Cidade em Pauta - Edição 12

Page 1

Cidade

7 Saúde

Lábio leporino Falta de informação e de hospitais especializados prejudicam o tratamento

14 e 15 Cultura

Um universo paralelo Ser gótico é muito mais que vestir preto. A subcultura gótica é música, é poesia, é cinema, é, acima de tudo, arte e essência

em pauta

UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ | COMUNICAÇÃO SOCIAL | JORNALISMO | 4º SEMESTRE Fortaleza, janeiro de 2007 - Ano IV - Nº 12

Foto: Ciro Figuerêdo / Colaborador

No ano passado, de acordo com a Junta Comercial do Estado do Ceará, nove motéis foram abertos em Fortaleza, somando-se aos quase 200 estabelecimentos existentes na cidade. Somente a Barra do Ceará concentra aproximadamente 10% desse total. A estabilidade é o grande atrativo para os empresários do setor Economia 4 e 5

10 Meio Ambiente

11 Cidade

8 e 9 Entrevista

Caranguejada

Bodegas

Renato Roseno

O Ceará é famoso em todo o país pelo consumo de caranguejo às quintas-feiras. O costume é mantido pelas 150 toneladas vindas, por mês, da região do Delta do Parnaíba. No entanto, pesquisadores afirmam que a excessiva retirada dos crustáceos causa desequilíbrio nos mangues

Espaços tradicionais do comércio em Fortaleza, as bodegas resistem em meio à concorrência de mercadinhos e supermercados

O advogado e ativista dos direitos da criança e do adolescente reflete sobre as várias faces da política, que devem ir além da disputa eleitoral e permear o cotidiano da sociedade

6 Esporte

Tênis de mesa

Berço de um expoente do tênis de mesa mundial, o Ceará não investe no potencial do esporte

Foto: Vitor Hugo Duarte

Foto: Edwirges Nogueira

O mercado do prazer


OPINIÃO

2

Editorial

Uma seleção natural Nós, estudantes de jornalismo, somos geralmente identificados pelo idealismo em relação à futura profissão e pela constante preocupação de se repensar os padrões. Apesar dessas características, é óbvio que muitas das peculiaridades do fazer jornalístico acabam fazendo parte da nossa rotina. Uma delas é a autocensura. Não é uma censura institucionalizada, burocrática, governamental. É justamente aquele tipo de censura que se faz não pela supressão, mas pela omissão. Ela aparece, por exemplo, quando um entrevistado faz uma declaração polêmica e o repórter opta por não publicá-la. Apesar de a autocensura fazer parte do trabalho dos jornalistas, existe uma outra questão essencial que, muitas vezes confundida com censura, vai além desta: a seleção de notícias. Num mundo em que o acesso à informação, pelo menos na teoria, se estende a um número maior de pessoas, selecionar os assuntos mais relevantes é um de nossos maiores desafios. Os critérios de seleção são vários. Temas pouco abordados pela grande mídia, questões que fazem parte da nossa vivência ou aqueles assuntos que, na

nossa concepção, seriam suficientes para se produzir não só uma, mas uma série de reportagens. É o caso, por exemplo, da matéria sobre a subcultura gótica. O envolvimento que as repórteres tiveram na sua produção fez com que a editoria de Cultura ganhasse mais uma página e uma diagramação diferenciada do padrão do jornal. Mas a seleção de notícias também gera decepções. Eis que numa reunião de pauta surgem os problemas: a falta de espaço no jornal, o choque de temas parecidos (entre cines eróticos e motéis, por exemplo, tivemos que optar pela segunda opção) ou o "furo" dado por outro veículo (uma de nossas sugestões de entrevista era a cearense Maria da Penha, entrevistada anteriormente pela Revista Entrevista, uma outra produção do curso). Certamente, é sempre uma decepção perceber que a tão sonhada reportagem não vai dar certo. Da mesma forma, no entanto, fica a certeza de que o insucesso da "pauta derrubada", como se diz no jargão das redações, representa mais uma lição. E essa lição, sem dúvida, irá nos acompanhar no exercício diário da nossa profissão.

Expediente Cidade em Pauta – Jornal Laboratório dos alunos do 4º semestre do Curso de Comunicação Social – Jornalismo – Universidade Federal do Ceará. Orientação: Professora Naiana Rodrigues - Reg. Profissional CE 01607 JP Monitor: Marcelino Leal Editores-chefes: Ivna Bessa, Thiago Mendes e Vitor Hugo Duarte Editoria de Fotografia: Callenciane Leão e Vitor Hugo Duarte Editoria de Diagramação: Alinne Rodrigues e Giselle Soares Editoria de Arte Arte: Giselle Soares Entre vista: Ivna Bessa, Terezinha Fernandes e Vitor Hugo Duarte Entrevista: Cidades: Thiago Mendes e Vitor Hugo Duarte Meio Ambient e: Ana Karolina Cavalcante e Talita Christine Ambiente: Economia: Edwirges Nogueira, Giselle Soares, Ivna Bessa Saúde: Lidiane Pereira e Carol Costa Comportamento: Carol Costa e Callenciane Leão Cultura: Lucíola Limaverde e Terezinha Fernandes Esportes: Mara Semyra Ensaio: Alinne Rodrigues e Diego Silveira Tiragem: 3.000 exemplares Impressão: Gráfica do Banco do Nordeste do Brasil S/A (av. Paranjana, 5.700 - Passaré) Contatos: 4009-7718 - Coordenação do Curso de Comunicação Social. Av. da Universidade, 2.762, 2º andar - Benfica. Email: cidadempauta@gmail.com

Fortaleza, janeiro de 2007

Excelentíssima irresponsabilidade Diego Silveira Antes que alguém se aprofunde na leitura deste artigo, vou logo informando que ele não traz nada novo. Nenhuma teoria revolucionária, nenhuma nova idéia conspiratória, nem mesmo uma visão política rica e aprofundada. É apenas mais um artigo, dentre tantos já escritos, a ressaltar a irresponsabilidade e a falta de compromisso dos políticos brasileiros. Perceba, leitor, que nem o tema é novo. Tem coisa mais antiga do que falar mal de político? E aqui vai outra pergunta: tem como deixar de falar mal de político, estando grande parte envolvida em escândalos de corrupção e esquemas fraudulentos? É mensaleiro, sanguessuga, vampiro, múmia, lobisomem... do jeito que as coisas andam vão faltar até apelidos.

O mais recente ato de imoralidade dos parlamentares (pelo menos de que tomamos conhecimento) foi a tentativa de aumento de seus salários. Preocupados em não conseguir pagar as despesas do mês, parlamentares reuniram-se com as Mesas Diretoras da Câmara e do Senado e, na calada da noite, resolveram aumentar os próprios vencimentos. Graças à reação da opinião pública e à iniciativa do Supremo Tribunal Federal, o aumento descabido de 91% foi suspenso. Essa tentativa de aumento salarial (não, não estamos falando do salário mínimo) é resultado de uma política irresponsável e descompromissada com o país. Mais uma vez ficou evidente o quanto os interesses dos parlamentares se sobrepõem aos da população. Legislar em benefício próprio e atrasar importantes projetos devido a

rixas partidárias são práticas antigas no exercício parlamentar e que não representam, sem dúvida alguma, nenhuma novidade. São práticas que, de tão fortemente enraizadas, dificilmente uma reforma política seria capaz de eliminar. Tal reforma vem sendo alardeada há bastante tempo, mas ainda não saiu do papel. A sua importância é reconhecida, mas os que estão por trás dela parecem não atentar para o fato de que não adianta uma política nova, reformulada, se aqueles que a fazem continuam sendo os mesmos. Mais do que as leis, são os políticos que precisam passar por uma reforma. Uma reforma ética, moralizadora, que os impeça de agir da forma irresponsável como agem. Não é aumentando os próprios salários que conseguirão dar um novo rumo ao país.

Velha no vidade novidade Síria Mapurunga Ligar a televisão em busca de novidades é ca-da vez mais difícil. A notícia de que uma jovem modelo morreu em conseqüência da anorexia já não abala os telespectadores acostumados com a "tragédia nossa de cada dia". A verdade, segundo o discurso repetido pela TV, é que essa ditadura da magreza imposta pelos padrões da moda deve acabar. E novamente o telejornalismo "imparcial" esconde parte dos fatos para proteger o meio de comunicação do qual sobrevive. Os escândalos políticos, os seqüestros-relâmpago, as novas epidemias, tudo aparece com a embalagem do novo, ocultando a velha "receita" pronta da notícia com enorme potencial de venda. De onde veio a idéia, ainda é um mistério, mas desconfio de

que o "modo de fazer" está ficando ultrapassado por causa de uma simples razão: os valores são outros. Diante dessa crise, a televisão já não satisfaz um público que opta pela diversidade em detrimento do "padrão Globo de qualidade". Sem abrir espaço para a discussão sobre a TV dentro do próprio meio, muitas emissoras encaram a realidade brasileira como se estivessem num mundo à parte, observando de fora um planeta vizinho. E quando alguém se questiona sobre a responsabilidade de uma mídia que, de tempos em tempos, estampa novos valores, a “espiral do silêncio” fala mais alto. Afinal quem ousaria emitir alguma opinião quando a de todos os outros é quase sempre a mesma? A propaganda do carro do ano é enfática: "o mundo inteiro dirige o mesmo carro".

Mais uma vez, não é preciso saber em qual país estamos, nem mesmo se grande parte da população tem condições de comprá-lo. Assim como o senhor que experimentou pela primeira vez um refrigerante e passou a fazer tudo aquilo que não tinha feito antes, o público é impelido a provar os mais recentes "sabores" da máquina de fabricar desejos. Como a publicidade já não satisfaz todas as aspirações, a Globo reproduz, em feriado nacional, um filme brasileiro que homenageia um cantor subversivo, relembrando o povo de que alguém aqui ainda está vivo. Mas quanta contradição! É como se chegasse a defender a inquietude de quem assiste TV, mas com a ressalva de que ela nada tem a ver com isso. Ironia do destino ou não, "o museu das grandes novidades", tal qual cantou Cazuza, continua repetindo o passado.


Fortaleza, janeiro de 2007

OPINIÃO

3

A voz do monitor

Mais que um aprendiz Marcelino Leal

O curso que queremos Luís Gustavo de Negreiros Há alguns anos, quando era estudante secundarista, ouvia fre-qüentemente um discurso empolgante: "os anos da faculdade são inesquecíveis, talvez os melhores da vida". Eram palavras comuns, ditas somente para que eu me esforçasse no estudo para o vestibular. Mas, para mim, que detestava a rotina de colégio, esse discurso tinha vida e me incentivava. O futuro parecia promissor. Fiquei ansioso para ingressar no mundo universitário. Estudei, passei, e hoje estou aqui, no 4º semestre do Curso de Comunicação Social, aguardando ainda, os dias tão especiais que não vêm. O motivo da frustração é simples. Basta tomar como análise a rotina da maioria dos estudantes do curso de Comunicação Social com habilitação em Jornalismo. Muitos estão sobrecarregados com as atividades do curso e, alguns estágios vêm sugando a energia de muita gente. O resultado que se vê é um cur-

so parado e sem atrativos fora da sala de aula. Não que seja preciso abandonar atividades importantes (trabalhos, estágios, estudos), mas o fato é que algumas pessoas esquecem que fazem parte de algo bem mais abrangente, chamado UNIVERSIDADE. O conceito é amplo e tem um sentido bem maior do que apenas assistir ou dar aula. É curioso, mas, contrariando muita gente, existe suporte material para se fazer bem mais do que está aí. Basta ir à coordenação ou ao departamento e conferir o que existe à disposição dos alunos: são 23 câmeras fotográficas, 10 gravadores, 20 câmeras profissionais filmadoras, um estúdio de TV, um estúdio de rádio, um laboratório de fotografia, 2 laboratórios de informática com computadores novos, um sistema de alto-falantes, 2 salas de audiovisual equipadas com DVD, Datashow, videocassete e notebook. Então, o que falta para que haja um curso mais vibrante? Idéi-

as? Comunicação? De acordo com alguns alunos, um dos grandes responsáveis pela apatia do curso é a falta de tempo, e nesse aspecto, alguns professores têm contribuído bastante. Ocupar todo o tempo dos alunos com atividades relacionadas somente com uma disciplina parece ser sina de alguns. Assim, como é possível que haja grupos de estudos, seminários, jornais, programas de rádio, se os estudantes têm que se preocupar exclusivamente com atividades de um só professor? É estranho, mas às vezes o desvirtuamento da idéia de Universidade vem de cima para baixo. Não acho impossível que, antes da formatura, ainda encontre no curso aquilo que almejava. Creio que uma mudança de postura, tanto da parte dos estudantes (minha também), como dos professores, para aproveitar o que há a disposição é uma das formas de melhorar. Existe material e, principalmente idéias, para se fazer muito mais.

Lembro-me como se fosse ontem da primeira reportagem publicada: segurança nos hospitais de Fortaleza. O medo de ir à rua e não conseguir colher informações suficientes era grande. Junto com a parceira de reportagem, fui a vários hospitais da cidade e até em um batalhão da Políca Militar, sem contar os contatos com a Guarda Municipal e postos de saúde. Aos poucos, fomos aprendendo a conversar e não a interrogar, o que foi essencial para conseguirmos as informações necessárias. Foi um grande aprendizado, confrontando informações com diretores de hospitais e rindo do excesso de arrogância de algumas fontes por nos achar “jovens demais”. O aprendizado não parou por aí. Apesar de ter produzido, à época, apenas uma matéria para o Cidade em Pauta, o meu contato com a disciplina “Jornal Laboratório” foi além de um único semestre. Um ano depois de ter sido aluno, tive a chance de voltar à disciplina, agora como monitor. A idéia da monitoria desenvolvida pelo Programa de Iniciação à Docência, da Universidade Federal do Ceará, possibilita ao aluno vivenciar, de certa forma, a prática da docência universitária. Em uma disciplina prática, a

monitoria é também a chance de desenvolver ainda mais o que foi aprendido anteriormente. E foi o que aconteceu. Em “Jornal Laboratório”, o monitor atua como uma ponte entre alunos e professor, contribuindo para o andamento das atividades. Por já ter cursado a disciplina, ele está familiarizado com algumas das dificuldades encontradas na hora de produzir as reportagens e ajuda o professor, apontando deficiências e buscando novas formas de transmitir o conteúdo. Parte da diagramação do jornal e da edição final dos textos também fica por conta do monitor. É este exercício “extra” que conta ao final de um ano de acompanhamento de duas turmas. A monitoria funciona como uma continuidade do aprendizado. O contato direto entre os alunos ajuda a renovar o conhecimento dentro da Academia, como vemos nos diversos trabalhos produzidos para os encontros de monitoria. Que venham mais bolsas de monitoria para a universidade, inclusive para o curso de Comunicação Social, que possui apenas três bolsistas monitores. Quem sai ganhando não são apenas os alunos, mas a própria sociedade, que poderá contar com uma leva de profissionais mais bem qualificados.


ECONOMIA

4

Fortaleza, janeiro de 2007

As cifras do amor Os motéis estão presentes em vários bairros e são quase 200 em toda Fortaleza, demostrando que o amor é um bom negócio

O fato de haver cerca de 200 motéis na cidade é expressivo por si só. Mas não significa que novos estabelecimentos estejam sendo abertos a ponto de ultrapassar números anteriores. De acordo com dados da Junta Comercial do Estado do Ceará, nos anos de 2004, 2005 e até novembro de 2006, houve um decréscimo no número de abertura de novos motéis - foram 21, 18 e 9, respectivamente. Em contraponto, nesse mesmo

Somente o “Lótus Motel”, um dos maiores da cidade, emprega 40 pessoas. Segundo Roberto Dias, gerente administrativo do Lótus, que está há 11 anos no mercado, todos os funcionários trabalham cumprindo o regime trabalhista. Ele explica que o motel segue uma sazonalidade. “Há uma série de variações. Os períodos mais movimentados são Dia dos Namorados, Dia das Mães, véspera de feriados e feriados prolongados. Durante a semana, o movimento aumenta por volta das 10h30 e na hora do almoço”, conta.

período, os registros da Junta Comercial não acusam nenhum decreto de falência. A atividade do mercado dos motéis é muito dinâmica. Mudanças estruturais e administrativas acontecem constantemente. O tradicional motel “Cê Que Sabe” mudou de administração há menos de um ano e está passando por reformas. “Estamos inovando nos equipamentos: trocamos aparelhos de ar condicionado, televisores e estamos mudando a de-

Aquém do romantismo “Motel? Se fosse, pelo menos, hotel...”. São assim os comentários dos conhecidos de Silvana. Ela não esconde a vontade de trabalhar em hotel, mas isso não se deve ao preconceito que as pessoas têm do seu trabalho. “Antes eu tinha vergonha de falar, mas hoje não tenho mais. Se fosse um motel de quinta, eu teria”. Silvana [nome fictício] enfrentou comentários mais ácidos dos vizinhos: “Quem trabalha em motel é puta” e “Ela tá é fazendo programa”. Até a própria mãe, conforme conta Silvana, agiu com preconceito: a filha de 9 anos de idade lhe falou que a avó dizia que Silvana trabalhava no cabaré. Para confrontá-los, Silvana conta que mostrou-lhes a carteira de trabalho e as fotos dela tiradas no motel. “Olha como meu emprego é chic”, diz. Segundo José Lopes Lima, por conta da vergonha, os próprios funcionários acabavam se discriminando. Assim, apesar de não terem carteira assinada, eles não denunciavam os donos de motéis. Ele, entretanto, acredita que hoje não há mais preconceito. Segundo ele, o Sindicato visita os motéis, promove palestras e tenta conscientizar os funcionários.

coração”, conta Ellison Santos de Castro, proprietário do motel. Nesse ramo, essas inovações são importantes para se ter uma boa aceitação. DESENHO URBANO Como qualquer outra obra, os motéis devem seguir a Lei de Uso e Ocupação dos Solos, legislação que data de 1996 e define critérios para a construção de imóveis na cidade. Alan Arrais, chefe do Distrito de Meio Ambiente da Secretaria Regional IV, explica que o projeto do motel tem que se enquadrar na lei

A privacidade dos casais é uma preocupação constante nos motéis para que lhe seja concedido o alvará de funcionamento. De acordo com a lei, os motéis se encaixam no serviço de hospedagem e podem ser erguidos em quaisquer das vias da cidade. “Há motéis construídos vizinho a escolas, mas não há restrições na lei que impeçam que isso ocorra”, diz Alan Arrais. TRABALHO PUXADO Silvana [ nome fictício] trabalha há quatro anos em um motel, mas não se satisfaz. “O horário é muito puxado, há muito serviço”. Ela explica que

Foto: Callen Leão

Sexo é assunto presente em praticamente todas as esferas do círculo social. Impossível não pensar nele todo dia: a presença maciça dos motéis na paisagem urbana – com suas placas e nomes sugestivos – sempre nos remete ao assunto. De acordo com o Sindicato Intermunicipal dos Trabalhadores do Comércio Hoteleiro, Similares, Turismo e Hospitalidade, há, aproximadamente, 200 motéis em Fortaleza. Esses estabelecimentos empregam formal-mente mais de 6 mil pessoas.

Foto: Edwirges Nogueira

Edwirges Nogueira, Giselle Soares e Ivna Bessa

sua jornada de trabalho é de 24 horas, com direito a 48 horas de folga, durante a semana, e de 36 horas, com direito a folgar 24 horas, nos fins de semana. A partir dessa lógica, o emprego de Silvana se encaixa no que a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) define como trabalho noturno, mas ela conta que não recebe o adicional noturno – porcentagem de 20% sobre o salário. “Na folha de pagamento é como se eu recebesse, mas isso não acontece”. Ela também trabalha sem descanso. “A gente bate o cartão à meianoite para descansar, mas ninguém pára de trabalhar”, revela. Silvana conta que a cada visita da Delegacia Regional do Trabalho ao motel, que ocorre trimestralmente, os demais empregados se mobilizam para reclamar, “mas eles sempre ficam do lado do patrão”, diz. “Os donos de motéis querem fazer uma carga horária diferenciada”, diz José Lopes Lima, diretor para assuntos jurídicos e homologação do Sindicato Intermunicipal dos Trabalhadores do Comércio Hoteleiro. Para ele, os funcionários se submetem a uma carga horária maior por medo de perder o emprego. “Quanto menor o motel, mais problema ele tem”, completa.


ECONOMIA

Fortaleza, janeiro de 2007

5

A Barra do Ceará tem a maior concentração de motéis da cidade — são, pelo menos, 20, de acordo com dados do Sindicato Intermunicipal dos Trabalhadores do Comércio Hoteleiro. “As pessoas fazem sexo, mas elas não querem que saibam disso. Por isso, não há uma concentração de motéis na área central da cidade — seria um acinte à moral do fortalezense. Eles se concentram na periferia para que as pessoas não sejam vistas”, é o que afirma o arquiteto e urbanista Augusto César Paiva, diretor de Política Urbana do Instituto de Arquitetos do Brasil — Ceará (IAB-CE). Devido à grande quantidade desses estabelecimentos, é fácil chegar à conclusão de que ter um motel na Barra do Ceará é um bom negócio, mas não é o que diz Reginaldo Araújo. “É um péssimo negócio. Os outros empresários querem derrubar a gente. A concorrência é

muito desleal”. No ramo de motéis há quatro anos, Reginaldo é proprietário de três, todos localizados na Barra do Ceará. Seguindo a legislação vigente, pagando os impostos e cumprindo com os direitos trabalhistas de 25 funcionários — todos moradores do bairro —, ele diz que perde clientes para motéis que cobram preços abaixo do padrão. “Há muitos motéis sem regularização. Por isso, eles cobram preços com os quais não dá para competir”. Para ele, o que se pode fazer para driblar a concorrência é oferecer bom atendimento e qualidade nos serviços. José Lopes Lima, do Sindicato, confirma o que diz Reginaldo. “Há muitos motéis irregulares na Barra do Ceará. Alguns não possuem sequer vínculos empregatícios com os funcionários, porque são totalmente geridos por membros de uma mesma família”. Reginaldo explica que o movimento no motel é maior nos finais de semana e que, durante o ano, o melhor

Foto: Edwirges Nogueira

Bons vizinhos

A vista para o Rio Ceará dá o tom de romantismo aos motéis da Barra período são os últimos meses. Porém, ele lamenta que isso não tenha acontecido em 2006. “Deveria estar bom”, desabafa. Elisson Santos de Castro, proprietário do Cê Que Sabe,

concorda com Reginaldo. “Ter um motel na Barra do Ceará já foi um bom negócio. A concorrência é muito grande e não dá para competir com os valores cobrados pelos outros

motéis”. O empresário, de apenas 19 anos, emprega 14 funcionários e revela que a estratégia é “fazer valer o valor cobrado”, que varia entre R$ 12 e R$ 35.

Uma entrada discreta, a recepcionista tenta não olhar no seu rosto, mas pede prontamente, sem vacilar: “A identidade da acompanhante, por favor”. O carro entra e há uma fileira interminável de pequenas garagens. Olha-se a chave, acha-se o quarto. Pronto, agora é privacidade. Nos melhores (ou mais caros) motéis de Fortaleza, pode-se encontrar, em algumas horas de intimidade, muito luxo. Os quartos costumam ter ar-condicionado, TV, som, frigobar, chuveiro com água quente e muitos

espelhos. Há ainda, nos quartos mais caros, banheira com hidromassagem, sauna e os mais variados tipos de acessórios (de peças íntimas a cadeiras eróticas). Alguns chegam a ter piscina ao ar livre (com direito à cascata), boate, mesa de sinuca, jardim e uma garagem para dois carros — um espaço para pequenas festas. Sem tanto luxo e tanta privacidade, o Centro de Fortaleza é uma das regiões da cidade conhecida pela grande quantidade de motéis. O Centro ficou famoso por seus motéis

baratos. Enquanto, em motéis de grande porte, o quarto mais simples costuma custar no mínimo R$ 20, em motéis do Centro, o preço do melhor quarto chega a R$ 15. Apesar do preço, quem acha não ser possível encontrar qualidade nesses ambientes se engana. Há quartos equipados com cadeiras eróticas, iluminação diferenciada, e mesmo apetrechos para brincadeiras no mínimo curiosas, como uma barra de metal em forma de semicírculo utilizada para os mais diversos propósitos,

dependendo da imaginação de quem ocupar o quarto. Como disse uma camareira de um motel do Centro, “é uma brincadeirinha”. Engana-se também quem pensa não haver, nos motéis do Centro, disciplina por parte dos funcionários. As camareiras têm por regra nunca olhar o cliente nos olhos quando passam pelos corredores. Elas baixam a cabeça. Uma das camareiras contou já ter encontrado um conhecido em seu ambiente de trabalho. De acordo com ela, a situação foi constrangedora para ambos.

Foto: Giselle Soares

Luxúria com ou sem luxo

A diferença entre os grandes motéis e os motéis do Centro vai além do preço.


ESPORTE

6

Fortaleza, janeiro de 2007

Grande potencial e pouca oportunidade Introduzido no Brasil em 1912, o tênis de mesa busca a popularização através do exemplo de atletas de fama internacional Mara Semyra preconceito. “Apesar de o Estado do Ceará sempre ter tido alguns bons jogadores existe um preconceito com jogadores do Nordeste. Creio que isso não se limita só ao esporte, mas eu desde sempre soube que teria que conviver com isso se quisesse seguir a carreira. Na verdade, isso me motivou mais, pois sou muito orgulhoso de ser cearense e queria provar que era capaz. Hoje, acho que sirvo de exemplo para os nordestinos que querem seguir essa carreira”, declara. Apesar de colher bons frutos, o esporte no Ceará precisa de mais apoio para voltar a ser uma grande potência nacional. Segundo José Augusto, a Foto: Divulgação

Você sabia que o maior mesa-tenista brasileiro da atualidade é cearense? E que o Ceará já foi a 3ª força do tênis de mesa no país? E ainda, que é o estado do Nordeste mantenedor da melhor infra-estrutura para a prática deste esporte? É fato que o tênis de mesa não é um dos esportes mais populares do Ceará. Mas o que muitos não sabem é que saiu do clube dos Diários, quando ainda funcionava na Av. Beira-Mar, um dos maiores atletas de tênis de mesa do Brasil. Thiago Monteiro, 25 anos, começou a praticar o esporte aos seis e aos 15 decidiu seguir carreira. Foi nessa época também que o atleta deixou o Ceará e foi treinar em São Paulo. Thiago conseguiu entrar para o seleto grupo do Ranking da IT TF(Federação Internacional de Tênis de Mesa). “Quero ter bons resultados para me manter entre os 100 melhores do Mundo”, afirma. Muitos atletas de várias modalidades precisam sair do Ceará para ganhar destaque, já que o nosso Estado não oferece muitas oportunidades na área. Não é diferente no tênis de mesa. Thiago treina hoje na França. Até chegar ao Lyon, clube francês onde atua, o mesa-tenista precisou de muita perseverança. “O Ceará é o estado que tem hoje a melhor estrutura do Nordeste, o que não era o caso quando eu jogava. Mas eu e outros atletas sempre tivemos apoio das famílias para treinar e participar de torneios. Hoje, se encontram no Ceará atletas talentosos, mas que não têm a mesma vontade de seguir carreira”, diz Thiago. No Ceará, os praticantes do esporte contam com o apoio de uma Federação e alguns mesa-tenistas recebem apoio do Governo Federal

Thiago Monteiro deixou o Ceará em 1997 e hoje treina na França através do Bolsa-Atleta. Segundo o presidente da Federação Cearense de Tênis de Mesa, José Augusto Barbosa Góes, é verdade que existe uma boa estrutura, mas as dificuldades para mantê-la são enormes. “A Federação é uma associação sem fins lucrativos. Não recebe qualquer tipo de ajuda para sua manutenção. O que ela recebe é o apoio para algum evento, além de passagens para atletas viajarem para algun campeonato”, conta. Segundo sua própria diretoria, “a Federação Cearense de Tênis de Mesa foi fundada em 05 de outubro de 1978 com o intuito de dirigir e incrementar a pratica deste

esporte em todo o Estado”. A instituição realiza anualmente três competições oficiais: o Campeonato Cearense Individual, realizado em categorias; o Estadual de Clubes; e de Duplas. Além disso, vários atletas do Ceará viajam o país em competições nacionais. Um exemplo é Paulo Molitor, atual primeiro colocado do ranking cearense. O mesatenista já chegou à final de competições como a Copa do Brasil. Thiago Monteiro sabe da importância desses atletas ganharem espaço no cenário nacional e avisa que além dos problemas de apoio para chegar aos grandes resultados, existe também o

atual safra de mesa-tenistas cearenses não é satisfatória devido às dificuldades para a compra de material e a falta de apoio aos treinadores. Thiago Monteiro também acha que este último fator está limitando o potencial dos cearenses. Ele diz ainda que não tem previsão para voltar à cidade natal. “Eu gostaria muito de poder voltar para Fortaleza, mas creio que para minha profissão infelizmente não é o melhor local. Eu tento ajudar como posso, mas no Ceará é realmente muito difícil de se fazer um trabalho voltado para o tênis de mesa, viver disso”, diz o atleta já classificado para o Pan 2007. O Pan-Americano é um dos compromissos mais importantes para Thiago Monteiro este ano. “Além do Pan, temos o Mundial Individual, o LatinoAmericano e vários torneios do Circuito Mundial, todos antes do Pan. Quero chegar no Pan com confiança e com chances de lutar por uma medalha”, afirma. Para os demais mesa-tenistas cearenses as competições nacionais são o destaque deste ano, além dos campeonatos estaduais que sempre revelam novos talentos.

Onde praticar tênis de mesa ACTM - Academia Cearense de Tênis de Mesa R. Luiza Miranda Coelho, 953 - Luciano Cavalcante Fortaleza - CE AATM - Academia Apuiareense de Tênis de Mesa R. Maria Júlia, 50 - Centro - Apuiarés - CE ACESA - Associação Cultural, Esportiva e Social de Apuiarés Av. Gomes da Silva, s/n Centro - Apuiarés - CE ATMT - Associação de Tênis de Mesa de Tejuçuoca Centro de Tejuçuoca - CE


Fortaleza, janeiro de 2007

SAÚDE

7

A dedicação faz a diferença O tratamento da fissura labiopalatal exige dedicação de pacientes, familiares, e profissionais Lidiane Pereira e Carol Costa O desconhecimento dos fatores que geram a deformidade e da existência de tratamento colabora para que muitos pais só procurem os hospitais especializados quando os filhos estão em uma idade considerada "avançada" para a realização da primeira operação. Para José Ferreira, quanto mais cedo o tratamento for iniciado, melhor. "Normalmente, a primeira cirurgia acontece quando a criança é recémnascida e o tratamento pode durar até a adolescência", afirma. Ele chama a atenção para o fato dessas crianças precisarem de um acompanhamento psicológico, pois chegam a sofrer preconceito até dos familiares. Segundo a assistente social do Naif, Regina Celi Barreto, muitas mães abandonam as crianças após o parto por não aceitarem que seus filhos tenham essa deformidade. Helena Mendes, tia de duas meninas com lábio leporino, afirma ter se assustado quando a primeira sobrinha nasceu. "Quando a primeira nasceu foi um susto muito grande para a família. Com a segunda, já sabíamos como proceder", explica. Uma das principais dificuldades apontadas pelos pais é o preconceito que elas sofrem nas escolas. Constrangido com as piadas que os colegas faziam, Nicolas Silva Santos, sete anos, pediu à mãe para ser operado. A mãe, Glauciane Silva de Castro, relata que a vontade do filho em fazer o tratamento contribuiu para os bons resultados. "Ele tinha vergonha da fala dele e ficava triste com as brincadeiras dos outros meninos. Ele fica ansioso a cada operação", afirma. O Albert Sabin atende um grande número de pacientes vindos do interior do Estado,

pois na maioria dessas localidades não há profissionais especializados, fato que sobrecarrega as unidades de atendimento da Capital. É o caso de Sandra da Silva, que vem três vezes ao mês de Capistrano para tratar da fissura do filho Carlos Vinícius, de oito meses. Para os pais dessas crianças é bem mais difícil manter o tratamento. Muitos não têm dinheiro para pagar as passagens e não têm parentes na cidade que os acolham durante o proces- O tratamento das fissuras labiopalatais começa cedo. so. Muitas dessas crianças interrompem o tra- não encontram atendimento encaminhamento para Fortatamento na metade, pois ao fonoaudiológico e, na maio- leza, devido à grande procuvoltar para as suas cidades ria das vezes, não conseguem ra por esse serviço. Foto: Lidiane Pereira

As crianças que nascem com lábio leporino (ou fissura labiopalatal), má formação congênita, sabem muito bem o quanto custa um sorriso. Ao contrário do que muitos pensam, o tratamento é longo, envolve vários profissionais e exige muita dedicação dos pacientes. Segundo o especialista em cirurgia buco-maxilar do Hospital Infantil Albert Sabin (Hias), José Ferreira, na maioria dos casos são necessárias mais de uma operação para que a criança tenha êxito no tratamento. O médico afirma que além das cirurgias, a criança deve passar por tratamentos odontológico, psicológico e fonoaudiológico. A fissura labiopalatal é uma abertura do lábio ou palato (céu da boca) do recém-nascido que pode ser ocasionada principalmente pela má alimentação da mãe durante os três primeiros meses de gestação e por problemas hereditários. O Hias é referência no Estado nessa especialidade e realiza, em média, 25 cirurgias por mês. No entanto, esse número não atende à demanda. "Há mais de mil pessoas à espera do tratamento só no Albert Sabin. E a cada dia nascem mais crianças com o problema", ressalta José Ferreira. De acordo com a coordenadora do Núcleo de Atendimento Integrado ao Fissurado (Naif), Eveline Gondim, o Albert Sabin conta com uma equipe de dois médicos ortodentistas, um buco-maxilar, sete cirurgiões plásticos, três fonoau-diólogos, um geneticista, um pediatra e uma assistente social. A equipe é especializada no tratamento de crianças com fissuras, mas também não é suficiente para o número de casos.

Eles fazem tudo por um sorriso Uma pequena sala em um pátio interno do Albert Sabin. Assim é a sede da Associação Beija-Flor. Criada em 2001, a associação acompanha os fissurados atendidos pelo hospital. Formada por, aproximadamente, 16 profissionais e 10 mães voluntárias, a Associação já atendeu 1.465 crianças com lábio leporino desde sua fundação, em 2001. A entidade tem como objetivo dar apoio aos pais dos fissurados e ajudar na conscientização da sociedade a respeito do problema. Dessa maneira, oferece o acompanhamento de uma assistente social e distribui kit higiene para o pós-cirurgia, vale-transporte e cestas

básicas, no caso de famílias carentes. A equipe dos profissionais do Naif dá suporte à associação de forma voluntária. Além dos profissionais, a Associação conta com a ajuda das mães voluntárias, que participam de organização de reuniões, auxiliam na distribuição de fichas, no encaminhamento de consultas e, principalmente, dão apoio às mães que vêm do interior e são carentes tanto de assistência quanto de informação. Há três anos, Elíula Teixeira veio a Fortaleza à procura de tratamento para o filho e hoje dá o apoio que não teve quando chegou ao Hospital. "Eu vi a necessidade de

ter alguém para orientar porque eu não fui orientada", explica. Para ela, o contato com mães que passam pela mesma situação é fundamental para a continuidade do tratamento. A Associação também promove e participa de campanhas para arrecadar recursos e informar a sociedade. Ela se mantém com doações e campanhas. Uma delas é a "Sua nota vale dinheiro", que rendeu R$ 10 mil reais para a instituição em 2006. Esse dinheiro contribui para a manutenção, mas não supre as necessidades financeiras. Apesar disso, os voluntários desejam construir outra sede e, a longo prazo, um hospital especializado em fissuras.


8

ENTREVIST A ENTREVISTA

Fortaleza, janeiro de 2007

Pensar o não pensado, criar o não criado Após a candidatura a governador do Estado, Renato Roseno pontua questões no CIdade em Pauta sobre infância e adolescência e uma política que não se limita aos partidos Ivna Bessa, TTerezinha ernandes e erezinha FFernandes Vitor Hugo Duarte Símbolo de um partido recém-nascido, o P-Sol, ele representa também uma luta antiga: a garantia dos direitos de crianças e adolescentes. Pegando esses dois ganchos, a política e os direitos da infância, o Cidade em Pauta entrevistou, na sede do P-Sol, Renato Roseno. Ele foi, sem dúvida, a revelação das últimas eleições para governador. Roseno era bastante conhecido, mas apenas no meio acadêmico ou entre as ONG's. Em outubro passado, ele conseguiu uma marca histórica. Apesar de, proporcionalmente, ter tido poucos votos em relação aos outros candidatos ao governo do Ceará, Renato Roseno foi o que recebeu o maior número de votos entre os governadores que disputaram as eleições pelo P-Sol. À base de muito café (ele disse quem sem café ficaria nervoso), conversamos por mais de uma hora com Renato Roseno, que se mostrou ainda um apaixonado pela política. Cidade em Pauta - Quais os desafios que o novo governador terá no combate à violência sexual? Renato Roseno - Não vai ser exclusivamente uma política pública governamental que vai superar o problema da violência sexual. Eu não tô dizendo que não é de responsabilidade dos governos. Eu tô dizendo que o problema é de ordem estrutural. Qual é a responsabilidade hoje, portanto, do poder público? É implementar o que a sociedade brasileira produziu de estratégia pra o enfrentamento da violência sexual. O quê que é isso? Em 94, acontece o primeiro Congresso Mundial contra a exploração sexual. O enfrentamento da violência sexual passa por diferentes enfoques. Você tem o enfoque eminentemente repressivo, que ele é, depois que a violência é cometida, prender o agressor e acabou-se. A partir da década de noventa, você tem um enfoque que é mais integrado, mais complexo, que é a idéia de se enfrentar a violência. O plano de ação brasileiro é de 2000, maio. E ele é criado com base em seis diferentes estratégias e eu acho que isso é acertado. Analisar a situação, ou seja, é necessário que a gente produza mais conhecimento, por isso que eu acho muito importante que a Universidade se envolva nessa temática. O quê que é a violência sexual, onde ela acontece e como acontece? A segunda estratégia é a da prevenção. Como é que previne a violência sexual? Bom, com educação

sexual. Terceiro: e se o crime acontece? É necessário atender. Aqui está a grande lacuna governamental. O quê que acontece com uma menina em Deputado Irapuã Pinheiro, Ererê, Santana do Acaraú que é abusada sexualmente pelo pai? Qual é a rede de atendimento? Primeiro, nós não temos nem delegacias policiais em todos os municípios. Mas digamos que no município em que ela resida haja uma delegacia. Será que o delegado está qualificado pra prestar um atendimento a uma vítima de violência sexual? E violência sexual infantil... É. E, por exemplo, nós só contamos com três IML’s e é fundamental o exame sexológico em alguns casos. Daí chegando diretamente a sua pergunta: eu acho que o grande desafio é ampliar a capacidade de atendimento. E isso não é muito caro, ao contrário do que se possa pensar. Qual é a via crucis, como a gente chama, da garota vítima da violência sexual? Digamos que ela revela a violência sexual. Dependendo do caso, ela passa pela rede de saúde, pelo Conselho Tutelar, pela polícia, pelo IML, pelo Judiciário. Mesmo que o atendimento fosse perfeito em cada uma dessas instituições, ainda é um atendimento profundamente “revitimizador”. Quarta estratégia é a mobilização. Você não faz nada sem mobilização social e aí entra a comunicação. É claro que é importante que no mês de maio, que é o mês do dia nacional de combate.

Dia 18 de maio [Dia Nacional de de sua criação? Combate à Violência Sexual O que é a luta pelo Estatuto da contra Crianças e Adoles- criança? É a luta pelo reconhecimento da humanidade centes]... na infância. No final do Isso. Mas é importante que século XX é que a isso seja permanente, né? “Eu não era infância passa a ter um De cada caso denunciado, tem cinco não denunciados. ingênuo. Eu sabia outro status político e, Essa é a estimativa de cifra qual era o papel portanto, jurídico, nas sociedades ocidentais. É oculta. Então, tem que que a história muito interessante você mobilizar a sociedade. Pra pegar os jornais nos colocava ela se colocar de pé contra brasileiros do final do esse tipo de violência, naquele século XIX e analisar... portanto ela vai denunciar momento” Porque havia duas mais, mas, se ela denunciar categorias de criança, né? mais, é necessário haver Claro, a criança filha da uma maior capacidade de atendimento. E nós superamos a fase elite e a criança que era o menor. de não saber o que fazer. Nós sabemos Então, essa que era o menor tinha que o que fazer. Em 2001, nós fizemos um ser o objeto da regulação, objeto de plano estadual e entregamos pro uma intervenção higienista. Você tem governo da época. E entregamos pro uma segunda fase que é da década governo que agora se finda. Em 2002 de 30 até o final de 70, que é essa da ainda, logo após a eleição do atual situação irregular, da doutrina da governador, nós tivemos audiência com situação irregular. E você tem a ele antes da sua posse e entregamos o terceira fase que é essa dos direitos. Plano Estadual de Enfrentamento à Que é o período da redemocratização, da afirmação dos direitos. Então o Violência Sexual. Mas, infelizmente... ECA o que que ele é? Ele é a lei que expressa essa luta. O artigo 227 da E o que foi feito? Nada. [...] Aí tem a quinta estratégia Constituição, que é o artigo que dá que é a defesa e responsabilização, origem ao ECA, nasce de um milhão ou seja, o agressor tem que ser e meio de assinaturas. O Brasil de 87 responsabilizado. Nós, à luz do plano e 88 produziu um milhão e meio de nacional, também elaboramos seis assinaturas. Será que o Brasil de 2006 grandes estratégias em âmbito faz isso? Então, a questão hoje que se coloca pro ECA não é o ECA em si, estadual. mas é do imaginário da sociedade O Fórum de Enfrentamento [à brasileira em relação a essa lei. Violência Sexual contra Crian- Infelizmente o grande problema do ECA é que ele não é implementado. ças e Adolescentes]? É. O Fórum nasce de 2000. Uma coisa Não só ele não é implementado, como que é importante da experiência ele é atacado profundamente. cearense é essa: é da associação. Quem introduz esse tema na esfera pública Um dos ataques diz respeito à cearense é o movimento de mulheres, história de dizer que o ECA que diz: “Olha, as nossas crianças e ameniza um ato infracional adolescentes estão sendo vítimas cometido por criança e sexuais”. Isso na década de 80. O Ceará adolescente, mas existe as teve uma participação especial na medidas... elaboração do Plano Nacional. Então Socioeducativas, claro. É engraçado a gente traz pro Ceará esse coletivo de que a verdade é o contrário. Se você organizações da sociedade civil. Foi o for analisar um assalto cometido por um adolescente, um assalto cometido primeiro plano estadual do Brasil. por um adulto, e você for analisar a Como o senhor avalia o ECA velocidade do processo de [Estatuto da Criança e do responsabilização do adolescente e o Adolescente] depois de 16 anos processo de responsabilização do


ENTREVIST A ENTREVISTA Foto: Vitor Hugo Duarte

Fortaleza, janeiro de 2007

filósofo italiano]. E nesta sociedade política, o formato partido é necessário para se intervir. Eu fui filiado quinze anos ao PT.

E por que sua escolha pelo PT ? Porque o PT era a síntese do que havia de mais criativo na década de noventa, de um outro projeto pro Brasil, né? Eu tinha dezessete, dezoito anos quando eu fui fazer a campanha do Lula em 89. Eu tava na universidade, primeiro semestre de direito, em 89. Era um local de efervescência, você tava tendo contato com pessoas, com o pensamento, com o saber e com a Renato Roseno defende a democracia participativa crítica e com a possibilidade de estabelecer um outro adulto, o Estatuto é profundamente, projeto pro Brasil. E o PT era a síntese mas é indiscutivelmente, mais célere disso. Eu não fico feliz com os caminhos que o PT adotou. Eu não na responsabilização. posso ficar feliz. Não posso celebrar Como você saiu do movimento da o fato dessa experiência não ter sociedade civil, das ONG’s, pra produzido pro Brasil o que ela se política partidária? Você sempre propôs a produzir. foi militante... O que é o PT hoje? Sempre fui militante. É. Quando você vê as campanhas que o Mas como decidiu ser candidato, PT fez agora em 2006, são campanhas entrar na política partidária completamente tradicionais, são convencionais na sua ética e na sua realmente? A política tem diferentes mecanismos, estética. O que que era a “Carta ao tem diferentes linguagens, diferentes povo brasileiro” em 2002? Aquilo não padrões organizativos. O padrão era o programa do PT. Era uma carta, partido é um padrão. Eu me na verdade, dizendo ao povo brasileiro reconheço como ativista, participan- que o PT tinha um candidato que não do desses processos desde a época de ia fazer o programa que o PT movimento secundarista. Mas você historicamente se propôs a conduzir. pode até me perguntar por que que a Eu não celebro isso. Isso é muito ruim, gente se envolve com isso? Eu acho isso causa muito sofrimento. Agora, que em alguma medida porque você trago esse sorriso porque já chorei quer criar algo, você quer dar vazão a demais. Tem um momento que você um certo incômodo, entender a tem que parar de chorar, você tem que realidade como se entende, são vários estabelecer, criar alternativas. Eu não caminhos que te levam a isso. A política queria fazer apologia nem de partido partidária é um caminho que tem a sua e muito menos do P-Sol. Eu quero importância na luta pela transfor- fazer, na verdade, é a defesa de que as mação social, mas me parece que, na pessoas têm que fazer a política. sociedade contemporânea, a gente Porque o que está em jogo é a precisa pensar outros mecanismos de destruição da política como fazer política. Eu começo a responder pela humano, como possibilidade de crítica. Não acho que o formato construir nova humanidade. É pensar partido, tenha que ser o único formato, o não pensado, sentir o não sentido, até porque nunca foi. Infelizmente ou criar o não criado. Espaço de inovafelizmente você tem uma certa agenda ção. Não pode ser espaço de estabeeleitoral da disputa do Estado, você lecimento, de manutenção de poder, tem um campo aí da sociedade política, porque isso é a direita que faz, não a como diria o Gramsci [político e esquerda. A esquerda tem que pensar

a política como um espaço de exercício do novo, de nova ética, de nova estética. E como o senhor viu os resultados das eleições em relação à campanha? Achei muito bom. Obviamente ficamos muito tristes porque não reelegemos o nosso deputado federal [João Alfredo]. O Ceará e o Brasil perderam um excepcional parlamentar, por todos os motivos, do ponto de vista da qualidade da sua intervenção política. Esse é o nosso revés. Agora, do ponto de vista da candidatura majoritária, eu me surpreendi. Se você imaginar que a gente teve quase sete por cento em Fortaleza, uma campanha que custou R$ 38.654,00, que era completamente transparente, todos os doadores estavam semanalmente publicados na Internet com seus CPF’s. Pensar que as outras candidaturas gastaram, respectivamente, 11 milhões e pouco e 19 milhões e pouco, né? O senhor ganhou visibilidade política principalmente aqui em Fortaleza. O P-Sol pensa em lançar seu nome pra prefeitura de Fortaleza em 2008? Não. A gente não está discutindo isso. E eu não sei também se eu quero. Eu fui cumprir um determinado desafio em 2006, porque 2006 foi um ano muito complicado para a política. Porque foi um ano de muita desesperança, de muito desânimo. Então vocês ainda não pensaram em uma candidatura? E nem em quem vão apoiar? Não. A gente não pode pensar a política só dentro da agenda eleitoral. A gente tem que fazer um exercício de reflexão. A gente não pode acenar pra sociedade, porque nós somos sociedade, que a gente só vai lidar com a política de quatro em quatro anos. Tem uma pensadora britânica, Hilary Wainwright, que ela diz assim: “democracia é equidade na participação e controle popular”. O Brasil tem 5.573 municípios e tem o mesmo padrão de governo pra um município que tem doze milhões, São Paulo, e um município que tem 4.800, General Sampaio. Você não acha que General Sampaio, Itaitinga, Aracati, podiam ter um padrão de governo, de gestão pública, muito mais democrático? Eu defendo que nos municípios nós podemos ter padrões de exercício de democracia, de controle popular muito mais elaborados. O Canadá, a França, a Holanda, a depender do tamanho da municipalidade, você tem padrões

9 diferenciados do exercício democrático. Não necessariamente a democracia representativa é a melhor democracia pra uma municipalidade de 5 mil habitantes. Por que não a democracia participativa? Como aconteceria essa democracia participativa? Por exemplo, alguns municípios no Canadá, pequenas municipalidades, têm carreiras de Estado, que são acessíveis via concurso público, você tem aquele profissional, que é um profissional da cidade, ele está naquela carreira mediante concurso público, e você tem um conselho de representantes não-remunerados da cidade. Você não necessariamente precisa reproduzir essa lógica de um executivo, de um legislativo em cidades. A gente tem que criar. Eu acho que o nosso pensamento político é muito convencional. O orçamento participativo é uma maneira de fazer com que a sociedade...? É. Democracia participativa. Eu acho que não só o orçamento participativo, mas qualquer exercício de democracia participativa, acho que ele tem que ser estimulado, ele tem que ser qualificado. Agora, não basta criar o espaço. Você tem que criar as fontes que geram a participação. E, obviamente, uma sociedade que foi educada para a subalternidade, pra não participação, a gente tem que estimular muito, campanha, educação para a participação. E o senhor acredita que vai conseguir algum dia? O Ernst Bloch, que é um filósofo que me influenciou muito, tem uma obra chamada “O Princípio Esperança”, a esperança é o princípio. A essência da humanidade tá no futuro. A essência é a capacidade de você imaginar e de você se mobilizar por outro futuro. Ou é isso ou é barbárie, isso é a Rosa Luxemburgo [filósofa e revolu-cionária polonesa] que nos diz. A gente tem que enxergar, nessa campanha, agora, que nós fomos profundamente vitoriosos, em termos existido, porque a nossa existência significa duas coisas. Não fomos capturados pelo convencional, porque o convencional diz “não, tem que fazer acordo, tem que buscar ter voto, tem que buscar entrar nesse ‘acordão’”. A nossa vitória foi essa. E é enxergar a vitória naquilo que aparentemente é derrota. Nós não temos a dimensão da história, do tempo histórico, nós não podemos ter. A gente tá conversando aqui em 2006, sabe-se lá o que vai ser em 2016. E 2016 tá bem aí. Tem que ter olhos pra ver.


MEIO AMBIENTE

10

Fortaleza, janeiro de 2007

Um consumo que custa caro à natureza Fortaleza é um templo do comércio de caranguejo e referência em todo o país. A atividade incrementa a economia, mas pode causar uma série de prejuízos à espécie e ao seu habitat natural

Foto: Ciro Figuerêdo/ Colaborador

Karolina Cavalcante e Talita Christine

Milhares de caranguejos chegam toda semana nas barracas da Praia do Futuro “Toda quinta tem caranguejo”. Essa é apenas uma das inúmeras faixas encontradas em alguns restaurantes e barracas de Fortaleza. O costume começou há 22 anos, quando os estabelecimentos da Praia do Futuro ainda não funcionavam à noite. Foi, então, que um grupo de paulistas foi à barraca Chico do Caranguejo, numa quinta-feira à noite, e convenceu o dono a abri-la. A partir daí, ele passou a vender caranguejos nesse horário e hoje já é o maior distribuidor do estado. Embora o Ceará tenha a maior área de mangue do Nordeste, ele não possui caranguejo suficiente para atender a demanda de consumo, cerca de 75 toneladas por mês, que vêm, principalmente, do Piauí e do Maranhão. Um dos maiores problemas gerados pela retirada excessiva dos crustáceos é o desequilíbrio ambiental, pois eles são responsáveis por reter a matéria orgânica no mangue, impedindo que ela se perca no

oceano, e ainda servem de alimento para outros animais. Para tentar compreender a situação de escassez de caranguejo no Ceará e apontar soluções para repovoar os mangues, foi criado o Grupo de Estudos de Caranguejo do Mangue (Gecman), ligado ao Instituto de Ciências do Mar (Labomar). De acordo com Reynaldo Marinho, coordenador do Gecman, cerca de 50% dos caranguejos morrem por asfixia ou pela pressão que uns fazem sobre os outros durante a viagem. Isso ocorre porque eles são transportados, por até 12 horas, em caminhões sem condições adequadas. Marinho explica que a melhor alternativa encontrada por pesquisadores foi a de transportar os caranguejos em caminhões-baús, com refrigeração e jatos de água, ou em monoblocos plásticos. Embora essa solução já tenha sido testada e aprovada, a questão agora é como fazer para que os distribuidores a apliquem. “O

maior distribuidor de caranguejo daqui do Ceará diz que não muda o modo de transportar”, comenta. Apesar do consumo excessivo, o caranguejo está longe de ser extinto. Marinho aponta três fatores: antes da extinção, o crustáceo será economicamente inviável, ou seja, o gasto com a captura será mais alto do que o lucro obtido com a venda; a espécie está protegida pela legislação do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) que proíbe a captura no período de acasalamento ou “andada”; e, por último, devido ao fato de o caranguejo, durante a troca de carapaça, não ter saída comercial, pois perde o sabor. “Talvez o caranguejo esteja muito longe do risco de extinção, mas não é mau a gente se preocupar com isso”, ressalta. COMÉRCIO Numa única quinta, uma grande barraca consegue comercializar cerca de três mil caranguejos. O gerente da barraca Cocobeach, Elvis Carlos, explica que não lucra com o crustáceo, e sim com as bebidas e demais aperitivos, pois o compra a R$ 1,00 e revende a R$ 1,78, tendo, ainda, que pagar a mão-deobra e os ingredientes. “O caranguejo é só um atrativo, mas você não consegue lucrar”, afirma. Essa também é uma queixa de José Queiroz, gerente da barraca Chico do Caranguejo. Apesar de comprar a unidade a R$ 0,25 e revender a R$ 3,00, aos consumidores, e a R$ 0,80 aos outros estabelecimentos, Queiroz explica que há um gasto muito grande com funcionários e com transporte, o que eleva o preço do produto.

As etapas que ninguém vê Capturar caranguejos é lama, mosquitos e ficam o meio de sobrevivência de sujeitos a cortes devido ao muitas famílias que vivem contato direto com o na comunidade Tapeba, em ambiente através do Caucaia. Maria de Lurdes braceamento (introdução Gonçalves Pereira, por do braço na lama para a exemplo, aprendeu o ofício retirada do crustáceo). com os pais na infância e Alguns utilizam armahoje, ao lado do marido, dilhas como a “ratoeira” Francisco Oliveira dos e a “redinha”, ambas Santos, sustenta a casa proibidas pelo Ibama, que onde moram mais quatro alega que os equipapessoas. mentos não selecionam os O trabalho tem início às crustáceos de acordo com 7h quando eles seguem o tamanho e o sexo, prejupara o mangue de canoa, dicando, assim, a espécie acompanhados de alguns (o Ibama proíbe a captura f ilhos e companheiros da de caranguejos-fêmeas e comunidade. O caminho já de indivíduos cuja largura é conhecido: “Fica pro lado da carapaça seja inferior da Iparana”, explica a 6 cm). Maria. Às vezes, para não Na opinião de ficar tão cansativo, a Reynaldo Marinho, mesfamília passa a semana lá mo com o uso de equie leva somente pamentos, quem rede, alimento, seleciona o “Tem vez que água e instrucaranguejo é o nem pão mentos de tracatador, pois balho (arma- amanhece pros este já recodilhas feitas de nhece as espémeus filhos” latas de óleo e cies permitidas sapatos para (Maria de Lurdes) para captura proteger os pés). através dos rasQuando a tros deixados no maré está “boa” (baixa), o ambiente. casal de catadores chega a O coordenador do capturar 24 caranguejos Gecman ressalta, por por dia, os quais são outro lado, que alguns vendidos na estrada por um materiais usados para preço que varia de R$ 1,50 confeccionar as armaa R$ 3,00 (corda com dez dilhas são realmente unidades). Maria não prejudiciais ao ambiente, reclama do pouco que tem pois, quando deixados lá – “dá pra sobreviver” -, mas pelos catadores, demoram se emociona ao falar das a se decompor e poluem o dificuldades que enfrenta: mangue. “Tem vez que nem pão Ele explica que uma amanhece pros meus possível solução para esse filhos”. caso é pesquisar novos materiais para a confecção C ATADORES de equipamentos, pois, Embora não exista, no além de não prejudicar o Ceará, um cadastro das ambiente e a espécie, comunidades que sobre- instrumentos adequados vivem da atividade, sabe-se podem facilitar o trabalho que famílias trabalham dos catadores. “Se a lata com a captura do caran- não dá, se a redinha não dá, guejo em Icapuí, Timonha, então vamos trabalhar de Trairí, Acaraú, Chaval e uma forma que você dê dignidade a essas pesregião do Jaguaribe. Os catadores enfrentam soas”, sugere.


Fortaleza, janeiro de 2007

CID ADE CIDADE

11

Conversa sempre, fiado nunca mais Em tempos de economia de mercado e bolsas de valores, as bodegas sobrevivem sem a intenção de crescer, resistindo graças à tradição e às relações de amizade com os fregueses Thiago Mendes e Vitor Hugo Duarte com a pequena venda, ter criado os filhos e feito amigos por toda a vizinhança. "Hoje eu não tenho nada e tô aqui dentro. Mas, graças a Deus, terminei de criar meus filhos. Não quero riqueza, só quero que Deus me dê o pão de cada dia". Bar da Pedrita e Boteco do Seu Encrenca são alguns dos nomes mais conhecidos do estabelecimento de D. Maria. E ela parece não se importar com as brincadeiras dos vizinhos. Apesar da amizade conquistada nesses anos todos de vendas, D. Maria lida com os pagamentos com o mesmo pulso firme com que administra a bodega. Maria do Carmo se diverte com o trabalho e a freguesia "Não vendo fiado não. Às vezes um bebe uma cana e Mas paga? "Ou paga ou come memente para um dos frediz que me paga mais tarde". pêia", diz, enquanto olha fir- gueses. Foto: Vitor Hugo Duarte

Um balcão de bodega, as folhas da caderneta e dilonge de separar o proprietá- zer que só devia R$ 9,80. D. rio dos clientes, representa a Zilma não deixou por menos. ponte entre dois mundos cuja "Esculhambei. Deixei mais regulação se dá pelo grau de rente que o chão. Se ele tivesconfiança que se tem um com se vergonha, não passava em o outro. Pontos de encontro frente da minha casa, só por e convivência, as bodegas são causa da sem-vergonhice". aqueles lugares em que tem- Contra a vontade da família, po, pesos e medidas, tal qual D. Zilma mantém o comércio a necessidade de cada fre- de 46 anos vendendo apenas guês, não podem ser dimen- o que tem no estoque. "O que sionados segundo um valor eu ganho é só pra pagar conta. Tem dia que não tenho padrão. Além do corriqueiro vai-e- nem pra comprar medicavem de uma mercearia, o am- mento. Tô só apurando o biente de uma bodega é bem restim pra fechar". E pedir mais movimentado. As pesso- emprestado não é a melhor as vão chegando apenas alternativa. "Detesto fiado. para comprar uma barra de Não possuo cartão. Pra dever sabão ou um analgésico, mas eu tô é môca". Atrás de uma acabam ficando para falar grade e com dificuldades de andar, D. Zilma mal da vida alheia, contar os problemas, “Detesto fiado. passa o dia sentada, atendendo os ou só jogar conversa Não possuo clientes da bodega fora. que fica na entraUm mundo em cartão. Pra que a pergunta "O dever eu tô é da de casa. No caso da D. quê que a senhora môca” Maria do Carmo, vende aqui?" não exi(Dona Zilma) proprietária de ge necessariamente uma venda no São uma resposta definitiva. "É isso que você tá ven- João do Tauape, vender bebido aí, meu filho". E se vê de das, lanches e mantimentos tudo: utensílios do lar, ervas foi a saída encontrada para medicinais, cachaça, materi- sobreviver em um momento al escolar, pilha, artigos in- de crise. Uma doença nas perfantis, cigarro, fósforo, pão, nas impossibilitou o marido bolo, papel de presente, café, de trabalhar. Os olhos produtos de higiene pessoal, marejam, a fala sai com dififumo, remédio, cuia, peneira, culdade. Com 8 filhos para corda, penico. Isso levando- criar e muita coragem, D. se em conta que a variedade Maria foi à luta. "E eu penjá foi maior. "Aqui eu vendia sei: como é que eu vou ajudar de tudo: queijo, carne, fari- meu marido a sustentar esses nha e milho no quilo", lem- filhos? Alimentação, o estubranças de um tempo em que do... Então eu fui ao palácio os cartões de crédito eram do governo, nada arranjei. Eu cadernetas e vender fiado era fui aos deputados, nada arranjei". Cansada de buscar prática comum. D. Zilma Carla da Silva, auxílio nos homens públicos, aposentada e dona de uma D. Maria toma uma decisão. bodega no bairro do "Peguei uma mesa, botei nesPirambu, no entanto, acha sa calçada. Botei bolo, que a confiança acabou ren- tapioca, café e dez pacotes de dendo muita dor-de-cabeça. bolacha União". Se ela não "Vendi muito fiado e não re- vendeu tudo, não importa. cebi". Aconteceu de um fre- Hoje, quinze anos depois, D. guês que devia R$ 98 rasgar Maria se orgulha de, apenas

Falta de capital de gir o é a principal dif iculdade giro dificuldade Mercadinho, mercearia, mercantil, comércio, botequim, bodega. A definição é confusa tanto para quem vive nesse universo quanto para os órgãos públicos. De acordo com a Cnae (Classificação Nacional de Atividades Econômicas), órgão da Receita Federal, qualquer estabelecimento de varejo com venda predominante de produtos alimentícios e área inferior a 300m² é considerado mercearia ou minimercado. Segundo pesquisa realizada pelo Instituto de Pesquisa e Desenvolvimento do Comércio (IPDC), as mercearias e bodegas representam 21,98% das empresas do comércio de

Fortaleza. O Censo do Comércio mostrou que 15,8% das empresas faturam entre 50 e 300 reais. E são vários os obstáculos para o desenvolvimento dessas empresas: falta de capital de giro, falta de clientes, vendas fracas e inadimplência. O Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae) disponibiliza auxílio e consultoria. Um dos caminhos apontados pela entidade para manter a saúde financeira das empresas é o microcrédito. Sistema financeiro voltado para os pequenos negócios, o microcrédito atende basicamente às empresas que se encontram na informalidade - ou seja, 56,6% das empresas de Fortaleza.

Segundo João Barbosa, técnico de informação do Sebrae, existem diversas entidades na Capital que trabalham com o microcrédito: "Você pega 300, 500 reais para investir na sua atividade informal. Eles fazem um plano de negócios e lhe financia. A grande maioria financia e acompanha. Isso é o diferencial", explica. João Barbosa atribui a baixa procura desses recursos pelos comerciantes a uma questão cultural e educacional. Segundo ele, muitos donos de bodega preferem não contrair empréstimos porque não vêem necessidade de mudar a forma com que trabalham há tantos anos.


12

COMPORT AMENT O COMPORTAMENT AMENTO

Fortaleza, janeiro de 2007

A nova babá eletrônica A Internet está substituindo a televisão na tarefa de entreter as crianças, mas especialistas alertam sobre a importância da orientação no acesso à rede. Callen Leão e Carol Costa Se é difícil controlar o acesso de crianças aos conteúdos da televisão, controlar seus passos na internet parece um desafio ainda maior. Pais e pedagogos estão aos poucos estabelecendo orientações para melhor direcionar esse público diante da excessiva quantidade de informações na Internet. Para alguns pais, enquanto as crianças ficam em frente ao computador conectadas na web, eles estão em paz, e elas não perturbam o sossego da casa. “É ótimo. Pelo menos ficam quietas”, diz Caio Silva, pai de uma menina de 3 anos. Inês Vitorino Sampaio, doutora em Ciências Sociais, professora do Curso de Comunicação Social da UFC e pesquisadora da relação "Mídia, Infância e Adolescência", contesta a falta de atenção dos pais. “Essa tranqüilidade é aparente. É preciso ter cuidado. Isso não significa dizer de forma alguma que a criança não deva ter acesso”, reflete a professora.

A pesquisadora comenta ainda que o uso do computador e o contato com a linguagem dos sites enriquecem o aprendizado cognitivo na infância e influenciam o desenvolvimento da coordenação motora dos jovens, mas é preciso haver orientação nesse processo. Apesar de ser prático fazer pesquisas na internet, Inês Sampaio alerta que o conteúdo nem sempre pode ser considerado de boa qualidade, por isso é importante levar ao conhecimento das crianças sites de referências pedagógicas seguras para que elas não se acostumem mal com a leitura de textos on-line e se afastem dos livros impressos. “É compreensível isso, do ponto de vista da criança. É prático. A internet tem a possibilidade dos hipertextos, de um link levar a outro e assim vai completando as informações (...) mas são formas diferentes de contato com a informação. É importante ter orientação”, explica a coordenadora. É necessário lembrar que

Uma web educativa Enquanto muitos ainda discutem as conseqüências do uso excessivo da internet pelas crianças, professores aprendem a usá-la como uma ferramenta de ensino que tem se mostrado cada vez mais eficaz. “A internet e a web são um imenso banco de dados que se bem utilizados podem ser uma excelente ferramenta para o desenvolvimento do aluno”, garante a pedagoga e pesquisadora de tecnologia educacional Maria Fátima Franco. Iniciando uma pesquisa sobre as formas de interação

em blogs, a pedagoga criou o blog Historinhas, que tem como objetivo a construção de um texto de forma colaborativa. As histórias apresentadas no site são modificadas de acordo com sugestões dos internautas. O site estimula, além da leitura, o desenvolvimento da escrita e surpreende com bons resultados: mais de 23 mil acessos em apenas dois anos. Assim como o Historinhas, outros blogs educativos vão ganhando lugar na web e os professores tentam acompanhar essa evolução.

esse tipo de orientação está previsto como um dever legal. Cristina Sleiman é pedagoga, advogada especialista em Direito Digital e atua na área de Normas de Segurança da Informação e Educação Digital no Senac/ SP. Cristina afirma que é preciso estar preparado para os riscos que essa relação entre usuário menor de idade e internet implica. “Pelo ECA [Estatuto Cada vez mais cedo crianças descobrem o mundo virtual da Criança e do Adolescente] e pelo Código Informática e Educação. pedagogo. Civil, o pai é responsável Segundo ele, muitos pais não Yuri Costa, 12 anos, é um pelos atos do filho menor de se preparam para conviver exemplo da nova geração de idade. Enquanto o aluno está com as mudanças no internautas. Ele é aluno da 6ª na escola, esta será crescimento e aprendizado série do Ensino Fundamental responsável por ele, o que dos filhos e acabam ficando e costuma ficar muitas horas inclui o mau uso que faz dos desesperados quando se navegando na rede. “Tirando meios digitais”, diz a espe- deparam com situações cujos quando estou na escola ou cialista. detalhes não dominam. A estou dormindo, fico na No Ceará, Robson Carlos internet é um exemplo disso. internet”, diz Yuri, que, Moreira coordena o Núcleo “Não dá pra botar regras apesar de ter dificuldades de Ensino à Distância na fixas”, afirma Robson. “Ou para se concentrar na leitura Universidade de Fortaleza os professores e os pais de livros, sente-se bastante à (Unifor) e realiza palestras mudam ou vão ficar à parte vontade para ler textos da para pais e mestres sobre da realidade”, observa o web. Ele aprendeu a “mexer” em programas como Power Point na escola e começou a fazer arquivos de apresentação em slides sobre Para isso, porém, “não basta ferramenta na educação. alguns de seus maiores ídolos apenas ter computadores na Cristina Moraes Sleiman, como Jimmy Page, Ynwgie escola... os professores e a advogada e pedagoga, que Malmsteen e Jimi Hendrix. comunidade escolar preci- atua na área de Política e Hoje, tem em seu computador sam ser usuários ativos da Normas de Segurança da um acervo significativo de internet e da web”, afirma Informação e Educação músicas dos anos 60 e 70. Fátima Franco. Digital no Senac/SP, destaca Mas, segundo Yuri, as aulas Uma lista de discussão que também é obrigação dos de informática na escola não sobre Edublogs (blogs edu- educadores, além de se são tão interessantes quanto cativos), criada por Fátima, adaptar aos novos meios deveriam. “Tem aula de é um espaço para troca de digitais, orientar para a informática, mas é besteira. informações entre profes- utilização ética e legal da Os sites são bloqueados, Msn, sores sobre a utilização da internet e, principalmente, Orkut”, lamenta o garoto. rede na educação. “educar para que [os alunos] Para ele, as aulas deveriam Após um ano, a lista que não sejam vítimas de pessoas ser menos básicas e incluir começou com seis pessoas, maliciosas e para que não se lições que ensinassem a já tem cerca de 167 tornem infratores por construir sites e baixar participantes. Os números desconhecimento das leis”, programas da internet. mostram a expansão dessa adverte a advogada.


Fortaleza, janeiro de 2007

VARIED ADES ARIEDADES

13

Foto: Callen Leão

A hora da sabatina Lidiane Pereira Quem não passou, pelo menos uma vez, por uma entrevista de emprego? Em algum momento da vida, você deve ter passado por isso, a menos que você conheça pessoas influentes que tenham te poupado dessa situação. É quase sempre a mesma coisa. Você amanhece nervoso, coloca a melhor roupa e sai de casa com umas duas horas de antecedência. Ao chegar ao local, fica na recepção esperando o entrevistador, aquela pessoa que tem nas mãos o poder de te dar o tão sonhado emprego, ou não. Os entrevistadores, na maioria dos casos, são aquelas pessoas bem vestidas, sérias e educadas. Enquanto o aguarda, você divide a recepção e a ansiedade com mais uma dúzia de candidatos que te olham de forma esquisita. Nessa hora, várias perguntas surgem na sua mente. “Será

que alguém tem experiência? E se um deles estiver mais preparado que eu?” São alguns minutos de espera, mas parece uma eternidade. Passam alguns funcionários da empresa e comentam baixinho: “Esse povo veio fazer seleção para quê? Ah, deve ser apenas para preencher o cadastro de reserva”. Você escuta esses comentários e a ansiedade aumenta. De repente, silêncio. O telefone toca e a recepcionista começa a chamar os candidatos para a entrevista. Você tem a impressão de que nunca vão te chamar. Eles vão saindo aos poucos. Uns saem meio sérios. Outros, tão alegres, que você pensa não valer mais a pena participar da seleção. Ele já deve ter ganhado a vaga. Até que a moça da recepção olha para você e te manda entrar. Chega a tão esperada e temida hora.

A entrevistadora te olha dos pés à cabeça e começa a te interrogar. Algumas perguntas são pertinentes, mas outras te deixam desconcertado. “O que você faz nas horas livres? Que tipo de programas televisivos você assiste?”. Você pensa: “É assim que ela vai descobrir se eu tenho potencial ou não? Deve haver alguma explicação psicológica para isso”. Depois da sabatina, ela olha para você e diz: “Obrigada por participar da nossa seleção, tenha um bom dia”. Você olha com cara de desconsolado e pergunta: quando sai o resultado? Ela responde que na semana seguinte eles devem estar ligando para o candidato selecionado. Você vai embora. Foi uma manhã desgastante, você está cansado e com fome. Agora só resta esperar o telefone tocar.

apetecia bastante, não seria por uma mera formalidade social que desperdiçaria aquele momento. Os lábios se tocaram. Podia sentir intensamente aquele hálito com cheiro de bala de menta recém chupada e o calor que saía da boca carnuda. Sentia cada movimento que o homem vindo em sua direção fazia. Os passos que a empurravam em direção à parede eram firmes e decididos. Podia sentir as intenções contidas neles. A rua estava escura, quase mórbida, uma luz mortiça descia fina de um poste e refletia na poça de água da chuva que caíra havia pouco. Alguns cães e gatos vadios levavam suas vidas normal-

mente, muito provavelmente acostumados a tudo aquilo a que assistiam ali. Era a primeira vez que se deixava levar por um rompante. Passara a vida inteira a representar o ideal de “menina boazinha que vai para o céu”, tolhida e reprimida por uma mãe que vivia de aparências e usava a filha em busca de um bom partido que tirasse a família da lama. Estava cansada de tanta hipocrisia. Bem certo que, ao não se mostrar contrária a tudo aquilo, acabava por compactuar com sua mãe. Sentia a necessidade de lançar mão de tudo, reconstruir a vida, ser ela autora e senhora do seu

Pulp Fiction Georgia Cruz Saíra à meia-noite para encontrar furtivamente aquele recém-conhecido. Não sabia ao certo para quais locais da cidade iriam, no entanto, mas isso não importava. Estava surpresa com tal atitude, mas decidiu seguir adiante. Sabe o esquema do “se joga”?, pois é, era basicamente isso que decidira fazer naquela noite. Bastaram alguns poucos passos e lá estavam num daqueles locais soturnos, com cheiro bem forte e acentuado de idílio, como só esses lugares têm. A essa altura, sua mente voava, extasiada, e podia sentir a respiração dele cada vez mais próxima de seu pescoço. Fosse ele estranho ou não, tal situação

destino, e talvez por isso, mas não só, se deixasse confiar inteiramente nas mãos de um desconhecido. Fechou os olhos e a imagem em suas retinas era a de um sujeito de sobretudo e chapéu, com a barba bem feita e as mãos suaves a tocarem o corpo dela. Um toque que provocava desejos, inquietações e, a melhor de todas aquelas múltiplas sensações, liberdade. Naquele instante, o mundo inteiro passava a pertencer-lhe, queria explorá-lo tal como agora aqueles dedos másculos e firmes faziam com seu corpo. Sentia a mão dele passear por suas formas generosas, como se estivesse a mapear

todo aquele território do qual tomava posse. Beijava-a. Seus lábios percorriam sua nuca e um leve revirar de olhos dela poderia ser percebido. Quem diria que aquela mulher que agora provava do gosto do prazer era a mesma que outrora sofria com as imposições de uma mãe hipócrita? As mãos iam percorrendo seu corpo e ela se deixava catalogar, cada planície, planalto, monte, ondulação, cada parte de seu corpo ainda vestido ia sendo descoberto. O beijo dele provocava tamanha efervescência em seus sentidos que era impossível conter alguns espasmos com soluços.


CUL TURA CULTURA

A Estética do Preto “É de se apostar que toda idéia pública, toda convenção aceita seja uma tolice, pois se tornou conveniente à maioria.” Edgar Allan Poe

Fortaleza, janeiro de 2007

Foto: Deivyson Fernandes/Divulgação

14

Plastique Noir se propõe a ser mais que uma banda e sim um coletivo artístico para celebrar o Gótico Lucíola Limaverde e Terezinha FFernandes ernandes que vem à sua mente quando você ouve a palavra “gótico”? Uma catedral antiga, medieval, cheia de pontas? Pessoas vestidas de preto, andando em cemitérios? Vampiros, filmes de terror? Música sombria? Pois bem; a acepção atual de gótico não é nada disso e ao mesmo tempo é tudo isso. Do início: a palavra provém da tribo germânica Godo, povo considerado bárbaro pelos romanos e que se extinguiu entre os séculos VII e VIII d.C. De tanto servir de ironia ao longo dos tempos, essa palavra acabou perdendo o significado original. À época da Idade Média, uma arquitetura considerada pelos estudiosos como de um mau-gosto bárbaro foi depreciativamente chamada gótica. Desde sua primeira corruptela, a palavra “gótico” estava, pois, associada a algo fora dos padrões da sociedade, do que era considerado correto ou belo pela maioria. Hoje, o gótico abarca até mesmo uma modalidade do xadrez. A própria

fonte utilizada no título desta matéria é classificada como gótica, mas a verdade é que ela e outras coisas que recebem esse nome pouco têm a ver com a subcultura nascida lá pelo fim da década de 70, no período póspunk. “O Punk era uma contracultura, ou seja, era algo contra a cultura vigente; já o Gótico é uma subcultura, algo que está mais à margem”, explica Márcio “Mazela” Benevides, músico da Plastique Noir, única banda gótica do Ceará. “O pós-punk é como se fosse a ressaca do Punk. O Punk oferecia a oportunidade da revolução, mas, como ela não foi feita, vem o pós-punk que é a ressaca, o niilismo, o pessimismo, essa coisa de os anos 80 ser a era vendida, tudo cinzento, a oportunidade de revolução se perdeu nessa paranóia nuclear”, explica Márcio, que estuda a subcultura gótica desde os 16 anos e é mestrando em Sociologia na UFC. A subcultura entraria, pois, nessa classificação do pós-punk, com elementos do Punk, mas características muito peculiares. Pessimismo, humor negro, melancolia

e romantismo exarcebado são pontos marcantes na subcultura gótica. A morte é vista como algo natural e belo, além de uma solução. O vestir preto tem, entre outros significados, o de luto por um mundo em que já não é possível ter esperanças. “Na subcultura gótica a morte é encarada como um definidor existencial da vida, não como uma ameaça à vida”, explica Henrique Kipper, que freqüenta a cena Gótica paulistana desde 1990 e faz parte do grupo de trabalho, pesquisa e informação sobre subcultura gótica “The MauZoleuM”. Mas a preferência pela estética mórbida custa aos góticos alguns estereótipos. Um dos mais freqüentes é o do satanismo . “Um gótico pode ter qualquer religião, não ter nenhuma religião ou ser ateu. Mas a subcultura gótica em si não tem religião”, defende Kipper. Apesar de laica, a subcultura se apropria de alguns símbolos religiosos – inclusive do ocultismo – como uma metáfora poética. É comum encontrar em bandas e em filmes que

seguem a estética gótica símbolos como a cruz egípcia Ankh, ou a idéia dos anjos caídos e, mais raramente, pentagramas, que a priori estão ligados a religiões ou seitas, mas que são utilizados pelos góticos abstraindo-se seu caráter sacro. Outro elemento recorrente na subcultura gótica ou darkwave é a idéia do vampiro, explorada à exaustão em filmes de terror apreciados pelos góticos. “Assim como os zumbis e Frankenstein, também o vampiro não está nem morto nem vivo, levando a um questionamento do que exatamente significa estar vivo e viver”, compara Kipper. O promotor de eventos culturais Lord A (pseudônimo), que produz para as subculturas gótica e vampyrica na cena paulistana, explica que a subcultura vampyrica existe paralela à darkwave, já que no final dos anos 80 ela desenvolveu cenas e espaços próprios. Então, uma pessoa não precisaria ser Vampyro ou gostar de vampiros para ser gótico ou vice-versa.


CUL TURA CULTURA

Fortaleza, janeiro de 2007

O som que emana das sombras Uma das bases da subcultura gótica é a sua música peculiar. Ela surgiu com influências do Punk, no fim dos anos 70. Um dos mais famosos singles góticos, lançado em 1979, chama-se “Bela Lugosi's Dead” , uma referência ao ator húngaro de filmes de terror que interpretou Drácula na década de 30 [ver box abaixo]. A música, originalmente gravada pela banda Bauhaus, mas que já recebeu várias versões e covers de outras bandas, é considerada quase um hino para os góticos. Depois disso, na década de 80, veio o auge desse estilo: bandas como Systers of Mercy, The Mission, The Cult, The Cure, Siouxsie & The Banshees, entre tantas outras, alcançaram grande sucesso na Europa e também nas Américas. Estava consolidado o gothic rock. "A música pop gótica caracterizase, sobretudo, pelo minimalismo ex-

perimental, onde os instrumentos somam seus trabalhos individuais em texturas sobrepostas que estabelecem uma harmonia entre si", define Airton S. Nepomuceno, vocalista da banda Plastique Noir, única banda gótica cearense. Segundo ele, o predominante neste tipo de música são os aspectos melancólico, macabro, sombrio, romântico e trágico. O mais geral do Gótico, entretanto, seria o tom instrospectivo. Sobre as influências de sua banda, Airton explica que os gostos dos integrantes são muito variados, o que a tornaria uma mescla dessas preferências, que vão do “pós-punk 80's” às vertentes mais eletrônicas. A Plastique Noir foi formada no final de 2005, com o objetivo de celebrar a subcultura gótica. Seu nome em francês significa "plástico negro", uma referência ao saco que envolve os cadáveres em necrotérios.

Bela Lugosi (Bela Ferenc Deszo Blasko) nasceu em 20 de outubro de 1882 em Lugos, na Hungria, de onde tirou seu nome artístico. Em 1931, já nos Estados Unidos, Lugosi interpretou o papel principal no filme Dracula, de Tod Browning. O ator se consagrou com o filme e passou a ser estigmatizado com o papel de vampiro. Foi enterrado com sua capa de Drácula, como pediu antes de morrer.

Narrativa do horror e do amor Diferentemente do que alguns pensam, não existe uma literatura própria da subcultura gótica. Ela se apropria de diversos estilos, como o romance gótico, o existencialista e a poesia simbolista. O romance gótico surgiu no século XVIII e teve suas principais influências na Idade Média. Como observa Roberto Pontes, professor doutor de literatura portuguesa na Idade Média e integrante da Associação Brasileira de Estudos Medievais (ABREM), apesar de possuir o termo gótico em referência à Idade Média, o romance gótico é uma manifestação dos séculos XVIII e XIX. “Na Idade Média não existe o romance gótico. Existe a narrativa oral que causa horror, que infunde medo”, diz. Esse romance surgiu, de acordo com o professor Pontes, na primeira fase do romantismo, mas só se consolidou na segunda geração. Os grandes nomes do romance gótico do século XIX são os inglês Horace Walpole e Ann Radcliffe, o alemão E.T.

Hoffnann e o norte-americano Edgar Allan Poe. O expressionismo seria também uma das feições do gótico, segundo o professor. O simbolismo, por sua vez, é apreciado por essas pessoas porque, de acordo com Pontes, “ele também tem um forte apelo pela morte, pela dor, pelos meios de atingimento dos paraísos artificiais”. No Ceará, há um zine intitulado “A Guilda”, produzido pela Plastique Noir. A produção oferece, segundo Airton S. Nepomuceno, vocalista da Plastique, um aprendizado sobre a subcultura gótica e suas possibilidades estéticas. Airton diz ainda que uma das metas do “A Guilda” é estabelecer as diferenças entre a música gótica e o metal. O número zero do zine, único publicado até hoje, foi lançado em maio de 2006. Segundo Airton, a produção de um único número do zine decorre da falta de tempo da banda, que está trabalhando na prensagem do primeiro álbum oficial, a ser lançado em julho.

15

A vida. Depois a morte. Sendo os góticos pessoas que aceitam e apreciam a morte em sua mais sutil beleza, não é de admirar que um dos estereótipos dos pertencentes à subcultura seja o de freqüentadores noturnos de cemitérios. Esse seria um costume que remonta às origens da subcultura. A lugubridade da atmosfera desses ambientes também está presente em músicas, livros e filmes góticos. Em uma visita ao mais antigo cemitério de Fortaleza, o São João Batista, não é difícil sentir a presença da atmosfera gótica em cada canto, em cada pedaço de vida: as plantas e as flores são de uma cor incrivelmente mais viva. Sobre as tais "pessoas de preto", sabe-se de casos de alguns que tentam pular o muro à noite para tocar violão nos túmulos. "Olhe, quando é Dia de Finados, eu até contrato um violinista, e a família pode trazer um se quiser durante o funeral. Mas de madrugada? Tocar violão pra quem?",

questiona Elmo Benevides, administrador do Cemitério São João Batista. Para o músico Márcio Mazela, a imagem do gótico como freqüentador de cemitérios já se tornou mesmo um clichê, mas ele admite que a beleza de um lugar como esse, a beleza nefasta, considerada maldita, tem identificação com a essência do gótico. Apesar disso, não é um requisito para os integrantes da subcultura freqüentar as sepulturas; o que existiria é uma tendência de simpatizar com lugares assim. Segundo Lord A, um dos fundadores do site “The MauZoleuM”, os cemitérios hoje são freqüentados tanto por Black Metals quanto pelos Emos, não há uma correlação direta e específica apenas com os góticos. "A atração pelos cemitérios é bastante comum, seja para refletir sobre o sentido da vida ou para zombar da morte. Enquanto ainda podemos…"

Na escuridão do cinema Os cineastas que trabalham com o Gótico a partir dos anos 1980 sofrem influência direta do Expressionismo, uma outra estética surgida na Europa nos primeiros anos do século XX. O Expressionismo busca retratar a realidade através da sensação e mostrar que não há uma realidade única, mas sim vários pontos de vista para uma mesma coisa. Segundo Roberto Pontes, professor doutor de literatura portuguesa na Idade Média e integrante da Associação Brasileira de Estudos Medievais (ABREM), “a marca, isto é, o estilo do Expressionismo, é o retorcimento. Aquelas coisas angulosas”. O Expressionismo é em si, segundo o professor, uma forma de gótico. A estética foi inicialmente marcada pela pintura, mas, a partir da década de 20 do século passado, chegou ao cinema. Os filmes alemães O gabinete do Dr. Caligari (1920), dirigido por Richard Thorpe, Nosferatu (1922), de F.W.Murnau e Metrópolis (1927), de Fritz Lang, são símbolos do Expressionismo. Na década de quarenta do século XX surgiu, baseado nos filmes dessa época, o cinema noir. Dos filmes expressionistas, o cinema noir herdou a fotografia em preto e branco que ressalta o clima triste e silencioso dessas produções. Roberto Pontes garante ainda que o vampiresco também é uma temática gótica. “Tudo o que for com Frankstein também é [gótico]. Tudo o que for vampiresco também é [gótico]”, afirma Pontes. Filmes como Dracula (1931), do diretor Tod Browning, Frankestein encontra o lobisomem (1942), de Roy William Neill, Fome de viver (1983), de Tony Scott, Entrevista com o vampiro (1994), de Neil Jordan. Do cinema do final do século XX e começo do século XXI, Tim Burton é um diretor que se destaca ao trabalhar a estética gótica. Burton dirigiu filmes góticos como Edward mãos de tesoura (1990), A lenda do cavaleiro sem cabeça (1999) e as animações O estranho mundo de Jack (1993) e A noiva cadáver (2005) [foto].


16

ENSAIO

Fortaleza, janeiro de 2007

A caminho da serra Fotos: Alinne Rodrigues Te xt o: Diego Silv eira xto: Silveira Pela janela do ônibus, é possível vislumbrar uma Fortaleza ainda sonolenta, que não parece muito disposta a dar os primeiros passos da manhã. Aos poucos, entretanto, a cidade se ergue, altiva e bela, transpirando vitalidade e agitação. Mulheres aparecem levando os filhos às escolas, homens saem em seus barulhentos automóveis na direção do trabalho. O tráfego começa a se formar e com ele surgem as primeiras reclamações e buzinas. Dentro do ônibus, permaneço atento ao que se afigura ao meu redor. Em poucos instantes, as imagens que estarão passando pela janela serão outras. Os prédios e as grandes construções em concreto cederão espaço às árvores e às mais bonitas espécimes de flores da serra de Baturité, localizada a cerca de 100 quilômetros de Fortaleza. Aos poucos ela se torna perceptível. Parece sair das entranhas da Terra e, tal qual uma criança, mostra-se pequena e frágil. À medida que o ônibus avança, entretanto, é possível perceber sua grandiosidade. Os mais variados tons de verde se destacam por entre as elevações e o que, à distância, parecia formar uma massa homogênea apresenta-se agora de forma irregular e diversa. O ônibus começa a subir os caminhos tortuosos que levam ao topo da serra. Fora o barulho do motor, que parece travar uma batalha particular com a gravidade, os sons que mais se fazem ouvir são os dos cantos dos pássaros e o do vento batendo nas folhagens. Flores amarelas, vermelhas e lilases dão um toque mais alegre e vivo à bela pintura da natureza. Ao fundo, o barulho de uma queda d’água completa o tom melodioso da bela sinfonia. O dia vai passando, impiedosamente. Chega a hora de voltar à realidade. Fortaleza me espera, com toda a poluição e o tráfego que a caracterizam. Fico me perguntando

quando poderei retornar a essa serra que tanto me fez bem. As atribulações do dia-a-dia vão me manter ocupado, certamente, por muito tempo, mas não importa. Uma parte da serra de Baturité permanecerá em mim para sempre e toda vez que me sentir fraco, apático e sobrecarregado, recorrerei a ela, como fonte de energia e vitalidade. Ela será o meu refúgio, o meu santuário, a minha verdadeira fortaleza.


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.