EXPERIMENTO resenhas críticas
AMOUR de Michael Haneke (2012)
caderno EXPERIMENTO n. 1 fev 2015
E
stamos cercados pelo amor e suas representações. Existem milhares de poemas, centenas de livros românticos, filmes hollywoodianos “água com açúcar” e infinitas músicas que trazem o tema. Amar é uma condição do ser humano. É inevitável. Uma hora você acaba por se entregar. E passado pelos mergulhos na paixão, dos sufocantes sentimentos de desejo e dos altos e baixos do relacionamento, o que resta? O amor requer e cultiva a fidelidade entre dois, principalmente nos momentos de fraqueza e doença. O recente filme francês “Amour”, de Michael Haneke (também diretor de “A Fita Branca”, “Caché” e “A Professora de Piano”), Palma de Ouro em Cannes e indicado a cinco estatuetas no Oscar, retrata o cotidiano de um casal de professores de música clássica aposentados, que carregam amor de longa data. O filme narra as sutilezas de amar outra pessoa, do desgaste da vida e da fidelidade de se manter ao lado de quem amamos até nos piores momentos. Acompanhamos Anne (Emmanuelle Riva) e Georges (Jean-Louis Trintignant) no dia-a-dia em seu largo apartamento, cercado de livros, quadros de arte e requinte. Ao mesmo tempo em que embarcamos na tristeza que é ver o sofrimento de Anne, que depois de um acidente vascular cerebral, fica paralisada do lado direito do corpo, e a agonia íntima de Georges diante do sofrimento da esposa, somos encantados com os suaves toques, doces olhares e conversas inteligentes que o casal tinha antes da doença assolar o lar. Delicadamente, em longas cenas, ainda somos levados pelos estágios da mazela de Anne, do orgulho ferido, da paralisia e da incapacidade de comunicação. A velhice é retratada com uma suavidade trágica. EXPERIMENTO 02
Apesar da enfermidade, é o amor que se sobressai na narrativa. Mesmo com longas e intimistas cenas onde Georges ouve música e lembra-se de sua amada, ainda sadia, tocando piano. Ou as cenas belas e depressivas em que a alimenta, a exercita e treina sua fala com canções, o filme constantemente nos lembra que é o afeto, a delicadeza e o carinho do amor entre os dois que sustenta e move o enredo. Não é um longa para se ver com pressa. Não é um filme comercial, desses que passaria na “Tela Quente”. Na verdade, é uma narração bela e sutil em roteiro, em fotografia, em direção e atuação, que é necessário todos os 125 minutos do longa, ou até mais depois do filme, para a ideia decantar em nós. É preciso ter paciência, calma, confiança, coração e estômago, assim como no amor da vida real. Como somos seres carentes que necessitam de afeto, buscamos amor. Então o que há de errado? Por que não temos um Georges ou uma Anne conosco? Pode ser que em nossa busca de satisfazer esse insaciável desejo de amor, alimentado e reaquecido pela indústria do consumo, tenhamos esquecido ou deixado de – realmente – amar. Procuramos incansavelmente por amores sombrios e arrebatadores, que nos deixem de quatro na mão do ser amado. Aqueles amores que nos tiram o fôlego, nos deixam impotentes e inseguros, como se nada mais importasse; nem mesmo sua vida, seus anseios pessoais. E temos pressa em achar esse amor. Muitas vezes, nos achamos apaixonados ao primeiro sinal de afeto. Entramos nessa história de paixão e saímos frustrados por não ser o que pensávamos. Talvez seja isso que a história de Anne e Georges, amantes de uma vida inteira, queira nos fazer refletir: o amor requer paciência, simplicidade, carinho, e fidelidade. caderno EXPERIMENTO n. 1 fev 2015
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SANTIAGO de João Moreira Salles (2007)
o fazer cinema e a memória em construção W
alter Benjamin dizia algo parecido com: o melhor da memória são seus vácuos, suas lacunas, que ao nos fazer tentar lembrar, nos encontramos revivendo aqueles momentos. Em “Santiago”, de João Moreira Salles (Futebol, Notícias de uma Guerra Particular e Entreatos), lançado em 2007 e vencedor do Grande Prêmio do Festival Cinéma du Reel, em Paris, o diretor e roteirista retoma o documentário nunca finalizado de 92, que contaria a história do mordomo da casa de seus pais, Santiago Badariotti Merlo (1912-1994). Mas no decorrer da produção encara os questionamentos de suas próprias escolhas estéticas e conflitos na obra cinematográfica, deixando escapar o interesse pelo personagem-título Santiago. Culto, de bom gosto, bem humorado e inteligente, Santiago Badariotti era argentino de origem espanhola, que trabalhava como mordomo na casa da Gávea para a família de Salles. Personagem presente em todos os momentos da infância e adolescência de João, Santiago mistura em suas memórias características próprias e contos da família para quem tanto trabalhou fielmente. Homem peculiar, cheio de história e estórias, vivia num universo paralelo. Para ele, a casa onde trabalhou às vezes se transformava num castelo medieval da Renascença francesa. Ouvia Beethoven, dançava flamenco e sabia falar mais de seis línguas, inclusive latim. Tudo isso composto por uma paixão inigualável de registrar em 30 mil páginas datilografadas a história, dramas e vidas de aristocratas espalhados pela História Mundial. caderno EXPERIMENTO n. 1 fev 2015
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Salles, no entanto, parece direcionar o documentário na sua preocupação em questionar as próprias decisões de filmagem. Ele critica suas constantes interferências nas falas e nos atos do personagem, indicando que ainda existe a relação de poder filho do patrão e empregado. Para um documentário sobre a vida do personagem, não se aceitaria tantos condicionamentos externos da direção. Nota e critica, ainda, sua mediação direta nas cenas de paisagem ao jogar folhas de árvores sobre a água da piscina e captar apenas o quadro onde elas caem, como se fosse ao acaso, onde a câmera estaria posicionada no lugar certo, na hora certa. O mesmo acontece com duas sacolas plásticas dançando no ar. Com esta peça se pode notar que João Moreira Salles utiliza Santiago, suas vivências e memórias, para voltar e remontar suas próprias lembranças. Nesse percurso, faz autocríticas válidas e põe em questão o fazer cinema. Pelo título do documentário, imagina-se que ele discorrerá sobre a vida, paixões e conflitos do mordomo Santiago, mas no decorrer dos minutos, é possível interpretar que Salles usou Santiago, personagem e título, para contar outra história: as problemáticas de saber contar uma história, de se fazer documentário e de fechar um ciclo. São duas histórias acontecendo na mesma narrativa, onde, por vezes, as questões de Salles se sobressaem as de Santiago, por escolha do diretor.
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A história do homem que tinha carinho e curiosidade por contar e salvar as histórias e vidas de 500 anos de nobrezas e dinastias de todo o mundo, daria um ótimo curta-metragem, onde Santiago realmente fosse a peça principal. Mas não o é. E premiado no 25° Festival Internacional de Miami na categoria melhor documentário em longa-metragem, “Santiago” se configura como um dos principais filmes feitos no Brasil nos últimos anos por sua intensa possibilidade de releitura. São tantas interpretações possíveis. Por ora ficamos com intenção de Salles de abrir diálogos sobre o fazer documentário, fazer cinema e as relações de poder, conflito e estética dentro desses sistemas.
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Esta é uma publicação escrita e diagramada por Alana Maria Soares, repórter independete. Formada em Comunicação Social - Jornalismo pela Universidade Federal do Ceará (turma de 2014), Alana tem interesse em jornalismo impresso e webjornalismo, com aspiração nas áreas de cultura, política e cotidiano. Para conhecer outros trabalhos, acesse: http://meuportifa.com.br/maria-soares Contato: msoares.pro@gmail.com Imagens: reprodução. Edição sem fins lucrativos. caderno EXPERIMENTO n. 1 fev 2015
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