A INTERNACIONALIZAÇÃO DA CULTURA NEGRA

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A INTERNACIONALIZAÇÃO DA CULTURA NEGRA UMA COMPARAÇÃO ENTRE JOVENS DE CLASSE BAIXA NO BRASIL E NA HOLANDA

Livio Sansone1 Tradução do inglês: Giselle Grecco Ferreira

RESUMO

Ao investigar e comparar as maneiras como os jovens negros de classe social baixa em Amsterdã e em Salvador buscam melhorar sua posição e status na sociedade, o autor observa semelhanças surpreendentes, bem como diferenças fundamentais. Propõe-se então a discutir se as características comuns devem ser interpretadas como uma resposta a condições sociais semelhantes ou como uma conseqüência de elementos culturais enraizados na condição negra no mundo todo, os quais estariam sendo fortalecidos pelos processos de globalização. Palavras-chave: etnicidade; cultura negra; mobilidade social; Salvador; Amsterdã. SUMMARY

In investigating and comparing the ways in which lower-class black youths in Amsterdam and Salvador attempt to improve their position and status within society, the author reveals unexpected similarities as well as striking differences between the two cases. The article proposes to discuss whether the shared characteristics should be interpreted as a response to similar social conditions or as a consequence of cultural elements rooted in the condition of being black anywhere in the world, elements which gain strength through the globalization process. Keywords: ethnicity; black culture; social mobility; Salvador; Amsterdam.

O s p e s q u i s a d o r e s n o r m a l m e n t e c o m p a r a m diferentes g r u p o s étnicos de u m a m e s m a s o c i e d a d e q u a n d o p r e t e n d e m d e t e r m i n a r se a cultura faz alguma diferença. D e s t a m a n e i r a , p r o c u r a m c o n d i ç õ e s e x t e r n a s c o n s t a n tes, e s c o l h e n d o g r u p o s c o m características d e classe s e m e l h a n t e s . Neste trabalho, n o e n t a n t o , analiso o " m e s m o " g r u p o , o u m e l h o r , dois g r u p o s q u e p o d e m ser c o n s i d e r a d o s p a r e c i d o s e m m u i t o s a s p e c t o s , e m dois países diferentes, e t e n t o c o m p r e e n d e r s u a s s e m e l h a n ç a s e diferenças. O principal é c o m o explicar as s e m e l h a n ç a s e até q u e p o n t o a cultura é um indicador viável p a r a interpretá-las. O s dois g r u p o s s e l e c i o n a d o s s ã o p o p u l a ç õ e s "negras" do Brasil e da H o l a n d a . É claro q u e " n e g r o " em um contexto o u país p o d e ser " p a r d o " o u até " b r a n c o " e m o u t r o . Refiro-me aqui c o m o "negras" à s p e s s o a s q u e , e m a l g u m c o n t e x t o específico, vejam a si m e s m a s e sejam vistas p o r e s t r a n h o s c o m o africanos ou de d e s c e n dência p a r c i a l m e n t e africana. P o r t a n t o , n ã o estou e x a t a m e n t e c o m p a r a n d o o m e s m o g r u p o é t n i c o e m d u a s situações, m a s p e s s o a s q u e s e MARÇO DE 2000

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(1) Devo muito às sugestões de Hans Vermeulen, Joel Perlmann, Fernando Rosa Ribeiro, Antony Spanakos, Tijno Venema, Edward Telles e Carlos Hasenbalg.


A INTERNACIONALIZAÇÃO DA CULTURA NEGRA identificam c o m o "negras" o u q u e t e n h a m sido definidas c o m o tais e m duas sociedades. A fim de avaliar a i m p o r t â n c i a d o s c o n t e x t o s regionais na interpretaç ã o d a s manifestações da cultura n e g r a e das relações raciais, s e m p e r d e r de vista o seu d e s e n v o l v i m e n t o global, e x a m i n o aqui d u a s cidades m u i t o diferentes, Salvador e Amsterdã. Estas c i d a d e s foram escolhidas p o r dois motivos: m i n h a p r ó p r i a e x p e r i ê n c i a de p e s q u i s a e o fato de diferenciaremse em termos de história étnica, t a m a n h o e t e n d ê n c i a s demográficas da p o p u l a ç ã o negra, assim c o m o do lugar q u e a etnicidade ou a cor de p e l e o c u p a m n o m e r c a d o d e trabalho. Nosso i n t e n t o a q u i é q u e s t i o n a r se há similaridades q u a n t o às maneiras c o m o os jovens n e g r o s de classe social baixa na H o l a n d a e no Brasil t e n t a m m e l h o r a r sua p o s i ç ã o e status na s o c i e d a d e . V e r e m o s , de fato, algumas s e m e l h a n ç a s s u r p r e e n d e n t e s , m a s t a m b é m a l g u m a s diferenças fundamentais. A s características c o m u n s d e v e m ser interpretadas c o m o u m a resposta a c o n d i ç õ e s regionais s e m e l h a n t e s o u c o m o u m a c o n s e q ü ê n cia d e e l e m e n t o s culturais e n r a i z a d o s n a c o n d i ç ã o n e g r a n o m u n d o todo? A p o p u l a ç ã o n e g r a é f r e q ü e n t e m e n t e descrita c o m o um g r u p o étnico transnacional f o r m a d o p e l a história d a escravidão, pela e x p e r i ê n c i a d a discriminação racial e, de a c o r d o c o m os autores afrocêntricos e muitos líderes n e g r o s , p e l o e n r a i z a m e n t o d e t o d a s a s variações d a experiência negra na "cultura africana" 2 . As s e m e l h a n ç a s culturais manifestadas em p o p u l a ç õ e s n e g r a s d e países diferentes s ã o c o n s e q ü ê n c i a d e p o s i ç õ e s d e classe a p r o x i m a d a m e n t e e q u i v a l e n t e s ( e s t a m o s l i d a n d o c o m p o p u l a ç õ e s q u e estão e m p é s s i m a s c o n d i ç õ e s sociais o u p e r t o disto) o u d e u m a formação étnica c o m u m — u m a c o n d i ç ã o a d v i n d a d o p a s s a d o africano e / ou da escravidão? Seriam a cultura e a etnicidade n e g r a s m u i t o antigas ou u m s u b p r o d u t o d o s p r o c e s s o s c o n t e m p o r â n e o s d e globalização? Q u e p a p e l a c o m u n i d a d e n e g r a d o s Estados U n i d o s d e s e m p e n h a n o d e s e n v o l v i m e n t o da cultura n e g r a global? É intrigante o s u c e s s o e c o n ô m i c o , ou sua falta, em alguns g r u p o s minoritários, c o n s t a t a d o p o r m e i o d o e s t u d o d o s r e l a c i o n a m e n t o s e n t r e cultura étnica, e t n i c i d a d e e p o s i ç ã o social. A partir do e s t u d o realizado n a s d u a s cidades, sugiro q u e o a m b i e n t e n o qual a s p e s s o a s n e g r a s c o n s t r ó e m estratégias d e sobrevivência, e s p e c i a l m e n t e n o â m b i t o d a atividade e c o n ô mica, resulta da c o m b i n a ç ã o de fatores "factuais" e "interpretativos". A estrutura demográfica da p o p u l a ç ã o é um e x e m p l o do primeiro fator, e e x e m p l o s d o s e g u n d o seriam a tradicional p r e s e n ç a / a u s ê n c i a d o n e g r o e m certos s e g m e n t o s e n i c h o s do m e r c a d o de trabalho e os c o n s e q ü e n t e s discursos q u e t o r n a m natural a diferença racial. C o m e ç o t r a ç a n d o a situação d a s p o p u l a ç õ e s n e g r a s em Salvador e Amsterdã e r e s u m i n d o os resultados da m i n h a p e s q u i s a c o m os jovens negros de classe baixa n a s d u a s cidades. O foco específico está no sistema d e o p o r t u n i d a d e s e estratificação étnica d o m e r c a d o d e trabalho, n o p a p e l do Estado no sistema de r e l a ç õ e s raciais, na a u t o - i m a g e m do n e g r o e na edificação d e estratégias d e sobrevivência. A p e s a r d e tocar e m a l g u m a s

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(2) Uma definição de cultura negra que pode ser válida no contexto de sistemas de relações raciais diversos é a seguinte: uma subcultura específica de pessoas de origem afro-americana dentro de um sistema social que enfatiza a cor da pele como um critério importante para diferenciar ou segregar as pessoas. A principal força unificadora da cultura negra é o senso de um passado comum como escravos e pessoas desprivilegiadas. A África é usada, com muita criatividade, como um "banco de símbolos". Outra característica específica da cultura negra é o seu alto grau de interdependência com a cultura urbana ocidental. Específica à cultura negra, principalmente nas suas formas contemporâneas, é a sua maneira de lidar com a aparência física. Conforme a terminologia aqui usada, a cultura negra no singular é um conceito taxonômico básico que se refere às características comuns na produção cultural de populações negras em contextos diferentes. "Culturas negras" refere-se ao lugar ou às variantes de subgrupos da cultura negra.


LIVIO SANSONE diferenças fundamentais nas histórias das duas populações, adotei uma abordagem sincrônica.

Salvador e Amsterdã

D e s d e a p r i m e i r a m e t a d e do s é c u l o XVI, Salvador e o R e c ô n c a v o têm sido u m a d a s principais c o n c e n t r a ç õ e s u r b a n a s de n e g r o s e m e s t i ç o s de p e l e escura do N o v o M u n d o — talvez a t é m e s m o a maior. I n s p i r a d o s pela b u s c a d e "africanismos" n o N o v o M u n d o o u d a "origem" d a cultura negra, m u i t o s a n t r o p ó l o g o s (Herskovits, 1941; Frazier, 1942; Pierson, 1942; Verger, 1957; Bastide, 1967) c o n s i d e r a m o R e c ô n c a v o u m a á r e a onde as características africanas t ê m sido f o r t e m e n t e m a n t i d a s . Salvador, situada e m u m a r e g i ã o q u e a l g u n s j á c h a m a r a m d e " m a r g e m sul d o Caribe", p o d e ser c h a m a d a de "Roma Negra", a capital da cultura n e g r a do país, t e n d o de l o n g e a m a i o r p o p u l a ç ã o n e g r a fora da África. A cultura afro-baiana t e m u m r e c o n h e c i m e n t o considerável, m e s m o p o r p a r t e d e instituições oficiais, m a s o s afro-brasileiros n ã o a g e m c o m o u m a c o m u n i dade étnica c o e s a ( n a f o r m a ç ã o d e b l o c o s eleitorais o u d e plataformas políticas, p o r e x e m p l o ) . D u r a n t e as d u a s últimas d é c a d a s , a cultura afrobrasileira t e m p a s s a d o p o r u m p r o c e s s o c h a m a d o p o r a l g u n s d e "reafricanização" (Risério, 1986; Bacelar, 1989; Agier, 1990 e 1992; S a n s o n e , 1993 e 1997), o q u e inclui u m a o s t e n t a ç ã o de s í m b o l o s a s s o c i a d o s às "raízes" africanas e m c e r t o s a s p e c t o s d a v i d a social, e s p e c i a l m e n t e n o s c a m p o s d o lazer e da mídia local. O C e n s o de 1991 registrou q u e n e g r o s e mestiços (pretos e pardos) constituem 8 0 % d o s h a b i t a n t e s d a Região Metropolitana d e Salvador, d e m o d o q u e a p o r c e n t a g e m de b r a n c o s é baixa q u a n d o c o m p a r a d a a outras regiões do país. Os três principais g r u p o s de c o r e s na região s ã o brancos (17,2%), pardos (67,4%) e pretos (15,0%). S ã o raros os n ã o - b r a n c o s na classe alta e eles t ê m p o u c a r e p r e s e n t a ç ã o na classe m é d i a . A d e s p e i t o da c o n c e n t r a ç ã o d a p o p u l a ç ã o n e g r a / m e s t i ç a n a s classes baixas, ela t e m vários s u b g r u p o s e a p r e s e n t a u m a v a r i e d a d e de estilos de vida e m a n e i r a s de relacionar-se c o m a e t n i c i d a d e n e g r a e c o m a cultura afro-baiana. E m b o r a o s n e g r o s e m e s t i ç o s estejam r e p r e s e n t a d o s e m t o d o s o s setores e c o n ô m i c o s e p o s i ç õ e s em Salvador, q u a n t o mais alta for a p o s i ç ã o social, m e n o r será o n ú m e r o de n e g r o s aí e n c o n t r a d o , e é p r o v á v e l q u e sejam identificados c o m o de p e l e mais clara. Historicamente, o t r a b a l h o p e s a d o e indesejável é a s s o c i a d o à cor de p e l e mais e s c u r a e c o m as características n e g r ó i d e s , e a c o r m a i s clara às p o s i ç õ e s administrativas e de escritório. A p e l e e s c u r a c o s t u m a t a m b é m estar associada ao t r a b a l h o rural, já q u e as p e s s o a s e s c u r a s c o n s t i t u e m 9 0 % da p o p u l a ç ã o n a s á r e a s rurais p r ó x i m a s a Salvador. Entretanto, d a d o q u e os pretos e s t ã o h i s t o r i c a m e n t e c o n c e n t r a d o s n a costa, a o p a s s o q u e o s m e s t i ç o s e s t ã o e m g r a n d e maioria n o interior d a Bahia, o s n ú m e r o s d o e s t a d o n ã o m o s t r a m u m a g r a n d e

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A INTERNACIONALIZAÇÃO DA CULTURA NEGRA r e p r e s e n t a ç ã o de pretos na agricultura. As m u l h e r e s pretas, em particular, s ã o m a c i ç a m e n t e r e p r e s e n t a d a s c o m o faxineiras, g a r ç o n e t e s e e m p r e g a d a s . Em m e n o r escala, os pretos t a m b é m e s t ã o s u p e r - r e p r e s e n t a d o s em t o d o s os setores da indústria manufatureira. M e s m o d e p o i s d a s conquistas significativas feitas d u r a n t e as d u a s últimas d é c a d a s , eles c o n t i n u a m t e n d o u m a r e p r e s e n t a ç ã o inferior n o serviço p ú b l i c o , e n s i n o e e n f e r m a g e m , b e m c o m o no setor p e t r o q u í m i c o . No serviço p ú b l i c o , a PNAD relaciona 1 1 , 1 % de pretos em 1996 e 9,6% em 1998 — o q u e m e r e c e a t e n ç ã o , c o n s i d e r a n d o s e q u e este setor d o m e r c a d o d e t r a b a l h o p e r d e u cerca d e u m terço d e s u a s posições d u r a n t e a última d é c a d a . N o Brasil o s p o b r e s t ê m p o u q u í s s i m a s o p ç õ e s , p o i s o s g r u p o s d e trabalhadores p o b r e s s e d e s e n v o l v e r a m n a a u s ê n c i a d e u m Estado d e b e m estar social. O m e r c a d o de t r a b a l h o regular — cuja "regularidade" seria n o r m a l m e n t e classificada c o m o "informal" d e a c o r d o c o m o s p a d r õ e s h o l a n d e s e s — n u n c a c o n s e g u i u a b s o r v e r m a i s q u e 5 0 % d o total d a m ã o - d e obra 3 . Nas estatísticas oficiais, os q u e fazem "biscate" ou t r a b a l h a m na e c o n o m i a informal n ã o s ã o contabilizados c o m o d e s e m p r e g a d o s . O t e r m o "biscate" n ã o t e m n e n h u m a c o n o t a ç ã o étnica e p o s s u i p o u c o o u n e n h u m estigma. Trata-se d a r e c o n h e c i d a atividade d e sobrevivência d a s g r a n d e s massas d e d e s e m p r e g a d o s o u s u b e m p r e g a d o s . N ã o existe t a m p o u c o u m termo especificamente n e g r o p a r a este tipo d e atividades 4 . Para m u i t o s jovens c o m p o u c a e s c o l a r i d a d e n o s c e n t r o s u r b a n o s — a maioria n e g r o s ou mestiços —, c o n t r a v e n ç õ e s p e q u e n a s , r o u b o s m e n o r e s e até o crime o r g a n i z a d o c o n s t i t u e m "alternativas" a n ã o fazer n a d a ou a e x e c u t a r trabalhos m a l - r e m u n e r a d o s , e u m n ú m e r o p e q u e n o , m a s crescente, recorre a o narcotráfico c o m o v e n d e d o r e s a m b u l a n t e s o u "soldados". T r a d i c i o n a l m e n t e , o s p r e t o s participam mais d o m e r c a d o d e trabalho d o q u e o s p a r d o s e m u i t o mais d o q u e o s b r a n c o s . Eles i n g r e s s a m n o mercado de trabalho muito jovens e saem dele c o m idade mais avançada. Isto se aplica t a n t o p a r a h o m e n s c o m o m u l h e r e s . Em c o m p a r a ç ã o c o m a Holanda, s ã o raros n o Brasil o s e s t e r e ó t i p o s racistas acerca d a s u p o s t a preguiça d o s n e g r o s — e m b o r a t e n h a s e d e s e n v o l v i d o u m discurso e m torno d a s u p o s t a "preguiça inata" d o s b a i a n o s , e m sua e s m a g a d o r a maioria negro-mestiços ( P i n h o , 1998). Ao contrário, as o b s e r v a ç õ e s e p i a d a s racistas em e x p r e s s õ e s da cultura p o p u l a r tais c o m o teatro folclórico, letras d e música e literatura d e c o r d e l c o s t u m a m retratar o s n e g r o s c o m o violentos, agressivos, a r d e n t e s e p r e s e p e i r o s ( c o m p o r t a n d o - s e c o m o n o vos-ricos). É m a i s o í n d i o q u e c o s t u m a ser retratado c o m o p r e g u i ç o s o . E m b o r a a cor da p e l e , n o r m a l m e n t e em conjunto c o m a classe, status e estilo de vida, seja um fator d e t e r m i n a n t e p a r a a p o s i ç ã o de u m a p e s s o a no m e r c a d o de t r a b a l h o brasileiro, na visão de muitos afro-brasileiros a maior barreira a ser u l t r a p a s s a d a é a e d u c a ç ã o o u , de um m o d o mais geral, a origem de classe baixa. E n q u a n t o acreditam q u e a cor p o s s a ser em g r a n d e parte m a n e j a d a , v ê e m a classe c o m o u m a barreira m u i t o mais rígida. Existem várias e x p l i c a ç õ e s p a r a q u e a t é brasileiros d e p e l e e s c u r a enfatizem tanto a classe. O q u e precisa ser mais investigado é o alto índice de

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(3) Ver Hasenbalg, Lima e Silva (1999) para uma pesquisa atualizada sobre a segmentação com relação às cores no mercado de trabalho brasileiro.

(4) No Brasil moderno, embora algumas comunidades negras rurais tenham mantido até hoje palavras com origem no banto, os negros não produziram nada próximo a um "jeito negro de falar português", um estilo que tanto lingüistas como leigos aceitassem como uma linguagem tipicamente negra. A existência de muitas variantes do português brasileiro com origem na região e classe é comumente aceita. Pode-se argumentar que tal ponto de vista esteja ligado a um enfoque — dominante no Brasil, até mesmo entre os sociolingüistas — que evita salientar as diferenças étnicas entre os brasileiros e prefere atribuir segmentação e estilos de vida diferentes à classe ou à exposição diferencial à modernidade e globalização.


LIVIO SANSONE participação d e s t e s brasileiros n o s m o v i m e n t o s d e p r o t e s t o c o m b a s e e m classe (sindicatos e m o v i m e n t o d o s sem-terra), às v e z e s c o m o lideranças. Talvez isto n o s ajude a c o m p r e e n d e r p o r q u e no Brasil, m u i t o mais do q u e nos Estados U n i d o s e na H o l a n d a , há u m a c o n s t a n t e o s m o s e entre as experiências sociais, estratégias de sobrevivência e os c o s t u m e s d a s classes baixas e da m a i o r p a r t e da p o p u l a ç ã o negra 5 . Na realidade, a participação d e n e g r o s c o m o m e m b r o s ativos e m cultos afro-brasileiros o u c o m o percussionistas em escolas de s a m b a é g e r a l m e n t e vista c o m o algo ligado a pessoas n e g r a s da "classe p o b r e " , e só r e c e n t e m e n t e os n e g r o s de classe média, c o m i d a d e e m geral a b a i x o d e 4 0 a n o s e nível d e e s c o l a r i d a d e universitário, c o m e ç a r a m a afirmar q u e a participação na cultura negra n ã o precisa estar associada à c o n d i ç ã o de classe. O s u c e s s o comercial de u m a série de n o v a s revistas sofisticadas, c o m o Raça, q u e t ê m c o m o público-alvo a p o p u l a ç ã o negra, s o b r e t u d o o s e g m e n t o c o m p o d e r aquisitivo, indica q u e u m n ú m e r o c r e s c e n t e d e n e g r o s s e s e n t e desconfortável c o m a s definições tradicionais de n e g r i t u d e associadas a p o b r e z a , falta de e d u c a ç ã o , c o n s u m o kitsch e atitudes p r é - m o d e r n a s . A evidência de classe e a c o r r e s p o n d e n t e minimização d a s diferenças de cor estão associadas a um sistema de classificação racial q u e p e r m i t e u m a considerável m a n i p u l a ç ã o individual da linhagem de cor. O Brasil é bastante c o n h e c i d o pela " a b u n d â n c i a lexical" (Harris, 1970) e o caráter relativo de sua classificação racial. A mesma p e s s o a n e g r a p o d e ser c h a m a d a p o r u m a v a r i e d a d e d e t e r m o s e m função d o c o n t e x t o , p o s i ç ã o , g ê n e r o , d a h o r a d o dia o u d o tipo d e atividade (lazer, trabalho ou família) (Sansone, 1996). Amsterdã é a principal c i d a d e e capital cultural de um país rico, o n d e a p o p u l a ç ã o n e g r a é a p e n a s u m a de muitas minorias p e q u e n a s e r e c é m chegadas. Em 1994, os afro-surinameses, os antilhanos h o l a n d e s e s e os africanos n e g r o s constituíam de 9% a 10% d o s 720.000 habitantes da c i d a d e . Em c o m p a r a ç ã o c o m Salvador — o n d e as relações entre n e g r o s e n ã o negros existem há séculos e fazem parte da estrutura e da s e g m e n t a ç ã o da cidade, e o n d e a i m i g r a ç ã o estrangeira t e m tido p o u c a relevância n a s últimas d é c a d a s —, A m s t e r d ã é u m a s o c i e d a d e aberta em t e r m o s étnicos. As relações interétnicas estão, de certo m o d o , ainda em formação, e a p o p u l a ç ã o n e g r a constitui u m a minoria étnica mais b e m definida do q u e a p o p u l a ç ã o afro-brasileira na Bahia. C o n c e n t r o - m e a q u i n o m a i o r g r u p o n e g r o d a cidade, o s crioulos surinameses 6 , e s p e c i a l m e n t e os jovens e adultos de classe baixa. As diferenças de classe e n t r e os crioulos e os antilhanos s ã o a c e n t u a d a s (Martens e Verweij, 1997). No m e r c a d o de trabalho e na s o c i e d a d e em geral, os crioulos e s t ã o situados e n t r e o h o l a n d ê s b r a n c o e g r u p o s , relativamente g r a n d e s , de antigos t r a b a l h a d o r e s turcos e m a r r o q u i n o s e seus d e s c e n d e n t e s . Esta p o s i ç ã o favorável vis-à-vis outros g r a n d e s g r u p o s d e imigrantes s e d e v e p r i n c i p a l m e n t e a o s u c e s s o relativo d a minoria d e crioulos, relativamente b e m integrada e m a l g u n s setores d o m e r c a d o d e trabalho, em especial no setor p ú b l i c o . O seu s u c e s s o é t e m p e r a d o p e l a marginalidade d o g r a n d e g r u p o d e p e s s o a s d e classe baixa e p o u c a

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(5) Telles (1994) descreveu a seguinte relação entre a pirâmide social e o mercado de trabalho no Brasil: a base da pirâmide é muito ampla e contém a maioria dos negros e mestiços, mas também a maioria dos trabalhadores brancos; o meio é estreito e formado mais por brancos; e o topo é mais estreito e quase que exclusivamente formado por brancos. Tal estratificação é praticamente o oposto do que ocorre nos Estados Unidos, o que nos ajuda a compreender a solidariedade de classe e a ausência relativa de animosidade étnica nas classes baixas brasileiras. A solidariedade inter-racial é forte entre os níveis mais baixos da pirâmide, ao passo que o racismo é mais acentuado nos escalões mais altos. Pode-se dizer que no Brasil a tendência de especialistas e leigos em interpretar os conflitos sociais com base na classe social, bem com uma forte influência neomarxista nas ciências sociais, podem ter impedido o desenvolvimento de uma política da identidade tal como a conhecemos nos Estados Unidos e em muitos países europeus. Mesmo que a etnicidade tenha sido ofuscada pela classe sob o ponto de vista nativo, não significa necessariamente que racismo e etnicidade não sejam forças significantes numa sociedade do ponto de vista do pesquisador.

(6) Um creool (no plural creolen) é uma pessoa surinamesa de descendência africana — pura ou mista.


A INTERNACIONALIZAÇÃO DA CULTURA NEGRA escolaridade. A g r a n d e maioria d o s crioulos j o v e n s q u e o b s e r v e i de 1981 a 1991, descritos mais a d i a n t e , p e r t e n c e à última categoria. Por d u a s d é c a d a s , o d e s e m p r e g o foi e x t r e m a m e n t e alto e n t r e os surinameses q u e i m i g r a r a m d e s d e m e a d o s d o s a n o s 1970 até o c o m e ç o d o s a n o s 1990 7 . Em 1992, o d e s e m p r e g o e n t r e os s u r i n a m e s e s na i d a d e de 18 a 30 a n o s c h e g o u a 50%, s u b i n d o p a r a 6 0 % em a l g u n s bairros. N o s últimos a n o s , a e c o n o m i a h o l a n d e s a p a s s o u p o r u m a relativa r e c u p e r a ç ã o e o d e s e m p r e g o diminuiu, m a s u m relatório r e c e n t e d e Martens e Verweij (1997) m o s t r o u q u e a p o p u l a ç ã o de s u r i n a m e s e s a i n d a é b a s t a n t e atingida p e l o d e s e m p r e g o e t e m m e n o s c o n d i ç õ e s d e s e beneficiar d a r e c u p e r a ç ã o geral d a e c o n o m i a . Muitos d o s crioulos d e s e m p r e g a d o s , assim c o m o a l g u n s d o s oficialm e n t e e m p r e g a d o s , o p e r a m na e c o n o m i a informal. A maioria d a s "alternativas" na e c o n o m i a informal e criminal a i n d a está associada a um g r u p o étnico específico, e m b o r a a c o n o t a ç ã o étnica seja mais f o r t e m e n t e p r e s e n t e n a s racionalizações e d i s c u r s o s circunjacentes às atividades informais do q u e na s u a p r ó p r i a prática ( S a n s o n e , 1992). Os crioulos se referem a tais práticas c o m o t e r m o s u r i n a m ê s - h o l a n d ê s "hossels". D e s d e a i m i g r a ç ã o e m massa, o s crioulos, s o b r e t u d o o s j o v e n s d e classe baixa, a d q u i r i r a m certa r e p u t a ç ã o n o m e r c a d o d e t r a b a l h o u r b a n o . São vistos c o m o p e r t e n c e n t e s a u m a categoria de difícil c o l o c a ç ã o , em c o n s e q ü ê n c i a d a falta d e qualificações técnicas, d e u m a ética d e t r a b a l h o "diferente" e u m a a t i t u d e "caprichosa" s o b r e possíveis trabalhos. Às v e z e s s ã o c o n s i d e r a d o s indisciplinados, agressivos e a r r o g a n t e s — c h e g a m atrasados a o t r a b a l h o n u m país o n d e s e e s p e r a a p o n t u a l i d a d e , r e c u s a m o r d e n s d o s s u p e r i o r e s , m a n t ê m expectativas t o t a l m e n t e irrealistas s o b r e o trabalho e e x i b e m p a r â m e t r o s d e c o n s u m o q u e , a l é m d e ostensivos, v ã o muito a l é m d e s u a s p o s s e s . O s crioulos, d e m u i t a s formas, m a n i f e s t a m tendência a c o n c o r d a r c o m e s t e tipo de o p i n i ã o . A g r a n d e maioria se a p r e s e n t a c o m o p r o f u n d a m e n t e diferente d o s h i n d u s t a n i s d o S u r i n a m e — descendentes de trabalhadores contratados c o m o colonos que lá chegaram h á mais d e u m s é c u l o . Eles d i z e m q u e o s h i n d u s t a n i s s ã o avaros, a d o r a m e c o n o m i z a r d i n h e i r o , n ã o c o n s e g u e m d a n ç a r c o m ginga e n ã o t ê m n e n h u m atrativo sexual. C o m p a r a m - s e a i n d a c o m o h o l a n d ê s b r a n c o — d o s q u a i s muitas v e z e s se a p r o x i m a m — e o u t r o s g r u p o s de imigrantes, c o m o os turcos e os m a r r o q u i n o s , e s u a a u t o p e r c e p ç ã o é, c u r i o s a m e n t e , m u i t o similar à m a n e i r a c o m o os h o l a n d e s e s b r a n c o s os v ê e m ( L e e m a n e Saharso, 1989) — u m a e s p é c i e de d e s c o n h e c i d o íntimo.

Os jovens negros de classe baixa em Salvador e em Amsterdã

Concentrar-me-ei agora em duas áreas da região da Grande Salvador: Caminho de Areia, um bairro de classe baixa e média-baixa na cidade de Salvador, e a cidade-satélite Camaçari, mais pobre e industrial. Ambas

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(7) Embora não seja possível fazer comparações precisas entre os anos com base nas estatísticas disponíveis, alguns estudos indicam as tendências durante o período. Em 1977, o desemprego era de 22% entre os surinameses e de 5% entre a população nativa branca (Gooskens e outros, 1979: 112). Em 1990, havia subido para 40,5% entre os surinameses e 16% entre a população nativa branca (Departamento de Estatísticas de Amsterdã, 1991: 30). As estatísticas oficiais geralmente não distinguem os crioulos dos outros surinameses.


LIVIO SANSONE prestam t e s t e m u n h o d a difícil s i t u a ç ã o d e u m m o d e r n o Terceiro M u n d o . A p o b r e z a a b s o l u t a está d e m ã o s d a d a s c o m u m s e n t i m e n t o d e p e r d a relativa. E l e m e n t o s da c h a m a d a " p o b r e z a m o d e r n a " c o m b i n a m - s e c o m a p o b r e z a "tradicional" d e u m país cuja distribuição d e r i q u e z a s é c o n s i d e rada u m a d a s p i o r e s d o m u n d o . O t r a b a l h o de c a m p o nestas d u a s áreas foi realizado e n t r e 1992 e 1994 8 . No q u e diz respeito ao m e r c a d o de trabalho, a situação era p a r e c i d a à da maioria d a s regiões brasileiras u r b a n a s de classe baixa. U m a minoria de adultos (30 a 60 a n o s ) m a n t i n h a e m p r e g o s estáveis — e m b o r a m u i t o s d e l e s no m e r c a d o informal — e, até certo p o n t o , sustentava u m a maioria de d e s e m p r e g a d o s , s u b e m p r e g a d o s , p e s s o a s inativas o u incapacitadas, p e n sionistas e crianças. O nível de e s c o l a r i d a d e d o s jovens (15 a 25 a n o s ) era consideravelmente mais e l e v a d o d o q u e o d e seus pais. Tal c o m o e m muitos outros países d o Terceiro M u n d o , e m e s m o n o q u e t a n g e à s minorias coloniais n o s países ocidentais, a i n c o r p o r a ç ã o via e d u c a ç ã o n a s últimas décadas foi mais eficiente p a r a as m u l h e r e s do q u e p a r a os h o m e n s . Muitas achavam difícil e n c o n t r a r o p a r c e i r o certo em um a m b i e n t e social restrito, e o grupo d e possíveis c a n d i d a t o s havia s e r e d u z i d o ainda m a i s e m c o n s e q ü ê n cia do alto índice de criminalidade e m o r t e s violentas e n t r e os jovens de pouca escolaridade. Muitos d e s t e s jovens se c o n s i d e r a v a m formados e c o m uma e d u c a ç ã o a d e q u a d a , u m a p e r c e p ç ã o reforçada p e l o o r g u l h o d o s pais com relação a o s d i p l o m a s d e s e u s filhos. N o e n t a n t o , esse nível d e escolaridade — r e a l m e n t e incrível em c o m p a r a ç ã o ao nível de seus pais — n ã o havia r e s u l t a d o e m u m a m e l h o r p o s i ç ã o n o m e r c a d o d e trabalho. Entre os fatores r e s p o n s á v e i s p o r esta situação havia o fato de q u e o nível de escolaridade n ã o estava c o r r e s p o n d e n d o à s exigências d o p r ó p r i o m e r c a d o d e trabalho. O s informantes r e c l a m a v a m q u e tanto eles c o m o muitos d e seus amigos e p a r e n t e s c o m d i p l o m a escolar a c a b a v a m t e n d o de aceitar trabalhos m a l - r e m u n e r a d o s q u e n ã o r e q u e r i a m qualificação especial. Para e n c o n t r a r u m e m p r e g o c o m o lixeiro, s e g u r a n ç a o u o p e r á r i o n u m a refinaria era necessário a g o r a u m d i p l o m a d e e n s i n o fundamental, e p a r a trabalhar n u m b a n c o o u c o m o funcionário p ú b l i c o , d i p l o m a d e terceiro grau. Ingressar e m tais o c u p a ç õ e s havia sido m u i t o mais fácil p a r a a g e r a ç ã o anterior, de m o d o q u e o s pais e s t a v a m certos d e q u e s e u s filhos t i n h a m f o r m a ç ã o suficiente para e n c o n t r a r u m t r a b a l h o a d e q u a d o , a o p a s s o q u e s e u s filhos sentiam-se t r e m e n d a m e n t e frustrados n a s s u a s expectativas. A l é m d o s conflitos familiares, esta situação desencorajava os jovens a avançar n o s seus e s t u d o s . Para aqueles q u e a i n d a e s t a v a m na escola havia o u t r o fator negativo: a q u a l i d a d e d o e n s i n o n a s escolas estaduais, s o b r e t u d o n o primeiro grau, era m u i t o baixa (a maioria d o s a l u n o s q u e o c o n c l u í r a m era q u a s e analfabeta). Muitas crianças e a d o l e s c e n t e s circulavam pelas ruas o dia t o d o ; iam à escola s o m e n t e d e v e z e m q u a n d o e n ã o p e r m a n e c i a m l á p o r mais q u e u m a o u d u a s horas p o r dia. A freqüência à escola estava d e i x a n d o de fazer p a r t e da s u a socialização, n ã o era s e q u e r u m e v e n t o previsto e m sua p r o g r a m a ç ã o semanal, n e m se afigurava essencial p a r a prepará-las p a r a a vida adulta e de trabalho (Willis, 1977).

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(8) Esta análise baseia-se no estudo "Cor, classe e modernidade na vida cotidiana de duas áreas da Bahia", que foi parte do programa de pesquisa da Fundação Ford "A cor da Bahia" na UFBa. O Conselho de Pesquisa Holandês para os Trópicos e o CNPq também forneceram apoio financeiro.


A INTERNACIONALIZAÇÃO DA CULTURA NEGRA A turma, a "galera", e um fator mais impessoal, a televisão, foram t o r n a n d o - s e a g e n t e s de socialização mais i m p o r t a n t e s do q u e a escola. As conversas das t u r m a s d u r a n t e muitas h o r a s fora d a escola giravam e m t o r n o de c o n s u m o , p a q u e r a e diversão. A crise da e d u c a ç ã o pública, iniciada há cerca d e vinte a n o s , resultará n a q u e l a situação r e s u m i d a n o dito p o p u l a r : "Os professores fingem q u e e n s i n a m e os a l u n o s fingem q u e a p r e n d e m " . Não é de admirar q u e a taxa de a b a n d o n o escolar fosse altíssima. O m o t i v o d o a b a n d o n o d a escola p o r p a r t e d o s pais era ó b v i o : trabalhar p a r a sustentar a família. No c a s o d o s jovens, as m o t i v a ç õ e s e r a m mais c o m p l e xas. T a n t o e m Salvador c o m o e m Camaçari, a p e n a s m e t a d e d a q u e l e s q u e já haviam a b a n d o n a d o a escola tinha c o m o m o t i v o a n e c e s s i d a d e de b u s c a r trabalho. A outra m e t a d e m e n c i o n a v a p r i n c i p a l m e n t e a falta de confiança na e d u c a ç ã o . A p o r c e n t a g e m q u e disse estar d e s e m p r e g a d a era i m p r e s s i o n a n t e : 44% em Salvador e 6 2 % em Camaçari, em 1993. Estes altos índices p r e c i s a m ser e x a m i n a d o s c o m mais c u i d a d o . O s jovens e m geral, incluindo-se aqueles c o m níveis de e s c o l a r i d a d e mais altos, c o s t u m a v a m fazer u m a clara distinção e n t r e t r a b a l h o formal e biscate, preferindo dizer q u e e s t a v a m d e s e m p r e g a d o s , m e s m o q u a n d o e n v o l v i d o s e m a l g u m a atividade e c o n ô mica informal. O t e r m o " d e s e m p r e g a d o " parecia c o n t e r m e n o s estigma p a r a eles do q u e p a r a s e u s pais e avós. Para eles, biscate era algo q u e faziam enquanto n ã o p o d i a m encontrar um trabalho a d e q u a d o . Quanto a seus pais, q u e e s t a v a m a c o s t u m a d o s a se referir a q u a l q u e r tipo de atividade e c o n ô m i c a informal c o m o "minha o c u p a ç ã o " , seria m u i t o m e n o s p r o v á v e l q u e se c o n s i d e r a s s e m d e s e m p r e g a d o s , e e s t a v a m mais satisfeitos c o m sua situação d e t r a b a l h o . N o bairro, e s t a v a m mais a c o s t u m a d o s d o q u e s e u s filhos a identificarem-se u n s a o s o u t r o s pelas suas " o c u p a ç õ e s " : o Zé pedreiro, o J o ã o e n c a n a d o r , a Maria lavadeira... Muitas garotas q u e g a n h a v a m a vida c o m o faxineiras ou lavadeiras diziam-se d e s e m p r e g a d a s p o r sentirem-se e n v e r g o n h a s c o m a associação a tal tipo de trabalho — p a r a elas isto n ã o era u m a " o c u p a ç ã o " . O s pais c o n s i d e r a v a m - s e m e l h o r e s d e vida d o q u e a g e r a ç ã o anterior, pois se a l i m e n t a v a m m e l h o r , desfrutavam de mais conforto em casa e tinham vida mais longa, e n q u a n t o o s mais jovens e s t a v a m m e n o s satisfeitos c o m o seu p a d r ã o de vida e d e s e n c a n t a d o s c o m as p o u c a s o p o r t u n i d a d e s no m e r c a d o de t r a b a l h o . Os jovens h a v i a m a p r e n d i d o , enfim, a acreditar na a s c e n s ã o social, n o "progresso", d o q u a l s e s e n t i a m excluídos. Sua frustração devia-se ao fato de m e d i r e m o s u c e s s o em relação à classe m é d i a , c o m a qual e s t a v a m mais familiarizados do q u e s e u s pais. N ã o c o n s e g u i a m enxergar o seu atual p a d r ã o de vida mais e l e v a d o e os p a d r õ e s mais m o d e r n o s d e trabalho, d i s s e m i n a d o s r a p i d a m e n t e n a s classes baixas d e s d e m e a d o s d o s a n o s 1970, c o m o u m a c o n s e q ü ê n c i a d o s u c e s s o relativo d e seus pais. Tanto e m Camaçari c o m o e m Salvador, a taxa d e participação n o m e r c a d o de t r a b a l h o crescia c o m a i d a d e . O fato de q u e a maioria d o s pais estava e m p r e g a d a , c h e g a n d o até a ter mais q u e u m e m p r e g o , a o p a s s o q u e

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LIVIO SANSONE a maioria d o s filhos t i n h a nível de e s c o l a r i d a d e m e l h o r m a s estava ainda d e s e m p r e g a d a , levava a o a b s u r d o d e q u e o s p r i m e i r o s t i n h a m u m p o u c o d e renda, m a s p o u c o t e m p o p a r a relaxar, e n q u a n t o o s últimos n ã o t i n h a m n e n h u m a r e n d a , m a s t e m p o o c i o s o d e sobra. O jovens, e m s u a maioria, tinham u m a atitude diferente c o m r e l a ç ã o a o trabalho: e s t a v a m e s p e r a n d o por u m s u p o s t o "trabalho a d e q u a d o " , m a s n ã o t i n h a m n e m a s qualificações manuais d e s e u s pais n e m o s certificados mais a v a n ç a d o s p a r a o b t e r o s "empregos m o d e r n o s " . E n q u a n t o e s p e r a v a m , n ã o aceitavam t r a b a l h o s malpagos e g e r a l m e n t e " i n d i g n o s " d i s p o n í v e i s na r e g i ã o p a r a a q u e l e s c o m pouca o u n e n h u m a qualificação. E m b o r a o s pais s e q u e i x a s s e m d a "preguiça" e "frescura" d o s filhos, a maioria d o s j o v e n s q u e e s t a v a m s e m trabalho parecia m e n o s i n c o m o d a d a e m d e p e n d e r d a escassa r e n d a d e s e u s pais d o q u e e m aceitar a l g u m t r a b a l h o "abaixo d o s e u nível" — algo q u e não c o r r e s p o n d e s s e à s e x p e c t a t i v a s criadas p e l a escola, p e l o s m e i o s d e comunicação de m a s s a e p o r s u a turma. N e m o s pais n e m o s filhos c o s t u m a v a m p r o c u r a r e m p r e g o e m setores considerados inacessíveis a p e s s o a s c o m p o u c a f o r m a ç ã o escolar ou a negros, em lugares "finos" c o m o r e s t a u r a n t e s e shopping centers. A g r a n d e diferença g e r a c i o n a l estava n o g r a n d e "respeito" q u e o s pais m a n i f e s t a v a m diante d e p e s s o a s ricas e / o u b r a n c a s , algo q u e o s filhos v i a m c o m o u m a perda d e prestígio: g e r a l m e n t e n ã o s a b i a m c o m o lidar c o m o "respeito" q u e e m p r e g a d o r e s , g e r e n t e s , chefes d e e q u i p e e c o n t r a m e s t r e s e s p e r a v a m d o s seus s u b a l t e r n o s ( o u d o s e m p r e g a d o s e m geral). Caso e m p r e g a d o s , o s jovens n ã o c o s t u m a v a m acatar as o r d e n s de s u p e r i o r e s e sentiam-se ofendidos c o m facilidade. O u t r a diferença interessante e n t r e a s g e r a ç õ e s era o tipo de válvula de e s c a p e u s a d a . T r a d i c i o n a l m e n t e , a g e r a ç ã o mais velha havia d a d o v a z ã o à s s u a s frustrações c o m r e l a ç ã o a o m e r c a d o d e trabalho p o r m e i o da prática religiosa. O c a n d o m b l é está r e p l e t o de práticas e técnicas q u e m a g i c a m e n t e i n v e r t e m a baixa c o n d i ç ã o de trabalho: a q u e l e s que s ã o criados d u r a n t e o dia p o d e m ser reis e r a i n h a s n a s c e r i m ô n i a s de c a n d o m b l é e a t é m e s m o "curar" s e u s p a t r õ e s , p o i s a i n d a é m u i t o c o m u m que u m a d o n a - d e - c a s a de classe m é d i a recorra à s u a e m p r e g a d a d o m é s t i c a para práticas m á g i c a s . Os m a i s j o v e n s s ã o mais laicizados ( S a n s o n e , 1993) e p o d e m m a n i p u l a r o s s í m b o l o s d o c a n d o m b l é p a r a reformular s u a identidade n e g r a , m a s d e f o r m a m u i t o m e n o s sistemática q u e s e u s pais, n o sentido d e n e g o c i a r a c o n d i ç ã o social, favores o u o b t e n ç ã o d e e m p r e g o s melhores. E m v e z d e n e g o c i a r c o m s e u s p a t r õ e s o u espíritos u m " e m p u r rão" para sair d a p o b r e z a , o s j o v e n s s i m p l e s m e n t e fingem n ã o ser p o b r e s . Na tentativa de e s c o n d e r a s u a p o s i ç ã o social d o s e s t r a n h o s , a c a b a m p o r consumir o s t e n s i v a m e n t e s í m b o l o s de p o s i ç ã o social a s s o c i a d o s à classe média e / o u à cultura j o v e m ( S a n s o n e , 1993). U m a m i n o r i a c r e s c e n t e d e j o v e n s p r o c u r a v a alternativas a o s t r a b a l h o s assalariados estáveis. A q u e l e s c o m m e l h o r nível d e e s c o l a r i d a d e f o r a m à s ruas v e n d e r m e r c a d o r i a s eletrônicas baratas o u p r o d u t o s d e b e l e z a contrab a n d e a d o s d o Paraguai, o u p a s s a r a m a s e d e d i c a r a o e m e r g e n t e m e r c a d o d e folclore b a i a n o p a r a turistas ( c o m o d a n ç a r i n a s , j o g a d o r e s d e c a p o e i r a o u

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A INTERNACIONALIZAÇÃO DA CULTURA NEGRA músicos). Um p e q u e n o g r u p o preferiu emigrar p a r a a E u r o p a ou América d o Norte. Para o s jovens c o m p o u c a o u n e n h u m a escolaridade, u m a "alternativa" p o d e r i a ser o crime leve — furto de bolsas, r o u b o n ã o p r e m e d i t a d o , tráfico de m a c o n h a . As "alternativas" p a r a as m e n i n a s e r a m o uso do corpo, charme e beleza (ou conhecimento de como produzir beleza) e o t r a b a l h o c o m o costureira, m a n i c u r a ou cabeleireira, ou a i n d a "agarrar u m h o m e m " — a q u e l e q u e d e m o n s t r a s s e s e u s s e n t i m e n t o s d a n d o lhes p r e s e n t e s e p a g a s s e as d e s p e s a s q u a n d o saíssem à noite. Elas desejavam u m h o m e m q u e d e m o n s t r a s s e "respeito" e n ã o fosse m u l h e r e n g o . Apesar da falta de d a d o s , há evidências de q u e a prostituição está a u m e n t a n d o . Assim c o m o n a maioria d o s países d o Terceiro M u n d o , n o Brasil a prostituição é m u i t o mais u m a estratégia d e s e s p e r a d a de sobrevivência do q u e u m a profissão. Vale a p e n a salientar q u e a maioria destas "alternativas" está r e l a c i o n a d a d e u m a forma o u d e outra a o u s o d o c o r p o (negro) e da beleza. À m e d i d a q u e a principal fonte de status d o s pais, sua p o s i ç ã o no m e r c a d o d e trabalho, tornava-se u m a b a s e c a d a v e z mais precária p a r a o status d e s e j a d o , os j o v e n s p a s s a r a m a d a r m a i s ênfase ao p o d e r aquisitivo — a l m e j a n d o u m p a d r ã o d e c o n s u m o impossível d e alcançar m e d i a n t e trabalhos c o n v e n c i o n a i s . Seus colegas p e r g u n t a v a m m u i t o mais " q u a n t o v o c ê ganha?" d o q u e " o q u e v o c ê faz p a r a g a n h a r dinheiro?", e a q u e l e q u e tentasse c o n t i n u a r n o m e s m o ofício d e seu pai seria c h a m a d o d e "otário". O status criado p e l o c o n s u m o é o s t e n t a d o p r i n c i p a l m e n t e no lazer p ú b l i c o , o q u e faz c o m q u e estes m o m e n t o s g a n h e m a t e n ç ã o especial, até m e s m o para os d e s e m p r e g a d o s ou s u b e m p r e g a d o s . C o m p a r a d o s à g e r a ç ã o a n t e rior, os jovens i n v e s t e m m e n o s t e m p o na família e acreditam m u i t o mais em m e l h o r a r a c o n d i ç ã o social de forma vertical e individual — o q u e é feito s e m o i n c ô m o d o d e e s t a b e l e c e r p r i m e i r o u m a b o a p o s i ç ã o d e n t r o d a classe operária, c o n f o r m e a maioria de s e u s pais havia t e n t a d o q u a n d o a industrialização n a r e g i ã o d e Salvador estava e m a n d a m e n t o . N o s bairros e s t u d a d o s , o n ú m e r o de jovens p r e p a r a d o s p a r a assumir t o d o tipo t r a b a l h o estava d i m i n u i n d o . T a m b é m diminuía o n ú m e r o d e m e n i n a s q u e preferiam e n c o n t r a r u m p a r c e i r o c o m u m t r a b a l h o h o n e s t o , m e s m o q u e m a l p a g o . A maioria d o s jovens d e s e m p r e g a d o s estava f a z e n d o biscate — um n ú m e r o c r e s c e n t e até preferia este tipo de atividade a um trabalho fixo m a s m a l - r e m u n e r a d o — e a p e n a s u m a minoria se envolvia c o m atividades criminais c o m o alternativa a um t r a b a l h o ou a um biscate. A m u d a n ç a c o n s t a n t e de e m p r e g o e os l o n g o s p e r í o d o s de inatividade eram, para m u i t o s , formas de e x p r e s s a r o s e u d e s c o n t e n t a m e n t o . P a s s e m o s agora p a r a a situação do j o v e m n e g r o de classe baixa em Amsterdã. O s d a d o s a q u i s ã o p r o v e n i e n t e s d e u m a p e s q u i s a qualitativa feita durante o p e r í o d o de 1981 a 1991 n o s bairros de West e Zuidoost 9 . A maioria d o s informantes já vivia na H o l a n d a há q u i n z e a n o s ou mais. No Suriname a maioria d o s pais d o s jovens havia p e r t e n c i d o a classes baixas u r b a n a s . Do g r u p o d e 7 5 informantes entrevistados, a p e n a s dezesseis t i n h a m e m p r e g o , 49 estavam d e s e m p r e g a d o s (a maioria já há mais de dois a n o s e alguns há

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(9) A pesquisa foi conduzida em três fases: 1981-82 (Vermeulen, 1984), 1983-84 (Sansone, 1986) e 1988-90 (Sansone, 1990). Entrevistou-se um total de 157 informantes com idade entre 14 e 37 anos, sendo 46 do sexo feminino. Mantive contatos superficiais com muitos outros jovens. Um grupo principal de 75 informantes foi entrevistado durante as três fases. Conheci a maioria deles num centro de treinamento para jovens surinameses com baixo grau de escolaridade, dentre os quais entrevistei 22 participantes em 1982. Durante 1983-84 e 1988-90 fiz pesquisa de campo em Amsterdã, nos bairros West e Zuidoost, para onde alguns dos principais informantes haviam se mudado temporariamente. Isto permitiu que eu gravasse as histórias de vida, dentre as quais quinze eram de mulheres. Ao escolher os informantes não procurei obter representação estatística, mas sim um perfil dos jovens crioulos de classe baixa em Amsterdã. Tentei, por exemplo, limitar o número daqueles que apresentassem um comportamento marginal premeditado, embora alguns deles acabassem desenvolvendo tal comportamento no decorrer da pesquisa.


LIVIO SANSONE sete anos), dois e s t a v a m p r e s o s e oito e s t u d a n d o ( n e n h u m em cursos diurnos). A p e n a s dois e r a m m u l h e r e s e t i n h a m e m p r e g o , e d o s q u a t o r z e q u e tinham filhos, d e z viviam de s a l á r i o - d e s e m p r e g o . D u r a n t e o p e r í o d o de d e z anos d a pesquisa, este g r u p o d e informantes m a n t e v e u m p a d r ã o n o q u a l uma p e q u e n a minoria tinha e m p r e g o estável e outra estava engajada em período integral em atividades da e c o n o m i a informal (bossels). A maioria vivia do s e g u r o social e alguns c o n s e g u i a m a l g u m a r e n d a extra c o m biscates. O s p o u c o s informantes c o m e m p r e g o estável c o s t u m a v a m s e isolar d o s parentes e a m i g o s d e s e m p r e g a d o s p o r m e d o d e s e r e m " p u x a d o s p a r a baixo". Para a maioria d o s informantes, no e n t a n t o , o trabalho em p e r í o d o integral e o d e s e m p r e g o p a s s i v o e r a m d u a s e x t r e m i d a d e s de u m a escala de possibilidades na q u a l havia a l g u m a m o b i l i d a d e . Além de familiarizados c o m o d e s e m p r e g o , esses j o v e n s crioulos, principalmente a q u e l e s c r e s c i d o s n a H o l a n d a , e s t a v a m c a d a v e z mais familiarizados c o m a s o c i e d a d e h o l a n d e s a . Isto significa q u e e s t a v a m em sintonia c o m a s expectativas d e c o n s u m o d o j o v e m b r a n c o h o l a n d ê s d e Amsterdã, p r i n c i p a l m e n t e o s q u e e s t a v a m "na m o d a " e c o m q u e m dividiam a s pistas d e d a n ç a . P o r m e i o d a mídia, e x p e r i m e n t a v a m i n d i r e t a m e n t e a s conquistas sociais e estilos de vida d o s n e g r o s no exterior, e s p e c i a l m e n t e nos Estados U n i d o s , o q u e influenciava suas expectativas c o m r e l a ç ã o ao c o n s u m o , ideal profissional, "respeito" (o status q u e eles a c r e d i t a v a m merecer) e c o m o alcançá-lo. Tais expectativas, q u e e r a m altas em relação ao seu b a i x o nível de e s c o l a r i d a d e , coexistiam c o m a " n o r m a l i d a d e " do d e s e m p r e g o em s e u p r ó p r i o m e i o . Isso influenciava o s e u c o m p r o m i s s o perante a e d u c a ç ã o e s u a s atitudes e c o m p o r t a m e n t o s c o m relação ao trabalho e ao t i p o de o c u p a ç ã o . Para a l g u n s p o d e ter sido a força propulsora d e u m a b u s c a c o n t í n u a e d e s e s p e r a d a d e alternativas a o trabalho assalariado estável. Tais alternativas p o d e r i a m o c o r r e r n o m u n d o d o e n t r e t e n i m e n t o , m a s t a m b é m n a e c o n o m i a informal o u criminal. As estratégias de sobrevivência d a s quais estes jovens crioulos dispun h a m p a r a c o n s e g u i r m o b i l i d a d e social o u "respeito" e r a m sustentadas p o r u m a ideologia específica. Os informantes diziam q u e a s u a marginalização estava acima de t u d o e historicamente enraizada no seu p a s s a d o s u r i n a m ê s crioulo e na n a t u r e z a crioula, ou às v e z e s na í n d o l e negra em geral. Hossels eram tipicamente s u r i n a m e s e s ; a importância de se divertir, ser m ã e e m a n t e r certos tipos de t r a b a l h o estava e n r a i z a d a na "mentalidade" crioula. A aversão ao status de t r a b a l h a d o r e s m a n u a i s t a m b é m tinha u m a o r i g e m histórica. C o m o no p a s s a d o , os n e g r o s ainda estavam s e n d o forçados a e x e c u t a r trabalhos q u e n ã o q u e r i a m o u d e q u e n ã o gostavam. Eles viam esta aversão c o m o u m a rejeição a o t r a b a l h o m o n ó t o n o , u m p r o d u t o d a resistência histórica d o s escravos ao t r a b a l h o na lavoura. Esta ideologia era mais forte e n t r e a minoria d o s hosselaars de rua. O q u e i m p o r t a v a e r a a q u a n t i d a d e de d i n h e i r o , e n ã o a fonte. O p o d e r aquisitivo era mais i m p o r t a n t e p a r a o hosselaar do q u e a p o s i ç ã o de trabalho ou a e s c o l a r i d a d e , e e l e n ã o distinguia entre t r a b a l h a d o r e d e s e m p r e g a d o , m a s e n t r e p e s s o a s ativas e inativas, "à-toa". O viciado

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A INTERNACIONALIZAÇÃO DA CULTURA NEGRA esfarrapado e b a r u l h e n t o n ã o era respeitável, e n ã o o traficante; n ã o o cafetão, mas a prostituta q u e era "suja". O cafetão dizia q u e fazia o q u e fazia p o r q u e o s n e g r o s n ã o t i n h a m o u t r o c a m i n h o p a r a o s u c e s s o . O q u e ele g a n h a v a se destinava e v e n t u a l m e n t e a a l g u m a b o a causa: ajudar a c o n s truir, n o Suriname, u m a casa p a r a sua m ã e o u u m n e g ó c i o respeitável. O seu hossel era t a m b é m u m a forma de p r o t e s t o contra a e x p l o r a ç ã o colonial do Suriname e a p r i v a ç ã o d o s n e g r o s na s o c i e d a d e h o l a n d e s a . N ã o estava, enfim, "trabalhando", m a s a p r o v e i t a n d o ao m á x i m o a vida. A p e s a r d e t o d a s essas tentativas d e explicar a s u a p r ó p r i a estratégia d e sobrevivência c o m o t i p i c a m e n t e crioula, a atitude d o s hosselaars c o m relação ao trabalho, os s e u s m é t o d o s e ideologias t i n h a m origens diferentes. O seu e n f o q u e era em p a r t e e n r a i z a d o n a s tradições e p a s s a d o social e cultural d o s crioulos de classe baixa no Suriname e em séculos de experiência de vida c o m instabilidade social. O status m u i t o b a i x o designad o a o t r a b a l h o m a n u a l m o n ó t o n o era p a r t e d e s t a tradição (Brana-Shute, 1978; S a n s o n e , 1992). As tradições crioulas t a m b é m incluíam certos hossels vindos do Suriname, tais c o m o a o r g a n i z a ç ã o de caixas (clubes de p o u p a n ç a ) o u d e festas comerciais. Mas a s estratégias d e sobrevivência d o s informantes e r a m t a m b é m r e s u l t a d o d e s u a s vidas n a H o l a n d a . Muitos hossels h a v i a m s i d o i n t r o d u z i d o s em diferentes tipos de o c u p a ç ã o p e l o s próprios h o l a n d e s e s b r a n c o s : t r a b a l h o s p o r b a i x o d o p a n o p a r a o s beneficiários de s e g u r o social, snorren (táxi pirata) e d r o g a s n a s ruas no bairro de Zeedijk já existiam a n t e s da imigração em m a s s a de s u r i n a m e s e s . Estratégias d e n e g o c i a ç ã o d e m e r c a d o r i a s r o u b a d a s foram c o n c e b i d a s p o r jovens marginais h o l a n d e s e s , q u e c o n h e c i a m n a s ruas, n a s instituições p a r a jovens ou, às vezes, na prisão, e s u a s atividades c o m serviço de s e x o p o r telefone e de a c o m p a n h a n t e s foram influenciadas p e l o penose, o s u b m u n do da c i d a d e . O u t r a influência era a ética antitrabalho d o s jovens b r a n c o s "alternativos", c o m o punks e squatters, q u e os crioulos c o n h e c i a m em lugares c o m o o s c e n t r o s d e c o m u n i d a d e p a r a jovens. Nos a n o s 1970, Biervliet (1975) já havia t r a ç a d o as s e m e l h a n ç a s e n t r e a subcultura crioula do hosselaar em A m s t e r d ã e as subculturas e x t r e m a m e n t e visíveis d o s q u e estavam d e s e m p r e g a d o s h á m u i t o t e m p o e d o s jovens "alternativos". D e u m m o d o geral, o s hosselaars n ã o foram i n o v a d o r e s n e m abriram n e n h u m "mercado d e o p o r t u n i d a d e s " : s i m p l e s m e n t e s e a p o s s a r a m d o s m é t o d o s j á existentes e m A m s t e r d ã e lhes d e r a m u m a n o v a e m b a l a g e m c o m cara surinamesa. Todos os informantes reagiram à discriminação do m e r c a d o de trabalho c r i a n d o s u a s p r ó p r i a s estratégias d e sobrevivência. Tais tentativas de e s c a p a r da d i s c r i m i n a ç ã o g e r a l m e n t e l e v a v a m à a u t o - e x c l u s ã o — e m b o r a p o r v e z e s o c o r r e s s e d e forma i n c o n s c i e n t e e s e m c a u s a r n e n h u m d a n o visível. A c o m b i n a ç ã o e n t r e a p o s i ç ã o marginal no m e r c a d o de trabalho e o fracasso na e c o n o m i a informal l e v o u m u i t o s d e l e s a concentrar-se mais n a s d i v e r s õ e s ( S a n s o n e , 1992), m a t e r n i d a d e e em hossels ilícitos do q u e na e s c o l a e no m e r c a d o de t r a b a l h o formal. O sucesso n u m e m p r e g o estável r e d u z i a o i n t e r e s s e e m alternativas d e rua,

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LIVIO SANSONE e o s u c e s s o c o m o hosselaar p o d i a diminuir o interesse na escola. A p o p u l a r i d a d e d e u m d o s e x t r e m o s d e s t a série contínua, e m p r e g o s estáveis e hossels ilícitos, variava de a c o r d o c o m as t e n d ê n c i a s de trabalho e fatores individuais. O t e m p o de d e s e m p r e g o era t a m b é m um fator, já q u e os vários a n o s de sobrevivência c o m o s e g u r o - d e s e m p r e g o os forçavam a adotar expectativas mais baixas ou m e s m o os d e i x a v a m m e n o s a t e n t o s a novas o p o r t u n i d a d e s . As tradições crioulas c o n t i n u a v a m a d e s e m p e n h a r um i m p o r t a n t e papel na m a n e i r a c o m o e x p r e s s a v a m o seu d e s c o n t e n t a m e n t o c o m a sua baixa p o s i ç ã o social e na criação de "soluções alternativas". No entanto, quanto mais t e m p o estes j o v e n s crioulos tivessem vivido na H o l a n d a , mais a sua c o n d i ç ã o de e m p r e g o e ética de trabalho era g o v e r n a d a p o r fatores intrínsecos à s o c i e d a d e h o l a n d e s a (Cross e Entzinger, 1988). Os obstáculos associados à m i g r a ç ã o h a v i a m se t o r n a d o m e n o s relevantes: o p r o c e s s o de exclusão do m e r c a d o de trabalho h o l a n d ê s , o d e s e n v o l v i m e n t o do setor informal e os efeitos do sistema de s e g u r o social é q u e p a r e c i a m tornar o trabalho fixo m e n o s atraente e os hossels cada vez mais atraentes. A sua auto-exclusão — falta de c a p a c i d a d e p a r a aproveitar m e i o s de desenvolvimento c o m o bolsas de e s t u d o — tornara-se c a d a vez mais s e m e l h a n t e a o s obstáculos sutis q u e frustram a m o b i l i d a d e social individual d a q u e l e s jovens b r a n c o s h o l a n d e s e s d e n o m i n a d o s "marginais". Havia, no e n t a n t o , d u a s diferenças importantes entre o crioulo de classe baixa e o j o v e m h o l a n d ê s b r a n c o . Primeiro, os jovens n e g r o s se sentiam diferentes, atribuindo este fato à cultura crioula e à consciência coletiva de um p a s s a d o de escravidão, colonialismo e privação social; segundo, a c h a v a m - s e discriminados pela maioria d e b r a n c o s c o m b a s e n a aparência física. Este racismo teve um p a p e l i m p o r t a n t e n ã o s o m e n t e na auto-imagem e n o p r o c e s s o d e criação d e u m a etnicidade negra, m a s também influenciou a m a n e i r a c o m o eles interpretavam os m e i o s de desenvolvimento disponíveis. Na sua vida cotidiana, a habilidosa d e m o n s tração da n e g r i t u d e era um t e m a central, assim c o m o o m e d o da discriminação racial e seus c o n s t a n t e s esforços de evitá-la. A fixação em setores e ocupações em q u e , de a c o r d o c o m a sua p e r c e p ç ã o , a n e g r i t u d e n ã o era tratada de forma tão negativa t o r n o u - s e parte da sua estratégia de sobrevivência, m a s ao m e s m o t e m p o alimentava sua auto-exclusão. E m b o r a a discriminação racial n ã o fosse o ú n i c o motivo de p e r m a n e c e r e m n u m a posição baixa na s o c i e d a d e , r e p r e s e n t o u um g r a n d e e m p e c i l h o p a r a o s e u desenvolvimento: p e l a e x c l u s ã o do jovem n e g r o e p o r p r o m o v e r a desilusão e o e s c a p i s m o .

Semelhanças e diferenças

É óbvio que os sistemas locais de oportunidades em Amsterdã e Salvador são muito diferentes. Embora a Holanda tenha obtido boa fama

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A INTERNACIONALIZAÇÃO DA CULTURA NEGRA pela f l e x i b i l i d a d e d o s e u m e r c a d o d e trabalho, tal p r o c e s s o s e d e u n u m c o n t e x t o trabalhista relativamente estável e rígido, c o m informalidade limitada e um sistema de b e m - e s t a r social b e m - a r t i c u l a d o . A o p ç ã o p a r a aqueles s e m qualificação p o d e ser o a u x í l i o - d e s e m p r e g o . Em Salvador, o p o b r e e o d e s e m p r e g a d o t ê m m e n o s o p ç õ e s . Portanto, a o p a s s o q u e p a r a muitos s u r i n a m e s e s h o l a n d e s e s a q u e s t ã o é c o n s e g u i r um e m p r e g o q u e p a g u e r a z o a v e l m e n t e m e l h o r d o q u e o s benefícios d e u m s e g u r o - d e s e m prego, a q u e s t ã o principal no Brasil é o b t e r e m a n t e r um e m p r e g o d e c e n t e . Os d a d o s oficiais s o b r e o d e s e m p r e g o e a participação da m ã o - d e - o b r a n o s dois países s ã o d e difícil c o m p a r a ç ã o , p o i s n ã o s ã o o b t i d o s d e a c o r d o c o m os m e s m o s p a d r õ e s e p o r q u e os d a d o s oficiais brasileiros n ã o c o r r e s p o n d e m à real taxa de d e s e m p r e g o 1 0 . Mas s a b e - s e q u e a reestruturação da e c o n o m i a n a última d é c a d a resultou n u m a s e m e l h a n ç a interessante e n t r e Amsterdã e Salvador: a falência do sistema de status b a s e a d o n u m a p o s i ç ã o n o m e r c a d o d e t r a b a l h o . Isto s e d e v e , e m g r a n d e parte, à d i m i n u i ç ã o d o p o d e r aquisitivo n o s tipos d e e m p r e g o s s e m qualificação q u e o s informantes p o d i a m conseguir. Tal t e n d ê n c i a é vista em s o c i e d a d e s q u e , a t u a l m e n t e , valorizam estilos d e vida q u e d ã o g r a n d e visibilidade a o c o n s u m o . A l é m disso, h á u m n ú m e r o c r e s c e n t e d e p e s s o a s p a r a q u e m u m t r a b a l h o fixo a c a b o u t o r n a n d o - s e u m a atividade d e fato estranha. T a n t o n o Brasil c o m o na H o l a n d a o a u m e n t o da especialização e a r e s s e g m e n t a ç ã o do m e r c a d o de t r a b a l h o e s t ã o a p a r do e s t r e i t a m e n t o da distância simbólica e n t r e as expectativas d e classes sociais diferentes e m t e r m o s d e q u a l i d a d e d e vida, p o d e r aquisitivo e q u a l i d a d e d o t r a b a l h o . U m a c o n s e q ü ê n c i a d e s s a d e m a n d a p o r u m a m o b i l i d a d e a s c e n d e n t e é q u e , n a p e r c e p ç ã o d a s classes mais baixas, muitos e m p r e g o s p a s s a r a m a ser c o n s i d e r a d o s indesejáveis ou "sujos". Estratégias s e m e l h a n t e s t a m b é m e s t ã o s e n d o o r g a n i z a d a s n o s dois países p a r a atingir m o b i l i d a d e social. O significado do funcionalismo público, d o exército e d a s c o m p a n h i a s estatais c o m o m e i o s d e m o b i l i d a d e social p a r a as p o p u l a ç õ e s n e g r a s é um f e n ô m e n o c o m u m em t o d o o Atlântico N e g r o — e as c o m p a n h i a s estatais s ã o de especial importância no Brasil (Silva, 1997; F i g u e i r e d o , 1998) —, p o s s i v e l m e n t e p o r q u e a cor t e m p o u c o p e s o n o s critérios de c o n t r a t a ç ã o e n a s perspectivas profissionais d e n t r o do setor p ú b l i c o . O u t r a s e m e l h a n ç a relativa e n t r e os dois países é a g r a n d e r e p r e s e n t a ç ã o d o s n e g r o s e m certas profissões n a á r e a d e lazer ( p r i n c i p a l m e n t e e s p o r t e s , d a n ç a e música p o p u l a r ) , e m b o r a a i m p o r t â n c i a desses profissionais n o s d o i s p a í s e s seja c o n s i d e r a v e l m e n t e diferente. U m a g r a n d e diferença está n o grau d e i n t e r v e n ç ã o estatal n a vida cotidiana d o p o b r e u r b a n o . T a n t o e m Salvador c o m o e m A m s t e r d ã a marginalidade relativa d o s n e g r o s d e g r a n d e s fatias d o s m e r c a d o s d e trabalho n ã o é um fato n o v o . S o b m u i t o s aspectos, os crioulos de classe baixa d e hoje, b e m c o m o o u t r o s g r u p o s d e "imigrantes-problema", s ã o vistos d e forma s e m e l h a n t e a o s "anti-sociais", u m g r u p o p r o b l e m á t i c o d e brancos e " p o b r e s indignos", retratados na literatura h o l a n d e s a p o p u l a r e erudita antes da II G u e r r a M u n d i a l (Regt, 1984; S w a a n , 1988). T a m b é m no Brasil, c o n s t r u ç õ e s culturais antigas s o b r e as patologias do " p o b r e i n d i g n o "

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(10) Por exemplo, o IBGE registra como trabalhador qualquer pessoa com mais de 10 anos que esteja envolvida com algum tipo de atividade na economia informal por pelo menos 20 horas por semana.


LIVIO SANSONE — das quais a g r a n d e maioria se aplicava originalmente à o n d a de novos pobres u r b a n o s q u e p r e c e d e r a m e seguiram a abolição da escravidão — ainda p a r e c e m co-prescrever interpretações atuais dirigidas aos p o b r e s urbanos, em g r a n d e parte negros e mestiços. Nos anos da Primeira República, logo a p ó s a Abolição, a p r e o c u p a ç ã o c o m o p o b r e limitava-se à implantação de m e d i d a s de "higiene social" e ao c o m b a t e de d o e n ç a s contagiosas (Stepan, 1991). Até a ditadura Vargas, nos anos 1930, a qualidade de vida, a vida em família e as relações e mistura entre g r u p o s étnicos do p o v o brasileiro desenvolveram-se em grande medida fora das operações do Estado, e talvez até o p o n d o - s e a elas. Dos anos 1940 até os anos 1970, as tentativas do Estado de melhorar as condições de vida e "organizar" a vida dos p o b r e s u r b a n o s foram intermitentes e n ã o tiveram como resultado um Estado de bem-estar social eficaz e abrangente. Nos últimos vinte anos, c o m a retração generalizada do Estado e os cortes n o s gastos públicos, as condições de vida nas cidades têm n o v a m e n t e se desenvolvido, n ã o obstante, c o m um relativo grau de autonomia. A começar pela (tardia) abolição da escravidão, o desinteresse p o r parte do Estado uniu-se à falta de q u a l q u e r estratégia q u e associasse a negritude ao pobre (indigno). Nos planos de ação pública, questões c o m o pobreza, doenças sociais e higiene pública n u n c a ficaram explicitamente associadas com "ser negro" — e m b o r a isto s e m p r e tenha ocorrido na prática do policiamento (Chalub, 1990). De forma generalizada, p o d e - s e dizer q u e no Brasil a exclusão social das pessoas escuras e a sua concentração entre os p o b r e s se deveram, em grande parte, à ausência do Estado, ao passo q u e na Holanda este fenômeno ocorreu apesar das medidas tomadas pelo Estado e da existência de um dos sistemas de bem-estar social mais desenvolvidos do m u n d o . Na Holanda, o Estado garante os direitos individuais e a satisfação de várias necessidades básicas, m e s m o para os pobres. De m o d o geral, a lei é cumprida. No Brasil, o indivíduo determina de forma dramática a e x e c u ç ã o da lei, o princípio geral do direito n ã o é tão eficiente e democrático c o m o na Holanda e o Estado é u m a m á q u i n a "neutralizável" mediante ações individuais. Esta relação individualizada c o m a lei e o Estado produziu grandes disparidades nas relações raciais e um processo de negociações injustas entre a p o p u l a ç ã o negra e o p o d e r e o Estado (DaMatta, 1987; Viotti da Costa, 1989; Fry, 1997). Nos últimos anos, o p a p e l do Estado na formação social retrocedeu nos dois países, ao passo q u e se desenvolveram os meios de comunicação de massa e a publicidade. Os não-brancos na Holanda, e m b o r a em número p r o p o r c i o n a l m e n t e menor, estão cada vez mais presentes nas representações da "holandesidade" pública, c o m o parte das avançadas estratégias mercadológicas e comerciais ou p o r q u e a publicidade passou a pintar um q u a d r o social alicerçado n u m multiculturalismo emergente. No Brasil, ao contrário, os negros estão representados em n ú m e r o muito menor na publicidade e n o s meios de comunicação de massa, principalmente nas telenovelas, e m b o r a mais negros estejam s e n d o vistos n o s

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A INTERNACIONALIZAÇÃO DA CULTURA NEGRA últimos a n o s e m p r o p a g a n d a s d e c o m p a n h i a s e serviços p ú b l i c o s o u semipúblicos. É possível q u e a p e q u e n a r e p r e s e n t a ç ã o d o s n e g r o s se d e v a à relativa falta de um d i s c u r s o multicultural de c o m o o Brasil d e v e s e r retratado p e l o m e r c a d o , o u a o fato d e o c o n s u m o p o p u l a r ser m u i t o limitado. A s estratégias m e r c a d o l ó g i c a s , p r i n c i p a l m e n t e p a r a a s m e r c a d o rias c o n s i d e r a d a s sofisticadas p e l o s p a d r õ e s regionais ( a l g u m a s d a s q u a i s c o n s i d e r a d a s c o m u n s n a H o l a n d a , c o m o a l i m e n t o p r o c e s s a d o , carros e c o n ô m i c o s o u telefones celulares), a i n d a d e s t i n a m - s e b a s i c a m e n t e a o s altos escalões da m e t a d e b r a n c a da p o p u l a ç ã o brasileira. Estratégias agressivas p a r a s e d u z i r n o v o s g r u p o s d e c o n s u m i d o r e s s ã o e m p r e g a d a s insuficientemente, e e m b o r a o n ú m e r o de afro-brasileiros de classe m é d i a esteja e m c o n s t a n t e c r e s c i m e n t o (Figueiredo, 1998), o s g r u p o s d e c o n s u midores definitivamente a i n d a n ã o s ã o constituídos c o m b a s e n a sua etnicidade. No q u e diz r e s p e i t o à c o n s t r u ç ã o da i d e n t i d a d e negra, tanto no Brasil c o m o na H o l a n d a a cultura n e g r a está c a d a v e z mais voltada p a r a o a s p e c t o estético, p o r m e i o d o u s o d e s í m b o l o s a s s o c i a d o s a o c o r p o n e g r o e a u m a suposta sensibilidade n e g r a . Para os mais h á b e i s , esses s í m b o l o s m e l h o r a m suas o p o r t u n i d a d e s d e a c e s s o à cultura j o v e m e a o q u e p a r e c e ser u m n o v o nicho s e n s u a l n a divisão d e t r a b a l h o d e n t r o d a m o d e r n a s o c i e d a d e ocidental u r b a n a . De p o r t a d o r de um estigma, o c o r p o n e g r o é transformad o n u m a vitrine d e u m a n o v a m a n e i r a , "natural" e p o r v e z e s hedonística, de relacionar-se c o m a m o d e r n i d a d e . Este e n f o q u e estético da cultura n e g r a é p a r t i c u l a r m e n t e e v i d e n t e no c a m p o da m ú s i c a p o p u l a r — a i n t e r a ç ã o entre o q u e é p e r c e b i d o c o m o música n e g r a e a música d o m i n a n t e ou "branca". Esta ê n f a s e h e d o n í s t i c a a u m e n t a o g r a u de "naturalidade" da construção d a diferença d a "raça negra". T a n t o e m Salvador c o m o e m Amsterdã este é u m p r o c e s s o q u e o p e r a t a n t o d e fora, p o r m e i o d a perspectiva s o b r e o p o v o n e g r o , c o m o d e d e n t r o , p o r m e i o d a a u t o - i m a g e m d e muitos n e g r o s , s o b r e t u d o certas lideranças n e g r a s q u e s u s t e n t a m q u e o s n e g r o s s ã o d e fato b i o l o g i c a m e n t e diferentes d o resto — m a i s p r ó x i m o s d a natureza, mais s e n s u a i s e sentimentais. A ênfase no c o n s u m o é u m a faca de d o i s g u m e s . O c o n s u m i s m o p o d e ser visto c o m o um m e i o de alcançar a cidadania e de participar na sociedade, m a s é t a m b é m u m c a m p o d i s p u t a d o n o q u a l s e e x p e r i ê n c i a o sucesso m a s t a m b é m a e x c l u s ã o e a frustração, já q u e s o m e n t e u m a minoria c o n s e g u e adquirir os s í m b o l o s de status do c o n s u m i s m o m o d e r n o . Entre os jovens n e g r o s de classe baixa, as i m a g e n s atraentes e globalizadas do sucesso c e n t r a d a s n a s i t u a ç ã o d o n e g r o n o s Estados Unidos, p r i n c i p a l m e n t e n o m u n d o d o e n t r e t e n i m e n t o e d o s e s p o r t e s profissionais, p o d e m t a n t o estimular u m s u p e r p r o g r e s s o e m certas fatias limitadas d o m e r c a d o d e trabalho c o m o d i s s e m i n a r frustração e m relação a o q u e é i n t e r p r e t a d o n o m u n d o t o d o c o m o s u b p r o g r e s s o ( C a s h m o r e , 1995). Nas d u a s c i d a d e s e x i s t e m vários g r u p o s q u e b u s c a m n o s n e g r o s d o s Estados Unidos t a n t o i n s p i r a ç ã o cultural c o m o u m p a r â m e t r o d e c o m p a r a ção. O m o d o c o m o a cultura n e g r a é construída n o s Estados U n i d o s é um

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LIVIO SANSONE ponto de c o m p a r a ç ã o n e c e s s á r i o p a r a o e s t u d o da cultura n e g r a em o u t r o s contextos. T o d a a série de "verdades" ( o u truísmos) étnicas a l t a m e n t e naturalizadas s o b r e a p e r s o n a l i d a d e do n e g r o m a s c u l i n o ou feminino, sobre a p o p u l a ç ã o n e g r a de classe baixa, s o b r e a preferência profissional dos negros, s o b r e a família negra, s o b r e a s e n s u a l i d a d e e s e n t i m e n t a l i s m o dos n e g r o s t o r n o u - s e p a r t e essencial da divisão étnico-cultural do trabalho nos Estados U n i d o s . Tais c o n s t r u ç õ e s estão f r e q ü e n t e m e n t e refletidas na publicidade, na mídia e n o s filmes. Em r a z ã o do p o d e r da i m a g e m n e g r a (e branca) d o s Estados U n i d o s n a s c o r r e n t e s culturais globais ( p o r e x e m p l o , n o m o d o c o m o o s n e g r o s s ã o r e p r e s e n t a d o s n a s c a m p a n h a s publicitárias de símbolos p o p u l a r e s de status, c o m o calçados esportivos), muitas dessas imagens s ã o r e c o n h e c i d a s n a atualidade n o m u n d o t o d o . Elas p e r m e i a m a imagem q u e s e t e m d o s n e g r o s , assim c o m o a sua auto-imagem, m e s m o n o s lugares mais distantes. Portanto, p a r e c e m p e r t i n e n t e s a l g u m a s c o n c l u s õ e s sobre a especificidade ou universalidade de certas características d o s sistemas de relações raciais n o s Estados U n i d o s e s o b r e a "americanização" de variantes regionais da cultura negra. N o s Estados Unidos, assim c o m o e m o u t r o s países d o Atlântico N e g r o , os negros estão r e p r e s e n t a d o s em m a i o r n ú m e r o entre os p o b r e s , o " p o b r e m o d e r n o " e a g e r a ç ã o s e m e m p r e g o . N ã o o b s t a n t e , a distribuição da p o p u l a ç ã o n e g r a na força de trabalho é específica, assim c o m o as estratégias dispostas p e l o s n e g r o s no m e r c a d o de trabalho — d e s d e a classe m é d i a até os "desclassificados". Os n e g r o s marginalizados n o s Estados Unidos tendem a ser mais antagonistas em relação às t e n d ê n c i a s p r e v a l e c e n t e s do que os n e g r o s b a i a n o s e, até certo p o n t o , os de Amsterdã. D u r a n t e as últimas d é c a d a s , os n e g r o s d o s Estados U n i d o s d e s e n v o l v e r a m estratégias de sobrevivência alicerçados no d i s t a n c i a m e n t o da classe m é d i a branca. Ocorre p r a t i c a m e n t e o o p o s t o no Brasil, o n d e os n e g r o s t ê m historicamente tentado seduzir e atrair a classe m é d i a b r a n c a . As e x p r e s s õ e s culturais afrobrasileiras, tais c o m o rituais religiosos ou criação musical, s ã o essencialmente abertas a o s b r a n c o s . Os crioulos da H o l a n d a , p r i n c i p a l m e n t e a geração mais jovem, p a s s a m p o r u m p r o c e s s o e m q u e estão, p o r assim dizer, " t o r n a n d o - s e n e g r o s " ( S a n s o n e , 1994). C o n f o r m e já a c o n t e c e u na Grã-Bretanha e na França, os crioulos estão redefinindo a sua i d e n t i d a d e étnica p o r m e i o da s u a e x p e r i ê n c i a de m i g r a ç ã o . A cultura n e g r a d o s Estados U n i d o s é u m a fonte de inspiração i m p o r t a n t e neste p r o c e s s o ; afinal de contas, esse país t e m sido parte do h o r i z o n t e cultural s u r i n a m ê s há décadas — p r i m e i r o no Suriname, o n d e significava a m o d e r n i d a d e s e m o colonialismo, e agora na H o l a n d a , o n d e a cultura negra d o s Estados U n i d o s oferece claras evidências de q u e m o d e r n i d a d e , c o n s u m o e n e g r i t u d e p o d e m a n d a r juntos. Em outras palavras, ser étnico n ã o significa necessariamente ser marginal. Q u a n d o os jovens n e g r o s "comprar cultura", e s c o l h e m entre novas correntes culturais globais, gênero e circunstâncias regionais.

em Amsterdã e Salvador s a e m p a r a os s í m b o l o s étnicos a p r e s e n t a d o s p e l a s q u e s ã o informados pela classe, i d a d e , Os s í m b o l o s globais n e g r o s s ã o tirados

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A INTERNACIONALIZAÇÃO DA CULTURA NEGRA p r i n c i p a l m e n t e d a s regiões do Atlântico N e g r o o n d e se fala inglês. C o m o sucesso m u n d i a l do r e g g a e e a p o p u l a r i d a d e do estilo rastafari, a J a m a i c a é u m a i m p o r t a n t e fonte de inspiração, j u n t a m e n t e c o m os Estados Unidos e o Reino U n i d o (Savishinsky, 1994; S a n s o n e , 1997 e 1998). Tais s í m b o l o s globais n e g r o s s ã o r e i n t e r p r e t a d o s seletivamente n o s c o n t e x t o s nacionais, e o q u e n ã o c o m b i n a c o m a p r ó p r i a situação do indivíduo é rejeitado. Embora os í c o n e s a s s o c i a d o s à m ú s i c a e aos estilos jovens t e n d a m a convergir n a m e s m a d i r e ç ã o ( a e x e m p l o d o q u e a c o n t e c e u c o m a parafernália do r e g g a e e do h i p h o p ) , as preferências musicais e as reinterpretações concretas de tais í c o n e s s ã o firmemente locais. Entre os jovens n e g r o s no Brasil, palavras em inglês c o m o "black", "funk" e "brother" g a n h a r a m significados locais m u i t o específicos q u e inferem associações m u i t o mais c o m o c o n s u m o , p r o s p e r i d a d e e h i p e r m o d e r n i d a d e do q u e c o m relações raciais p o l a r i z a d a s (Viana, 1988; Midlej e Silva, 1998; S a n s o n e , 1998). Em A m s t e r d ã e Salvador o r e l a c i o n a m e n t o c o m o universo de r e d e s negras de falantes do inglês é um tanto diferente. Em Amsterdã a p r o p o r ç ã o d e n e g r o s q u e p o d e c o n s u m i r m e r c a d o r i a s culturais e símbolos originários d o m u n d o d e fala inglesa é m u i t o m a i o r d o q u e e m Salvador, o n d e a g r a n d e maioria d a p o p u l a ç ã o n e g r a n ã o c o n s e g u e n e m s e q u e r suprir s u a s n e c e s sidades básicas, m u i t o m e n o s c o m p r a r CDs o u m o d a inspirada n o h i p h o p . Amsterdã está, ainda, m u i t o mais p r ó x i m a das correntes culturais o c i d e n tais. P o r o u t r o l a d o , os s í m b o l o s e artefatos afro-baianos t ê m sido fundamentais na c o n s t r u ç ã o da i m a g e m do Brasil no exterior e a música afrobaiana e outras formas culturais (tais c o m o a c a p o e i r a ) t ê m um lugar evidente na w o r l d m u s i c e e s t ã o t e n d o cada v e z mais r e p e r c u s s ã o n o s Estados U n i d o s e E u r o p a . Se Amsterdã é u m a c i d a d e de transmissão da cultura n e g r a internacional, um lugar o n d e a cultura é p r o c e s s a d a e "empacotada", e n t ã o Salvador é u m a c i d a d e de fonte — um local o n d e os "africanismos" s ã o p r o d u z i d o s e r e p r o d u z i d o s . O s m o l d e s r e s p o n s á v e i s p o r u m e n f o q u e estético d a cultura n e g r a são diferentes n a s d u a s c i d a d e s . Isto s e d e v e , e m primeiro lugar, à s diferentes tradições de i n c o r p o r a ç ã o da n e g r i t u d e ou do "ser b r a n c o " e diferentes histórias da m o r a l i d a d e sexual. Existe u m a relação m u i t o p r ó x i m a e n t r e a maneira c o m o os c o r p o s n e g r o s m a s c u l i n o s e femininos s ã o vistos n u m a s o c i e d a d e e a m a n e i r a c o m o s ã o u s a d o s na c o n s t r u ç ã o da e t n i c i d a d e e "diferença" n e g r a s . Salvador é u m a c i d a d e tropical o n d e a classe baixa e até g r a n d e p a r t e d a classe m é d i a t ê m u m a vida social m u i t o centrada n a rua. Ser branco, e n ã o n e g r o , é exótico. Os o l h o s azuis d e s p e r t a m um frenesi no sexo o p o s t o q u e se c o m p a r a à c h e g a d a das trancinhas de c a b e l o s "rasta" nas escolas h o l a n d e s a s d e classe b a i x a n a d é c a d a d e 1970. E m Salvador, muito mais d o q u e e m Amsterdã, o flerte a c o n t e c e e m p ú b l i c o . Ser u m b o m dançarino é visto c o m o u m a característica de t o d o s os b a i a n o s , e n ã o u m a qualidade específica do íntimo e s t r a n h o , o crioulo 1 1 . O s e g u n d o m o t i v o da diferenciação d o s m o d o s estéticos é a "visibilidade" diferenciada d o s jovens negros nas d u a s c i d a d e s . Em Amsterdã, o simples fato de a g r u p a r e m - s e n u m a esquina, falando alto, b e b e n d o cerveja o u c o m e n t a n d o s o b r e a s

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(11) É curioso que em alguns bairros freqüentados por turistas europeus a negritude seja "desempenhada" de maneira que me lembrava Amsterdã. Jovens atraentes, principalmente as mulheres, que desenvolveram uma estratégia de sobrevivência acompanhando turistas brancos durante suas férias na Bahia são chamados de "comedores de gringo" ("papagringo") ou "negros de carteirinha" por outros jovens negros.


LIVIO SANSONE garotas q u e p a s s a m , p o d e ajudar a t o r n a r u m g r u p o d e j o v e n s n e g r o s u m f e n ô m e n o "étnico" a o s o l h o s d o s n ã o - n e g r o s . Em tais casos, a n e g r i t u d e deles é a s s o c i a d a a um c o m p o r t a m e n t o c o n s i d e r a d o a l t a m e n t e sexual, grosseiro e a t é a m e a ç a d o r p e l o s p a d r õ e s vigentes. Em Salvador — o n d e ser negro significa p e r t e n c e r à classe baixa — o estigma da n e g r i t u d e n ã o é t ã o associado a o s j o v e n s n e g r o s q u e ficam p e r a m b u l a n d o p e l a s ruas p a r a exibir seu c o r p o n e g r o . Isto se d e v e ao fato de o c o r p o n e g r o ter estigma associado à p o b r e z a e ao t r a b a l h o p e s a d o ( a p a r ê n c i a n ã o s a u d á v e l , m a u s m o d o s , falta de d e n t e s , cicatrizes, calos, varizes, d o e n ç a s e ferimentos de pele) o u p o r q u e o i n d i v í d u o s e a p r e s e n t a c o m u m a p e s s o a i n d e c e n t e o u d e s e m p r e g a d a . No p a s s a d o , o malandro12 exibia c o m o r g u l h o t o d o s os atributos q u e d e m o n s t r a v a m q u e ele n ã o estava f a z e n d o n e n h u m t r a b a l h o pesado: u n h a s c u m p r i d a s , m ã o s b e m - c u i d a d a s , p e l e p e r f u m a d a , camisas i m a c u l a d a m e n t e b r a n c a s . O j o v e m malandro de hoje se diferencia d o s otários p o r m e i o da s u a r e i n t e r p r e t a ç ã o à m o d a funk da r o u p a de praia da Califórnia ( t o r n a d a m a i s acessível c o m as etiquetas de griffe falsificadas e c o n t r a b a n d e a d a s do P a r a g u a i ) . A polícia, q u e p e l o m e n o s n a s ruas é e s m a g a d o r a m e n t e n e g r a ou mestiça 1 3 , reforça a i m p o r t â n c i a d e s s e s sinais de diferenciação da classe baixa e negra. Até trinta a n o s atrás, n a s s u a s freqüentes rotas n o t u r n a s , eles teriam p r e n d i d o u m j o v e m s e m calos n a s mãos; hoje eles p r e n d e m a q u e l e s q u e v e s t e m r o u p a s d e praia "funky" muito caras. O f u n d a m e n t a l a q u i é se a e x c l u s ã o e a a u t o - e x c l u s ã o t ê m b a s e na etnicidade. T a n t o o s afro-brasileiros c o m o o s crioulos e m A m s t e r d ã p o d e m ser c o n s i d e r a d o s m i n o r i a s coloniais. C o m o m u i t o s o u t r o s a n t e s d e l e , q u e escreveram s o b r e escolas d o s Estados U n i d o s , O g b u (1978) m o s t r o u c o m o o s jovens d e classe baixa, e s p e c i a l m e n t e o s h o m e n s , d e minorias coloniais c o s t u m a m a d o t a r u m a a t i t u d e de resistência à e d u c a ç ã o formal e ao trabalho n ã o e s p e c i a l i z a d o . O principal m o t i v o d e s s e a n t a g o n i s m o a o s valores p r e v a l e c e n t e s , d e f e n d e O g b u , é q u e a s u a i n c o r p o r a ç ã o forçada no mercado de t r a b a l h o está a s s o c i a d a à s u a p e r c e p ç ã o p e r s p i c a z d o s limites das suas p o s s i b i l i d a d e s d e t r a b a l h o . C o m r e l a ç ã o a o s esforços p e s s o a i s , o s negros t r a d i c i o n a l m e n t e e v i t a m a c o m p e t i ç ã o direta c o m os b r a n c o s p o r m e d o d e represálias. O s limites d a s s u a s p o s s i b i l i d a d e s d e trabalho, e m v e z de estimulá-los a e s t u d a r mais, f r e q ü e n t e m e n t e a c a b a m p o r desencorajar qualquer e s t u d o . Atitudes s e m e l h a n t e s p o d i a m ser e n c o n t r a d a s e n t r e o s informantes n a s d u a s c i d a d e s . E m Salvador, n o e n t a n t o , a a u t o p e r c e p ç ã o d e exclusão n ã o existe e m t e r m o s d e n e g r o o u b r a n c o , n e m d e e t n i c i d a d e . L á a vitimização é e n t e n d i d a em t e r m o s d o s "fracos" e n ã o da c o r ou raça, e m b o r a os f e n ó t i p o s n e g r ó i d e s sejam p a r t e da c o n s t r u ç ã o de "fraqueza". A maioria d o s n e g r o s brasileiros d e classe baixa acredita f i r m e m e n t e q u e qualquer m o b i l i d a d e a s c e n d e n t e é r e s u l t a d o da c a p a c i d a d e e da o p o r t u n i dade d e i n t e g r a ç ã o j u n t o à principal c o r r e n t e d a s o c i e d a d e , q u e eles v ê e m c o m o "brasileiros" e n ã o "brancos". Os m e s m o s jovens n e g r o s brasileiros q u e evitam certos t r a b a l h o s p o r n ã o s e r e m "ideais" a r g u m e n t a m d e m a n e i r a q u e p o d e r i a p r o v o c a r p e r p l e x i d a d e e m m u i t o s d e n ó s : e m b o r a insistam q u e

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(12) Entre os crioulos de classe baixa no Suriname (Brana-Shute, 1978), e depois na Holanda, pode-se encontrar o personagem popular do wakaman (literalmente, "o homem que anda"). Sua habilidade em evitar trabalho trivial o torna muito semelhante ao malandro. O malandro e o wakaman, com seus estilos de vida hedonísticos e sua habilidade de esquivarem-se do trabalho monótono, foram figuras fundamentais na construção da atitude em relação ao trabalho dos informantes nas duas cidades. No Brasil, embora a maioria dos malandros seja negra, eles não são celebrados como personagens negros no samba e nos romances populares, mas sim como protótipos de um personagem nacional e da "brasileirice" popular. Pesquisas sobre o malandro resultaram em várias publicações (cf., por exemplo, DaMatta, 1979). (13) Não há disponibilidade dos números exatos sobre a cor dentro da polícia baiana. A título de referência, no estado do Rio de Janeiro, de acordo com as estatísticas oficiais do Departamento de Estatística da Polícia Militar, apenas cerca de 30% dos 28.000 homens do corpo policial identificam-se como brancos. Cerca de um terço deles relatam ter cabelo crespo, o que significa que na verdade são brancos da terra, mestiços de pele clara.


A INTERNACIONALIZAÇÃO DA CULTURA NEGRA tal a b s t e n ç ã o n ã o é c o n s e q ü ê n c i a do racismo, acreditam q u e se beneficiariam com amigos brancos e ao estabelecer "conexões" com pessoas brancas influentes. Em outras palavras, a e x p o s i ç ã o à discriminação racial e a exclusão social d o g r u p o e s t u d a d o e m Salvador, e suas r e a ç õ e s d e a u t o exclusão a estes fatores, n ã o foram a c o m p a n h a d a s de n e n h u m a atitude c o m b a s e na e t n i c i d a d e ( W a r r e n , 1997), e m b o r a eles de fato resistam à escola e ao t r a b a l h o m o n ó t o n o . C o n f o r m e a u t o r e s c o m o P e r l m a n n e Waldinger (1997) enfatizaram, m u i t o d e s s a atitude contracultural, e m v e z de estar e t n i c a m e n t e f u n d a m e n t a d a , é no geral típica d a s classes baixas, q u e t ê m historicamente se i n c l i n a d o a enfatizar a solidariedade de g r u p o e a d e s p r e z a r tentativas individuais de m o b i l i d a d e a s c e n d e n t e . Portanto, a auto-exclusão p o d e estar ligada a o q u e é c o m u m e n t e visto c o m o u m a atitude a n t a g ô n i c a c o m r e l a ç ã o à s o c i e d a d e branca, m a s p o d e t a m b é m estar ligada a u m a atitude de i n t e g r a ç ã o c o m relação à vida, c o m o v e m o s no Brasil. P o r q u e a e t n i c i d a d e n e g r a é m e n o s i m p o r t a n t e q u a n d o os brasileiros e x p l i c a m s u a s p r ó p r i a s p o s i ç õ e s sociais? Eu sugeriria q u a t r o m o t i v o s interrelacionados. P r i m e i r a m e n t e , a história d a s r e l a ç õ e s raciais no Brasil difere n o t a v e l m e n t e do S u r i n a m e e da H o l a n d a . O Brasil constitui a principal variante ibérica de c o l o n i a l i s m o e r e l a ç õ e s raciais (Hoetink, 1967), o q u e é caracterizado p o r c o l i g a ç õ e s e limites étnicos relativamente fluidos, u m a ênfase universalista s o b r e lei e Estado, a institucionalização de um g r u p o de m u l a t o s e a p r e s e n ç a do catolicismo r o m a n o c o m o religião p r e d o m i n a n t e . A Igreja católica " a c o l h e u " a l m a s t a n t o b r a n c a s c o m o n e g r a s , m a s ofereceu e s p a ç o n a s s u a s m a n i f e s t a ç õ e s p o p u l a r e s p a r a u m a i n t e r p r e t a ç ã o seccional da p a l a v r a de D e u s e da liturgia. Os e s c r a v o s e r a m o b r i g a d o s a converter-se a o catolicismo assim q u e c h e g a s s e m à s costas brasileiras. N o Suriname, em contraste, a c o n v e r s ã o à fé cristã era d e s e n c o r a j a d a , q u a n d o n ã o p r o i b i d a . D e p o i s da a b o l i ç ã o da escravidão, a e x p e r i ê n c i a religiosa p e r m a n e c e u diferente n o s dois países p o r q u e o p l u r a l i s m o era aceito no Suriname. Eu c o n c o r d a r i a , j u n t a m e n t e c o m H o e t i n k (1967), q u e a tradição religiosa foi em especial i m p o r t a n t e . O u n i v e r s a l i s m o da s o c i e d a d e afrolatina ( u m país, u m a lei, u m p o v o / r a ç a , u m a religião) t e v e sua o r i g e m n a tradição católica. A t r a d i ç ã o p r o t e s t a n t e , talvez p o r estar a c o s t u m a d a a ter igrejas diferentes p a r a p e s s o a s diferentes, coincidiu c o m , e até fortaleceu, u m a atitude liberal q u a n t o à d i v e r s i d a d e étnica na s o c i e d a d e . Hoje o Brasil é u m a r e p ú b l i c a federal c o m u m p o d e r central forte q u e o p e r a n u m c o n t e x t o d e d o g m a s e s t r i t a m e n t e universalistas, u m a história d e mistura racial, u m sistema d e classificação racial n ã o p o l a r i z a d o , u m a antiga tradição sincrética d o s c a m p o s de cultura e religião p o p u l a r e s , u m a tradição de intolerância c o m r e l a ç ã o à d i v e r s i d a d e étnica na vida política, u m a a v e r s ã o geral à e t n i c i d a d e e, mais r e c e n t e m e n t e , u m a c o n s i d e r á v e l dificuldade e m permitir q u a l q u e r multiculturalismo n a e d u c a ç ã o (Souza, 1997; S a n s o n e , 1998). No Brasil "heterofóbico" 1 4 o direito à d i v e r s i d a d e cultural é e f e t i v a m e n t e n e g a d o n a s variantes t a n t o intelectuais c o m o iletradas d o d i s c u r s o d e d e m o c r a c i a racial. A m b a s n ã o s ó a b o m i n a m o

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(14) No Brasil a integração dos migrantes e a miscigenação foram incentivadas, enquanto a formação de minorias étnicas foi desencorajada e até banida.


LIVIO SANSONE racismo c o m o t a m b é m p r e s t i g i a m a mistura biológica e cultural n o s rituais públicos de m i s c i g e n a ç ã o , em atividades de lazer e na religião p o p u l a r . Já a H o l a n d a é um p a í s o n d e o p o v o n e g r o é r e l a t i v a m e n t e p e q u e n o , u m a minoria m i g r a n t e r e c e n t e e cujos limites étnicos s ã o mais a c e n t u a d o s q u e no Brasil. O país t e m t a m b é m u m a t r a d i ç ã o c o n h e c i d a c o m o pilarização, q u e havia p r e v i a m e n t e d e t e r m i n a d o u m a s e g r e g a ç ã o d e a m p l a s c o n s e qüências d e n t r o d a s o r i e n t a ç õ e s políticas e religiosas. E m b o r a esta t r a d i ç ã o tenha s e e n f r a q u e c i d o c o n s i d e r a v e l m e n t e n a s últimas d é c a d a s , e s t a b e l e ceu a b a s e p a r a o s u r g i m e n t o — n u m a p r o p o r ç ã o m a i o r do q u e na maioria dos o u t r o s p a í s e s de imigrantes e u r o p e u s ( V e r m e u l e n , 1997) — de n o v a s escolas religiosas q u e a t e n d e m a o s d e s c e n d e n t e s d o s imigrantes, e m s u a grande maioria m u ç u l m a n o s . A e t n i c i d a d e e o direito à d i v e r s i d a d e cultural e religiosa s ã o e x a l t a d o s n a H o l a n d a c o m o "bens", c o m o a l g u m a s d a s melhores características d o país. J u n t a m e n t e c o m esta c e l e b r a ç ã o d e diversidade, p o r é m , a H o l a n d a registrou altos níveis de m i s c i g e n a ç ã o n a s últimas q u a t r o d é c a d a s , d e v i d o s s o b r e t u d o a u n i õ e s d e h o l a n d e s e s brancos c o m c i d a d ã o s h o l a n d e s e s d e o r i g e m i n d o n é s i a , crioula, a n t i l h a n a e moluca. E m b o r a o d e s e n v o l v i m e n t o de u m a i d e n t i d a d e étnica "misturada" seja a i n d a limitado, essa mistura étnica já está t r a z e n d o d e s o r d e m ao sistema de classificação étnica e s t a b e l e c i d o , o q u a l é f u n d a m e n t a d o na polaridade allochtoon/autochtoon ( a l i e n í g e n a / i n d í g e n a ) , ou b r a n c o / n ã o branco ( H e e l s u m , 1997) 1 5 . O s e g u n d o m o t i v o p a r a a ênfase diferencial na e t n i c i d a d e n e g r a é que a s divisões etnoculturais d e t r a b a l h o t ê m sido h i s t o r i c a m e n t e b e m diferentes n o s dois países. No Brasil, o discurso s o b r e t r a b a l h o p e s a d o é em grande p a r t e a s s o c i a d o ao c o r p o n e g r o ( d e s r e s p e i t a d o e m a l n u t r i d o ) . Na Holanda, u m a divisão étnica de t r a b a l h o n ã o surgiu até os a n o s 1960, e aí foram os t r a b a l h a d o r e s i m i g r a n t e s v i n d o s d o s p a í s e s m e d i t e r r â n e o s e n ã o os crioulos q u e ficaram a s s o c i a d o s ao t r a b a l h o p e s a d o e indesejável. A p o sição d o s crioulos n o m e r c a d o d e t r a b a l h o h o l a n d ê s é r e s u l t a d o d e dois fatores: a s e g m e n t a ç ã o e t n o c u l t u r a l d o m e r c a d o d e t r a b a l h o n o S u r i n a m e (Lier, 1971) e a i n c o r p o r a ç ã o p r o b l e m á t i c a d o s imigrantes s u r i n a m e s e s q u e chegaram à H o l a n d a d e p o i s de m e a d o s d o s a n o s 1960. No Brasil, a divisão etnocultural d o t r a b a l h o é f u n d a m e n t a d a n o l e g a d o d a escravidão, n a baixa p o s i ç ã o h i s t o r i c a m e n t e d e s i g n a d a ao t r a b a l h o m a n u a l e na distribuição e status de t r a b a l h o de a c o r d o c o m u m a c o m b i n a ç ã o de cor, classe, status e c o m p o r t a m e n t o . F u n c i o n a c o m o u m m o s a i c o mais d o q u e c o m o u m a polaridade. Terceiro, a maioria d o s n e g r o s brasileiros c o n s i d e r a - s e p a r t e da classe baixa — e m b o r a saiba q u e o r a c i s m o t a m b é m existe n a s classes baixas, p o r e x e m p l o n a e s c o l h a d e p a r c e i r o s p a r a s e casar (Teixeira, 1988). Eles a g e m da m e s m a m a n e i r a n a s a s s o c i a ç õ e s de bairro, n o s sindicatos e n o s s e u s p a d r õ e s eleitorais — n ã o h á d i s t i n t a m e n t e q u a s e n e n h u m v o t o o u p o n t o d e vista n e g r o n a s p e s q u i s a s d e o p i n i ã o (Datafolha, 1995). O s crioulos n a Holanda estão, na maioria, n u m a p o s i ç ã o de classe baixa, e s e n t e m - s e excluídos e e m d e s v a n t a g e m . Eles t ê m v o t a d o t r a d i c i o n a l m e n t e n o p a r t i d o

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(15) Embora menos do que no caso do Brasil, o sistema holandês de classificação racial é ambíguo e permite um grau de manipulação da identidade étnica. Há também uma defasagem entre as estatísticas oficiais e o uso diário. Um crioulo poderia ser um allochtoon nas estatísticas oficiais e um zwart, Surinamer, donker, Creool ou até o pejorativo neger na vida cotidiana.


A INTERNACIONALIZAÇÃO DA CULTURA NEGRA social-democrata, m a s n ã o p a r e c e m inclinados a identificar-se c o m a classe baixa nativa. N a v e r d a d e , m e u s informantes p a r e c i a m e n x e r g a r isto c o m o grosseiro e feio ( S a n s o n e , 1992). Q u a r t o , n o Brasil o s n e g r o s s ã o u m a p a r t e integral d a c o n s t r u ç ã o d a i m a g e m n a c i o n a l e da r e p r e s e n t a ç ã o p ú b l i c a de brasileirismo. A mídia n ã o c o s t u m a interpretar as t e n s õ e s sociais ou culturais em t e r m o s de "preto" e "branco", e m b o r a exista certa i n t e r p r e t a ç ã o racial da diferença, s o b r e t u d o na personificação q u e a mídia faz da p o b r e z a . C o m o c o n s e q ü ê n c i a , o a p e g o à " n a ç ã o " é mais forte na p o p u l a ç ã o n e g r a do Brasil do q u e na da H o l a n d a . Isto s e reflete, p o r e x e m p l o , n o fato d e o s g r a n d e s s u c e s s o s musicais n a c i o n a i s n ã o e s t a r e m ligados à cor — a e x a l t a ç ã o do brasileirismo freqüentemente se expressa p o r meio da música popular. Os símbolos holandeses nacionais são ainda predominantemente brancos — o q u e não significa n e c e s s a r i a m e n t e q u e o s crioulos n ã o p o s s a m r e c o n h e c ê - l o s c o m o s e n d o t a m b é m s e u s , c o m o é o c a s o da m o n a r q u i a . Na H o l a n d a , a n e g r i t u d e ainda simboliza o estrangeiro, e m b o r a isto p o s s a estar agora m u d a n d o . Muitos n e g r o s h o l a n d e s e s e n t e n d e m o s crioulos c o m o vassalos coloniais transplantados, ao p a s s o q u e a maioria d o s b r a n c o s brasileiros vê os afrobrasileiros c o m o d e s c e n d e n t e s d e escravos.

Conclusões

Vimos q u e há importantes diferenças entre a Holanda e o Brasil no q u e se refere à distribuição, posição e participação da p o p u l a ç ã o negra no mercado de trabalho. As d u a s p o p u l a ç õ e s t a m b é m diferem em termos de ética de trabalho, espírito e m p r e e n d e d o r , distribuição das p o p u l a ç õ e s urbana e rural, taxa de e m p r e g o em cargos de governo, grau de d e p e n d ê n cia da assistência social e "alternativas" disponíveis nas economias informal e criminal. Identificamos técnicas usadas n o s dois g r u p o s na luta para conquistar mobilidade social, e vimos os mecanismos p o r m e i o d o s quais eles se excluem daquelas posições no m e r c a d o de trabalho e na sociedade consideradas m e n o s apropriadas aos negros. Tais técnicas e mecanismos são m o l d a d o s pelos sistemas de o p o r t u n i d a d e s regionais. As estratégias de sobrevivência p o d e m incluir táticas contrastantes tais c o m o tentar seduzir os brancos ou manter distância deles. P o d e m enfatizar a miscigenação e as contribuições q u e os negros d ã o à cultura p o p u l a r ou até ao país, ou almejar a construção de u m a c o m u n i d a d e negra, enfatizando a sua etnicidade. Outras construções etnoculturais influenciadas p o r situações nacionais ou regionais específicas, e n ã o só p o r estereótipos ou imagens internacionais, e n v o l v e m o c o r p o e a sensualidade negros, o " h o m e m negro" e a sua "ameaça" à principal corrente de brancos, feminilidade negra como u m a força natural, uterina e mágica e a n o ç ã o de q u e os negros são melhores em dança ou esporte — n o ç õ e s identificáveis nas variantes negrofóbicas e negrofílicas (Gendron, 1990). Os casos de Amsterdã e

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LIVIO SANSONE Salvador m o s t r a m , assim, q u e n ã o h á estratégias d e sobrevivência "tipicamente negras". Se d e v e m o s atentar p a r a t o d a s essas diferenças, p r e c i s a m o s ainda refletir s o b r e u m a série de s e m e l h a n ç a s extraordinárias entre os jovens negros em a m b a s as c i d a d e s . As s e m e l h a n ç a s entre os contextos nacionais p o d e m ser tradicionais o u p r o d u t o d e u m a n o v a fase d e internacionalização. As misturas de classe e fatores étnicos p o d e m ser vistas em a m b o s . Isto levanta a q u e s t ã o s o b r e a real existência de u m a cultura negra universal. Se este for o caso, q u a l é s u a o r i g e m e significado? As s e m e l h a n ç a s na cultura n e g r a e etnicidade p a r a a l é m d o s limites nacionais p o d e m ser r e s u l t a d o d e u m a história d e trocas internacionais n o Atlântico Negro. O t e r m o "cultura negra" em si é resultado de d o m i n a ç ã o e de dramáticos c h o q u e s internacionais. A escravidão, d e p o r t a ç ã o e a sociedade colonial e s t a b e l e c e r a m as b a s e s para a internacionalização da condição n e g r a n o N o v o M u n d o . C o m o c o n s e q ü ê n c i a , o p o v o n e g r o costuma ser e n c o n t r a d o n o s mais baixos p a t a m a r e s sociais tanto n o Suriname c o m o no Brasil. O r a c i s m o p e r p e t r a d o pela p o p u l a ç ã o n ã o - n e g r a n o Brasil o u p e l a s práticas d o g o v e r n o colonial n o S u r i n a m e t e m codeterminado as o p o r t u n i d a d e s do p o v o n e g r o . Na fase histórica, os contatos internacionais vigentes e r a m p o u c o s e estabelecidos na maioria das v e z e s p o r cientistas (Herskovits, Verger, Bastide), viajantes ou missionários. Tais s e m e l h a n ç a s internacionais tradicionais t ê m sido ditadas pela história e p e l a e x p e r i ê n c i a da diáspora. Entretanto, nas últimas d é c a d a s foi dado um i m p u l s o à internacionalização da cultura negra pelas c o n d i ç õ e s estruturais c o n v e r g e n t e s e p e l a n o v a infra-estrutura técnica da era p ó s fordista, assim c o m o p o r n o v a s o p o r t u n i d a d e s d e criação cultural possibilitadas p e l o p r o c e s s o de globalização. A crise m u n d i a l das c o n d i ç õ e s de e m p r e g o d e u início a um p r o c e s s o de declínio geral na importância do status de t r a b a l h o p a r a a autodefinição individual e para a c o n s t r u ç ã o da personalidade, p r o m o v e n d o a o m e s m o t e m p o a centralidade d o c o n s u m i s mo. Esses f e n ô m e n o s globais t ê m s u r g i d o e m diversos países n a s últimas décadas, q u a s e q u e i n d e p e n d e n t e m e n t e d o estágio e c o n ô m i c o d o país, exista o u n ã o u m sistema d e assistência social articulado, exista o u n ã o u m a p o p u l a ç ã o negra. A situação d o s informantes d a s d u a s c i d a d e s a q u i comparadas a s s e m e l h a - s e à q u e l a d e classes baixas e m certas c o m u n i d a d e s de imigrantes n o s Estados U n i d o s (Gans, 1992), n a s c o m u n i d a d e s n e g r a s nas regiões n o r t e - a m e r i c a n a s d u r a m e n t e atingidas pela r e c e s s ã o (Wilson, 1987 e 1996) e n a s c o m u n i d a d e s de m i n e r a ç ã o tradicionais no Norte da Inglaterra d e p o i s d o s f e c h a m e n t o s das minas (Wight, 1987). A p e s q u i s a em A m s t e r d ã e em Salvador revelou q u e , e m b o r a incorporados n o m e r c a d o d e trabalho, m u i t o s indivíduos d a g e r a ç ã o anterior p e r m a n e c i a m relativamente distantes d o s valores e da cultura da classe m é d i a p r e d o m i n a n t e m e n t e "brancos". A sua d e s c e n d ê n c i a , em contraste, estava m u i t o mais p r ó x i m a destes valores, m a s m a c i ç a m e n t e d e s e m p r e g a d a o u e m p o s i ç ã o marginal n o m e r c a d o d e trabalho e m r a z ã o

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A INTERNACIONALIZAÇÃO DA CULTURA NEGRA da crescente falta de e m p r e g o s p a r a os t r a b a l h a d o r e s n ã o especializados e da natureza n ã o estimulante d o s e m p r e g o s disponíveis. A c o m b i n a ç ã o resultante d o s m e c a n i s m o s de e x c l u s ã o social c o m u m a ideologia e a ç õ e s q u e levam à a u t o - e x c l u s ã o t e m sido f r e q ü e n t e m e n t e o b s e r v a d a na juvent u d e de b a i x o status social e n t r e os n e g r o s de classe b a i x a d o s Estados Unidos ( O g b u , 1978; F r e e m a n e Holzer, 1986), os jovens ingleses de classe operária (Willis, 1977) e os traficantes de d r o g a latinos n o s Estados U n i d o s (Williams, 1989; Bourgois, 1995). T o d o s estes casos e n v o l v e m a a u t o exclusão d e m u i t o s d o s e m p r e g o s disponíveis, j u n t a m e n t e c o m o m e d o d o fracasso, o fatalismo e a p e r c e p ç ã o negativa d o s o b s t á c u l o s a p r e s e n t a d o s ao seu p r ó p r i o g r u p o . Tais características e s t ã o l a d o a l a d o c o m a resistência individual, d e s c o n t e n t a m e n t o passivo, b u s c a d e "alternativas" a o t r a b a l h o c o m u m e j u l g a m e n t o i n c o r r e t o d a s p r ó p r i a s habilidades d o indivíduo. O g r a n d e a b i s m o e n t r e as expectativas e as perspectivas profissionais é um p r o b l e m a p a r a v i r t u a l m e n t e t o d o s o s jovens c o m especialização insuficiente nas c i d a d e s ocidentais ( A n d e r s o n , 1990; Willis, 1986). O desvio da fonte d e status d o t r a b a l h o p a r a o c o n s u m o foi d a m e s m a forma o b s e r v a d o e m outras situações, tais c o m o e n t r e o s jovens b r a n c o s d e classe o p e r á r i a n a Inglaterra n o s a n o s 1970 (Hall e Jefferson, 1976; H e b d i g e , 1979) e j o v e n s de classe baixa no México u r b a n o c o n t e m p o r â n e o (Canclini, 1995). A l i n g u a g e m d o g o v e r n o , serviço social e e d u c a ç ã o , c o m ênfase n a igualdad e , j u n t a m e n t e c o m os efeitos da p r o p a g a n d a e mídia, inflaram as expectativas de c o n s u m o e d e s e n v o l v i m e n t o p e s s o a l d e s t e s j o v e n s (Gottfredson, 1981). A s p o p u l a ç õ e s n e g r a s t a n t o n o Brasil c o m o n a H o l a n d a e s t ã o historicamente s u p e r - r e p r e s e n t a d a s n a s classes p o b r e s e e s p e c i a l m e n t e na classe d o " p o b r e d e s m e r e c e d o r " (presidiários, prostitutas, j o v e n s p r o b l e máticos). N o Brasil o s n e g r o s e s t ã o t a m b é m d e s p r o p o r c i o n a l m e n t e p r e s e n tes n a classe operária. Isto explica p o r q u e , e m t o d a s a s s u a s variantes regionais, a cultura n e g r a t e m m u i t o em c o m u m c o m a cultura de classe baixa, às v e z e s c o m a "cultura de p o b r e z a " , e p o r q u e , no c a s o do Brasil, está t a m b é m i n t i m a m e n t e ligada à cultura da classe operária. Entretanto, se fôssemos s i m p l e s m e n t e igualar a cultura n e g r a c o m a cultura de classe baixa o u a l g u m a d e s u a s variantes, estaríamos c o m e t e n d o dois erros. P o r um lado, a cultura n e g r a é a m i ú d e c o m p r e e n d i d a c o m o antagônica a o s valores d o m i n a n t e s ( e s q u e c e - s e q u e m u i t o s n e g r o s q u e r e m s i m p l e s m e n t e ter seu d e v i d o lugar); p o r o u t r o , formas d e i d e n t i d a d e n e g r a t ê m freqüentemente e m e r g i d o e n t r e o s n e g r o s d e classe m é d i a e c o m m e l h o r nível d e escolaridade, m e s m o e n t r e a q u e l e s q u e n o r m a l m e n t e n ã o s e i n s e r e m n a "cultura n e g r a tradicional". H á ainda u m o u t r o fator q u e p r o d u z características c o m u n s n a s variantes regionais da cultura negra: a e x p e r i ê n c i a do racismo e da caracterização racial d o c o r p o n e g r o , m o t i v o d a ênfase d a d a p o r m u i t o s jovens negros às s u a s s u p o s t a s m u s i c a l i d a d e e s e n s u a l i d a d e inatas ou à sua força física, c o m a certeza de q u e isto será a m e l h o r m a n e i r a de o i n d i v í d u o c o m p o u c a s qualificações g a n h a r status— n ã o s o m e n t e na esfera do lazer,

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LIVIO SANSONE mas t a m b é m n o m e r c a d o d e trabalho. Muitos informantes tanto e m Amsterdã c o m o e m Salvador s u g e r i r a m q u e seria p o r m e i o d e u m a d e s s a s "qualidades n e g r a s " q u e eles c o n s e g u i r i a m finalmente v e n c e r n o " m u n d o do branco". As o r g a n i z a ç õ e s e líderes n e g r o s d a s d u a s c i d a d e s t ê m argumentado e m várias o c a s i õ e s q u e o s n e g r o s d e v e r i a m r e c e b e r u m lugar "cultural" especial n o m e r c a d o d e trabalho. P o u c a s pesquisas, entretanto, foram feitas s o b r e a d i m e n s ã o e possibilidade de tal e s p a ç o cultural ou sobre o potencial e c o n ô m i c o da indústria da cultura negra na s o c i e d a d e ocidental 1 6 ( e m b o r a o Brasil se qualifique s o m e n t e parcialmente p a r a o termo s u p e r a b r a n g e n t e "ocidental"). Pesquisas feitas n o s Estados Unidos e Grã-Bretanha c o s t u m a m ser p o l ê m i c a s c o m relação à p o t e n c i a l i d a d e da indústria da cultura n e g r a (Frazier, 1962; C a s h m o r e , 1995). O q u e é geralmente aceito, p o r é m , é q u e as qualificações intelectuais e técnicas s ã o uma fonte m u i t o m a i o r de status n u m a s o c i e d a d e tecnológica do q u e a musicalidade, s e n s u a l i d a d e e força física. A globalização da cultura u r b a n a ocidental criou n o v a s o p o r t u n i d a d e s para a distribuição m u n d i a l de vários símbolos associados à cultura negra, a maioria deles originada n o s países anglófonos. A globalização n ã o somente significa u m n o v o conjunto d e m e i o s técnicos d e c o m u n i c a ç ã o mais rápidos e p o d e r o s o s , m a s t a m b é m s u g e r e u m a fase na s o c i e d a d e moderna de u m a n o v a p a i x ã o p e l o exótico, o p u r o , o natural. Isto está ajudando a criar um e s p a ç o n o v o (comercial e não-comercial) p a r a a q u e l a s formas de cultura n e g r a mais relacionadas à cultura juvenil e à m a n i p u l a ç ã o estética do c o r p o n e g r o , assim c o m o as formas q u e enfatizam "pureza" e "tradição africana". Atualizando as antigas i m a g e n s da s u p o s t a naturalidade d o p o v o n e g r o , a s c o r r e n t e s globalizadas d e símbolos estão essencialmente ligando os jovens n e g r o s ao lazer, agilidade, h a b i l i d a d e sexual, musicalidade e naturalidade, c o n t r a p o n d o - o s ao m e s m o t e m p o c o m o trabalho, racionalidade e tecnologia m o d e r n a . Isto t e m g e r a d o um tipo de h e d o n i s mo n e g r o global m o d e r n o q u e é causa e c o n s e q ü ê n c i a da racialização. Entre os jovens n e g r o s , as diferenças de g e r a ç õ e s e a crise de e m p r e g o estão ensejando d e s c o n t e n t a m e n t o c o m a g e r a ç ã o d o s pais, c o m sua cultura e etnicidade negras, e i n c e n t i v a n d o a p o p u l a r i d a d e d e s t e h e d o n i s m o n e g r o como u m a i n t e r p r e t a ç ã o m o d e r n a d e u m estilo d e vida d o n e g r o d e classe baixa. E m b o r a a p o p u l a r i d a d e d e s s e h e d o n i s m o p o s s a variar, é c e r t a m e n t e um fator c a d a vez mais i m p o r t a n t e na escolha da carreira profissional e no processo d e a u t o - e x c l u s ã o d e certas z o n a s d o m e r c a d o d e trabalho e d a sociedade. Para u m n ú m e r o c r e s c e n t e d e jovens n e g r o s nas d u a s c i d a d e s a cor é a lente através da q u a l interpretam e e x p e r i m e n t a m sua p r ó p r i a posição de classe. A p r o p o r ç ã o c o m q u e a cor é vista c o m o u m a explicação d e s u c e s s o o u fracasso d e p e n d e d a p o p u l a r i d a d e d a "classe" c o m o u m a explicação alternativa. D e p e n d e t a m b é m das circunstâncias regionais, q u e são mais favoráveis à "cor" em A m s t e r d ã do q u e em Salvador. N ã o há n e n h u m a cultura e e t n i c i d a d e n e g r a s s e m racismo, haja vista a l e m b r a n ç a da o p r e s s ã o brutal do p a s s a d o e o c o n h e c i m e n t o das práticas atuais, mais sutis. P o r m e i o d o s p r o c e s s o s de internacionalização antigos e n o v o s , os

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(16) Um passo nesta direção é o livro editado por Sansone e Santos (1998), que contém vários artigos sobre os aspectos da indústria da cultura negra na Bahia.

Warren, Johnatan. "O fardo de não ser negro: uma análise comparativa do desempenho escolar de alunos afro-brasileiros e afro-norte-americanos". Estudos Afro-Asiáticos, nº 31, 1997. Williams, Thomas. The cocaine kids. The inside story of a teenage drug ring. Reading, Mass.: Addison-Wesley, 1989. Willis, Paul. Learning to labour. Why working-class kids get working-class jobs. Londres: Saxon House, 1977. ."Unemployment, the final inequality". British Journal of Sociology, 7(2), 1986. Wight, David. Hard workers and big spenders facing the bru. Understanding men's employment and consumption in a de-industrialized Scottish village. Edimburgo: PhD em ciências sociais, University of Edinburgh, 1987. Wilson, William J. The truly disadvantaged: the inner city, the underclass and public policy. Chicago: University of Chicago Press, 1987. . When work disappears. The world of the new urban poor. Nova York: Knopf, 1996!


A INTERNACIONALIZAÇÃO DA CULTURA NEGRA símbolos e discursos ligados a essa relação causai e n t r e cultura e e t n i c i d a d e negras e racismo e s t ã o ficando c a d a vez mais p a r e c i d o s u n s c o m os o u t r o s no m u n d o t o d o , e m b o r a as articulações políticas e os resultados regionais variem muito. P o d e - s e c o n c o r d a r c o m Gilroy (1993): a cultura negra, n a s s u a s formas tradicionais, foi u m a ramificação d a m o d e r n i d a d e , u m p r o c e s s o r e l a c i o n a d o c o m o colonialismo e o p o s t e r i o r p r o c e s s o de d e s c o l o n i z a ç ã o . A cultura n e g r a c o n f o r m e a c o n h e c e m o s hoje — c o m s u a s manifestações jovens e suas d i m e n s õ e s estéticas, sua mistura de p r o t e s t o e c o n f o r m i s m o — está ligada à g l o b a l i z a ç ã o e d e s c a r a c t e r i z a ç ã o territorial d a s etnicidades, a p e s a r das a l e g a ç õ e s feitas em muitas de suas formas culturais, c o m o o rastafarismo e o sistema religioso afro-brasileiro, de q u e sejam p r e s e r v a d o res d o s valores p r é - m o d e r n o s .

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NOVOS ESTUDOS N.° 56

Recebido para publicação em 25 de outubro de 1999. Livio Sansone é doutor em antropologia pela Universidade de Amsterdã, vice-diretor científico do Centro de Estudos Afro-Asiáticos da Universidade Cândido Mendes e professor visitante na Uerj.


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