Catálogo (Re) Conhecendo a Amazônia Negra

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apresenta | presents

CAIXA Cultural SĂŁo Paulo 7 de outubro a 17 de dezembro October 7 - December 17 2017


Since its creation in 1861, CAIXA has been actively present in the lives of millions of Brazilians through the concession of accessible loans and mortgages, the development of cities (through investment in infrastructure and water and sewerage projects) and the execution and management of Federal Government sponsored social projects.

Desde 1861, a CAIXA está presente na história de cada brasileiro, seja na concessão de crédito acessível, no financiamento habitacional, no desenvolvimento das cidades - por meio de investimento em projetos para infraestrutura e saneamento básico seja na execução e administração de programas sociais do Governo Federal.

As a financial institution, public policy body and strategic partner of the Brazilian State, our mission is to promote citizenship and the country’s sustainable development. CAIXA seeks to play an important role in people’s lives by helping to meet their demands and aspirations and participating in their achievements.

Como instituição financeira, agente de políticas públicas e parceira estratégica do Estado brasileiro, sua missão é atuar na promoção da cidadania e do desenvolvimento sustentável do país. A CAIXA vislumbra em sua atribuição a motivação para estar presente em todos os momentos da vida do brasileiro, aproximando-se das suas necessidades e anseios e participando das suas realizações.

In line with these commitments, CAIXA is a strong supporter of local culture through initiatives aimed at enabling access to all types of artistic and intellectual expressions and at contributing towards preserving Brazilian historical heritage. Through the activities held in CAIXA Cultural’s venues in seven Brazilian state capitals over the past decades, the institution has carried out projects aimed at the intellectual and cultural advancement of the population. These efforts have been complemented by the Caixa Gente Arteira’s Museum and Educational Program initiatives to educate the public and disseminate knowledge and artistic and cultural practices. Based on these premises, CAIXA is sponsoring the exhibition (Re)conhecendo a Amazônia Negra: Povos, costumes e influências negras na floresta ((Re)acknowledging the Black Amazon: peoples, customs and black influence in the forest). The exhibition is comprised of a series of photographs by Marcela Bonfim, resulting from visual anthropological research in the field. It is aimed at (re)acknowledging the legacy and contribution of the Amazon’s black population to the social and cultural fabrics of Rondônia state, to the Northern region of the country and to Brazil as a whole, and its key role in creating the mosaic that is the history of the Amazon. This project is in line with CAIXA’s cultural policy, social role and efforts towards democratizing access to its spaces and artistic programs. Initiatives such as this enable us to fulfill our institutional role of encouraging the spread and exchange of knowledge. They contribute to the appreciation of Brazilian identity and to strengthening, renewing and broadening the scope of art and local culture in Brazil.

Caixa Econômica Federal

Nesse contexto, nada mais natural que a CAIXA se aproxime da cultura nacional, propiciando acesso às mais variadas manifestações artísticas e intelectuais e contribuindo para a preservação do patrimônio histórico brasileiro. Por meio de sua programação nos espaços da CAIXA Cultural, presentes em sete capitais do país, a instituição vem, ao longo das últimas décadas, viabilizando projetos que promovem a formação intelectual e cultural da população. O Museu e o Programa Educativo Caixa Gente Arteira complementam esse esforço na formação de público e na difusão de saberes e práticas artísticas e culturais. É com essa conjuntura que a CAIXA patrocina a exposição (Re)conhecendo a Amazônia Negra: Povos, costumes e influências negras na floresta, série de fotografias de Marcela Bonfim, uma pesquisa no campo da antropologia visual em prol de (re)conhecimento do legado e contribuição da população negra amazônica na constituição do tecido sociocultural de Rondônia, da região norte e do Brasil e parte fundamental do mosaico que é a história da Amazônia. Com este projeto, a CAIXA ratifica a sua política cultural, a sua vocação social e o seu propósito de democratização do acesso aos seus espaços e à sua programação artística. Desta forma, ela cumpre seu papel institucional de estímulo à difusão e ao intercâmbio do conhecimento, contribuindo para a valorização da identidade brasileira bem como para o fortalecimento, a renovação e ampliação das artes no Brasil e da cultura do nosso povo.

Caixa Econômica Federal


Exposição / Exhibition (Re)conhecendo a Amazônia Negra Altar / Altar | Abertura / Inauguration | Sala Religiosidade / Religiosity Room CAIXA Cultural São Paulo, 2017 Fotos por / Photographs by: Tally Campos


Pictures brushed against the skin

Imagens a contra pele

The (Re)conhecendo a Amazônia Negra: Povos, Costumes e Influências Negras na Floresta exhibition, by Marcela Bonfim, inaugurates a photographic view of the Amazon and of African and Indigenous origin populations in Brazil.

A exposição (Re)conhecendo a Amazônia Negra: Povos, Costumes e Influências Negras na Floresta, de Marcela Bonfim, inaugura um novo olhar fotográfico acerca da Amazônia e das populações de ascendência africana e indígena no Brasil.

Marcela Bonfim was born in Jaú in the interior of São Paulo state and has a degree in Economics from PUC-SP. She embarked on her life as a photographer in 2010, after she moved to Rondônia to take her first job as an economist. While working with figures, she came into contact with the racial and social segregation that has dominated Brazil since the first explorers arrived in 1500.

Nascida em Jaú, cidade do interior de São Paulo, formada em Economia pela PUCSP, Marcela Bonfim iniciou sua jornada como fotógrafa em 2010 ao mudar-se para Rondônia para assumir seu primeiro trabalho como economista. O exercício da função voltada aos números trouxe à tona para ela a realidade da segregação racial e social em que o Brasil está submerso desde o primeiro encontro com seus exploradores em 1500.

While having to deal with the institutional racism that sought her professional disqualification, Marcela Bonfim also came across black culture where she had never dreamed of it: Afro-Indigenous people, Quilombolas (Brazilian maroons), migrants from the North and Northeast of Brazil, descendents of Barbadian immigrants, recently arrived Haitian immigrants. Indigenous Amazon was black too. Like Marcela Bonfim. She had come across an Amazon that was a nest for peoples who had never been photographed from a commercial, anthropological, journalistic or artistic viewpoint and who have therefore been excluded from studies about the diverse political, sociological and artistic aspects constructing Brazilian identity. The careful economist and lively intelligence turned her gaze to this unknown Amazon and its history, bodies and skins. A photographer emerged who has undertaken the task of telling the hidden history of these Amazonian peoples from a Benjaminian1 viewpoint, that is, of “brushing history against the grain”, or from a black viewpoint, “against the skin”. The mostly white male viewpoint has tended to push black visibility in Brazil into a role of subservient, highly sexualized, grotesque and caricatured beings. Marcela Bonfim has ignored these typifications and in order to establish a dialogue with each of her subjects has chosen to see their bodies as political manifestations that are being photographed from inside out.

Enquanto lidava com o racismo institucional que buscava desqualificá-la profissionalmente, Marcela descobriu negritude em pessoas que ela não ousou imaginar. Afro-indígenas, Remanescentes Quilombolas, Migrantes do Norte e do Nordeste, Descendentes Barbadianos, Recém-chegados Haitianos. A Amazônia indígena também era negra. Marcela também era negra. A descoberta de uma Amazônia que aninha povos que não são sujeitos dos projetos fotográficos e, portanto, não estão inseridos nos estudos das diversas facetas políticas, sociológicas e artísticas de construção da identidade nacional brasileira, fez com que a economista atenta e de inteligência ativa voltasse os olhos para essa Amazônia e para sua história, seus corpos, suas peles. Surge assim a fotógrafa para contar a história oculta desses povos amazônicos, por uma perspectiva Benjaminiana1, a contrapelo, ou, numa perspectiva escurecida, a contra pele. A visibilidade de negrxs no Brasil, quando desenhada pelo ponto de vista masculino branco, de maneira geral, colocou-xs no papel da subserviência, da sexualidade extremada, da personagem grotesca e caricata. Marcela Bonfim ignora tais tipificações e lança seu olhar a partir da presença do seu corpo que se reconhece político para dar início ao diálogo com cada um dos seus retratados, pois fotografa de dentro para fora. Fotografa conversando com sua ancestralidade e sua história.

Her photographs are also a simultaneous dialogue with her own ancestrality and history, having made her aware that she also represents the quintessence of the other – for she is the other. She has established a dialogue with this and photographs in the certainty that she is a black woman whose body can be anywhere she chooses it to be.

A fotógrafa agora sabe que representa a quintessência do outro, é a outra. E dialoga com isso. Fotografa a partir da certeza de que é uma mulher negra e que tem um corpo que pode estar em todo e qualquer lugar que ela decidir.

1 Walter Benjamim: “brushing history against the grain” – Nova Historiografia

1 Da expressão “escovar a história a contrapelo”, ou seja, do ponto de vista dos vencidos. Cf.: BENJAMIN, Walter. Civilização e barbárie. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.


(Re)conhecendo a Amazônia is a militant project that has been included in a global political manifesto by non-white people of various origins and sexual orientations. It proposes a critical reflection of all the subjects set out by its participants - anthropologists, artists, historians, philosophers, educators, campaigners - who are not afraid to be producers of knowledge, culture and art. This political form of resistance is the result of physical experiences felt since the earliest and not always sweet childhood of everyone who has been stigmatized because of their origin, ethnicity/race, gender and religion and who has been identified as the Other – also commonly known as primitive, savage and exotic. The stereotypes and typifications attributed to black and indigenous peoples no longer fool anyone. Our skin shrugs them off. The photography of Marcela Bonfim affirms and celebrates how we are impermeable to these stereotypes, with the political presence of black corporealities and skins and their many shades. The photographic production of Marcela Bonfim broadens the concept and practice of visual anthropology. Her contribution to this area of knowledge is still immeasurable. Marcela Bonfim is a storyteller anthropologist. Beyond discovering that she is unafraid of being the Other, the Female Other, she celebrates each of these moments through hands that weave the arrival of the Divine or of the Guaporé boy, for whom walking on water would be no big deal as he runs and celebrates life with movement. She celebrates through photos that require black and white here and color there. This is a counter-narrative to the discourses that have presented histories desired by Brazil’s economic and political elites. Marcela Bonfim’s portraits should be included in books on the history of photography and on Brazilian geography, alongside (and in some cases replacing) drawings, illustrations and pictures by foreign travelers and by Brazilian photographers and artists. This could be a way to grant visibility to black peoples, customs and influences in the Brazilian Amazon.

(Re)conhecendo a Amazônia é um projeto militante inserido em uma espécie de manifesto político de amplitude global protagonizado por pessoas não brancas, das mais diversificadas origens e orientações sexuais e que apresenta ao mundo uma reflexão crítica acerca de todo e qualquer assunto sobre os quais desejam abordar. São antropólogxs, artistxs, historiadorxs, filósofxs, educadorxs, militantes. São aquelxs que não temem assumir o papel de produtorxs de conhecimento, cultura, arte. Trata-se de uma força política de resistência iniciada a partir da experiência física desde a mais tenra, terna e nem sempre delicada infância, de cada pessoa estigmatizada por sua origem, etnia/raça, gênero, religião e identificada como o Outro, vulgo primitivo, vulgo selvagem, vulgo exótico. Vivemos um tempo em que os estereótipos e tipificações atribuídas aos negros e indígenas não colam mais, não aderem mais à nossa pele. A fotografia de Marcela Bonfim afirma e celebra nossa impermeabilidade em relação a tais estereótipos com a presença política das corporeidades e das peles negras em seus vários matizes. A produção fotográfica de Marcela Bonfim amplia a concepção e a prática de antropologia visual. Sua colaboração para essa área do conhecimento é ainda imensurável. Marcela é uma antropóloga contadora de histórias. Muito além do encontro consigo mesma sem temer ser o Outro, a Outra, ela celebra cada um desses momentos, por meio das mãos que tecem a chegada do Divino ou do menino do Guaporé, para quem andar sobre as águas seria pouco, ele corre e festeja, com movimento, a vida. Ela celebra com fotos que ora se pedem Preto no Branco, ora se pedem cor.

Mônica Cardim

Por ser uma contranarrativa dos discursos que apresentaram histórias desejadas1 pelas elites econômicas e políticas do Brasil, os retratos feitos por Bonfim devem ser introduzidos nas páginas dos livros de História da Fotografia, e também nos livros de História e de Geografia do Brasil, ladeando e, em alguns casos, substituindo as gravuras, ilustrações e fotografias de viajantes estrangeiros, bem como de fotógrafos e artistas brasileiros, utilizadas para tornar visíveis povos, costumes e influências negras do Brasil Amazônico.

Photographer and educator, with a Master’s Degree in Art from PGEHA/USP. She has been working with the representation of black people in Brazil and her research has focused on identity, ancestrality, memory and emotional ties, as well as on the relationship between visual representation and power.

Mônica Cardim Fotógrafa, educadora e mestre em artes pela PGEHA/USP com produção sobre a representação de pessoas negras no Brasil. Identidade, ancestralidade, memória e afetos constituem a essência de sua pesquisa, bem como a relação existente entre representação visual e poder.

1 Revista O Cruzeiro: COSTA, Helouise. Palco da história desejada: o retrato do Brasil por Jean Manzon. In www.scribd.com


The importance of (ac)knowledge(ment) of black people and their Color ranges

A importância do (re)conhecimento do negro e do seu gradiente de Cor

The black Color of slaves has been used since the 16th century to delimit spaces and roles in Brazilian society. Color is a determining instrument that is nearly always one of “superiority” or “inferiority”. In Brazil, during more than 300 years of slavery, this degradation guaranteed the almost total dehumanization of Black people.

A Cor negra dos escravos, desde o século 16, vem sendo usada para delimitar espaços e papéis na sociedade brasileira. Sendo a Cor um instrumento determinante quase sempre da “superioridade” ou “inferioridade”. No Brasil, essa inferiorização garantiu, por mais de trezentos anos de escravidão, a quase total desumanização do negro.

The Color invention turned into the first encounter that black people had with themselves. That black people had with white. That black people had with standards of beauty. That black people had with their black roles – whether in the telenovela or on the slave ship – shaped by history, represented to this day by “the master’s house and the slaves’ quarters”. Ever since then, the black body has been denied the freedom to be human when being born, when growing up and when aging.

A invenção da Cor passou a ser o primeiro encontro do negro com ele mesmo. Do negro com o branco. Do negro com os padrões estéticos. Do negro com seus papéis de negro - seja na novela ou nos porões dos navios negreiros - plasmados pela história, representados por “Casas grandes & Senzalas” até os dias atuais. Desde então, o corpo negro tem negado o seu direito à liberdade de ser humano ao nascer, crescer e envelhecer.

The history of Brazil may have taught us to appreciate coffee, but it has also taught us to reject the hands that have harvested and prepared the drink that made the country into an industrial State. And even before this, it was black hands that made Brazil into a country.

Se a história do Brasil nos ensinou a apreciar o café, nos ensinou também a rejeitar as mãos da colheita e do preparo da bebida que tornou o país um Estado industrial. Antes disso, a mão negra transformou o Brasil em um país.

The hegemony of whiteness has been established as standard. Society has therefore developed amid stigmas of image - with more than 70% of the Brazilian population being black or brown (self-declaring according to a mere factor of Color) – and living a complex process of acceptance and denial.

A hegemonia da brancura foi estabelecida como padrão. Assim, a sociedade vem se desenvolvendo em meio aos estigmas da imagem - com mais de 70% da população brasileira dividida entre entre pretos e pardos (autodeclarados por um mero fator de Cor) - e vivenciando um processo complexo de assunção e negação.

The identity of the black peoples in Brazil has been supplanted by the establishment of whitened standards of beauty (accentuated as of the first whitening process with the start of immigration in the post-abolition period).

A identidade dos povos negros no Brasil foi suplantada pelo estabelecimento de padrões embranquecidos de beleza, acentuados a partir do primeiro processo de embranquecimento com o início dos fluxos imigratórios do período pós abolição.

In this dynamic, white has been configured as good. Black bad. Red for a girl, blue for a boy... black people, solely, as Color. Brown people, previously black people, as another Color. And the range of Black skin Colors – the fruit of miscegenation – reduced to the social and limited standard “of Color”.

Nessa dinâmica, o branco se configurou como sendo do bem. O preto do mal. O vermelho da menina. O azul do menino... O negro - somente - Cor. O pardo, antes negro, outra Cor. E o gradiente de Cores da pele negra - fruto da miscigenação - reduzido a um padrão social e limitado “de Cor”.

To speak about Black people and their range of Color is to refer to an infinity of Skin tones within a black generic – which also encompasses miscegenation. It is to perceive and respect the identity of black people beyond visual considerations. And this means by their (im)migratory routes.

Falar do negro e do seu gradiente de Cor é referir-se a uma infinidade de tonalidades de Pele dentro de uma genética negra - que também compreende a miscigenação. É perceber e respeitar a identidade do negro, para além das considerações visuais. E sim pelas suas raízes (i)migratórias.

Before Color there needs to be (ac)knowledge(ment) of Skin. This means going beyond Skin Color. It means discussing DNA, history, trajectory, the many territories from which black people have come, to which they have gone and to which are still going, leaving as a record their greatest symbol of resistance: their Color, their infinite range.

Antes da Cor é preciso o (re)conhecimento da Pele. Significa ir além da Cor da Pele. Significa discutir o DNA, a história, a trajetória, os diversos territórios de onde os negros vieram, para onde eles foram e para onde eles ainda vão, deixando como registro o seu maior símbolo de resistência: a Cor e seu infinito gradiente.

Marcela Bonfim

Marcela Bonfim


“ACREDITO QUE EU E A AMAZÔNIA ESTAMOS APRENDENDO JUNTAS A „

“I BELIEVE THAT THE AMAZON AND I ARE LEARNING TO BE BLACK „

... é muito incomum pensar numa Amazônia Negra. Eu jamais havia pensado nisso. No meu imaginário, ainda em SP, a Amazônia era o fetiche natural das revistas e da TV. A distância entre mim e a Amazônia era do tamanho da minha própria ignorância em relação à minha própria história.

... it is quite unusual to think about a Black Amazon. I had never thought about it myself. In my imagination, while still in São Paulo, the Amazon was the nature fetish to be found in magazines and on TV. There was a gulf between myself and the Amazon that was as large as my ignorance about my own history.

(Re)conhecer uma Amazônia Negra, fez de mim uma aprendiz de mim mesma. Foi um processo simultâneo. Acredito que a Amazônia e eu, estamos aprendendo, juntas, a ser negras. E isso é um processo lento, que acontece com outras pessoas negras, em vários lugares do Brasil. A maioria dos negros brasileiros precisam aprender a ser negros no percurso de suas vidas.

(Ac)knowledge(ment) of a Black Amazon made me an apprentice of myself. It has been a simultaneous process. I believe that the Amazon and I are learning to be black together. It is a slow process that also occurs with other black people across Brazil. Most Brazilian black people need to learn how to be black throughout their lives.

SER NEGRAS

Demora um tempo pra eu perceber o que precisa ser registrado. E como precisa ser registrado. Por exemplo, muitas vezes identifico no fotografado a baixa autoestima como fator determinante da sua personalidade. Infelizmente, com mais frequência nas populações tradicionais. E é tão forte que se cria uma resistência a princípio. O diálogo travado nessas situações são verdadeiras oportunidades de resgate da dignidade tanto deles, quanto minha. É um exercício que, muitas vezes, a desistência da materialização da imagem, se torna um ato de respeito ao fotografado. Esse é um ponto. Existem muitos outros pontos culturais que observo antes de fotografar com a câmera, como a solidão dessa negritude, suas tradições, as narrativas, religiosidade, integridade, seus espaços, corpo, nutrição, lazer, talento, amor ou a ausência deste. Fotografo dentro de uma perspectiva amadora, como viajante, buscadora. Chego sem avisar. E saio avisando que um dia volto com as imagens...

TOGETHER

It took a while for me to notice what needed be recorded. And it really needed to be recorded. For example, many times I identify in the photographed person that low self-esteem is a determining factor of their personality. Unfortunately, this is more frequent in the traditional populations. And it is so strong that from the outset it creates a resistance. The dialog created in these situations is a real opportunity to rescue both their and my own dignity. This is an exercise whereby, many times, not allowing the image to appear becomes an act of respect to the photographed person. This is one point. There are many other cultural points that I observe before taking a picture, such as the loneliness of this black existence, its traditions, narratives, religiosity, integrity, its spaces, body, nutrition, leisure, talent, love or absence of it. I take pictures from an amateur perspective, as a traveler, a searcher. I arrive unannounced. And I leave announcing that I will be back one day with the pictures... Excerpts of the interview given by Marcela Bonfim to the magazine Bravo on October 06, 2017

Trechos de entrevista concedida por Marcela Bonfim para a revista Bravo!, em 06 de outubro de 2017 Foto por / Photograph by: Saulo Sousa


Em uma tarde de 2015, na sala da militante negra Ana Maria, conheci Carol, sua filha mais nova. Lembro-me daquela combinação quente e fria no olhar, quando dividia a atenção entre mim e o Heitor, o bebê, que não desgrudava do carinho da mãe. Carol, embora menina, é mãe. Essa menina-mulher, perdeu o que buscava. Agora busca o que perdeu. Força, Carol!

One afternoon in 2015, in the living-room of black activist Ana Maria I met Carol, her youngest daughter. I remember the simultaneous hot and cold of her glance as she divided her attention between me and her baby Heitor, who clung onto his mother’s affection. Although only a girl, she is also a mother. Carol, this woman-child, lost what she had been searching for. Now she is searching for what she has lost. Be strong, Carol!

Carol menina, apesar de mulher / Carol: a woman who is still a girl Porto Velho (RO), 2016


Tão sem jeito, tão são as mães. Ninando os sonhos no terreiro, vai ter que ninar também outras ideias inimagináveis. Ser mãe é muito mais que ser capaz.

Awkward as mothers. Singing lullabies in the temple, she will have to sing some other, unimaginable, ideas too. Mothers have to be a lot more than capable.

Menina que tem menino / A girl who has a boy Quilombo de Vila Bela da Santíssima Trindade (MT), 2017

Madona negra / Black Madonna Carol Grumble e Heitor Grumble / Carol Grumble and Heitor Grumble Porto Velho (RO), 2015


Era um menino pequenino. Di-

He was a small boy, different to

ferente desse que se revelou. Às

how he reveals himself here.

vezes quem olha não enxerga o

Sometimes, when we look at

tamanho real das pessoas, mesmo

people we don’t see their real

aquelas em fase de crescimento,

size. Even people who are still

talvez mesmo assim, mais acres-

growing and yet seem bigger

cidas do que nós.

than us.

Menino da beira / Boy from the riverbank Renan, da comunidade tradicional de Nazaré / Renan, from the traditional community of Nazaré Baixo Madeira, Porto Velho (RO), 2015 Feito de água / Made of water São Miguel do Vale do Guaporé (RO), 2016


Sempre

quando

olho

essa

imagem, viajo na ideia de que se me perguntarem perante o Chico o que mais combina com o Rio Guaporé, não hesitarei: a Carité, o Batelão inteiro e o Chico! Aliás, acho que ninguém ousa discordar, né Chico?

Whenever I see this image I think that if anyone were to ask me in front of Chico what best matches with the Guaporé River, I would unhesitatingly say: the Carité (a straw covering that represents the church within the vessel), the barge and Chico himself! In fact, I think nobody would dare disagree, would they Chico?

Chico Remeiro / Chico Oarsman Festa do Divino / Festival of the Divine Pimenteiras (RO), 2015


Ser afro. Ser índio / Be Afro. Be Indigenous Iliandro Sabanê Vilhena (RO), 2015 Resistência Wajuru / Wajuru Resistance Comunidade indígena de Porto Rolim / Porto Rolim indigenous community Alta Floresta (RO), 2015


Negro Bem-vindo! / Welcome Black Man! Anderson Benvindo Mercado Cultural, Porto Velho (RO), 2016

Observei o silêncio de perto

I noticed silence up close when

quando conheci Benvindo. Quan-

meeting Benvindo. Despite the

do fotografei, por mais rápido

fleetness of the moment, I felt a

que tenha sido o momento, eu

voice that I might never hear in

senti toda a fala que talvez nunca

sound.

ouviria em som.

Traçado / Features Leroy Ramos Porto Velho (RO), 2015


A janela dos olhos de Catarina / The windows of Catarina’s eyes Quilombo de Pedras Negras (RO), 2016

Ao chegar no quilombo de Pedras Negras, a primeira vista ĂŠ de dona Catarina. Da beira do barranco jĂĄ se enxerga a janela e os olhos.

O mundo precisa de Socorro / The world needs Socorro Dona Socorro / Mrs. Socorro Porto Velho (RO), 2016

A primeira conversa que tive com

During the first conversation I

Socorro descobri o sentido do

had with Socorro (help) I found

nome. A segunda, tive certeza!

out the meaning of her name. The

A terceira, conclui, o mundo

second time, I was sure! The third

precisa da senhora, dona Socorro!

time, I realized that the world needs you, Mrs. Socorro!

Upon arriving at the Quilombo de Pedras Negras, the first sight is Mrs. Catarina. The windows and the eyes are upon you right from the riverbank.


E tinha traço de dona Nicacia em

I had something of Mrs. Nicacia

mim. Eram os da minha avó. Até

in me. From my grandma. Even

o riso. E ria muito, inclusive por

the laughter. And she did laugh a

conta dos seus olhos. Enquanto

lot, about her eyes among other

eu dizia que eram azuis, ela in-

things. While I kept saying they

sistia: “é catarata, minha filha”.

were blue, she insisted: “they’re cataracts, my child”.

Os azuis de Nicacia / Nicacia blue Vó Nicacia / Grandma Nicacia, Quilombo de Vila Bela (MT), 2015 Olhos de resistir / Eyes that resist Quilombo de Vila Bela (MT), 2015


Sônia! Foi a mensagem que Sônia pediu pra que as pessoas guardassem em mente quando a visse. Além disso, pediu que todos revejam seus conceitos sobre os animais, que cuidem, não maltratem, e repensem a rua como um lugar de morada. Essa é a Sônia!

Sônia. This is the message that Sônia asked people to bear in mind when they saw her. She also urged everyone to reassess their ideas about animals. We should look after them, not mistreat them and rethink the street as a living space. This is Sônia!

Entidade Sônia / Entidade Sônia Porto Velho (RO), 2016


Não tem quem não passe e não

It is impossible to pass by wi-

reverencie esse sorriso. Toda a

thout deferring to that smile. All

beleza de quem criou uma cidade

the beauty of someone who has

inteira e não perdeu o hábito de

raised an entire town and has

cuidar.

not lost the habit of caring.

Geração Maloney / Maloney Generations Dona Ursula Maloney / Mrs. Ursula Maloney Porto Velho (RO), 2016 Geração Johnson / Johnson Generations Jesuá Johnson Porto Velho (RO), 2016


Resistência em movimento / Resistance in movement Ana Maria Ramos e Ursula Maloney/ Ana Maria Ramos and Ursula Maloney Teatro Banzeiros / Banzeiros Theater, Porto Velho (RO), 2014 Terreiro de Duda / Duda’s Temple Dona Duda / Mrs. Duda, Chácara Primavera Quilombo de Vila Bela da Santíssima Trindade (MT), 2017

Dona Duda tem uma mania de

Mrs. Duda has a habit of cares-

afagar os dias com a tranquili-

sing the days with the calm of

dade de quem tem muito tempo

someone who has plenty of time

pra distrair a vida e a nós mesmos.

for entertaining life and ourselves.

Esse sorriso é de quem realmente

That smile belongs to someone

entendeu o tempo!

who really understands time!


Pés do trabalho / Working feet Jovem agricultor / Young farmer Linha rural / rural route. Cujubim (RO), 2016

Andar pelas linhas rurais me en-

Numa conversa com Dadá, per-

While chatting with Dadá, I asked

guntei onde ele mais gostava de

where he most liked to be and

ficar, me respondeu que na sala,

he said: in the living-room. Those

enxerga pés ‘de idade’, mas não

aquele piso que o primo assen-

floor tiles, which his cousin laid

conhece a verdade, esse pé nem

tou com tanto capricho, aquele

down with so much expertise,

sinou a cor do dono da terra e a

Pés de Dadá / Dadá’s Feet Quilombo de Vila Bela da Santíssima Trindade (MT), 2017

do trabalhador. Quem olha assim

responsabilidade criou. De tão

Walking the rural routes taught

carinho com o desenho, com a

thinking carefully about pattern

menino, ajuda pai e mãe, estuda

me the colors of the land owner

cor, e o cuidado onde pisa, ficou

and colors, and the consideration

e ainda sonha com um caminho

and of the land worker. As shown

explícita a força do laço familiar.

about where to tread, lay bare the

de mais oportunidades e amor.

here you see ‘old’ feet, but you don’t see everything as this foot is attached to no adult responsibility. He is just a little boy yet he helps his mum and dad, goes to school and dreams about following a path filled with more opportunities and love.

strength of family ties.


Religiosity*

Religiosidade *

From the many paths leading to the black peoples of the Amazon, we have chosen faith. Religiosity can transmit and preserve. It can keep secrets and ensure that stories survive. It has been of fundamental importance since the times of the first Diasporas. It is an inseparable within our worldview, as set out in the (Re)Conhecendo a Amazônia Negra: Povos Costumes e influências negras na floresta exhibition at Caixa Cultural São Paulo. Here it is part, parcel, foundation and (re)construction of the history of the country, of the Amazon forest, of each photographed subject and of the photograph itself.

Dos muitos trajetos possíveis de se trilhar para conhecer os povos negros da Amazônia, escolhemos começar pelos caminhos da fé. A religiosidade capaz de transmutar e preservar, guardar segredos e perpetuar histórias, tem fundamental importância desde os tempos das primeiras diásporas. Inseparável em nossa cosmovisão se apresenta na exposição (Re)Conhecendo a Amazônia Negra: Povos Costumes e influências negras na floresta, aberta na Caixa Cultural São Paulo, também como parte e todo, fundamento e (re)construção da história do país, da floresta amazônica, de cada fotografado e da própria fotógrafa.

The first Afro-Brazilian influences in Rondônia occurred in the 17th century, during the gold cycle in Vale do Guaporé, a region in which enslaved populations and their descendants took root. This population is credited with introducing the ritualistic practices of Dahomey-Yoruba origin that gave birth to the first Tambor de Mina of Porto Velho. The first Umbanda and Candomblé temples were founded between 1910 and the 1970s, alongside increased black migration from the states of Pará and Maranhão. To this day, these temples maintain many rites and rituals from older religious models, while including characteristics of “tambor da mata”, “tambor de mina”, “tambor de criola”, “terecó” and of the indigenous-based “pajelanças indígenas”. This coming together also gave birth to the “Barquinha” combination of African and Indigenous rituals, which is both typical to and little known outside of the Amazon region and which, like Santo Daime, makes use of ayahuasca. Throughout this period, black peoples, arriving in several migratory waves, also maintained Catholic traditions and all of the syncretisms and secrets that permeated these. Rondônia became a land of diverse faith, festivities, practices and sources of knowledge. The Festa do Divino Espírito Santo is one of these living traditions. For more than one hundred years these pilgrims have periodically taken over the Guaporé River. The pilgrims dress in white and for 40 days row a barge that carries the Crown, the Scepter, the Flag of the Divine and the Carité (a straw covering that represents the church within the vessel), which are African and Portuguese symbols of faith. The procession visits both Brazilian and Bolivian communities, preannounced by shots from its “ronqueira” homemade canon. The barge does three half-moon shaped laps of the river. As a percussionist plays the snare, the faithful enter the river, even at night, and meet the vessel as a pledge to the Divine. On land, the cortege goes on to local dwellings, where residents greet the pilgrims with singing, prayers and collective meals. Every year, the community that is chosen as the pilgrimage’s point of departure elects an emperor and empress. They receive an ark from the faithful containing the Crown, the flag, the altar linens and the written records. This is how the pilgrimage is perpetuated, strengthening the faith and renewing the hope of the festivities’ hosts.

As primeiras influências culturais afro-brasileiras em Rondônia se deram ainda no século 17, durante o período de exploração de ouro na região do Vale do Guaporé, local onde se enraizaram populações escravizadas e seus descendentes. A esta mesma população se atribui a introdução das práticas ritualísticas de origem jeje-nagô que deram origem ao primeiro Tambor de Mina de Porto Velho. Entre as décadas de 1910 e 1970, com a intensificação do fluxo migratório de negros vindos dos estados do Pará e Maranhão, foram fundados os primeiros terreiros de Umbanda e de Candomblé, os quais ainda mantém muitos ritos e práticas culturais dos modelos religiosos mais antigos, ao mesmo tempo em que são carregados de características de “tambor da mata”, “tambor de mina”, do “tambor de criola”, do “terecó” e das “pajelanças indígenas”. Desses encontros nasce também a ainda pouco conhecida “Barquinha”, típica da região Amazônica mescla práticas das culturas religiosas africanas e indígenas e, assim como o Santo Daime, faz uso da ayahuasca. Durante todo este período, os povos negros que chegaram em diversos fluxos migratórios cuidaram ainda das tradições católicas e de todos os sincretismos e segredos que as permeiam, fazendo de Rondônia território de fé, festas, práticas e saberes muito diversos. A Festa do Divino Espírito Santo é uma destas tradições vivas. Há mais de cem anos, a peregrinação dos devotos ocupa o Rio Guaporé. Os romeiros vestem roupas brancas e mantêm a cadência do remo por 40 dias, carregando no batelão a Coroa, o Cetro, a Bandeira do Divino e o Carité - cobertura de palha que representa a igreja dentro da embarcação, símbolos de fé das tradições africanas e portuguesas. A procissão visita comunidades brasileiras e bolivianas, anunciada por tiros de ronqueira (canhão artesanal). O batelão faz três voltas no rio em forma de meia lua. O caxeiro inicia o toque do tarol e os devotos entram no rio, mesmo à noite, e vão ao encontro da embarcação para pagar promessas ao Divino. Em terra, o cortejo segue para as casas dos moradores que recebem os romeiros com canto, oração e refeições coletivas. A cada ano, a comunidade escolhida como ponto de partida da peregrinação elege o imperador e a imperatriz que recebem dos devotos uma arca com a Coroa, a bandeira, as toalhas do Altar e os livros de Ata. Assim, a romaria se repete, fortalecendo a fé e renovando esperanças dos que recebem os festejos.


The Santa Bárbara temple and the roots of Porto Velho*

O Terreiro de Santa Bárbara e as raízes de Porto Velho *

Black people played an important part in forming Rondônia’s religiosity during the colonization process. Porto Velho, the State’s oldest municipality, was created in 1914 on land belonging to the Amazonas and Mato Grosso provinces. Here, the Tambor de Mina Recreio Mãe Esperança temple gave birth to Mocambo, one of the region’s most important neighborhoods and an important repository of local culture.

Os negros tiveram uma grande participação na construção da religiosidade de Rondônia durante o seu processo de colonização. Em Porto Velho, município mais antigo do Estado, criado em 1914, ainda em terras das províncias do Amazonas e do Mato Grosso, o terreiro de Tambor de Mina Recreio Mãe Esperança deu origem ao Mocambo, um dos bairros mais antigos e importante depositário da cultura local.

Another important contribution comes from the Culto Eclético da Fluente Luz Universal (lit: “eclectic worship of the fluent universal light”). This form of worship was created at the Acre rubber plantations, by Maranhão-born black man Raimundo Irineu Serra. It is centered on using the Andean Ayahuasca tea (Santo Daime) to awaken self-knowledge. The word “eclectic” in the congregation’s name indicates the influences of Christianity and of indigenous and African beliefs, a range of influences that is professed in many Brazilian states and outside of the country too.

Outra contribuição importante está relacionada ao Culto Eclético da Fluente Luz Universal. A prática foi criada nos seringais do Acre pelo negro maranhense Raimundo Irineu Serra e utiliza o chá Ayahuasca – o Santo Daime, de origem andina, para despertar o auto-conhecimento. O “Eclético” que nomeia a prática religiosa indica a influência do Cristianismo, das crenças dos indígenas e dos africanos, hoje professada em diversos estados brasileiros e fora do país.

Mother Esperança Rita was born in Maranhão and was married to Irineu dos Santos, with whom she arrived in Porto Velho during the early days of the city. She founded the Recreio de Iemanjá and the Irmandade de Santa Bárbara, where she welcomed people in need, treated illnesses and offered other social services on a voluntary basis. This work led to the creation of the temple in 1917 and to the Mocambo neighborhood. The Porto Velho municipality has paid homage to Mother Esperança by naming a municipal maternity hospital after her. Marco Antônio Teixeira is a historian and professor at Rondônia Federal University, as well as being a researcher on the African Diaspora in Amazônia. He tells the sinister story of the ship the Satélite. The vessel left Rio de Janeiro in 1910 on a long Atlantic journey to Belém do Pará and from there, via the Amazon Basin, to Manaus and to the Santo Antônio do Rio Madeira municipality where Porto Velho is currently located. On board there were 40 prostitutes, who were treated like cargo and who had been forcibly removed from the Rio de Janeiro city’s streets and squares by the public authorities and dumped into the remote Amazonian forest. In Santo Antônio, where they arrived in a “devastated state”, they were auctioned with the approval of then President of the Republic, Hermes da Fonseca, says the historian. These women were illegally sold by the Brazilian government 20 years after the abolition of slavery. Later on, they were taken in by Mother Esperança Rita. The Satélite women were the founders of Mocambo. The Santa Bárbara temple is celebrating its 100th anniversary in 2017, at Vila Tupy near the forest and the water that are crucial elements for its rituals. From Mocambo, where it was founded, the temple has moved to another spot, near the Santa Bárbara rivulet in the neighborhood of the same name, which alongside Mocambo is a center for the city’s culture and a cradle for Porto Velho’s samba music, musicians, writers and poets. Recreio de Santa Bárbara was also a place of gatherings and of democratic feasts, whose doors were always open to the poor, the middle-classes and to the ‘categas’ – as the region’s wealthy population was known. However, the democratic opening of the temple’s doors and its outreach even to the rich and powerful did not prevent it from being the target of discrimination and prejudice. There were recurrent police attacks against the temple, during which drums were punctured and cult objects and sacred altar images were destroyed.

Mãe Esperança Rita era maranhense, casada com Irineu dos Santos, com quem chegou a Porto Velho nos primórdios da cidade. Criou o Recreio de iemanjá e a Irmandade de Santa Bárbara, onde acolhia pessoas, tratava doenças e oferecia outros serviços sociais voluntariamente, trabalho que deu origem ao terreiro, em 1917, e também ao bairro Mocambo. A prefeitura de Porto Velho fez uma homenagem à Mãe Esperança dando seu nome para a Maternidade Municipal da cidade. O historiador e pesquisador da Diáspora Africana na Amazônia, Marco Antônio Teixeira, da Universidade Federal de Rondônia, relata o episódio do Navio Satélite, uma sinistra embarcação que partiu do Rio de Janeiro em 1910, numa longa viagem até Belém do Pará pelo Oceano Atlântico, de onde seguiu, pela bacia Amazônica, até Manaus e o município de Santo Antônio do Rio Madeira, onde hoje fica o município de Porto Velho. À bordo, como se fosse carga, viajavam 40 mulheres, prostitutas arrancadas de ruas e praças cariocas pelo poder público e desterradas na então longínqua floresta amazônica. Em Santo Antônio, aonde chegaram “devastadas”, foram leiloadas com a anuência do então presidente da República, Hermes da Fonseca, afirma o historiador. Estas mulheres, vendidas ilegalmente pelo próprio governo brasileiro, 20 anos depois da abolição da escravatura, foram mais tarde recolhidas e acolhidas por Mãe Esperança Rita. As mulheres do Satélite. Elas foram as fundadoras do Mocambo. O terreiro de Santa Bárbara comemora cem anos neste 2017, na Vila Tupy, perto da mata e da água, elementos fundamentais para os seus rituais. Do Mocambo, onde se originou, mudou-se para outro ponto, próximo às nascentes do igarapé Santa Bárbara, no bairro do mesmo nome e que, juntamente com o Mocambo, representa um depositário da cultura da cidade, berço do samba, de músicos, escritores e poetas de Porto Velho. O Recreio de Santa Bárbara também era local de encontro e confraternização, de festas democráticas, com portas abertas para pobres, médios e os ‘categas’, como eram chamados os mais abastados do local. Mas a abertura democrática dos portões do terreiro e a mão estendida inclusive para os poderosos não o salvou da discriminação e do preconceito. Ataques da polícia aos terreiros, onde os agentes furavam os tambores e destruiam objetos de culto e imagens sagradas dos altares eram recorrentes.


There is now a movement to acknowledge the temple’s contribution to the Porto Velho population. Historian Marco also defends it having a National Heritage listing: “When we talk about listing Santa Bárbara, we are not only thinking about preserving a bit more of the culture of just one segment of the population We are in fact preserving the memory of the entire population that passed through its doors, that made a living from it or which was hostile to it. Santa Bárbara is the origin and the roots of our population. Therefore, preserving it is as necessary as the struggle to preserve the heritage of Madeira-Mamoré or Príncipe da Beira Fort. These quotes were taken from the documentary about Bica de Santa Bárbara produced in 2016 by Bill Marques, which is available on youtube.

Atualmente há uma busca de reconhecimento da contribuição do terreiro para a população de Porto Velho. O historiador Marco Teixeira defende o tombamento do mesmo: “Quando a gente pensa em tombar o Santa Bárbara, a gente não pensa em meramente preservar alguma coisa a mais do que a cultura de uma parcela da população. Na verdade, a gente está preservando a memória de toda a população que passou ali, que viveu daquilo ali ou que foi hostil àquilo ali, também. Mas o Santa Bárbara é a origem e a raiz da nossa população. É tão necessária a sua preservação quanto é necessária a luta pelo patrimônio da Madeira-Mamoré ou do Forte Príncipe da Beira”. Citações retiradas do vídeo documental sobre a Bica de Santa Bárbara produzido em 2016 por Bill Marques, disponível no youtube.

The Protestant Church*

Igreja Protestante *

Discrimination and prejudice also reached the hillside homes of the Caribbean (commonly known as Barbadiano) community, who had helped build and/or had worked on the Madeira-Mamoré Railway at the beginning of the 20th century. Barbadian Town, the hillside Caribbean community skirting the railway, was derogatorily nicknamed “Alto do Bode” (goat hilltop).

Discriminação e preconceito também atingiram o morro onde moravam os caribenhos, popularmente chamados de Barbadianos, que participaram da construção e/ou trabalhavam na Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, no início do século 20. O Barbadian Town, morro localizado nas dependências da ferrovia, onde viviam os caribenhos, ficou conhecido pelo apelido pejorativo de “Alto do Bode”.

According to the descendants of that community and to some historians, this was an allusion to the English spoken there at the time sounding like goat bleats. There were even those who attributed the derogatory name to “the smell exuded by black people during mating season”, as retold during a lecture by the indignant retired university lecturer and Caribbean descendant Berenice Johnson. During the 1940s, the Barbadian Town population was dispersed and the settlement was demolished in the following decade. According to its descendants, Alto do Bode had a hall for social gatherings and for services held by the Protestant and Baptist churches and the other denominations brought over to Porto Velho from the Caribbean Islands. “The first Baptist Church was founded by Barbadians in 1921. Soon after, the first temple of the Assembleia de Deus Church was inaugurated. The Caribbean community had a strong influence on the creation and expansion of these two churches in Porto Velho”, says lawyer Elóide Johnson, also a Caribbean descendant. “The First Baptist Church was located in Júlio de Castilho Street very close to the Catholic Cathedral, Nossa Senhora do Perpétuo Socorro. At the time, people would throw stones, shout, and call the Baptist churchgoers goats and so on. There was a big commotion. The church was frequented by foreigners working on the Madeira-Mamoré Railway and by Brazilian Northeasterners, as well as by Bolivians and Peruvians who were already believers or who converted on arrival. People kept arriving and gathering into groups. There were people from the Middle East, Dutch, Germans and Chinese. I believe that the integration factor for these foreigners was the English language spoken by the Caribbean community, although the Brazilians, most specifically the Northeasterners, came because they were attracted by the faith and by the importance of God’s word, by the power of the Gospel” adds Elóide.

O apelido, segundo descendentes desta comunidade e alguns historiadores, seria uma alusão à língua inglesa falada no local, comparada aos grunhidos dos bodes. E teve até quem atribuísse o nome depreciativo “ao cheiro exalado pelos negros na época de procriação”, como chegou a dizer um historiador regional durante uma palestra, conforme relata, indignada, a professora universitária aposentada Berenice Johnson, descendente de caribenhos. Na década de 1940, a população do Barbadian Town foi dispersada e o morro foi derrubado na década seguinte. No Alto do Bode, contam seus descendentes, havia um salão, onde eram realizados encontros sociais e os cultos das igrejas Protestante e Batista, entre outras denominações, trazidas das ilhas caribenhas para Porto Velho. “A Primeira Igreja Batista foi fundada pelos barbadianos em 1921. Logo em seguida, foi inaugurado o primeiro templo da igreja Assembleia de Deus. Os caribenhos tiveram forte influência na criação e expansão das duas denominações em Porto Velho”, relata a advogada Elóide Johnson, também descendente do povo do Caribe. “O primeiro templo da Igreja Batista ficava na rua Júlio de Castilho, bem perto da igreja Católica (Catedral Nossa Senhora do Perpétuo Socorro). Então, jogavam pedras, gritavam, chamavam de bodes, não sei o que. Era aquela confusão. A igreja era frequentada por estrangeiros que trabalharam na Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, nordestinos, bolivianos, peruanos, que já traziam a fé ou eram convencidos aqui. Este povo vai chegando e vão se juntando. Tinha turco, holandês, alemão, chinês. O fator de integração para estes estrangeiros, ao meu ver, era a língua inglesa falada pelos caribenhos, mas os brasileiros, nordestinos, vinham porque sentiam atração pela fé e a importância da palavra de Deus, do poder do Evangelho”, completa Elóide.

*Ana Aranda

*Ana Aranda

Journalist, writes about environmental, indigenous and cultural themes for newspapers in Rondônia and in other States.

Jornalista, escreve sobre a temática ambiental, indígena e cultural para a imprensa de Rondônia e outros Estados.


Uma natureza conquistada ao modo do negro do quilombo, do índio e dos colonos bolivianos, não pergunte de quem foi a ideia primeiro, apenas vivencie o sabor mais típico do Vale do Guaporé, o tracajá.

Nature won over in the style of the Maroons, the Indigenous peoples and the Bolivian settlers. Don’t ask who had the idea first, just enjoy the most typical flavor of the Guaporé Valley: river turtle.

Manjar do Guaporé / The Nectar of Guaporé Preparo do tracajá / Preparing river turtle Quilombo de Pedras Negras (RO), 2016


Das mais bonitas lições que uma criança pode ensinar. A forma mais genuína de se comportar diante da própria natureza. Sem padrões, sem perdões. Apenas o significativo da existência e das suas várias formas de existir.

One of the most beautiful lessons that a child can teach us. Behaving in the most truthful way with its own nature. No set standards and no apologies. Just the meaning of life and the many ways of living.

Mãos são mãos / Hands are hands Quilombo de Pedras Negras (RO), 2016


Mateiro / Woodsman Quilombo de Pedras Negras (RO), 2015 Pensador / Thinker Quilombo de Vila Bela (MT), 2015 Rezador / Supplicant Alta Floresta (RO), 2016

Mão no peito também é fala.

A hand on the chest also speaks.

Das mais sinceras orações.

Of the most sincere prayers.


Construção / Crafting Quilombo de Pedras Negras (RO), 2016

Essas mãos de construir abrigam

These crafting hands cradle the

toda a experiência dos pais, dos

experience of parents, grand-

avós, bisavós, que além de muita

parents and great-grandparents

folha, traçavam o destino com o

who not only weaved plenty of

próprio sangue e suor.

leaves but also their fates with their own blood and sweat.

Entidade pensamento/ Thought being Dú, Quilombo de Vila Bela da Santíssima Trindade (MT), 2015


Dona Aniceta, na noite em que a vi administrando fogo e tempo. Fumaça e espera. Além da quentura e mais alguns caldeirões para a oferta do dia seguinte.

Mrs. Aniceta, on the night I witnessed her managing fire and time. Smoke and the wait. Amid heat and a few extra cauldrons for the next day’s offerings.

Alquimia / Alchemy Dona Aniceta, Quilombo de Pedras Negras (RO), 2015


Tambor de Sopapo / Tambor de Sopapo Grupo Alabê Ôni (RS) / Alabê Ôni Group (RS) Porto Velho (RO), 2013 Saída de Nanã / Nanã Ritual Porto Velho (RO), 2014

Pedimos tantas coisas a tantas

We have asked so much from so

Marias, que também são Nanãs.

many Marys - who also happen to

Ah, como ficou mais fácil al-

be Nanãs. Oh, how much easier it

cançar esse sonho chamado

became to get to this dream cal-

céu, quando descobri que minha

led heaven after I found out that

Maria tinha a Cor de Nanã, ficou

my Mary was the Color of Nanã.

tudo mais perto, tudo mais ‘nós’,

Everything has become closer,

sem escalas, até sem Cor, isso se

a direct-line ‘us’ that may even

chama integridade!

have no Color. Completeness!


Dia de Boi / Bumba meu Boi Centro Velho de São Luís (MA), 2016

Dos maiores encantos, o Mara-

One of the most powerful charms

nhão, dono daquelas inúmeras

of Maranhão, the home of those

cores negras. Que não permitiu

innumerous black colors. To this

até hoje aquela sensação pas-

day it has not allowed that feeling

sar, tudo ainda fresco na mente,

to die, everything is still fresh in

esperando outras oportunidades

our minds, waiting to experience

de ver a encantaria em forma de

the encantaria once again, taking

boiada, chamar...

shape as a herd of cattle, calling...

Casa-corpo / The body I inhabit Saída do boi / Bumba meu Boi parade Centro de Sao Luís (MA), 2016


AGRADECIMENTOS / ACKNOWLEDGEMENTS

A exposição (Re)conhecendo a Amazônia Negra, realizada pela primeira vez em São Paulo, está em sua 12ª montagem. Agradecemos a cada pessoa e a cada espaço que participou da realização das edições anteriores do projeto contribuindo para nossa chegada até aqui. The exhibition “(Re)acknowledging the Black Amazon: peoples, customs and black influence in the forest”, which is being held for the first time in São Paulo, has had 12 previous editions. We therefore wish to thank everyone and every venue that has taken part in the previous editions of this project and contributed towards us being here now. Projeto (Re)Conhecendo a Amazônia Negra: povos, costumes e influências negras na floresta Curadoria | Curatorship - Marcela Bonfim Produção | Production - Marcela Bonfim e Regina Morão Assessoria de imprensa | Media Relations - Ana Aranda Projeto Gráfico | Design - Adriana Zanki Cordenonsi Salão principal do IFRO-RO - novembro / 2017 Projeto expográfico | Expography - Regina Morão Produção e montagem | Production and Exibition Setup - Geane Tavares e Regina Morão Intervenção urbana 1ª Mostra a Céu Aberto de Porto Velho - agosto / 2017 Produção e montagem | Production and Exibition Setup - Samir Rural Galeria de artes do Sesc Rondônia - julho a agosto / 2017 Projeto expográfico | Expography - Vlad Khromenko Produção e montagem | Production and Exibition Setup - Dheik Praia, Ismael Barreto e Vlad Khromenko Paisagem Sonora | Soundscape - Dheik Praia e Rafael Altomar

Dos momentos mais especiais,

One of the most special moments.

este, com fé de tantas idades e

The faith of so many different age

costumes, unidas pela promessa,

groups and customs, united by

pela gratidão e pela grandeza de

the pledge, the gratitude and the

carregar a tradição portuguesa,

magnificence of maintaining Por-

a passos de resiliência, por mais

tuguese tradition, with resilient

de 123 anos, em cerca de 45

steps, for over 123 years in appro-

localidades entre Brasil e Bolívia,

ximately 45 spots between Brazil

costurando o Vale do Guaporé.

and Bolívia, patching together the Guaporé Valley.

Todos Divinos/ All Divine Passagem do Divino / Divine Parade Quilombo de Pedras Negras (RO), 2016

Galeria de artes do Espaço Cujuba - Maio a julho / 2017 Projeto expográfico | Expography - Regina Morão Produção e montagem | Production and Exibition Setup - Akhenaton Tourinho, Geane Tavares, Hely Chateaubriand Rosa Sodré, Olegaria Cristina Porto, Regina Morão e Renata Nobre Hotel Rondon - Seminário de Políticas Raciais - junho / 2017 Produção e montagem | Production and Exibition Setup - Hely Chateaubriand Rosa Sodré Tribunal de Justiça - Comarcas Porto Velho, Burutis, Jaru e Pimenta Bueno - março / 2017 Produção e montagem | Production and Exibition Setup - Hely Chateaubriand Rosa Sodré e Simone Norberto Biblioteca Municipal Francisco Meireles - dezembro / 2016 a fevereiro / 2017 Projeto expográfico | Expography - Daniela Norberto Produção e montagem | Production and Exibition Setup - Daniela Norberto, Regina Morão e Simone Norberto Palácio do Governo Rio Madeira - Setembro a outubro / 2016 Produção e montagem | Production and Exibition Setup - Geane Tavares, Hely Chateaubriand Rosa Sodré, Paulo Henrique Peres


(RE) CONHECENDO A AMAZÔNIA NEGRA CAIXA Cultural São Paulo - 2017 Produção | Production Avangi Cultural Idealização e imagens | Concept and images Marcela Bonfim Produção executiva | Executive production Amanda Prado Curadoria | Curatorship Marcela Bonfim Samara Takashiro Talita Rebizzi Projeto expográfico | Expography Aline Arroyo Projeto gráfico | Design Bárbara Batista Montagem | Exhibition setup Ladun Produção e Montagem Assessoria de imprensa | Media Relations Jéssica Moreira Thaís Siqueira Textos | Texts Amanda Prado Ana Aranda Lilian Campelo Marcela Bonfim Mônica Cardim Tradução para o inglês | English translation Daniel Cooke Denise Cooke Registro | Photography Tally Campos Michele Saraiva Vídeo experimental | Experimental Video Marcela Bonfim Michele Saraiva Poesia (vídeo) | Poems (video)

Poeta Dom Lauro

CAIXA Cultural São Paulo Praça da Sé, 111 São Paulo-SP Tel. (11) 3321-4400 7 de outubro a 17 de dezembro October 7 - December 17 2017 Terça-feira a domingo, das 9h às 19h Tuesday to sunday, from 9am to 7pm Entrada Franca Free Admission Prefira o transporte público Prefer public transportation #MOSQUITONÃO A CAIXA está com o Brasil no combate ao mosquito

#DoeÓrgãos



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