, que considera como uma fatalidade a bomba atômica, pelo menos para exterminar alguns milhões de comunistas? (JURANDIR, 1951b)

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A posição política do escritor, assim, condiciona claramente suas avaliações no campo cultural, levando a críticas e acusações por vezes virulentas. Por exemplo, ao criticar a proposta de Gilberto Freyre acerca de uma “compreensão poética da história” e a crítica feita pelo sociólogo pernambucano ao método materialista, diz: “A respeito da interpretação materialista da história, o sr. Freyre demonstra apenas feroz ignorância. Nunca leu Marx nem mesmo uma página de Engels a respeito do assunto, pois do contrário não diria semelhante burrice.” (JURANDIR, 1951c); sobre o poeta Murilo Mendes, dispara, acusando-o de anticomunista: “esse místico de cartório que em nome da hóstia consagrada, das sibilinas considerações sobre a pintura e ‘o homem mistério’ compõe ‘sutis’ calúnias contra os pintores comunistas [...]” (JURANDIR, 1951d). No entanto, o sistema de conceitos que Dalcídio Jurandir utiliza para compreender o mundo, as demandas da realidade e o papel do intelectual diante delas, tem seu alcance para além dos nomes mais imediatos da cena cultural de então. Ele permite ao escritor uma visão ampla do campo da arte e da história da literatura brasileira – aqui, novamente, sua percepção está embasada no esquema binário de “decadentes” e “progressistas” a conduzir a discussão sobre arte e literatura modernas. No texto A mentira e a ilusão do trapézio, publicado em Para Todos, em 1951, em que critica a defesa do surrealismo por Aníbal Machado, ele cita Herbert Read para afirmar a característica principal da arte burguesa na modernidade: “Quanto mais dependa a arte – escreve Read – dos fatores conscientes, morais ou políticos, mais se prejudica. A arte é um ato de individualismo puro, espontâneo, inconsciente.” (JURANDIR, 1951d). O individualismo espontâneo e inconsciente da arte moderna burguesa (que se contrapõe à consciência moral e política da outra vertente) se resume, para o escritor, a uma subjetividade doentia e irresponsável, que tem a morte como tema obsessivamente recorrente: “A loucura passa a ser uma ‘forma superior’ da atividade artística, ou melhor, da atividade filosófica, do ato de pensar. Sejamos loucos para pensarmos bem, para compreendermos o mistério da vida.” (Idem, ibidem). Tal espontaneísmo subjetivista que flerta com o patológico estaria a serviço da deformação da realidade, a qual contribui para escamotear a percepção dos movimentos revolucionários das massas trabalhadoras:

Porque essa distorção da realidade, essa pública afirmação de que o surrealismo é o melhor método para cultivar o espírito e o instinto tem um caminho: o de esconder a verdade revolucionária de nossos dias, fugir ao debate claro e lógico dos problemas humanos, aparentar uma conciliação absurda entre a classe operária e um raminho seco da seca e desesperada ideologia capitalista. Esse surrealismo é

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boa arma de abstração diante da guerra, de Getúlio e o seu grupo de exploradores e traidores, empenhado em conservar este atraso, esta miséria, esta infâmia que é o seu regime contra o povo do Brasil. (Idem, ibidem)

O sistema de conceitos herdado da tradição marxista também é instrumentalizado para ler momentos-chave da história da literatura brasileira, revisando-a e chegando à proposta de um cânone alternativo, composto por figuras realmente progressistas e comprometidas com o desvelamento da realidade social brasileira. Assim, no texto O Partido do Proletário inicia a Revolução Cultural, publicado em Para Todos, em 1952, Dalcídio Jurandir relê o modernismo de 22 nos termos de uma “caricatura de revolução”, barulhenta, mas inócua enquanto movimento concreto de renovação cultural: “Na ‘Semana’ deu-se uma camouflage, o que chamavam de ‘revolução’ ou ‘libertação’ nada mais era do que um equívoco e um jogo fundamentalmente político nos moldes de uma caricatura de revolução.” (JURANDIR, 1952a). O fracasso da Semana de 22 adviria, principalmente, de sua falta de ligação com as forças realmente progressistas, as do proletariado, que vinha emergindo cada vez mais como classe consciente de si: “os trêfegos revolucionários, muitos de regresso da Europa, não foram buscar o seu impulso, a humanidade e a verdade de sua ação e de obras ou programas naquela consciência nascente onde, com efeito, nascia o novo, o revolucionário.” (Idem, ibidem). Ora, somente a visão de mundo comunista permite discernir, claramente, a força revolucionária que o proletariado corporifica. A ausência dos conceitos certos de interpretação esvaziou, segundo Dalcídio Jurandir, qualquer possibilidade de o movimento de 22 mostrar-se como revolução séria, levando-o a um “esquerdismo” boêmio 16 que se apresentou como mero espetáculo exótico para a classe dos proprietários paulistas: Naquela Semana, os fazendeiros e banqueiros paulistas pagavam e divertiam-se com um gênero novo de boemia literária, trazida da Europa com a demora habitual de vinte anos. É certo que nos salões e nos bares, essa boemia fingia de “esquerda” para dar um sabor de perigo e aventura em meio das velhas e tranquilas novidades importadas. Para os anfitriões da Semana, esses pequenos burgueses, alguns embora não muito inteligentes, não constituíam ameaça alguma, pois se mostravam antropófagos, demolidores e antigramaticais por fora e submissos, bem comportados e cordeirinhos por dentro. Não podiam de maneira alguma assustar os senhores de terras e os patrões da cidade, ameaçar-lhes o latifúndio, os bancos, as

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A análise de Dalcídio Jurandir encontra-se com a apresentada por Oswald de Andrade no famoso prefácio a Serafim Ponte Grande, datado de 1933. Também para o egresso do modernismo de 22, a Semana se mostraria apenas “boemia”, ignorante da “questão social”, como o próprio Oswald coloca: “As massas, ignoradas no território como hoje, sob a completa devassidão econômica dos políticos e dos ricos. Os intelectuais brincando de roda.” (ANDRADE, 1972, p. 131)

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fábricas, o código civil, o analfabetismo e as demais instituições de classe. (Idem, ibidem)

Assim, nomes como o de Lima Barreto, Euclides da Cunha, João Ribeiro, Monteiro Lobato e Machado de Assis são apresentados como mais representativos ao se tratar de percepção profunda das problemáticas nacionais, em oposição a um “modernismo” que se resumiria à fascinação do novo e diferente e que partilharia de uma dinâmica que engloba o imperialismo colonizador, a política do Estado Novo e o próprio fascismo – todos estes intimamente ligados, segundo o autor:

O que se prova hoje é que Machado de Assis, Silvio Homero, José Veríssimo, Euclides da Cunha, Lima Barreto, João Ribeiro, Monteiro Lobato eram mais avançados e mais brasileiros, mais anti-acadêmicos e renovadores que os tão subversivos e nacionalistas pagés da antropofagia, do verde-amarelismo, da lingüinha brasileira, dos assuntinhos poéticos, da imitação de Cendrars e Apollinaire, da louvação da falta de caráter, do “equerdismo” como estética do palavrão e da gíria, da apologia de Barrès e Mussolini e, finalmente, do Estado Novo. (Idem, ibidem)

Mas o ano de 1922 é também o ano de fundação do Partido Comunista Brasileiro. Para o romancista, o Partido age em via dupla: expressa, de modo organizado, as tendências progressistas que já se manifestavam no movimento proletário; mas não é apenas a expressão dessas tendências, já que as elabora como ação política consciente, servindo, então, como guia à ação espontânea de classe: Sucedeu precisamente que as ideias, os conceitos, a orientação que a nossa cultura reclamava para seu novo caminho encontravam-se nesse partido. [...] Tratava-se do aparecimento, como força política e ideológica, do nosso então muito débil e já combatente proletariado. (Idem, ibidem).

Sendo o partido a expressão do substrato revolucionário real, a cultura que se liga a ele (e, por conseguinte, ao proletariado) é a cultura verdadeiramente revolucionária, progressista e modernista: [...] “revolução modernista”, “revolução cultural” [...] Esta se esboça, dá os primeiros passos, há de realizar-se com a existência do Partido Comunista e este não indica apenas toda a esperança mas toda a possibilidade de amplo e fecundo trabalho de nossa cultura em que os escritores e poetas, de partido e sem partido, poderão, como intérpretes de nosso povo, continuar e tornar grande nossa literatura. (Idem, ibidem)

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Portanto, a orientação do partido comunista instaura um novo marco zero da literatura moderna brasileira. O ano de 1922 é ainda o ano do modernismo, mas por conta do surgimento do Partido Comunista Brasileiro, o qual permite aos artistas um verdadeiro contato com as forças sociais revolucionárias. Nesse sentido, o intelectual deve colocar-se a serviço do povo, do proletariado e, por conseguinte, do próprio homem em seu desenvolvimento revolucionário. Dalcídio Jurandir, em No 5º. Centenário de Leonardo, especifica uma imagem de intelectual segundo o modelo de Leonardo da Vinci: em contato com as forças progressistas de sua época e profundamente comprometido com o humano enquanto causa, e não apenas um “gênio” recluso em sua própria obra, tal como a intelectualidade burguesa decadente17: O nome de Leonardo está ligado ao nosso tempo que recebeu a herança do Renascimento e ergue as bases de um novo, agora em escala sem precedentes, para toda a humanidade. O nome de Leonardo entre os operários de vanguarda no mundo inteiro significa o exemplo de uma ação e de uma inteligência a serviço do homem [...] (JURANDIR, 1952b)

Mais adiante, ele continua: Expressão culminante do artesanato e da indagação científica no salto histórico para as novas condições do trabalho e da ciência que surgiam no Renascimento, projeta-se Leonardo até nós como uma imagem da cultura que não para e se renova sempre, da arte e do trabalho em função de uma luta comum, a luta da humanidade contra a rotina, os interesses criados, contra a natureza, a luta do realismo contra o formalismo, do materialismo contra o idealismo. (Idem, ibidem)

Leonardo é uma imagem para o intelectual daquela época que, ligado às novas condições de trabalho e de ciência, à realidade socialista que se anuncia, renova a cultura no sentido da luta comum pela humanidade – ideal de modernista, portanto. Superando o formalismo (arte autônoma e experimental), coloca sua arte a serviço da causa ética de libertação do humano das forças sociais e naturais que ainda o aprisionam. O ideal de intelectual só pode germinar nas condições apresentadas por uma realidade socialista. O que se percebe então, nas considerações de Dalcídio Jurandir sobre o campo artístico, é que o sistema de conceitos que orientam sua visão de mundo tem na noção de “realidade socialista” um ponto central. A “realidade socialista”, essa realidade que se mostra duplamente como dado objetivo, produto do desenrolar da história, e como imperativo ético, solução das contradições

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Leonardo da Vinci é uma figura constantemente evocada dentro do pensamento marxista, a partir de declarações do próprio Marx presentes em sua correspondência, como símbolo de um homem integral, anterior aos efeitos alienadores da divisão do trabalho.

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dilaceradoras do homem instauradas pelo capitalismo, fundamenta sua apreensão polarizada da esfera cultural: os produtores pertencem a dois grupos opostos, os que lutam pela concretização da “realidade socialista” e os que, consciente ou inconscientemente, fazem o jogo da política imperialista burguesa; a arte, assim, mostra-se ou progressista e revolucionária ou decadente e reacionária – neste último caso, por não partilhar dos conceitos que permitem desvelar as forças progressistas que convulsionam a vida social no sentido de sua revolução. A partir dessa apreciação do campo de produção artística, Dalcídio Jutandir apresenta a imagem do ideal de intelectual: o militante, que coloca sua produção a serviço da concretização da “realidade socialista”, libertandose, em nome de um imperativo ético-político, do formalismo de uma arte autonomista. O Partido Comunista desempenha papel fundamental nessa percepção, pois ele é a instância que expressa conscientemente e organiza, sistematicamente, em um conjunto de conceitos, o movimento que se dá espontaneamente nas massas, no povo, no proletariado, impulsionando o desenvolvimento histórico da realidade socialista pela via revolucionária. Logo, importantíssima seria a participação do Partido na esfera da produção cultural, guiando os rumos do intelectual progressista, e isto não apenas na questão ética, mas também na estética. Dalcídio Jurandir já coloca que Leonardo é a vitória do realismo sobre o formalismo. O conceito de realismo será o carro-chefe da estética comprometida com a causa revolucionária, questão central da discussão sobre arte que se engendra na tradição marxista, sendo indissociável das implicações éticas e políticas que subjazem à concepção de mundo dessa tradição. É sobre o conceito de realismo que tratará o capítulo a seguir.

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CAPÍTULO II

DE REALIDADES E REALISMOS: ELEMENTOS DO PENSAMENTO DE DALCÍDIO JURANDIR SOBRE ROMANCE E REALIDADE

2.1. O Realismo: a ascensão do romance e o realismo formal

Trata-se da vida contemporânea e atual, considerada não na forma generalizadora e estática dos moralistas, mas como um conjunto de fenômenos apresentados com suas causas profundas, sua interdependência, seu dinamismo. (Erich Auerbach, Introdução aos Estudos Literários) Antes de qualquer consideração acerca do realismo socialista e do realismo crítico, as duas denominações que polarizaram grande parte do debate marxista sobre arte, é preciso, primeiramente, tecer alguns comentários essenciais sobre o realismo em sentido amplo, enquanto tradição que apenas em fins do século XIX e às portas do século XX tem sua “hegemonia” sistematicamente questionada pela vanguarda moderna a partir de suas reivindicações de autonomia e experimentação. À questão do realismo liga-se, indissociavelmente, a questão da concepção de realidade, pois, se o realismo é, grosso modo, um estilo que preza pela representação da realidade, nada mais lógico que estabelecer a que realidade ele se refere. Esse é um ponto de partida bastante óbvio, e também o mais complicado, o que resume toda a problemática do realismo, dada a vastidão de suas possibilidades de aplicação no decorrer de toda a tradição ocidental de pensamento e de criação artística.

O realismo, no sentido lato de fidelidade à natureza, é indubitavelmente uma poderosa tradição crítica e criadora tanto das artes plásticas quanto da literatura. Basta aludir apenas ao que parece o realismo fiel e quase literal de muito da cultura helenista ou da escultura romana tardia, ou de muito da pintura holandesa, ou, em literatura, a cenas do Satyricon de Petrônio, aos fabliaux medievais, ao vultoso corpo da novela picaresca, às minudências circunstanciais de Daniel Defoe, ou ao drama burguês do século XVIII – para limitar meus exemplos a escritores anteriores ao século XIX. (WELLEK, [19..], p. 197)

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Assim, partamos de um momento que é mais determinado historicamente e que se comunica mais intimamente com as questões estéticas do realismo moderno, do século XIX e XX, que estão à luz desta investigação. Comecemos do século XVIII, com a ascensão do romance burguês, o qual nasce umbilicalmente ligado a uma perspectiva realista. Mas a que “realidade” o nascente romance se referiria? Ian Watt em seu clássico estudo A ascensão do romance, de 1957, afirma que o romance moderno já nasce dotado de um realismo, não pensado como estilo específico, mas congênito à nova forma: um “realismo formal”.

O método narrativo pelo qual o romance incorpora essa visão circunstancial da vida pode ser chamado seu realismo formal; formal porque o termo “realismo” aqui não se refere a nenhuma doutrina ou propósito literário específico, mas apenas a um conjunto de procedimentos narrativos que se encontram tão comumente no romance e tão raramente em outros gêneros literários que podem ser considerados típicos dessa forma. (WATT, 2010, p. 34)

Tais aspectos realistas formais – como a atenção particular à individualização dos personagens a partir, por exemplo, do uso de nomes próprios corriqueiros à época e cada vez mais despidos de sentidos alegóricos, como fora usual até então; a apresentação detalhada do ambiente, particularizando cada vez mais o tempo e o espaço dos acontecimentos – são características que se ligam historicamente a alterações profundas na própria maneira pela qual os homens passaram a considerar a realidade. Watt, traçando um paralelo entre o moderno realismo filosófico, emergente ainda no século XVII, e a forma do romance, identifica como base das características formais comuns a ambos a partilha de um núcleo comum, que é a transição do realismo medieval, universal e abstrato, para o realismo moderno, protagonizada, em filosofia, por Descartes, e no romance, pelos ingleses Defoe, Fielding e Richardson. Tanto as inovações filosóficas quanto as literárias devem ser encaradas como manifestações paralelas de uma mudança mais ampla – aquela vasta transformação da civilização ocidental desde o Renascimento que substituiu a visão unificada de mundo da Idade Média por outra muito diferente, que nos apresenta essencialmente um conjunto em evolução, mas sem planejamento, de indivíduos particulares vivendo experiências particulares em épocas e lugares particulares. (Idem, ibidem, p. 12)

Tal clima intelectual global leva a que tanto a nova técnica literária quanto a filosófica se aproximem em seu intuito comum de observar a experiência concreta do indivíduo particular: “[...]

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o romance imita a vida seguindo os procedimentos adotados pelo realismo filosófico em sua tentativa de investigar e relatar a verdade.” (Idem, ibidem, p. 33). Ainda das reflexões de Watt, gostaríamos de reter o método pelo qual o estudioso aborda a questão do realismo: mostra que, longe de ser um conceito monolítico resumido em uma vaga noção de “fidelidade à natureza”, ele se apresenta como uma manifestação ligada a fatores sociais e culturais específicos, os quais conferem sua significação histórica concreta: no caso do realismo formal do romance emergente, suas técnicas e seu conteúdo correspondem à experiência histórica de secularização do conhecimento e laicização da organização social, cada vez mais próxima do mercado consumidor de estilo capitalista, que tem o indivíduo como centro de gravidade. De modo análogo, o realismo como estilo, que se manifesta em meados do século XIX na atividade de artistas e críticos como Courbet, Duranty e Champfleury, se relaciona muito especificamente com um contexto cultural e político que define sua própria significação. Na obra de Courbet, a técnica e o tema se entrelaçam significativamente com o momento histórico-social que a embasa. O pintor tematiza, na maioria de suas obras, a vida do campo, o que em si não constitui nenhuma ruptura com a tradição de representação do campo para a cidade, um gênero consolidado da pintura de então. Todavia, a relação de Courbet com a vida social, em especial com a campesina, marca a especificidade de seu trabalho e do modo pelo qual ele o realizou, pondo em xeque as convenções herdadas da pintura realista acadêmica, a qual se preocupava obstinadamente com uma técnica quase fotográfica, mas que baseava a escolha do objeto representado em convenções morais burguesas. Sobre a recepção do quadro Depois do jantar em Ornans, de 1848-49, Blake e Frascina comentam:

Para alguns [...] certos tipos de respostas prontas eram efetivamente aquilo para o qual a arte servia – subscrever e consolidar as atitudes e percepções da sociedade respeitável, embora alguma inovação técnica ou estilística pudesse ser bem recebida. Assim, o respeitado crítico conservador Louis Peisse podia dizer, de Courbet e deste quadro, que “ninguém conseguia arrastar a arte para a sarjeta com maior virtuosismo técnico” (citado em Clark, Image of the people, p. 69). Para Courbet, a “sarjeta” era um lugar necessário para que a arte alcançasse qualquer medida de “realismo”; para Peisse, ela assinalava um grande perigo, confirmado por ele dois anos depois: “A nação está em perigo... A pintura [de Courbet] é um motor de revolução”. Vemos aqui aquela que viria a se tornar a queixa padrão dos conservadores sobre a arte de vanguarda. (BLAKE; FRASCINA, 1998, p.73)

A prática artística de Courbet questiona a tradição da representação do campo, que guardava, para o público burguês da cidade, um sentido idílico de pureza natural e moral (comparem-se as meigas pastoras de Bouguerau, mestre do realismo acadêmico, realizadas na 44


década de 80, com as figuras coubertianas molambentas de Os quebradores de pedras, de 1849). A experiência de Courbet, cuja família era de extração campesina, lhe permitiu a percepção das transformações radicais que a modernização levava à vida do campo, cujas consequências se traduziam em uma grave crise econômica que conduziu ao surgimento de uma tendência política esquerdista no segmento campesino.

O final da década de 40 havia sido um período de ininterrupta crise econômica, sobretudo na agricultura. Propriedades rurais de bom tamanho perto das cidades passam por uma racionalização econômica e ficaram ainda maiores. No sul e leste da França, contudo, a densidade populacional estava em níveis altíssimos, resultando em escassez de terra. [...] Aproveitando-se da situação de crise, a burguesia abastada assumiu seu moderno papel de disciplinadora das finanças populares, extorquindo altas taxas de juros dos fazendeiros em um momento em que os impostos também estavam altos, e fazendo muitas expropriações, usando-as muitas vezes em interesse próprio para adquirir as terras executadas. Este papel foi objeto de intensos ressentimentos e de forte resistência por parte dos camponeses endividados. Após 1848, essa resistência organizou-se e politizou-se. (Idem, ibidem, p. 73)

Portanto, a representação da realidade efetiva, “tal como é”, penetra o questionamento estético levado a cabo por Courbet. Realidade cuja “efetividade” é o contraste agudo entre ricos e pobres, a diferença cada vez mais acirrada entre as classes, o papel da burguesia no processo ambíguo de modernização e destruição da vida do campo – temas que adentram sua obra e conferem a ela o significado concreto de seu realismo, como oposição estética e contestação política: “O que Courbet entendeu com clareza foi que uma oposição à política burguesa poderia acarretar, em certas circunstâncias, uma oposição à arte burguesa [...]” (Idem, ibidem, p. 75). O realismo posto em ação por Courbet instila uma conotação política explícita na posição apenas implicitamente contestatória do realismo 18 até então: vai além do realismo formal e transforma a prática estética em prática política. A articulação entre realização estética e crítica política no realismo courbetiano evidencia a dupla face do realismo do século XIX: o desdobramento entre a representação mais apurada da sociedade e um substrato reformista, ou seja, entre a procura de acuidade na representação e a vontade de agir sobre a realidade que se quer representar.

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Não do realismo da arte acadêmica, mas de realistas como Balzac e Stendhal, que, ao conduzir às máximas consequências o realismo formal do século XVIII, sem, no entanto, terem o intuito de transformar a prática artística em questão política propriamente dita, adentraram a representação das grandes problemáticas sociais de sua época – o que não acontece com a arte acadêmica, a qual, pelo contrário, tende a camuflar tais problemáticas.

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A simples mudança para uma descrição da realidade social contemporânea implicava uma lição de compaixão humana, de reformismo social e de crítica, e muitas vezes de rejeição e reação contra a sociedade. Há uma tensão entre descrição e prescrição, verdade e instrução, que não pode ser resolvida logicamente, mas que caracteriza a literatura de que estamos tratando. (WELLEK, [19...], p. 212)

Esse eixo duplo, contraditório, se manifestará ainda mais fortemente, e mesmo conscientemente, nas vertentes realistas do século XX: no realismo socialista e no realismo crít ico, que apresentam como projeto a articulação entre a representação de uma “verdade objetiva”, essência do real, e a finalidade de transformar o real representado. O realismo formal do romance em ascensão e o projeto estético-político do realismo de Courbet mostram como o “realismo” é um conceito que se enraíza nas condições materiais concretas da conjuntura social, as quais constituem a própria “realidade” a que o realista se mantém “fiel”. As próprias técnicas realistas ganham significação concreta quando iluminadas por esse prisma: a tendência a particularizar a existência individual, no realismo formal, e os questionamentos courbetianos direcionados à tradição de representação pictórica do campo à cidade se libertam da noção falsamente homogênea de um intuito de “manter-se fiel à natureza”, de obter uma “cópia” do mundo, ou algo similar, para mostrarem-se elas mesmas como portadoras de um significado histórico concreto. Os modos de representação dos vários realismos devem, assim, ser alicerçados na realidade social à qual se integram. O mesmo se dá com o realismo socialista e o realismo crítico do século XX: oriundos de condições materiais específicas, as quais conferem o significado de suas “formas” a partir de determinadas interpretações da realidade social. E é sobre essas duas vertentes realistas que nos deteremos, a seguir.

2.2 O realismo socialista: um realismo para uma realidade socialista

No capítulo anterior, vimos que Dalcídio Jurandir partilha profundamente do sistema de conceitos propostos pela tradição marxista, que é instrumentalizado por ele para permitir uma leitura coesa da realidade, constituindo uma verdadeira “visão de mundo”. A percepção de uma “realidade socialista” cuja emergência é historicamente anunciada pela atuação do proletariado como força revolucionária desempenha nesse sistema de conceitos um papel central, sendo o eixo em torno do qual os demais elementos se organizam. A este conceito específico de realidade corresponde um conceito estético específico de realismo, o socialista, cunhado especialmente para 46


dar conta da representação artística de uma nova realidade que se ergue pelo trabalho do Partido Comunista. É no centro da discussão em torno do realismo socialista que as considerações de Dalcídio Jurandir sobre o realismo e o romance se darão. Nesse sentido, é importante traçar alguns elementos sócio-históricos da consolidação do conceito, para compreendermos melhor a que elementos da tradição o escritor paraense se refere, aproximando-se e, por vezes, afastando-se deles. Assim, ao tratar do percurso histórico da emergência do realismo socialista, é preciso iniciar não pelo I Congresso de Escritores Soviéticos, de 1934, o marco da criação da estética oficial, mas sim recuar pelo menos dois anos19, quando o Comitê Central do Partido Comunista da União Soviética estabelece a dissolução de todas as associações de escritores e cria a União dos Escritores Soviéticos – continuando aquela política de centralização de atividades diversas, sob o controle do Estado, que observamos no primeiro capítulo deste estudo. O decreto de 1932, alegando o risco da criação de uma arte “elitista” por parte dessas associações, num período em que a construção do socialismo demandaria todas as energias políticas e culturais, informa:

Os limites das atuais organizações para literatura e arte proletárias (VOAPP, RAPP, RATIM,' etc.) têm se tornado estreitos demais e começam a obstruir o desenvolvimento sério da criação artística. Este fator cria uma situação perigosa: estas organizações podem passar de um instrumento para a máxima mobilização dos escritores e artistas soviéticos para a construção socialista a um instrumento que cultiva um distanciamento elitista e a perda de contato com as tarefas políticas do presente e com os importantes grupos de escritores e artistas que simpatizam com a construção socialista20.

O gesto de fechamento das diversas associações literárias e artísticas se baseia na tarefa de “construção socialista” e de canalização das forças para esse objetivo. A percepção de tudo o que esse termo implica política e economicamente para o regime stalinista é o que deve estar em foco para uma compreensão séria do realismo socialista - compreensão que vá além de sua condenação pura e simples como “camisa de força da criação artística”.

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Dênis de Moraes identifica os rudimentos do realismo socialista já em manifestações da RAPP, a Associação Russa de Escritores Proletários, instalada em 1925 (MORAES, 1996, p. 114). 20 “The confines of the existing proletarian literature and art organizations (VOAPP, RAPP, RATIM,' etc.) are becoming too narrow and are hampering the serious development of artistic creation. This factor creates a danger: these organizations might change from being an instrument for the maximum mobilization of Soviet writers and artists for the tasks of Socialist construction to being an instrument for cultivating elitist withdrawal and loss of contact with the political tasks of the present and with the important groups of writers and artists who sympathize with Socialist construction.”

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É evidente, ademais, que esta excepcionalidade política só pôde erguer-se e manter-se, como fenômeno “superestrutural”, expressando determinadas características na organização da economia; ou, na corretíssima síntese de Mandel: “Quanto aos fatos, ensinam que de maneira nenhuma se pode reduzir o ‘fenômeno stalinista’ a fenômenos de superestrutura: terror estatal, ditadura de um homem, polícia toda-poderosa, dogmatismo ideológico, etc. estes fenômenos imbricam-se manifestamente num conjunto de relações sociais e de relações de produção características.” (NETTO, 1979, p. 20)21

A “construção socialista”, a tarefa em nome da qual a literatura soviética a partir de 30 será insistentemente convocada a prestar seus serviços, expressa um conjunto de relações sociais específicas, no qual se integra o sistema de ideias do stalinismo, entre elas, o realismo socialista. Dois elementos se destacam nesse período: os Planos Quinquenais e o a política do “socialismo em um só país”. A partir de 1928, os Planos Quinquenais substituem a NEP 22 e têm o objetivo de conduzir as atividades de desenvolvimento industrial e de coletivização da agricultura, segundo o modelo de planificação e centralização estatal: a partir deles, “Estavam criadas as condições para a planificação centralizada da economia como um todo” (FERNANDES, 1987). No plano político, o projeto do “socialismo em um só país” ganha vulto diante do retraimento do movimento operário mundial, o que acabou por reforçar as ações de consolidação e fortalecimento do regime, levando a um recrudescimento do aparelho administrativo e à abolição da discussão democrática, com o intuito de não permitir dissensões que viessem a enfraquecer a base do aparelho. Tais momentos da organização social se expressam no sistema de ideias stalinista a partir de duas linhas básicas, segundo José Paulo Netto: o “voluntarismo burocrático”, caracterizado pela “[...] suposição – evidentemente não esclarecida nem explicitada e, pois, para seus agentes, a certeza – de que o esforço e a diligência da classe operária colimam os fins propostos pela direção partidária” (NETTO, 1979, p. 31), e o “praticismo imediatista”, a “implementação de um conjunto de concepções rasteiramente apologéticas” (Idem, ibidem, p. 33). O voluntarismo se dá, assim, na

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É preciso observar que a leitura de Netto aproxima-se da perspectiva que compreende uma divisão entre “superestrutura” e “infraestrutura”, explicando a primeira pela segunda. Não sendo este o local para analisar tal questão, cuja discussão é bastante ampla dentro do próprio pensamento marxista e fora dele, consideramos problemática a perspectiva na qual Netto se baseia, e enfatizar que aproveitamos, para este trabalho, as duas linhas básicas do sistema de ideias stalinistas que o autor identifica. Estas sim, úteis para uma compreensão ampla das relações sociais globais do período aqui abordado. 22 NEP (Nova Política Econômica) foi o conjunto de ações tomadas por Lênin na década de 20 para o desenvolvimento da economia soviética, que se encontrava em grave crise após o período de conflitos da Guerra Civil e da Primeira Guerra Mundial. Caracterizou-se, sobretudo, pelas concessões a práticas e modelos oriundos do capitalismo, como a propriedade privada. O lema “Um passo atrás para dar dois à frente” refere-se a esse momento.

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conclamação de participação das massas trabalhadoras nos esforços de construção da sociedade comunista, afirmando que o fim proposto pela administração estatal encontra-se com a vontade dos trabalhadores, por conta de o Partido ser expressão dessa mesma vontade, ou seja, as diretrizes colocadas pelo Partido não são algo exterior à própria classe trabalhadora, mas a plena consciência dessa classe, que trabalha inclusive no benefício de todas as classes ao caminhar para a sociedade comunista sem quaisquer classes. O praticismo enquadra o voluntarismo, fundamentando-o em uma base apologética e impulsionando-o com o sentido de construção positiva. São esses dois eixos que permitirão compreender o funcionamento do realismo socialista dentro das relações sociais amplas do stalinismo e perceber sua legitimidade enquanto manifestação cultural que se origina, logicamente, de uma determinada configuração social. Definidas assim as linhas básicas do sistema de ideias stalinista, voltemo-nos para uma análise do momento histórico de surgimento do realismo socialista, compreendendo-o sempre a partir das relações sociais amplas que se constituíram no período. O ano de 1934 marca o nascimento oficial do realismo socialista, durante o I Congresso dos Escritores Soviéticos, evento da União dos Escritores Soviéticos, do qual participaram Máximo Gorki, Andrei Zdhanov (que ainda não desempenhava o papel de censor-mor da política cultural de Stálin), Karl Radek, entre outros. A União dos Escritores, criada a partir da dissolução de todos os outros grupos e associações artísticas e literárias, já pode ser compreendida a partir dos movimentos de centralização e planificação que caracterizam o período, pois “Com a criação da União, punha-se fim à briga entre os vários grupos literários que disputavam a hegemonia nas letras soviéticas.” (ANDRADE, 2010, p. 159). Eram destruídas, com esse gesto, as possibilidades de dissensão dentro da esfera cultural, fortalecendo o aparelho central. Nesse sentido, procuremos averiguar a partir de agora como os participantes do Congresso elaboraram, na esfera literária, a tarefa apresentada pela política e os meios de cumprir com ela. O discurso principal do evento foi o de Gorki. Elaborando uma consideração acerca da fonte da criação artística e literária, o escritor a identifica na representação popular dos mecanismos de trabalho, a qual origina os mitos. A cultura burguesa rompe com essa ligação umbilical entre criação artística e criatividade popular, engendrando uma criação individualista, especulativa, metafísica, enfim, nos termos de Gorki, falsa. A nova sociedade socialista, no entanto, possibilita ao escritor entrar em contato novamente com as forças criativas do povo, pois são os heróis do povo, os proletários e toda a massa de trabalhadores, que estão na dianteira da criação da nova sociedade.

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O realismo socialista é a representação dessa força coletiva que cria e constrói. O heroi positivo é o protagonista de uma nova era. Olhemos mais detidamente os argumentos de Gorki. Para o autor de A Mãe: “Por detrás de cada voo da fantasia antiga é fácil descobrir seu motivo oculto, e este motivo é sempre o esforço dos homens em esclarecer a si mesmos seu trabalho. É óbvio que esse esforço se origina entre os homens que realizam o trabalho físico 23.” (GORKI, 2010). A criação poética floresce da experiência concreta do trabalho, junto daquele que trabalha. Há uma unidade originária, e o trabalhador é o próprio poeta de seus mitos. O processo de divisão do trabalho e a cisão entre trabalho intelectual e trabalho material, todavia, destroem essa unidade, sendo o início de uma dinâmica de especialização e de divisão em classes que conduzem, por fim, a uma cultura abstratizante e divorciada dos processos vitais: O progresso social e cultural se dá normalmente apenas quando a mão ensina à cabeça, após o que a cabeça, agora mais desenvolvida, ensina à mão, e as mãos, novamente, e agora melhor ainda, promovem o desenvolvimento da mente. Este processo normal de crescimento cultural nos homens que trabalham foi interrompido, nos tempos antigos, por causas que conheceis. A cabeça apartou-se da mão; e o pensamento, do coração. Sonhadores especulativos apareceram entre a massa de homens ativos 24. (idem, ibidem)

A cultura burguesa é entendida como produto deste divórcio que, para Gorki, perverte a cultura e a torna impotente. A defesa da autonomia da arte é, para o escritor russo, uma manifestação da deformação cultural perpetrada pelos “sonhadores especulativos”, já que, na unidade primeira, a criação artística e a sociedade são indissociáveis, sendo o artista não um artista, mas um “homem ativo”, participante da vida social. “A sociedade burguesa, como podemos ver, perdeu completamente a capacidade criativa em arte25.” (Idem, ibidem). Esta avaliação do desenvolvimento cultural permite a Gorki decretar o rompimento com a cultura burguesa – a qual nada teria de culturalmente válido para legar à sociedade socialista que nasce. Este rompimento é um dado característico dessa época e difere muito do pensamento de Lênin, para o qual a questão da herança é fundamental: Lênin defendera a impossibilidade de uma 23

“Beneath each flight of ancient fancy it is easy to discover the hidden motive, and this motive is always the striving of men to lighten their labour. It is obvious that this striving originated among men who had to perform physical labour.” 24 “Social and cultural progress develops normally only when hands teach the head, after which the head, now grown more wise, teaches the hands, and the wise hands once again, this time even more effectually, promote the grown of the mind. This normal process of cultural growth in men of labour was in ancient times interrupted by causes of which you are aware. The head became severed from the hands, and thought from the heart. Speculative dreamers made their appearance among the mass of active men.” 25 “Bourgeois society, as we see, has completely lost the capacity for invention in art.”

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cultura originariamente proletária, argumentando que a cultura se desenvolve pela avaliação crítica dos feitos anteriores – conservando-os, reelaborando-os ou descartando-os, mas sempre a partir do confronto crítico com a realidade prática. Enfim, a noção de uma ruptura radical com a cultura burguesa é de suma importância para a compreensão do realismo socialista: na verdade, é ela que permitirá a ligação do determinante “socialista” ao núcleo “realismo”, afirmando a especificidade de um realismo que deve se referir a uma realidade específica, legitimando o estilo como aquele que é necessário, e nenhum outro, para expressar a realidade soviética. Stálin rompe com a NEP leniniana, que lidava com a herança do capitalismo, em nome da construção de uma economia de base totalmente comunista; Gorki rompe com a “cultura burguesa”, em nome de uma arte de base totalmente soviética. A análise de Gorki não se detém em sua constatação da decrepitude da “cultura burguesa”. Ela constata a emergência da nova realidade soviética e a função da criação artística junto a ela:

Outrora, em tempos antigos, as composições artísticas orais do trabalhador representaram a organização de sua experiência, o dar corpo a ideias por meio de imagens e o estímulo da energia da coletividade. Nós devemos tentar entender isto. O objetivo que nosso país se apresenta hoje é o de garantir uma educação cultural igualitária de todas as unidades, a aquisição igualitária de todas as vitórias e conquistas do trabalho, tendo como intuito converter o trabalho dos homens na arte de controlar as forças da natureza26. (Idem, ibidem).

Do mesmo modo como a criação antiga expressava a vida coletiva dos homens, a literatura soviética deveria apresentar e representar aos homens o desenvolvimento e as conquistas da sociedade soviética, desempenhando aí um papel de educação cultural. A função pedagógica apenas insinua-se aqui, mas será uma das tônicas do realismo socialista. Para Gorki, é imprescindível que a criação artística retorne a seu núcleo popular, de onde é

originária e onde pode encontrar os reais movimentos da vida social, rompendo com a dinâmica de divisão do trabalho e especialização, que originou uma cultura de classe na qual se mistificam as relações sociais para legitimar o predomínio de uma classe sobre a outra: “Quando a tarefa de interpretar o mundo se tornou caso de sacerdotes, estes puderam se arrogar tal direito construindo uma

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“Once, in ancient times, the unwritten artistic compositions of the working people represented the sole of their experience, the embodiment of ideas in imagery and the spur to the working energy of the collective body. We should try to understand this. The object our country has set itself is to ensure the equal cultural education of all units, the equal acquaintance of all its members with the victories and achievements of labour, aspiring to convert the work of men into the art of controlling the forces of nature.”

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explicação metafísica dos fenômenos e da resistência oferecida pelas forças elementares da natureza [...].27”

(Idem, ibidem). Somente em uma ligação profunda com a vida popular é que o escritor pode adentrar as reais transformações na vida social - as transformações revolucionárias conduzidas pelo Partido (“Estamos vivendo em uma época de profundas mudanças nos velhos modos de viver. 28” [Idem, ibidem]) – e expressá-las com propriedade na obra de arte. Essas transformações caracterizam a realidade e o homem soviéticos, os seus feitos, a sua criatividade, os quais, por conseguinte, devem ser os objetos da representação artística, segundo a visada do realismo socialista: A vida, tal como afirmada pelo realismo socialista, é feitos, criatividade, cujo objetivo é o desenvolvimento ininterrupto das valiosíssimas faculdades humanas, com uma visão da vitória do homem sobre as forças da natureza, pelo bem de sua saúde e longevidade, pela suprema alegria de viver em um mundo que, em conformidade com o constante crescimento de suas exigências e necessidades, ele quer transformar em uma linda moradia para a raça humana, unida em uma única família 29. (Idem, ibidem).

Sendo o heroísmo da vida popular o núcleo criativo da nova literatura e a tarefa desta a de expressar e clarificar para a consciência trabalhadora suas próprias atividades criativas (manifestadas pelo trabalho), Gorki aponta, utilizando-se do termo de Stálin, a responsabilidade do escritor como “engenheiro de almas” – responsável pelo desenvolvimento e educação das massas, explicitando a elas a realidade criativa e progressista da qual elas mesmas participam: O estado proletário deve educar centenas de “artesãos da cultura” e “engenheiros da alma” de primeira linha. Isso é necessário para restabelecer a toda a massa trabalhadora o direito de desenvolver sua inteligência, seus talentos e faculdades – um direito de que tem sido tolhida em todas as outras partes do mundo. Esse objetivo, que é totalmente realizável, impõe a nós, escritores, a necessária responsabilidade por nosso trabalho e nosso comportamento social. Ele nos coloca não apenas na posição tradicional da literatura realista, a de “juízes do mundo e dos homens”, “críticos da vida”, mas nos dá o direito de participar diretamente na construção de uma nova vida, no processo de “transformar o mundo”30. (Idem, ibidem) 27

“When the task of interpreting the world became the affair of priests, the latter could arrogate it to themselves only by giving a metaphysical explanation of the phenomena and of the resistance offered by the elemental forces of nature [...]” 28 “We are living in an epoch of deeep-rooted changes in the old ways of life.” 29 “Life, as asserted by socialist realism, is deeds, creativeness, the aim of which is the uninterrupted development of the priceless individual faculties of man, with a view to his victory over the forces of nature, for the sake of his health and longevity, for the supreme joy of living on an earth which, in conformity with the steady growth of his requirements, he wishes to mould throughout into a beautiful dwelling place for mankind, united into a single family.” 30 “The proletarian state must educate thousands of first class ‘craftsmen of culture’, ‘engineers of soul’. This is necessary in order to restore to the whole mass of working people the right to develop their intelligence, talents and

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Aqui já se insinua a relação ambígua entre expressar um movimento da realidade e estimular o surgimento de uma nova realidade: o artista não deve ser apenas testemunha, ainda que crítica, dos fatos, mas deve, isto sim, tomar parte ativa na construção daquela realidade que ele, com sua arte, capta e transforma em obra de arte. Essa posição, como realçaremos mais adiante, será reforçada e tornada explicitamente ideológica por Andrei Zdhanov em sua compreensão do realismo socialista. Enfim, no apelo gorkiano de retorno ao popular como matriz da criação artística, como núcleo em que se dão os movimentos reais do desenvolvimento social (e que, por isso, pode expressá-los de forma correta) e das transformações revolucionárias que constroem a nova realidade socialista da União Soviética, o realismo socialista apresenta o “voluntarismo burocrático” em sua contrapartida cultural: a política conduzida pelo Partido Comunista é expressão dos movimentos espontâneos e historicamente orientados que perpassam a atividade criadora das massas trabalhadoras. Não há qualquer descontinuidade entre Partido e Povo. A argumentação de Gorki sobre arte e cultura direciona-se, em suas conclusões, para a linha do “voluntarismo burocrático” no sentido de que o realismo socialista representa as forças em desenvolvimento na sociedade soviética, forças alicerçadas nos movimentos profundos da vida popular que são os movimentos manifestados pelo Partido – movimento popular e movimento partidário, aí, não se diferenciam. O herói positivo é a própria positividade da massa e do Partido, que criam, em conjunto e como uma única força histórica, a nova realidade socialista. O discurso de Andrei Zdhanov, por sua vez, se baseia mais fortemente no “praticismo imediatista” e em sua dimensão apologética, sendo escasso de argumentações propriamente ditas, mas abundante em afirmações categóricas. Nele fica evidente a tentativa de atrelar o realismo socialista aos feitos políticos e econômicos do regime de Stálin. Para Zdhanov, as bases do que ele chama de “reconstrução socialista” estão completamente instaladas, sendo as bases da própria sociedade socialista: Camaradas, vosso congresso é convocado em uma época na qual foram superadas as principais dificuldades com as quais nos confrontávamos no trabalho de construção socialista; uma época na qual nosso país terminou de lançar as bases de

faculties – a right of which they have been deprived everywhere else in the world. This aim, which is a fully practicable one, imposes on us writers the need of strict reponsability for our work and our social behavior. This places us not only in the position, traditional to realist literature, of ‘judges of the world and men’, ‘critics of life’, but gives us the right to participate directly in the construction of a new life, in the process of ‘changing world’.”

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uma economia socialista – conquistas que vão lado a lado coma vitória da política de industrialização e com a construção de fazendas soviéticas e coletivas. Vosso congresso é convocado em uma época na qual, sob a liderança do Partido Comunista, sob o comando genial de nosso líder e mestre, Camarada Stálin, o sistema socialista triunfou em nosso país, finalmente e irrevogavelmente31. (ZDHANOV, 2011)

Ao lado das conquistas dos planos quinquenais, Zdhanov louva também o fortalecimento da União Soviética no quadro internacional – apologia direta da política de “socialismo em um só país”, a qual, vitoriosa, apresenta a U.R.S.S. como exemplo de perseverança na luta proletária, digna de ser seguida pelo mundo: Estreitamente ligado às vitórias do socialismo em nosso país está o fortalecimento da posição da União Soviética, em casa e fora dela, o crescimento de seu peso e autoridade em questões internacionais, sua crescente importância como linha de frente do proletariado internacional, como um poderoso baluarte da vindoura revolução proletária mundial32. (Idem, ibidem).

A literatura soviética liga-se às vitórias conquistadas na tarefa de construção socialista. Sendo estas conquistas mostras da vitalidade revolucionária da sociedade soviética, de sua vocação para estar à vanguarda de transformações sociais que mais cedo ou mais tarde devem se espalhar pelo mundo por meio da ação do proletariado (e exemplo da própria União Soviética), a literatura ligada a essa realidade só pode ser a mais avançada, a mais rica de ideias: “Somente a literatura soviética, que é carne e sangue da construção socialista, poderia se tornar, como de fato se tornou, esta literatura tão rica em ideias, tão avançada e tão revolucionária 33.” (Idem, ibidem). A literatura soviética deve ver, então, seu herói naquele elemento que realiza o trabalho de construção socialista. Zdhanov encontra-se com Gorki, ao afirmar que o trabalhador que constrói a nova sociedade é o protagonista de um novo tempo heroico, o verdadeiro heroi da literatura soviética: o camponês, o proletário, o membro do Partido, o próprio Partido.

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“Comrades, your congress is convening at a time when the main difficulties confronting us in work of socialist construction have already been overcome, when our country has finished laying the foundations of a socialist economy – achievements which go hand in hand with the victory of the policy of industrialization and the building of soviet and collective farms. Your congress is convening at a time when under the leadership of the Communist Party under the guiding genius of our great leader and teacher, Comrade Stalin, the socialist system has finally and irrevocably triumphed in our country.” 32 “Closely linked up with the victories of socialism in our country is the strengthening of the Soviet Union’s position at home and abroad, the growth of his weight and authority in international affairs, its increased significance as the shock brigade of the world proletariat, as a mighty bulwark of the overcoming world proletarian revolution.” 33 “Only soviet literature, which is one flesh and blood with socialist construction, could become, and has indeed become, such a literature – so rich in ideas, so advanced and so revolutionary.”

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Em nosso país, os heróis das obras literárias são os ativos construtores de uma nova vida – trabalhadores e trabalhadoras, os homens e mulheres das fazendas coletivas, membros do Partido, os administradores dos negócios, engenheiros, membros da Liga dos Jovens Comunistas, os pioneiros. Tais são os principais tipos e heróis de nossa literatura soviética. Nossa literatura está impregnada com o entusiasmo e o espírito de feitos heróicos. [...] Nossa literatura é forte em virtude do fato de que serve a uma nova causa – a causa da construção socialista34. (Idem, ibidem).

Zdhanov, até aqui, se apoia basicamente nas mesmas ideias já apresentadas por Gorki: a nova realidade que se constrói na União Soviética é caracterizada pelo heroísmo de seu protagonista, o homem concreto, trabalhador, permitindo aos artistas soviéticos um contato com o núcleo criador de uma arte verdadeiramente revolucionária. No entanto, o que torna o discurso de Zdhanov interessante é o reforço dessas mesmas ideias, o que o leva de uma defesa da função cognoscitiva da literatura para sua instrumentalização ideológica explícita. Mais acima, utilizamos a distinção de Sánchez Vásquez entre uma função ideológica e uma função cognoscitiva da literatura, para mostrar que a concepção de “reflexo” que Lênin usa para ler a obra de Tolstoi aproxima-se da função cognoscitiva. A literatura, sob a forma do realismo socialista, nas formulações de Zdhanov, volta-se abertamente para uma função ideológica, ou seja, para a afirmação de interesses específicos de classe – mascarados, todavia, por uma intenção cognoscitiva que afirma depreender a essência da vida em seus próprios movimentos de desenvolvimento revolucionário: “[...] conhecer a vida de modo a representa-la verdadeiramente nas obras de arte [...] em seu desenvolvimento revolucionário 35.” (Idem, ibidem.). O que torna possível a representação do desenvolvimento revolucionário da realidade é o “romantismo revolucionário” presente na nova literatura soviética:

Nossa literatura, que mantém os dois pés firmemente plantados em uma base materialista, não deve ser hostil ao romantismo, mas este deve ser um romantismo de tipo novo, um romantismo revolucionário. [...] seus esforços consistem na combinação entre um trabalho prático rigoroso e sóbrio, um espírito supremo de feitos heróicos e magníficas perspectivas futuras. Nosso Partido tem sido sempre forte em virtude do fato de que uniu e continua a unir um espírito completamente prático e objetivo com uma visão ampla, com um constante mirar em frente, com o esforço na construção da sociedade comunista. A literatura soviética deve estar apta a retratar os heróis; deve estar apta a vislumbrar nosso amanhã. Este não será

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“In our country the main heroes of literature are the active builders of a new life-working men and women, man and women collective farmers, Party members, business managers, engineers, members of the Young Communist League, Pioneers. Such are the chief types and the chief heroes of our soviet literature. Our literature is impregnated with enthusiasm and the spirit of heroic deeds. [...] Our soviet literature is strong by virtue of the fact that it is serving a new cause – the cause of socialist construction.” 35 “[…] knowing life so as to be able to depict it truthfully in works of art, [...] in its revolutionary development.”

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um sonho utópico, pois nosso amanhã já está sendo preparado desde hoje por meio do trabalho consciente e planejado36. (Idem, ibidem)

O ponto crucial aqui gira em torno do “trabalho consciente e planejado”. Zdhanov mescla na representação literária, a partir da noção de romantismo revolucionário – que é subordinado ao realismo socialista como elemento que o integra, não sendo os dois, portanto, sinônimos – a base materialista com a perspectiva do futuro. Mas essa perspectiva do futuro não é alcançada pela representação dos movimentos dialéticos da própria realidade em sua complexidade (como o entenderá Lukács), mas pela representação das ações do trabalho consciente e planejado do Partido. Zdhanov enxerta a política partidária no cerne da realidade a ser captada pelo artista. O artista, em sua obra, ilustra, portanto, o trabalho do Partido. Aliando a este substrato teórico o reconhecimento da função educacional, tradicional na discussão sobre cultura e arte do regime soviético desde Lênin, é possível ver como o realismo socialista ganha seus contornos de doutrinação e legitimação ideológica segundo as diretrizes do Partido. Zdhanov, ao fim de seu discurso, clama aos escritores: “Auxiliar, ativamente, na remodelação da mentalidade do povo no espírito do socialismo 37.” (Idem, ibidem). Assim, já desde a década de 30 se entreveem os rudimentos da política cultural zdhanovista, o “[...] desdobramento do realismo socialista no pós-guerra em práticas como a censura restritiva e prescritiva às obras de arte e literárias, o silenciamento de alguns escritores, o obscurecimento ou a morte de outros.” (OLIVEIRA, 1998, p. 32). Com esse cunho de aberta apologia ideológica do trabalho partidário, o realismo socialista intensificou aquela tensa ambiguidade entre “descrição e prescrição, verdade e instrução”, que René Wellek já havia observado com relação ao realismo do século XIX. O realismo socialista mostra-se como uma espécie de idealismo, que tem na utopia da realidade socialista seu modelo e que confunde a representação da realidade com a projeção de uma realidade desejada, ou melhor, idealizada conforme os interesses da administração stalinista. Como nota Peter Sager: “É precisamente esse ‘princípio romântico-revolucionário’ do realismo socialista o que apresentou, por

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“Our literature, which stands with both feet firmly planted on a materialist basis, cannot be hostile to romanticism, but it must be a romanticism of a new type, revolutionary romanticism. [...] its struggle consist in a combination of the most stern and practical work with a supreme spirit of heroic deeds and magnificent future prospects. Our Party has always been strong by virtue of the fact that it has united and continues to unite a thoroughly business-like and practical spirit with broad vision, with a constant urge forward, with a struggle for the building of communist society. Soviet literature should be able to portray our heroes; it should be able to glimpse our tomorrow. This will be no utopian dream, for our tomorrow is already being prepared for today by dint of conscious planed work.” 37 “Actively help to remold the mentality of people in the spirit of socialism.”

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muito tempo, a realidade como projeção de seus ideólogos e essa projeção como realidade 38.” (SAGER, 1986, p. 186). O realismo socialista oscilou entre dois campos: uma proposta estética de apreensão de uma realidade que vai se configurando com características próprias e a propaganda política de legitimação de ações administrativas. Enquanto proposta estética, acompanhou o desenvolvimento da prática política bolchevique e da administração stalinista; enquanto propaganda política, quis transformar as ações e diretrizes do Partido em esquema estético, matéria-prima da prática artística. Contra essa última tendência, que se acentuaria especialmente no pós-guerra com o zdhanovismo, exercendo forte influência nos anos 50, um intenso debate se deu na tradição marxista, discutindo-se o papel da arte na sociedade, na história e no desenvolvimento do homem. Walter Benjamin, Bertolt Brecht, Ernst Bloch e Ernst Fischer são alguns dos nomes que protagonizaram tal debate. Mas nos concentraremos, a seguir, no pensamento de György Lukács (1885 – 1971), o qual construiu uma proposta alternativa ao realismo socialista de dentro do próprio Partido, defendendo o realismo figurativo e rejeitando obstinadamente as técnicas vanguardistas da arte moderna, travando polêmicas tanto com os nomes citados acima quanto com os quadros do regime stalinista. Veremos, depois, como Dalcídio Jurandir atinge proposições próximas às do pensador húngaro, partindo, todavia, do elogio do realismo socialista.

2.2. György Lukács: a defesa do realismo crítico

Como demonstra Michael Löwy (1979), o percurso intelectual de Lukács se inicia na atmosfera geral da intelectualidade do início do século XX, a de mal-estar e oposição para com a cultura industrial capitalista que se expandia pelo globo. O jovem participou do círculo de intelectuais organizados ao redor da figura de Max Weber, em Heidelberg: homens que, como ele, pensavam criticamente as transformações do mundo moderno. De 1909 a 1918, o pensamento de Lukács baseia-se, fundamentalmente, em uma visão trágica do mundo, eivada de uma negatividade absoluta advinda da “revolta ética contra a ordem feudal e burguesa da Hungria, e a falta de força revolucionária real nas cenas político-sociais” (LÖWY, 1979, p. 95). Ainda nessa época, o contato com Ernst Bloch, que o introduziu no círculo de Heidelberg, desenvolve no jovem Lukács um “utopismo ético-messiânico”: “A mulher de Max Weber, em suas Memórias, [...] descreve o jovem Lukács como ‘agitado por esperanças escatológicas na vinda de um novo Messias’ e considerando 38

“Es precisamente ese ‘principio romántico-revolucionario’ del realismo socialista el que presentó durante mucho tiempo la realidad como proyección de sus ideólogos y a esta proyección como realidad.”

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‘uma ordem social fundada na fraternidade como o pré-requisito da Salvação’.” (Idem, ibidem, p. 98). No entanto, com a experiência da I Guerra (1914-1918), inicia-se em Lukács o interesse pela política. O pensador encontra-se então na iminência da transição que marcará profundamente sua biografia intelectual: Foi sem dúvida a grande crise de 1914, a guerra com seu cortejo de crimes e misérias, que provocaram esta “politização” de Lukács. Suas cartas a Paul Ernst de 1915 [...] testemunham o crescente interesse que passa a ter por questões políticas [...]. Por outro lado, por causa da guerra, começa a se afastar politicamente do círculo de Heidelberg, cujas primeiras cabeças (Max Weber, etc.) sustêm o imperialismo alemão. Georg Simmel, numa carta a Marianne Weber de 14 de Agosto de 1914, queixa-se do antimilitarismo de Lukács, o que atribui à sua “falta de experiência”... (Idem, ibidem, p. 118)

Contudo, é apenas em 1918 que Lukács superará sua “ética de esquerda utópico-idealista”, em um “[...] ‘salto qualitativo’, político-moral-filosófico” (Idem, ibidem, p. 151). É claro que a transição de Lukács não se deu tão diretamente, sem que questões filosóficas e teóricas do jovem pensador chegassem a termo com o entendimento do proletariado como força revolucionária. Mas é esse entendimento que sela sua “conversão”, mostrando a possibilidade de se resolverem, historicamente, o que o filósofo via até então como problemáticas espirituais-metafísicas. Em 1918-1919, Lukács encontra no proletariado a força capaz de resolver a antinomia pela destruição da realidade capitalista,a abolição da reificação, a realização de valores autênticos e a fundação de uma nova cultura. O messianismo ardente do jovem Lukács em 1919 encontra aqui seu fundamento teórico: o proletariado é o portador da nova harmonia, da totalidade reencontrada [...]. A nostalgia trágica de uma idade de ouro mítica do passado transmuta-se em esperança apaixonada no futuro: o proletariado, classe messiânica da História, cumprirá pela revolução a redenção do mundo. (Idem, ibidem, p. 156)

Se nos anos juvenis da visão trágica Lukács produziu As Almas e as Formas (1911) e A Teoria do Romance (1916), dois de seus principais trabalhos acerca de arte, a partir dos anos 30 a produção lukacsiana sobre arte e literatura, desta vez sob o prisma da Revolução e do pensamento marxista, será intensa, concentrando-se em temas que serão recorrentes nos próximos quase quarenta anos de atividade: a relação entre arte e sociedade, o papel histórico das vanguardas, a herança intelectual do movimento proletário e a questão do realismo. Para nosso objetivo neste trabalho, continuaremos questionando a relação entre o realismo (desta vez o realismo crítico) e o conceito de realidade subjacente a ele a partir de alguns ensaios de Lukács, principalmente do texto

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Introdução ao escritos estéticos de Marx e Engels, de 1945, no qual encontramos uma súmula de suas posições estéticas básicas. Primeiramente, é preciso atentar para certas características da realidade capitalista, contra as quais Lukács ergue sua concepção de arte. Segundo ele, o capitalismo instaurou uma deformação da realidade, responsável pela desumanização das relações sociais e, por conseguinte, da própria vida do homem. [...] Marx demonstra que, no capitalismo, todas essas categorias [as do ser econômico] aparecem necessariamente numa forma reificada; e, por causa dessa forma reificada, ocultam a sua verdadeira essência, ou seja, a de relação entre os homens. Nessa inversão das categorias fundamentais do ser humano reside a fetichização inevitável que ocorre na sociedade capitalista. Na consciência humana, o mundo aparece completamente diverso daquilo que na realidade é: aparece deformado em sua própria estrutura, separado de suas efetivas conexões. (LUKÁCS, 2009, p. 96)

Reificação e fetichização caracterizam a percepção deformada da realidade a que o capitalismo conduz, aprofundando os efeitos alienadores da divisão do trabalho. A principal crítica de Lukács às vanguardas e sua defesa da autonomia estética está diretamente ligada a essa questão. Para o filósofo, a vanguarda é incapaz de superar a percepção fetichizada, superficial, dos fenômenos, fetichizando, por sua vez, sua percepção do homem e da arte – o primeiro como subjetividade absoluta, selvagem, a segunda como um campo especializado, autônomo, ambos alienados da complexa rede de relações e contradições da sociedade. A ideologia decadente do capitalismo penetra e anima a literatura moderna, decadente. No ensaio Marx e o problema da decadência ideológica, de 1938, dedicado a uma análise de como a decadência ideológica, a ideologia fetichizada do capitalismo, se insinua em diversas formas intelectuais (a sociologia de Max Weber, as tendências irracionalistas, a arte autônoma), Lukács diz: A divisão capitalista do trabalho, portanto, não se limita apenas a submeter a si todos os campos da atividade material e espiritual, mas se insinua profundamente na alma de cada um, provocando nela profundas deformações, que se revelam posteriormente, sob variadas formas, nas diversas manifestações ideológicas. A covarde submissão a estes efeitos da divisão do trabalho, a passiva aceitação destas deformações psíquicas e morais, que são mesmo agravadas e embelezadas pelos pensadores e escritores decadentes, constituem um dos traços importantes e essenciais do período da decadência. (LUKÁCS, 2010, p. 62-63)

A visão de mundo do escritor da decadência “consiste, cada vez com maior intensidade, numa falsificação – consciente ou não – da realidade e de suas relações.” (Idem, ibidem, p. 77). A problemática de uma percepção deformada da realidade, em arte, não diz respeito apenas ao 59


vanguardismo, mas também às vertentes que se querem “objetivistas”, as quais levam a fetichização aos dados e aos objetos, desconectando-os do conjunto de relações nos quais originalmente se integram. O naturalismo de Zola, a literatura de tendência (ou de tese), mesmo a que se rotula “socialista”, são manifestações dessa outra forma de fetichização, em que “A verdadeira figuração do homem é substituída pelo acúmulo quantitativo de detalhes superficiais.” (Idem, ibidem, p. 88). Enfim, vanguardismo e naturalismo acabam por se igualarem na aceitação espontânea da superficialidade dos fenômenos e da dinâmica alienante da divisão capitalista do trabalho: “Quer se trate apenas de forças fetichizadas da vida exterior, ou quer se trate exclusivamente da alma, em ambos os casos os conflitos da verdadeira vida humana são excluídos da obra literária”. (Idem, ibidem, p. 89) Sob essa superficialidade ilusória, fragmentada, se encontra, todavia, a verdadeira vida humana. No pensamento de Lukács, a noção de “realidade” não pode ser apreendida desvinculada da noção de “totalidade”. Voltemos ao texto de 1945. Apoiando-se nos conceitos de dialética e de materialismo histórico, Lukács recusa-se a conceber uma relação unidirecional entre “base” e “superestrutura”, entre “causas” e “efeitos”: O materialismo vulgar parte para a conclusão, mecânica e errônea, distorcida e aberrante, de que entre base e superestrutura só existe um mero nexo causal, no qual o primeiro termo figura apenas como causa e o segundo aparece unicamente como efeito. Para o marxismo vulgar, a superestrutura é uma consequência mecânica [...], o método dialético não admite semelhante relação. A dialética nega que possam existir, em qualquer parte do real, relações de causa e efeito puramente unívocas [...], o materialismo histórico acentua com particular vigor o fato de que, num processo tão multiforme e estratificado como o é a evolução da sociedade, o processo total do desenvolvimento histórico-social só se concretiza em qualquer dos seus momentos como uma intricada trama de interações. (LUKÁCS, 2009, p. 90)

Esta concepção lukacsiana da vida social como uma totalidade complexa de contradições e interações, na qual não se podem atrelar tão univocamente as ideologias às bases econômicas, polemiza diretamente com as afirmações da política cultural oficial do regime soviético. Vimos anteriormente como, em especial na fala de Zdhanov, o realismo socialista nasce na tentativa de atrelar a criação literária aos feitos políticos e econômicos da administração stalinista, ligando a “superestrutura” diretamente à “base”, e acabando por transformar a primeira em afirmação da segunda. Lukács contradiz tal “atrelamento” de modo enfático: “Quem quer que veja nas ideologias o produto mecânico e passivo do processo econômico que lhes serve de base nada compreenderá da essência e do desenvolvimento delas, e não estará representando o marxismo, mas uma caricatura

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do marxismo.” (Idem, ibidem). Fazer da criação literária plataforma de propaganda política, instrumento esquemático de manobras burocratas, é rebaixar a literatura ao nível da decadência, mantendo-a na superficialidade fetichista própria do naturalismo e do vanguardismo39. Assim, o conceito de realidade em Lukács pode ser visto em dois momentos: o primeiro nos apresenta a superfície imediata da vida sob o capitalismo, caracterizada pela reificação das relações sociais e pela fetichização dos elementos constituintes dessa relação, ambas sendo efeitos perniciosos do aprofundamento da divisão do trabalho no mundo capitalista, dinâmica que leva à alienação sob o rótulo de “autonomia” e “especialização”; o segundo adentra essa superficialidade e revela as relações reais que lhe estão por detrás, a verdadeira trama complexa de interações, mediações e contradições que constitui a vida social (e, portanto, a própria essência) do homem. A representação literária deve ter em vista os dois momentos, rompendo com a superficialidade e manifestando o essencial:

Torna-se necessário um peculiar trabalho mental para que o homem do capitalismo penetre nesta fetichização e descubra, por trás das categorias reificadas (mercadoria, dinheiro, preço, etc.) que determinam a vida cotidiana dos homens, a sua verdadeira essência, isto é, as relações sociais entre os homens. (Idem, ibidem, p. 96)

A prática artística adquire assim uma forte conotação ética no sentido de libertação do humano, aprisionado nas deformações capitalistas. O princípio de humanitas é defendido neste texto como essencial a toda arte, e diz não apenas do estudo da “verdadeira essência da [...] substância humana”, mas também da defesa da “[...] integridade do homem contra todas as tendências que a atacam, a envilecem e a adulteram.” (Idem, ibidem, p. 96-97). A discussão acerca do modo de representar a realidade faz vir à tona outro momento de conflito entre as concepções de Lukács e as proposições que fundamentaram a estética do realismo socialista. Lukács afirma que a eficácia da representação (como superação do superficial e manifestação do essencial) é característica de toda “grande literatura”, de toda “grande arte” e de todo “grande artista”, e não algo exclusivo da arte proletária, da arte socialista. No discurso de 39

O texto Tribuno do povo ou burocrata?, de 1940, é um dos escritos em que Lukács critica de modo mais ousado a política cultural stalinista e sua tendência em transformar a obra literária em propaganda. A partir do elogio da capacidade de autocrítica do regime soviético, Lukács adverte da permanência do burocratismo na vida social da U.R.S.S. (afirmando que se trata de “resquício” da cultura capitalista, o qual precisa ser extirpado da sociedade socialista). Sobre a literatura soviética, ele afirma que padece ainda de formas (residuais) de burocratismo: “[...] os artistas que ainda não superaram completamente, em seu íntimo, os resíduos da decadência, encontram novas formas de antirrealismo. Uma de suas formas é o ‘otimismo’ formal, vazio e burocrático, representado por obras singulares que, à primeira vista, parecem socialistas, mas que são realmente áridas, privadas de idéias, ineficazes e inúteis, tanto do ponto de vista estético quanto do ponto de vista propagandístico.” (LUKÁCS, 2010, p. 143)

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Gorki e de Zdhanov pudemos observar como a defesa da ruptura com toda arte burguesa é defendida, afirmando-se que a cultura burguesa, decadente, já não teria absolutamente nada de valor a fornecer à nova literatura socialista. A oposição à ideia de uma ruptura radical será constante nos escritos do pensador húngaro. Lukács retoma a discussão em torno da herança da cultura pré-revolucionária, incluindo aí a burguesa, e a posição leniniana dentro dessa discussão, segundo a qual o verdadeiro progresso da cultura só se dá conforme a apropriação da cultura anterior é submetida a uma crítica que seleciona o válido e descarta o obsoleto40. Para ele, no pensamento dos fundadores do marxismo não há a defesa de uma exclusão mútua entre luta proletária e cultura pré-revolucionária, pelo contrário: “No entender deles, a concepção de mundo do proletariado, a sua luta de emancipação e a futura civilização a ser criada por essa luta devem herdar todo o conjunto de valores reais elaborados pela evolução plurimilenar da humanidade.” (Idem, ibidem, p. 102). No campo do pensamento estético, também ocorre a defesa da herança, já que os elementos da estética marxista nada mais fazem, para Lukács, que desenvolver, conscientemente, elementos já presentes na prática artística dos grandes escritores da própria burguesia: “[...] a estética marxista nada afirma de radicalmente novo; limita-se a desenvolver ao seu mais alto nível de consciência e clareza aquilo que sempre se encontrou no centro da teoria e da prática dos grandes artistas do passado.” (Idem, ibidem, p. 103). O “grande artista” é aquele que apreende a essência da realidade em sua complexa globalidade e vai além da percepção superficial, quer seja ele da burguesia, quer seja do proletariado. Tal continuidade entre o artista burguês e o artista revolucionário contemporâneo se firma em um movimento da argumentação lukacsiana que atrela à criação literária o conceito epistemológico de “reflexo”, depreendido de Lênin: o “reflexo” é elemento central da constituição da consciência individual do homem, e não uma condição de classe. Lukács entende a criação artística como um modo específico de refletir o real (a ciência é outro, a filosofia é outro, etc.). Refletir o real (não o decalque do superficial, mas a totalidade) torna-se, assim, o objetivo de toda realização artística: 40

Para Lênin, o próprio Marx é o maior exemplo em defesa de sua posição a respeito da herança da cultura burguesa. Educado no pensamento burguês, Marx apropriou-se do que seria, para Lênin, os três maiores feitos da intelectualidade burguesa (a filosofia alemã, a economia política inglesa e o pensamento social francês) e, submetendo-os à crítica radical e materialista, deu origem a seu sistema de pensamento: “A história da filosofia e a história da ciência social mostram, com toda a clareza, que o marxismo nada tem que se assemelhe a ‘sectarismo’ no sentido de uma doutrina fechada sobre si, surgida à margem da civilização ocidental. [...] Sua doutrina nasceu como continuação direta e imediata das doutrinas dos mais eminentes representantes da filosofia, da economia política e do socialismo.” (LÊNIN, 2001, p. 65-66)

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A meta de quase todos os grandes escritores foi a reprodução artística da realidade: a fidelidade ao real, o esforço apaixonado para reproduzi-lo na sua integridade e totalidade, tem sido para todo grande escritor [...] o verdadeiro critério da grandeza literária. (Idem, ibidem, p. 102).

Articulado com o conceito de “reflexo” está o de “tipo”, por meio do qual se dá a representação da realidade na obra de arte. A formulação lukacsiana do “tipo” radica nas considerações de Friedrich Engels a respeito da figuração realista. Em carta a Margaret Harkness, de 1888, ele define: “[...] realismo significa reproduzir caracteres típicos em situações típicas.” (MARX; ENGELS, 2010, p. 67), e recusa a noção de que o personagem da obra literária seja mero porta-voz da posição política do autor, servindo de ilustração a uma ideia41. O personagem, para Engels, deve ser a expressão das relações sociais, mas uma expressão “natural” delas. Assim, o tipo, segundo a interpretação de Lukács dos escritos engelsianos, é a síntese, em uma imagem individualizada, concreta e particular, das contradições globais que constituem a realidade. O tipo vem caracterizado pelo fato de que nele convergem, em sua unidade contraditória, todos os traços salientes daquela unidade dinâmica na qual a autêntica literatura reflete a vida; nele, todas as contradições sociais, morais e psicológicas de uma época – se articulam em uma unidade viva. [...] Na representação do tipo, na criação artística típica, fundem-se o concreto e a lei, o elemento humano eterno e o historicamente determinado, o momento individual e o momento social universal. Portanto, é na representação típica, na descoberta de caracteres e situações típicas, que as mais importantes tendências da evolução social conseguem uma expressão artística apropriada. (LUKÁCS, 2010, p. 106)

Vimos anteriormente que a criação artística deveria, para Lukács, atravessar a superfície fetichizada das relações sociais e adentrar a realidade complexa das relações e contradições. O tipo realiza, no nível do fenômeno, da representação da vida cotidiana em situações cotidianas, os movimentos essenciais, construindo uma individualidade que é, ao mesmo tempo, reflexo da universalidade das relações sociais complexas. A representação realista não se confunde, portanto, com o ato de copiar fotograficamente a vida cotidiana – característica do naturalismo, que se limita ao apego à superficialidade: Lukács nega “[...] o caráter realista do mundo representado através de detalhes naturalistas (que escamoteiam as forças motrizes essenciais dos fenômenos) [...]” (Idem,

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As considerações de Engels sobre a questão da constituição do personagem são mais bem exploradas na carta de 1859, endereçada a Ferdinand Lassale a propósito do Sickingen, drama escrito por este. (MARX; ENGELS, 2010, p. 7680)

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ibidem, p. 107). O fundamental, na representação verdadeiramente realista, é refletir os traços essenciais das relações sociais, por meio do tipo. Assim, o pensamento de Lukács sobre a literatura e sua função na sociedade diverge em pontos cruciais daquele que embasa a prática do realismo socialista, tal como apresentado no I Congresso dos Escritores Soviéticos. O pensador recusa o atrelamento unidirecional entre arte e base econômica, o que se choca com o intuito de fazer do realismo socialista a afirmação propagandística das diretrizes político-econômicas do regime stalinista; sua concepção de realidade não pressupõe a unificação das movimentações sociais, tal como pretendida pela política de centralização do poder, mas sim, ao contrário, a unidade tensa e complexa das contradições sociais, força motriz do desenvolvimento humano. Ele recusa também atribuir à literatura a função de doutrinar, de “reformular mentalidades”, como o disse Zdhanov, de educar segundo uma tese específica – não deixando de defender o compromisso ético da arte e da literatura em libertar o homem de uma realidade hostil, feita de fantasmagorias alienadoras. Assim, a representação realista não deve ser a apologia de um ideal (construído sobre interesses de classe), e sim o reflexo das contradições vivas que tecem a realidade, manifestadas por personagens que não são “modelos”, mas a concretização daquelas contradições.

2.4.O realismo em Dalcídio Jurandir, ou Entre o ideal e o concreto, é preciso ter cautela.

Ao fazer a crítica de Os Subterrâneos da Liberdade (1954), de Jorge Amado, Dalcídio Jurandir inicia uma discussão, estendida por três artigos, sobre a questão do realismo socialista, do romance como gênero, suas características, os modos de relação dele com a realidade e a história. Os textos são Romances, seguido de Romance, realidade e história e A realidade histórica no romance, todos também de 1954 e veiculados pelo periódico Imprensa Popular. Comecemos a análise do posicionamento de Dalcídio Jurandir sobre essas questões a partir de seu interessante encerramento: o escritor termina o último dos textos, no decorrer dos quais tece elogios ao significado histórico do realismo socialista, dizendo: “Estamos ainda no começo.” (JURANDIR, 1954c). A que ele se refere? Algumas linhas antes, ele faz referência ao pensamento de Engels a respeito da unidade entre lógica e história, segundo o qual: “Onde começa a história, ali mesmo deve começar também o curso do pensamento e seu movimento ulterior não constitui reflexo do processo histórico que adota uma forma abstrata e teoricamente consequente.”

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(JURANDIR, 1954c). A questão gira em torno do modo de relação entre processo histórico e pensamento, afirmando que o último acompanha o processo histórico, não enquanto seu reflexo, o que levaria a uma concepção do pensamento como duplicação mecânica da base material, mas sim como forma abstrata e teoricamente consequente desse processo. O pensamento torna-se, então, expressão teórica do processo histórico. Para Dalcídio Jurandir, este modo de relação é determinante para pensar a significação do realismo socialista diante da realidade histórica brasileira. Mais adiante retomaremos essa afirmação mais detalhadamente. Voltemos agora e sigamos de modo mais linear os artigos do escritor. Em Romances, são anunciados também, junto com Os Subterrâneos da Liberdade, dois romances soviéticos lançados pela coleção “Romances do Povo”, da linha editorial Vitória (criada pelo P.C.B para divulgar a produção literária de escritores soviéticos e de militantes): Assim foi temperado o aço, de Nikolai Ostrovski, e Um homem de verdade, de Boris Pelevói. Sobre esses romances, Dalcídio Jurandir afirma: Estamos diante não apenas de uma crônica de acontecimentos, de um relatório, de uma reportagem. Os romancistas procuram em seus livros ver o essencial da realidade soviética numa determinada situação [...]. Dentro da ação forjam-se tipos, estas e aquelas criaturas desintegram-se, outras surgem, crescem e ocupam o lugar de maior importância na luta pela transformação revolucionária. O romancista não simplifica essa luta, exibe os conflitos, mostra que a revolução não é uma simples e breve mudança mas um processo longo e doloroso, se bem que inevitável, na realidade e na consciência dos homens. (JURANDIR, 1954[a])

É importante reter, dessa passagem, alguns elementos: para Dalcídio Jurandir, o romancista se detém no essencial; no romance, as movimentações da realidade não devem ser simplificadas, mas expressas na complexidade do processo, “longo e doloroso”. O modo de representação dessa realidade complexa pelo romance se dá, segundo o escritor, por meio da “imagem” – não sendo o romance, necessariamente, uma cópia, um registro documental do material que apresenta:

Muitos acreditam que o romance é a reprodução exata da vida, tal qual ela é, uma espécie de história em que tudo deve ser verdadeiro no sentido documental, no sentido “histórico”, como se o romancista fosse um historiador, um repórter, um cientista. [...] A verdade da vida numa obra de arte manifesta-se através da imagem, através do estilo, graças ao engenho do artista em apresentar os fatos e os personagens segundo uma ação inventada, artisticamente construída. (Idem, ibidem)

Há, em Dalcídio Jurandir, a recusa do romance como registro documental, como algo próximo ao imediatismo da reportagem. Esta é uma posição muito próxima da de Lukács, quando o

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filósofo critica o que identifica como uma superficialidade fetichista tanto da arte de vanguarda quanto da de tese, ambas aproximadas na dinâmica do “naturalismo”, a de supervalorizar determinados elementos destacando-os da rede de relações e interações sociais, alienando-os e naturalizando-os nessa alienação. Em Narrar ou descrever?, de 1936, Lukács questiona: “Será que é o caráter completo de uma descrição objetiva que torna alguma coisa artisticamente ‘necessária’? Ou, ao contrário, esta necessidade decorre das relações dos personagens com as coisas e com os acontecimentos nos quais se realiza seu destino e através dos quais elas atuam e sofrem?” (LUKÁCS, 2010, p. 151). A noção de “objetividade” é posta em xeque pelo pensador húngaro quando ela se confunde com autonomia da coisa como apologia da superficialidade e como separação das interações que a definem. Dalcídio Jurandir recusa o mesmo tipo de “objetividade” para o romance, que não deve produzir um retrato da coisa, mas mostrá-la na globalidade das relações que a envolvem: “Quando digo ‘romance’, advirto o leitor de que não se trata de uma história como registro exato e científico dos acontecimentos ou série de uma documentação rigorosamente pesquisada e ordenada.” (JURANDIR, 1954[a]). A distinção entre “imagem”, modo próprio da representação da realidade no romance, e “fotografia” sintetiza essa posição: “Quando lemos um romance sabe-se que nada do que está nele aconteceu, de fato, mas pode acontecer, é uma essência do que aconteceu, representa uma imagem da vida que vivemos. Uma imagem e não a fotografia.” (Idem, ibidem). Recusa, portanto, da “fotografia” como a superficialidade imediata oposta à apreensão da essência da realidade, pela “imagem” do romance. O romance, enquanto obra de arte, não prescinde do “estilo”, do trabalho individual do artista que dá forma à obra: este trabalho do artista é um dos elementos que diferem o romance da história e do texto memorialístico. Ele diz, no segundo texto, intitulado Romance, realidade e história: “Essa deformação consciente, em que os fatos e as pessoas deixam de ser as mesmas da vida para serem imagens desta, é que distingue o romance da história, das memórias.” (JURANDIR, 1954[b]). No entanto, a par dessa consciência formal que o escritor defende, seu critério de valor decisivo é a profundidade da imagem alcançada na representação romanesca. Pois, se o característico do romance enquanto gênero é a produção de uma “imagem” que dê conta de manifestar a própria essência da realidade, para Dalcídio Jurandir um grande romance é aquele que atinge esse objetivo. O escritor paraense se utiliza dos nomes de Stendhal e de Henry James para ilustrar esse pensamento: o primeiro, sendo formalmente “menos cuidadoso” que o último, alcançou, no entanto, uma representação clara, profunda e simples da vida, enquanto que Henry

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James se concentrou na “[...] ‘maneira’ de construir do romance e não [na] vida que deveria representar com clareza e profunda simplicidade.” (Idem, ibidem). Identificando o formalismo com certo “maneirismo” (reativando o cunho pejorativo desse termo) e valorizando a expressividade da imagem, Dalcídio Jurandir empreende a leitura crítica de Jorge Amado e sua série. Seguir a linha de Stendhal, de simplicidade e clareza em sua imagem romanesca, é o diferencial de Jorge Amado em meio a nomes consagrados da história literária brasileira, e o que lhe confere papel de grande destaque:

Aqueles leitores, por exemplo, que desejam ver em Jorge Amado o prosador da mesma família de Graciliano Ramos, Machado de Assis, Joaquim Nabuco, Ramalho Ortigão, Eça de Queiroz ou Camilo enganam-se e isso constitui uma base falsa na apreciação de sua obra. Creio mesmo que Jorge Amado é o mais bem dotado dos romancistas brasileiros nestes últimos tempos. Terá ele um “estilo literário”? Não. Observa uma “técnica” de romance à altura da herança vinda de um Flaubert, de um Tolstoi, ou de Eça e Graciliano Ramos? Acho que também não. Em que reside a força do romancista de “Terras do sem fim”? No seu poder de narração, na exuberância inventiva, na espontaneidade do levantar audaciosamente atmosferas, cenas, capítulos líricos, como se fosse um daqueles mestres [...] do sertão, um trovador que não se detém numa rima pobre ou num ritmo inseguro para continuar a cantar e a narrar aos galopes, não querendo respirar porque teme perder o fio da narrativa e o gosto do canto. (Idem, ibidem)

Rechaçando termos recorrentes em uma crítica literária mais preocupada com a forma, tais como “estilo literário” e “técnica” – que lembram, por sinal, os textos de Álvaro Lins, crítico consagrado do período –, Dalcídio Jurandir estabelece outra base para a leitura de Amado: a da espontaneidade, da naturalidade que conduz o trabalho criativo do escritor baiano, aproximado geneticamente dos trovadores populares. No entanto, nessa aproximação com o popular residem alguns perigos, diante dos quais, para o escritor marajoara, é preciso se precaver: o descaimento para o best-seller e a exacerbação do elemento romântico da criação artística. Sobre o best-seller, Dalcídio Jurandir profere poucas palavras. Apenas que, nos romances de Jorge Amado “Há por vezes uma descaída para o folhetim, para o ‘best-seller’, como em muitas páginas de ‘Os Subterrâneos da Liberdade’42.” (Idem, ibidem). A questão do romantismo e de seu 42

Como não nos propomos uma análise de Os Subterrâneos da Liberdade, registramos neste exíguo espaço de pé de página nossa concordância com a leitura de Dalcídio Jurandir. Mesmo reconhecendo que as chaves de leitura para a série de Amado devem ser outras que não as convencionais (sendo particularmente útil a teoria da tragédia que se desenvolve dentro da estética marxista-leninista), a obra de Amado tem um perceptível teor folhetinesco. Semelhante a outros clássicos do gênero, como Os mistérios de Paris, de Eugéne Sue, e O Conde de Monte Cristo, de Alexandre Dumas, apresenta aquela “estrutura da consolação” amparada por uma “ideologia do Super-homem”, utilizando as categorias propostas por Umberto Eco (1991). Em Os Subterrâneos da Liberdade, o Partido Comunista, portador da justiça e da esperança, é o verdadeiro super-homem de massa (que se manifesta individualmente na coragem de seus militantes) e sua atividade consolará os oprimidos e remediará as injustiças.

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papel na criação é mais detidamente trabalhada pelo autor. Sobre ela, é preciso retomar outro texto de Dalcídio, publicado em 1952 e intitulado Victor Hugo, poeta da juventude. Vamos a ele. O texto de 52, mais próximo de uma crônica, tem forte cunho memorialístico. Nele, Dalcídio Jurandir descreve como travou contato com a obra de Hugo em sua juventude. Leitor voraz dos volumes guardados na estante de seu pai, depois de passar por Voltaire, Castro Alves e Casimiro de Abreu, o jovem Dalcídio Jurandir encontra o romance Noventa e Três, do romancista francês. Sobre a leitura da obra, ele diz: “E fui levado pelas palavras e pelos acontecimentos do livro. Eram lutas, rompantes de lado a lado, batalhas, era a França que comecei a amar com uma fidelidade e uma paixão que transferi depois para a União Soviética [...]” (JURANDIR, 1952[c]). Victor Hugo, metáfora para o romantismo, tem o papel justamente de instilar o ardor revolucionário, de alimentar a vontade de luta por um ideal: “[Victor Hugo] me deu uma confiança nas lutas, mostrou-me heróis mártires, sentimentos que pertencem ao que há de mais humano e puro no mundo romântico e no peito dos moços.” (Idem, ibidem). Essa educação sentimentalrevolucionária, esse ideal de lutas pela justiça, encontra, na luta socialista da URSS e na militância política, sua concretização histórica: Os povos voltam a ouvir, com maior atenção, a grande voz clara, altíssima, caudalosa, do velho Hugo. Ele ressurgiu das revoluções proletárias, ele circula na União Soviética, nas democracias populares, nas lutas populares do mundo inteiro, como um poeta que tivesse escrito seus poemas as suas histórias, o seu romantismo para as grandes massas libertadas, para as grandes massas que estão lutando contra os últimos tiranos e contra as últimas injustiças. (Idem, ibidem)

O entendimento de Dalcídio Jurandir sobre o papel do romantismo não difere do que os escritores do I Congresso tinham dele, sendo o elemento necessário no cunho “revolucionário” da nova literatura, o qual Zdhanov (como vimos anteriormente) defendera como complemento da “sobriedade materialista” do realismo, no sentido de aliar a apreensão correta da base material com o direcionamento de transformar essa mesma base (segundo a orientação da diretriz partidária). Amado apresenta a força desse elemento romântico, mas de uma forma que se mostra problemática, pois (voltando agora ao texto de 1954) Dalcídio Jurandir afirma que “nem sempre Jorge Amado distingue a simples fantasia romântica da fantasia criadora que se inspira na realidade e que só pode se alimentar da realidade.” (JURANDIR, 1954[b]) A exacerbação do romantismo tem como contrapartida, então, uma falta de acuidade em perceber a realidade. Dalcídio Jurandir justifica Amado. O escritor baiano incorre nessa falha devido à sua posição de vanguarda na literatura brasileira, sendo o primeiro a desbravar o realismo

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socialista, estando, por isso, no momento difícil da transição entre uma nova realidade, a revolucionária, que apenas desponta em solo brasileiro, e a velha realidade que vai sendo superada:

Deveríamos observar as dificuldades em que se debatem os romancistas em face de uma nova realidade, como a revolucionária, onde os caracteres, a ação, os acontecimentos ganham uma profundidade e uma complexidade diferente da velha realidade e há, de início, os riscos da esquematização ou do simbolismo. (Idem, ibidem)

Testemunha-se um momento delicado em que novas realidades e novas formas de compreensão e apreensão dessa realidade se relacionam de modo muito inseguro. Para Dalcídio Jurandir, Jorge Amado deve ser saudado por conta de seu pioneirismo: “Jorge Amado [...] é, de fato, o introdutor do realismo socialista no romance brasileiro, é um inovador, abre o melhor caminho para os ficcionistas nacionais.” (Idem, ibidem). Contudo, sua realização formal ainda seria insuficiente, por conta da sobreposição da “fantasia romântica” à apreensão do real, fonte da criação literária: no nível formal, a exacerbação do romantismo conduziu a narrativa de Amado ao best-seller folhetinesco. Dalcídio Jurandir, então, emprega um segundo conceito para pensar a criação literária, ao lado do de “romantismo”: o de “realismo”. Ao romantismo de Victor Hugo, o escritor paraense contrapõe o realismo de Flaubert. Não que o segundo deva substituir o primeiro. Os dois conceitos não devem ser isolados, mas sim combinados, levando à correta apreensão da realidade: Fadeev apontou uma das fraquezas essenciais da obra de Flaubert quando acentuou os perigos da separação do romântico e do realista na obra de arte. Flaubert, diz Faddev, apresenta-se isoladamente realista. Como Hugo se apresenta isoladamente romântico. E isso faz com que a obra de Hugo e de Flaubert não reflitam corretamente a realidade, não tragam desta uma imagem mais profunda. (Idem, ibidem)

A obra de Jorge Amado incorreria, segundo o romancista paraense, no desequilíbrio entre o romântico e o realista. Em A realidade histórica no romance, último da série de textos dedicados à questão da criação literária, Dalcídio Jurandir explorará as consequências desse desequilíbrio. Nesse texto, o autor se refere ao romance Aurora do Norte, do soviético Nicolas Nilátine, ambientado no norte da Rússia, no período da guerra civil. Dalcídio Jurandir comenta:

Depois de mostrar seu esforço de pesquisa, o quanto deve à experiência do que viveu, ao contato dos participantes das lutas que descreve, ao estudo das obras de Lênin e Stálin [...] o romancista declara: “Escrevi um romance e não uma crônica, 69


não um registro de acontecimentos. Conservei, porém, em várias passagens os seus verdadeiros nomes – quer se trate de inimigos ou de herói desta epopeia do Norte soviético – o que me obriga à mais rigorosa exatidão histórica. É a verdade histórica que me tem preocupado antes de tudo colocando-a à base de meu livro”. Aí está uma combinação entre história e ficção, em que o autor conduz a ação em termos, sem nunca afastar-se do leito histórico verídico. (JURANDIR, 1954[c])

Ao lado da afirmação do trabalho individual do autor, que dá origem ao “estilo”, defende também a criação literária fiel ao “leito histórico verídico”, preocupada com a “exatidão histórica”, mas sem que se transforme em crônica, relato histórico ou reportagem. É esse ponto de equilíbrio que escapa à obra de Jorge Amado. Dalcídio Jurandir critica em Amado, que anuncia no prefácio de seus romances o intuito de seguir uma determinada linha histórica (de novembro de 1937 a novembro de 1940), os deslocamentos temporais que o autor realiza e a “liberdade poética” de inserir, como verídicas, ocasiões que não são historicamente comprovadas. Essa liberdade seria, segundo o autor, característico do romantismo: “Creio que Hugo e Walter Scott são bons exemplos disso. Gogol em ‘Tarass Boulba’, Dumas, Fenimore Cooper, o nosso Alencar usaram e abusaram largamente, podemos dizer, dessa ‘licença poética’.” (Idem, ibidem). Todavia, estabelecendo limites para o uso de tal licença, Dalcídio Jurandir retoma a definição de realismo socialista dada pelo estatuto da União dos Escritores Soviéticos, segundo a qual: O realismo socialista [...] exige do artista uma representação verídica, historicamente concreta da realidade no seu desenvolvimento revolucionário. O caráter verídico e historicamente concreto dessa representação artística da realidade deve combinar-se com o dever de transformação ideológica e da educação das massas no espírito do socialismo. (Idem, ibidem)

Vimos que, em sua definição, o realismo socialista combina, ambiguamente, a “representação verídica” com um “ideal pedagógico”, apontando, junto ao que “é”, em direção a um “dever-ser”. A defesa ortodoxa do princípio do realismo socialista, realizada pelo romancista paraense, leva-o a acusar Jorge Amado de desvio para com os preceitos oficiais: “O romancista não quis aplicá-lo ao situar arbitrariamente a ação da greve de Santos ocorrida em 1916 em pleno descenso revolucionário dos anos de 37 a 39.” (Idem, ibidem). A exatidão histórica, em Dalcídio Jurandir, pode participar desse ideal pedagógico, pois a correta representação é elemento constituinte da correta compreensão da vida que o artista almeja traduzir na imagem romanesca.

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Mas o desequilíbrio formal de Jorge Amado se manifesta não apenas para o lado do romantismo, que o leva a “desrespeitar” a cronologia histórica, mas também para o lado realista, aproximando certas passagens do romance, segundo a leitura de Dalcídio Jurandir, da objetividade da reportagem e da história: “Enquanto segue seu curso, o romancista procura fazer história, até demais, esquece-se da própria fantasia, de seu próprio gosto, como ficcionista, de entrelaçar esses fatos de modo mais íntimo, mais quotidiano, mais ‘romanceado’ na vida de seus personagens.” (Idem, ibidem). Há, portanto, um descompasso na série de Jorge Amado: tanto na composição dos personagens quanto no tratamento superficial do dado histórico. Assim, a valorização do histórico no romance se dá como fundamento de uma caracterização mais profunda dos personagens, entrelaçando individualidades e fundamento histórico-social. Seguindo e desenvolvendo o raciocínio do autor, descurar do histórico é, ao mesmo tempo, construir personagens abstratas (pois que não articuladas com a concretude do fundamento histórico) e transformar o acontecimento em crônica (pois que é desvinculado das existências individuais e apreendido no plano abstrato das “datas”): estes seriam os equívocos de que padeceria a série de romances de Amado. Pela valorização do leito verídico da história, Dalcídio declara: “Diante do problema história-ficção, como então conduzir-se? Segue os mestres do realismo crítico ou se apoia nos românticos? Creio que a melhor companhia está com os realistas.” (Idem, ibidem). A declaração de Dalcídio, usada para defender ortodoxamente a definição do realismo socialista, acaba por apontar em direções inesperadas. Primeiro porque evoca os mestres do realismo crítico e não os mestres do realismo socialista. Em determinado momento do texto, contrapõe a profundidade da representação de Tolstoi, que, não descurando do histórico, consegue entrelaçá-lo exemplarmente na composição dos personagens, à falha de Fadeev, que, em seu Jovem Guarda (um dos clássicos do realismo socialista), descuida do histórico, não sendo feliz, portanto, na composição de seus personagens: Para mais um exemplo a respeito dessa questão complexa de história e romance, quero referir-me à “Jovem Guarda”, de Fadeev. Qual o defeito grave do romance apontado pela crítica? Fadeev descreve a luta dos jovens, com um vigor e uma imaginação de romancista, esquecendo-se, porém, de um fato histórico essencial: de que o Partido dirigia essa luta. E isso fez com que o romancista não exprimisse, não representasse profundamente a realidade. Não se tratava ali de uma simples observação, como historiador, do fato da existência do Partido como dirigente das lutas. Tratava-se de uma indispensável obsevação, da realidade, como romancista, representando-a em imagens, a imagem viva dos comunistas à frente da luta. A observação da realidade é comum ao romancista e ao historiador. A maneira de exprimi-la é que é diferente. O historiador expressa-a em fatos, conceitos. O romancista movimenta-a em imagens. (Idem, ibidem).

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A atenção ao histórico concorre para a criação da imagem da realidade, modo de expressão próprio do romance. Dalcídio Jurandir aponta na direção da ideia de que o romantismo, como instigação da militância pela ênfase no sentimento revolucionário (o que não deixa de ser uma forma pedagógica, um modo de “remodelar as consciências”, como o disse Zdhanov), não deve ser sobreposto à compreensão sóbria do fundamento histórico, pois é a percepção correta deste que revelaria, por meio da imagem “[..] mais correta, mais típica [...]” (Idem, ibidem), a essência do movimento do real, inclusive em sua dimensão revolucionária assim corretamente apreendida. O cunho romântico, que deve orientar na luta revolucionária, tendo em vista um “vislumbre do amanhã” (aquele “glimpse of tomorrow”, do discurso de Zdhanov trabalhado anteriormente), não pode ser enxertado abstratamente, de fora do movimento histórico realisticamente apreendido. Um deve emanar do outro. Essa percepção dalcidiana se encontra muito próxima da de György Lukács, quando o filósofo trata da questão da perspectiva, no pronunciamento realizado no IV Congresso dos Escritores Alemães, de 1956. A perspectiva é um aspecto defendido pela literatura do realismo socialista (inclusive contra o realismo crítico, que padeceria de uma visão projetiva, resumindo-se na denúncia e na crítica do presente, o que é refutado por Lukács). O “romantismo revolucionário”, elemento constitutivo do realismo socialista, pode ser visto como o responsável pela perspectiva, pelo “lampejo do amanhã” – ao mesmo tempo em que é instigação sentimental para caminhar em direção a ela. O que Lukács critica em sua fala é o esquematismo perceptível na literatura socialista, que adviria de uma “[...] figuração errônea e mecânica ou [...] deformação mecânica da perspectiva.” (LUKÁCS, 2010, p. 287). A deformação é consequência de uma compreensão equivocada do que seja “perspectiva”: [...] o ensinamento que podemos extrair deste exemplo de Tolstoi é o de que a perspectiva só é autêntica e concreta quando surge de tendências de desenvolvimento dos indivíduos representados na obra de arte – e não quando é justaposta como verdade social objetiva a determinados homens que têm com ela apenas uma tênue ligação pessoal. (Idem, ibidem, p. 288)

Tomando Tolstoi como exemplo, Lukács trabalha a ideia de que converter a obra literária em ilustração do caminho futuro do homem ao socialismo com base em esquemas simples e abstratos, muitas vezes facilmente otimistas, é falsear a representação dos verdadeiros movimentos do real. Esse tipo de falsa representação apenas “[...] subestima as dificuldades, os estancamentos, os resíduos do velho mundo, sobretudo nos próprios homens que vão sendo figurados, em suas 72


almas. E, em segundo lugar, superestima os resultados imediatamente obtidos, fornecendo um quadro deformado da realidade.” (Idem, ibidem, p. 290). Dupla deformação, portanto: de um lado, não atenta para os resquícios do antigo e, por outro, iludida com conquistas que ainda são esboços de vitórias apenas possíveis. Vimos que, para Dalcídio Jurandir, a realidade é “um processo longo e doloroso”, feito de lutas e conflitos que não devem ser simplificados na representação literária, na imagem que o romance fornece. O escritor se aproxima do conceito lukacsiano de realidade, que prima por uma percepção global das relações intricadas que constituem essa mesma realidade. A perspectiva só pode emanar da percepção dos movimentos da própria realidade, pois, se for depreendida de uma simplificação desses movimentos, redunda apenas em uma deformação. A crítica de Dalcídio Jurandir ao elemento romântico exacerbado em Jorge Amado encontra-se com a crítica lukácsiana do esquematismo da literatura socialista: o folhetinesco amadiano é a realização formal de tal deformação, que advém da falta de percepção realista (crítica, flaubertiana) do fundamento histórico, romanticamente recriado. Começamos esse momento da análise com a declaração de Dalcídio Jurandir: “Estamos ainda no começo.” Agora podemos ter uma ideia clara do que se afirmava então. O realismo socialista, expressão válida da realidade soviética – que estaria passando por um estágio avançado da construção socialista, não encontra aporte na realidade brasileira, na qual a realidade revolucionária apenas acena como possibilidade, demandando uma análise específica de suas particularidades, de suas necessidades e de suas mazelas43. Para Dalcídio Jurandir, o estilo pode vir a contribuir para estimular e ajudar a compreender essa realidade revolucionária nascente, mas ainda não pode ser assumida, plenamente, como uma “forma abstrata e teoricamente consequente” (nas palavras de Engels) do processo histórico brasileiro. O escritor defende então o cuidadoso trabalho realista (crítico) de análise e percepção do leito verídico da história como forma de alcançar a compreensão das próprias perspectivas do movimento histórico, atrelando o conceito de realismo não na idealização romântica da luta revolucionária, mas no conhecimento do longo e

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No artigo O Programa – um novo rumo para os intelectuais, Dalcídio Jurandir saúda o Programa do P.C.B como uma orientação para os intelectuais no estudo e pesquisa acerca da realidade brasileira, uma necessidade inadiável. Ele diz: “Até agora nossos conhecimentos são frutos do espontaneísmo. Pouco sabemos do povo do Brasil, do movimento das classes sociais na vida brasileira, vivemos ainda distanciados de fato da realidade brasileira. Nossa influência na vida cultural brasileira carece de solidez, profundidade e espírito revolucionário.” (JURANDIR, 19[...]). O Programa, segundo o autor, estimula o intelectual no “estudo e conhecimento das condições concretas e das peculiaridades nacionais de nossa realidade.” (Idem, ibidem). Isso mostra que, para Dalcídio Jurandir, a compreensão profunda da realidade concreta e histórica era um imperativo para o desempenho eficaz do intelectual junto à realidade social.

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complexo conjunto de relações sociais que constituem a realidade, o que se converterá na imagem artística da vida social. A obra ficcional de Dalcídio Jurandir, aproximando-se das concepções de Lukács, tem como núcleo justamente a expressão da essência das relações sociais por meio de personagens típicos – particularidades profundamente atreladas e definidas em suas relações histórico-sociais, imagens, portanto, da própria essência dessas relações. Expressar tais relações na imagem do romance demanda um trabalho específico, que é diverso do exigido na reportagem, no relatório, etc., e no qual a individualidade criadora tem papel relevante. É sobre a especificidade da construção romanesca de Dalcídio Jurandir que o capítulo a seguir trata.

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CAPÍTULO III A EMERGÊNCIA DO REAL NO CHOQUE ENTRE O ENCANTO E A HISTÓRIA (I): UMA LEITURA DE MARAJÓ

3.1. Do conto maravilhoso ao anticonto: a afirmação trágica do mundo injusto

Dalcídio Jurandir, como se pôde observar até este momento em nosso trabalho, mostra-se um escritor integrado no sistema de pensamento stalinista, não só nos elementos que proporcionam uma determinada leitura da situação social, mas também nos que fornecem diretrizes para a criação artística. Todavia, o romancista, em nome de uma responsabilidade para com a história, digamos assim, não cedeu ao fácil e entusiasmado elogio do realismo socialista, preferindo guardar certa cautela com relação à prática do estilo oficial junto à representação da realidade brasileira, criticando Jorge Amado justamente no que toca à adequação da representação dos fatos históricos na série Os Subterrâneos da Liberdade. Para Dalcídio Jurandir, a inexatidão de uma exagerada “licença poética”, ao deturpar o curso dos acontecimentos históricos, não colabora com a correta compreensão do desenvolvimento histórico, o que seria fundamental para a arte do romance e sua capacidade de jogar luz sobre a essência das movimentações da História em seu decurso revolucionário. Com isto, chegamos à conclusão de que o trabalho ficcional de Dalcídio Jurandir aproxima-se das formulações lukacsianas acerca da importância da representação histórica e de sua figuração na construção de uma imagem dos múltiplos aspectos problemáticos da realidade, sem a facilitação de esquematismos de quaisquer espécies, afastando-se, assim, das construções propagandísticas e esquemáticas do realismo socialista divulgado nos meios partidários. Deste modo, a continuidade de nosso trabalho encontra como tarefa tecer considerações sobre o próprio fazer artístico do autor paraense, no intuito de apreender a especificidade da forma de representação encontrada por ele para dar cabo da representação do curso histórico. É possível apresentar de imediato a seguinte afirmação sobre a elaboração formal da narrativa de Dalcídio Jurandir: o uso constante de narrativas do imaginário amazônico 44 imiscuídas

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Não é possível deixar de considerar a imensa diversidade que compõe o conjunto de narrativas do imaginário amazônico: matrizes europeias, indígenas, africanas, orientais (que já são elas próprias internamente heterogêneas) se amalgamaram na constituição de tal conjunto, sem contar a contribuição que os fluxos migratórios oriundos de outros estados brasileiros, com suas miscelâneas particulares, vieram dar para o cadinho do imaginário regional. Dentro desse conjunto, reteremos com mais ênfase elementos que retomam as narrativas dos “contos de fadas” (segundo o modelo formalizado por Perrault, Jakob e Wilhelm Grimm e ainda Christian Andersen).

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na representação realista, ou, para usar os termos de Furtado e Nascimento, uma “incorporação estética do imaginário popular” (FURTADO; NASCIMENTO, 2003, p. 132) em meio ao realismo. As autoras afirmam: “No romance, ainda em 30, Dalcídio Jurandir iniciará o gigantesco trabalho de Extremo Norte (1939/1979), publicado em dez volumes, no qual se nota a crescente recolha de narrativas da oralidade e uma constante elaboração estética desse material.” (idem, p. 133). A incorporação das narrativas da oralidade na tessitura do texto de Dalcídio Jurandir atinge mais que a mera recolha e ocorrência circunstancial de narrativas na fala de personagens. Em alguns romances, tais narrativas fornecem o próprio fundamento da construção estética do autor (o que ocorre notadamente em Chove nos Campos de Cachoeira, Marajó, Três casas e um Rio e Belém do Grão-Pará45), e são utilizadas, assim, para atingir um fim específico. De modo que a presença dessas narrativas não é gratuita nem atende apenas a uma vontade de documentar o patrimônio cultural de que elas são elementos. Sua presença se subordina ao sentido da construção global do romance, que pretende representar, realisticamente, o curso das transformações históricas a partir do choque entre o imaginário maravilhoso e o real. A questão principal é explicitar como se dá a relação entre esses dois modos de representação, o imaginário maravilhoso e o realístico, a princípio excludentes. Mas antes, atentemos com maior acuidade para a utilização das narrativas do imaginário na prosa dalcidiana. Podemos, para ilustrar o sentido da distinção entre um uso circunstancial/documental das narrativas do imaginário e um uso que segue o plano de uma construção determinada, nos aproximar da diferença que György Lukács efetua entre “forma” e “técnica”, exposta em seu ensaio A concepção de mundo subjacente à vanguarda literária, publicado pela primeira vez em 1957, e que permitiu ao pensador húngaro uma relativização em sua avaliação sobre aspectos da vanguarda artística e literária, cujos métodos vinham sendo, desde os anos 30, sumariamente repudiados por ele como “antirrealistas”. Lukács estabelece uma comparação entre James Joyce e Thomas Mann, a partir do uso que ambos fazem do monólogo interior e da livre associação, em seus respectivos romances Ulysses e Carlota em Weimar. Segundo a avaliação do filósofo:

O essencial é que, em Joyce, a livre associação, longe de se limitar a uma técnica estilística, constitui a própria forma dada pelo autor à descrição épica de situações e caracteres. Esteticamente falando, foi sobre essa base que ele construiu Ulysses. Do ponto de vista artístico, trata-se para ele, 45

Na continuidade de nosso trabalho, nos debruçaremos especificamente sobre Marajó e Belém do Grão-Pará, por motivos já expostos na “Introdução”.

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consequentemente, de uma realidade última. Para Mann, ao contrário, o livre jogo das associações tem um valor rigorosamente técnico. O escritor recorre a ele para descobrir e por em relevo uma realidade que se situa muito além dos dados brutos, imediatamente fornecidos pelo processo associativo [...] Não se trata de modo nenhum de uma diferença, duma oposição entre técnicas de escrita, entre elementos formais – no sentido “formalista” do termo – mas sim duma diferença, duma oposição, entre as imagens do mundo que os escritores nos comunicam através de suas obras, entre as atitudes que eles mesmos tomam em relação à sua própria apreensão do real, entre os juízos de valor que fazem sobre esse objetivo.” (LUKÁCS, 1967, p. 34-36)

Para Lukács, a capacidade de apreensão do real por parte do autor determina a elaboração formal da obra. Joyce usaria o monólogo interior e a livre associação para apresentar uma concepção do mundo que se resume a um subjetivismo radical desprovido de possibilidade de ação histórica: ambos transformam-se assim em forma imediatamente expressiva de uma tal visão de mundo. Thomas Mann utilizar-se-ia deles, por seu turno, como técnica, a fim de expressar uma visão de mundo diferente, ou ainda, como recursos para expressar e ilustrar as relações dialéticas entre indivíduo e meio histórico circundante. Retendo, assim, a distinção entre forma e técnica, podemos dizer que Dalcídio Jurandir apropria-se das narrativas do imaginário transformando-as em técnica, subordinadas a um plano realisticamente orientado que as engloba e lhes confere outro sentido, estético, o qual emerge do choque entre o sentido “cristalizado” nessas formas e sua desconstrução no plano realista de sua obra artística. Explicitemos o que seja esse “sentido cristalizado” nas formas das narrativas a partir do pensamento de Andre Jolles acerca das “formas simples”. Jolles pretende identificar certas formas elementares oriundas do trabalho humano em sua relação com o meio e que se dão pela linguagem, formas que podem participar das criações artísticas, mas que não necessariamente se confundem com elas. O autor diz: “Penso naquelas Formas que não são apreendidas nem pela estilística, nem pela retórica, nem pela poética, nem mesmo pela ‘escrita’; que não se tornam verdadeiramente obras de arte, embora façam parte da arte; que não constituem poemas, embora sejam poesia [...]” (JOLLES, [1972], p. 20). Tais Formas manifestariam o trabalho de ordenação que o homem impõe ao meio, transformando o caos inicial em um cosmo, dotado de ordem e sentido. Nesse processo, a linguagem desempenha importante papel:

Existe nele [no homem] um sentimento que o impele à consecução e um esforço que tende a substanciar todo objeto de pensamento para convertê-lo em uma

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Forma. Ao mesmo tempo, ele sabe, como ser vivo, existirem forças que se expandem no decorrer dessa vida. Mas como apreender numa unidade, e de que ponto de vista, o elemento comum a todas essas diversidades [...]? É nisso que intervém a linguagem, ela interpreta e compreende tudo num signo; e esse signo, que é móvel como os fenômenos, mas contém, entretanto, o complexo conjunto dos fenômenos, constitui o centro de uma ordem de onde parte e para onde retorna essa realização. (Idem, ibidem, p. 27)

A linguagem, nas formas estabelecidas a partir dela, reúne e ordena o trabalho de interpretação que o homem realiza diante do meio que habita, conferindo sentido a ele: “O homem intervém na confusão do universo; aprofunda, reduz, congrega [...]. Pelo desenvolvimento da explicação e o cerceamento da classificação, chega-se, pois, às formas fundamentais.” (Idem, ibidem p. 29). Quando tais formas são cristalizadas especificamente pela linguagem, surgem, para Jolles, as Formas Literárias, ou seja, formas que são elas próprias “conteúdos” do trabalho humano junto ao universo e que se dão pela linguagem. A Forma que Jolles designa “conto”46 atende a uma determinada significação, de certo modo existencial, da relação entre homem e universo. O conto corresponderia, de modo geral, ao desejo de que os acontecimentos no mundo se dessem conforme nossa expectativa, baseada em um sentimento ingênuo de justiça.

Tudo o que o conto significa, simplesmente, é que o nosso sentimento de justiça foi perturbado por um estado de coisas ou por incidentes, e que uma outra série de incidentes e um acontecimento de natureza peculiar satisfizeram em seguida esse sentimento, voltando tudo ao equilíbrio. [...] A ideia de que tudo deva passar-se no universo de acordo com nossa expectativa é fundamental, em nossa opinião, para a forma do conto; ela é a disposição mental específica do conto. (Idem, ibidem, p. 199)

A satisfação da “moral ingênua”, um pendor para ver restabelecido o equilíbrio que fora, por algum motivo, perturbado: esta a disposição própria do conto. “Sevícias, desprezo, pecado, arbitrariedades, todas essas coisas só aparecem no Conto para que possam ser, pouco a pouco, definitivamente eliminados e para que haja um desfecho em concordância com a moral ingênua.” (idem, ibidem, p. 201). Dessa forma, porém, o conto entra, virtualmente, em conflito com o mundo do real, no qual os acontecimentos não raro contrariam o senso de justiça, mostrando-se “imoral”: 46

A tradução do texto de Jolles emprega a palavra “conto” para verter o termo alemão Märchen. Ao utilizarmos tal tradução, devemos nos precaver e eximir parcialmente a palavra “conto” do sentido moderno consagrado em vernáculo, que muito difere da noção abarcada pelo termo alemão, pois o conto moderno corresponde muito problematicamente àquele tipo de narrativa designada pela Märchen alemã – mais próxima da expressão “conto de fadas”, embora seja mais ampla que esta e, de certo modo, a englobe. Seguindo orientações do próprio Jolles, ao empregarmos aqui a palavra “conto”, tenhamos em mente uma narrativa semelhante àquelas que constituem as coletâneas de Perrault e dos irmãos Grimm.

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O Conto opõe-se radicalmente ao acontecimento real como é observado de hábito no universo. É muito raro que o curso das coisas satisfaça às exigências da moral ingênua, é muito raro que seja “justo”; logo, o Conto opõe-se ao universo da “realidade”. Entretanto, esse universo da realidade não é aquele onde se reconhece nas coisas um valor essencial universalmente válido; é, antes, o universo em que o acontecimento contraria as exigências da moral ingênua, o universo que experimentamos ingenuamente como imoral. (Idem, ibidem p. 200)

O maravilhoso, reconhecido como uma das características fundamentais do conto e tomado mesmo por aquela que em geral o define, funciona como sinal do corte necessário entre a ordem da moral ingênua e a do mundo imoral, pois, para que haja a total certeza de que o decurso dos acontecimentos conduzirá ao equilíbrio, seria preciso romper com o mundo caracterizado pela imoralidade: “no Conto, o prodígio maravilhoso é a única possibilidade de estarmos seguros de que deixou de existir a imoralidade da realidade.” (Idem, ibidem, p. 202). Esse corte com a ordem do mundo real é estabelecido também pelo apagamento das marcas de espaço e tempo: Uma segunda e conhecida propriedade do conto pode ser explicada do mesmo modo. A ação localiza-se sempre “num país distante, longe, muito longe daqui”, passa-se “há muito, muito tempo”, ou então o lugar é em toda e em nenhuma parte, a época sempre e nunca. [...] A localização e o tempo histórico avizinhamno da realidade imoral e quebram o fascínio do maravilhoso natural e imprescindível. (Idem, ibidem)

No entanto, essas estratégias de afastamento da realidade imoral nem sempre são bem sucedidas. Do choque entre a expectativa de realização do senso de equilíbrio e o mundo que frustra essa expectativa com sua imoralidade, emerge, para Jolles, o sentimento do trágico:

O trágico acontece, de acordo com uma fórmula sucinta mas inteiramente correta, quando o que deve ser não pode ser ou quando o que não pode ser deve ser. Segundo essa fórmula, o trágico é a resistência de um universo sentido como contrário às exigências da nossa ética ingênua em face do acontecimento. (Idem, ibidem)

No conto, o trágico sempre é proposto, mas unicamente para ser abolido. Recorde-se a situação inicial de muitas dessas narrativas, como João e Maria, Cinderela, O Rei Sapo, entre outras: parte-se da situação injusta para chegar-se à restituição do equilíbrio pelo restabelecimento da justiça. Mas tal sentimento de frustração e contrariedade é passível de se impor, ganhando mesmo uma forma própria, que se mostra o inverso do conto, o anticonto.

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Jolles não se detém, infelizmente, sobre essa forma, o que nos permite pressupor que o anticonto é basicamente uma inversão da disposição que caracteriza o conto, ou a formalização do sentimento de frustração por não vermos satisfeita a expectativa de justiça e de reequilíbrio. O anticonto, portanto, constituiria uma forma caracterizada pela imposição do trágico. A utilização do material do conto popular na construção da narrativa de Dalcídio Jurandir foi primeiramente observada pelo folclorista Vicente Salles, que identificou o romance Dona Silvana47, de tradição ibérica, como matéria básica do romance Marajó. Para ele, comparando os dois textos “está montado o quadro e definida a simetria: de um lado, o romance tradicional, folclórico; do outro, a inventiva de Dalcídio Jurandir.” (SALLES, 1992, p. 370). Todavia, apesar da observação precisa da ocorrência da intertextualidade, a leitura de Salles mostra algumas limitações, decorrentes de seu próprio interesse específico enquanto estudioso do folclore e da referência teórica formalista a que se reporta. Em trecho de seu estudo, ele afirma:

Dalcídio Jurandir consegue a trama de uma história extremamente complexa em que o arquétipo folclórico funciona como suporte. Ele decompõe estruturalmente, como o faria Wladimir Propp com os contos de fada, a narrativa popular e integra-a depois, por partes, ao seu próprio romance, com os acréscimos sugeridos pelo contexto local. O romance folclórico, que se ajusta simetricamente a Marajó, de tal modo se cerca de outros fatos folclóricos que a obra resulta, repetimos, num vasto painel da cultura popular. (Idem, ibidem, p. 371-372)

O enfoque teórico de Salles, em sua leitura de Marajó, aproxima-se bastante das proposições do estudioso russo citado por ele. Retomemos, ainda que muito brevemente, as linhas básicas dos estudos sobre a morfologia do conto empreendidos por Propp e, a partir daí, apontemos suas consequências na leitura realizada por Salles, a fim de estabelecermos nossa própria posição diante do estudo deste. Propp afirma sobre a análise dos contos: “O folclorista, assim como o naturalista, ocupa-se dos fenômenos diversos que, entretanto, são idênticos em sua essência.” (PROPP, 1971, p. 245). Com isto, o estudioso estipula, como tarefa da análise dos contos, a identificação dos elementos comuns subjacentes à diversidade das realizações particulares. Identificando e comparando a estrutura dos diversos contos, seria possível estabelecer os elementos universais que, combinados de determinadas maneiras, comporiam os contos individuais: “Podemos comparar os contos do ponto de vista de sua composição, de sua estrutura, e então sua semelhança apresentar-se-á sob uma nova

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O texto trata de Silvana, princesa que, ao se recusar a ceder aos desejos incestuosos do pai, é aprisionada em uma torre na qual morre de fome e de sede.

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dimensão.” (Idem, p. 246). O objetivo do estudo é, em suma, diferenciar as “constantes” das “variáveis”. Vladimir Propp chega a um conjunto de “funções”, tais como “benfeitor”, “objeto mágico”, etc. as quais contribuem para a composição dos contos de acordo com o modo em que aparecem e são utilizados no conto individual48. Assim, Propp chega à conclusão de que:

Se fizermos uma lista dos cento e cinquenta elementos do conto fantástico, na ordem exigida pelo próprio conto, poderemos inscrever neste painel todos os contos fantásticos; inversamente, todo o conto que se possa inscrever em tal painel é um conto fantástico, todos os que não podemos aí inscrever, revelam-se como pertencentes a uma outra classe de contos. (Idem ibidem, p. 247)

Ao estabelecer o conjunto das constantes que participam da construção de todos os contos, Propp acaba limitando a análise à identificação do modo de ocorrência daquelas constantes em cada conto particular. Desse modo, segundo o estudioso, “podemos estudar as partes constitutivas sem ater-nos no assunto que elas abordam” (Idem, ibidemp. 248), o que conduz a uma dissociação entre forma e conteúdo que se mostra, para nosso interesse, inviável, já que buscamos observar as formas naquilo que elas têm de manifestação de um determinado conteúdo, segundo as coordenadas dos estudos de Jolles. Além do que, tal sistema de universais, que devem ser aplicados sobre o objeto particular de modo a afirmar ou negar sua pertinência ao “conto fantástico”, não admite a possibilidade da diferenciação que Jolles empreende entre o “conto” e o “anticonto”, os quais partilham elementos formais entre si, mas obtêm sua especificidade em um outro nível que não o formal. Essa dissociação entre forma e conteúdo e a atenção exclusivista às formas constantes se refletem na leitura de Salles, de modo a conduzi-la a alguns “pontos cegos” que pretendemos contornar. Para Salles, a inserção da narrativa popular no romance dalcidiano pode ser explicitada pela decomposição daquela em unidades que serão trabalhadas dentro da feitura do texto do romance. O folclorista identifica, ao molde das análises proppianas, dois momentos-chave do romance de Silvana: 1. O rei quer casar com a filha; e 2. O pai pune sua filha. Sobre o primeiro momento, relacionado ao texto de Dalcídio Jurandir, Salles realça o desejo de Coronel Coutinho pela personagem Orminda, a qual pode ser sua própria filha: “Há esse momento em que Dalcídio 48

Tal percepção da relação entre um conjunto sistêmico de elementos constantes e o seu uso na construção do objeto particular remete muito claramente à clássica formulação de Jakobson do modo de relação entre o eixo paradigmático e o eixo sintagmático, o qual, por sua vez, se encontra com a articulação saussurriana entre a langue e a parole.

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Jurandir revela toda a extensão da desgraça de Orminda, que associa seu destino ao de D. Silvana pelo mesmo tema do pai incestuoso [...]” (Idem, p. 373); sobre o segundo, realça não uma punição advinda diretamente do Coronel, mas do juízo da sociedade, da qual será apartada sob estigma da mulher jogada ao mundo: “A punição, em Dalcídio Jurandir, transcende a simples determinação do pai: Orminda vai ser punida pela própria sociedade.” (idem, ibidem). No estudo de Vicente Salles, portanto, ressalta-se a aproximação entre um texto específico, D. Silvana, e Marajó a partir da recorrência de aspectos formais do primeiro no segundo – aproximação que, por sua vez, é privilegiada em uma personagem específica, Orminda, tomada como “D. Silvana marajoara”, o que conduz a limitar a participação do texto ibérico à personagem em questão, pois se vê apenas o “paralelismo que [Dalcídio Jurandir] estabeleceu entre os dois destinos, o de Orminda e de Silvana” (idem, ibidem). Afora essa limitação, que não dá conta da globalidade do romance, somos levados a uma leitura do romance dalcidiano como repositório de material folclórico – uma das tendências constantes na recepção crítica do autor: “No Pará, tem sido extremamente escasso o interesse dos folcloristas pela coleta do cancioneiro tradicional, daí poderse emprestar ao texto de Dalcídio Jurandir o valor da primeira indicação do romance de D. Silvana, que é um dos mais difundidos no Brasil, no acervo do folclore regional” (Idem, ibidem). Em suma, pouco se esclarece sobre a articulação entre a escolha por tal plano de construção e seu sentido estético. Salles toma a atenção que o escritor dispensa às narrativas populares, introduzindo-as em seu romance, como indício da sensibilidade de Dalcídio Jurandir às lidas do povo marajoara, sensibilidade advinda de sua própria experiência junto a este povo. É por isso que ele se aproxima das lutas e vicissitudes de seu povo, consegue captar a visão e o sentimento de todas as coisas plantadas pelo homem naquele chão de Marajó, exprimir a verdade regional com amplitude universal. O romance como sua própria experiência de escritor, falando da Amazônia, ou de parte dela que se localizou no Marajó, insere-se também no processo geral de libertação dos povos oprimidos. (Idem, ibidem, p. 377)

Não querendo negar, de modo algum, a fina atenção que o romancista dispensa às problemáticas sociais da região, acreditamos, todavia, que seja preciso encontrar o eixo que articula a construção formal do romance, pautado no uso das formas do conto, e o sentido estético desse uso, que vai além do registro de problemas sociais ou de aspectos culturais regionais. Assim, contornaremos a noção de o texto dalcidiano aparecer como mero repositório das narrativas populares, inseridas ali pela sensibilidade do autor a uma “cultura popular” (o que é ler o texto de Dalcídio Jurandir como um tipo de “documento”). 82


Cremos poder alcançar esse eixo a partir do sentido da forma do anticonto jollesiano e do sentimento do trágico que ele engloba, apontando aí o sentido da forma do romance de Dalcído Jurandir. O uso particular que o romancista realiza do conto é caracterizado pela inversão da moral ingênua e pela frustração da expectativa de justiça, pelo confronto com uma ordem imoral do universo, do qual emerge uma percepção realista dos fundamentos do curso histórico. A ingenuidade é desfeita diante das forças reais de manutenção de um mundo injusto, caso de Marajó, e diante da própria movimentação histórica, a qual não permite a manutenção ingênua de um estado de coisas que não encontra mais razão histórica de ser, caso de Belém do Grão-Pará. Antes de passarmos à análise dos romances, que esclarecerá as afirmações aqui propostas, ressaltemos as características do conto de acordo com Andre Jolles, as quais serão vistas sendo retrabalhadas e deslocadas pelos romances de Dalcídio Jurandir: 1. O conto atende à satisfação de uma moral ingênua, fundamentada em um sentimento de justiça que pretende ver remediada a situação injusta em nome do equilíbrio anteriormente perturbado; 2. O conto está virtualmente em conflito com a ordem do real, no sentido de que esta se caracterizaria pela frustração da moral ingênua, mostrando-se, portanto, imoral; 3. Da relação conflituosa entre o conto e a ordem imoral da realidade, tem-se o maravilhoso e a indeterminação histórica (espacial e temporal) como características que estabelecem um corte com a ordem da realidade, com o fim de assegurar a possibilidade de satisfação do sentimento de justiça; tem-se também a emergência do sentimento do trágico, que é a frustração da moral ingênua pela imposição da ordem imoral da realidade; 4. O sentimento do trágico, ao se impor, pode configurar-se em uma forma própria, o anticonto. Com esses elementos, passemos então à análise de Marajó e de Belém do Grão-Pará.

3.2. Missunga: a tragédia do Príncipe que assume o Trono

O romance Marajó, publicado em 1947, contém em si a história do que poderia ter sido, mas não foi. E é a atmosfera de frustração que atravessa o livro, constituindo uma neblina que embaça e tolhe o horizonte da vida de seus personagens. No sentido de recontar a história frustrada, partiremos da revolta de Missunga contra seu próprio pai, o todo-poderoso fazendeiro Manoel Coutinho, ou Coronel Coutinho, “[...] dono daquele rio, daquela terra e daqueles homens calados e sonolentos que, nos toldos das canoas, ou pelas vendas, esperavam a maré para içar as velas ou aguardavam quem lhes pagasse a cachaça.” (JURANDIR, 2008, p. 43), verdadeiro “Senhor absoluto, ‘rei’, [...]”, como identificaria Vicente Salles (1992, p. 370).

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Missunga passa uma temporada na ilha, dividido entre o tédio e solidão, em uma disposição mórbida de espírito, desejando apenas “[...] uma inércia em que todos os desalentos se afundassem, todos os vagos ímpetos morressem para sempre. Seria assim, talvez uma verdadeira experiência da morte, um sono profundo no rio [...]” (JURANDIR, 2008, p. 33). O jovem, por conta, em grande parte, do ócio que lhe permite olhar o que se passa ao seu redor, começa, porém, a se erguer contra as práticas do pai, perpetuadoras do poder da família à custa da miséria, do desamparo e da exploração da gente humilde: – Missunga, vai na vila pra mim. É o diabo daqueles papéis. Vai que estou me sentindo mofino-mofino. A modo de uma quebreira. E, viste? O Lafaiete que acabe logo aquela escritura. Abrindo repentinamente os olhos, Missunga soltou sem querer: – Papai, fal... Mas se conteve. – Que você ia dizendo? – Nada. A pergunta do pai, num tom indiferente, traía uma hesitante censura, como se houvesse entendido o filho, o que o surpreendia. Para que quer saber? Entende alguma coisa disso? Conhece lá o mundo, o que nos força a lei das circunstâncias? No entanto, jamais podia acreditar que seu filho seria capaz de interpelá-lo. (Idem, p. 33-34)

Oposição latente, ainda atravessada por hesitações de ambas as partes. Mas, na continuidade da narrativa, fica explícito o desejo de Missunga de tomar o lugar do pai.

[...] o anel sempre lhe foi uma obsessão na infância. Uma tarde, viu o pai com o dedo sangrando, o anel tornara-se tão vivo, mais rico, mais obsessionante naquele sangue. Como se lembra muito bem. [...] Seu pai! Com essa exclamação que fez a si mesmo, Missunga invejou-lhe aquela velhice ciosa ainda do seu ardor, quase insinuante e tocada, muitas vezes, daquela patriarcal jovialidade com que Coronel Coutinho sabia dominar os sítios e a vila de Ponta de Pedras, os lagos e fazendas de Cachoeira. (Idem, p. 34)

O anel e a cor vermelha, símbolos de poder real, sobrepostos ao sangue que escorre, desejo de assassínio, que torna ainda mais vivos os símbolos do poder a ser usurpado. Missunga, contudo, apesar da tímida vontade de erguer-se, ainda tem sua compreensão de mundo arraigada na naturalidade das contradições, justificando-as como obra da “Fatalidade”: “Missunga apanhara no ar a grande palavra: Fatalidade, para explicar os champanhes, o surdo-mudo que o seu parente

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Guilherme explorava, a morte do garçom e as crônicas do Manfredo.”49 (Idem p. 44). O jovem herdeiro sente-se ainda impotente, sem rumo e entediado, o que aprofunda aquela disposição mórbida: “Como tudo lhe parecia morto naquela vila tão vazia como o seu destino. Sentou-se num banco do largo, desejando, com uma crueldade de criança, ver um curumim daqueles com a cabeça sangrando, a perna partida...” (Idem, ibidem). Diante dessa situação de vazio existencial, a sedução de mulheres é um dos passatempos de Missunga. Alaíde é apresentada ao leitor nesse contexto. “Era cunhatã de primeira lua quando Missunga dançou com ela numa festa em Paricatuba. Depois, no mormaço da tarde canso de errar pontaria nos bichos do mato, ele ia ver aquele corpo crescer, verdoengo e macio que nem filho de bananeira. Era na barraquinha da tia de Alaíde.” (Idem, ibidem p. 62). Uma noite, o jovem a leva para o igarapé. “Não pôde evitar que Missunga a despisse, como descascasse uma fruta, tentou escapulir-se dos braços dele, as águas caíam da lua, branca era a terra, o homem, e só a noite, com peludo e escuro mistério, era o que Alaíde cobria com as mãos.” (Idem, ibidem). A sedução por Missunga é o destino de Alaíde: “Mais tarde havia de sentir-se fatigado. Um caboclo o substituiria. Para Alaíde, a sorte era aquela, tão natural como a de subir os açaizeiros, pescar camarão, entrar no cacuri onde os peixes se debatiam, que nem ela sob o ardor de Missunga [...]” (Idem, ibidem, p. 63). Em seu vagabundear pela vila, o rapaz acaba se aproximando pouco a pouco da gente pobre que ali habita. Busca criar vínculos com ela, com os que trabalham nas terras e nos rios de seu pai: “[...] tentou falar pedir a um deles qualquer coisa, falar-lhes para que uma intimidade os unisse, não pensou bem no que queria, pelo menos teve desejos de ir com eles armar camboas para peixe nas praias de Mangabeira e Marajó.” (Idem, ibidem, p. 67). Enquanto isso, ele e Alaíde mantêm um romance, ela o atraindo como sereia cantando 50: “[Alaíde] ficava com água até o peito lambendolhe os seios e cantava. Missunga dizia que era o canto da maré que Alaíde cantava.” (Idem, ibidem, p. 78). Em uma cena, na qual Missunga participa de uma reza com moradores da vila, o rapaz tem uma espécie de epifania do vazio de sua vida: “Missunga preso a seu mundo [...]. Rico e inútil, sem

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Anteriormente, o narrador apresenta alguns momentos da vida do jovem em Belém, onde frequentava a alta sociedade. Ao contar dos bailes de que Missunga participava, cita um episódio: “Um garçom, ao servir os músicos, caiu botando sangue pela boca, o cadáver retirado pelos fundos do clube e o baile continuou ‘esplendoroso e seleto’, como disse depois a crônica do Manfredo.” (JURANDIR, 2008, p. 43). 50 Uma leitura mais detida de Alaíde tendo o mito das sereias como chave está presente na dissertação de mestrado de Luís Guilherme dos Santos Júnior, defendida em 2006 na Universidade Federa do Pará.

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saber coisíssima; não dava para nada.” (Idem, ibidem, p. 84). Nesse momento, a diferença social entre sua classe e a daqueles que ali estão se mostra de modo violento:

Velho Deus da doceira Benedita, não és mais o meu Deus. Meu Deus é o da Basílica, é de um Papa que também chama Pontífice ou Santidade, Pio ou Leão, num trono de ouro fala difícil para o mundo. Nossa Senhora não ouvirás meus irmãos sem nome nem as prostituídas pelo meu pai e meus tios, santa do Agnelo, o bêbado, do Marcelino, o ladrão e do Ciloca, o leproso. És também a santa do meu pai, lhe dás boi gordo, vaqueiros mansos e alta nos preços da carne para que haja mais altar e mais vitral na Basílica. (Idem, ibidem, p. 85)

Não é à toa que seja nessa passagem que apareça pela primeira vez na narrativa o trecho do romance Dona Silvana. A estrofe, recorrente em Marajó, diz o seguinte: “Cavaleiro de meu pai/Dáme um jarrito d’água/Se te der água Silvana/tenho a cabeça degolada” (SALLES, 1992, p. 374). Missunga encontra-se, aqui, na situação delicada do cavaleiro, dividido entre levar a ajuda aos prisioneiros do poder do rei e ter que obedecer a esse mesmo poder. Missunga faz a opção por aproximar-se do povo, voltando-se contra as injustiças que se abatem sobre ele. Seu primeiro gesto heroico se passa na venda de Calilo, o sírio, quando este insiste em vender, a um grupo de mulheres, postas apodrecidas de peixe: – [...] Levam ou não levam o pirarucu? – Podre? – Como está vendo, doutor, esta é a vida de um negociante. Missunga ergueu-se rápido, silenciosamente, apanhou os restos do peixe podre e atirou na lama onde os porcos fossavam. Calilo não fez mais um só gesto. As mulheres entreolharam-se no espanto geral. O rapaz encaminhou-se para o trapiche, o sírio o alcançou. – Doutor, eu estava brincando com elas. Eu não ia vender, não, não ia. Missunga bateu-lhe, de leve no ombro: – Não foi nada. Estava podre, não estava? Afinal, seu pai era culpado, ele, como filho, também culpado. (JURANDIR, 2008, p. 98)

O Príncipe se ergue para redimir a si e aos que se encontram vergados sob os desmandos do Déspota e de seu séquito (Calilo, o comerciante; Lafaiete, o tabelião; e outros ligados à autoridade de Coronel Coutinho). Porém, a escolha do rapaz faz com que o poder real volte-se contra ele. Seu pai o adverte de que é preciso ir embora da vila e separar-se de Alaíde, pois aquele não seria lugar para um jovem como seu filho: “– Não sabe o que é mato, não sabe o que é uma cabocla quando pega rapaz... assim... Você lá conhece o que é ruindade de índio. De índio! Afinal, você deve partir, meu filho.” (Idem, ibidem, p. 100). Missunga, contudo, começa a fazer planos para a terra, pretende

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instaurar melhorias, novas formas de cultivo, um novo tempo de modernização, felicidade e prosperidade, desejando encerrar a época de seu pai, época de miséria e violência selvagem.

Missunga olhava o estirão, uma ou outra samaumeira grande e pensava: Pudesse derrubar tudo isto. Estender minhas plantações. Ali um trapiche. O sírio expulso. Adiante o armazém, casas de colonos, o arrozal nas baixas. Algodoais branquejando na luz da manhã. A trepidação dos tratores. Caminhão buzinando longe na estrada e a felicidade entrando pelos olhos de toda gente. O mato, a gente com sua miséria, a bicharada, tudo isso pertencia ao Coronel Coutinho, Senhor seu Pai. (Idem, ibidem, p. 102)

Também traça planos para Alaíde: tirá-la do Marajó e libertá-la de sua sina, levá-la para Belém e instalá-la em um Palácio, transformando a Borralheira em uma digna Princesa:

Devia àquela cabocla um palacete em Belém, as passas, os grandes pães que D. Ermelinda [madrasta de Missunga] mandava buscar. Imaginava luvas para aquelas mãos que arrancavam guelras, escolhiam camarão, reviravam lama, apanhavam turu no buraco dos paus podres. Um luís-quinze para aqueles pés endurecidos e chatos que caminhavam léguas no mato, pé de caçadora e mateira. (Idem, ibidem, p. 123-124).

A referência à narrativa da Borralheira fica evidente na atenção que o narrador dispensa ao pé de Alaíde, a ser enfeitado com o calçado sinônimo de elegância para a época, o luís-quinze, do mesmo modo como os pés de Borralheira foram ornados com uma peça feita em ouro e prata. O paralelo entre Alaíde e Borralheira será melhor trabalhado no próximo tópico deste capítulo, a fim de reforçarmos, tendo-o como exemplo, a ideia que viemos perseguindo: a de como o romancista, a partir do choque do maravilhoso, do encantamento e da ilusão com a realidade, alcança uma imagem desta em sua dinamicidade. Continuemos, por agora, com a narrativa do heroísmo de Missunga e de sua rebelião contra o despotismo paterno. O jovem Príncipe põe em prática o plano de criar seu próprio reino, aproveitando a ausência do pai, que fora a Minas Gerais em tratamento de saúde. Missunga rebatiza o sítio em que vivia já com Alaíde com o nome de “Felicidade”: – [...] Sabe duma coisa, vou botar nome na terra. – Mas o nome não é antão Santo André? – Que Santo André. Isso é coisa do passado. Batizo com o nome de minha escolha. Não quero nome de santo. – Oh! Herege. – Bem, já achei. É um segredo.

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[...] – É Felicidade, ouviu? Felicidade. E você vai já-já aprender a soletrar esse nome, está me ouvindo? Compreendia que estava gritando também para si mesmo. (Idem, ibidem, p. 164)

A recusa do nome de santo mostra bem o intuito de romper com as tradições herdadas, com as superstições que justificam as desigualdades por meio de um artifício sobrenatural, metafísico – como o próprio Missunga tentara, imputando as dores do mundo à cega Fatalidade. Mas agora, o jovem quer ele mesmo construir o mundo novo, sob o signo da Felicidade. O rapaz logo convoca homens para o trabalho nas terras. Selando o rompimento com a herança de desmazelo perpetuada por seu pai, Missunga trata de implantar as melhorias já nas condições de vida e trabalho desses homens.

Os instrumentos não bastavam. Surgiram mais trabalhadores. Famílias pediam para armar novas barracas. Missunga mandava levantar um rancho. Como descobrisse, na loja do pai, um estoque de sapatos de pano, ofereceu-os aos caboclos. – Quero que andem calçados. (Idem, ibidem, p. 165)

A generosidade do novo patrão maravilha a todos que vão à Felicidade em busca de trabalho. Em uma cena, ele mandar abater as vacas velhas da fazenda do pai e distribui a carne entre as famílias dos trabalhadores: “Carne, cochichavam quase a medo, as mulheres grávidas como se tudo aquilo fosse um sonho.” (Idem, ibidem, p. 166). A vontade de Missunga se afirma ao receber um telegrama de Coronel Coutinho, informado dos feitos do filho por Lafaiete, o tabelião. Ao ir tomar satisfações com este, ele ameaça: “Nunca se meta na minha vida. Poder com minha vida, nem meu pai.” (Idem, ibidem, p. 167). O rompimento entre as eras do déspota Coronel e a de Missunga parece definitivamente selado, tendo este instaurado um reino de justiça e harmonia. A fama das terras de Felicidade se espalha pela região e a elas acorrem levas cada vez maiores de trabalhadores, querendo seu quinhão de felicidade e sonho. “Caboclos do Muaná apareceram pedindo trabalho. Traziam as famílias. Queriam carne fresca, quinino e calomelano.” (Idem, ibidem, p. 171). Mas o sonho vai sendo tingido de cores sombrias, e a história que poderia ter sido a da vitória da justiça sobre a perpetuação dos desmandos do poder ganha um acento cada vez mais desesperador, destruindo a positividade construída até então. “Felicidade? Para amanhã esse problema. Os dias não findam, os sofrimentos aumentam e como pensar em toda aquela desarrumação tão difícil, Senhor, de Felicidade?” (Idem, ibidem, p. 193). Assim Missunga reage à Felicidade, ao ver seu projeto desandar na falta de organização e

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estrutura. A miséria e o caos se espalham na terra superlotada de trabalhadores: “Os homens, esfalfados, com verminose e desmanchos, sujavam os caminhos, as mulheres apanhavam açaí e folhas para os casebres.” (Idem, p. 194). A aproximação entre o Príncipe e seu povo se transforma em desconfiança e medo, advindos de possíveis conflitos por conta da pobreza que se alastra sobre Felicidade: “[Missunga] Lembrou-se que aqueles homens reunidos assim podiam revoltar-se, não saberia como subjuga-los.” (Idem, ibidem). Também sobre sua relação com a moça humilde se abate a decadência e o desânimo, pois agora “[...] parecia tão separado de Alaíde” (Idem, ibidem, p. 96) – os sonhos de Palácios e Realeza se desfazem na miséria de Felicidade. A utopia de Missunga, que se tornou maldição, chega a um fim definitivo com o retorno do Coronel Manoel Coutinho, que, para alívio do rapaz, despede todos os trabalhadores e os manda ir embora das terras, destinadas a negócios com empresários japoneses:

[...] inesperadamente, chega o Coronel Coutinho. Foi, na verdade, grande alívio, concluiu Missunga que viu o pai sem trazer a fúria que dele se esperava, dirigir-se aos trabalhadores: – Agora é arrumar as bagagens e ir embora. Se arrumem. [...] Dêem o fora que isso vai pras mãos dos japoneses. (Idem, ibidem, p. 219)

A realidade do poder de Coronel Coutinho se impõe e desfaz a ilusão de Felicidade. Missunga retorna contente à vida de irresponsabilidade que levava antes, vadiando pela vila, em caçadas pelo mato e em novas seduções, dedicando-se a conquistar outra moça, moradora da vila, chamada Guíta51, sua amiga de infância. “Era assim o caminho aberto para se entreter unicamente com Guíta e, coisa estranha, Guíta era-lhe, agora, tão calada e tão fácil como a própria irresponsabilidade.” (Idem, ibidem, p. 219-220). Missunga acaba confirmando, ao assumir o caso com Guíta, a sina de Alaíde, a de ser usada e abandonada – a mesma contra a qual ele se propusera lutar (com a morte de Guíta, que engravidara do jovem, Missunga acaba retomando sua ligação com Alaíde, tentando, deste modo, ainda uma vez, confrontar a autoridade do pai). O Príncipe abandona

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Não nos deteremos na personagem Guíta, apesar de ela ser um dos personagens principais do romance. Ao contrário de Alaíde e Orminda, Guíta parece estar diretamente subordinada ao personagem Missunga, funcionando no romance apenas como um símbolo da inocência e da irresponsabilidade da infância a que o rapaz procura retornar, não ganhando, na narrativa, contornos individuais muito definidos. Nesse sentido, o narrador nos diz, sugestivamente mesclando a imagem de Guíta, a infância e a vontade de irresponsabilidade que Missunga persegue já descrente do sonho de Felicidade: “Guíta chamava-o, envolvendo-o com os fantasmas da infância morta. Para vingar-se do engano de Felicidade teria de inventar naquela noite mesma um baile na Intendência, ficar bêbado, dar gritos, levar os músicos para tocar, no cemitério, uma serenata em torno na sepultura do avô. Voltando ao baile, despir-se-ia no meio do salão, correria rumo da igreja para beijar Nossa Senhora no altar.” (Jurandir, 2008, p. 212).

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seus grandes planos de revolução 52 e retoma a fatalidade como justificativa e naturalização das injustiças e de seu próprio fracasso: “Missunga acreditou mais uma vez na fatalidade, achou estúpido pensar muito nisso e idealizou, para o dia seguinte, uma caçada. Levaria Alaíde e numerosos cães...” (idem, ibidem, p. 220). O fio narrativo de Marajó é, centralmente, a narrativa de Missunga e de seu plano utópico, até mais ou menos a metade do romance, a partir da qual outra dinâmica se instaura: a de negatividade e consolidação daquilo que parecia poder ser alterado, com Missunga assumindo e perpetuando os negócios do pai, quando este falece. Dalcídio Jurandir manipula vários elementos dos contos maravilhosos: o Rei (em seu caráter despótico absoluto), o Príncipe (que se mostra o bastião de uma era de justiça) e a Borralheira (que ilustra a possibilidade de transformação das condições e restauração do equilíbrio perdido diante do desmando do poder). Porém, o autor frustra aquele efeito característico do conto, a satisfação da “moral ingênua”, e contrapõe a esta a imoralidade da ordem do real, da exploração das gentes humildes por uma estrutura de poder que se perpetua através das gerações, alcançando, portanto, pela negação do conto, a imposição do trágico na construção de um anticonto, e, por meio deste, a explicitação dos mecanismos da realidade em seu decurso: Marajó, quando se foca a leitura sobre Missunga, mostra-se como a representação da consolidação trágica da exploração perpetrada pelos detentores do poder. Missunga aceita por fim a ordem do mundo em que vive como obra inexorável da Fatalidade: “Teria forças para lutar com o pai? Para que inquietar-se, afinal?” (JURANDIR, 2008, p. 284). Uma ordem que se inscreve no mundo, como algo natural, imperceptível em sua arbitrariedade, tanto para aqueles que gozam de seus benefícios, como os coronéis “[...] tão seguros de seu poder, de sua vontade e de sua inocência ante a injustiça e o sofrimento, que pareciam crianças. Não havia neles receio, dúvida [...] nenhuma necessidade de consciência e mudança.” (Idem, ibidem, p. 352), quanto para muitos daqueles que sofrem suas mazelas e buscam consolação no álcool, nas superstições e na religião: “Tom de viola, cadência de tambor o reque-reque como voz de sapo no acompanhamento. Manuel Rodrigues batia o tambor com o ar sonolento e os foliões erguiam, humildemente, as vozes de lamentação e súplica, para que os corações ficassem dominados.” (idem, ibidem, p. 228).

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Mas não os de reforma. Missunga, em vários momentos do romance, se mostra um grande “modernizador” dos negócios agrários de seu pai, como é visível no trecho em que o rapaz planeja acusar Manoel Raimundo, administrador das terras de Coronel Coutinho, de furto, para que assim possa assumir o cargo e implantar mudanças nas formas de produção: “Aumentaria o ordenado dos vaqueiros. Fundaria uma fábrica de laticínios. Uma charqueada. Contrataria um técnico suíço, seus queijos ganhariam exposições.” (JURANDIR, 2008, p. 211)

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Sua integração nessa ordem é intermediada pelo personagem Manuel Raimundo, administrador das terras de Coronel Coutinho e mantenedor da ordem representada por este. Em diálogo com Missunga, o administrador o adverte de suas relações próximas com o povo e expõe a lógica do zelo e da responsabilidade por aquela ordem, que deveria guiar as ações e decisões do rapaz:

Meu filho, você é muito moço para compreender o que é uma responsabilidade. Aqui deve haver uma ordem senão eles montam em nosso cangote. Seu pai sabe. São meus zelos de compadre e amigo também. Você amanhã vai saber. Se você me desmoralizar uma ordem, a disciplina está perdida. [...] Manuel Raimundo desenvolveu a sua lógica de administrador: responsabilidades, zelo! Responsabilidade, zelos... (Idem, ibidem, p. 304)53

Coronel Coutinho morre, abatido por um colapso em ato sexual com uma das muitas mulheres que o serviam: “Um fim conveniente a um Coutinho. A morte o apanhara em flagrante, o búfalo morrera por força da própria vitalidade.” (Idem, ibidem, p. 389), e com isso completa-se a reconciliação de Missunga com a ordem daquele mundo, simbolizada pelo ato de herdar e aceitar a herança: “[...] se deixara envolver pelo único sentimento real e total, o da posse universal da herança poupada e tranquila.” (idem, ibidem). Missunga toma posse desse mundo e nele desempenha o papel de ser todo-poderoso que deve regê-lo e zelar por sua continuidade:

Depois de examinar as contas da marchantaria, conversou longamente com o advogado, o gerente, os caixeiros e com Manuel Raimundo. Respirou, alegremente cansado, e afirmou que aquele dia era, em verdade, o seu primeiro dia de trabalho em toda vida. – É o meu primeiro dia de criação. [...] No segundo dia de criação, decidiu visitar o seu domínio com o administrador. (Idem, ibidem, p. 395)

A presença de Manuel Raimundo ao lado de Missunga assevera a vontade de continuidade da ordem herdada, pois se antes o moço desejava que o pai demitisse o administrador para que pudesse implantar seus projetos reformadores, agora o empregado evidencia-se como peça fundamental da engrenagem que permite o funcionamento da ordem: “[...] era preciso pensar na

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Este trecho continua do seguinte modo: “E afundou-se na rede, sem ar. Tentou erguer-se. Chamou pela filha que apareceu de boca aberta, cheia de dentes de ouro.” A perspectiva histórico-filosófica de Dalcídio Jurandir, de extração marxista, se insinua muito sutilmente nessa passagem, que faz referência à asma de que sofre o administrador Manuel Raimundo: representante de uma ordem que, no romance, se afirma, ele traz em si a marca da decadência e da dissolução por que passará, pois esse é o caminho da própria História – dialética, suas configurações não se mantêm eternizadas, por maiores que sejam os esforços daqueles que se empenham em eternizá-las.

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doença de Manuel Raimundo, a asma progredia e isto constituía perigo para a administração da fazenda.” (Idem, ibidem). O capítulo 49 abre-se do seguinte modo: “Manuel Coutinho, Manuel Raimundo, e as duas filhas apearam.” (Idem, ibidem, p. 407). Missunga abandona o apelido, que marcava sua proximidade com o povo humilde e assume a identidade de Coutinho – a mudança do nome é traço ritualístico que explicita a transformação da natureza daquele que tem o nome mudado. No entanto, “Missunga”, apelido dado por Guíta ainda na infância, já guarda em si mesmo a ilusão que era a aproximação entre o herdeiro do Coronel e o povo, pois, como diz Salles: “O apelativo de Missunga [...] indica, pois, o ‘sinhozinho’ da melhor tradição brasileira e está expresso pelo próprio étimo quimbundo: mi ou mu, prefixo diminutivo, e sunga, menino.” (SALLES, 1992, p. 370). “Missunga”, esse “nome sem explicação nem origem54, um nome de brincadeira ou faz-de-conta” (JURANDIR, 2008, p. 104), constrói uma ilusão de horizontalidade das relações, que posteriormente é desfeita com o assumir de Manuel Coutinho, evidenciando a real verticalidade da hierarquia. Ainda neste capítulo 49, nos é mostrado o esforço de curar o administrador pelas práticas de pajelança de mestre Jesuíno:

Nas últimas semanas, Manuel Raimundo piorava e o patrão se cansara de ouvir as filhas do velho insistirem que os remédios estavam matando o pai e ali só mesmo o poder do mestre Jesuíno. O fazendeiro queria partir para o sul. Aquilo o contrariava já além do limite a que se permitia contrariar. Ter uma propriedade exigia, com efeito, responsabilidade [...] (Idem, ibidem, p. 407-408)

Fica evidente o compromisso de Manuel Coutinho com a perpetuação do mundo de seus antepassados, a ponto de abster-se da própria vontade em nome da “responsabilidade” de zelar pelo mundo herdado, para o qual Manuel Raimundo é fundamental. Assim se encerra a participação de Missunga/Manuel Coutinho no romance: com a aceitação, por parte deste, da ordem instituída e herdada e seu esforço em zelar por ela. A negatividade que o romance Marajó apresenta, acerca da possibilidade de subversão da ordem imposta pelo poder dos exploradores e dos patrões, aparece como a negação de um 54

Atente-se para o corte com as referências concretas de espaço e tempo que Jolles identificara como necessário para o efeito do maravilhoso: do mesmo modo como “Missunga”, o nome de faz-de-conta que não tem origem certa, é apagado para a assunção de “Manuel Coutinho”, que marca explicitamente a origem do indivíduo, também podemos ler o próprio título do romance segundo esse raciocínio, pois é sabido que um dos títulos que o autor cogitou era o de “Marinatambalo” (vide a “Introdução” deste trabalho), antigo e mítico nome da ilha do Marajó, sem origem precisa. No entanto, o autor deu à obra o nome definitivo de “Marajó”, como a marcar essa passagem da imprecisão mítica para a concretude histórica.

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pressuposto básico da filosofia marxista da história, que é o próprio conceito de “progresso”, o qual, para Hobsbawn, comentando a filosofia marxista da história seria “[...] o conteúdo da história em sua forma mais geral.” (MARX, 2006, p. 15). O estudioso aponta para a centralidade desse conceito para o pensamento marxista:

Para Marx, o progresso é algo objetivamente definível, que indica, ao mesmo tempo, o que é desejável. A força da crença marxista no desenvolvimento de todos os homens não depende do vigor das esperanças de Marx neste sentido, mas da pretendida justeza da análise, segundo a qual é neste rumo que o desenvolvimento histórico, finalmente, conduzirá a humanidade. (Idem, ibidem, p. 16)

A frustração da ideia de progresso no romance dalcidiano, em que possa parecer contraditória com o sistema de pensamento que embasa a compreensão do próprio romancista e que se fundamenta, como vimos anterioremente, na crença na decadência da cultura burguesa e do mundo capitalista e ainda na emergência de uma nova sociedade, a comunista revolucionária, mostra-se, outrossim, como o cuidado em construir uma imagem da realidade histórica em que figurem as vacilações e percalços do próprio desenvolvimento, compreendido, segundo as palavras já citadas do próprio romancista naquele seu artigo Romances, de 54, como um “processo longo e doloroso”. Para exemplificar a complexidade da dinâmica do “progresso” no pensamento marxista, retomemos a tensão que haveria entre o livre desenvolvimento do indivíduo e as formas tradicionais de comunidade (mais precisamente, as pré-capitalistas), tal como a apresenta Karl Marx:

Em todas estas formas, o fundamento da evolução é a reprodução das relações entre o indivíduo e sua comunidade aceitas como dadas [...] e uma existência objetiva, definida e predeterminada seja quanto ao relacionamento com as condições de trabalho, de tribo, etc. Tal evolução é, pois, limitada desde o início e se os limites forem transpostos seguir-se-á a decadência e a desintegração. [...] o livre e pleno desenvolvimento do indivíduo e da sociedade é inconcebível, porque tal evolução entre em contradição com o relacionamento original. (MARX, 2006, p. 79-80)

O que se tem em Marajó, mais especificamente ao se enfocar Missunga e a aceitação, por parte deste, da ordem do mundo, é, portanto, a ênfase na reprodução das relações arbitrárias que limitam o desenvolvimento dos indivíduos (tanto daqueles sob jugo dessa ordem quanto dos que a mantêm, como o próprio Missunga, que se abstém de afirmar-se enquanto indivíduo para assumir suas “responsabilidades”). No entanto, o próprio romance aponta para o revés dialético dessa situação, qual seja, a contradição que emerge entre a reprodução dessas relações e a existência

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objetiva do indivíduo em suas relações de trabalho e com a comunidade – contradição que insinua a desagregação e decadência do sistema (em uma formulação clássica: a contradição entre as forças produtivas e as relações de produção, motor da revolução social). Esse segundo viés se explicitará pela leitura da personagem Alaíde, a qual ilustra, assim como pudemos observar em Missunga, a derrocada da ilusão e do encanto, mas que, ao contrário do herdeiro, aponta não para a submissão e continuidade do arbitrário, mas para o seu questionamento pela afirmação do indivíduo.

3.3. Alaíde: da injustiçada Borralheira à afirmação de si

O caminho de Missunga, herói frustrado, a Manuel Coutinho, filho que dá continuidade ao exercício de poder de seus antepassados, ilustra a emergência de uma negatividade que surge da realidade do mundo e sua ordem imoral, as quais frustram a vontade de justiça e fazem emergir o sentimento do trágico, tal como o especifica Andre Jolles. Esse choque pode ser observado também na personagem Alaíde, sobre a qual vislumbramos um aceno de justiça, que a retiraria do destino de moça usada e abandonada e a conduziria à felicidade, mas cuja frustração, porém, aponta para caminhos outros que a afirmação da ordem vigente, como veremos. Se Orminda é lida por Vicente Salles segundo a aproximação com a Silvana do romance popular, podemos ler Alaíde, por sua vez, segundo a chave da Borralheira, personagem principal do conto popular que se tornou conhecido por diversos nomes, como Cinderela ou Borralheira, em português, Cendrillon, na versão francesa de Charles Perrault, e ainda Aschenputtel, segundo a versão recolhida pelos irmãos Jakob e Wilhelm Grimm, que utilizaremos em nosso estudo como paralelo para a leitura de Alaíde. O conto se inicia com a morte da Mãe e, em sequência, o casamento do Pai com outra mulher, a qual tem duas filhas. Todas passam a morar com o Pai e sua Filha e, a partir daí, inicia-se uma vida de sofrimento para esta, tornada a empregada da casa: “A mulher trouxe consigo suas duas filhas, que eram belas e de bom aspecto, mas eram más e feias de coração. Então foi uma época ruim para a pobre enteada55.” (GRIMM, 1982, p. 112). A moça viu-se despojada de seus bens e forçada a uma rotina de trabalho e humilhação:

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“Die Frau hatte zwei Töchter mit ins Haus gebracht, die schön und weiβ von agesicht waren, aber garstig und schwarz von Herzen. Da ging eine schlimme Zeit für das arme Stiefkind an”.

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Elas tomaram seus belos vestidos, deram a ela um avental cinza e velho e um par de tamancos de madeira. “Olha só a orgulhosa princesinha, como ela está limpinha!” elas falavam, riam e a levavam para a cozinha. Então de manhã até de noite ela fazia o trabalho pesado, levantava cedo, trazia a água, acendia o fogo, cozinhava e lavava. Além de tudo isso, as irmãs lhe infligiam as maiores humilhações, zombavam dela e jogavam as ervilhas e lentilhas no chão sujo, para que ela tivesse de se abaixar e juntar tudo de novo. À noite, quando estava cansada do trabalho, ela não encontrava nenhuma cama, mas sim um lugar próximo ao fogão, onde se deitava nas cinzas. E como, por causa disso, ela parecia estar sempre empoeirada e suja, chamaram-na Borralheira56. (Idem, ibidem)

Entrementes, o Rei convida as donzelas do reino para uma festa, que durará três dias e durante a qual seu filho escolherá uma noiva. As duas irmãs logo se animaram para ir. Borralheira pediu permissão à Madrasta para ir junto com as outras duas, mas sua ida é condicionada a uma tarefa dificílima:

Borralheira ouvia e se lamentava, pois também gostaria muito de ir ao baile, e pediu à Madrasta permissão. “Tu, Borralheira”, disse, “estás toda coberta de pó e muito suja, e queres ir ao casamento? Não tens roupa nem sapatos e queres dançar!”. Como, porém, ela insistisse, a madrasta disse então: “Aqui eu despejei uma tigela cheia de lentilhas, no meio das cinzas. Se puderes recolher todas as lentilhas em duas horas, irás também ao Baile.” 57 (Idem, ibidem, p. 113)

Borralheira, para dar cabo da tarefa, pede ajuda a “todos os passarinhos do céu”58 (Idem, ibidem). Realizada a tarefa, a Madrasta não cede e despeja duas tigelas de lentilhas nas cinzas para serem recolhidas. Borralheira mais uma vez pede auxílio aos pássaros, que vêm socorrê-la. Realizada a tarefa, a Madrasta ainda assim não cede: “‘De nada adianta; tu não irás conosco, pois

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“Sie nahmen ihm seine schönen Kleider weg, zogen ihm einem grauen, alten Kittel an und gaben ihm hölzerne Schuhe. ‘Seht einmal die stolze Prinzessin, wie sie geputzt ist!’ riefen sie, lachten und führten es in die Küche. Da musste es von morgens bis abends schwere Arbeit tun, früh vor Tag aufstehen, Wasser tragen, Feuer anmachen, kochen und waschen. Obendrein taten ihm die Schwestern alles ersinnliche Herzleid an, verspotteten es und schütteten ihm die Erbsen und Linsen in die Asche, so dass sie wieder auflesen musste. Abends, wenn es sich müde gearbeitet hatte, kam es in kein Bett, sondern musste sich neben den Herd in die Aschen legen. Und weil es darum immer staubig und schmutzig aussah, nannten sie es Ascheputtel.” 57 “Aschenputtel gehorchte, weinte aber, weil es auch gern zum Tanz mitgegangen wäre, und bat die Stiefmutter, sie möchte es ihm erlauben. ‘Du, Aschenputtel’, sprach sie, ‘bist voll Staub und Schmutz und willst zur Hochzeit? Du hast keine Kleider und Schuhe und willst tanzen!’ Als es aber mit Bitten anhielt, sprach sie endlich: ‘Da habe ich dir eine Schüssel Linsen in die Asche geschüttet, wenn du dir Linsen in zwei Stunden wieder ausgelesen hast, so sollst du mitgehen’.” 58 “All ihr Vöglein unter dem Himmel”.

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não tens roupas e não sabes dançar; nós nos envergonharíamos’. Virou-lhe então as costas e apressou-se a sair com suas duas orgulhosas filhas59.” (idem, ibidem, p. 114). Borralheira vai à sepultura de sua mãe e clama sob a aveleira que ali nascera: “Arvorezinha, balança tuas folhas, joga ouro e prata sobre mim 60.” (Idem, ibidem). Com um vestido de ouro e prata e sapatos trançados com fios de seda e prata, Borralheira pôde ir ao casamento e não foi reconhecida por ninguém, nem mesmo por sua Madrasta e as filhas desta, as quais, como todos na festa, olharam para ela com estupor, pensando se tratar da filha de um rei estrangeiro. O Príncipe, por sua vez, encantou-se por ela e não quis nenhuma outra mulher para ser sua companhia durante os festejos: “O Príncipe veio ao encontro dela, tomou-a pela mão e a levou para a dança. Ele não quis mais dançar com ninguém, tanto que não soltava sua mão, e quando um outro se aproximava, para tirá-la para dançar, ele dizia: ‘Esta é minha parceira’.61” (Idem, ibidem). Ao anoitecer, a Borralheira precisava voltar para sua casa. O Príncipe ofereceu-se para acompanhá-la e assim o fez, até certo ponto próximo à casa da moça, no qual ela o despistou, sumindo-se por uma passagem no poleiro. Nos dias seguintes aconteceu o mesmo. Pássaros trouxeram seu vestido e seus sapatos ornamentados de ouro, prata e seda; o Príncipe dançava apenas com ela; ao fim, ela o despistava e sumia. No entanto, no terceiro dia, quando anoiteceu e Borralheira precisava ir embora, o Príncipe conseguiu que ela deixasse o sapato esquerdo, pois havia, anteriormente, besuntado a escada com piche, no qual o sapato ficou grudado. Tão logo amanheceu o dia seguinte, o Príncipe dirigiu-se à casa próxima da qual a moça sempre o despistava e chegou à casa de Borralheira, anunciando: “Somente aquela em cujo pé couber este sapato será minha noiva, e nenhuma outra62.” (Idem, ibidem, p. 117) As duas irmãs logo se animaram a experimentar o sapato, mas em nenhuma delas ele coube, apenas na Borralheira. O príncipe então exclamou: “Esta é a noiva! 63” (Idem, ibidem, p. 118) e a tomou em seu cavalo, levando-a consigo para providenciar seu casamento. No dia da cerimônia, estavam presente a Madrasta e suas duas filhas.

Quando o casamento com o filho do Rei se realizou, vieram as duas irmãs falsas, querendo intrometer-se e se beneficiar da sorte [da Borralheira]. Quando os 59

“‘Es hilft dir alles nicht; du kommst nicht mit, denn du hast keine Kleider und kannst nicht tanzen; wir müssten uns deiner schämen’. Darauf kehrte sie ihm Rücken zu und eilte mit ihren zwei stolzen Töchtern fort.” 60 “Bäumchen, rüttel dich und schüttel dich,/wirf Gold und Silber über mich.” 61 “Der Königsohn kam ihm entgegen, nahm es bei der Hand und tanzte mit ihm. Er wollte auch sonst mit niemand tanzen, also dass er ihm die Hand nicht loβlies, und wenn ein anderer kam, es aufzufodern, sprach er: ‘Das ist meine Tänzerin.’” (Idem, ibidem) 62 “Keine andere soll meine Gemahlin werden als die, an deren Fuβ dieser goldene Schuh passt.” 63 “Das ist die rechte Braut!”

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familiares da noiva chegaram à Igreja, a mais velha estava à direita, a mais nova, à esquerda: pássaros vieram e bicaram um olho de cada uma. Depois, quando elas saíram, a mais velha estava à esquerda e a mais nova, à direita: vieram pássaros e bicaram o outro olho de uma e de outra. E elas ficaram cegas pelo resto da vida como punição por sua maldade e falsidade64. (Idem, ibidem) O conto da Borralheira exemplifica de modo bastante claro as considerações de André Jolles acerca da disposição do conto em satisfazer a moral ingênua e seu senso de justiça: a punição final encontra-se

com essa satisfação, restaurando a ordem, a felicidade da moça, com o castigo dos elementos que encarnavam a injustiça, as duas irmãs. De modo semelhante, na narrativa de Dalcídio Jurandir, esperamos que Missunga, o Príncipe, restaure a justiça do mundo de Alaíde, condenada por sua condição social de mulher pobre a um destino de exploração. No entanto, o Príncipe Missunga, desencantado em herdeiro de seu pai e transformado em um Coutinho, apenas a relega de vez àquele destino. Vimos anteriormente, ao tentarmos reconstruir a narrativa maravilhosa de Felicidade e como ela desembocaria em um Conto maravilhoso, como Missunga pretendia salvar Alaíde, ir contra a ordem de seu Pai, levá-la para um palácio na capital, orná-la com vestidos e sapatos de ouro e prata. No entanto, sua disposição de levantar-se contra a ordem do mundo vai se dissipando no decorrer do romance, até a reconciliação entre os dois. Neste sentido, Missunga, que efetivamente fugira com a moça, vivendo com ela em um barraco distante da vila e da vista de seu pai, vai reavaliando sua situação com Alaíde e seu papel como filho do Coronel Coutinho. Na cena em que este vai atrás de seu filho, disposto a trazê-lo de volta para suas terras, fica clara a vacilação do rapaz diante do poder de seu pai: “Aquela visita poderia desarmá-lo da disposição de ‘ir mais embora’ [...]. Ao se encontrar tão imprevistamente com o velho, voltaria a ser o filho, perderia aquele esboço de caráter que principiava a nascer com tanta indecisão.” (JURANDIR, 2008, p. 377) Missunga recusa-se a voltar, não tanto por um gesto heroico consciente, quanto por uma frágil combinação de teimosia e orgulho. “Missunga no quarto teve ímpetos de correr, abraçá-lo e ir com ele. Uma enorme confusão da vontade. [...] O esboço de caráter dissipara-se [...] e se levantou da rede, já decidido a partir: deu com Alaíde na porta e não os viu mais.” (Idem, ibidem, p. 381). Com a morte do Coronel, que se dá logo depois dessas cenas, o herdeiro sela seu retorno para o mundo de onde viera e separa-se de Alaíde. 64

“Als die Hochzeit mit dem Königsohn sollte gehalten erden, kamen die falschen Schwersten, wollten sich einschmeicheln und teil an ihrem Glück nehmen. Als die Brautleute nun zur Kirche gingen, war die Älteste zur rechten, die Jüngstezur linken Seite: da pickten die Tauben einer jeden das eine Auge aus. Hernach, als sie herausgingen, war dir Älteste zur Linken und die Jüngste zur Rechten: Da pickten die Tauben einer jeden das andere Auge aus. Nun waren sie also für ihre Bosheit und Falschheit mit Blindheit auf ihr Lebtag gestraft.”

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– Mando o quinino e tome logo duas cápsulas. Irá a Ponta de Pedras. Fica lá. O motor vem lhe buscar amanhã. Mando-lhe buscar. Você vai morar na vila. Mando fazer uma casinha. Lá ou Belém. Quem sabe? Estou, meu Deus, num mundo de coisas a fazer. [...] – Não me mande buscar. Não sou nada pra você, nada, nada. Você é das suas brancas. (Idem, ibidem, p. 391)

Missunga segue para dar continuidade à ordem instaurada pelos seus pares, proprietários e ricos. Alaíde segue seu caminho, sozinha, expulsa da sociedade que a estigmatiza como mulher “perdida”. O Príncipe não foi capaz de tomá-la consigo, nem no sentido de levar Alaíde para seu mundo, mundo dos “brancos”, nem no de assumi-la com seu mundo de gente humilde e explorada, colocando-se a seu lado e questionando a ordem que os oprime. Dado interessante, apesar de ser Missunga o personagem principal do romance, é com Alaíde que a narrativa se fecha, e seu desfecho é fundamental para compreendermos o sentido da construção estética empreendida por Dalcídio Jurandir. Vejamos, então, os últimos momentos da personagem em Marajó. Alaíde, após perder o filho que teria com Missunga, conhece ainda outro homem, Deodato, honesto trabalhador com o qual segue viagem, chagando a ir trabalhar em seringais para ajudar o companheiro. Deodato, todavia, morre durante a “rolação de toras”, trabalho perigoso de tirar os troncos cortados da mata. “Morto Deodato, juntar-se com outro homem? Não tinha feitio para isso.” (Idem, ibidem, p. 446). Alaíde, sozinha e estigmatizada (“Que seria Vampiro? Feiticeira? Possuída do demônio? Desencaminhadeira de homens? [...] Sorria, meu Deus, como havia tanta falância no mundo, como a língua dos homens tinha mais veneno que as jararacas.” [Idem, ibidem, p. 446]), ela se depara com seu destino, ou o destino que seria o seu, mas o questiona e decide não aceitá-lo:

Não seria mais como aquelas mulheres, nas palhoças úmidas com as remelentas e nuas crianças ao lado, esperando o tabaco para as resignadas e lentas cachimbadas, à beira do jirau olhando a maré e a solidão. Ou em torno dos mortos, o pires de sal em cima dos cadáveres, a última cera derretendo-se e dentro do quarto um menino geme, de olho virado o beiço roxo [...] Maginou, maginou, dia inteiro. Decidiu partir à noitinha. (Idem, ibidem, p. 447)

Alaíde volta à vila, mas sabendo-se diferente e sabendo que tudo seria diferente, o que se patenteia na estranheza com que encara aquele lugar antes familiar: “Caminhou no trapiche, temerosa, como estranha aquela vila estranha, apesar de todas aquelas coisas familiares que voltava a encontrar.” (Idem, ibidem, p. 451). Seu retorno já não é definitivo, mas apenas uma passagem para outro destino, pois aquele mundo já não é o seu. “Vou convidar Orminda para trabalharmos

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juntas em Teorá, na olaria, ou, por que não? em Belém, na fábrica. A vila estava mais abandonada, ninguém no trapiche nem no largo. [...]” (Idem, ibidem, p. 452). Em outro trecho, que marca muito nitidamente a mudança por que passara Alaíde, lemos: “Agora voltava. Compreenderiam todos eles a sua volta, veriam em seu rosto o quanto sofrera, o quanto trabalhara, a marca do aleive, que dois filhos perdera e suas pernas tremiam?” (idem, ibidem, p. 453). Essas transformações pelas quais a moça passou só foram possíveis porque o maravilhoso se desfez, porque o Príncipe não pôde salvá-la e o encanto, por fim, se quebrou. A narrativa aponta para a necessidade de superação da ilusão do maravilhoso, do encantamento, para que se alcance aquele desenvolvimento de si que Marx identificava como sendo uma necessidade do progresso histórico, que, enfim, é a história do progresso do indivíduo. Nesse sentido, abundam, em Marajó, os personagens ligados ao maravilhoso que são flagrados, pela narrativa, em plena decadência. Entre estes, Orminda, amiga de Alaíde, se destaca como a própria encarnação do Encanto, cuja morte testemunhamos no desfecho do romance. Ao voltar à vila, a moça procura por sua amiga para levá-la consigo. A personagem Orminda nos é mostrada no romance como a criatura livre, a “doida-doida” (idem, ibidem, p. 140), aquela de quem Leonardina, a pajé, diz: “Tens um jeito de bem sem cabeça. [...] Não vejo sossego no teu corpo. [...] que tu vai fazer danação por estas beiradas é o quem bem sei.” (idem, ibidem, p. 291). Esquiva dos códigos da sociedade, é constantemente equiparada ao sobrenatural: “Orminda foi achada na praia. Não nasceu da velha Felismina. Orminda nasceu da mãe-d’água” (idem, ibidem, p. 117), em outro trecho: “Orminda era mulher para andar nas histórias [...] lenda que não se podia esquecer mais.” (idem, ibidem, p. 249). No entanto, por conta dessa mesma liberdade e força que afronta a ordem existente pelo simples fato de sua existência, Orminda é estigmatizada e expulsa da sociedade “decente”, sendo sua sina vagar por vários lugares, como o faz Alaíde, sempre despertando o receio naqueles que estão ao seu redor. A própria transformação da personagem em algo mítico é já um modo de neutralização de sua força65. Tenha-se em vista a lenda que se tece em torno dela, a de sua imagem no chão da torre da Igreja em sinal de seus “pecados”:

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O Maravilhoso e o Encantamento presentes nas narrativas de Dalcídio Jurandir e advindos do universo do imaginário amazônico muitas vezes têm essa função de neutralizar, pela justificação sobrenatural, personagens e acontecimentos que seriam perturbadores para uma determinada ordem social. Lembremos da personagem Irene, de Chove nos Campos de Cachoeira, primeiro romance do autor: a moça desafiadora que conduz Eutanázio, protagonista do romance e irmão mais velho de Alfredo, à destruição e que, aos olhos dele, aparece como uma força primordial. Irene, ao engravidar de um filho de fazendeiro, parte da vila de Cachoeira e ganha tons lendários para os moradores do lugar.

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Nossa Senhora marcou Orminda no chão sagrado que a perdida profanou.[...] As mulheres falavam, deitou aquele corpo no soalho da torre, aquele corpo havia de apodrecer em vida, caindo aos pedaços. Teria subido, bêbada, mundiada pelo sacristão, teria sido por vontade da própria Nossa Senhora para melhor castigá-la? Mas o sacristão, jurava, não era o Manuel Ângelo. Manuel Ângelo até hoje nega. O demônio que levou Orminda. Nossa senhora viu e marcou a linha daquele corpo perfeição que só no seu a santa via. (idem, ibidem, p. 423)

E é justamente “apodrecendo em vida” que Alaíde encontra Orminda, agonizando em uma rede na casa de sua mãe. A personagem apodrece não apenas fisicamente por conta da doença que a aflige, mas também espiritualmente, destruída pelas marcas sociais que se abateram sobre ela, como se depreende do diálogo entre Alaíde e a doente que, entre o delírio e a memória, se mostra mais uma vítima da ordem opressiva dos homens e do poder exercido por eles. – Cata, prima, cata... Tenho... piolho... – Quem vai te catar, mana, é Alaíde. Sou eu, a Alaíde. Falava para a doente com se suas palavras fossem remédio. E tinha todo o cuidado para não lhe fazer um susto como quem dava o remédio, devagarinho, a uma criança. – Cheguei agora, Orminda. Venho te buscar para ir comigo pra Belém. Tu te cura e nós vamos. Tu tem que me conhecer, Orminda, mana. – Cata, prima... Estou na igreja. Me marcaram. – Tu estás comigo e eu te defendo, mana. Mas me conhece. Olha, é a Alaíde. Me ouve! Nhá Felismina voltou e falou alto: – Minha filha, é a Alaíde que tu chamava tanto, minha filha. A doente abriu os olhos, obscuramente via a torre da igreja, seu corpo marcado, o sacristão a levava, quando deu por si quis correr pela escada da torre, ele a segurou, era mesmo um demônio e ela tombou aterrorizada. Uma escuridão desceu, a torre pesava sobre o peito. (idem, ibidem, p. 460)

Orminda, a sobrenatural, é o próprio Encantamento, o próprio Maravilhoso que se desfaz diante da realidade da violência66. Contrastando as duas mulheres, Alaíde e Orminda, que durante a 66

Neste sentido, outros personagens ilustram a decomposição do maravilhoso, a qual deixa ver a realidade em seus aspectos mais negativos. Leonardina, a pajé que acolhe Orminda, um dos símbolos da realização do sobrenatural e do encantamento na ordem da realidade, é mostrada inicialmente como “[...] flor dos pajés dos campos e dos lagos do Arari” (JURANDIR, 2008, p. 292), porém, posteriormente, aparece desfeita de seu poder mágico: “Nhá Leonardina cinge o corpo com a faixa, invoca, baixinho o caruana e corre em direção ao lago. [...] A pajé sentou à beira do lago, as mãos murchas e trêmulas, a voz tão cansada. [...] a pajé perdia o poder de invocação. Aquelas palavras não tinham mais significação para o caruana com quem a velha Leonardina tivera uma vivência tão longa e tão misteriosa. E em vão Orminda tentava levantá-la e conduzi-la para a barraca. [...] Quem cortou a língua da feiticeira que os donos do mundo temiam?” (idem, p. 335). Ciloca, o leproso que vive à margem da sociedade, é outra figura exemplar. Ligado também ao sobrenatural e às lendas, é um dos narradores da comunidade, mas ilustra, a partir da própria doença, a destruição dessa esfera encantada. Sendo obrigado a deixar a vila para ser internado em uma colônia de leprosos, Ciloca reflete: “Pôs a roupa num saco de lona, apanhou o livro de S. Cirpiano e sentiu saudade dos meninos para quem contava histórias, ensinava feitiço, pornografia e as proibidas descrições do amor. Sentia carinho por eles, era a sua família no serão da esquina, com o lampião apagado, onde soltava a imaginação, a sua desforra contra os adultos sãos [...]. Desapareceria. Que a desgraça o leve para as sucurijus, para as onças, as febres lentas e negras no fundo dos igapós.

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narrativa mostram-se bastante próximas, amigas, uma sempre procurando pela outra, vemos que, se esta, até então encarnando o vigor e a vitalidade a ponto de perturbar a ordem que as cercavam, tem seu desfecho na ruína e na morte, a primeira de certo modo triunfa, ou aponta para uma perspectiva (o trabalho na olaria, na fábrica em Belém), o que, dentro da atmosfera de Marajó, densa e nebulosa, já é por si mesmo um triunfo. Dalcídio Jurandir, portanto, constrói, a partir de Missunga, um anticonto que aponta para a manutenção trágica da realidade, com seu sistema imoral de perpetuação do poder e da exploração, frustrando quaisquer esperanças de ver o povo humilhado redimido por um benfeitor; a partir de Alaíde, também se configura o anticonto, com a perda da ilusão, da esperança de uma redenção pela ação valente do Príncipe: Alaíde torna-se, enfim, mais uma moça usada e abandonada à própria sorte. Mas justamente porque é abandonada à própria sorte, já sem ilusões, é que se confronta com a realidade e, a partir desse choque, insinua a afirmação de seus próprios atos, planejando ir-se embora para tentar a sorte em outros lugares. Desse modo, observamos como os motivos advindos dos contos maravilhosos, das lendas e das encantarias do imaginário são trabalhados pelo autor para construir um sentido estético específico, muito além da mera recolha e inserção desses temas em sua narrativa, a qual também não se resume no “retrato” dos desmandos sociais do coronelismo regional: com o aproveitamento e desconstrução do maravilhoso, a narrativa conduz para uma imagem dos percalços, das tensões e das vacilações das transformações históricas, que longe de se resumirem à ação maravilhosa de um Príncipe benfeitor, é atravessada pelo sofrimento e pela angústia de perceber, para usar uma frase antológica de Marx, que tudo o que é sólido se desmancha no ar. No capítulo seguinte, exploraremos essa mesma chave de leitura no romance Belém do Grão-Pará, publicado mais de uma década depois de Marajó, mas que compartilha com este último o mesmo princípio de construção estética: o desvelamento do real a partir do esfacelamento do maravilhoso.

Que seria dos meninos que ouviam as histórias coçando as feridas, daqueles comedores de terra sem Pedro Malazarte, a Bela Adormecida, os jantares na casa do rei que duravam a noite inteira? Pegou o saco de lona, ergueu a cabeça como para aspirar o sono dos pequenos amigos que sonhavam, fez um gesto para lhes dizer adeus e caminhou.” (idem, p. 356357).

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CAPÍTULO IV A EMERGÊNCIA DO REAL NO CHOQUE ENTRE O ENCANTO E A HISTÓRIA (II): UMA LEITURA DE BELÉM DO GRÃO-PARÁ

4.1. Belém do Grão-Pará: o sopro revolucionário da História Dali em diante não podia separar a palavra “pedra”, lembrada por ele como um substantivo, de um perfume que errava no ar. (Dalcídio Jurandir, Belém do Grão-Pará)

O romance Belém do Grão-Pará foi publicado em 1960 e, conhecendo os intervalos que existem entre a feitura das obras de Dalcídio e sua efetiva publicação, podemos pensar que ele foi produzido no decorrer dos anos de 1950, ou seja, mais ou menos contemporaneamente às posições do autor sobre o realismo e o aproveitamento da realidade histórica pelo romancista no corpo na ficção. Neste sentido, Belém do Grão-Pará é exemplar: amalgama a narrativa da família Alcântara e a chegada de Alfredo a Belém com o contexto da decadência econômica advinda da quebra do comércio da borracha e da queda de Antônio Lemos, o intendente que pretendeu modernizar a capital e cujos feitos representam uma verdadeira era na política do Estado do Pará. Apesar de ser Alfredo o protagonista do romance, o entenderemos principalmente como o romance da família Alcântara, Benedito Nunes (2004), pois é no seio da história dos Alcântaras que Alfredo se insere, quando finalmente chega a Belém, vindo de Cachoeira, na ilha do Marajó, para estudar na capital, trazido por sua mãe, Dona Amélia. A mãe de Alfredo é prima de Isaura, costureira humilde que mantém relações com a família de Virgílio Alcântara, em especial com sua filha única, Emília. Assim, por intermédio da costureira, a família acolhe o menino em sua estadia na capital. Alfredo encontra a família já amargando seu declínio social. Vemos, então, que a história é apresentada no romance in medias res, como nas epopeias: esse dado é bastante importante para a significação ideológica da narrativa, posteriormente voltaremos a ele. Porém, retracemos, primeiramente, a história da derrocada social da família de seu Virgílio, apresentada ao leitor por meio de fragmentos da rememoração dos personagens. Virgílio e sua mulher, Inácia, participavam ativamente da política lemista. Virgílio conseguira o cargo de administrador do Mercado Municipal, e Inácia destacava-se entre os membros da Liga Feminina, organizada em torno do Intendente:

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O Senador o havia inaugurado [o Mercado Municipal de São Brás] com rumorosa cerimônia cívica. No mesmo dia empossou o seu Virgílio. Foi d. Inácia quem lançou sobre a alva, a dominadora cabeça do Senador, na ala feita à entrada do Chefe no edifício, o primeiro punhado de flores. Ao fim da solenidade, o Senador fez questão de beber à saúde do casal, acariciar o queixo da menina Emília, bater uma chapa juntos para sair n’A Província. Assim d. Inácia Alcântara, da Liga Feminina, não pôde deixar de exibir o seu crescente prestígio junto ao Senador sem algumas lágrimas públicas. (JURANDIR, 2004, p. 57)

Em uma fala de Inácia, transparece a fartura que a família conhecera anteriormente, um “[...] tempo da champanhe escorrendo pelos babados, ensopando mangas dos fraques, das pipas rolando pelo corredor [...], tempo em que tínhamos a bem dizer o Mercado dentro da despensa na Vinte e Dois [...]” (Idem, ibidem, p. 47). Também na memória de Emília, a filha do casal, ficaram as imagens do tempo de outrora:

De suas lembranças do lemismo preferia a das paradas escolares, as aulas de piano, aquela viagem para o Bosque no bonde de luxo entre flores, fitas e muitas bandeiras do Pará e do Brasil; as duas pirâmides de lâmpadas policrômicas com as armas do município, as piras de gás, o redondel do Parque Batista Campos, onde viu os touros, a grande boneca alemã e o trem que corria na 22 pelo corredor. (Idem, ibidem, p. 72)

Sobrevindo, todavia, a queda do governador, a quem eram politicamente ligados, a sorte dos Alcântaras conhece um revés que os lança a um mundo bastante diverso daqueles que habitavam. Ainda é a rememoração de Emília que nos mostra o momento da virada: Depois, aquela noite em que os pais a medo e cochichando retiraram, como ladrões, o retrato do Senador da sala de visitas, o envolveram em jornais e o conduziram num saco, não se sabia se para a casa das tias ou para a baixa vizinha, onde os sapos instalavam sua assembléia permanente. (Idem, ibidem, p. 73)

Com a queda de Lemos, Virgílio perde o cargo de administrador do Mercado, mas consegue um emprego, de rendimento bem mais modesto, na Alfândega. O chefe da família Alcântara intuíra o desfecho do regime e realizara manobras no sentido de assegurar, pelo menos, um cargo que estivesse a salvo das inconstâncias políticas e que garantisse o sustento de sua família. [Virgílio] Recordava – em pleno lemismo – o espanto e o escárnio das senhoras quando lhes deu a saber que pleiteava na Alfândega um empreguito de cento e trinta mil-réis. Embora federal, era um lugar ridículo, para ser mais que indigno,

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de quem administrava então o melhor mercado da capital, farto de rendas e gêneros que abasteciam de graça a despensa dos Alcântaras [...] Virgílio, sem dizer nada em casa, empenhava-se a fundo para obter o lugarzinho. D. Inácia cismando: não havia nisso um sinal de que Virgílio considerava insegura e falaz a administração do Mercado e que o poder do senador Lemos, no Pará, vacilava? Empenho tão grande por tão mesquinho fim? Não era apenas ridículo, era de mau agouro. (Idem, ibidem, p. 56-57)

A família muda-se então da rua 22 de Junho para a casa de número 160, na Gentil Bittencourt. E é com a família já instalada na casa modesta e em uma rotina mais modesta ainda, vivida no ostracismo social, que o narrador abre a narrativa: Com a queda do velho Lemos, no Pará, os Alcântaras se mudaram da Vinte e Dois de Junho para uma das três casas iguais, a do meio, de porta e duas janelas, nº. 160, na Gentil Bittencourt. [...] A sessenta mil-réis de aluguel e mais seis de taxa d’água, sem platibanda, meia vidraçada, persianas, passeio ralo na frente e algum carapaná, podiam se dar por felizes naquele “ostracismo”, como dizia d. Inácia, a senhora de seu Virgílio Alcântara. Longe estavam da sorte dos Resendes, lemistas de cabo a rabo, hoje coitados se acabando numa palhoça dos Covões. [...] Ali morando, com uma e outra mão de oca na parede da frente, a família contava já os seus dez anos. Foi o tempo em que seu Virgílio engordou muito, a mulher também e a Emília ficou moça, gorda à semelhança dos pais. (Idem, ibidem, p. 45)

Esse é o percurso de decadência pelo qual Virgílio, Inácia e Emília Alcântara passam. Mas os signos do tempo de outrora permanecem no cotidiano da família: subjetivamente, com as memórias e a vontade de Emília de retornar à alta sociedade, e objetivamente, em alguns objetos e lugares da cidade, como o Cinema, símbolo de status que a família ainda se esforça por manter, e, principalmente, o piano alemão, presente na sala da casa e inútil em seu silêncio, símbolo de um tempo que foi e que não é mais. A permanência desses índices de outrora conferem à narrativa a atmosfera da decadência e da ruína 67 que emoldura a existência dos Alcântaras, levando Emília a desejar a reinserção na alta sociedade, a partir da mudança para a casa número 34, na Estrada de Nazaré – uma ruína no meio do espaço privilegiado da elite belenense. A própria silhueta dos personagens indica a transformação por que passou sua vida desde a crise política, que os lançou da agitação de sua pregressa vida social ao marasmo caseiro de seu tempo presente. Nos tempos do lemismo, Inácia é apresentada elegantemente esbelta: “Incansável e esbelta, d. Inácia conduzia estandartes e puxava o vivório nas passeatas e manifestações. O lemismo 67

A “ruína” é uma chave de leitura presente nos trabalhos de Pedro Maligo, Ruínas Idílicas: a realidade amazônica de Dalcídio Jurandir (1992), e de Marlí Furtado, Universo derruído e corrosão do herói em Dalcídio Jurandir (2002), a respeito dos quais trataremos no tópico seguinte.

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tinha sido seu melhor espartilho.” (Idem, ibidem, p. 67). Sobre a rotina caseira que agora preenche as ocupações de Inácia, o narrador diz: “Aos poucos foi saboreando novos cuidados menos brilhantes e mais estáveis, que eram o senhor preparo da mão-de-vaca, do cozidão, da feijoada, da maniçoba, do aluá, da genigibirra e da canjica em junho [...]” (Idem, ibidem). Esse detalhe, aliado a outros elementos textuais que serão apontados posteriormente, permite a passagem para a consideração de outra narrativa, a dos “três porquinhos”, que vem se mostrar como o suporte da estrutura da narrativa dos Alcântaras. Mais uma vez perceberemos os elementos do maravilhoso atuarem no romance de Dalcídio Jurandir, construindo esteticamente a representação dos meandros da história. James Orchard Halliwell foi o primeiro a recolher o conto popular dos três porquinhos e a compilá-lo em volume impresso, compondo, juntamente com outros contos, rimas e adivinhas, o livro The nursery rhymes of England, ainda no século XIX. Com o título de The story of the three little pigs, a narrativa conta os percalços de três porquinhos diante de um lobo que deseja devorálos. O conto se inicia com a despedida da mãe, que, passando necessidade, não podia manter os filhotes juntos de si, enviando-os então para buscar a própria sorte: “Era uma vez, uma velha leitoa com três porquinhos, e como ela não tivesse o suficiente para mantê-los, ela os mandou embora, para que procurassem a própria sorte.”68 (HALLIWELL, 1886, p. 37). Cada porquinho, em seu caminho no mundo, encontra um homem que leva consigo um material específico. O primeiro porquinho encontra um que carrega um fardo de palha. Ele pede ao homem que lhe dê a palha para construir uma casa para si. O homem dá a palha e o porquinho constrói sua casa. O lobo chega e bate à porta do porquinho, pedindo que este abra e o deixe entrar: “Porquinho, porquinho, deixe-me entrar”.69 (Idem, ibidem). O porquinho, é claro, nega. O lobo, contrariado, ameaça derrubar a casa com a força de seu sopro, e assim o faz, devorando em seguida o primeiro porquinho. O padrão da história se repete: o segundo porquinho encontra outro homem, desta vez carregando folhas e mato, com o que constrói uma casa. O lobo chega, pede para entrar; o porquinho se nega; o lobo derruba a casa com seu sopro e devora o segundo porquinho. O terceiro porquinho encontra um homem que levava tijolos, e com eles constrói uma casa. O lobo novamente chega, mas desta vez não consegue derrubar a casa com seu sopro. O lobo desenvolve novos estratagemas para capturar o porquinho: tenta atraí-lo para fora de casa, por três 68

“Once upon a time, there was an old sow with three little pigs, and as she had not enough to keep them, she sent them out to seek their fortune.” 69 “Little pig, little pig, let me come in.”

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vezes – todas as suas tentativas, porém, são frustradas pela esperteza do porquinho. Na primeira, convida o porco para irem juntos a um campo de nabos, colher alguns para o jantar. O porquinho concorda e então marcam que, na manhã seguinte, o lobo passe em sua casa às seis da manhã, para pegá-lo e irem juntos aos campos. Mas o porquinho se adianta e vai às cinco horas, colher os nabos. Quando chega, o lobo descobre a trapaça e se zanga, mas empreende nova tentativa de atraí-lo para fora, desta vez convidando-o a colher maçãs. Novamente, o porquinho concorda e marca com o lobo de irem, no dia seguinte, às cinco horas. Mas ele se adianta e sai às quatro, enganando o lobo mais uma vez. O lobo, obstinado, empreende mais uma tentativa, a terceira, e convida o porco para irem a uma feira. O porquinho aceita e marcam o encontro para as três horas do dia seguinte, mas ele se adianta e vai à feira mais cedo. No caminho de volta, o porquinho vê o lobo se aproximando e, assustado, esconde-se dentro do pote de manteiga que havia comprado na feira, mas o pote vira e rola colina abaixo, na direção do lobo, o qual se assusta e sai correndo. No dia seguinte, o lobo vai à casa do porquinho e conta como foi assustador ver aquilo o perseguindo. O porquinho ri e conta que era ele quem estava lá dentro, que havia ido mais cedo à feira e comprado a manteiga e, vendo o lobo aproximar-se, entrara no pote e rolara colina abaixo. O lobo fica extremamente zangado e promete devorar o porco. Tenta invadir a casa descendo a chaminé. O porquinho percebe a estratégia, prepara uma panela com água e acende o fogo. O lobo cai na panela; o porquinho cozinha o lobo e dele prepara um ensopado, comendo-o. Depois disso, o porquinho viveu feliz para sempre. Procuremos primeiramente os pontos do conto tradicional passíveis de serem lidos em correspondência direta com a narrativa de Belém do Grão-Pará: Virgílio, Inácia e Emília são equivalentes aos três porquinhos; a situação de necessidade que inicia a narrativa tanto dos três porquinhos quanto dos três Alcântaras é equivalente: a figura que os sustinha já não pode mais mantê-los – a mamãe-porca e o regime lemista –, o que os leva a percorrer o mundo, sozinhos, em busca da própria sorte; três casas atravessam as histórias: a de palha, a de folhas e a de tijolos, no conto popular; a da 22 de Junho, a 160 da Gentil e a 34 da Estrada de Nazaré, no romance de Dalcídio. Mas um determinado trecho deixa a referência ao conto dos porquinhos explícita no próprio texto do romance: antes de mudar para a casa número 34, em Nazaré, Emília e Isaura experimentam as chaves, que falham na tentativa de abrir as portas:

A costureira, depois de muito fazer esperar, desentulhou a bolsa, armou-se com as enferrujadas chaves, investiu contra a porta. Ria, soprando as cascas da velha tinta, ria do nome a carvão, a primeira investida falhava. 106


– Este palacete soprando cai, criatura. Cuidado, não respira tão perto que teu castelo cai, baronesa das banhas. Investiu com a segunda arma. Tu cedeste? Assim a fechadura. – Esta segunda chave deve ser de um daqueles sobradões da Cidade Velha. Ó porta, te abre, desgraçada, infeliz, diabo do inferno! Se não te abro, te derrubo. Sim, Emília, é mais fácil derrubar que abrir. Nenhuma chave dá. Mas dá de ombro, que a porta arreia... Meteu a terceira chave, a fechadura repeliu. (grifos meus). (Idem, ibidem, p. 257)

O sopro como ameaça de destruir a casa é diretamente relacionável com a narrativa dos porquinhos, pois, ao ter o pedido de entrar nas casas negado, o lobo reage: “Pois eu vou soprar e assoprar, e vou derrubar sua casa. Então ele soprou e assoprou e derrubou a casa, e comeu o porquinho.”70 (HALLIWELL, 1886, p. 37). Mas o uso que Dalcídio Jurandir faz do conto popular, como pudemos observar já no capítulo anterior, não é o de mera transposição para sua narrativa. Ele constrói, a partir do conto dos porquinhos, um anticonto que explicita o devir da história e a inexorável ruína da burguesia, aniquilada pelas contradições revolucionárias do real. O sentido positivo do conto original e a satisfação da moral ingênua que demandava a vitória do porquinho e o castigo do lobo, que é a vitória da inteligência sobre a maldade, são subvertidos pelo autor do romance. O movimento geral das duas narrativas deixa clara a oposição simétrica que existe entre elas: a primeira parte do negativo, a necessidade, e chega ao positivo, a felicidade e segurança do último porquinho; a narrativa de Belém do Grão-Pará, por sua vez, parte do positivo, o local social privilegiado da família Alcântara nos tempos do lemismo, para o negativo, a Gentil e a 34 de Nazaré, esta que, em sendo um retorno ao espaço de privilégio da elite, não deixa de ser, para os Alcântaras, o mesmo espaço de ostracismo e decadência que o 160 da Gentil: “Como estar nas janelas do 34, sem que a rua espiasse, lá por dentro, os tristes tarecos do 160?” (JURANDIR, 2004, p. 261). A condição da família, de um movimento na direção de uma negatividade cada vez mais insustentável, apesar da vontade de Emília de se manter na superfície de uma aparência de bemestar, é ilustrada por uma fala de dona Inácia, que diz, ao planejar a mudança para a Estrada de Nazaré:

Ajusta tudo, minha filha. Vamos dizer ao Virgílio, sim, mas já levando os troços daqui para a casa nova. Casa nova? Para a ruína. Afinal, minha filha, não queres 70

“Then i’ll huff, and I’ll puff, and I’ll blow your house in. So he huffed and he puffed, and he blew his house in, and eat up the little pig”

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morar na Estrada de Nazaré nem que seja embaixo de um pardieiro? Isso quer dizer bem o nosso destino. Estamos debaixo das ruínas do lemismo e convém mostrar ao público a nossa condição, e que isso é uma honra para a família Alcântara. Aqui temos muito conforto, muito sossego, embora os esteios fincados na lama, nesta baixa. A casa se agüenta. Mas na Estrada de Nazaré, nas três janelas podres, brilhase. (Idem, ibidem, p. 286)

A casa nova é, em realidade, a ruína definitiva. As casas dos porquinhos do conto vão em um crescendo de segurança, demandando um esforço sempre maior do lobo para derrubá-las, até que ele não o consegue mais. As casas dos Alcântaras são apresentadas, por sua vez, em um decrescendo de segurança: da despensa abastada da casa da 22 de Junho, passando pelo conforto humilde da Gentil Bittencourt, na casa que se aguenta, mesmo sobre a lama, até a casa de número 34, ruína completa que se disfarça em um falso brilho, mas que termina mesmo por ruir completamente. A subversão do conto dos porquinhos na construção de um anticonto caracterizado pela negatividade da insegurança e da ruína e que sustenta a construção de Belém do Grão-Pará deita raízes em um perceptível substrato filosófico-ideológico. Segundo esta leitura, o romance, atrelando a vida de suas personagens no contexto de decadência social advinda da queda do regime de Antônio Lemos, procura alcançar não apenas o “retrato” da decadência da capital e de uma parcela de sua elite, mas sim uma imagem do próprio movimento da História, segundo uma concepção marxista. A sociedade burguesa, para Marx e Engels (2008), seria o último e mais instável momento da história dos conflitos e contradições de classe, o limiar de uma revolução que se faria cada vez mais necessária, dado o aprofundamento das contradições sociais pelo antagonismo radical entre burguesia e proletariado. A burguesia estaria destinada a se dissolver no seio de suas próprias contradições: “As armas com as quais a burguesia abateu o feudalismo se voltam contra ela mesma. Mas a burguesia não forjou apenas as armas que a levarão à morte; produziu também os homens que usarão estas armas: os trabalhadores modernos, os proletários.” (MARX; ENGELS, 2008, p. 19) A família Alcântara atravessa justamente o momento da dissolução de sua classe; ela é, mais que o retrato da decadência dos anos vinte na capital paraense, uma imagem do complexo processo histórico-social de dissolução de formas históricas. Para Marx, o curso da história não é retilíneo: é atravessado por tentativas de “voltar atrás”, de restaurar condições que não mais se sustentam. No texto de introdução à sua Contribuição à crítica da filosofia do direito de Hegel, de 1843-44, Marx

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analisa a persistência do estado absolutista alemão em plena Europa moderna, aplicando as categorias da “tragédia” e da “comédia” aos fenômenos das transformações históricas. Ele diz: Na medida em que o ancien régime, como ordem mundial estabelecida, lutou com um mundo que apenas surgia, ele caracterizava um equívoco histórico, mas não pessoal. Em razão disso, foi trágico o seu desfecho. [...] O ancien régime moderno não é senão o comediante de uma ordem mundial cujos verdadeiros heróis morreram. A história é meticulosa e passa por muitas etapas para sepultar um personagem antigo. A última fase de um personagem na história mundial é a comédia. Os deuses da Grécia, já trágica e mortalmente feridos no Prometeu acorrentado de Ésquilo, tiveram de morrer mais uma vez de forma cômica nas conversas de Luciano. (MARX, 2010, p. 37)

O embate entre uma forma social e outra, emergente das contradições da primeira, é uma forma legítima de transformação histórica, e por isso trágica em sua necessidade dialética de dissolução. O anacronismo de uma forma que se esforça por figurar em um contexto que já não a suporta realça suas debilidades e fraquezas, fazendo dela uma figura cômica que só reafirma e explicita a necessidade de sua própria superação. A mudança da família de Virgílio para o 34 da Estrada de Nazaré constitui uma comédia no sentido marxista: a insistência de Emília, enquanto representante de uma elite falida, em retornar como classe dominante apenas explicita a decadência da própria família. Alfredo, cujo olhar andarilho problematiza incessantemente a situação das pessoas e dos lugares que figuram no romance, percebe o tom de “farsa” que há nesse esforço de Emília – e como ele se traduz apenas em um ônus a mais para os que sustentam com seu trabalho as vontades de brilho da moça:

Alfredo via Emília Alcântara um tanto fanfarrona, despropositada naquela ânsia de mudar. Sendo pobre como era, queria se fantasiar de rica nas três janelas da Estrada de Nazaré. A mudança ia pesar nas costas de Isaura, agoniar o padrinho, encher Libânia de mais serviço, a coitada. [...] Não era mesmo um faz-de-conta a tal da casa? Iam ali fazer de conta que viviam, comparados a fantasmas. [...] Não era um triste papel? (JURANDIR, 2004, p. 295)

O narrador explicita a noção de “anacronismo” presente na formulação de Marx sobre a comédia da História quando atribui as seguintes palavras ao próprio casarão da Estrada de Nazaré: “já dei cabo de minha vida, minha missão de ser habitado já acabou. Estou sobrando como habitação e vocês não passam de uma família fantasma.” (Idem, ibidem, p. 316). O desfecho do romance dá também a ideia do desfecho teatral, com o apagar das luzes. Tendo que sair às pressas de dentro da casa, prestes a desabar, dona Inácia, todavia, recusa-se e

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deixa-se ficar deitada em uma rede, no quintal. Alfredo, Libânia e Antônio esperam na calçada e começam a por os móveis para fora, com a ajuda sugestiva de um grupo de trabalhadores portugueses. Alfredo e Antônio carregando as coisas para fora, vão e vêm, rápidos e sérios. “Madrinha-mãe”, gritou Libânia para as sombras do quintal, “madrinha-mãe, se vista e saia que tudo, nós três, a gente toma conta”. E baixo, só entre os três: “Ou quer também que os galegos carreguem a senhora no ombro? Não sai de vergonha da rua, da rua te olhando?” Mal o bonde passou, Antônio quebra a grande lâmpada do meio da rua: – Assim escuro a madrinha-mãe sai já. (Idem, ibidem, p. 524)

Essa cena sintetiza a percepção histórica que permeia o romance: dona Inácia, sombra de uma época que passou, é desalojada pelos três personagens que simbolizam, de um jeito ou de outro, as classes populares. A comédia da persistência anacrônica de formas sociais obsoletas precisa chegar a um fim, e é o povo, representado pelos trabalhadores e pelas três crianças, Libânia, Antônio e Alfredo, que dá cabo à farsa, apagando as luzes do palco. Este sentido da transformação histórica é alcançado pelo aproveitamento que Dalcídio realiza do material do conto maravilhoso dos três porquinhos em seu romance, retrabalhando esteticamente o material advindo da tradição. Belém do Grão-Pará ilustra contundentemente o processo de fazer literário apresentado pelo escritor nos artigos de crítica: indo além do mero retrato da situação social de uma determinada região em um determinado tempo, o romancista imiscui, no material histórico, elementos do maravilhoso e da fantasia, não para deturpar o histórico livremente com a imaginação, mas sim para alcançar o núcleo dos movimentos históricos que subjazem à realidade fenomênica dos acontecimentos e cunhar uma imagem artística da própria realidade. O anticonto construído por Dalcídio Jurandir no romance, subvertendo o valor positivo da narrativa primeira, atinge justamente o “desencantamento” da realidade fenomênica, desvelando, de modo realista, o sopro inexorável da história que, apesar dos esforços cômicos em sentido contrário, empurra o que fora outrora sólido e consolidado para sua dissolução, num caminho que desemboca na ação revolucionária das camadas populares. Ainda utilizando-se na narrativa dos três porquinhos, o narrador expõe um sonho de Alfredo, protagonizado por Violeta, irmã de Isaura, a humilde costureira a serviço de Emília Alcântara, no qual se percebe justamente o movimento de dissolução das formas históricas anacrônicas: “Violeta foi soprando o telhado da casa velha, as telhas caindo e os ais das Alcântaras pela rua enchendo a Basílica, o Bosque, sacudindo os sinos” (Idem, ibidem, p. 296).

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Retorno agora, para finalizar esta análise, à questão de o romance começar in medias res, característica das narrativas épicas: atentando para isso, vemos que Belém do Grão-Pará se mostra como uma épica da decadência de um mundo, o mundo burguês dos Alcântaras. É do Lukács de Narrar ou descrever?, que vem a sugestão de leitura. No artigo de 1936, o filósofo húngaro usa o critério temporal para distinguir a narração, para ele o verdadeiro caminho para representar a realidade humana na literatura, da descrição. A narração atinge uma visão global da realidade humana que toma forma na práxis social do homem, uma poesia imanente “dos homens que lutam, a poesia das relações inter-humanas, das experiências e ações reais dos homens” (LUKÁCS, 2010, p. 164). A descrição, por outro lado, não consegue atingir a mesma profundidade porque se mantém na superfície do objeto encarado como forma autônoma e isolada do conjunto da práxis – visão deformada que, segundo a interpretação lukacsiana, advém dos efeitos deformadores do capitalismo:

O triunfo tirânico da prosa do capitalismo sobre a poesia imanente da experiência humana, a crueldade da vida social, o rebaixamento do nível de humanidade são fatos objetivos que acompanham o desenvolvimento do capitalismo – e é deste desenvolvimento que decorre necessariamente o método descritivo. (Idem, ibidem, p. 165)

A descoberta da práxis seria, para o filósofo, próprio da visão épica e, também, inerente ao romance (considerando que Lukács partilha da posição hegeliana que liga a epopeia ao romance). Todavia, a narração exige, do artista, seleção e ordenamento dos elementos expressivos da práxis: “A arte do autor épico reside precisamente na justa distribuição dos pesos, na acentuação apropriada do essencial.” (Idem, ibidem, p. 164). Assim, a visão épica partiria de um ponto no presente em direção ao passado com um olhar retrospectivo, o que permite ao autor selecionar o que é essencial para, a partir de então, expressar a integralidade da práxis humana na obra. O escritor épico que narra uma experiência humana ou uma série de diferentes experiências humanas com olhar retrospectivo, adotando a perspectiva alcançada no final, torna clara e compreensível para o leitor aquela seleção do essencial que já foi realizada pela própria vida. (Idem, ibidem, p. 166)

Dalcídio constrói retrospectivamente o romance, situando a ação na década de 20, o que é informado ao leitor não diretamente, mas a partir de referências esparsas no texto, das quais uma, explícita, vem logo no início: os Alcântaras contam já dez anos morando no 160 da Gentil, após a queda de Antônio Lemos. Sabe-se que o governo de Lemos acaba oficialmente em 1910 e que, em

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1912, ele abandona a capital paraense, o que leva a ação do romance, portanto, à década de 20. O olhar retrospectivo do narrador conduz e constroi a narrativa tendo em vista um efeito final, perspectiva que lhe permite a visão global da práxis e dos elementos que são essenciais a ela, combinados de modo a dar a ver essa práxis, segundo Lukács. O narrador dalcidiano tem, como perspectiva final, a ruína da família, e é sempre sob o signo da decadência e do derruimento que as coisas e os personagens que se entrelaçam no romance são apresentados: não só a família e as casas que ela habita, mas também outros elementos são introduzidos na narrativa sob tal prisma, como o padrinho de Alfredo, Barbosa, um falido ex-comerciante da época da borracha. Quando D. Amélia leva o menino para conhecê-lo, Alfredo se depara com uma casa “Baixa, envelhecida, como se fosse aos poucos se afundando, [...] consciente da ruína de seu dono.” (JURANDIR, 2004, p. 99); na casa, além do padrinho, Alfredo esperava encontrar-se com a menina de quem guardava recordações de brincadeiras quando criança, mas acaba por encontrar uma moça de “rosto parado, a boca entreaberta, a voz murcha, sem um vestígio dos brinquedos, tapete e caixa de música, do maravilhoso que havia na outra, tão lembrada no chalé.” (Idem, ibidem, p. 101). Também a paisagem da cidade, em vários momentos, aparece como a ressaltar o sentido geral do derruimento: no desembarque de Alfredo, o encontro com um cadáver exposto na pedra do necrotério (p. 84-85); a ida ao circo com o colega de classe Lamarão, um dos vários momentos em que Alfredo é atingido pela desilusão oriunda do desencontro entre a fantasia que criara e a realidade que se dá a ver; enfim, os elementos que adentram a trama do romance são mobilizados segundo um plano que conduz a um ponto específico, cujo ápice (negativo) é o desfecho do romance, a última imagem da ruína de uma época e de uma classe. O autor, em sua onisciência, conhece o significado especial de cada mínimo detalhe para a solução definitiva, para o desenvolvimento definitivo dos personagens – e só lhe interessam os detalhes que podem desempenhar esta função no conjunto da ação. (LUKÁCS, 2010, p. 166)

Entretanto, é importante notar que o núcleo dos Alcântaras, o principal da narrativa, tem sua negatividade contrabalanceada pelo núcleo de Mãe Ciana, que é composto de trabalhadores e operários e que se destaca como bastião de uma vida que se mantém ativa, apesar dos dramas dos personagens que o compõem. Alfredo encontra-se dividido entre os dois núcleos: tem aspirações de ascensão social que o levam a, de certo modo, idealizar a vida das elites – o que aos poucos vai se desfazendo. O esfacelamento das idealizações de Alfredo, e a consequente depuração de sua percepção da

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sociedade, devem-se, por um lado, aos embates com a realidade decadente habitada pelas elites: “Começava a julgar as Alcântaras com menos cautela, numa zombaria secreta que o tornava mais calmo, dono de si, um pouco acima delas.” (JURANDIR, 2004, p. 312), e, por outro, pela crescente autopercepção como membro de uma classe desprestigiada (menino mestiço, que veio do interior morar de favor em casa alheia); convivendo também com a família materna (Ciana é tia de sua mãe), começa a admirar os primos e primas trabalhadores: “Alfredo compreendeu que sua família estava ali naquela Mãe Ciana, na Magá que vendia tacacá na rua, nos primos quase pretos, asseadamente sujos de trabalho, despreocupados de morar na Estrada de Nazaré.” (Idem, ibidem, p. 329). A cena do aniversário de Emília deixa claro o contraste entre os dois núcleos, dado que a festa da Alcântara é totalmente sustentada pelos operários de Mãe Ciana, convidados por Emília – não com o intuito de confraternizar, mas no de montar uma aparência de movimentação. “Bem verdade que a festa era feita por Isaura, mas sabido apenas dos mais íntimos.” (Idem, ibidem, p. 375). A aproximação dos dois núcleos explicita que os rumos da práxis humana, segundo a interpretação de Dalcídio, apontam para a ruína historicamente determinada no seio das classes dominantes, mas que não é coextensiva às camadas trabalhadoras, que mantêm uma dinâmica ativa pelo trabalho e pela vivência concreta. A interpretação dalcidiana se encontra com a cosmovisão histórica apresentada no Manifesto do Partido Comunista, segundo a qual “nos períodos em que a luta de classes se aproxima da hora decisiva, o processo de dissolução no interior das classes dominantes e de toda a velha sociedade adquire um caráter [...] vivo e intenso [...]” (MARX; ENGELS, 2010, p. 25). Nesse processo, que leva à dissolução todas as classes que não sejam detentoras dos modos de produção, apenas o proletariado resiste, já que ele é o produto mais autêntico da própria dinâmica de luta de classes e, portanto, a única classe verdadeiramente revolucionária, destinada a ser a protagonista no palco da tragédia histórica: “Todas as demais [classes] se arruínam e desaparecem com a grande indústria; o proletariado, ao contrário, é seu produto mais autêntico.” (Idem, ibidem, p. 26). Assim, vê-se que a seleção e o ordenamento realizados pelo autor épico, no romance de Dalcídio Jurandir, são presididos pela visão prévia de uma práxis que manifesta a negatividade do percurso histórico, o qual dissolve o que antes parecia sólido. É esta visão, ou concepção de mundo, coerente com a filosofia marxista, que confere sentido ao movimento de apropriação do conto tradicional que Dalcídio Jurandir empreende e que tem por objetivo a expressão, por meio de uma imagem artística, da experiência humana na transformação histórica. Desse modo, o escritor

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pretende alcançar aquela imagem que deve ser o produto específico do romance, a qual dá a ver a essência da própria vida humana tecida no jogo complexo de suas ações históricas e relações sociais.

4.2. Entre o Tempo e a Ruína: a decadência nortista como imagem das transformações históricas

O que pudemos averiguar acerca da construção estética em dois romances de Dalcídio Jurandir foi que seu plano objetiva a representação de uma imagem das dinâmicas da própria História, a partir do uso e subversão de elementos oriundos das narrativas maravilhosas da tradição ocidental e do imaginário amazônico. Em Marajó, essa construção dá a ver os caminhos tortuosos trilhados pelos indivíduos dentro de certas formações sociais e suas estruturas de poder: Missunga ilustra a perpetuação da exploração, mas tem a negatividade de seu caráter apático contrabalanceado por Alaíde, a qual aponta para a afirmação do indivíduo dentro de uma ordem que aparenta ser posta pela Fatalidade – afirmação dialética que se impõe pelo caráter desumano da própria exploração e seu efeito destruidor das ilusões de redenção pelo heroísmo individualista ou qualquer força maravilhosa, sobre-humana. Belém do Grão-Pará, por sua vez, tendo o drama social dos Alcântaras como moldura para os demais elementos da narrativa, enfatiza dois aspectos das transformações históricas conforme o pensamento marxista: a dissolução necessária de formações sociais (que, no romance, conferem a Alfredo a percepção dessas transformações, apreendidas na proliferação de imagens da ruína), e a noção de que um outro grupo social, o dos trabalhadores, há de se erguer e protagonizar vigorosamente o ato de derruimento final dos escombros que, anacronicamente, ainda se esforçam por manter-se. Assim, nos dois romances abordados, o que vemos é uma imagem que vai além dos fenômenos superficiais que parecem ser o tema de seus romances. Apreender a realidade, para Dalcídio Jurandir, não se resume em dar um “documento” ou um “retrato” nem das condições injustas do latifúndio marajoara, nem da decadência econômica pós-borracha de certa parcela da elite belenense dos anos vinte, apesar de estes dados figurarem, indubitavelmente, em suas obras. Compreender o realismo dalcidiano nesses termos é delimitá-lo espacial e temporalmente, o que subtrai muito de seu valor enquanto artista e o relega à condição de “regionalista menor”, como diria Alfredo Bosi (1994, p. 426).

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Grande parte da recepção da obra de Dalcídio Jurandir, infelizmente, se fez nos termos dessa delimitação. Olinda Batista Assmar, em Dalcídio Jurandir: um olhar sobre a Amazônia, apesar da interessante discussão sobre a relação entre documento e ficção, bem como sobre o aproveitamento do material histórico dentro do ficcional, parece não superar a leitura da obra de Dalcídio Jurandir como repositório documental de uma realidade amazônica. A autora nos diz, ainda na introdução de sua obra:

Embora com pouca instrução formal (não concluiu sequer o 1º. grau), revelou Dalcídio uma sensibilidade muito grande ao captar o pensamento do amazônida e ao registrar problemas vividos pelo caboclo. Foi um grande observador do homem e da natureza amazônica. A esse senso de observação juntava-se a sua própria vivência, de que resulta seu mundo ficcional, voltado, principalmente, para as gentes e coisas de sua terra. (ASSMAR, 2003, p. 19)

Atrelar o escritor, e ainda mais fortemente por meio do recurso ao biográfico, às problemáticas regionais é, a nosso ver, estratégia equívoca quando se pretende colaborar na divulgação e colocação de sua obra no hall do romance brasileiro moderno. No entanto, Rosa Assis, na introdução à quarta edição de Marajó, diz sobre o romance:

[Marajó] é uma espécie de romance-documentário; é quase que um romancefilme de longa metragem, mas também produto de um vivo imaginário, relembrado e/ou reelaborado pelo Autor. Marajó das mais típicas vivências e ambiências marajoaras, que perpassam fotograficamente nos olhos curiosos e comovidos do leitor-espectador [...] É também documentário riquíssimo de informações etnográficas, de elementos folclóricos, de marcas antropológicas, sociológicas, psicológicas, bem características da fisionomia e do comportamento do homem amazônico [...] (ASSIS, 2008, p. 14)

Ao comentarmos a leitura do segundo romance de Dalcídio Jurandir por Vicente Salles, pudemos ver que, quando o estudioso afirma ser a obra um gesto de recolha de material folclórico, ele não adentra o sentido estético dessa presença, limitando-se a identificá-lo dentro do romance e a traçar um paralelo entre os dois textos. Do mesmo modo, ter o romance do autor paraense como documento de vivências e cultura de um “homem amazônico” não joga luz sobre a dimensão artística que preside à construção da obra. Ressalte-se ainda que, nos textos sobre o romance e o realismo, o autor afastara de sua compreensão acerca do trabalho ficcional as noções de “documento” e de “fotografia”, relacionadas à superfície mais imediata do fenômeno, em favor da “imagem”. Ligar a ficção de Dalcídio ao “registro” e ao “documento” do regional é ligá-la à

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superfície dos fenômenos regionais e, portanto, encará-la como regionalista, em uma acepção que mais se aproxima do pitoresco. Todavia, ao lado dessa tendência “regionalizante” na recepção dos romances de Dalcídio Jurandir, é notável também um esforço para universalizar a ficção do autor: objetivo desta segunda tendência é trazer à obra do romancista o reconhecimento como legítima obra de arte que trata do humano, e não apenas do “homem amazônico”, levando-a, assim, a figurar legitimamente entre as grandes realizações da literatura. No entanto, tais esforços se movimentam no vazio de um termo sem substancialidade, como o é o “universal”. Gunter Pressler, apesar do esforço em fazer frente ao esquecimento e ao silêncio que espreitam a obra do romancista, lançando, sem rodeios, a pergunta “Por que a obra e sua qualidade não receberam seu devido reconhecimento?” (PRESSLER, 2007, p. 225), mostra-se, com sua assertiva “Dalcídio Jurandir é universal” (Idem, ibidem), posta logo no pórtico de seu estudo sobre Marajó, um exemplo do intento de universalizar a narrativa dalcidiana por meio de uma afirmação categórica que, em última análise, é destituída de qualquer conteúdo que a legitime concretamente. Ambas as propostas de leitura, a “regional” e a “universal”, têm suas carências em uma concepção insatisfatória do que seja o regional, entendido como a realidade delimitada temporal e geograficamente, e o universal, contraposto ao primeiro nos termos bastante imprecisos de uma vaga qualidade humana inata. Acreditamos poder articular satisfatoriamente o regional e o universal a partir da relação do que atingimos até aqui em nossa leitura dos romances de Dalcídio Jurandir, qual seja, o realismo que alcança a imagem dos meandros da História, com elementos de outras leituras, mais especificamente, dos trabalhos de Pedro Maligo (1992) e Marlí Furtado (2002), e com o conceito lukacsiano de particularidade, como mediação dialética do singular e do universal. Ambos os pesquisadores produziram estudos que procuram identificar traços globais de composição da obra do autor marajoara – esforço raro, quando abundam leituras mais pontuais que se concentram em determinados aspectos de romances específicos71. Marlí Furtado localiza uma característica que perpassaria os romances do autor paraense: a presença, nestes, de imagens da ruína e do esfacelamento, as quais contribuem para a “criação de um mundo derruído por onde trafegam heróis corroídos” (FURTADO, 2002, p. 236). A estudiosa afirma: “Dalcídio trabalha [...] as técnicas narrativas de romance em romance, no sentido de 71

Esse recorte nos trabalhos acadêmicos que se produzem atualmente sobre o romance dalcidiano não implica, de modo algum, em nenhum juízo de valor negativo. Alguns desses trabalhos, inclusive, apontam para traços que, identificados em romances específicos, jogam luz sobre aspectos gerais da obra. Exemplo disso são as dissertações de mestrado de Viviane Dantas (2011) que traz à discussão a presença do grotesco em dois romances de Dalcídio Jurandir, e a de Edilson Pantoja (2006), sobre a presença do pessimismo schopenhaueriano em Chove nos Campos de Cachoeira.

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produzir uma obra em que o esfacelamento é traço de composição [...] quer no nível temático, quer no nível formal. [negrito da autora]” (FURTADO, 2002, p. 232). As imagens da ruína ligam-se não à representação da derrocada do ciclo econômico da borracha, mas sim ao vazio que tal quebra teria instaurado no espaço por onde se movimentam as personagens:

Observemos primeiramente que o autor se utiliza do ciclo romanesco não para narrar o processo em andamento da queda do ciclo da borracha, nem a passagem de um modo de apropriação da terra a outro, ou de um modelo econômico a outro. Ele desvela o vazio de um modelo econômico; no vazio deixado pela queda de um ciclo econômico trafegam suas personagens e do memorialismo de algumas recuperamos o auge desse ciclo já extinto; [...] (Idem, ibidem, p. 238)

No entanto, apesar de reconhecer o grau de mimese que se faz presente em toda poiese (idem, ibidem, p. 13) e, desse modo, ligar o universo ficcional de Dalcídio Jurandir à problemática época de pós-ciclo da borracha, a atenção de Furtado tenta esquivar-se de apreender a narrativa de Dalcídio como “documento” da decadência econômica, buscando antes explicitar as técnicas de construção da obra ficcional. Nesse sentido, ao lado da presença ostensiva de imagens da ruína e do esfacelamento, a autora observa ali também um profundo trabalho com o tempo, passível de ser observado a partir do jogo entre as vozes narrativas:

Seguindo a trajetória de Alfredo, a abrir e a fechar em tensão o primeiro e o último romance da série, perceberemos os recursos utilizados por Dalcídio Jurandir para instaurar um universo fictício que recria a Amazônia de que falamos acima. Dentre esses recursos, destacam-se as bruscas mudanças de tempo e de espaço, derivadas sobretudo da brusca alternância da voz narrativa, ora centrada em um narrador em terceira pessoa, com pleno manejo da consciência, ora em um narrador em terceira pessoa mas com poder restrito para narrar, assim como, repentinamente, da terceira voz se passa para primeira [...]. (Idem, ibidem, p. 14)

Não nos detendo na questão do narrador, temos interesse mais pontual no tratamento que se dispensa ao tempo nos romances dalcidianos. Furtado já encontrara uma relação entre esse elemento e a ideia de ruína, principalmente pela contraposição entre o passado, retomado pelas personagens em suas rememorações e caracterizado pelo fausto da borracha, e o presente da decadência, realçado assim em sua negatividade, de modo que ela afirma: “Há, pois, no ciclo romanesco de Dalcídio Jurandir [...] um trabalho refinado de articulação temporal.” (idem, ibidem, p. 238). No

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entanto, ela embasa suas considerações acerca do tempo nas narrativas dalcidianas sobre o trabalho de Pedro Maligo, que se detém mais aprofundadamente na questão. Apesar de identificar, como principal assunto da ficção de Dalcídio Jurandir “[...] a vida das pessoas de situação econômica menos favorecida: a definição social de tal grupo, a pobreza de seus meios materiais, suas estratégias para sobrevivência e redes de apoio coletivo, sua moral e ética, e suas manifestações culturais [...]” (MALIGO, 1992, p. 49), Maligo identifica a composição a partir de diversos níveis temporais, sendo possível delinear um tempo material e um tempo idealizado e ainda subdividir cada um desses em tempo presente e tempo passado:

Um dos principais eixos que orienta a representação da Amazônia em Jurandir é o tempo. Se, para fins de análise, divide-se tal eixo em tempo material e tempo idealizado, subdividindo-se cada qual em passado e presente, nota-se que tais unidades mantêm uma relação assimétrica, de vez que o elemento correspondente ao passado idealizado recebe pouca atenção. Uma vez que o assunto principal de Jurandir é a vida entre as camadas sociais mais pobres, o tempo material presente é o tempo da narração dos eventos ou descrição de estados associados com uma realidade econômica difícil. [...] como a perspectiva do narrador aborda a maior parte dos eventos do ponto de vista de Alfredo, desenvolve-se um subtema de um passado idílico ou idealizado que se aplica àquela personagem [...] É possível dizer, portanto, que o texto de Jurandir, de acordo com a estrutura temporal, aproxima questões sociais e o tempo presente, enquanto que a narrativa de questões na vida de uma personagem (especialmente no caso de Alfredo) permite a intromissão de um passado idealizado. (Idem, ibidem, p. 50)

Na intromissão de um “passado idealizado”, seja pela rememoração (como foi possível observar no caso dos Alcântaras, em Belém do Grão-Pará), seja pela imaginação de Alfredo (que constrói uma imagem maravilhosa da cidade a partir das narrativas dos diversos adultos de seu convívio sobre a glória passada da capital), tem-se a presença obsedante do passado em sua ambiguidade de “realidade defunta” e de “memória eterna”, o que tem um efeito catalisador sobre a visão problematizante não apenas da situação econômica de pós-ciclo da borracha, mas sim da própria História em suas movimentações dramáticas:

Jurandir explora continuadamente a dualidade implícita do passado como realidade defunta (“apagado para sempre”) e memória eterna (“de nunca se apagar”). Esta última não é definida apenas como nostalgia; ao contrário, ela aparece como a impotência que uma personagem sente ao tentar compreender as devastadoras conseqüências dos acontecimentos históricos. [...] Juntas, estas características dão a medida crítica dos textos com relação à interpretação da História, resultando numa Amazônia que deve ser vista pela perspectiva do presente e do futuro. A grandiosidade do Ciclo da Borracha

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esvaiu-se, restando apenas a possibilidade crítica e o fracasso inevitável das tentativas de reconstrução. (Idem, ibidem, p. 50-51)

Maligo insinua o salto que pretendemos consolidar aqui: a superação da compreensão da narrativa de Dalcídio Jurandir como mimese do regional (a vida do “homem amazônico”, a situação pós-ciclo da borracha, o retrato das gentes humildes) para vê-la na dimensão de uma imagem das transformações históricas e suas implicações nos indivíduos que participam delas. Tomando os estudos dos dois pesquisadores e desatrelando-os da representação do local, podemos articular a imagem da ruína, trabalhada por Furtado, e o efeito crítico da articulação de diversos níveis temporais, ressaltada por Maligo, para vermos como os romances de Dalcídio Jurandir trabalham a consideração do caminho revolucionário da História, que, todavia, não se dá em uma linearidade puramente positiva, mas se apresenta tensa, ambígua e profundamente dramática para os indivíduos que são seus protagonistas e que sofrem, também, seus efeitos. Não pretendemos, de modo algum, negar a presença do elemento regional nas obras de Dalcídio Jurandir, nem tampouco afirmar sua universalidade nos termos vazios que vimos mais acima. Pelo contrário, concordamos com Marlí Furtado quando diz que “juntamente com Belém do Grão-Pará, Marajó forma a dupla, entre os dez romances, que parece mais fortemente carregada de cor local.” (FURTADO, 2002, p. 240). Mas é preciso compreender essa “cor local” não como restrita à singularidade da região amazônica, mas sim nos termos da construção de uma particularidade que alia em si, dialeticamente, o singular e o universal. Utilizando-nos desses conceitos, presentes na teoria estética de Lukács, é possível entender que a representação do regional nos romances de Dalcídio Jurandir não restringe sua obra ao retrato de uma certa Amazônia, mas atinge a imagem de processos muito mais amplos que vão além do tempo e espaço nortista, dando-se a ver, entretanto, por meio do amazônico. György Lukács fundamenta suas concepções estéticas na teoria gnosiológica leninista do “reflexo”, a qual, em linhas gerais, estipula que a atividade de conhecimento do mundo exterior pelo sujeito é intermediada pelo reflexo desse mundo exterior na mente desse sujeito. A teoria leniniana pressupõe uma realidade material objetiva, realidade que se reflete na mente no processo do conhecimento. O filósofo húngaro deixa claro, ainda no prefácio de Sobre a categoria da particularidade, de 1956: “A ideia geral de que o reflexo científico e o reflexo estético refletem a mesma realidade objetiva situa-se na base de toda a obra. Isso resulta que devem ser os mesmos não só os conteúdos refletidos, mas as próprias categorias que os formam.” (LUKÁCS, 1968, p. 2). A especificidade do reflexo científico e do estético não diz respeito ao conteúdo fundamental que

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refletem, mas antes, aos modos de organizarem as categorias que são empregadas no processo de refletir seu conteúdo fundamental. Sua obra estética trata exatamente do modo específico de reflexo que é propiciado pela arte, tendo em seu centro a categoria da particularidade. Para Lukács, baseando-se amplamente no pensamento hegeliano, o particular é termo de intermédio na dialética entre singular (o que se identifica com a imediaticidade do fenômeno) e o universal (o produto da série dialética de superações e determinações dos singulares): “O movimento do singular ao universal e vice-versa é sempre mediatizado pelo particular; ele é um membro intermediário real, tanto na realidade objetiva quanto no pensamento que a reflete [...].” (idem, ibidem, p. 112). No reflexo científico, o particular mostra-se como ponto indeterminado em constante movimentação entre o singular e o universal, ou ainda, como campo em contínuo processo de alargamento por conta do próprio desenvolvimento do conhecimento científico: Se nós considerarmos corretamente o movimento dialético do universal ao particular e vice-versa, devemos observar que o meio mediador (a particularidade) pode menos ainda ser um ponto firme, um membro determinado [...]. O aperfeiçoamento do conhecimento pode alargar este campo, inserindo na conexão momentos dos quais precedentemente se ignorava que função tinham na relação entre uma determinada singularidade e uma determinada universalidade. (idem, ibidem, p. 113)

Para Lukács, o conhecimento científico da realidade objetiva só é possível por conta dessa relação dialética entre singularidade e universalidade, mediadas pela particularidade. No reflexo científico, porém, é a relação propriamente dita entre os dois pólos que mais interessa, uma vez que o conhecimento se constroi no ir-se do universal ao singular, para conhecer este, e do singular ao universal, para alargar o campo do saber. No reflexo estético, todavia, a particularidade torna-se o elemento central de interesse, uma vez que a imagem estética pode criar, em uma determinidade, a síntese de singular e universal: “o movimento no qual o artista reflete a realidade objetiva culmina, fixa-se, recebe forma no particular [...]” (idem, ibidem, p. 159) O particular, no reflexo estético, se relaciona ainda com dois outros conceitos: o de “tipo”, que Lukács busca nas considerações de Engels sobre arte, e o de “mediação”. O “tipo”, sendo a expressão estética formal da dialética entre fenômeno e essência (ou o essencial que se dá por meio de uma figura individual), se constitui pela superação do singular, mas que mantém, apesar disso, seu caráter de singular. Lukács diz:

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[...] se um fenômeno qualquer deve, enquanto fenômeno, expressar a essência que está em sua base, isto só é possível se se conserva a singularidade. Todavia, parece-nos indispensável esclarecer melhor o caráter superado dessa singularidade. De fato, é indubitável que tanto os traços constantemente mutáveis da singularidade quanto os permanentes se equivalem, por um lado, em sua imediaticidade, enquanto, por outro, comportam-se de maneira extraordinariamente diversa em face das mediações que lhes servem de base, através das quais toda singularidade se encontra em relação com a particularidade e com a universalidade. (LUKÁCS, 1968, p. 164)

Lukács introduz o segundo conceito basilar para a compreensão da particularidade estética: a “mediação”. O problema das mediações talvez seja um dos pontos principais em todas as estéticas que, de algum modo, articulam o artístico com aspectos da vida social 72. Para o filósofo húngaro, a mediação atua ligando o fenômeno singular à compreensão universal, sendo a ponte que une dialeticamente os dois momentos: “[...] quanto mais numerosas forem as mediações que ele [o artista] descobrir e (se necessário) acompanhar até a extrema universalidade, tanto mais acentuada será essa superação [a da singularidade].” (idem, ibidem). Os elementos levantados aqui já permitem uma compreensão suficiente do conceito lukacsiano da “particularidade” para o aplicarmos à nossa leitura dos romances de Dalcídio Jurandir. Podemos agora dizer que a “cor local” de Marajó e Belém do Grão-Pará funciona como a particularidade, no sentido de singularidade superada, porém mantida em seu caráter de singular, que manifesta em si uma visada muito ampla: das singulares condições de vida da sociedade belenense da época pós-economia da borracha, alcança-se a expressão de uma compreensão da História em seu devir. Os elementos da ruína e do tempo, identificados por Furtado e Maligo, mas por eles atrelados a uma determinada realidade amazônica, aparecem-nos como pontos de mediação que permitem ao ficcionista trilhar um caminho que adentra, pela percepção de uma problemática regional caracterizada pela decadência econômica e pela nostalgia do que foi e do que não foi, um ponto de vista que pretende dar a ver o que seria um movimento universal: a dissolução e o raiar do novo no horizonte da História, com todas as tensões e todos os dramas que se erguem no interior dos indivíduos arrebatados por esse movimento.

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Tenha-se em vista a importância do conceito de “mediação” no pensamento, por exemplo, de Antonio Candido e Theodor W. Adorno.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Parte dos produtores de arte e literatura, a partir de fins do século XIX e alcançando toda a primeira metade do século XX, trilhou seu caminho tendo em vista um consciente afastamento das questões políticas postas pela ordem do dia, principalmente daquelas apresentadas por grupos políticos específicos. Apesar de não raro se voltar criticamente contra a cultura burguesa que se consolidava conforme o fortalecimento da lógica capitalista, esses artistas mantiveram uma postura que olhava com igual desconfiança a opção encarnada pelo proletariado e sua luta – justamente a que será tomada como estandarte por outro grupo de artistas, o dos que optam por alinhar sua prática à causa comunista. Assim, o campo da arte aparecerá, para muito de seus atores, como se fendido entre dois grupos antagônicos, que significariam, segundo uma percepção afeita a binarismos, a vanguarda e a retaguarda, o progresso e o retrocesso, o florescimento e a decadência. Dalcídio Jurandir, escritor que desde a juventude se ligara à causa comunista e se manterá a ela ligado por toda a sua vida, partilha dessa percepção binária do mundo artístico, colocando-se do lado daqueles que entende servirem a um ideal de liberdade e igualdade, que se realizará com a ascensão do proletariado e com o fim da sociedade de classes. O escritor paraense se afirma como intelectual que guia sua prática segundo as diretrizes da luta política capitaneada pelo Partido Comunista Brasileiro, ligado à União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. Compreende o artista comunista como a mais acabada expressão do homem progressista, ligado à humanidade por laços fraternos. Condena todos os que relutam em aceitar ou, pior, negam, o comunismo como via necessária de superação do estado desumano instaurado pelo capitalismo. Enfim, integrado ao sistema de ideias do marxismo-leninismo, o conjunto de proposições culturais, filosóficas e científicas do Estado stalinista, Dalcídio Jurandir partilha da compreensão radical e binarista do mundo afirmada pela matriz ideológica soviética. Ao realizar a crítica literária de Subterrâneos da Liberdade, a série de três romances de Jorge Amado, talvez o nome mais proeminente em se tratando de literatura e política no Brasil dos anos 30 aos 50, Dalcídio Jurandir faz, como esperado, o elogio do autor baiano, apontado pelo paraense como um dos maiores nomes da literatura nacional e como o maior exemplo de escritor de vanguarda àquela altura. No entanto, ao trazer para o centro da discussão o realismo socialista, o estilo oficial incentivado pelo próprio Partido e síntese do que seriam as tendências mais avançadas

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tanto esteticamente quanto politicamente, Dalcídio Jurandir lê de modo severo a obra de Amado pela muita ênfase no “socialista”, e muito descuido no “realismo”. Criticando as “licenças poéticas” excessivamente românticas que Subterrâneos da liberdade apresentaria para com as informações de fundo histórico, bem como a superficialidade e pouco desenvolvimento do caráter dos personagens, o autor de Marajó defende que a arte do romance deve dispor de acurada atenção para com o substrato histórico no qual o romancista constroi sua narrativa, esmerando-se também para que esse fundo não seja apenas um “quadro” que fique por detrás, mas que se ligue indissociavelmente às personagens que por ele transitam. Desse modo, entrelaçando profundamente o histórico ao individual, o romancista deve produzir uma imagem da vida, e não apenas um retrato de uma época ou de um caráter. Pela crítica à obra de Jorge Amado, Dalcídio Jurandir chega à conclusão de que, em se tratando de realismo socialista, é preciso ter em vista as vacilações possíveis, e naturais, em um caminho estético novo (eximindo, de modo sutil, o estilo oficial do Partido Comunista de quaisquer juízos negativos diretos), bem como a questão da aclimatação do estilo à representação de uma realidade outra que aquele de que emerge: se o realismo socialista fornece (e Dalcídio Jurandir não o nega) a representação da realidade revolucionária que encontrou vazão nas terras soviéticas, talvez seja preciso ter cautela ao transportá-lo para o solo nacional, no qual a revolução apenas se insinuaria. Afastando-nos da via do realismo socialista, abre-se a questão: como se dá o realismo em Dalcídio Jurandir? Seus textos críticos, além da defesa do “realismo” frente a quaisquer deformações “românticas” (mesmo aquelas empregadas para enaltecer as qualidades comunistas, como o fizera Jorge Amado), nos fornecem o conceito de “imagem” como o foco da prática do romancista. Especifica-se, então, a questão: como Dalcídio Jurandir constroi, segundo uma intenção de representação realista, a “imagem da vida” que o romancista deve construir? Pudemos observar, lendo os romances Marajó e Belém do Grão-Pará, os quais têm fortes cores das dinâmicas sociais locais (do latifúndio, no primeiro, e da decadência urbana de Belém, no segundo), que o escritor faz uso intenso dos elementos constituintes dos contos maravilhosos e do imaginário (as figuras do Príncipe heroico e da Borralheira; o conto dos Três Porquinhos) – uso que, entretanto, se caracteriza antes pela desconstrução do efeito próprio desses contos, qual seja, segundo Andre Jolles, o de restituir o sentido de justiça e equilíbrio do mundo, pela satisfação da “moral ingênua”. Subvertendo esse efeito e, por conseguinte, afirmando a injustiça, a imoralidade e o caos do mundo real, Dalcídio Jurandir traz para sua narrativa um forte acento negativo, trágico – o que, não se resumindo na mera negatividade, contribui para acentuar uma visão crítica da realidade,

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desvelando, nesse choque entre o maravilhoso e o real, os processos históricos permeados de tensões, conflitos e ambiguidades. Desse modo, Marajó mostrou-nos, a partir da questão do herdeiro Missunga, uma imagem da consolidação de um sistema produtivo explorador e desumano, fundado e perpetuado pela violência, mas também, através de Alaíde, o revés dialético dessa violência, que é o despertar do indivíduo para as condições que o oprimem. Belém do Grão-Pará, trabalhando fortemente a ideia da ruína e da decadência, com o desabamento das vidas de seus personagens, aponta para a dissolução necessária de formações históricas que, se perturba e transtorna os homens, traz consigo a renovação de suas vidas – movimento este protagonizado, segundo o entendimento marxista, pelas classes populares e exploradas. O realismo em Dalcídio Jurandir, portanto, atinge, pela apropriação e desconstrução do universo maravilhoso de acordo com um plano estético específico, a imagem dos processos históricos, e não um retrato das problemáticas regionais. Pudemos, chegados a esse ponto, desvincular sua narrativa do conteúdo regional, sem, por um lado, negar sua participação na fatura da obra, nem, por outro, afirmar vagamente a universalidade de sua escrita com base no “drama humano” ou na “força poética” de sua linguagem. Esses aspectos estão, indubitavelmente, presentes na obra, mas nos foi possível chegar mais concretamente a uma compreensão da dimensão mais ampla da arte do autor vinculando dialeticamente a singularidade do regional (as condições de vida do homem amazônico, a decadência pós-ciclo da borracha) à universalidade do histórico (pelo menos segundo o sistema de ideias marxista, partilhado pelo autor). Os elementos do tempo e da ruína se mostraram como as principais mediações entre as duas instâncias na composição dessa imagem particular que é o romance de Dalcídio Jurandir. A construção de um caminho estético próprio, com o afastamento do realismo socialista, permite-nos pensar na dissociação crítica que o escritor realiza entre o político e o artista. A confusão dos dois, a imprecisão nos limites e tarefas de cada um, foi uma das bases do juízo negativo que o crítico empreendeu sobre Os Subterrâneos da Liberdade, de Jorge Amado. Dalcídio Jurandir é um ativista político e é um escritor, mas não faz de seus romances panfleto, propaganda ou plataforma de defesa para a atividade partidária. No entanto, a política está, irremediavelmente, presente em sua obra artística. Tal interseção pode ser explicada pela natureza propriamente filosófica do sistema de ideias em que baseia tanto sua militância política quanto sua atividade estética e que engloba os dois: o marxismo, mais que diretrizes para a ação política é, também, um conjunto de proposições que pretendem fornecer uma compreensão da realidade do homem em suas

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dimensões sociais e existenciais – baseando a ação nessa compreensão. O artista liga-se a essa dimensão da compreensão filosófica procurando na obra de arte a imagem que a traduza para os demais, enquanto que o político, seguindo outro caminho, procura organizar essa compreensão em diretrizes pontuais voltadas mais à ação imediata. O que podemos observar, nos romances do ciclo do Extremo Norte, é a clara separação, pelo escritor, das duas esferas, sem, contudo, desvincular sua produção literária da visada política, mas também sem transformá-la em plataforma partidária, atingindo, pelas proposições de um sistema filosófico que embasam tanto uma quanto a outra, um ponto de contato entre a estética e a política.

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