História dos Índios no Brasil - Intro (Cap.1)

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MANUELA CARNEIRO DA CUNHA

(ORG.)

FRANCISCO M. SALZANO NIÉDE GUIDON ANNA CURTENIUS ROOSEVELT GREG URBAN BERTA G. RIBEIRO LÚCIA H. VAN VELTHEM BEATRIZ PERRONE-MOISÉS ANTÓNIO CARLOS DE SOUZA LIMA ANTÓNIO PORRO FRANCE-MARIE RENARD-CASEVITZ ANNE CHRISTINE TAYLOR PHILIPPE ERIKSON ROBIN M. WRIGHT NÁDIA FARAGE PAULO SANTILLI MIGUEL A. MENÉNDEZ MARTA ROSA AMOROSO

TERENCE TURNER BRUNA FRANCHETTO ARACY LOPES DA SILVA CARLOS FAUSTO MARY KARASCH MARIA HILDA B. PARAÍSO

BEATRIZ G. DANTAS JOSÉ AUGUSTO L. SAMPAIO

G. DE CARVALHO SCHMUZIGER CARVALHO JOHN MANUEL MONTEIRO SÓNIA FERRARO DORTA

MARIA ROSÁRIO SILVIA M.

HISTÓRIA DOS ÍNDIOS

NO BRASIL 2?

FaPESP Fundação DE AMPARO Á Pesquisa DO ESTADO Dt SÃO PAuuí

edição

^fefe. -T^ COMHAN H A DaS LiriRAS y,

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Biblioteca Digital Curt Nimuendajú http://www.etnolinguistica.org/historia

C:op>rinht

©

1992 hy os Autores

Projeto editorial:

NrCIS.O DF. HISTÓRIA INDÍGF^A E

DO INDIGENISMO

Capa e projeto gráfico: Motmd CMvakanti Assistência editorial:

Mjrta Rosa Amoroso

Edição de

texto:

Otanlío Fernando Nunes

Jr.

Mapas: Alíàa Roíla Tuca Capelossi

Mapa

das etnias:

Clame FJmundo

CA)hn

Peggion

índices: Beatriz Perrvne- Moisés

Clame C^hn Edgar Theodoro da Cunha

Edmundo

Peggion

Sandra Cristina da Silva

Pesquisa iconográfica: Manuela Cimeiro da Cunha

Marta Rosa Amoroso Oscar Cuilávia Saéz Beatriz Calderari de

Miranda

Revisão:

Cármen Simões da Costa FJiana Antonioli

1^ edição 1992

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (Câmara Brasileira do Lixro, sp. Brasil) História dos índios

no

Brasil

(iip)

organização Manuela Carneiro

/

São Paulo Companhia das letras da Cunha. f*pf.sp. 1992 cretaria Municipal de Cultura :

Se-

AL BR

:

F2519

Bibliografia ISBN

.H57 1998x

S5-7164-260-5

1. índios da América do Sul Cunha. Manuela Carneiro da.

Brasil

História

1

(Di>-980.41

921393 índices para catálogo sistemático 1

Brasil

História

índios

980

41

1998

Todos os

direitos desta edição leservados à KDl rC)R.\ St:H\\ARt J'.

Rua Bandeira 04532-002

l.Tlí.V

Paulista. 702,

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(011) 8t)tU)814

e-niail: ct)leiiasiííinleiiu't.sp. ioin.br


INTRODUÇÃO A UMA HISTORIA INDÍGENA Como eram

e são tão bárbaros, e

destituídos da razão, não trataram de Escritura, ou de outros

monumentos em

que recomendassem à posteridade as suas Histórias para que dela víssemos os seus Principados, alianças, Pazes, e discórdias

de soberanos, sucessos de Estados, conquistas de Provindas, defensas de Praças, admirássemos

vitórias e

perdas de Batalhas, e todo

o memorável

com que

a fortuna

e a política vão sempre,

com

os séculos,

acrescentando às Histórias das

Monarquias. Por esta Cauzxi, ignoramos o que se conhece de todas as outras

Nações do Mundo

[...]

(Ignácio Barboza Machado, Exercícios de Marte, 1725,

foi.

90.)

Manuela Carneiro da Cunha

Ao

chegarem

às costas brasileiras, os na-

vegadores pensaram que haviam atingido o paraíso terreal:

uma

região de

eterna primavera, onde se vivia comu-

em perpétua ino-

mente por mais de cem anos

cência. Deste paraíso assim descoberto, os por-

tugueses eram o novo Adão. feriram

um nome

adâmica

A cada lugar con-

— atividade propriamente

— e a sucessão de

nomes

era tam-

bém a crónica de uma génese que se confundia com a mesma viagem. A cada lugar, o nome do santo do dia: Todos os Santos, São Sebastião,

Monte

Pascoal. Antes

de se batizarem

os gentios, bati/ou-sc a terra encontrada. 10c

certa maneira, desta forma, o Brasil

foi

simbo-

licamente criado. Assim, apenas nomeando-o, se

tomou posse

dele,

como

se fora

virgem (To-

dorov, 1983).

Assim também a História do nónica,

Brasil, a ca-

começa invariavelmente pelo "desco-

brimento". São os "descobridores" que a inau-

guram e conferem aos gentios uma entrada

no grande curso da História. Por sua vez, a história da metrópole não é

de ser\iço mais a

mesma

após 1492.

A

insuspeitada pre-

sença desses outros homens

(e rapidamente papa reitera em 1537, que são ' desencadeia uma refonni" ilas

se concorda, e o lioinciis)

.<

A

história

do

Brasil

canónica

começa

com

o "Descobrimento". Nesta cena, Américo Vespucio desperta a América, representada por

uma

índia

Tupinambá, deitada na rede. Rede, tacape e cenas de antropofagia,

que

se vêem ao fundo, são emblemáticas

dos Tupinambá. Desenho de Jan van der Straet

(também chamado Stradanus), gravura de Theodor Galle (1589).


UISTOKIV 1X>S INOIC^S NO BKVMl

10

Sul

tivessem trazido esses

à margem da Boa No\a, na histódo género humano? Se todos os homens descendem de Noé, e se Noé te\'e apenas três filhos, Cam, Jiifet e Sem, de qual desses filhos proviriam os homens do Mundo Nono? Seriam descendentes daqueles mercadores que ao tempo do rei Salomão singra\am o mar para trazerem ouro de Ofir que poderia ser o Peru ou das dez tribos perdidas de Israel que, reinando Salmanasai", se afastanto

tempo

ria genil

,

taram dos assírios para resguardar rezii

seus ritos e sua fé?

E

em

sua pu-

mais, admitindo c^ue

que meios teriam cruzado os oceanos antes que os se soubesse isso, restaria descobrir por

descobridores tixessem domesticado os mares. Tal\ez as terras do

No\o

Mundo comunicado em

e do Antigo

comunicassem, ou tivessem tempos piíssados, por iilguma região ainda desconhecida do e.xtremo Norte ou do extremo

Em

1612, seis

índios

do

Maranhão foram levados pelos

capuchinhos franceses para a Corte do jovem Luís XIII para conseguir apoio financeiro e politico

para a Colónia. Três morreram

quase ao chegar (entre os quais Francisco Caripira), três outros sobreviveram. foram batizados com o nome de Luís e voltaram para o Maranhão

com esposas francesas e cobertos de honrarias.

Vèem-se

em

Francisco Caripira (figura à direita) as tatuagens que. entre os

Tupinambá, celebravam o número de inimigos ritualmente

abatidos (Claude d'Abbeville, Histoire

da la mission des pères capucins..., 1614).

do Mundo, ou

ideias recebidas: conu) en(]uadrar por e.xeni-

plo essa parcela da humanidade, deixada por

marinhas

talvez as correntes

homens

à deri\ a. Ques-

exemplo pelo jesuíta 1590 (Acosta, 1940 [1590]), continuam colocadas hoje e não se encontram completamente resolvidas, conforme se verá tões que, debatidas por

José d'Acosta

em

neste volume (Salzano, Guidon;' ver

também

Salzano, 1985, e Salzano e Callegari-Jacques, 1988:2). Haveria múltiplas origens e rotas de penetração do homem americano? Teria ele

como se cré em geral, pelo estreito de Bering e somente por ele? Quando se teria dado essa migração?

\indo,

ORIGENS Sabe-se que entre de uns 35 mil a cerca de uns 12 mil anos atrás, uma glaciação teria, por inter\ aios, feito o

mar descer

a uns 50

m abai-

A faixa de terra chamada Beassim aflorado em vários momen-

xo do nível atual. ríngia teria

período e permitido a passagem a pé da Ásia para a América. Em outros momentos, como no intervalo entre 15 mil e 19 mil anos atrás, o excesso de frio teria provocado a coalescência de geleiras ao norte da América do Norte, impedindo a passagem de homens. Sobre o período anterior a 35 mil anos, nada se sabe. De 12 mil anos para cá, uma temtos deste

peratura mais

amena

teria interposto

tre os dois continentes.

Em

o mar en-

vista dista é tra-

dicionalmente aceita a hipótese de

uma

mi-

gração terrestre \inda do nordeste da Ásia e

de norte a sul pelo continente americano, que poderia ter ocorrido entre 14 mil e 12 mil anos atrás. No entantcx há t;unbém possibilidades de entrada nuirítima no continente, pelo estreito de Bering: se é verdade que a Austrália foi alcançada há uns 50 mil anos por homens que, \ indos da .\sia, atravessaram uns 60 km de mar, nada impediria que outros \ iessem para a América, por na\^i^ gação costeira (Meltzer, 1989:474). se espraiando

Há tas

consideráNel contro\érsia sobre as da-

dessa migiiição e sobre ser ela ou não a úni-

ca fonte de po\c)amento das .\mericas. Quanto à

antiguidade do po\oiunenta as estimati-

\as tradicionais falam de 12 mil anos,

mas

muitos iu-queólogos afirmam a existência de tios

arqueológicos no

sí-

Nmo Mundo anteriores

a essas datas: são particularmente importantes neste sentido as pesiiuisas feitas te

do Piauí por Niéde Guidon

(cf.

no sudes-

neste wlu-

para os quais se ivi\indioam as ooniplicadoí mais antigas datas estariam ine). C^s sítios


INTRODUÇÃO A UMA HISTÓRIA INDÍGENA

— antes a

do que a norte do conde uma descida em que a América do Sul teria sido povoada após a do Norte. Não há consenso sobre o assunto, no entanto, na comunidade arqueológica (Lynch, 1990). Mas, recentemente, uma linguista (Nichols, 1990 e 1992), com base no tempo médio de diferenciação de esadicional

sul

tinente, contrariando a hipótese

toques linguísticos, fez suas próprias avaliações

um povoamento da América que ter-

e afirmou

se-ia iniciado

há 30 mil-35 mil anos. Mais con-

servadora quanto à profundidade temporal é

tória,

por ouvirmos

falar,

sem entender-lhe o

em sociedades "frias", sem história, porque há um tropo propriamensentido ou o alcance,

te

antropológico que é o

chamado "presente

porque nos agrada a ilusão de sociedades virgens, somos tentados a pensar que as sociedades indígenas de agora são a imagem do que foi o Brasil pré-cabralino, e que, como dizia Varnhagen por razões diferenetnográfico", e

tes,

sua história se reduz estritamente à sua

etnografia.

Na

realidade, a história está onipresente.

Greenberg

Está presente, primeiro, moldando unidades

(1987), que mantém os fatídicos 12 mil anos mas estabelece a existência de três grandes línguas colonizadoras que teriam entrado no continente em vagas sucessivas (Urban). Tudo isto põe em causa a hipótese de uma migração única de população siberiana pelo interior da

e culturas novas, cuja homogeneidade reside

a estimativa

Beríngia.

A

de outro

linguista,

possibilidade de outras fontes po-

pulacionais e de rotas alternativas se soman-

do à do

interior

da Beríngia não está portanto

descartada.

PRESENÇA DA HISTÓRIA INDÍGENA Sabe-se pouco da história indígena: nem a origem, nem as cifras de população são seguras, muito menos o que realmente aconteceu. Mas progrediu-se, no entanto: hoje está mais clara, pelo menos, a extensão do que não se sabe. Os estudos de casos contidos neste volume são fragmentos de conhecimento que permitem imaginar mas não preencher as lacunas de um quadro que gostaríamos fosse global. Permitem também, e isto é importante, não incorrer

em

A maior

certas armadilhas.

dessas armadilhas é talvez a ilusão

Na segunda metade do século época de triunfo do evolucionismo, prosperou a ideia de que certas sociedades teriam ficado na estaca zero da evolução, e que eram portanto algo como fósseis vivos que testemunhavam do passado das sociedades ocidentais. P^oi quando as sociedades sem Estado se tornaram, na teoria ocidental, sociedades "primitivas", condenadas a uma eterna infância. E porque tinham assim parado no tempo, não cabia procurar-lhes a história. Como dizia Varnhagen, "de tais povos na infância não liá história: há só etnografia" (Varnhade primitivismo.

XIX, essa

gen, 1978 [1854]:30). I

loje ainda,

por lhes desconhecermos a

his-

em grande parte numa trajetória compartilhada: é o caso,

por exemplo, do conglomerado

piro/conibo/cambeba, que forma

uma

cultura

do Ucayali, apesar de seus componentes pertencerem a três famílias lingiiísticas diversas (Arawak, Pano e Tupi), e que se contrapõe às culturas do interflúvio (Erikson); ribeirinha

11


12

msTORiv

ni>s ivnios \c> ukvsu.

é o caso tuinhéni das fusões Arawuk-Tukano do

igualitárias e

alto rio Negro (WVijiht), das culturas ueoribeiriuhas do Auia/.onas (Porro), das sociedades indígenas que laylor chama apropriadamente de coloniais porque geradas pela situa-

te os últimos cjuarenta anos, muita tinta cor-

«;ão coloniiil.

Está presente a história ainda na medida

em que muitas

das sociedades indígenas ditas

"isoladas" são descendentes

de "refratários", foragidos de missões ou do seniço de colonos c}ue se "retribalizaram" ou aderiram a grupos independentes, como os \hira. Os Mura, aliás, provavelmente se "agigantaram" na Amazónia (Amoroso) porque reuniam trânsfugas de outras etnias.

Os

Xa\ ante dos quais se conta aqui

também foram mais

a história (Lopes da Silva)

uma vez contactados e mais de uma vez fugiram. A ideia de isolamento deve ser usada com cautela em qualcjuer hipótese, pois há um

de

de população diminuta. Duran-

reu para explicar essas características. Uns acharam que as sociedades indígenas tinham, embutido em seu ser, um antídoto à emergência do Estado. Outros, principalmente norteamericanos, acreditaram que a razão dessa li-

mitação demográfica se fundava ção ambiental, e

um

numa limita-

acalorado debate se

tra-

vou quanto à natureza última dessa limitação: a pobreza dos solos, do potencial agrícola ou de proteínas animais. A pesquisa arqueológica (Roosevelt) veio no entanto corroborar o que os cronistas contavam (Porro): a .\mazônia, não só na sua várzea mas em v árias áreas de terra firme, foi povoada durante longo tempo por populosas sociedades, sedentárias e possivelmente estratificadas, e essas sociedades são autóctones, ou

seja,

não se explicam

contato mediatizado por objetos, machados,

como

miçangas, capazes de percorrerem imensas ex-

nas mais "avançadas". As sociedades indígenas

tensões, mediante comércio e guerra, e de ge-

de hoje não são portanto o produto da natureza, antes suas relações com o meio ambien-

rarem

uma dependência

à distância (Turner,

Erikson): objetos manufaturados e microorga-

nismos imadiram o Novo

Mundo numa

velo-

cidade muito superior à dos homens que os

te são

o resultado da difusão de culturas andi-

mediatizadas pela história.

MORTANDADE E CRISTANDADE Pov os e povos indígenas desapareceram da

trouxeram.

também no fracioqual Taylor chama a paradoxalmente, com

Está presente a história

namento étnico para o atenção e que \ai de par,

uma homogeneização

cultural:

perda de diver-

sidade cultural e acentuação das microdiferen-

que definem a identidade étnica. É proque as unidades sociais que conhecemos hoje sejam o resultado de um processo de atomização cujos mecanismos podem ser

ças

vável assim

ce da terra se

chama,

como consequência do que

fa-

hoje

num eufemismo envergonhada

"o

encontro" de sociedades do Antigo e do Novo

Mundo. Esse morticínio nunca v isto foi truto um processo complexo cujos agentes foram homens e microorganismos mas cujos motores últimos poderiam ser reduzidos a dois: ga-

de

nância e ambição, formas culturais da expansão do que se

com encionou

chaniiu- o capita-

Tur-

lismo mercantil. Motivos mesquinhos e não

ner sobre os Kavapó, e de reagrupamentos de

está presente sobretudo a história na

uma deliberada política de extermínio conseguiram esse resultado espantoso de reduzir uma população cjue estav a na casa dos milhões em 1500 aos parcos 200 mil mdios que hoje habitam o Brasil. .\s epidemias são normalmente tidas como o principal agente da dopopulaçJio indígena (ver, por exempla Borali. 1964). A Ixvrreira epidemiológica era, com efeita favorável aos europeus, na .América, e era-lhos ilesf av onív el na Mrica. Na Africa, os europeus morriam iH>mo moscas: aqui eram (vs u\dios que morriam: agentes patogènicos da varíola, do saram^xv da

homens com

a natureza.

co(iueluche, da catapora. do tifa da difteria.

As sociedades indígenas contemporâneas da Amazónia são, como se apregoou, sociedades

da gripe, da peste bubònica. possivelmente a malária, provocaram no Novo Mundo o que

percebidos

em

estudos de caso

como o de

grupos lingiiisticamente diversos ao

mesmo tempo

em

unidades

culturalmente semelhantes

e etnicamente diversas, cujos exemplos mais notórios são o do alto Xingu e o do alto rio Ne-

E

gro (vide Franchetto e Wnght).

notável (lue

apenas os grupos de língua Jê pareçam ter ficado imunes a esses conglomerados multilingiiísticos. Em suma, o que é hoje o Brasil indígena são fragmentos de

um

tecido sociiU cuja

trama, muito mais complexa e abrangente, cobria provavelmente o território

Mas

própria relação dos

como um

todo.


A

INTRODUÇÃO

A

UMA HISTÓRIA

13

INDIGF.N

Dobyns chamou de "um dos maiores cataclismos biológicos do mundo". No entanto, é importante enfatizar que a falta de imunidade,

lume), ficaram associados no espírito dos Tu-

Os

pinambá: é elucidativo que um dos milagres atribuídos ao suave Anchieta fosse o de res-

brasileiros fizeram

de\ ido ao seu isolamento, da população abo-

suscitar por alguns instantes a indiozinhos

não basta para explicar a mortandade,

mortos para lhes poder dar o batismo. Os aldeamentos religiosos ou civis jamais consegui-

rígine,

mesmo quando Outros

de origem patogênica.

fatores, tanto ecológicos

como

tais

ela foi

quanto

sociais,

a altitude, o clima, a densidade de

população e o relativo isolamento, pesaram decisivamente.

Em

suma, os microorganismos

num vácuo social e político, e num mundo socialmente ordenado. Par-

não incidiram sim

tal

à

densi-

ín-

tanto das doenças (quanto de

ponto

e doença,

soriamente alistados nas tropas de resgates pa-

sestrutuiação social, a fuga para novas regiões

oficiais, pois a alta

míngua (Carneiro da (Junha,

mo

eram compul-

os sobreviventes prefe-

de concen-

assolaram as aldeias da Bahia fizeram os

riam vender-se

índios das aldeias

escravos do (}ue morrer

a política

dade dos aldeamentos favoreceu as epidemias, sem no entanto garantir o aprovisionamento. O sarampo e a varíola (jue, entre 1562 e 1564,

fome, a

em que

(iiie

órgãos

morrerem

dida

como

foi

tração da população praticada por missioná-

dios

se auto-reproduzir biologicamente. Repro-

duziam-se, isso sim, predatoriamente, na me-

de índios, que continuamente vinham preencher as lacunas deixadas por seus predecessores. Mas não foram só os microorganismos os responsáveis pela catástrofe demográfica da América. O exacerbamento da guerra indígena provocado pela sede de escravos, as guerras de concjuista e de apresamento em cjue os índios de aldeia eram alistados contra os índios ditos hostis, as grandes fomes que tradicionalmente acompanhavam as guerras, a de-

ticularmente nefasta rios e pelos

ram

como lembra

ra descer dos sertões novas levas

1986). Batis-

das (juais se desconheciam os recursos ou se

Fausto (neste vo-

tinha de enfrentar os habitantes (vide, por

índios

grande sucesso na Corte francesa. A nobreza toda os convidava para jantares,

embora

torcesse o nariz para as suas esposas francesas.

Um

músico da

Corte, Gaultier,

chegou a compor uma sarabanda em que os Tupinambá tocavam com seus maracás, conforme se vê nesta gravura.


14

mSTOKlV DOS INOUIS Mi

BKASIl.

uma densidade de

exemplo, Friinchetto e Wright), a exploração

ca teria

do trabalho indígena, tndo isto pesou decisi\amente na dizimação dos índios. Há poucos estudos demogriíficos que nos possam escla-

(Braudel, 1979:42).

mas

recer sobre o peso relativo desses fatores,

um deles,

recente, é elucidativo.

Maeder

(1990)

analisa a população das reduções guarani após

o término das expedições dos paulistas apresadores de índios, e cobre o período de 1641 a 1807. Resulta dos dados, abundantes entre essas datas,

que os períodos de descenso e

mesmo de colapso populacional são aqueles em que houxe maior mobilização de homens pelos poderes coloniais, com a conseqiiente desestruturação do trabalho agrícola nos

al-

deamentos e seus corolários de fome e de peste: desses dados quantitativos emerge uma situação semelhante àquela de que sempre se queixavam os religiosos administradores de al-

em

As estimativas de população aborígine

1492 ainda são assunto de grande controvér-

uma

Para que se tenha

às regiões

como um

Sul.

Diga-se de

passagem, sabe-se ainda menos da população da Europa ou da Ásia na mesma época: a América é até bem servida desde os trabalhos de demografia histórica da chamada escola de Berkeley, cujos expoentes principais foram

Cook

como base de

e Borah. Imagina-se, só

comparação, que a Europa

teria,

do Atlântico

aos Urais, de 60 a 80 milhões de habitantes

em

1500 (Borah apud Denevan, 1976:5). Se

sim tiver sido realmente, então logrado a

te teria

triste

um

um

as-

continen-

façanha de,

nhados de colonos, despovoar muito mais habitado.

com

pu-

continente

Estas estimativ as díspares resultam sobre-

uma

avaliação diferente do impacto

ção indígena para o continente situado por volta

ideia das cifras

um

que nos ocupam mais de

todo,

de 1650: diferem quanto à magnitude da caAlguns,

Moran

(1974:137) dá

uns modestos 500 mil para a Amazónia, ao

como

Rosenblat, avaliam que

de 1492 a esse nadir (1650), a América perdeu um quarto de sua população; outros, como Dobyns, acham que a depopulação foi da ordem de 95% a 96% (Sánchez-.AJbomoz, 1973).

perto, Rosenblat (1954:316) dá 1 milhão para

o Brasil

as estimativas va-

da x\mérica do

terras baixas

tástrofe.

quadro de Denevan (1976:3), que por sua vez adapta e completa Steward (1949:656) (tabela abaixo).

Quanto

no quadro,

a 8,5 milhões de habitantes para as

da depopulação indígena. Os historiadores parecem concordar com um mínimo de popula-

A AMÉRICA INVADIDA

avançadas, adapto aqui

se vê

1

tudo de

deamentos indígenas.

sia.

Como riam de

17 habitantes/km-

Seja

como

for,

as estimativas

da população

aborígine e da magnitude do genocídio ten-

dem

portanto e

mais

altas

densidade de 14,6 habitantes/km- na área

com poucas exceções a ser desde os anos 60. Um dos residtados laterais desta tendência é o crédito crescente de que passam a gozar os testemunhos dos cronistas. Ora, para a v árzea amazônica e

da várzea amazônica e apenas 0,2 habitante/km- para o interflúvio. Como cifra de com-

para a costa brasileira, os cronistas são com efeito unânimes em íiúivr de densiis populações

passo que Denevan (1976:230) avalia

em

6,8

milhões a população aborígine da Amazónia, Brasil central e costa nordeste,

ma

com

paração, a península ibérica pela

a

altíssi-

mesma

épo-

e de indescritíveis mortandades

(^v

ide Porro e

Fausto).

Se a população aborígine tinha, realmente, Números para

Terras baixas

(em milhões)

da Am. do Sul

Total

América

a densidade a

Sapper (1924)

3 a 5

37 a 48,5

Kroeber (1939:166)

1

8,4

Rosenblat (1954:102)

2,03

Steward (1949:666)

2,90

13,38 (1,1

no

15,49

que hoje

se lhe atribui,

esv^^ii-se

tradicional (aparentemente conso-

lidada no século \IX), de

um

continente pou-

co habitado a ser ocupado pelos euivpeus,-

Como

foi

dito

com

a .\mérica não

Brasil)

Borah (1964)

imagem

foi

força por Jennings (^1975).

descoberta,

foi inv^uiida.

100

Dobyns (1966:415) Chaunu (1969:382) Denevan (1976:230,

9 a 11,25

291)

8,5 (5,1

90,04 a 112.55

POIJTICA INDIGENISTA

80 a 100

Como se deu. na Amazónia)

57,300

esquematiciunente, esse pnxvs-

Diuanto o primeiro meio-seouUv os mdios tbiam sobretudo parceiu>s comeiviais dos euS(V?


INTRODUÇÃO A UMA HISTÓRIA INDÍGKN

machados e

ropeus, trocando por foices,

15

\

facas

o pau-brasil para tintura de tecidos e curiosi-

como papagaios

dades exóticas

e macacos,

(Marchant, 1980).

feitorias costeiras

em

Com

o

primeiro governo geral do Brasil, a Colónia se instalou se,

enquanto

tal

e as relaçóes alteraram-

em

tensionadas pelos interesses

jogo que,

do lado europeu, envolviam colonos, governo

mantendo entre si, como assiuma complexa relação feita de con-

e missionários,

nala Taylor,

e de simbiose.

flito

Não eram mais

parceiros para

escambo que

desejavam os colonos, mas mão-de-obra para as empresas coloniais que incluíam a própria

reprodução da mão-de-obra, na forma de canoeiros e soldados para o apresamento de mais

problema estrutural e não de alguma Quem melhor o expressou foi aquele velho índio Tupinambá do Maranhão que, por volta de 1610, teria feito o seguinte discurso aos franceses que ensaiavam o estabelecimento de uma colónia: "Vi a chegada dos peró [portugueses] em Pernambuco e Potiú; e começaram eles como índios:

índole ibérica.

De

vós, franceses, fazeis agora.

peró

traficar

xar residência

Mais

sem pretenderem

não faziam senão [...]

início, os

tarde,

fi-

disseram que nos

devíamos acostumar a eles e que precisavam construir fortalezas, para se defenderem, e cidades, para

morarem conosco

afirmaram que

podiam

viver

nem

eles

nem

Mais tarde

[...]

os pai [padres]

sem escravos para os servirem Mas não satisfeitos com

e por eles trabalharem.

os escravos capturados na guerra, quiseram

também

acabaram esAssim aconteceu com os franceses. Da primeira vez que viestes aqui, vós o fizeste somente para traficar [...] Nessa época não faláveis em aqui vos fixar; apenas vos contentáveis com visitar-nos uma vez por ano [...] Regressáveis então a vosso país, levando nossos géneros para trocá-los com aquilo de que carecíamos. Agora já nos falais de vos estabelecerdes aqui, de construirdes os filhos dos nossos e

cravizando toda a nação

[...]

fortalezas para defender-nos contra os nossos

inimigos. Para isso, trouxestes

ba e vários tos,

mas

estes,

Pai.

Em

Morubixa-

verdade, estamos

os peró fizeram o

mesmo

satisfei-

Como

[...]

vós não queríeis escravos, a princípio;

agora os pedis e os quereis [...]"

um

(Abbeville,

[1614]:115-6).

trad.

como

eles

no fim

Sérgio Milliet,

1975

A Coroa tinha

seus próprios interesses,

cais e estratégicos

fis-

acima de tudo: queria demas queria tam-

certo ver prosperar a Colónia,

bém

garanti-la

politicamente.

Para

tanto,

interessavam-lhe aliados índios nas suas lutas

com

franceses, holandeses e espanhóis, seus

competidores internos, enquanto para garantir

seus limites externos desejava "fronteiras

vivas",

formadas por grupos indígenas aliados

Ocasionalmente também, como no caso do rio Madeira na década de 1730, convinha-lhe a presença de um grupo indígena hostil para obstruir uma rota fluvial e impedir o contrabando (Amoroso). Em épocas mais tardias, principalmente na do manjuês de (Farage, 1991).

Painéis de carvalho da "Ilha do Brasil" que decoravam uma casa em

Rouen

(c.

1500-14).

Representam o escambo de pau-brasil praticado

com

os índios

brasileiros:

vêem-se índios abatendo as árvores e embarcando-as no navio francês.


IIISRIKIV 1H>S ÍNDIOS

16

M)

BKVSll

O sistema do de Portugal, por delegação papal, exercia várias das atribuições da de "religiões" no século \\ |)adroado,

em que

o

II.

rei

Iiierarquia religiosa e arca\a

à

em

Coroa

também com

as

um

poder excepcional matéria religiosa. Por outro lado,

suas despesas, conferia

o padroado se justificava pela obrigação imposta à Coroa de e\angelizar suas colónias, e era a base da partilha entre as duas potências ibéricas

que o papa Alexandre

do Novo

Mundo em 1493

tros países se insurgiam.

\

I

ha\ia feito

e contra a qual ou-

Se o padroado criava

obrigações para a Coroa, ele

também

lhe su-

Apenas os jesuítas, talxez pela sua ligação direta com Roma, talvez pela independência financeira que adquiriram, lograram ter uma política independente, e entraram em choque ocasionalmente com o goxerno e regularmente com os moradores como atestam suas expulsões de São Paulo em 1640, do Nhiranhão e Pará em 1661-2 e do Maranlião

jeitava o clero.

em

1684, desta \ez por influência tanto dos

colonos quanto das outras ordens religiosas.

Em

pomo da

todas as ocasiões, o

sempre

foi

discórdia

o controle do trabalho indígena nos

aldeamentos, e as disputas centra\am-se tanto

na legislação quanto nos postos-chaves co-

l)içados: a direção das aldeias e a

autoridade

para repartir os índios para o trabalho fora dos

aldeamentos.

De meados do

XMI

século

a

meados do

sé-

culo XVIII, quando Portugal estava interessa-

fl

A

conversão dos

índios passava pelo

Estado português (representado aqui pelo seu escudo em que se refletem os raios da fé) e justificava as

concessões que o papa fizera, em 1493, na América. territoriais

Este frontispício à obra de frei João

José de Santa Thereza,

Istoria

Regno de

dei

Brasile,

de 1698, é

uma

perfeita alegoria

do

sistema do padroado.

"./„ 1»

r:,n/:^,t

Pombal, a Coroa pretendia enfim, numa visão mais ampla, promo\ er a emergência de um po\o brasileiro

li\ re,

substrato de

um

Estado con-

sistente (Perrone): índios e brancos

este

formariam

povo enquanto os negros continuariam

es-

interesses particulares dos colonos e os

da Coroa podiam portanto eventualmente

es-

na época coloniiil: um terceiro ator, importante, complicava ainda a situação, a saber, a Igreja, ou mais precisamente uma

tar

em

ordem to,

João

\

genista

\

d.

conflito

religiosa, a jesuítica.

A

não era monolítica, longe

Igreja, disso.

A

com

efei-

tradicio-

nal oposição entre clero secuKu" e clero regular,

acrescenta\a-se a

ri\

alidade entre as diwrsas

ordens, que significati\amente eriun chamailas

I

ao Brasil,

iu sua

ISOS, a politica indi-

ia

mais \ozes dissonantes

de escraxizar mdios e de (Ciu-neiro da Cimha). A piur-

se trata\a

ocupcU- suas teniis tir

em

arena reduzida e sua naturez;i

modificada: não ha\

quando

cra\os.

Os

do em ocupar a Amazónia, os jesuítas talharam para si um enorme território missioniírio. Foi o seu século de ouro, iniciado pela foniiidável influência junto a d. João I\" e ao papa que \'ieira, nosso maior escritor, logrou obter. A partir da expulsão dos jesuítas por Pombal, em 1759, e sobretudo a partir da chegada de

de meados

dt)

século \1\,

com

efeita a otv

bica se desloca do trabalho para as ternis in-

dígenas (Farage e de, deslocar-se-á

lin sé<.nilo nuiis feu*noxamente: do soUx pass;mi Santilli).

para o subsolo indígena.

O início do século \\ \era um inoximonlo de opinião dos mais importantes, que culminará na criação dios (Sri).

em

di^

Sen iço

lio

Pivttxão aos Ín-

1910 (^Souz;i Lima).

O sn e.xtin-


A

INTRODUÇÃO

A

UMA

IIISTÓKIA INDÍGKN

Os

índios

como

"guardiães das fronteiras",

no

limite entre

o Brasil

e a Guiana francesa. Ao lado

de Rondon, um índio segura a bandeira brasileira

enquanto outro

empunha

a bandeira francesa.

em 1966 em meio de corrupção e é substituído em 1967 pela Fundação Nacional do índio (Fu-

gue-se melancolicamente

sertões" (Farage, 1991), garantindo as frontei-

a acusações

ras brasileiras,

nai):

a política indigenista continua atrelada ao

ças a essas

No

fossem agora vistos

mesmas

como amea-

fronteiras.

fim da década de 70 multiplicam-se as

Estado e a suas prioridades. Os anos 70 são os do "milagre", dos investimentos em infra-

organizações não governamentais de apoio aos

estrutura e

ca da Transamazônica, da barragem de Tucu-

meira vez, se organiza um movimento indígena de âmbito nacional. Essa mobilização ex-

de Balbina, do Projeto Carajás. Tudo

plica as grandes novidades obtidas na Consti-

ruí e da

em prospecção mineral — é a épo-

índios, e

no

início

da década de 80, pela

pri-

cedia ante a hegemonia do "progresso", dian-

tuição de 1988,

do qual os índios eram empecilhos: forçavase o contato com grupos isolados para que os tratores pudessem abrir estradas e realocavamse os índios mais de uma vez, primeiro para afastá-los da estrada, depois para afastá-los do lago da i)arragem (}ue inundava suas terras. É

jargão assimilacionistas e reconhece os direi-

te

o caso, paradigmático, dos Parakanã, do Pará.

mas que não vem tratadesembocou na militarização

Flste período, crucial,

do neste

livro,

da (juestão indígena, a partir do início dos anos 80: de empecilhos, os índios passaram a ser riscos à segurança nacional. fronteiras era agora

um

Sua presença nas

potencial perigo.

nico (jue índios de Roraima,

E

iró-

que haviam sido

no século WIII usados como "muralhas dos

tos originários ricos, à

que abandona

as

metas e o

dos índios, seus direitos histó-

posse da terra de que foram os primei-

ros senhores.

POLÍTICA INDÍGENA Por

má consciência e boas

intenções, imperou

durante muito tempo a noção de que os índios foram apenas vítimas do sistema mundial,

uma política e de práticas que lhes eram externas e que os destruíram. Essa visão, além de seu fundamento moral, tinha outro, teórico: é que a história, mo\ ida pela me-

vítimas de

trópole, pelo capital, só teria c-entro. .\ periferia

do

nexo

capital era

em

seu epi-

também

o lixo


UISTÓKIA nos (NDIOS

18

da

história.

O

NO

BHASH.

rosultado paradoxal dessa pos-

tura "politicamente correta"

minação

física

foi

somar

à

eli-

e étnica dos índios sua elimi-

nação como sujeitos históricos.'^ Ora, não liá dií\ ida de que os índios foram atores poh'ticos importantes de sua própria história e de que, nos interstícios da política indigenista, se

politanas

islimíbra iilgo

\

tica indígena.

do que

foi

a polí-

Sabe-se que as potências metro-

perceberam desde cedo

as poten-

mente indígena: no século .\\ II, grupos Conibo (Pano) querem aliados espanhóis (missionários) para contestar o monopólio piro (arawak) das rotas comerciais com os Andes (Erikson). A coalizão de Karajá, Xerente e Xavante em Goiás, que em 1812 destruiu o recémfundado presídio de Santa Maria no Araguaia (Karasch), é um exemplo da amplitude que podia alcançar a política indígena

fronto

grupos indígenas: no e os portugueses

em

guerra aliaram-se respec-

\o

século

.\I\,

europeus fez-se muitas vezes através de grupos indígenas intermediários.

os

Sampaio e Carvalho).

Munduruku foram usados

para "desinfestar" o Madeira de grupos hostras etnias Jé.

trazidas pelos

contrário, o efeito geral dessa

com

a polí-

(Taylor, Erikson). Faltam no entanto estudos de caso desses processos de fracionamento.

tis

das mercadorias

Ao

imbricação da política indigenista

to); e no século X\II os holandeses pela primeira vez se aliaram a grupos "tapuias" contra

fotografados por

influência e

cepcionais.

tica

Urubu-Kaapor (à esquerda) Charles Wagley no Maranhão (1942): a penetração da

seu con-

ti\amente aos Tamoio e aos Tupiniquins (Faus-

os portugueses (Dantas, índio Guajajara (à direita) e índio

em

os recém-chegados.

Coalizões deste porte, no entanto, foram ex-

ciiilidades estratégicas das inimizades entre

século XVI, os franceses

com

e os Krahô, no Tocantins, para combater ou-

Essa política metropolitana requer a

uma

exis-

Tamoio e tinham seus próprios motivos para se aliarem aos franceses ou aos portugueses. Os Tapuia de Janduí tinham os seus para aceitarem apoiar a Maurício de Nassau. Se nesses casos não é certo a quem cabe a iniciativa, em outros a iniciativa é comprovadatência de

política indígena: os

os Tupiniquins

IP r^

indígena

foi

antes o fracionamento étnico

Por isso é particularmente valiosa a descrição

por Turner de um processo desse tipo, mostrando a articulação da política externa com a política interna dos grupos kayapó ao longo de várias décadas: corrida armamentista, fissão ao longo de clivagens já inscritas na

feita

sociedade (metades, sociedades masculinas), tornam-se inteligíveis à luz da estrutura social kayapó. E, reciprocamente, é essa história etnográfica que ilumina a estrutura social kayapó.

A

história local é portanto,

como

ad\oga.

entre outros, Marshall Sahlins (1992), elemento

importante de conhecimento etnográfico.

OS ÍNDIOS COMO AGENTES DE SUA HISTÓRIA

A

uma política e de uma histórica em que os índios são

percepção de

ciência

conssujei-

não apenas vítimas, só é nova eventualnós. Para os índios, ela parece ser

tos e

mente para

costumeira.

E

signiticati\o

que dois e\entos

— a génese do homem branco e a iniciati\a do contato — sejiun freqiiente-

fundamentais

mente apreendidos nas sociedades indígenas o produto de sua própria ação ou \on-

como tade.

A génese do homem branco nas mitologias indígenas difere em genil da génese de outros "estrangeiros" ou inimigos porque introduz, iilém

-^•••t^A

da simples

iilteridade,

o tema da desigxud-

dade no potler e na tecnologia. C^ liomem branco é nuiitas \ezes, no mitix um nuitante indígena.^ alguém que sui"giu do grupa Fit^ ciiientemente também, a desigualdade teontv lógica, o monopólio de niachados, espiugaulas e objetos mamifaturados em geral, que toi dado aos brancos, deri\ a. no mita de uma escw


INTRODUÇÃO

A

UMA

IIISTÍJRTA

19

INDIGKNA

^y^r?^

lha

que

foi

dada aos

índios. Eles

poderiam

ter

escolhido ou se apropriado desses recursos,

1

mas fizeram uma escolha equivocada. Os Krahô e os Canela, por exemplo, quando lhes

Tri

[f

dada a opção, preferiram o arco e a cuia Os exemplos dessa mitologia são legião: lembro apenas, além dos já citados, os Waurá que não conseguem manejar a espingarda que lhes é oferecida em prifoi

à espingarda e ao prato.

meiro lugar pelo Sol (Ireland, 1988:166), os Tu-

do Maranhão cujos ana espada de madeira em vez da espada de ferro (Abbeville, 1975 [1612]: 60-1). Para os Kawahiwa, os brancos são os que aceitaram se banhar na panela fervente de Bahira: permaneceram índios os que recusaram (Menéndez, 1989). O tema recorrente que saliento é que a opção, no mito, foi oferecida aos índios, que não são vítimas de uma fatalidade mas agentes de seu des-

pinambá

setecentistas

tepassados

tino.

teriam

escolhido

Mas moldado

Talvez escolheram mal.

dignidade

de

terem

Pica salva a

a

O

que

isto

indica é

que

as socie-

dades indígenas pensaram o que lhes acontecia em seus próprios termos, reconstruíram

uma

história

vam

e

em

do mundo

em que

(jue suas escolhas

elas pesa-

tinham conse-

(jiiências.

O

Assim também a etno-história do contato

amiúde contada como uma

Poz, 1991).

própria

história.

ó

volume) ou até como uma empresa de "pacificação dos brancos", como é o caso por exemplo dos Cinta-Larga de Rondônia (Dal te

iniciativa

que

parte dos índios (vide Turner e Franchetto nes-

Ksc;()PO

DESTE LIVRO Alguns esclarecimentos te livro

finais

cabem

aqui. Es-

transborda as fronteiras brasileiras, e

Planta de aldeia jê e planta de

aldeamento

oficial

pombalino, ambas do século XVIII.


,

IIISTORIV IH»N l\nU)S

20

M>

BKVSll

de primeira mão cedem o passo informam assim talvez mais sobre a Europa e sua reflexão moral do que sobre os índios no Brasil. Data do fim do século X\III a primeira, única e valiosíssima expedição de um naturalista português ao Brasil, Alexandre Rodrigues Ferpictóricas

^rw\^^-^_

a estereótipos, e

reira:

inaugura-se

com

ele

uma tradição

cien-

que florescerá no século .XIX com naturalistas e viajantes de outros países (alemães, tífica

russos, franceses, suíços, americanos...), pro-

uma ampla documentação iconográque contrasta singularmente com a exaltação de um índio genericamente Tupi (ou

duzindo fica,

Guarani) orquestrada pelo indianismo tupini-

quim.

portanto dois índios totalmente di-

ferentes no século XIX: o

bom

índio Tupi-

um

índio morto)

Guarani (convenientemente,

que é símbolo da nacionalidade, e um índio \ i\o que é objeto de uma ciência incipiente, A

1

por

três inoti\os. Primeiro,

de outubro de

isto

1550. a cidade

teiras coloniais,

°

normanda de Rouen. que fabrica tecidos e comercia

regularmente

em

pau-brasil. oferece.

para convencê-lo a investir dinheiro

da

Coroa e estabelecer

uma

Colónia,

uma

ao rei da França Henrique e a sua festa brasileira

II

mulher. Catarina

de Mediei. O rei e a rainha são recepcionados por trezentos índios

dos quais uns cinquenta

tupis,

autênticos, e os outros marinheiros franceses falantes

de

tupi e

todos despidos para a ocasião e que

com

porque

as fron-

hoje, e parte

do

Brasil

ções portuguesas e espanholas

— inclusive du—

rante o período de União das duas Coroas

os atores e processos são semelhantes: a ex-

pansão jesuítica espanhola

em

Mojos, Maynas,

nos Llanos de \enezuela dá-se rísticas

com

caracte-

semelhantes à e.xpansão jesuítica no

encenam, na do Sena. a vida tupinambá: amor na rede, caça, venda de pau-brasil, guerra.

A partir da popularização da fotografia e das \'iagens exóticas, multiplicam-se as imagens:

resta saber se elas nos re\

A HISTÓRIA DOS ÍNDIOS

Na

realidade, essa

xa mais patente:

ro

INUGENS Foi dada, neste

1í\to,

grande importância à

nografia, e tentamos mostrar

ico-

documentos pou-

questão ultrapassa

feita.

Não

que a epígrafe destaca, da au-

sência de escrita e portanto da autoria de textos,

não é só a fragilidade dos testemunhos

que Berta Ribeichamou, com acerto, de ci\ ilização da pviIha, mas é também a dificuldade de adotiunnos esse ponto de vista outro sobre uma trajetória de que fiizemos parte. Os nossos li\ TOS de história se iniciam em 1500. Isso não é só desN^antagem: em outros materiais dessa civilização a

países da .\mérica I.atina, o culto a

cestnilidade pré-colombiana passa

uma anem geral

uma \ asta mistificaçãa que dissoKv o plisem um magma geral. Ter uma identidade e ter uma por

que talvez mais chame a atenção é a ausência de iconografia portuguesa (os portugueses parecem muito mais fiíscinados, na época, pelo Oriente), que contrasta com a sua importância na França, na Holanda e, subsidia-

sado e portanto a identidade indígena

riamente, na .\lemanha.

É

a época

em

(jue está

mais viva a especulação sobre o significado dessa nova humanidade, a um tempo inocente

e antropófaga, liapidamente, as descrições

in-

é só o obs-

co conhecidos ou inéditos. Nos séculos XVI e XVII, o

dei-

uma história propriamente

dígena ainda está por ser

do Solimões, do médio Amazonas e provaxelmente do rio Branco: truncar estas vastas redes seria truncar a compreensão desses processos históricos.

mesma

o problema da iconografia, que apenas a

táculo, real, e

nias ribeirinhas

elam os índios ou se

revelam nossos antigos fantasmas.

Amazonas. Terceiro, porque as redes de comunicação unem, sobretudo nos séculos X\I e X\ II, a população amazônica como um todo, articulando desde os Arawak subandinos às et-

prostitutas,

margem esquerda

a antropologia.

se sabe, não coincidem

de hoje era possessão espanhola. Segundo, porque apesar da diferença sempre mantida entre instituias

de

como

memória

própria. Por isso a rtvuperaçâo da

própria história é sociedades. ção, o

um

fundamento

dígena.s,

direito

K também,

fundamental das

pela atual

(.A>íistitui-

ilos diivitos territoriais in-

e particularnuMitc da garantia de

su.ui

terras.

Sobre esto pontu ha porem

«.juo ,se

euten-


INTRODUÇÃO

A

LMA

ÍIISTOHIA INDÍGI \

21

\

O

índio

no

imaginário

europeu. Ao lado, a primeira gravura conhecida, de Johann Froschauer, que representa a antropofagia brasileira.

No

meio,

à esquerda,

imagem da cidade mítica do Eldorado ou Manoa. Abaixo, à esquerda, gravura do século XIX mostrando um canibalismo "selvagem" que jamais existiu. Abaixo, à direita, a

primeira gravura

representando as

Amazonas: um marinheiro enviado terra para seduzi-las é atacado para ser devorado.

em


,

,

IIISTOKIV IX^S I\nU>S \l) BKVSll

ãS

der.

Os

direitos especiais

que os índios têm

so-

bre suas terras derivam de que eles foram, nas palavras do Alvará Régio de 1680, "seus pri-

mários e naturais senhores", ou

de

uma situação

derivam da Cunha,

seja,

histórica (Carneiro

1987). Isso não significa que caiba provar a ocupação indígena com os documentos escritos, que não só são lacunares, mas cujos autores tinham também interesses, no mais das ve-

antagónicos aos dos índios. Ao contrário, cabe restabelecer a importância da memória indígena, transmitida por tradição oral, recozes,

Ihendo-a, dando-lhe voz e legitimidade tiça.

A

história dos índios

em jus-

não se subsume na

história indigenista.

o

índio

Durante quase cinco séculos, os índios foram pensados como seres efémeros, em tran-

do V lè

imaginário dos antropólogos é o

iJ»

Nimuendaju posando nu em 1937, no meio de

um

-írh ,!

l

jfc

,

re

:,-

i-.iai.

l,

,

;

erar

li!

íi

.i.nte.

•.

wrt. foi collocadfa por

.:

1

índios Canela de Nimuendaju.

.

ellc ht íirii.ob recebeu do plí.netó ter e ^ae poabuea u t-jr>:a. de 1 jipedlr u« ecllF BC Bolar se prolonga Inflnlncr. Ino ini;i-

-J3

Xerente.

Abaixo, fotos de

^icr-r.t-e

,

i^ue

;;•;•

ritual

-

t,ranecl t LI tido a .-alni V ; ocjectos a tiglcoE ;(Ier.t,ro un cal Alnhh. & c&rvLltíb e a plnalnhí. alo alrelt^;

íí

índio tradicional.

Acima, o grande antropólogo

<*

(...

,

\ ^ct»

<

t

'.

".

,

alui

e a l„pSl'í--

sição: transição

para a cristandade, a

cixiliza-

o desaparecimento. Hoje se sociedades indígenas são parte de

ção, a assimilação,

sabe que as

nosso futuro e não só de nosso passado. sa história

um elas.

comum

A nos-

— este livro o ilustra —

foi

rosário de iniqiiidades cometidas contra

Resta esperar que as relações que

com elas

í-ov iut.r.clí'

se estabeleçam a partir

de agora sejam mais justas: e talvez o se.xto centenário do descobrimento da América tenha algo a celebrar.

AGRADECIMENTOS Este livro

foi

elaborado graças ao projeto es-

do Indigenismo" aprovado pela F.\PESP (88/2564-5) e como parte das atividades do Núcleo de Pesquisa em História Indígena e do Indigenisma da Universidade de São Paulo. A maioria dos capítulos deste livro foi encomendada desde 1989. A intenção era aviíliiU" o estado atu;il do conhecimento sobre história indígena e indi-

pecial sobre "História Indígena e

car direções promissoras para no\ as pestiuis^is.

Em

agosto de 1991, na

seminário para

uma

l SP. foi

realizado

um

discussão dos textos, an-

tecedendo a publicação. Para sua re;ilizaçãa também contamos com o apoio oruoiiil da FAPKSP (91/1669-0). Após o seminiiricx Greg Urban aceitou tratar da contribuição da lingiiística e Sônia Dorta reiílizou um extenso catalogo de coleções etnográficas, aqui publicado em iuiexo. Dois capítulos que ivputo essenciviis para um li\ro tjue trata de Historia dos IVws Intlígenas, encomendados desde o início do projeta nimca chegaram a ser escritos; um dizia respeito à situação atual

dos po\os indigt^

nas. outro aos seus pn^spectos

do tutujw


INTRODUÇÃO A UMA

IIISTÓKIA INDICIA

23

\

O

índio

no

imaginário.

Ao

lado,

casal de índios do

Parque Nacional do Xingu: imagem de índios inocentes no jardim do Éden. Abaixo, os índios como senhores da terra: Adhemar de Barros entrega

solenemente a dois índios Carajás

perplexos uma caixa contendo

do morro do Jaraguá.

terra

A

pesquisa iconográfica ficou a

meu

cargo,

auxiliada por Oscar Calavia Saéz e posterior-

mente por Marta Amoroso. Beneficiou-se muidos recursos da Newherry Library; de CJhicago, que me concedeu uma bolsa de pesquisador em junho de 1990 e da acolhida, na Universidade de Coimbra, do professor Manuel Laranjeira Rodrigues de Areia e do fotógrafo C'arl()s Barata, (]ue cederam fotos da extraordinária coleção de Alexandre Rodrigues to

Ferreira. Muitos outros acervos permitiram (jue

usássemos suas imagens: sua

lista

vem no


24

MISTORIV 1H>S INOIOS M) BKVSll

tiniil

Queremos prestar, por fim, neste prefáuma homenagem a Miguel Menéndez,

do \ olunie e a todos queremos agradecer.

Cabem no

entanto especiais agradecimentos

cio,

à tlunilia de Hércules Florence, à Boscli do Bra-

um

sil

e à Biblioteca Mário de Andrade. Agradeço

tiunbém a

re\ isão

dos textos de arqueologia rea-

lizada pela professora SíK ia Maranca,

do Mu-

seu de Arqueologia e Etnologia da USP.

A

publicação deste volume só se tornou

possúel graças ao apoio da Secretaria Municipal

de Cultura de São Paulo e da FAPESP

dos primeiros antropólogos a se inte-

ressar por pesquisas

de história indígena, em novembro de 1991. Membro do projeto e do Núcleo de História Indígena da USP desde suas primeiras horas, o capítulo que produziu e que publicamos neste volume, sobre a história do rio Madeira, é seu último trae que faleceu prematuramente

(Proc. 91/4450-0).

balho.

NOTAS

entre os quais Marshall Sahlins, insurgiram-se contra o esvaziamento da história local. Vide na reção J. Hill (1988:2).

mesma

di-

Citaremos apenas o nome do autor, sem a data, quando nos referirmos a artigos neste \olume. (2) O grande historiador Varnhagen, cujo preconceito contra os índios era notório, foi um dos principais apóstolos dessa visão: estima em menos de 1 milhão a população indígena. E curioso perceber que as notas que Capistrano de .\breu, seu editor, acrescenta à monumental História geral do Brasil de \'arnhagen desmentem as estimativas do autor

Penso por exemplo na mitologia Timbira em ge(Nimuendaju, 1946; DaMatta, 1970; Carneiro da Cunha, 1973), na mitologia dos grupos de língua Kayapó (Vidal, 1977; Turner, 1988), na mitologia de alguns grupos de língua Tupi como os KaNvahi%\"a (Menéndez, 1989) e na de grupos Pano do interflmio (Kiefenheim e Deshayes, 1982). Em grupos Pano ribeirinhos,

como

(Varnhagen,

mens

são criados do barro pelo Inca, que os

(1)

vol.

1:23).

não é grande novidade: a partir de meados dos anos 80, após a \oga a\assaladora do modelo de sistema mundial de Wallerstein, \ ários antropólogos, (3)

Isto

(4) ral

e assa.

os Shipibo, a história é diferente: os ho-

Os brancos

molda

são assados de menos; os negros,

assados demais; finalmente são feitos os índios, assados a contento (Roe, 1988).


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