TABU #48, Abril-junho, 2015

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DISTRIBUIÇÃO GRATUITA

Nº 48 ABR–JUN 15

FERNANDA TORRES WELLES E SHAKESPEARE KUBRICK, MILLER E KAZAN NORTE COMUM HYPNOTIC BRASS ENSEMBLE Nouvelle Vague ::: O terror nos anos 80 Dossiê: A Experiência do Cinema ::: Beto Brant As caras-metades de Barbara Gomes

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Em 2015, o Estação comemora seus 30 anos.

Conheça a programação que a gente preparou para os próximos meses.

CLÁSSICOS DO CINEMA FRANCÊS 23 A 29 DE ABRIL

ELIA KAZAN & NICHOLAS RAY 7 A 13 DE MAIO

CENTENÁRIO ORSON WELLES 14 A 20 DE MAIO

RETROSPECTIVA BRIAN DE PALMA 4 A 10 DE JUNHO

RETROSPECTIVA STANLEY KUBRICK 25 DE JUNHO A 8 DE JULHO

MOSTRA DAVID LEAN 16 A 22 DE JULHO

RETROSPECTIVA FRANK CAPRA 20 A 26 DE AGOSTO

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©Foto: Raimundo NetoNeto / Agência O Globo Raimundo / Agência O Globo

Sessão de inauguração do Estação, em 12/ 11/85, com o filme Eu Sei que Vou te Amar. O menino sorridente à frente da foto ainda não foi identificado. Palpites? imprensa@grupoestacao.com.br

E JONAS FEZ 40 ANOS... N

o início, não havia nada. Então, a luz bateu na tela branca. Quando as primeiras imagens de Jonas que terá 25 anos no ano 2000 foram projetadas, às 14h do dia 4 de junho de 1985, uma nova era se inaugurava para os cinéfilos. A Era do Estação. É preciso um certo exercício de imaginação para entender o que era para um jovem cinéfilo viver numa cidade como o Rio, que já não tinha as salas que foram importantes para as gerações anteriores, como a Cinemateca do MAM e o Paissandu; sem contar com centros culturais que depois surgiram; e ainda sem fitas VHS ou DVDs, uma vez que o mercado de vídeo ainda engatinhava. TV a cabo, internet e download eram realidades distantes. Assim, o Estação rapidamente se tornou um ponto de convergência. Crescemos. Vieram mais salas, uma distribuidora de filmes, vídeolocadoras, um festival de cinema. E o tabloide TABU. O acervo de cópias 35mm de filmes existente no país foi se acabando e com ele nosso estilo de programação, que durou até o início dos anos 90. Passamos a exibir novos filmes, trazidos pela

nossa distribuidora e por outros poucos corajosos pioneiros. Com o tempo, o Estação acabou por modificar o mercado, que passou a ver esses novos filmes que trazíamos como um negócio promissor. Pouco a pouco, já não éramos os únicos e para muitos que não viveram os anos 80 o Estação passou a ser visto como um cinema comum. Veio a nossa crise financeira, quase fechamos. Salvos aos 49 do segundo tempo por uma equipe que inventou saídas, pela solidariedade cinéfila e por um patrocinador de visão, estamos de volta com força total. Estamos de volta para o futuro, com novas salas, novos equipamentos e nova programação. E como não poderia faltar, um novo TABU, feito no mesmo espírito de antes mas com uma equipe totalmente nova. E como os tempos são outros, o TABU mudou de sexo! Agora é a TABU, a revista. Aproveitem, com o devido respeito, a essa jovem balzaquiana. Marcelo França Mendes Presidente do Grupo Estação

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Diretor geral: Marcelo França Mendes Editora: Maria de Andrade Editores assistentes: Adélia Jeveaux e Thiago Camelo Produção editorial: Julia Levy Identidade visual e design gráfico: Tita Nigrí Revisão: Leandro Salgueirinho Pesquisa e produção de imagens: Liliam Hargreaves Jornalista responsável: Alberto Shatovsky Colaboradores: Adalberto Müller, Adélia Jeveaux, André Dahmer, Julia Levy, João Lanari, Fabiano Canosa, Fernanda Oliveira, Janot, Leonardo Lahma, Luiza Gannibal, Maria de Andrade, Pedro Elias, Tatiana Leite, Thiago Camelo, Thiago Jatobá, Tom Leão. Agradecimentos: Ana Luiza Beraba, David França Mendes, Alberto Shatovsky, Leonardo Monteiro de Barros, Lula Vieira, Remier. Foto de capa: Orson Welles desembarca no Brasil. Acervo: Fabiano Canosa © Manuscript Department, Lilly Library. Indiana University, Bloomington, Indiana.

Endereço: Rua da Alfândega, 4º andar - Centro Rio de Janeiro, RJ - CEP 20070-004 Para assinar ou anunciar, entre na página da Tabu: www.grupoestacao.com.br/tabu imprensa@grupoestacao.com.br ou ligue para (21) 3174-5499 TABU 48 ABR-JUN 15 ISSN 2359-6473 Distribuição Gratuita

Esta edição da Tabu foi impressa na Edigráfica, em abril de 2015, em papel Jornal 49g Tiragem: 40.000 exemplares


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Editorial

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Entrevista ::: Fernanda Torres

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Sala 1 ::: Norte Comum

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Totem ::: Elia Kazan e Nicholas Ray

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Artigo ::: Sagas e franquias

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Dossiê ::: A Experiência do Cinema

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Artigo ::: Orson Welles & W. Shakespeare

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Artigo ::: Nouvelle Vague

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Crítica ::: Winter Sleep; Casa Grande; Quando meus Pais Não Estão em Casa; James Brown

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Dossiê ::: Cinema: Expressões de Poder

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Hiato ::: Beto Brant

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Ensaio ::: Barbara Gomes

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Sala 2 ::: Hipnotic Brass Ensemble

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Viewfinder

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Fac-símile TABU

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Cartum

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Playlist

TABU ::: Nº 48 ::: ABR-JUN/15

ÍNDICE


© Cícero Rodrigues

Pedro Almodóvar no Rio nos anos 80


UMA NOVA TABU R

epaginada, a TABU volta à cena com o foco principal no cinema, mas também para falar de cultura e arte sem preconceitos, de forma ampla, geral e irrestrita. Sendo a retomada da revista uma comemoração do nascimento do Estação, esta edição homenageia a década de 1980 e discute a importância de se ir ao cinema. A entrevistada especial deste número novo não poderia ser outra pessoa senão Fernanda Torres, que estrelou o filme de inauguração do Estação em 1985. Com carinho especial pelo tema, neste número a TABU dedicou à sétima arte dois Dossiês que falam do lugar dessa arte na nossa cultura: “A experiência do cinema” e “Cinema: expressões do poder”. Além disso, há uma série de críticas de filmes em lançamento, a coluna Totem, assinada por Fabiano Canosa, e três artigos que comemoram o que há de melhor na programação deste trimestre especial de retomada: Orson Welles, cinema francês e os filmes de terror que marcaram os anos 80. A nova TABU tem como norte o conceito da Sala 1 do novo Estação NET, ou seja, abrir um espaço nobre para o circuito alternativo, falar do que não costuma ser manchete nos grandes veículos comerciais. Nesta edição, a seção Sala 1 dá espaço ao grupo Norte Comum, que anda agitando a vida cultural carioca; e, na Sala 2, trazemos notícias internacionais ainda frescas por aqui com o sucesso da banda Hypnotic Bass Ensemble. As seções Ensaio, Hiato e Viewfinder trazem ótimas novidades ao mundo das artes com fotos de Barbara Gomes e o paradeiro de Beto Brant. Para fechar, há ainda a coluna Playlist de Janot, falando dos embalos da trilha sonora nos anos 80, e o cartum de André Dahmer, porque, afinal, quem ri por último, ri melhor. Sejam bem-vindos! MARIA DE ANDRADE Editora


ENTREVISTA ::: Fernanda Torres

SEM TABU por THIAGO CAMELO

divulgação

Fernanda Torres fala da sua premiação em Cannes com Eu sei que vou te amar, de como a literatura invadiu sua carreira de atriz, de sua admiração por Willem Dafoe e do hábito semiabandonado de ir ao cinema, entre outros assuntos.

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ENTREVISTA ::: Fernanda Torres

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m 12 de novembro de 1985, o cinema Estação se tornava – de fato – Estação. Ainda com o caráter de cineclube, mas já com o nome pelo qual é conhecido até hoje, o endereço da Rua Voluntários da Pátria 88 perdia a alcunha de Cineclube Coper Botafogo, herança da sala que existia anteriormente no lugar. Naquele mês, o recém-inaugurado Cineclube Estação Botafogo teve uma noite de gala: a pré-estreia do esperado Eu Sei que Vou te Amar, de Arnaldo Jabor. Apenas dois atores, dois protagonistas: Thales Pan Chacon e Fernanda Torres – a jovem e promissora filha de Fernanda Montenegro. Em 1986, Fernanda Torres ganharia o prêmio de melhor atriz no festival de Cannes pelo papel. No mesmo ano, interpretaria a mocinha da novela das 20h, o remake de Selva de Pedra. Ali, aos 21 anos, a carreira de atriz de cinema e TV já parecia consolidada. Mas estávamos perto dos anos 1990, quando a maior agência de fomento de cinema do país, a Embrafilme, terminou. O cinema do país parou. E a atriz teve de se desdobrar em outra – agora, era a Fernanda Torres do teatro também. Uma década depois, a partir dos anos 2000, a Fernanda do teatro e do cinema voltou com força à TV, com o sucesso de Os Normais e de Tapas e Beijos. E, mais

recentemente, tornou-se também escritora: lançou dois livros bastante elogiados pela crítica, um de ficção – Fim (Companhia das Letras, 2013) – e outro de reportagens e crônicas – Sete Anos (Companhia das Letras, 2014) –, fruto de uma constante atividade de escrita para revista e jornal. Hoje, aos 49 anos, Fernanda Torres se equilibra entre vários fronts da arte: é literatura, é cinema, é TV. Não é que ela goste: “É por circunstância e personalidade”, diz.

“Não nasci para ser mocinha da novela das 20h. Não tenho o talento, e isso é um talento.” Como você se lembra do Eu Sei que Vou te Amar? A época do filme é um passado distante ou ainda está fresca na memória? Nossa, é muito distante. Muito. Estava começando minha vida, tinha acabado de fazer Inocência [Walter Lima Jr., 1983]. Eu era totalmente fã do Jabor. Minha mãe tinha feito Tudo Bem [Arnaldo Jabor, 1978]. O Jabor era uma referência para mim, tinha feito Eu te Amo [1981]. Um cara muito incrível. Ele abriu o teste para fazer Eu Sei que Vou te Amar, que era meio uma con-

tinuação do Eu te Amo e, quando ele me escolheu, fiquei totalmente chocada. Acho que me escolheu porque eu tinha feito Inocência. Ele disse que queria fazer um “Indecência”. Foi uma experiência extraordinária de convivência com o Jabor e com o Tales [Pan Chacon], dentro de uma casa do Oscar Niemeyer... E o que você acha do filme hoje, 30 anos depois? O filme tem umas coisas que ficaram datadas, meio pósmodernas. O que eu mais gosto são as cenas que a gente fez depois, em vídeo, em Copacabana. São as coisas mais interessantes. Eu sou fã do Jabor de A Opinião Pública [1967], sou fã do Jabor de Toda Nudez Será Castigada [1973]. O Eu Sei que Vou te Amar tem um lado meio rico... Quer dizer, não é exatamente isso... Não sei, às vezes acho que aquele filme deveria ter sido todo feito em Copacabana. Gosto muito das cenas que a gente fez em quatro dias com câmera de vídeo e na rua. Acho que isso faz diferença no filme, mais do que aquele cenário com televisões, aqueles manequins... Aquilo é bem década de 80, não? Aquilo é muito década de 80! Muito. Ficou na época. E, por falar em década de 80, você se lembra de frequentar o

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ENTREVISTA ::: Fernanda Torres

© Raimundo Neto / Agência O Globo

Letreiro do Estação em 1985. Em cartaz, o filme que deu a Palma de Ouro para Fernanda Torres

cinema naquela época, em especial o Estação? Eu me lembro do Estação desde o tempo em que era cineclube. Foi muito importante para a minha vida, para a minha formação. Tinha sempre filmes que estavam nos festivais, que não passavam mais em nenhum lugar. Era muito rico ir ao Estação. Na década de 80 você, muito nova, se firmou como atriz de cinema. Também fez novela. Depois, veio o teatro e, agora, a literatura. Como é transitar entre tantas áreas ao longo de uma carreira? Não sei bem como isso aconteceu na minha vida, mas a

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verdade é que sempre odiei sobrepor teatro ao cinema. Atualmente, a literatura e as crônicas foram se juntando a isso. Tenho impressão de que isso aconteceu comigo muito mais porque é difícil um ator viver só de cinema no Brasil, ou só de televisão, ou só de teatro. Você acaba estrangulado em um só meio. Por exemplo, eu enfrentei o fim da Embrafilme. Era estranho, eu tinha acabado de ganhar Cannes, mesmo assim não havia trabalho. Eu não dominava o inglês, não era dona de uma beleza estonteante que me levasse para fora do país. A tal da carreira internacional era impossível para mim. Acabei fazendo

alguns filmes meio no exílio. Fiz três filmes em Portugal e um no México nessa época. Quando eu voltei para o Brasil, o cinema tinha acabado. Acabei indo fazer Orlando [1989] com a Bia Lessa. Graças a Deus fui fazer Orlando. Aquilo me salvou. Como te salvou? O teatro é um lugar no qual o ator pode se produzir, você escolhe os personagens que vai fazer. É do tamanho de um ator, entendeu? Não há o problema do convite, uma coisa comum no cinema, em que alguém sempre tem que te querer. Isso é uma escravidão. Na maior crise do cinema, o teatro se apresentou para mim.


ENTREVISTA ::: Fernanda Torres © Paulo Jabur

Fernanda Torres no cinema Estação nos anos 80

Então o fim da Embrafilme acabou te abrindo outras portas. Pois é. Eu fiz a novela Selva de Pedra [1986] muito nova, eu era a mocinha da novela das 20h. Mas não nasci para ser mocinha da novela das 20h. Não tenho o talento, e isso é um talento. Acabei ficando muito tempo longe da TV. Não dominava aquela linguagem. Fiz a série A Comédia da Vida Privada, mas era esporádico. Até que o Luiz Fernando [Guimarães] me levou para fazer Os normais. A gente se conhecia do teatro. Ali, finalmente, eu me encontrei na TV. O que estou tentando falar é que sempre uma crise num lugar te leva a outro lugar. A crise do cinema me levou ao teatro; o teatro me levou, de certo modo, à TV. E onde entra a escrita? A mesma coisa. Eu fui escrever porque estava grávida, não tinha mais como fazer Tapas e Beijos e teatro ao mesmo tempo.

Então eu fui convidada para escrever o livro. Topei. As crises de criação e as encruzilhadas da vida me levaram para outra direção. As piores crises abrem portas. Também tem a ver com a personalidade do artista, não? Sim! Por exemplo, veja o Willem Dafoe, um ator interessantíssimo. Faz o vilão do Homem-Aranha, mas faz teatro experimental em Nova York. Faz filme com o Babenco. Ele trabalha com o Robert Wilson. Eu nem era tão fã dele no cinema, mas, na peça do Robert Wilson, ele está extraordinário. E ele está extraordinário em O Grande Hotel Budapeste. É inquieto, antenado. Mas ele poderia estar em Los Angeles, esperando o próximo vilão, né? Então a sua personalidade também te leva para novos lugares. Você fez, em 1996, um filme sobre a crise do começo dos anos

1990, o Terra estrangeira. Você acha que é uma época do país que é bem retratada no cinema brasileiro? Acho que às vezes a gente tem certo complexo. Assim como os europeus, que fazem muitos filmes sobre o nazismo, a gente faz muito filme sobre a ditadura militar [risos]. Parece que a nossa história acabou naquela época, é uma coisa estranhíssima. Até hoje a gente é muito aficionado pela questão da ditadura militar, sendo que, desde então, o país já se complicou muito, né? Temos dificuldade de falar das coisas que estão acontecendo no presente. O Terra Estrangeira tem essa qualidade. Aliás, foi um filme que fiz sobre o meu próprio exílio. Eu estava na mesma situação daquelas pessoas ali, eu trabalhava em Portugal também. Você escreve sobre diversos assuntos em sua coluna na Folha de S.Paulo, mas, sempre que pode, tenta relativizar questões que costumam rachar opiniões. Isso é consciente? Nós temos uma compreensão muito pequena das coisas. Até hoje, na política, tratamos a questão da esquerda e da direita como se de fato ela existisse. A esquerda está toda cooptada pela direita. Como o que está acontecendo no petrolão. As empreiteiras financiam

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ENTREVISTA ::: Fernanda Torres

Fernanda Torres na peça A casa dos budas ditosos

todos os partidos políticos, né? Acho que isso ainda não é entendido direito. Às vezes, parece que ainda nos vemos como recém-saídos da ditadura militar. Eu tenho essa impressão, sabe? Existe uma coisa um pouco... a direita é boa, a esquerda é ruim. Tudo ainda é muito maniqueísta. O mundo é mais complicado que isso. E onde entra a arte? A arte caminha no meio, no caminho do meio, sempre. Eu nunca consegui entender o mundo com o maniqueísmo tão seguro que a política, às vezes, apresenta: “Esses são os bons, aqueles são os maus.” Fico impressionada que ainda se divida o mundo assim. Você é uma das escritoras que vão representar o Brasil no Salão

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do Livro de Paris, certo? [Nota da Redação – A entrevista foi realizada no início de março, antes do evento.] Sim, estou indo no final do mês. É ótimo. É inacreditável. Parece que eu estou voltando aos meus tempos de festival de cinema. Meio debutante. Tenho sempre a sensação de debutante com esses eventos em torno dos livros. O que exatamente você está fazendo agora? Vou retomar a turnê com a peça A Casa dos budas ditosos no segundo semestre. Eu não faço a peça há um tempinho, preciso voltar a fazer. Voltar a algumas cidades em que fui apenas uma vez, como Brasília, Salvador. Meu segundo semestre será dedicado a isso. Para o ano que vem, tem algumas coisas se armando. Mas não digo, senão gora. Você tem ido ao cinema? Quando é um filme cabeça, prefiro ver em casa. Os filmes meio parque de diversões são os que vejo no cinema. Você pensa: “Isso eu não posso perder no cinema.” Já os filmes mais reflexivos – que exigem uma experiência íntima – tenho preferido ver em casa.

É claro que na tela grande tem sempre uma magia, mas... Depois de tantos anos de carreira, sendo aclamada como atriz e agora também como escritora, como fazer para não se acomodar? Acho que essa é uma questão complicada. Às vezes, um artista que acha que está acomodado é, no fundo, um artista extraordinário. A questão é manter viva a chama, sabe? Há atores que mantiveram contrato longo com emissoras de TV – o que poderia ser encarado como uma atitude acomodada – e que se tornaram atores extraordinários. Às vezes, o ator que faz teatro experimental – que seria o cara teoricamente da vanguarda – está superacomodado naquela condição. Eu sou contra rotular o que é ou não é um artista acomodado. Às vezes, aquele cara que você acha que está acomodado é o que mais está andando.

Thiago Camelo é jornalista.


SALA 1 ::: Norte Comum TABU esteve na sede do Norte Comum, grupo que espalha cultura para além da Zona Sul carioca.

NOVA BÚSSOLA

Norte Comum em frente à sede de Benfica: grupo começa o ano consolidado como um dos maiores agentes culturais da cidade. Foto: Ian Queiroz

por THIAGO CAMELO 13


SALA 1 ::: Norte Comum

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erca de 40 minutos, o tempo necessário para percorrer as estações de metrô entre Botafogo e Triagem. Em Triagem, anda-se mais cinco minutos e lá está, na Rua Francisco Manuel 159, bairro de Benfica, a sede do Norte Comum; grupo, coletivo, reunião de camaradas – nem eles mesmos sabem ou querem definir o que são – que trabalham para rediscutir os espaços de oferta cultural na cidade. O trajeto Botafogo-Triagem não é demorado, mas o caminho percorrido dentro do vagão guarda uma distância simbólica: separa a Zona Sul da Zona Norte do Rio de Janeiro. Mais precisamente, um bairro como Botafogo, o de maior concentração de cinemas por metro quadrado, de uma zona que conta com poucos cinemas – a maioria de shopping centers – e de escassa programação cultural. “Na Zona Norte não faltam artistas, nem preciso enumerar quantos artistas geniais saíram daqui e continuam saindo”, diz Carlos Meijueiro, um dos integrantes do Norte Comum. “Eu me pergunto apenas por que esses artistas precisam atravessar o túnel para se apresentar.” O irmão de Carlos, Pablo Meijueiro, também faz parte do Norte Comum. Os dois e uma turma que não dá muito bem para enumerar – a empreitada funciona no esquema “é só chegar”, explica Pablo – discu-

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“Eu me pergunto apenas por que esses artistas precisam atravessar o túnel para se apresentar” — Carlos Meijueiro tem o futuro da cultura carioca desde 2011. Em quatro anos, promoveram um sem-número de eventos. Os primeiros foram apenas reuniões de pessoas interessadas em descentralizar a cultura do Rio. Rapidamente, aquele grupo de jovens já estava produzindo eventos maiores. Um dos que mais chamam a atenção é o Sarau Tropicaos, que ocorre no Hotel da Loucura – espaço do Instituto Municipal Nise da Silveira, no Engenho de Dentro – e envolve artistas e pacientes internos do local. Tendo a poesia como guia, o Sarau foi contemplado em fevereiro com o Prêmio de Ações Locais. O edital da Secretaria Municipal de Cultura possibilitará que o grupo renove os equipamentos usados no evento, que acontece sempre na última sexta-feira do mês.

Academia e prática Aparentemente, 2015 é o ano do Norte Comum. Mais consolidados, eles já concorreram ao prêmio “Faz a Diferença”, do jornal O Globo. Vira e mexe, são citados por importantes intelectuais da cidade, sempre na lista

dos principais agentes transformadores da cultura do Rio. Uma dessas referências intelectuais, o historiador Luiz Antonio Simas, trabalha com eles no projeto Ágoras Cariocas, palestras abertas sobre bairros do subúrbio da cidade. A atividade, itinerante, acontece muitas vezes nas ruas desses bairros. A união de Simas com o Norte Comum não foi à toa: existe no grupo uma preocupação de unir academia e prática, teoria e “mãos à obra”. Por isso, é frequente vê-los discutindo segurança pública, problemas de locomoção, transporte, entre outras questões da metrópole. Tudo, em certa medida, é cultura e afeta a cultura. Alguns integrantes do Norte Comum, como Carlos Meijueiro, têm verve acadêmica, fazem mestrado e discutem intensamente filósofos, antropólogos e sociólogos. Na parede da sede de Benfica, estão anotados os compromissos da semana. Projeto Geringonça, Ibejis, Caboco Satélite; cada um com um viés e acontecendo em um lugar diferente na cidade. O Geringonça, por exemplo, ocorre no Sesc Tijuca e, desde que o Norte Comum assumiu a coprodução, já houve apresentações, oficinas e debates dos mais variados. Passaram por lá vários artistas independentes da cidade e de outros estados, além de nomes mais reconhecidos que ainda dialogam com a cena


SALA 1 ::: Norte Comum

underground, como Céu, Curumin e Siba.

Em Benfica, uma sede e um lugar para produzir No final de 2014, o Norte Comum, que até então era um dos grupos residentes do Hotel da Loucura, conseguiu sede própria. Uma casa emprestada pelo tio de uma das integrantes do grupo. “Um anjo”, dizem todos. É a tal casa de Benfica. Ainda na fase de aparelhamento, o lugar já tem mesa de trabalho, internet, ilha de edição de vídeo e cozinha. No futuro, a turma pretende instalar uma gráfica no local – uma forma de imprimir os cartazes e livros que muitos dos integrantes produzem. Sim, eles também produzem. E é o que pretendem reafirmar neste ano. “No começo, queríamos produzir eventos e destacar os artistas de fora da Zona Sul; hoje, ainda queremos isso, mas queremos cada vez mais incentivar quem está no grupo a produzir”, explica Jefferson Vasconcelos, o Gê, cineasta e fotógrafo da trupe. No entanto, eles frisam, não é o caso de tornar o Norte Comum uma produtora de qualquer conteúdo. Eles só fazem o que tem a ver com o projeto. No umbral da sala de reunião está escrito: “Norte Comum não faz flyer”, referência ao dia em que o grupo acabou se retirando de

uma iniciativa que não tinha a ver com a sua forma de trabalhar. E como é essa forma? Para começar, descentralizada. Quem quiser aparecer na casa de Benfica é bem-vindo. Como um organismo vivo, dizem, as pessoas podem se adequar ou não ao projeto. “É normal acontecer de não haver empatia, mas é muito normal também alguém chegar e ir se inteirando aos poucos, silenciosamente”, conta Pablo Meijueiro.

“Queremos cada vez mais incentivar quem está no grupo a produzir” — Jefferson Vasconcelos Outra característica: não há rótulos. Eles não são ONG, não são coletivo – são amigos que têm interesses em comum. Nem o norte que dá nome ao grupo é visto hoje como denominação de espaço geográfico, algo que eles concordam ser limitador. “O norte é um apontamento, é a direção, é a junção de pessoas muito diversas entre si, mas que

querem uma cidade menos dividida”, afirma Pablo. Nesse sentido, a sede em Benfica veio a calhar. Sem ela, o grupo começava a se desencontrar na gigantesca rede que é a internet. “É bom ter um lugar para vir todos os dias, é uma forma de concentrar os esforços e encontrar os amigos”, aponta Felipe Nunes, um dos músicos da confraria. “O Norte Comum é um anel de Saturno, engloba muita gente, às vezes pessoas que se conheceram em função do grupo e já tocam trabalhos de modo independente do grupo; ter a sede ajuda a promover esses encontros com mais facilidade”, completa Pablo. No dia em que o TABU esteve em Benfica, eles discutiriam o cronograma de um novo projeto: filmar figuras importantes para a cidade dentro do trem. Dinheiro, claro, é uma questão. Eles são seletivos quanto a editais, mas se valem deles. Cogitam financiamento coletivo. O que ganham hoje serve – com aperto – para pagar as contas da casa e custear o dia a dia do grupo. Aperto comum de uma turma que, muitas vezes, parece uma família.

Para saber mais sobre o Norte Comum e a programação do grupo, visite: https://www.facebook.com/nortecomum

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M TE TO

Fabiano Canosa, o embaixador do cinema brasileiro em Nova Iorque, e agora colunista “Totem” da TABU, conta como e por que veio a ser muito mais que uma testemunha ocular nesse episódio histórico.

A reconciliação de Elia Kazan e Nicholas Ray por FABIANO CANOSA

divulgação

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O diretor Elia Kazan no set de filmagem

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orria o ano de 1973 e eu estava programando uma pequena sala no Upper East Side – o First Avenue Screening Room –, um cinema de 220 lugares dedicado a lançamentos de filmes “impossíveis”, como as obras-primas do sérvio Dusan Makavejev, do japonês Nagisa Oshima, e clássicos brasileiros como Os fuzis (1964), de Ruy Guerra, em sua versão integral. Eventualmente, programava um filme já exibido – mal exibido –, como foi o caso de Balada sangrenta (The harder they come, 1972), o clássico de Perry Henzel, com Jimmy Cliff, que ficou semanas em cartaz e depois foi para outro cinema onde morou em sessões da meia-noite por sete anos. Era setembro quando fiquei sabendo que a Warner acabara de tirar uma cópia novinha em folha de Juventude transviada (Rebel without a cause, 1955), o filme que selou a permanência de James Dean como o ícone incontestável para mais de uma geração, de forma universal. E dia 30 de setembro faz dezoito anos do trágico acidente com a porsche.


TOTEM

A Warner era uma distribuidora que não dava atenção aos clássicos, muito diferente do que ocorreu mais tarde, com a entrada dos home theaters e dos VCR’s no mercado. Uma cópia nova de Juventude transviada era motivo de celebração, e eu programei uma reprise do filme. Um dos privilégios de cinéfilo em Nova Iorque nos anos 70 do último século era a possiblidade de encontrar, em situações acadêmicas (mas também nas sociais), mestres do cinema que, no outono de suas vidas, se bronzeavam com a klieg lights das noites de abertura de retrospectivas em sua homenagem, especialmente no MoMA. Foi assim que conheci King Vidor, Raoul Walsh, Joseph Manckiewicz e, em outras paradas, Abel Gance e até Leni Riefensthal. Elia Kazan eu já conhecia, e frequentava sua casa com Francis Kazan graças a Caca Diegues, que me mandou numa missão logo que cheguei na cidade e assim ficamos amigos. Falávamos de cinema contemporâneo na época em que ele se preparava para filmar O último magnata (The Last Tycoon, 1976), com Robert de Niro. Eu havia também exibido o filme que ele dirigiu com seu filho Nick, The Assassins, que teve distribuição limitada, e Kazan era grato pela minha lembrança de seu filme “enjeitado”. Na primeira noite da reprise de Juventude transviada, ficou combinado que Nicholas Ray viria apresentar o filme. Ele estava morando em Nova York com sua jovem esposa Susan. Agora, Nicholas Ray era um sujeito especial, e Deus sabe como ele conseguiu escapar ao macartismo. Para quem não sabe o que foi o Macartismo, basta dizer que foi resultado de uma caça aos “comunistas” multimídia, em que centenas de artesãos e grandes atores, roteiristas e cineastas americanos foram impedidos de trabalhar, em Hollywood especialmente, por filiação a organizações progressistas (e comunistas) nos tempos em que a União Soviética era aliada dos Estados Unidos para derrotar Hitler, um mal maior. Um inquérito no senado americano convocou dezenas de celebridades a depor, e muitas delas fraquejaram.

Kazan foi uma delas. Não apenas ele denunciou, mas também publicou anúncio no New York Times se desligando completamente dos movimentos de esquerda de Hollywood, o que causou um mal-estar geral, porque Elia Kazan, na época, era considerado o mais brilhante diretor de cinema e teatro dos Estados Unidos, descobridor de Marlon Brando e James Dean, o cineasta de Uma rua chamada pecado (A Streetcar named desire, 1951) e Vidas amargas (East of Eden, 1955). Foi um caso de “delação premiada” que entrou para os anais e alienou amigos como Arthur Miller, Joseph Losey e Nicholas Ray.

“Elia Kazan eu já conhecia, e frequentava sua casa com Francis Kazan graças a Cacá Diegues, que me mandou numa missão logo que cheguei na cidade e assim ficamos amigos. Falávamos de cinema contemporâneo na época em que ele se preparava para filmar O Último Magnata (The Last Tycoon, 1976), com Robert de Niro.” Aí entro eu. Na tarde da apresentação de Juventude Transviada no screening room, almoçamos num restaurante da Broadway, Nick, eu e Vincent Canby, o crítico do New York Times que me solicitara um encontro com o cineasta. O papo levou horas, Nick estava inspirado e contou histórias que iam desde os tempos do Federal Theatre Project até os filmes que ele acabara de realizar em campus com estudantes de cinema. Nick Ray era uma personalidade forte, alto, imponente, com um tapa-olho vistoso. Ele cultiva-

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divulgação

TOTEM va hábitos sinistros, era viciado em heroína, mas na aparência era o grande cineasta tornado professor, uma vez que a idade e o vício impediam o sinal verde das seguradoras para que fizesse mais um filme. De regresso à casa, meu serviço de mensagens (naquela época não havia secretária eletrônica), o Billie’s Registry, era quem respondia por mim quando deixava o “escritório” doméstico. Mensagem de Kazan: “Ligue pra mim.” Ligo pro mestre, ele me pergunta: “Você vai estar com Nick Ray hoje, não?” Digo que mais tarde, a sessão é às 22h e conto um pouquinho de como foi o almoço. “Ele está bem?”, pergunta Elia. Respondo “afirmativo”, e ele me diz: “Não nos vemos há muitos anos, ele não fala comigo há décadas. Gostaria de encontrar com ele. Você pode perguntar se ele pode, se ele quer?” Combino com Kazan que, assim que eu souber, ligo pra ele e ele viria ter conosco na First Avenue com a 61st Street, por volta de meia-noite. Ligo pro Nick. Conto sobre o pedido, assim assado, ele não parece refratário à ideia, mas também não muito entusiasmado. Vai pensar no caso e me dirá quando nos encontrarmos no cinema. Suspense. Às dez da noite, cinema cheio, fila na porta, autógrafo pra cá e pra lá, Susan discretamente ao seu lado. Quando a gente se vê, ele me diz: “Diz pro Elia para ele me encontrar aqui às 22h30. Não vou fazer Q&A (bate papo após o filme), e a Susan volta pra casa agora que você chegou.” Ligo para Kazan da bilheteria e digo “tudo bem, venha às 22h30”. O filme começa depois da apresentação de Nick, ele faz o discurso de praxe e ficamos eu e ele no lobby minúsculo, ruminando sobre o almoço, quando falamos de Peter Bogdanovich, cujo Daisy Miller (1974) estava em cartaz, e que eu não tinha apreciado muito, mas Canby adorava. Nick me diz, “eu vi o filme do garoto, também não gostei, mas não quis dizer nada para não afligir o Canby, que foi tão gentil conosco”.

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O “grandão” Nicholas Ray

“Elia Kazan joga a emoção para fora e, com os olhos cheios de lágrimas, abraça o grandão Nick Ray. Olhos nos olhos, os dois trocam cumprimentos, e eu lá” Chega Kazan. Um momento incrível, sou testemunha da história de dois grandes do cinema que se reencontram depois de anos sem se verem. Elia Kazan joga a emoção para fora e, com os olhos cheios de lágrimas, abraça o grandão Nick Ray. Olhos nos olhos, os dois trocam cumprimentos, e eu lá, emocionado também, lamentando não ter uma câmera para registrar dois mega-artistas separados durante tanto tempo pela política sórdida da Guerra Fria num encontro que parecia de todo improvável, mas que James Dean – o ator de Vidas amargas, de Elia Kazan, e de Juventude transviada, de Nicholas Ray – e uma noite de outono em Nova York tornaram possível. With a little help from a friend. Fabiano Canosa é curador cinematográfico e produtor cultural.


Acervo Fabiano Canosa

Nicholas Ray

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ARTIGO ::: Sagas e franquias

O terror dos anos 80 e como Hollywood aprendeu a fazer franquia por PEDRO A. ELIAS

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Sigourney Weaver em Alien, o Oitavo Passageiro


ARTIGO ::: Sagas e franquias

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O legado de Halloween se expande pelos anos 80 originando diversas sequências e filmes semelhantes, como o famoso Sexta-Feira 13 (Friday the 13th, 1980). É a criação definitiva do subgênero de horror “slasher”, no qual acompanhamos um assassino, seja ele sobrenatural ou não, em sua jornada por vingança ou reparação contra um grupo de jovens e seus familiares. A razão do crescimento do gosto do público por essa temática é difícil de ser definida, mas Vera Dika, em seu livro Games of Terror: Halloween, Friday the 13th and the Films of the Stalker Cycle (1990), oferece os seguintes elementos como explicação: “Catarse”, pela liberação do medo associado à pressão social ou política do dia a dia; “Recriação”, pela emoção das cenas de suspense e violência; e “Deslocamento”, contexto no qual projetamos nossos desejos sexuais para as personagens do filme. Subitamente, o filme sanguinolento nos deixa mais relaxados do que uma comédia.

Halloween passa a ser um ponto de interesse para os estúdios americanos quando seu orçamento de 325 mil dólares dá um retorno de 55 milhões de dólares E independentemente do quão bom é o filme, Halloween passa a ser um ponto de interesse para os estúdios americanos quando seu orçamento de

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m Janeiro de 2015 tivemos a resposta que sim, os boatos são verdadeiros e o mundo será agraciado com mais um Caça-Fantasmas. Porém desta vez com um twist: depois de 26 anos, vem aí um reboot da série, e com uma equipe feminina de exterminadoras. Mas nada tema se você gosta de sua franquia de monstro um pouco mais séria: Alien 5 realmente está acontecendo, com a possibilidade de ter a direção de Neil Blomkamp, diretor de Distrito 9 (District 9, 2009), e Sigourney Weaver reprisando seu papel como Ripley. E em 2015 teremos ainda um remake de Poltergeist e o surpreendente Brinquedo Assassino 7. Mas o que estas franquias têm de tão interessante para o mercado americano? Todas elas possuem o terror como um elemento forte em suas tramas e também atingiram seu auge durante os anos 80. Havia certa precedência de grandes filmes de terror pré-80, o clássico Psicose (Psycho, 1960), de Alfred Hitchcock, O Bebê de Rosemary (Rosemary’s Baby, 1968), de Roman Polansky, O Exorcista (The Exorcist, 1973), de William Friedkin, e Carrie, A Estranha (Carrie, 1976), de Brian de Palma. Filmes que elevaram o gênero para algo além de histórias para assustar. Porém, é com Halloween (1978), de John Carpenter, que o terror dos anos 80 encontra sua personalidade. Todos os filmes mencionados anteriormente tiveram remakes, sequels, prequels e minisséries – nenhum se salvou. Voltando ao Halloween, de Carpenter, a trama do filme gira em torno do assassino mascarado Michael Myers, que, depois de ficar 15 anos preso em uma instituição mental por ter matado sua irmã, se vê livre e novamente pronto para atacar adolescentes na noite do dia das bruxas. O filme é lembrado não apenas pela figura marcante do assassino e pelo modo como ele mata suas vítimas, mas também pela representação do jovem daquela época: ativo, desprendido e independente dos pais. Acompanhamos a vida deles, entendemos suas inseguranças e desejos, e é especialmente fascinante acompanhar o desabrochar da personagem Laurie Strode – primeiro papel de Jamie Lee Curtis –, inicialmente uma garota insegura e reclusa, que se transforma numa heroína batalhadora.

Cena de Gremlins

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ARTIGO ::: Sagas e franquias divulgação

“A linha divisória entre humor familiar e violência era tão tênue que obrigou o sistema de classificação etária americano a mudar”

Cartaz original de Sexta-Feira 13

325 mil dólares dá um retorno de 55 milhões de dólares. Slashers e filmes de terror de baixo custo se tornam a menina dos olhos das produtoras americanas, Halloween ganha ao longo dos anos mais sete filmes e dois remakes, e a série Sexta-Feira 13 totaliza doze filmes. O elemento terror e seu retorno financeiro são pontos fortes, mas ainda não justificam a persistência destas franquias e os investimentos em tantas sequências. O que tornou estes produtos viáveis? Video Home System, o VHS lançado em 1976, populariza-se nos lares americanos estendendo a vida útil da memória dos filmes. Obras antigas passam a ser relembradas sem a necessidade de ocupar salas de cinema, e sucessos recentes podem ser assistidos repetidamente no conforto de nossas casas. As sagas cinematográficas se fortalecem pela presença constante em nossas vidas, e os lançamentos de sequências em intervalos menores se tornam uma opção rentável.

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A busca pelo próximo blockbuster de terror barato se torna uma corrida cinematográfica, originando diversas novas franquias. Dentre elas, o já mencionado Poltergeist (1982), sucesso de bilheteria e crítica, conta a história de uma família assombrada por entidades sobrenaturais que afetam tanto os objetos da residência quanto a consciência de seus habitantes. Outro seria A Hora do Pesadelo (A Nightmare on Elm Street, 1984), que imortalizou o vilão Freddy Krueger, e que possui uma franquia de nove filmes, cinco deles lançados nos anos 80. Um deles é um crossover com Sexta-Feira 13, Freddy x Jason (2003), com os dois vilões batalhando entre si, e claro, com um grupo de jovens perdidos no meio de tudo. Tendo um vilão que somente ataca nos sonhos de suas vítimas, A Hora do Pesadelo consegue fazer um trabalho fantástico ao mesclar o real e o onírico. Na onda dos anos 80 há também uma grande quantidade de filmes que, apesar de recheados com terror e muitas mortes, mantêm um ar mais bem-humorado e até familiar. O grande exemplo é a franquia dos Caça-Fantasmas (Ghostbusters, 1984), que, com apenas dois filmes, marcou uma geração para sempre. Outra franquia são os Gremlins (1984), também com dois filmes, que gerou seu próprio subgênero de terror com pequenas criaturas assassinas. A linha divisória entre humor familiar e violência era tão tênue que obrigou o sistema de classificação etária americano a mudar suas notas para incorporar este tipo de situação. A era das franquias de terror dos anos 80 entra em declínio juntamente com o fim de sua década. Os filmes não nasciam mais a serviço da qualidade e começam a se tornar repetições de si próprios. As tramas se tornam mais leves e até Sexta-Feira 13 vira uma franquia cômica perante os retornos excessivos de seu assassino Jason Voorhees.


ARTIGO ::: Sagas e franquias

Todo o conceito de terror que tornava esses filmes atraentes eventualmente se esvai e as bilheterias começam a cair a cada nova edição. Chucky, de Brinquedo Assassino (Child’s Play, 1988), é obliterado no final do primeiro filme, do segundo filme, do terceiro filme, e assim em diante. São raras as exceções de franquias daquela época que tentaram contar uma história por meio de suas séries. O próprio sucesso comercial dos filmes de terror os tornou apelativos, tanto para o público quanto para as produtoras americanas. Mas isso não explica a razão de estarmos revivendo essa onda em 2015. Seria porque este é o ano em que Martin McFly chega do passado, na franquia De Volta para o Futuro (Back to the Future)? Ou talvez porque Hollywood precisa renovar seus contratos de direitos autorais? O mercado aprendeu que, enquanto uma narrativa se mantiver no pensamento do público, ela ainda pode ser capitalizada. Com o advento da internet, o que poderia ser chamado de memória coletiva do público, que ainda se baseava em elementos físicos para assistir a seus filmes, expande exponencialmente. Foi justamente aprendendo com outras mídias que Hollywood começa a reproduzir aquilo que apenas Steven Spielberg e George Lucas conseguiam criar em seus filmes: o mercado das sagas começa a tomar as salas de cinema. O Senhor dos Anéis, série de livros lançada em 1937, torna-se um sucesso sem precedentes, e um novo conceito de produção se forma. Altos investimentos significam altos retornos “seguros”, obras são selecionadas segundo a época e sua base de fãs. Uma serialização do cinema ocorre, e para compreendermos o próximo filme é obrigatoriamente necessário que tenhamos assistido ao anterior. Não há exemplo melhor que o universo cinematográfico dos Estúdios Marvel. Eles transportaram toda a mecânica da serialização de revistas em quadrinhos para o cinema, criando diversas franquias que progridem paralelamente até se encontrarem em uma grande “franquia nave-mãe”: o filme Os Vingadores (Marvel’s The Avengers, 2012) é a terceira maior bilheteria de todos os tempos. E, no lugar de mons-

tros e assassinos, somos tomados por grandes protagonistas que vivem cada etapa da jornada do herói. Isso é o que pode ser chamado de exploração comercial, ou caça-níqueis. Livros têm suas histórias divididas em partes para gerarem mais de um filme. Histórias são editadas para se encaixarem em um modelo específico, e franquias que não atingem a margem de retorno necessária são cortadas. As franquias são tão fortes quanto seus fãs.

“A era das franquias de terror dos anos 80 entra em declínio juntamente com o fim de sua década” Enquanto finalizo esse artigo, uma notícia é lançada: teremos sim outro Caça-Fantasmas além daquele anunciado anteriormente, mas desta vez com um elenco totalmente masculino. Hollywood não cansa.

A versão online do jornal britânico Telegraph publicou uma lista com 22 remakes que estão programados para acontecer nos cinemas. Há títulos como Jogos de Guerra, estrelado por Matthew Broderick, em 1983, que retorna às telas nas mãos de Seth Gordon, diretor de Quero Matar meu Chefe. Ou ainda Jumanji que, mesmo com a morte do protagonista Robbie Williams, deve ter sua versão atualizada e talvez nenhum ator do original. Na lista ainda vemos Porky`s, Querida, Encolhi as Crianças e Um Salto para a Felicidade, com Jennifer Lopez no papel que foi de Goldie Hawn. Em meio a tantos novos roteiros pipocando em Hollywood, o novo Quarteto Fantástico promete sua estreia para agosto nos cinemas.

Pedro Elias é roteirista e diretor, trabalha com projetos de séries e de restauração audiovisual.

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A EXPERIÊNCIA DO CINEMA

© Caru Ribeiro / Cedoc Theatro Municipal

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O maestro Silvio Viegas ensaia a orquestra do Theatro Municipal do Rio de Janeiro para acompanhar a projeção do filme Metrópolis, de Fritz Lang.

Ver filmes é uma das atividades de lazer mais cotadas entre os cariocas, e este ano o Youtube completa seu aniversário de 10 anos de existência, com a transformação definitiva dos padrões de comportamento de quem busca conteúdo audiovisual. Mas, apesar da internet, 70% dos cariocas atestam, numa pesquisa recente da Secretaria de Cultura do Estado do Rio, que ir ao cinema ainda é a nossa melhor forma de diversão. Neste dossiê, percorremos esse hábito cultuado por nós desde os tempos áureos da Cinelândia até as várias formas de assistir a filmes sem sair de casa, para entender por que, afinal, amamos tanto ir ao cinema. 24


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A MÚSICA QUE REGE por MARIA DE ANDRADE

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o final do século XIX, antes de existirem as salas de cinema como conhecemos hoje, quando as primeiras sessões da história lotavam os cafés das metrópoles, a sétima arte nascia audiovisual, e o que o cinema tinha de mudo era apenas o suporte da película. Engana-se quem pensa que aquilo que se convencionou chamar de “cinema mudo” designa fielmente as primeiras experiências cinematográficas. Mesmo os pioneiros irmãos Lumière, quando projetavam os resultados de seu fabuloso invento, o cinematógrafo, já acompanhavam as sessões de filmes com música ao vivo, tocada pelo pianista e compositor Sr. Marval. Conta-se até que a primeiríssima exibição pública realizada por eles, em 1895, teria sido embalada pelo som de um violão. De todo modo, o fato é que a experiência cinematográfica dos tempos do chamado “cinema mudo”, de silenciosa não tinha nada. Concebidos como documentos naturalistas ou registros do movimento puramente, os pequenos filmes que os irmãos franceses faziam, de apenas um minuto, tampouco tinham o entretenimento como finalidade maior, e sim o sentido primário do documentário, científico. No entanto, as imagens em movimento decalcavam a dinâmica da vida, e o poder de encanto daquelas projeções era arrebatador. A música ao vivo potencializava a expressão lúdica e poética das imagens em movimento e intensificava a experiência cinematográfica. Ocultando o incômodo ruído do projetor em funcionamento, o som do piano tocado ao vivo imprimia não na película, mas diretamente na emoção dos espectadores, o êxtase que uma imersão audiovisual pode oferecer. Pouco depois, com o desenvolvimento dessas primeiras experiências, George Mèlies, outro francês também considerado pai do cinema, passaria a elaborar filmes ficcionais, e com a função dramática elevada ao primeiro plano, logo o cinema seria merecedor da presença de grandes orquestras

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diante da tela. Méliès, pioneiro dos filmes de ficção, já em 1904, para Faust and Marguerite, havia adaptado uma partitura do compositor francês Gounod. Isso sem falar em Charles Chaplin, que compunha com perfeccionismo as músicas que animavam e davam ritmo e clima às sequências de seus filmes. Mas apenas as produções de maior porte podiam se dar o luxo de encomendar partituras originais. Em geral, as performances executadas eram uma sequência de músicas clássicas ou um pout-pourri de canções, com repertório elástico, das clássicas às populares, e contava com altas doses de improviso para alcançar essa costura. Segundo o pesquisador e compositor Carlos Eduardo Pereira no livro A Música no Cinema Silencioso no Brasil (MAM, 2014), nas primeiras décadas do século XX, quando o cinema já era uma coqueluche no mundo todo, a sétima arte encontrou no Brasil o cenário musical extremamente fértil do início do samba, ainda nos anos 10, e do primórdio das rádios nos anos 20. As primeiras salas de cinema foram nessa época um ponto de encontro fabuloso entre músicos de todo tipo. A moda por aqui viria a ser os chamados “filmes cantantes”, que consistiam na filmagem de números musicais (inicialmente árias de óperas), projetados nas telas com acompanhamento musical e vocal equivalente à mesma peça registrada no filme. A plateia se encantava com essa dublagem do filme que se fazia ao vivo, e logo passou-se a fazer o mesmo com falas e diálogos. Os filmes nacionais, que eram quase sempre musicais, logo comportariam diálogos que ganhavam voz na hora da projeção por meio de atores e/ou cantores escondidos atrás da tela, e encarregados do som das falas, dos cantos e até mesmo da sonoplastia, dos ruídos de sala. Muitas vezes, aqueles que dublavam eram os mesmos artistas que haviam sido filmados, resultando o evento cinematográfico numa espécie de show de dublagem, que culminava com o artista saindo aplaudido de trás da tela sem nunca saber ao certo se a ovação que recebia era pela atuação no filme ou pelo desempenho vocal que acabara de demonstrar. Esse gênero do filme cantante prenunciou o

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dos famosos musicais que marcariam definitivamente a produção do início do nosso cinema sonoro. Como a demanda por esses profissionais naquela época era imensa, quase todos os músicos acabaram trabalhando como “acompanhadores de películas”, aceitando o desafio de sincronizar a execução da música com as indicações das cenas dadas nas partituras, e valendo-se sempre de uma boa dose de improviso para quando a coisa desandava.

“Nomes de peso, como Heitor Villa-Lobos, Chiquinha Gonzaga, Pixinguinha, Ari Barroso, Radamés Gnattali, Ernesto Nazareth, entre outros – todos trabalharam em cinemas.” Nomes de peso, como Heitor Villa-Lobos, Chiquinha Gonzaga, Pixinguinha, Ari Barroso, Radamés Gnattali, Ernesto Nazareth, entre outros – todos trabalharam em cinemas. As melhores casas da cidade também ofereciam pequenos concertos nos intervalos entre as sessões. No Odeon, por exemplo, o público costumava chegar mais cedo para ouvir Ernesto Nazareth ao piano, ou Heitor Villa-Lobos acompanhando com seu violoncelo a pequena Orquestra do maestro Andreozzi, contratada fixa da casa. O Cinematógrafo Rio Branco, que foi dos que mais exibiu filmes cantantes, também tinha intérpretes fixos. Hoje, poder ver um filme com acompanhamento de orquestra ou piano é sem dúvida uma oportunidade de experimentar algo extraordinário. Mas não é extraordinário apenas no sentido original da palavra, por ser uma experiência diferente daquilo a que estamos acostumados a vivenciar como experiência cinematográfica (o cinema sonoro), e sim porque há algo de particular em se presenciar uma apresentação, algo de único na emoção sempre nova de estar diante de um evento “ao vivo”. Ainda é raro encontrar uma oportunidade dessas, mas existem algumas inciativas louváveis,

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como a Jornada de Cinema Silencioso, que tem curadoria do professor Adilson Mendes, e ocorre anualmente na Cinemateca Brasileira em São Paulo. Ou a que ocorreu no Rio de Janeiro, Música e Imagem, do Theatro Municipal, que levou ao grandioso palco um belo programa com exibição de Metrópolis (1927), clássico de Fritz Lang, acompanhado de grande orquestra regida por Silvio Viegas; e Alexander Nevsky (1938), de S. Eisenstein, que elabora uma refinada correspondência entre o desenho do som e da imagem, além de outros títulos do próprio Eisenstein e de cineastas não menos importantes. Entre as experiências contemporâneas de projeção de cinema mudo com acompanhamento musical, toda sorte de experimentações tem sido feita, desde projeções em galerias de museus, onde o público tem a experiência de ver um filme rodeado por estátuas seculares, ou mesmo sentado nas calçadas de ruas vendo filmes em praças públicas. Há curadores que buscam conservar a versão mais antiga e original da obra e reproduzir o mais fielmente possível aquela experiência cinematográfica antiga, no interior da sala de cinema, e há aqueles que promovem modernizações dessa relação entre música e cinema, propondo a composição de uma música contemporânea nova, ou até um novo corte para o filme clássico, para que caiba em determinada composição musical de menor duração, por exemplo. Considerando que nem todos os filmes têm um histórico bem documentado; que, assim como suas partituras, os filmes sofreram alterações ao longo do tempo; e ainda o fato de que a execução das músicas tinha muito de improviso, sabe-se que a opção por esta ou aquela partitura ou sequência de canções para um filme mudo é quase sempre controversa. Também não era incomum que os filmes dessa época ganhassem partituras novas ao longo da história, em cada país onde eram projetados; ou seja, o universo da restauração cinematográfica que busca recuperar essas obras para o público contemporâneo é um território fértil para os pesquisadores e historiadores da música e do cinema. Os esforços para se fazer circular esses filmes e manter viva essa forma de experiência do cinema é o que importa e é altamente gratificante


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Cena do filme grego O Mágico de Atenas (The Magician of Athens, 1931)

para quem gosta de apreciar a produção cinematográfica mais antiga. Uma experiência que tem tido sucesso no exterior e que agora chega ao Brasil é a parceria do pianista brasileiro Fabio Luz com o diretor do Syros International Film Festival (Grécia), Jacob Moe. O encontro rendeu a ideia de organizarem juntos algo que unisse cinema e música. Em 2013, uma pesquisa no Greek Film Archive levou Moe a descobrir duas pérolas do cinema mudo grego para os quais criou, junto com Luz, trilhas sonoras originais. Um dos filmes é As Aventuras do Villar (Villar’s Adventures, 1927), do qual só restou o segundo ato de um filme de dois rolos. Trata-se de uma comédia chapliniana, com direção de Joseph Hepp que, de acordo com Moe, foi “um dos primeiros filmes a serem salvaguardados e restaurados na Grécia”. O outro filme, O Mágico de Atenas (The Magician of Athens, 1931), de Achilles Madras, é uma convulsiva história de amor que começou a ser filmada ainda nos anos 20, apesar de seu lançamento tardio já na década seguinte. Moe explica: “O projeto surgiu muito em torno da vontade de se criar partituras inteiramente

novas para esses filmes, associando os primeiros tempos do cinema mudo grego com o repertório musical dos compositores brasileiros da mesma época.” A dupla passou então a ver e rever esses filmes mudos gregos, e Luz começou a compor sobre eles. Sem nunca terem ouvido a partitura original – “e não havia, aliás, uma partitura de maior autoridade”, garante Moe –, a proposta que apresentam é diferente do que estamos acostumados a encontrar nos eventos brasileiros: “As orquestras e outros músicos que têm feito trilha sonora para filmes silenciosos tocam músicas durante o filme, mas não é essa a minha proposta. O que eu faço é música incidental mesmo, no sentido de que cada sequência, cada corte ou ambientação visual são considerados elementos orientadores da música. Por isso, praticamente não toco nenhuma música inteira. Tem momentos improvisados, toda uma série de cortes e colagens pensados para cada um dos 74 minutos que duram os dois filmes”, explica o compositor. Radicado na Itália, Fabio Luz é um pianista reconhecido na Europa que cresceu assistindo aos filmes de Chaplin e ouvindo Ernesto Nazareth: “Sempre tive interesse pelo cinema. Alguns filmes

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de Chaplin vi tantas vezes que sei de cor... e sempre tive grande admiração pelas músicas de Ernesto Nazareth, que toco desde muito jovem, e pelo fato de ele ter trabalhado justamente para o cinema, como pianista do Cine Odeon no Rio”, conta Luz, que também baseou suas composições na música de Villa-Lobos, Nilson Lombardi, Villani Cortes, entre outros músicos contemporâneos dos filmes gregos.

Cópia restaurada de Viagem à Lua

Maria de Andrade é editora e roteirista.

por JULIA LEVY Atualmente, os grandes festivais internacionais de cinema dão destaque, em suas programações, aos filmes clássicos. Mas as prestigiadas sessões do programa Cannes Classic, por exemplo, só foram programadas como tal recentemente, a partir de 2004. Já La Biennale di Veneza, que este ano organizará a 72ª edição do seu Festival Internacional de Cinema, só criou a mostra especial de clássicos em 2012 – a Venice Classics. O programa Berlinale Classics, por sua vez, é uma extensão da mostra Restrospectives e, em 2013, foi destacado como uma sessão especial do Festival de Berlim devido ao grande número de filmes restaurados e cópias raras que têm circulado na indústria cinematográfica nos últimos anos. E foi justamente na sua edição de 2015 que mais um caso controverso se deu. Ao contrário das sessões solenes, acompanhadas pela Filarmônica de Berlim, este ano a Berlinale Classics apresentou o filme Varieté (1925) acompanhado por um trio não muito conhecido no meio cinematográfico, The Tiger Lilies, que compôs uma exclusiva trilha sonora para a versão restaurada do filme. Realizada por Ewald André Dupont, diretor do primeiro filme falado alemão, o longa é considerado sua principal obra e um dos maiores destaques de sua época, tanto que seu sucesso acabou levando-o até Hollywood. A his-

tória narra uma tórrida paixão entre três trapezistas, ao mesmo tempo em que expõe a cidade de Berlim no período entre guerras. O primor do trabalho de restauração e a enorme pesquisa realizada entre diferentes instituições de acervo europeias, entretanto, não deixou de “causar” impacto na plateia. No lugar de uma clássica narração orquestral, dessa vez o trio ousou na ambientação sonora e na narrativa complementar do filme de 1925. Muitos conheciam e admiravam a obra de Dupont, mas a grande maioria dos espectadores que estavam presentes na sessão Berlinale Classics ouvia pela primeira vez o trabalho daqueles músicos. Não por acaso, os comentários posteriores à exibição eram muito críticos quanto à escolha do grupo e à composição. Mas, assim como as controversas versões dos acompanhamentos sonoros de Metropolis, ou a última versão restaurada de Viagem à lua, que, além de trazer a cor aos negativos de George Meliès, teve seu acompanhamento musical eletrônico composto pelo duo AIR, a composição de The Tigers Lillies deu vida nova à história de Dupont e conseguiu mostrar o quanto uma obra, por mais clássica e documental que seja, pode ser revisitada e recriada por artistas de outras épocas sem que sua riqueza se perca. Julia Levy é economista, produtora e pesquisadora.

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DO CINETOSCÓPIO AO 3D por ADÉLIA JEVEAUX

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história do cinema é, de certa forma, uma história de telas. Na medida em que o meio é a mensagem, a maneira de assistir a um filme é definidora do tipo de experiência que aquela narrativa proporciona. Num drive-in, com milk-shake, hambúrguer e uns amassos, é uma coisa. No Cinerama, sem conseguir enxergar nem parede nem teto, é outra. No celular, no meio do engarrafamento, então, uma experiência totalmente diferente. As telas influenciam os hábitos, seja pela oferta de aspect ratios (formatos de janela) avassaladores, seja pela demanda por uma forma de se consumir conteúdo o tempo inteiro, em qualquer situação. O ritual do cinema se transformou ao longo de sua história, e a dinâmica de expansão e contração das telas é um relato do relacionamento entre público consumidor e realizadores. As primeiras dimensões da imagem em movimento eram diminutas e incômodas. Para visualizar um cavalinho correndo em looping, era necessário abaixar-se, fechar um dos olhos, mirar através de um buraquinho e, ainda por cima, girar uma manivela. Conforme a tecnologia avança e se torna possível ampliar essa imagem, projetá-la numa parede e contemplar a luz registrando imagens feitas numa tira de negativo, aí é que o cinema, enquanto hábito social, começa a acontecer. Em sua origem, no final do século XIX, o cinema já é um entretenimento público, um evento social. Ainda que os irmãos Lumière não vissem futuro na empreitada, foi muito natural que se reunisse pessoas numa sala, que se cobrasse um ingresso e que, durante alguns instantes, elas pudessem assistir a algo hipnotizante. Essa dinâmica se mantém inabalável, e durante boas décadas o cinema não tem competição em termos audiovisuais. Até que, nos anos 50, a TV chega para reconfigurar a relação entre público e indústria. A tela encolhe, e o consumo de audiovisual é pela primei-

Esquema de múltiplos projetores do Cinerama

ra vez um hábito privado e cultivado por uma nova massa, que associa entretenimento a conforto. O cinema, porém, não fraqueja, e faz frente à sedução do pijama e do chocolate quente com telas descomunais que colocam o público numa situação de entrega emocional única. A configuração da sala de cinema é, por si só, pensada para direcionar a totalidade da atenção do espectador para o que se passa na tela. O escuro, a fonte única de luz e som e a tela imponente capturam o olhar e as emoções da plateia. A sensação de estar tomado pelo filme é intensificada quanto mais o campo de visão do espectador é dominado pelas imagens projetadas. O olhar humano tem uma amplitude mais horizontal do que vertical, daí a busca do cinema por telas cada vez mais largas. Algumas das mais importantes tecnologias desenvolvidas em função disso são o Cinerama e o Cinemascope, que, no começo da década de 1950, inovaram e expandiram o conceito de imersão a um patamar que durante anos não foi superado. O Cinerama era uma técnica de origem militar, que conjugava três câmeras precisamente anguladas

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para a captura de uma imagem ampla. A projeção era feita numa tela curva de dimensões gigantescas, com três projetores posicionados no mesmo ângulo das câmeras na filmagem. A conquista do Oeste (How the West Was Won), clássico faroeste de 1962, foi um dos filmes a utilizar essa técnica. O Cinerama era um sucesso, mas implicava grandes custos para os exibidores; ainda que causasse impacto, a tecnologia se mostrou impraticável. O Cinemascope se provou mais vantajoso, pois exigiu bem menos adaptações das salas, obtendo um efeito semelhante. Por meio do uso de lentes que distorcem a imagem verticalmente, o Cinemascope alcança uma imagem superlarga, compensando a distorção do negativo na projeção. Outras tecnologias da época também estabeleceram novos padrões de aspect ratio, como o Todd-AO e o Vista Vision. Além disso, os avanços em captação e distribuição do áudio na sala contribuíram imensamente para o aprimoramento dos mecanismos de imersão e ajudaram a fazer da experiência do cinema algo intransponível para outros ambientes.

Anos 90: A era das locadoras O público se encanta facilmente com a tentação do cinema em casa. O VHS e, posteriormente, o DVD contribuem para que o ritual de ir à sala de cinema fique ofuscado pelo hábito de alugar filmes e assistir com a família – mais barato e prático do que a logística que os tempos pré-vídeo cassete impunham. A tela da TV pode ser grande também, o sistema de home theater dá um tempero, e mais uma vez a dinâmica é a de recolhimento ao espaço privado. Mas, ao mesmo tempo em que a indústria alimenta o desejo pelo aparato audiovisual casei-

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Drive-in em Portland, EUA, nos anos 60

Drive-ins e cinema ao ar livre Durante algumas décadas, os drive-ins foram uma maneira descolada de se assistir a filmes. A ideia surgiu nos anos 30, em New Jersey, nos EUA, e alcançou seu auge de popularidade entre os anos 50 e 60. O filme era projetado numa tela inflável montada em um grande terreno, e o áudio era transmitido por rádio para os carros estacionados nas proximidades. A alternativa foi especialmente atraente para famílias com crianças pequenas, que não precisavam se preocupar de incomodar os demais espectadores com choro de bebês ou conversas durante a exibição. Outro segmento do seu público frequentador foram, naturalmente, os casais, que ajudaram a construir a reputação romântica e otras cositas más dos drive-ins. A decadência dessa forma de exibição acontece nos anos 80, em grande parte em função da popularização do VHS. Mas exibir filmes em grandes espaços e para grandes plateias é uma iniciativa sempre sedutora. Projetos que levam o cinema para pequenas cidades e realizam exibições em praça pública contribuem para a sua democratização e reforçam os laços com o espectador. Exemplos como o Circuito Petrobras de Cinema Livre, o Cine na Praça, de São Paulo, e exibições especiais do Festival do Rio na praia de Copacabana mostram que existe uma aura especial em torno do cinema como experiência comunitária a céu aberto.


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ro, ela igualmente procura manter o interesse pelo cinema tradicional. O 3D se lança em 2009 como uma gimmick, um atrativo que mais uma vez tenta atribuir à sala de exibição um ar especial. Mas, ainda que tenha tudo a ver com filmes de ação ou animação, as três dimensões, com pontualíssimas exceções, acrescentam mais firula visual do que camadas de linguagem. A implementação maciça dessa tecnologia vem um tanto atrasada em relação a uma transformação muito mais profunda e revolucionária, ocorrida anos antes de Avatar (2009): o Youtube.

Todas as telas O cinema e o audiovisual são invariavelmente divididos entre antes e depois do Youtube. Ainda que, em sua origem, o site se propusesse a ser um meio de compartilhamento de vídeos pessoais e produções amadoras, a facilidade e a eficiência de streaming alcançadas pelo Youtube levou a relação espectador-conteúdo à absoluta interatividade, além de criar toda uma nova categoria de mídia. O Youtube nasce em 2005 como uma modesta solução para um problema prático: numa festa entre amigos, Steve Chen, Chad Hurley e Jawed Karim filmam diversos vídeos. Na hora de compartilhar as filmagens com os demais convidados, surge um impedimento técnico: os vídeos são pesados demais para enviar por email, e gravar e distribuir DVDs não é nada prático. Eis que os três se juntam, modificam e otimizam algumas tecnologias de streaming já existentes e criam o Youtube. É assim que as coisas se resolvem com programadores. O crescimento do site é exponencial logo em seu primeiro ano, e a noção de que o Youtube configura um divisor de águas é praticamente imediata. Sem a necessidade de download, assistir a conteúdos audiovisuais se transforma numa atividade quase orgânica. O paradigma fundamental que o Youtube quebra é o da grade de programação, que é substituída por um grid composto por histórico de visualizações e gosto pessoal. Agora, o usuário busca espe-

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cificamente o que quer ver, e não só encontra, como pausa e assiste quantas vezes quiser, na ordem que bem entender e na hora que puder, sem custos. A eficiência do Youtube não tarda a atrair o compartilhamento de conteúdos como filmes, programas de televisão e videoclipes. Por mais que o download de arquivos pesados via torrent já fosse uma prática que causasse dor de cabeça à indústria, os uploads de conteúdo protegido por direitos autorais e de distribuição foram a gota d’água para que tudo se reorganizasse. A indústria não teve opção e precisou se adaptar, por meio da produção de conteúdos especiais para o Youtube ou pela disponibilização calculada de trechos de programas e bastidores. Uma questão colocada pelo Youtube e por outros sistemas de streaming, como o Netflix, é que o espectador passa a ter a possibilidade de consumir conteúdo de forma compulsiva, frequentemente automática, fazendo do ato de assistir a um filme um ato de preenchimento das horas, a postergação de uma tarefa ingrata ou mesmo a anestesia de sentimentos desconfortáveis. Não que o cinema não ofereça uma fuga da realidade cotidiana – aliás, essa é uma de suas características mais magnéticas –, mas, inicialmente, trata-se de um escape com hora marcada e duração determinada. A vida real é retomada após o rolar dos créditos. Já no mundo virtual não, é um universo sem fim. Na balança de perdas e ganhos, a indústria e os realizadores dispõem de uma nova multiplicidade de plataformas para que as produções sejam acessadas; em contrapartida, a onipresença dos meios interfere na qualidade da recepção. A experiência anteriormente ritualística do cinema seculariza-se, torna-se difusa. As atenções são disputadas pelos mais diversos estímulos, e o deslocamento da sala de exibição para o portátil marca tudo com certa banalidade. Em termos de difusão, os avanços aumentam as possibilidades de linguagem criadas – isso é incontestável –, mas, para muitos, uma coisa vem para substituir a outra. O espaço da sala e o efeito da tela grande não são transportáveis para a captação de seis polegadas pela retina. Há elementos

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DOS

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da criação cinematográfica que passam em branco para aqueles cuja postura diante de um filme é a de meramente conhecer um enredo. Não se trata de um juízo de valor entre o que é válido ou não enquanto experiência. Trata-se de um voto para que a novidade, a atual e a futura, venha ampliar horizontes, e não deseducar o olhar.

Uma nova mídia O Youtube deu espaço para o surgimento de uma ampla categoria de produtores de conteúdo: os youtubers. Com canais os mais diversos, as grandes celebridades do meio reúnem milhões de seguidores, que acompanham suas publicações sobre maquiagem, estilo de vida, curiosidades científicas, videogames e basicamente todos os outros assuntos do planeta. Uma característica dos youtubers é que eles mesmos filmam e editam seus vídeos, e muitas vezes passam a viver exclusivamente de produzir material para seus canais por meio de patrocínios de marcas e empresas que estão sempre interessadas no que atrai atenção. Ainda que os virais sejam um bom exemplo da cultura midiática que o Youtube criou, o uso do site como canal democrático para produções independentes é seu traço mais definidor. Entre os canais com maior número de seguidores, reina absoluta a categoria de gameplay, que consiste em jogadores de videogames registrando suas experiências com os jogos. Seja numa abordagem mais crítica ou com uma comicidade espontânea, esses canais reúnem bilhões de visualizações e fazem com que o gameplay seja mais do que uma resenha ou tutorial, adquirindo um quê de narrativa seriada.

Adélia Jeveaux é roteirista e faz crítica independente.

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Chadwick ChadwickBoseman Boseman Do Diretor de

‘Histórias Cruzadas’

JAMES

BROWN BREVE NOS CINEMAS

COMING SOON

21 DE MAIO ESTREIA NACIONAL EXCLUSIVA ESTAÇÃO NET BOTAFOGO

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ARTIGO ::: Centenário Orson Welles O centenário do cineasta Orson Welles está sendo celebrado este ano ao redor de todo o mundo. Para se juntar ao coro, TABU convidou um especialista no assunto, Adalberto Müller, que comenta aqui o encontro de dois gênios: as adaptações de Welles da obra de William Shakespeare.

Orson Welles & Shakespeare:

o bardo e o cineasta

Orson Welles em Julius Caesar, 1937, Mercury Theater. Cortesia: Special Coll. University of Michigan.

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divulgação

por ADALBERTO MÜLLER


ARTIGO ::: Centenário Orson Welles

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onsta que Orson Welles teria ouvido de sua mãe, no leito de morte, aos nove anos, os seguintes versos de Shakespeare: “O lunático, o amante e o poeta / são de imaginação compostos”. Consta também que o menino Orson fora educado em casa lendo peças de Shakespeare. A intimidade com a língua do Bardo o levaria a escrever, aos 15 anos, um livro sobre modos de encenação das suas peças (Everybody’s Shakespeare). Depois de viajar pela Europa e trabalhar como ator em Dublin, Welles começa, aos 20 anos, uma carreira meteórica de diretor na Broadway, encenando um Macbeth (1935) unicamente com atores negros – e com tambores africanos no palco – e uma desafiadora adaptação de Julio César (Julius Caesar, 1937), com claras alusões ao fascismo. Quando desce o pano da estreia de Julio César, o jovem diretor já é uma das figuras centrais do teatro moderno americano. Na transição do teatro para o rádio – que, na época, era o equivalente da TV –, adaptou várias peças de Shakespeare. Mas se transformou numa celebridade nacional graças ao programa A guerra dos mundos (1938), anunciando que os marcianos estavam invadindo a América, o que não apenas paralisou o país e aterrorizou muita gente, mas atraiu a atenção dos estúdios hollywoodianos. Assim, aos 23 anos, Welles desembarcava em Hollywood para dirigir quatro filmes na RKO. O primeiro deles, Cidadão Kane (Citizen

“Otelo é para muitos críticos a obra-prima de Welles. E é, certamente, uma das encenações mais vibrantes e perfeitas do texto shakespeariano”

Kane, 1941), se tornaria um marco divisor da história do cinema, trazendo inovações formais que seriam usadas e repetidas anos a fio pelo cinema americano, europeu e mundial. O quarto filme da RKO, É Tudo Verdade (It’s All True, 1942/1993), permaneceu inacabado por razões políticas: era um documentário musical, filmado no Rio de Janeiro, que tentava sintetizar uma visão panamericana e interracial, por meio de uma história paralela do jazz e do samba. Depois do fracasso (involuntário) de É Tudo Verdade, Welles encontra dificuldades para realizar seus filmes. Dedica-se por um tempo à política, ajudando a reeleger Franklin Delano Roosevelt. Depois de filmar – no México – uma obra-prima do cinema noir com sua ex-mulher Rita Hayworth, A Dama de Xangai (The Lady from Shanghai, 1946), muda-se para a Europa. Mas retorna a Hollywood, rapidamente, em 1948, para a filmagem relâmpago de Macbeth, realizando a proeza de criar uma obra-prima com um orçamento

baixíssimo, que o obriga a usar figurinos e cenários baratos. Apesar disso, Macbeth é saudado como uma das melhores adaptações da obra de Shakespeare para o cinema, sobretudo devido à força das luzes expressionistas e da atuação de Welles como Macbeth. Novamente em exílio na Europa, gasta quatro anos tentando filmar e finalizar Otelo (Othello), que estreia e vence o festival de Cannes em 1952. Otelo é para muitos críticos a obra-prima de Welles. E é, certamente, uma das encenações mais vibrantes e perfeitas do texto shakespeariano. Mesmo pintado de preto, Welles é impecável na pele de um Otelo que vai sendo devorado pelo ciúme, enquanto a bela Susanne Cloutier (Desdêmona) parece se desmanchar como um torrão de açúcar; as angulações de câmera, os contrastes barrocos de luz e sombra, tudo no filme parece ser um tributo ao gênio do dramaturgo inglês. Rodado com parcos recursos, o filme encobre suas falhas de produção com pura magia. Pois Welles sempre foi um mago, tirando coelhos da cartola, e sempre com um ás na manga. Em 1956, Welles faz novamente um filme em Hollywood, A Marca da Maldade (Touch of Evil), e novamente choca os produtores e o público com uma crítica severa à corrupção policial nos EUA, colocando em cena, pela primeira vez, os efeitos do uso de drogas alucinógenas. Nos anos 60, volta à Espanha

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ARTIGO ::: Centenário Orson Welles

e tenta finalizar seu primoroso Dom Quixote (Don Quijote), iniciado em 1956, no México, e nunca concluído. Durante esse tempo, produz – novamente com recursos mínimos e atores amigos – um filme que condensa cinco peças de Shakespeare, chamado Falstaff (Chimes at Midnight, 1966). Em Falstaff, a cena da batalha de Shrewsbury é um grandioso tributo a Eisenstein, e mostra uma das características essenciais do cinema de Welles: a força da montagem. Na verdade, desde os anos 50, Welles começava a montagem ainda durante as filmagens, o que determinava o seu ritmo e o seu andamento característicos. Com todas as imperfeições de produção, tal-

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vez Falstaff seja também a obra-prima de Welles. A verdade é que tudo em Welles parece ser obra-prima, apesar de ter sido um dos cineastas mais injustiçados por seus produtores. Boa parte de seus filmes permanece inacabada; hoje, alguns vão sendo desenterrados, como é o caso da comédia-pastelão Too Much Johnson (1937), recentemente descoberto num porão italiano. Esse primeiro filme de Welles havia sido feito para ser projetado em cena na peça homônima, que já seria um espetáculo “multimídia”. Como em Shakespeare, os últimos filmes de Welles põem em confronto as noções de verdade e falsidade, de realidade e ficção, de aparência e ilusão: A

História Imortal (The Immortal Story, 1969) e Verdades e Mentiras (F for Fake, 1972). Nesse último, vemos toda a força de Welles como diretor-montador. Em suas mãos, a montagem se converte em magia. Ao mesmo tempo, como em todos os seus filmes, Welles também expõe as vísceras do cinema, mostrando que, quase sempre, nos deixamos iludir por aquilo que vemos. Em Welles, é tudo verdade e é tudo mentira. Pois, como disse o Bardo, somos feitos da mesma matéria dos sonhos.

Adalberto Müller é professor de Teoria Literária na UFF. Seu livro Orson Welles: Banda de um Homem será publicado em breve pela Editora Azougue.


Homenagem: Orson Welles e sua musa Oja Kodar

O cineasta dirige sua mulher, Oja Kodar, no filme The Deep (1970). Fotos gentilmente cedidas por Oja Kodar. Acervo pessoal da artista

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ARTIGO ::: Cinco filmes franceses

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Cena de O Demônio das Onze Horas

Cinco filmes franceses que revigoraram a arte com rebeldia e liberdade: Zero em Comportamento, Os Incompreendidos, O Boulevard do Crime, A Grande Ilusão e O Demônio das Onze Horas

O cinema francês na navalha da Nouvelle Vague A

por CLAUDIO LEAL

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rebelião dos garotos no filme Zero em comportamento (Zéro de Conduite, 1933), de Jean Vigo, lembra algo da zoada dos críticos e diretores da Nouvelle Vague na revista Cahiers du Cinéma, nos anos 50. Registre-se no boletim de ocorrência: nenhuma pedrada dos agentes provocadores atingiu Vigo. Pintado de maldito pela censura francesa até 1946 e pouco a pouco levado ao altar dos filmes canônicos, Zero em Comportamento conquistou os realizadores-pensadores Jean-Luc Godard, François Truffaut, Eric Rohmer, Jacques Rivette e Claude Chabrol, e nem a delgada filmografia de Vigo, composta ainda por A Propósito de Nice (À Propos de Nice, 1930) e O Atalante (L’Atalante, 1934), abalou a segurança de Truffaut ao defini-lo como “o maior diretor da história do cinema francês”. Essa afeição se infiltra em Os Incompreendidos (Les Quatre Cents Coups, 1959), o início da saga do personagem Antoine Doinel, interpretado a partir dali, e muito antes de qualquer Boyhood, por Jean-Pierre Léaud. O primeiro longa de François Truffaut – eleito melhor diretor do Festival de Cannes de 1959, num triunfo estético e político da Nouvelle Vague – faz uma citação a Vigo na sequência em que os


ARTIGO ::: Cinco filmes franceses pequerruchos se dispersam pela cidade, ao longo de um passeio com o professor. As diferenças entre as crianças de Vigo e de Truffaut se exprimem na essência das rebeldias. Vigo reflete a inversão do poder e o território livre da infância, em que a interferência dos adultos redunda em fracassos. O diretor do colégio possui a mesma baixa estatura dos pupilos endiabrados, e a câmera frequentemente observa os tumultos do alto, de onde o mundo adulto se cola ao chão e às sombras. O opressor-oprimido. Zero em sentimentalismo. Truffaut se abre mais para as ternuras infantis, contendo-as em outro projeto estético, no qual reafirma o cinema como arte visual, despregado da “tradição de qualidade” combatida no artigo “Uma certa tendência do cinema francês” (Cahiers du Cinéma, janeiro de 1954), seu minucioso ataque à escola dos verbosos roteiristas do realismo poético surgido nos anos 30. Em Os Incompreendidos, a câmera mantém-se à altura dos ombros dos miúdos, e os olhos de Doinel são alheios e opacos, e suas ações, desorientadas, numa narrativa tão livre quanto os desejos e aberta às investigações da Nouvelle Vague. “O filme mais livre do mundo”, na hipérbole de Godard. Deve-se à intervenção agressiva dos críticos da Cahiers du Cinéma, na década de 50, o esmaecimento da influência das gerações precedentes à Nouvelle Vague. Se não foram suplantados, os diretores e roteiristas do realismo poético ao menos per-

deram espaço dentro do imaginário cinéfilo. O caso de O Boulevard do Crime (Les Enfants du Paradis, 1945), de Marcel Carné, é um pouco diferente. Rodado durante a ocupação nazista na França, o filme nunca deixou de ser vez ou outra apontado como obra-prima máxima do cinema francês, e nesse ponto cabem ponderações. Superprodução com roteiro do poeta Jacques Prévert, a partir de histórias do mundo teatral contadas a Carné pelo ator Jean-Louis Barrault, O Boulevard do Crime esbarra no próprio espírito excessivo dos espetáculos de variedades do século XIX. As emoções e as ênfases poéticas se realizam mais em palavras do que em imagens. “O amor é simples”, diz a atriz Garance (Arletty) ao mímico Baptiste (Barrault). E assim vamos à simplicidade do amor: com o verbo. Jean Renoir é um dos mestres do realismo poético acolhidos pela Nouvelle Vague. Godard encontra em Renoir “a beleza ao mesmo tempo que o segredo da beleza”. Uma frase precisa e lacônica, que talvez aponte para uma das razões da permanência de A Grande Ilusão (La Grande Illusion, 1937), longa-metragem sobre oficiais franceses capturados pelos alemães na Primeira Guerra, fundamentado em experiências de Renoir somadas às de um piloto de caça, Pinsard, que lhe salvara a vida. “Há uma história de amor, mas tão simples que não chega a ser uma história. Tudo isso sai um pouco dos cânones habituais do

cinema e até mesmo do espetáculo dramático”, observou Renoir. O que também vale para a estranha beleza de O Demônio das Onze Horas (Pierrot le Fou, 1965), de Godard, com Anna Karina e Jean-Paul Belmondo. Há uma história de amor, mas que não define o conjunto, pois está imersa num filme de aventuras ou de gângsters, vigoroso nas vivências fragmentadas e citações literárias e cinéfilas. Explodem as cores elementares. “Qual o objetivo em entender tudo? Somos feitos de sonhos, e os sonhos são feitos de nós”, declama um Pierrot Le Fou em fuga. A busca por uma linguagem moderna,

Cena de Os Incompreendidos

nada redutora, reforça a frase do diretor norte-americano Samuel Fuller, numa das cenas iniciais: “Um filme é como uma batalha.” Até ali, Godard e os expoentes da Nouvelle Vague empilhavam vitórias nas batalhas culturais, e o Pierrot-Belmondo enrolado em dinamites não chegava a configurar um mau presságio. Claudio Leal é jornalista.

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TABU destaca quatro lançamentos: Winter Sleep, Casa Grande, Quando Meus Pais Não Estão em Casa e James Brown

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Cena de Quando Meus Pais Não Estão em Casa

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por TATIANA LEITE

WINTER SLEEP (Kis Uykusu)

Dir. Nuri Bilge Ceylan. Elenco: Haluk Bilginer, Melisa Sözen, Demet Akbag, Ayberk Pekcan. Turquia, França, Alemanha, 2014. 3h16. Sinopse: Um ator turco aposentado, Aydin (Haluk Bilginer), comanda um pequeno hotel na região da Anatólia central junto a sua esposa Nihal, de quem ele se afastou emocionalmente, e sua irmã Necla, que ainda sofre com seu divórcio recente. No inverno, a neve desperta um tédio e um ressentimento que fazem Aydin querer partir.

Último filme de Nuri Bilge Ceylan, vencedor da Palma de Ouro em Cannes em 2014, Winter Sleep foi escrito pelo diretor e por sua mulher Ebru Ceylan. Nota-se muita influência, diria quase homenagem, à literatura, a partir da livre adaptação dos contos de Tchecov e pelas referências a Shakespeare que perpassam o filme. Winter Sleep conta a história de Aydin (Haluk Bilginer), um exator, então escritor, herdeiro de terras na Capadócia, que vive em um pequeno hotel na região, não gratuitamente chamado Othello, com sua irmã Necla (Demet Akbag), recém-separada, e sua esposa Nihal (Melisa Sözen), com quem há anos mantém um relacionamento distante. Cercados pela incrível paisagem da região, mas isolados dos centros urbanos, os personagens filosofam sobre suas existências e o estado do mundo (implícitos e explícitos recortes de discussões sociais da Turquia), e isso converge para a essência de Aydin, foco da narrativa e do olhar do diretor ao longo do filme. Ceylan nos dimensiona este homem de meia idade, que não necessariamente vive o que sonhou, mas que se conformou com seu percurso. Se para os outros se expõe sempre imbuído de orgulho e vaidade, este pequeno burguês, que posa de bom moço, de bom coração, é frustrado com seu próprio ego. E, embora pareça ter dificuldade de se dar conta disso, é, no entanto, o que aparece com grande relevo no discurso do outro. O filme é permeado por embates, seja nas acaloradas discussões com a irmã Necla, que o acusa abertamente de ser pretensioso e egoísta, seja nas discussões com a mulher Nihal, que se sente oprimida há anos pela persona de Aydin, que sempre reluta em admitir que sua construção enquanto pessoa e profissional é rasa. O diretor alterna a exuberância da monumental paisagem da região da Anatólia com ambientes intimistas onde quase toda a ação acontece. Tendo sempre primado por planos e pausas longos, ele experimenta “também” uma série de diálogos extensos, quase literários, mas que nada têm de entediantes. Pelo contrário, na maioria das vezes são propulsores do filme, a exemplo da extenuante discussão que tem com Necla sobre ele mesmo, ou no encontro com o professor Levent na casa de seu velho amigo Suavi. Diante das ricas possibilidades, causa uma pequena frustração o não desenvolvimento de outros personagens, como as duas mulheres, o imã da cidade, o conformado Hamdi, o irmão mais velho deste, Ismail, que se tornou alcoólatra logo que foi solto da prisão, ou a própria criança, Ilyas, que acompanha a tragédia de sua família. Contudo, a escolha por se centrar em Aydin é igualmente bem-sucedida. Nuri Bilge Ceylan é um dos autores mais endossados pelo Festival de Cannes (haja prêmios!), um expoente do cinema turco contemporâneo que iniciou sua carreira como fotógrafo, e dirigiu filmes como Distante (Uzak, 2002), Climas (Iklimler, 2006), Os Três Macacos (Uç Maymun, 2008) e o delicioso Era Uma Vez em Anatólia (Bir Zamalar Anadolu’da, 2011), construindo nos últimos 15 anos uma cinematografia consistente, na qual a narrativa é sempre o maior trunfo. Sua obra é composta por uma distinção especial: as paisagens estão sempre interferindo na interioridade dos personagens e celebrando a extrema delicadeza visual de cada um dos seus filmes. O cineasta se afirma, portanto, pelo talento e pela ousadia de realizar um filme cujo protagonista não necessariamente cultiva a empatia dos espectadores, mas permite que estes se acometam pelo todo da obra.

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por THIAGO CAMELO Há filmes que se rascunham na primeira cena. Casa Grande, de Fellipe Barbosa, é um deles. Na sequência – extremamente bem filmada –, vemos uma mansão de quatro andares e uma piscina. Plano aberto. Dentro de uma jacuzzi, anexa à piscina, um homem toma o último gole da bebida e sai em direção à casa. Já é noite. Do primeiro ao último andar, as luzes vão sendo desligadas, fazendo imaginar o caminho que o homem percorre até chegar ao seu quarto, o último cômodo ainda iluminado. O quarto do sinhô. Sim, estamos aqui numa representação contemporânea da casa-grande. O dono da terra é Hugo (Marcello Novaes), um investidor do mercado de ações que, saberemos logo, está falido. Na cena seguinte, vemos um dos filhos do casal, Jean (Thales Cavalcanti), fazer o caminho inverso do pai: degrau por degrau, ele chega ao rés do chão, onde está o quarto da emprega. Ele bate a porta, ela atende. Ele se aproveita da companhia dela, ela se aproveita da companhia dele – ela permite uns amassos; sexo não. Pronto: está estabelecido o conflito que percorrerá todo o filme: patrão-empregado, cordialidade-realidade, casa-grande e senzala. O primeiro longa-metragem de ficção de Fellipe Barbosa (conhecido pelo curta-metragem Beijo de sal e pelo documentário Laura), que também é roteirista do filme, é uma obra de tese. Escora-se não só no seminal livro de Gilberto Freyre, Casa-Grande e Senzala, mas também em Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda. Algumas questões a se colocar: como se apresenta essa tese, quais são as perguntas feitas e como elas são respondidas? O conflito gira em torno de Jean, 17 anos, estudante do São

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CASA GRANDE Bento, colégio tradicional carioca conhecido pela excelência de ensino e por, em pleno século 21, aceitar apenas rapazes. O menino vive uma vida de rico. Tem um motorista que o leva até o colégio, nunca pega ônibus, não se preocupa com dinheiro e, no começo do filme, não desconfia da ruína financeira iminente da família. A mãe de Jean, Sônia (Suzana Pires), professora de francês particular, também não. Jean é amigo do motorista, Severino (Gentil Cordeiro), e tem afeição e atração pela empregada, Rita (Clarissa Pinheiro). Essas demonstrações de afeto são particularmente bem apresentadas no longa. Antes mesmo de entrar no quarto da moça, já reconhecemos que a relação de Jean com Rita é íntima. Ele bate na porta e diz: “Sou eu.” Rita o reconhece na hora – não há necessidade de nenhuma cena prévia para entendermos que o que se vê é rotineiro; tudo nos é exposto rapidamente por cenografia, espaço, encenação. A relação entre Jean e Severino também é prontamente delineada. No trajeto ao colégio, o adolescente fala de sexo com o motorista, pede conselhos. Ao chegar ao São Bento, um gesto importante: o motorista

Dir. Fellipe Barbosa. Elenco: Thales Cavalcanti, Marcello Novaes, Suzana Pires, Gentil Cordeiro e Clarissa Pinheiro. Brasil, 2014, 114 min. Sinopse: Casa Grande conta a história de Jean, um adolescente rico que luta para escapar da superproteção dos pais, secretamente falidos. Enquanto a família decai moral e financeiramente, os empregados da casa têm que enfrentar suas inevitáveis demissões.

avisa a Jean que ele esquecera novamente o celular no banco do carro, clama atenção; enfim, educa-o. Mais à frente, quase um complemento da cena: no elevador do colégio, apinhado de garotos, Jean solta um palavrão. O ascensorista repreende: “Sem palavrões.” Do esboço inicial, o argumento vai ganhando forma: Jean aprende tão ou mais com os empregados do que com os pais. Nem sempre, no entanto, Casa grande tem mão leve. Em alguns momentos, o atrito entre classes se apresenta de forma menos sutil. As


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discussões sobre cotas raciais no filme, apesar de importantes, soam caricatas – ricos e pobres perdem contornos aqui. O papel da irmã mais nova no filme poderia ter mais nuances também. Na maior parte das vezes, porém, o longa encaminha com delicadeza – cênica, inclusive – as questões que defende. A sequência da queda do pai da escada, as imagens do Elevado do Joá – de paisagem tão linda e tão pouco visitada no cinema –, as cenas dentro do ônibus, o momento sutil em que se nota que, apesar da suposta intimidade, a matriarca não sabe que Rita não tem filho, o ridículo do pai fazendo reunião virtual de bermuda e terno, visual que traduz a sua condição de falsa riqueza: cada peça da obra se funde para entendermos a jornada de Jean.

Quando a falência não pode ser mais escondida, a crise de Jean com a família, que já parece inevitável, piora. Ele mesmo faz uma dívida – não saldada pelo pai – com um amigo. Sofre pressão na escola pela dívida não quitada; sofre pressão da namorada, mais antenada politicamente, para se posicionar quanto às cotas. Sofre com o reflexo no espelho: a família. A fissura emocional e social que há em sua casa, na cidade, no país, precisa ser vivida por Jean. Apenas assim o rapaz terá condição de entendê-la. E a única forma de fazer isso é se deslocando física e afetivamente. Em seu ir e vir pela cidade, Jean atravessa um túnel muitas vezes. Isso é simbólico da jornada. No caminho, ele vai ficando menos alheio, mais atento – pela janela,

reconhece Severino, já demitido, dirigindo uma van. Em busca do que já reconhece – a vida dos empregados –, mas não conhece totalmente, Jean segue o caminho. No fim, ele faz um movimento radical e é recompensado. Como responder às questões? Deslocando-se. Fellipe Barbosa fez um filme autobiográfico que fala das questões do Brasil, mas que também trata de camaradagem entre amigos, autoestima, solidão e amadurecimento. Ora com mais ora com menos destreza, o diretor alcança a sua tese. E parece chegar lá por um motivo admirável: a convicção inabalável de que sua busca é pertinente.

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QUANDO MEUS PAIS NÃO ESTÃO EM CASA Dir.: Anthony Chen. Elenco: Yeo Yann Yann, Chen Tianwen, Koh Jia Ler, Angela Bayani. Singapura, 2013, 99 min. Sinopse: Uma babá interfere na relação entre mãe e filho ao estreitar laços com o menino de quem foi contratada para cuidar.

por JOÃO LANARI BO A divisão do trabalho na Ásia raramente é evocada no cinema. Filipinos e (sobretudo) filipinas estão presentes, nos chamados serviços domésticos, em praticamente todos os países que têm alguma relevância econômica na região, do Oriente Médio ao Extremo Oriente. A remessa de divisas dos cidadãos que emigraram é o principal item da balança de pagamentos do arquipélago filipino. Anthony Chen, diretor de Quando meus pais não estão em casa (2013), percebeu o potencial dramático dessa circunstância geopolítica e ganhou o “Camera d’Or”, o cobiçado prêmio para realizadores estreantes no festival de Cannes, em 2014. Seu filme, semiautobiográfico, relata as mazelas de uma empregada filipina no seio de uma família classe média da rica Singapura durante a crise financeira que assolou o Sudeste Asiático em 1997. Singapura é uma cidade-estado extremamente bem-sucedida, com pouco mais de 5 milhões de habitantes, 70% de origem chinesa. É um espaço apertado, física e cinematograficamente: o filme de Chen passa a sensação inevitável de claustrofobia. Os planos são fechados; os cenários, limitados – vez ou outra alguém sobe na cobertura e a

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imagem se abre, respira. O plano geral desses momentos capta a baía de Singapura e a linha de horizonte no infinito. É um alívio visual. O contraste das imagens serve também como metáfora para o próprio país, que oscila entre a vontade estratégica de presença global e o constrangimento pela realidade imediata do entorno. Em Singapura, todos falam inglês, como se nota na sala de aula de Jiale (Koh Jia Ler), o filho único de dez anos que fará o contraponto de Teresa, ou Terry, a filipina (Angela Bayani) no ambiente familiar. Mas Quando Meus Pais Não Estão em Casa não elide uma atmosfera opressiva prevalecente na cidade-estado, resultado de uma ética do trabalho um tanto impiedosa e implacável, talvez aguçada naquele período crítico, em 1997. Pelo contrário, essa atmosfera subjaz na narrativa: por exemplo, ser castigado com chibatadas diante de todo o colégio, como acontece com Jiale em cena patética, não é usual, mas em Singapura parece ser. Disciplina e contenção são fundamentais para a competitividade dos cidadãos e do país. O núcleo dramático desse filme “íntimo e comovente”, como saudou a crítica em Cannes, é a relação entre Terry e Jiale. As chibatadas são compensadas por um carinhoso reconforto de Terry, a essa altura engajada afetivamente com o difícil Jiale. O pai (Chen Tianwen), um “looser”, se enrola a torto e a direito e deixa espaço

para a mãe (Yeo Yann Yann), grávida, definir autoritariamente a ordem da casa. Jiale – muito bem dirigido por Chen – passa da rispidez ao convívio e à dependência, ignorando a diferença de classes e criando um elo compensatório com a empregada. Seu rosto, duro, com olhar ausente mas obcecado, opõe-se na tela à expressão resignada e sofrida de Terry. Suas pequenas transgressões, como chegar atrasado no colégio e pular o muro para entrar – uma atitude simplesmente inimaginável em Singapura, onde as pessoas que cuspirem chiclete na rua estão sujeitas a uma multa de 500 dólares –, são absorvidas pela filipina, que protege o garoto das sanções para proteger a si mesma. A cumplicidade entre os dois é a resultante infalível. Em um filme de desempenho e desenrolar bastante consistentes, alguns procuraram similitudes com Ozu e Edward Yang, excelente diretor taiwanês morto precocemente. Pode até ser: afinal, estamos no Oriente. Entretanto, na pátria do cinema, um parentesco provável seria O Criado (The Servant, 1963), de Joseph Losey, considerado por Godard como o primeiro filme a tratar efetivamente da luta de classes. Quando Meus Pais Não Estão em Casa traz a marca indelével da divisão do trabalho na Ásia, tal como se apresenta nesse início de século 21: capital concentrado em Singapura, força de trabalho à venda das Filipinas.


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JAMES BROWN Dir.: Tate Taylor. Elenco: Chadwick Boseman, Nelsan Ellis, Dan Aykrod, Viola Davis, Keith Robinson, Octavia Spencer. EUA, 2014, 139 min.

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Sinopse: A trajetória de James Brown, da infância na pobreza até se tornar o lendário cantor americano.

por TOM LEÃO James Brown (Get On Up, 2014), de Tate Taylor, o diretor de Histórias Cruzadas (The Help, 2011) que também é ator, é a esperada cinebiografia do padrinho do soul e rei do funk, James Brown, nascido James Joseph Brown, em maio de 1933, na Georgia, USA, e falecido em 2006. Originalmente, o filme estava previsto para ser lançado no Brasil, pela Universal, em fevereiro deste ano. Mas acabou caindo no limbo até ser resgatado pelo Estação, que o lançará com exclusividade no país. Assim como as cinebios de Johnny Cash e Ray Charles, esta só não é melhor porque releva muita coisa do mais hardcore da vida do artista. Principalmente a fase final, com as

drogas pesadas e a loucura envolvendo armas, agressões à esposa e tal – embora isso seja mostrado, muito de leve, num dos cortes narrativos do filme. Foi também um modo de não deixá-lo muito longo (o filme tem 139 minutos). Mas foi, sobretudo, por ter censura PG-13 nos EUA (inapropriado para menores de 13 anos), o que restringe certos temas, como sexo, violência, drogas, palavrões etc. Mesmo assim, esta cinebio ganha, levemente, das de Ray e Cash pela escolha da narrativa, e pelo ator principal. O filme tem uma condução não-linear, indo e voltando no tempo. Começa com Brown entrando num túnel que o levará ao palco de mais um supershow e, no trajeto, ele começa a relembrar fatos de sua (dura e sofrida) vida, que tem muito em comum com a de Ray: negro pobre, nascido no sul dos EUA, filho de pais separados e que enveredou, por necessidade, pela vida do crime. O que, no caso, foi bom. Porque foi na cadeia que Brown teve contato com a música e viu que aquilo podia levá-lo adiante, tirá-lo da lama. Já o ator que faz JB, Chadwick Boseman (vindo da Broadway), realmente canta e dança todas as partes. E tem o suingue, o soul, a negritude necessária. Nunca soa como uma caricatura. Mesmo assim, nos primeiros 10, 15 minutos, a gente demora a se acostumar com Chadwick, porque a imagem de Brown ainda é muito forte, presente. Mas logo ele nos conquista fazendo JB jovem, na fama, na lama, mais velho, bacana, maluco e, sobretudo, dançando como ninguém jamais dançou antes. Ou depois. Foi JB quem influenciou passos de Mick Jagger e Michael Jackson, fora as influências musicais. Não por acaso, Jagger, que também está produzindo um documentário sobre JB, é o principal produtor do filme. Ele até aparece – representado, é claro – numa passagem em que Brown

abriu o show dos Stones (muito a contragosto, porque JB sabia que era muito melhor do que os branquelos ingleses) na primeira ida da banda aos EUA. O que, positivamente, marcou Mick, que pirou na dança de JB e copiou seus trejeitos (ele não nega). Contudo, apesar de ser um filme caprichado e ter qualidades (som, fotografia, edição), não obteve indicações ao Oscar, como aconteceu com as cinebios de Ray (que deu prêmio de melhor ator a Jamie Foxx) e Johnny & June (Walk the Line, 2005), a de Cash, que levou Joaquin Phoenix a cantar todas as partes para soar verossímil e acabou dando uma estatueta a Reese Whiterspoon, que fez June. Algo um tanto injusto com Chadwick Boseman, que encarna JB de forma espetacular. Quem viu Mr. Funky Man ao vivo (como eu, em sua última passagem pelo Brasil, em 1988), vai entender. Os mais novos devem se lembrar apenas do ‘negão maluco’ que apareceu numa comédia de ação do Jackie Chan (O Terno de Dois Bilhões de Dólares, The Tuxedo, 2000) como ele mesmo. Mas Brown também fez aparições em outros filmes. Como no sensacional Os Irmãos Cara-de-pau (The Blues Brothers, 1980, de John Landis), como um pastor, e em Rocky IV (1985), inclusive com a música-tema do filme, o sucesso Living in America, entre outros. Mas, para quem “nasceu ontem”, assistir a James Brown serve pra saber de onde vem o apito do trem: quando de sua primeira passagem pelo Brasil, nos anos 70 (seu auge comercial), JB não apenas foi o inspirador dos passos de Tony Tornado, como também o rastilho de pólvora que ajudou a explodir o movimento Black Rio, origem do funk carioca. Mas JB foi muito mais, uma figura importante na afirmação do orgulho negro americano, na luta pelos direitos civis, que já impediu um quebra-quebra em Boston com um show. Tanto que nem cabe tudo no filme. E não perca. Dá vontade de dançar no cinema.

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Cena de Dr. Fantástico

CINEMA: EXPRESSÕES DE PODER

A sétima arte é não só uma grande comentadora da história, como é, também, reflexo dela. As turbulências políticas do século XX se manifestam na telona das mais diversas formas: construindo discursos, transmitindo ideologias, expondo facetas obscuras dos conflitos que marcaram nossa época. Neste dossiê, temos Stanley Kubrick e Elia Kazan como protagonistas de relações intensas entre cinema e política. Um como dono de uma extensa filmografia cujo olhar se volta para o horror e o patético da guerra. E o outro como uma figura que se viu no olho de um furacão que desestabilizou a cultura norte-americana, o macartismo. 46


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GUERRA ABERTA: KUBRICK CONTRA A SOCIEDADE FALOCÊNTRICA por DODÔ AZEVEDO

“I

sso já não é música”, disse um extasiado Bruno Walter a Thomas Mann, sobre “Tristão e Isolda”, de Wagner. Kubrick também já não é cinema. Há um consenso na academia em observar o cinema como suporte moderno para a filosofia. Esses acadêmicos defendem a ideia de que os filósofos só escreviam livros porque não havia ainda sido inventado o cinema. E que a melhor filosofia foi, a partir do meio do século XX, produzida por cineastas. Kubrick seria o maior dos filósofos contemporâneos. Seu principal tema: a guerra. Seu principal filme de guerra, Nascido Para Matar, filmado e lançado nos anos 80. Rambo I, Rambo II e Rambo III, Chuck Norris, Nascido em Quatro de Julho e Platoon foram os filmes de guerra que mandaram nas bilheterias dos anos 80. Em comum, o expurgo dos fantasmas da derrota no Vietnã e a vitimização do soldado americano explorado pelo sistema e colocado para lutar contra inimigos sem rosto, sem identidade. Nascido para Matar (Full Metal Jacket, 1987), adaptação do livro de não ficção Short-timers, de Gustav Hasford, veio para romper com esta tradição. É o primeiro filme de guerra, não só dos anos 80, no qual os soldados não são jovens coitadinhos que foram parar na guerra, e sim boçais produtos de nossa cultura falocêntrica, essa cultura patriarcal que está em nosso oriente e ocidente, em nosso presente e passado. E o primeiro filme no qual o conceito clássico de herói foi inventado na Antiguidade para justificar os atos de guerra masculinos. Embora haja uma jornada do herói em Nascido para Matar, Joker, o personagem principal, só cumpre sua jornada quando comete seu primeiro assassinato. O Jokerman Bob Dylan de Kubrick

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cumpre afinal o que está escrito em seu capacete e dá o nome em português ao filme: Nascido para Matar (Born to kill). - É uma teoria junguiana, senhor. Eu estou tentando explicar algo sobre a dualidade do homem – explica Joker a seu coronel quando este indaga sobre a inscrição no capacete. Ao ouvir a explicação, desconfiado, o coronel pergunta: - De que lado afinal você está, filho? A filosofia kubrickiana sobre a guerra é que ela é a mais perfeita tradução da dualidade do homem. Somos todos nascidos para matar. Em 2001 – Uma Odisseia No Espaço (2001: A Space Odissey, 1968), o ato do primeiro homem, do primeiro macaco, ao ser ungido com o dom da inteligência, é perceber que com um pedaço de osso se pode assassinar o macaco rival. O primeiro ato da inteligência humana é praticar o assassinato. O macaco assassino, ao terminar o ato para o qual nasceu, regojiza-se jogando o pedaço de osso, a arma, para o alto. O osso, a arma, esta primeira tecnologia humana, voa nos ares sob o céu azul. Quando desce, na maior elipse da história do cinema, já estamos dezenas de milhares de anos no futuro, e o osso, a arma, já não é mais um osso, é sim o foguete. O impulso que nos faz criar de um osso uma arma útil de dominação nos faz criar foguetes, também uma tecnologia de dominação. Nosso impulso assassino é o pai de tudo, nos diz Kubrick sem dó nem piedade. Não dá para negá-lo. E enrustir conflitos é precipitar massacres. A dualidade do homem, a aceitação de seus conflitos, é o que move todos os personagens masculinos, todos os protagonistas de Kubrick. O cineasta viveu recluso entre as mulheres que amou. Num ato ousado e condenado pela sociedade, casou-se em 1958 com uma mulher divorciada que já tinha uma menina, a pintora Christiane Harlan. Juntos, tiveram mais duas filhas. Stanley Kubrick viveu para e por elas. Em vida, foi acusado de misógino.

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Hoje, os autores reconhecem a importância de “heroínas de Kubrick”. A redentora cantora de boteco do final de Glória Feita de Sangue (Paths of Glory, 1957); a toda desejo, curiosidade e poder Lolita (Lolita, 1962); a suprimida de Dr. Fantástico (Dr. Strangelove, 1964) e 2001; as objetificadas de Laranja Mecânica (A Clockwork Orange, 1971); as vitimizadas de Barry Lyndon (1975) e O Iluminado (The Shining, 1980); e, finalmente, a vingadora de Nascido para Matar (1987). Começando pelo fim, Nascido Para Matar termina com todo um pelotão de marines machões americanos sendo dizimados um a um por uma única mocinha adolescente franco-atiradora vietnamita. Eles todos treinados para serem máquinas de matar (Chuck Norris e Rambo), ela pura ideologia do oprimido versus o invasor opressor. “Shoot me! Shoot me!”, sussura a mocinha ferida mortalmente no fim do filme, implorando para que Joker, o herói diletante, lhe dê um tiro de misericórdia. Kubrick, de novo sem pena, está ali menos para fazer cinema (e agradar a audiência) do que para fazer filosofia. Dirige a atriz vietnamita Ngoc Le de modo que ela torne a cena perversamente erótica, proferindo as palavras “me mate, me mate!” como se dissesse “me coma, me coma!”. Outra jogada de Kubrick – que, no fundo, fazia filosofia e cinema como um estrategista militar (é lendária a sua obsessão por jogar xadrez) – coloca toda a plateia em xeque ao esconder, antes da execução, a identidade do franco-atirador que está desferindo contra os fuzileiros americanos “os tiros mais dolorosos da história do cinema”, segundo o lendário crítico americano Roger Ebert. Por serem todos muito machos, convictos e invencíveis, os assassinatos dos fuzileiros, um a um, nos fazem pensar que o misterioso franco-atirador só pode ser um sujeito ainda mais macho do que eles, um vietnamita com três metros de altura e uma arma fálica do tamanho do maior pênis que se pode imaginar. Kubrick joga com nossos pré-conceitos, reforçados pelos filmes de guerra dos anos 80, no qual os vilões eram só sujeitos grandes e machos, sem identidade.

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Cena de Nascido Para Matar

Quando revelada, a menina franco-atiradora – e seus cabelos maria-chiquinha a denunciar uma inocência perdida à força – torna-se imediatamente o único personagem com identidade no filme. Com identidade, mas sem nome. Sem nome para poder representar toda a ideia de terceiro-mundista reprimido, de todo o matriarcado destroçado. De trás para a frente, voltando ao filme, vimos os pervertidos fuzileiros navais americanos perpetrarem toda sorte de lascívia e amor pelo falo, explorando prostitutas vietnamitas a quem tratam como um pedaço de carne. Essa era a guerra de Kubrick. Não pelo feminismo, mas uma demonstração didática, filme a filme, da falência da sociedade falocêntrica. Não é o mundo que está acabando em todos os seus filmes, é o desejo e a intuição de que nossa obsessão pelo falo vai nos levar à ruína. Falocêntricas, as armas são os objetos preferidos para demonstrar sua tese. É inesquecível a nigérrima piada do comandante caubói, em Dr. Fantástico, cavalgando uma bomba atômica em forma de pênis gigante, num êxtase sexual comemorado com o consagrado “Hurra!” texano. E, nos anos 80, resolveu-se inventar este supersoldado americano, esse Rambo, esse Chuck Norris, todos besuntados em óleo e carregando suas armas-falo na mão. Trata-se, na verdade, dos filmes mais gays (nada contra) e enrustidos (tudo contra) da história do cinema americano.

Dodô Azevedo é filósofo, professor e cineasta.


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Terry Malloy (Marlon Brando) sendo ameaçado. Cena de Sindicato de ladrões

TODOS OS NOMES

por LEONARDO PETERSEN LAMHA

Guerra e abstração

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Guerra Fria não ameaçava apenas com o calor da pólvora ou da fissão nuclear. Havia também a frieza de um combate ideológico: uma batalha de rumores, imagens e nomes. Uma das maneiras de os Estados Unidos lidar com os inimigos na década de 1950 era por meio da palavra, interpelando o opositor com o Comitê de Atividades Antiamericanas, conhecido pela sigla HUAC (House Un-American Activities Committee). Proliferaram-se, com os interrogatórios, as famosas listas negras, que continham nomes de produtores, roteiristas e diretores ligados ao comunismo. O objetivo era colher nomes, e sua maior obra foi a instauração do personagem delator – o dedo-duro. Incontáveis artistas e produtores tiveram suas vidas arruinadas pelos delatores. Mesmo décadas depois do fim do macartismo – como ficou

conhecido o período em que o senador Joseph McCarthy liderou o comitê –, a maioria dos acusados de subversão não conseguiu reconstruir a carreira. O caso de Elia Kazan é um retrato do período, um dos mais famosos delatores de sua época. Em 1952, o diretor – assumidamente ex-comunista – entregou diversos colegas à HUAC. A pecha de dedo-duro nunca descolocou de Kazan. Até hoje, a imagem dele é controversa na indústria de cinema norte-americana; importantes nomes do ramo, como Sean Pean (cujo pai foi perseguido pelo macartismo), desabonam o diretor. Antes de chafurdar na polêmica que marcaria sua vida, Kazan já era considerado um grande diretor, responsável por extrair performances arrebatadoras de futuras deidades, como Marlon Brando. Alguns argumentam que foi por medo de perder sua carreira que Kazan fez o que fez. Ele próprio confessaria, anos mais tarde, que tinha ojeriza ao Partido Comunista, do qual fizera parte e com o qual tinha se desiludido. Tenha sido por pressão ou por convicção, o diretor até hoje carrega o estigma – não muito dignificante – de alcaguete.

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DOS

SIÊ A resposta de Miller Do outro lado, estava o dramaturgo Arthur Miller, amigo e colaborador de Kazan, conhecido como “a voz moral da América”. Kazan havia produzido para o teatro, entre outras peças premiadas de Miller, A morte do caixeiro-viajante. Miller, dentre incontáveis outros amigos, rompeu com Kazan após 1952. Ato contínuo, dirigiu até Salem, em Massachusetts, onde mergulhou nos arquivos sobre a paranoia geral instaurada por acusações de bruxaria e o subsequente enforcamento em massa que abalaram o então vilarejo em 1692. Um ano depois, terminaria a peça As bruxas de Salem (The crucible), sua resposta ao macartismo e também uma espécie de mensagem-bomba para Kazan a respeito da moralidade de se “nomear nomes” (do inglês, name names). John Proctor, herói de As bruxas de Salem, é um fazendeiro respeitado na cidade que acaba sendo acusado de bruxaria (witchcraft). Muitos outros foram acusados, e a benevolência do Estado podia absolvê-los desde que nomeassem e confessassem o seu envolvimento e, se possível, delatassem outras pessoas. A denúncia já era o suficiente para que se instaurasse a suspeita, já que a bruxaria era um crime “sem marcas”. Uma vez acusado, ou se assumia a bruxaria ou se morria enforcado. John Proctor não cedeu nem na iminência da morte. A peça termina com “o grito das profundezas da alma” de Proctor implorando para que o governo o levasse, mas que “deixassem seu nome”. Ele não assina e é enforcado.

Alegorias Miller e Kazan possuíam um projeto sobre os estivadores do Brooklyn, que serviria de metáfora do macartismo, e que havia sido abandonado com o rompimento dos dois. Logo depois do depoimento na HUAC, Kazan dirige Sindicato de ladrões (On the waterfront, 1954), um filme comumente visto como sua resposta às acusações de que traíra os amigos e também a própria moral no episódio da delação. No longa, Terry Malloy, interpretado pelo

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O cineasta Elia Kazan e o dramaturgo Arthur Miller

jovem Marlon Brando, precisa escolher entre depor contra o sindicato corrupto que controlava os estivadores ou continuar passando a vida “delatando a si mesmo”, isto é, vendo os companheiros morrerem e a sua vida subordinada a uma organização. Terry Malloy acaba optando pelos companheiros. Como alegorias do macartismo, ambas as obras são facilmente resolvidas por um ato automático de interpretação – principalmente o filme de Kazan: ele via a HUAC, e tudo que ela representava, em termos autoritários: uma escolha menos pior do que o comunismo. Sua experiência com o partido o desencantou. Como seu herói estivador, Kazan escolheu uma entre duas alternativas igualmente difíceis. A decisão de entregar colegas de profissão, no calor da época e num país em que o comunista era o inimigo, pode ter soado para Kazan como uma redenção ou como uma necessidade; mas nada foi fácil. Apesar de Malloy terminar como herói e Proctor acabar morto, há mais semelhanças que diferenças entre Sindicato de ladrões e Bruxas de Salem: os personagens lutam por um valor que deveria ter continuado em posse deles próprios, mas que foi vasculhado e devassado pelo poder. Proteger o próprio nome, livrando-o das garras do poder, é como salvar a própria alma. Assim como seus personagens, Kazan e Miller também lutaram por isso. Leonardo Lamha é roteirista, e crítico literário e cinematográfico.


HIATO ::: Beto Brant TABU se pergunta por onde andará o diretor de Eu Receberia as Piores Notícias de Seus Lindos Lábios. por MARIA DE ANDRADE

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eterano na ficção, com sete longas-metragens no currículo e direito a uma merecida retrospectiva no Canal Brasil neste começo de ano, Beto Brant encontra-se mergulhado no mundo do documentário. Enquanto Marçal Aquino não publica o novo romance que será adaptado por Brant, o próximo e aguardado lançamento do cineasta será a biografia do ator Antônio Pitanga, já em fase de edição. O ator, que teve papel emblemático no Cinema Novo (O Pagador de Promessas, Ganga Zumba, Os Fuzis, entre outros), e passagem marcante pelo teatro, foi dirigido por Brant em Eu receberia as piores notícias... (2011). O encontro despertou, no diretor, o interesse pelo papel político, simbólico e cultural de Pitanga no Brasil. O filme vai marcar a estreia de Brant como documentarista no circuito das salas de cinema; mas, além do longa, no hiato entre o último lançamento e a produção atual, o cineasta dirigiu ainda quatro curtas-metragens de criação coletiva, todos disponíveis num canal do site Vimeo, o Mostra Grátis Cine. O pequeno texto de autoapresentação do canal é uma espécie de manifes-

to democrático pelo acesso digital e pelas formas de produção colaborativas. Termina dizendo: “repúdio absoluto a toda forma de brutalidade.
/ pela expansão da consciência e do afeto.
// Eternamente em cartaz.” É mesmo de “expansão de consciência e de afeto” que trata o mais novo cinema do diretor paulista. Os filmes compartilhados exploram a linguagem poética, transformam a alta definição digital em raríssima textura porosa e secular, em pele negra e em batucada. A cidade de São Paulo não é mais vista na sua pele urbana e cinzenta de selva de pedra que tanto marcou o visual dos longas do diretor, mas revelada no movimento dos corpos, na verve cultural que brilha na lente de Brant. Os títulos dos filmes falam por si: Manifesto Makumbacyber, Ilú Obá De Min, e Kuta Ndumbu. Fora esses, há que ver o vídeo-dança Modo Ave, que flerta com a história do Brasil, entre tabernas, Uiaras e bandeirantes, e tem uma cena tragicômica antológica, em que o texto de uma receita baiana faz as vezes de um manancial de sofrimentos apenas imagináveis para o espectador, e a atriz-bailarina-circense, entre lágrimas,

© Sato do Brasil

se equilibra sobre pernas de pau e fala como se contasse, a cada ingrediente, não os passos da receita, mas os de seus sofrimentos. No mais, Brant disse à TABU que o hiato entre um filme e outro “é o momento de colocar a vida em dia” e “poder ler, ir a exposições, ao cinema”. Durante a fase de criação, o cineasta fica totalmente imerso: “a referência tem que ser o olhar próprio e não um outro filme”, diz. No entanto, quando ele vai ao cinema parece viver todo um ritual que envolve pegar a sessão da tarde. Perceba bem essa dica de quem entende do assunto: “Se você sai de um cinema de rua, tem o movimento intenso do céu se transformando, e você tá dentro do filme. Quando sai da sala, e ainda tem o restinho de luz no céu, isso potencializa a emoção do filme. Você continua dialogando com o filme, sai para caminhar a pé pra casa, e pega o metrô, e continua conversando com filme...”.

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ENSAIO ::: Barbara Gomes

METADE

CARA

A fotógrafa Barbara Gomes oferece a outra face O fotógrafo Luiz Tripolli (à esquerda) se encaixa com o cineasta Woody Allen (à direita)

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catarinense Barbara Gomes é uma artista no sentido lato do termo. Ela anda reinventando o mundo em tudo que faz. Alquimista da cozinha funcional (sem glúten lactose ou açúcar), começou como fotógrafa de cinema, mas aos poucos trocou a imagem em movimento pelo movimento da imagem. As “caras-metades”, como a fotógrafa intitula seu trabalho fotográfico, são muito mais que retratos dos artistas clicados; elas provocam a alegria do encontro e

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retratam a dinâmica caleidoscópica da cultura contemporânea. Apesar do resultado lembrar o da fotomontagem, a técnica não se confunde com a que se encontra nos livros de referência da vanguarda francesa. Inspirada em artistas visuais como David Hockney e John Hilliard, Barbara recorta retratos de personalidades de revistas de arte e comportamento e clica a sobreposição da metade da face de um diante da face do outro. Em geral são artistas brasileiros cli-

cados com a metade de um rosto popular estrangeiro. Pode parecer uma brincadeira, mas o resultado demanda pesquisa, envolve o estudo das feições de um e de outro. A imagem final é um casamento nada óbvio, e em parte até aleatório, mas surpreendentemente vivo de dois universos artísticos. A coisa funciona como se ela preparasse moldes de máscaras que posiciona diante do outro, “até ficar bem encaixado, aí eu clico”, explica ela. São achados vivos, diversão e arte.


ENSAIO ::: Barbara Gomes

Acima: O rosto da jovem cineasta Vera Egito (em cima) em montagem com o corpo da consagrada performer Marina Abramovic (abaixo) Acima à direita: A atriz Liv Ullmann é a face esquerda da estilista Emannuelle Junqueira Ao lado: o cantor Arnaldo Antunes (em cima) e a artista plástica Tomie Ohtake (abaixo)

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ENSAIO ::: Barbara Gomes

Acima: a rapper M.I.A (à direita) é a cara-metade da atriz Diana Bouth (à esquerda) Ao lado: Diana Bouth com o rosto e a atitude de Deize Tigrona

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ENSAIO ::: Barbara Gomes

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SALA 2 ::: Hypnotic Brass Ensemble A história de um incrível octeto de metais de Chicago, formado por irmãos de sangue, que acaba de virar filme.

Hypnotic Brass Ensemble por LUIZA GANNIBAL

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ra um dia ensolarado em Manchester, Inglaterra, desses que acontecem uma ou duas vezes por ano. Sorrisos nas ruas, mesas nas calçadas e, de quebra, um show antológico do Hypnotic Brass Ensemble no histórico pub Band On The Wall, local que ainda no século XIX teria sido frequentado – reza a lenda! – por Marx e Engels. Foi lá que, a partir dos anos 70, abriu-se espaço para a famigerada cena roqueira local, representada por bandas como Joy Division ou Buzzcocks,

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e ainda para o jazz britânico e internacional. Os oito rapazes do Hypnotic Brass Ensemble começaram a carreira como músicos de rua, um naipe da pesada tocando nas esquinas de sua cidade, Chicago, e de Nova Iorque. E, apesar de terem colaborado com Prince, Gorillaz, Mos Def ou De La Soul, ficaram mais conhecidos por suas bombásticas performances ao vivo. Quando subiram ao palco do Band On the Wall, naquele dia atípico, portanto, destilando uma mistura eletrizante de jazz, funk e rap, as centenárias paredes da casa quase foram abaixo. O cineasta Reuben Atlas esbarrou pela primeira vez com o


SALA 2 ::: Hypnotic Brass Ensemble

octeto de metais do HBE em uma esquina do Brooklin. “Sempre passava por ali, e um dia resolvi conhecê-los melhor”, diz. O encontro foi providencial para que ele resolvesse se juntar à trupe com um propósito maior: fazer um filme sobre eles – o Brothers Hypnotic. Rodar um filme sobre músicos sempre em turnê poderia parecer clichê, não fosse por um detalhe: os oito integrantes do HBE são irmãos de sangue, e, como se não bastasse, filhos de uma das mais importantes figuras do jazz de Chicago de meados do século XX: Phil Cohran. “A influência do meu pai nos legou um elo eterno com a música. Além de ter nos ensinado a ser livres”, diz Gabriel, um dos irmãos. De fato, hoje com 87 anos, Phil Cohran é um herói. Em uma época em que as leis Jim Crow estavam em pleno vigor, estabelecendo limites explícitos para os negros dos EUA, ele era um estudioso da chamada world music e um ativista da emancipação de seu povo. Multi-instrumentista genial, sabia que a aquisição da consciência passava pelo conhecimento de suas origens e, no caso americano, pela música,

pelo jazz. Só os músicos conseguiam burlar a lei infame e protagonizar a cena de espaços antes interditos. O jazz era o lamento dos africanos que, destituídos de seus instrumentos, haviam, em parte, se apropriado daqueles dos brancos para criar uma nova, e muito particular, forma de expressão. Em 1959, Phil se juntou ao interplanetário Sonny Blount, a.k.a. Sun Ra, e colaborou com sua Arkestra por um ano. O suficiente para incorporar instrumentos nada usuais e novas texturas sonoras à banda. Depois, Phil se tornou um dos fundadores da Associação para o Avanço dos Músicos Criativos e influenciou outros nomes locais, como Maurice White, do Earth Wind & Fire, e o sensacional The Art Ensemble of Chicago. Conhecedor de ritmos africanos, em 1960 se apresentaria com seu The Artistic Heritage Ensemble, uma big band de 15 membros. Difícil mensurar o alcance da obra de Phil. Como disse o baterista Hamid Drake, “Ele ainda não teve o devido reconhecimento”. Afirmação que o filme de Atlas parece contestar, especialmente quando apresenta sua

maior obra: seus filhos hipnóticos. Phil os ensinou a tocar seus instrumentos (trompete, trombone e barítono) e a compor desde pequenos, sujeitando-os a uma rígida disciplina que começava às seis da manhã, e que, quando se tornaram adolescentes, viria a ser questionada, mas jamais abandonada. Na mesma pegada, introduziu-os aos ideais da consciência negra. Difícil passar por essas cenas e não deslocá-las para o contexto brasileiro, onde tantos jovens, reféns de um estado hostil, tornam-se prisioneiros das tramas da miséria. Pensando a arte, e sobretudo a música, como veículo de libertação comunitária, Phil Cohran e os meninos do HBE são grandes exemplos. O documentário Brothers Hypnotic foi lançado em 2013 e desde então tem angariado uma série de prêmios nos festivais por onde passa. As exibições continuam, e o filme já tem agenda na Europa para 2015. Esperamos que, em breve, tanto o filme quanto a banda aterrissem no Brasil.

Luiza Gannibal, na verdade, é Luiza Almeida. Jornalista e doutoranda da USP, com extensão na University of Manchester, onde estuda as inter-relações entre a música e a literatura russa.

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Humor sem preconceitos

por THIAGO JATOBÁ

EAV

EAV quarentona A Escola de Artes Visuais do Parque Lage, EAV, comemora 40 anos de contribuição para a formação e informação artística da cidade, apresentando, a partir de abril, o projeto Curador Visitante. Cinco profissionais residentes no Rio de Janeiro vão organizar, cada um, uma exposição ao longo de 2015. “Encruzilhada”, do escritor e curador Bernardo Mosqueira, inaugura o programa, reunindo cerca de 50 trabalhos de mais de 40 artistas brasileiros.

A Força Sempre com Você A Lucasfilm anunciou que vai produzir mais de 20 livros sobre a saga Star Wars, conectando os 30 anos que separam a primeira e a segunda leva de filmes do novo episódio a ser lançado em dezembro. Batizada de “A Jornada para o Despertar da Força”, os livros trazem romances, histórias em quadrinhos e até álbuns de figurinhas para apresentar a uma nova geração de fãs a complexidade do universo criado por George Lucas para a trilogia original.

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O Punk Rock Não Morreu Wes Orshoski, diretor que imortalizou o frontman do grupo Motorhead, Lemmy Kilmister, no documentário Lemmy (2010), agora mira suas câmeras para a lendária banda punk britânica, The Damned, no filme Don’t You Wish That We Were Dead (2015). Apesar de não serem reverenciados como seus contemporâneos Clash e Sex Pistols, o Damned foi a primeira banda punk na Inglaterra a lançar um single (New Rose, 1976) e um álbum (Damned Damned Damned, 1977). Entre os entrevistados estão Duff McKagan (Guns N’ Roses), Steve Diggle (The Buzzcocks) e também Chrissie Hynde, famosa integrante do The Pretenders, que chegou a participar de uma banda com três integrantes do Damned.

Das muitas janelas abertas pelo Youtube, inegavelmente o humor tomou a frente na corrida pelo número de visualizações. Além do canal Porta dos Fundos, que é o representante de maior sucesso do gênero no Brasil, no humor mais engajado, coletivos LGBT se lançam no tratamento de questões que ainda são tabu: o Põe na Roda e o Canal das Bee levam ao público assuntos como homofobia, machismo e relações familiares com graça e leveza.

K N PU

NON SENSE

VIEWFINDER

O nonsense e o bizarro

...mas, se o seu tipo de humor é o nonsense, não se preocupe, você também vai encontrar: Jout Jout é uma menina de Niterói que faz vídeos contando causos e outras agruras cotidianas de maneira desconexa e desajeitada, mas com um timing de arrancar risadas de qualquer um. Em menos de um ano, seu canal “Jout Jout Prazer” tem mais de 50 mil inscrições e 3 milhões de visualizações. E, nos EUA, fitas de VHS não aproveitadas no programa America’s Funniest Home Videos, da rede de televisão ABC, foram “descobertas” pelos produtores do coletivo de WebTV Everything is Terrible. O resultado é Memory Hole: vídeos que combinam esdrúxulas cenas reais com trilhas musicais perturbadoras. Vale a pena conferir o canal oficial no site: memoryhole.biz.

Black is the color Talvez você não saiba, mas, além de um talento épico de formação musical clássica e ícone do jazz mundial, Nina Simone era também uma ativista do movimento Black Power. Da tentativa de conciliação entre a ambição artística e a luta pelos direitos civis, a diretora Liz Garbus leva às telas o documentário What happened, Miss Simone? (2015). No filme, diários e cartas de Nina se mesclam a imagens raras de shows, interpretações memoráveis de suas famosas canções, entrevistas com amigos e sua única filha, Lisa.


E por falar em Punk... A propósito...

O compositor musical João MacDowell, brasileiro radicado em Nova Iorque, vai voltar, em junho, à Ilha de Fårö, na Suécia. O motivo: uma residência artística na propriedade onde o cineasta Ingmar Bergman morou, a fim de terminar de compor uma ópera inspirada no filme Gritos e Sussurros (1972). O processo de criação e adaptação da obra vai virar o curtametragem Ilha, realizado pela dupla de cineastas Laís de Azeredo Rodrigues e Pedro Urano. Essa não é a primeira passagem de MacDowell pelo cinema nacional, já que ele protagoniza o documentário Parece que Existo (2011), de Mario Salimon, prêmio de melhor longa-metragem do 45º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, em 2012.

PUNK

Lords of the Sith, livro escrito por Paul S. Kemp, integrante da série “A Jornada para o Despertar da Força” e situado entre os eventos de A Vingança dos Sith e Star Wars Rebels, vai apresentar a primeira personagem gay de Star Wars. A Oficial Imperial Moff Mars, que cometeu graves erros e trabalha a maior parte do livro para prevenir um fracasso absoluto, é lésbica. O fato não é completamente novo no cânone, mas nunca havia sido tratado diretamente. “Se existe uma mensagem nisso é a de que Star Wars é tão diverso quanto a humanidade na vida real”, explicou a editora Shelly Shapiro ao site inglês IGN. Lords of the Sith chega às livrarias dos EUA em 28 de abril.

Mãos de Tesoura Emílio Domingos, diretor do premiado documentário independente A Batalha do Passinho (2013), está gravando seu novo filme, Deixa na régua!. O documentário mostra a realidade dos salões da periferia e das batalhas de cortes de cabelo, conhecida como “Batalha dos Barbeiros”. Entre os ases do salão, a cabeleireira Giliane é a única mulher escalada. Um corte “jogo rápido” leva uns 15 minutos, mas quem passa pelas mãos da moça no Mercado Popular Leonel de Moura Brizola, logo atrás da Central do Brasil, garante que é o sucesso da rapaziada.

Acredita na Peruca A Guiza Produções, que lançou o último longametragem de Fellipe Barbosa, Casa Grande, está levando a imbatível dupla de diretores de musicais, Claudio Botelho e Charles Möeller, dos palcos para a televisão. “Acredita na Peruca” traz Luiz Fernando Guimarães como Maria Eleonora Monteiro de Alcântara, uma ex-miss decadente que resolve abrir um salão de beleza. O elenco traz ainda Eucir de Souza, Gottsha, Fernanda Nobre, Claudia Missura e Miá Mello. Não vai faltar motivo para rir no Multishow, a partir de maio.

E atenção... Deixa na régua! está com captação aberta na Lei Rouanet e manda um alô aos patrocinadores: “Bóra chegar junto no corte zica dos mais bravos!”, parafraseando MC Tonzão, autor da música “Tá na Régua”, um dos hinos da “Batalha dos Barbeiros”.

RÉGUA

G R I T O S

Gritos, Sussurros e Música

O trailer de Montage of Heck (2015), documentário autorizado sobre a vida e obra de Kurt Cobain, dirigido por Brett Morgen e produzido pela filha de Kurt, Frances Bean, já está rolando na web. Sacudindo as últimas edições dos festivais de Sundance e de Berlim, tem sua estreia agendada na HBO gringa para 4 de maio. O filme também terá distribuição comercial nos cinemas (ainda sem qualquer previsão de data para o Brasil). Além disso, rendeu um livro e uma trilha sonora original, que contará com um acústico inédito de Cobain, com 12 minutos de duração.

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FAC-Sร MILE TABU ::: Tabu nยบ 44, ano IV, jan/90

TABU 25 anos atrรกs: os melhores filmes dos anos 80



por ANDRÉ DAHMER

CARTUM

André Dahmer é quadrinista, carioca, de 1974.

PLAYLIST

MARCELO JANOT

O

s anos 80 hoje são lembrados sobretudo pela estética kitsch nos figurinos e penteados dos jovens da época. Cores berrantes, Glitter Gel na cabeça, new wave nos ouvidos e as aventuras infantojuvenis de Joe Dante, John Hughes e Steven Spielberg bombando nas telas. Curtir a vida adoidado sem o fantasma da Guerra Fria por perto era o lema daquela geração. O playlist musical da época deve muito à febre dos videoclipes e ao cinema, que aos poucos absorvia essa linguagem. Se Easy Rider (1969) e American Graffiti (1973) popularizaram as trilhas em que as canções predominavam sobre o score instrumental, foi na década de 80 que as trilhas-coletâneas viraram febre. E serviram para popularizar artistas de circulação restrita a certos gêneros musicais, como o rap do Public Enemy em Faça a Coisa Certa (Do the Right Thing, 1988) ou a salsa de Celia

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80

Na Trilha dos Anos

Cruz em Totalmente Selvagem (Something Wild, 1986), do mesmo Jonathan Demme, que também fez o favor de apresentar ao mundo a banda Talking Heads no documentário Stop Making Sense (1984). Com músicas nas trilhas de Totalmente Selvagem, A Garota de Rosa Shoking (Pretty in Pink, 1986) e outros filmes, o New Order se tornou um dos símbolos desse período audiovisual. O mesmo vale para o Oingo Boingo (Mulher Nota 1000, A Última Festa de Solteiro etc.), grupo californiano de new wave que deixou como legado para o cinema o talento de seu líder Danny Elfman como compositor de scores. Mas os anos 80 serviram também para resgatar

pérolas do passado. “Twist and Shout”, dos Beatles, nunca mais foi a mesma depois da antológica cena da parada em Curtindo a Vida Adoidado (Ferris Bueller’s Day Off, 1986), assim como David Lynch ressuscitou o genial Roy Orbison ao incluir “In Dreams” na trilha de Veludo Azul (Blue Velvet, 1986). Foi no escuro da sala do Estação Botafogo que muita gente escutou Tom Waits pela primeira vez em Daunbailó (Down by Law, 1986), de Jim Jarmusch, e viajou com a guitarra de Ry Cooder em Paris, Texas (1984), de Wim Wenders. Trilhas que passaram a ser cultuadas e hoje fazem parte de nossa memória afetiva graças a um cinema tão generoso com os ouvidos como foi esse dos anos 80.

Marcelo Janot é crítico de cinema, especialista em trilhas sonoras.


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