FUGAS | Público N.º 11.105 | Sábado 19 Setembro 2020
Abrantes A cidade renasce, a natureza surpreende Porto Pelas ruas e ruelas do Património Mundial Vinhos de Portugal no Brasil Evento vai ser digital e chega a Portugal pela primeira vez
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Ribatejo
Para lá da cidade, a “maior riqueza” de Abrantes é a diversidade Tem fronteira na Albufeira de Castelo de Bode e o Tejo no coração, tem toque de Beiras e de Alentejo. Serras e planícies de sobreiros. É Abrantes para lá da cidade, com cerâmica artesanal, praias ƍuviais, indústria, vinhos e cortiça. Mara Gonçalves (texto) e Diogo Ventura (fotos) a Abrantes confunde-se com o centro da cidade, mas é muito mais do que isso. É um conjunto de freguesias dispersas, com uma personalidade muito própria e um bairrismo tão vincado que até há pouco tempo os bancos do recreio da secundária “pertenciam” a cada uma. Ai do miúdo que se sentasse noutro lado, contam-nos, entre risos da caricatura. São 40 quilómetros, de Norte a Sul do concelho, que “se podem fazer numa hora de bicicleta”, mas a paisagem e a cultura vão mudando. O Norte, mais montanhoso, na fronteira com o rio Zêzere, é inÇuenciado pela Beira Interior e a maioria dos residentes “trabalha na indústria da Çoresta”; depois, encontramos a zona da lezíria, à beira Tejo; e, a Sul, “a charneca”, onde predomina a planície e o manto de sobreiro, numa “transição entre o Ribatejo e o Alentejo”. Aqui, já sobem à mesa a tomatada, o ensopado de borrego, o gaspacho. Basta provar a gastronomia ou escutar o sotaque para se destrinçarem diferenças. Para Carlos Bernardo, viajante proÆssional, autor do blogue O Meu Escritório É Lá Fora e nosso guia por Abrantes, cidade onde nasceu, cresceu e reside, esta diversidade, por vezes tão difícil de comunicar turis-
ticamente, “é a maior riqueza do concelho”. Por isso, partimos à descoberta, em cinco paragens, com mergulhos, cerâmica artesanal, indústria, vinhos, cortiça e gastronomia.
Praia das Fontes A mergulhos na Albufeira de Castelo de Bode A viagem de carro talvez demore mais dez minutos, mas as vistas valem a pena, e pouco importa se, por momentos, pisemos concelho vizinho. Anote os nomes dos miradouros e faça um desvio antes de partir em direcção à praia Çuvial das Fontes: Fragas de Rabadão, Penedo Furado e Cristo Rei (neste caso, o acesso implica uma ligeira subida a pé). Se for com tempo, aproveite e desça até à praia Çuvial do Penedo Furado, onde, no ano passado, foram instalados passadiços até a uma zona de cascatas. Porque não distribuir a dose de mergulhos entre uma praia e outra? Antes de regressarmos às margens da albufeira da Barragem de Castelo de Bode – que é nela que pousam as fotograÆas desde que parámos em Rabadão, com o Zêzere a transformar-se em lago rendilhado pelos
cerros verdes, pontilhados de pequenas localidades – paramos na aldeia que dá nome à praia. É junto ao largo da igreja das Fontes que Æca o miradouro mais mimoso, um recanto redondo sobre a encosta de casas salpicadas até ao espelho de água. Arriscamos dizer que é daqui que se tem a panorâmica mais bonita de entre os miradouros que visitámos. Em plena albufeira, a zona balnear conta com Bandeira Azul, uma piscina Çutuante, uma zona de lazer arborizada e um bar de apoio, o Tasquinha ao Rio, projecto de Paula Fernandes e Cláudio Reis, onde se servem comidas ligeiras e cocktails. Ao contrário do ano passado, quando venceram o concurso para a concessão da praia, este Verão “não se notam picos” de aÇuência. “Há muito mais pessoas a virem para cá por causa da covid”, aponta Cláudio. “Acaba por estar composto o dia inteiro.” A ideia passa por “oferecer o que gostam e o que é de cá”, com uma decoração moderna e cuidada, para “criar um astral diferente”, e uma extrema preocupação com o meio ambiente. Para além dos materiais naturais na construção do bar e da esplanada, não utilizam plástico descartável, entre outras medidas eco-
lógicas. “Tudo o que é massiÆcado é bom para o negócio mas o dinheiro não é o mais importante se deixarmos perder o encanto desta maravilha que é Castelo de Bode.” É ainda possível alugar uma canoa ou barco para um passeio na albufeira ou experimentar fazer stand up paddle, wake board ou ski aquático.
Cerâmica Tejo Do futebol para o forno de tijolo artesanal das Mouriscas É debaixo de um telheiro, sob um calor abrasador, que praticamente todo o trabalho se desenrola. O barro é amassado, colocado à mão em formas de inox, vai ao forno a lenha e Æca a secar. Igual agora como era há 65 anos, quando o avô de Marco Cadete fundou a Cerâmica Tejo. A empresa é a última que resiste das 40 que terão existido na freguesia das Mouriscas, ainda que apenas tenham sido identiÆcados vestígios de duas dezenas, conta o actual proprietário, terceira geração à frente da cerâmica. Quando era miúdo, Marco lembra-se de já só existirem três e há muito que esta é a única que se mantém em funcionamento, produzindo tijolo burro e tijoleira rústi-
ca de forma totalmente artesanal. Agora, é uma retro-escavadora que extrai o barro dos terrenos ricos em argila junto ao Tejo, há um amassador eléctrico e uma empilhadora que “tira algum peso dos braços”, mas tudo o resto é feito manualmente. São precisas cerca de seis horas para dar forma a 600 tijolos, colocados no forno peça a peça. Leva entre oito a doze horas a cozer 25 mil quilos, calcula Marco, 42 anos. “Depois temos de esperar dois dias [para desenfornar] porque o calor é tanto que regamos o material para tirar o pó e passados dez minutos já está completamente seco.” É “um trabalho bastante duro”. Por isso, quando a família lhe per-
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A Norte, a Praia das Fontes vista da esplanada da Taquinha do Rio; e, ao lado, a última cerâmica artesanal das Mouriscas, onde no passado existiram cerca de 40
guntou se queria pegar no negócio, “não achou grande graça”, confessa. Tinha passado a infância “sempre aqui” e vinha ajudar nas férias grandes (até à construção do telheiro, era uma actividade sazonal, já que o mesmo barro que demora três dias a secar no Verão, leva três meses no Inverno). Mas depois foi estudar para a Covilhã. “Andei na universidade 20 anos”, ri-se. Foi jogador proÆssional de futebol durante muito tempo, professor de educação física. Há seis anos regressou. Hoje “já gosta”, ainda que se queixe da falta de apoios e de mão-de-obra. Para o forno Æcar cheio são precisos 15 dias de trabalho, quando no tempo do avô coziam “duas vezes por semana”.
O impacto económico da pandemia preocupa-o, numa altura em que as pessoas voltavam a dar valor aos produtos tradicionais, feitos artesanalmente, de forma natural, e com qualidade. Vende sobretudo para padarias, unidades de turismo rural e estrangeiros com vontade de recuperar quintas em Portugal. Gostava que fosse uma tendência para Æcar. “Tenho esperança que isto também seja uma coisa de futuro.”
Tramagal O “visionário” da metalúrgica e o melhor rosé do mundo Picamos o cartão de funcionário num dos primeiros relógios de c
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Ribatejo
A Sofalca nasceu para aproveitar a cortiça dos troncos (à direita), enquanto a Janela dos Sabores (à esquerda) abriu em plena pandemia e febre da EN2
ponto da fábrica e a visita começa. De sala em sala, vamos conhecendo a história da Metalúrgica Duarte Ferreira, fundada na vila do Tramagal, em 1879, “pela mão de um humilde tramagalense, Ælho de um barqueiro mas com um sonho muito maior do que ele próprio”, conta Lígia Marques, responsável pela museologia, guia e recepcionista. “A minha chefe diz que sou a guardiã do museu.” Lígia nasceu na vila, mas confessa que “não tinha noção da importância” da metalúrgica até fazer sobre ela a tese de mestrado que serviria de base para a criação do museu. “Apaixonei-me por esta história”, assume. “Vai ser para a vida toda”. Sente-se o entusiasmo quando fala de Eduardo Duarte Ferreira, o “visionário” que fundou a empresa, um homem “muito compenetrado” e “peculiar”. “No dia do casamento, trabalhou quase até à hora de entrar na igreja. A noiva é que teve de esperar por ele e chegou com os olhos completamente esbugalhados e queimados pelo ferro.” Numa das caixas-fortes daquele que viria a ser o escritório principal da nova unidade fabril, construída já nos anos 1920, onde está situado o museu, encontramos alguns dos produtos mais icónicos da metalúrgica: a charrua e a louça esmaltada da marca Águia (no portfólio da empresa a partir da compra da fábrica no Porto). Mais à frente, o “negócio que mais impacto teve na história” da empresa e que “mais vidas marcou”: a produção de carrinhas e camiões Berliet para a Guerra do Ultramar. Não estão lá os portentosos veículos, apenas fotograÆas. E são poucos os objectos expostos, funcionando, sobretudo, como suscitadores de perguntas ou âncoras para as histórias que Lígia vai contando ao longo da visita. Talvez por isso avisasse logo à entrada que este é “um museu de sensações e de experiências e não
tanto de ver coisas”. “É um museu de memória.” É esse legado que vai sendo recordado à medida que caminhamos, não só em termos industriais a nível nacional, mas também da importância social para aquela que é conhecida como “vila convívio” por existirem “muitas associações culturais e recreativas”: 20 para cerca de 3000 habitantes, o dobro na altura da fábrica. Havia teatro, cinema, orquestra de jazz, e até uma banda Ælarmónica e uma equipa de futebol constituídas pelos trabalhadores da fábrica, que passavam a ter duas horas diárias de dispensa para os treinos. No pós-25 de Abril, a metalúrgica começou a cair em decadência, sendo extinta em 1997. Vinte anos depois, foi inaugurado o Museu Metalúrgica Duarte Ferreira, galardoado no ano seguinte com o prémio de Melhor Museu do Ano, atribuído pela Associação Portuguesa de Museologia. O ferro pode nada ter a ver com vinho e exploração agrícola, mas a propriedade do Casal da Coelheira pertencia à família Duarte Ferreira até 1989. Durante muitos anos, esteve concentrada na produção de vinho a granel, hoje mantém o “bag in box” e uma linha de vinho engarrafado, entre tintos, brancos e o rosé, cuja edição de 2009 foi premiada com a “grand gold medal” no concurso mundial de Bruxelas. A adega está aberta ao público, com loja e provas, e é uma óptima forma de rematar uma visita à vila do Tramagal.
Tulipa Quem disse que no interior não podia haver bom marisco? Na família de António Larguinho, natural de Sines, é “tudo gente ligada ao mar” e também ele já foi pescador, noutra vida, antes de ser serralheiro, dono de bar, de restaurante, cozinheiro. Está explicado o
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Monte da Várzea Casa Branca – Alvega GPS: 39°27’59.9”N 8°00’49.7”W Tel.: 967 766 530 E-mail: reservas@montedavarzea.com Dom Vinho Ribeira Barato, Sardoal GPS: 39°31’33.0”N 8°09’20.0”W Tel.: 241 852 212 / 926 773 709 E-mail: domvinhorestaurante @gmail.com Horário: de terça a domingo das 10h às 16h e das 19h às 22h30 Restaurante Santa Isabel Rua Santa Isabel, 12 Tel.: 241 366 230 E-mail: geral@restaurantesantaisabel. com Facebook: @restaurante. santaisabel Horário: de segunda a sábado, entre as 12h e as 15h e das 19h às 22h mar que nos chega à mesa em doses generosas: lingueirões, amêijoas e arroz de lagosta. Grande parte do marisco e do polvo servido no restaurante Tulipa, no Pego, é António que vai buscar directamente a Sines, todas as quintas-feiras. Vai e vem, às vezes nem dá tempo para um olá à terra. “Vivo aqui dentro, a não ser que tire uma semana para ir ver a família”, conta. Os lombinhos destacam-se nas carnes, mas é o mar que brilha na ementa. Mariscos, peixe grelhado, arrozes e polvo à lagareiro, entre outras iguarias. António chegou à região para trabalhar como serralheiro em Ponte de Sor, onde acabou por abrir um bar e, mais tarde, um segundo aqui no Pego, atraído pela construção da central termoeléctrica. “Foi quase uma escandaleira”, recorda. “Um gajo de fora abriu uma casa escura.” Isto “há 30 e muitos anos”, Æcava o bar na sala mais pequena do restaurante, o resto não existia. Foi ali, “a fazer petiscos” que António aprendeu a cozinhar, garante. Entretanto, o espaço foi alargando, integrando restaurante e café. Este ano, depois de obras de remodelação, reabriu com nova decoração e com todas as mesas de serviço ao restaurante. Para Carlos Bernardo, “comer aqui é como comer em casa”, tantos foram “os anos e as histórias” partilhadas. Segundo o viajante, há na freguesia uma gran-
de tradição gastronómica, “não só nos restaurantes”, outrora muitos mais ao longo da rua principal, como entre os habitantes. “Há muito a cultura do petisco, mesmo em casa ou nas festas de Verão, na primeira semana de Agosto, que são muito fortes.”
Sofalca Com a cortiça dos ramos fazem-se isolamentos, bancos, paredes “A produção de sobro começa exactamente aqui, do Tejo para baixo”, aponta Paulo Estrada, director-executivo da Sofalca. Estamos a sul do concelho de Abrantes, na freguesia da Bemposta, e a paisagem já mudou: predomina agora a planície dourada, os sobreiros, as azinheiras, as oliveiras. Para a produção da cortiça, há que fazer a poda das árvores – neste caso, “chama-se esgalha” - para que a energia principal do sobreiro não se concentre em esculpir uma copa “muito bonita” mas “em vir para o tronco e termos boa cortiça para rolhas”, explica Paulo, ainda à entrada da fábrica. É do aproveitamento desses troncos, cortados a cada 15 ou 20 anos pelos falqueiros, que nasce a Sofalca. Com a madeira faz-se carvão e cavacas para as lareiras; e a cortiça – que nos troncos se chama falca, daí o nome da empresa – é desfeita e depois “colada” para fazer blocos de
aglomerado negro de cortiça expandida, utilizados sobretudo na construção, para isolamento térmico e acústico. Foi este aproveitamento da falca, até então considerada “quase lixo”, o “aspecto visionário” da empresa, fundada pelo pai de Paulo em 1976. Separada a madeira da cortiça, o excedente vai ser transformado em biomassa para fazer funcionar a enorme caldeira. Então, o vapor de água produzido vai ser introduzido na cortiça triturada para formar os blocos, “sem colas nem tintas”. “A cortiça expande como uma pipoca com o calor. Imagine-se um bombom de chocolate ao sol: começa a derreter e a Æcar molhado. O mesmo acontece com o grão [de cortiça]. A resina vem ao exterior e, como a cortiça está a expandir dentro da caixa, vai colar.” Até há bem pouco tempo, a Sofalca fazia apenas material de construção, para isolamento térmico, acústico e anti-vibrático. Mas, com a crise do sub-prime e a queda das encomendas, foi preciso “fazer mais” e “entrar noutro negócio de cortiça”: a área de design, que hoje corresponde a 10% da produção, ainda que em expansão (de toda a produção, cerca de 90% segue para exportação). Foi então que nasceu a BlackCork, marca de mobiliário, e depois a GenCork, apostada em criar paredes de cortiça com padrões e relevo.
Casal da Coelheira Estrada Nacional 118, 1331. Tramagal GPS: 39,26º 58,38N 8,15º 04,20O Tel.: 241 897 219 E-mail: geral@casaldacoelheira. pt casaldacoelheira.pt Horário: de segunda a sexta das 9h às 12h30 e das 14h às 18h30; sábado das 9h às 12h30 Cerâmica Tejo Estrada da Barca, nº354 Mouriscas GPS: 39°28’43.3”N 8°04’31.6”W Tel.: 241 871 252 / 927 540 962 E-mail: geral@ceramicatejo.pt ceramicatejo.pt Drogaria Nova Rua Alexandre Herculano, 22 Tel.: 241 331 389 E-mail: drogarianova1943@gmail.com Facebook: @drogarianova1943 Horário: de segunda a sexta das 9h30 às 13h e das 15h às 19h (fecha uma hora mais cedo à sexta)
Tasquinha ao Rio Praia Fluvial das Fontes Rua do Zêzere – Cabeça Ruiva Tel.: 965 275 752 E-mail: tasquinha.ao.rio@gmail. com Facebook: @praiafluvialfontes
Janela dos Sabores na Nacional 2 Rua Monteiro de Lima, 5 Facebook: Janela dos Sabores na Nacional 2
Tulipa Estrada Nacional 118. Pego Tel.: 241 833 128 E-mail: tulipa.restaurante @sapo.pt Facebook: @tuliparestaurante. pego Horário: segunda, quarta, quinta e domingo das 9h às 23h45; sexta e sábado das 9h às 2h
Sofalca Estrada Nacional 2, km 413,2 Bemposta GPS: 39°23’12.1”N 8°09’19.9”W Tel.: 241 732 165 E-mail: info@sofalca.pt sofalca.pt
Museu Metalúrgica Duarte Ferreira Rua Comendador Eduardo Duarte Ferreira, 116 Tramagal Tel.: 968 504 601 E-mail: museumdf@cmabrantes.pt Horário: de quarta a domingo, das 10h às 12h e das 14h às 18h30 (visitas com marcação prévia)
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Ribatejo
Abrantes
Roteiro por um centro histórico a querer renascer
a Há muitas razões para as famílias se juntarem e esta tinha a naturalidade de um ciclo marcado no calendário, como tantas outras. Até aos anos 1990, chegava a época das cheias e lá se reuniam para recolher móveis e esvaziar o rés-do-chão das habitações. Uns mudavam-se para o primeiro andar, outros para a casa de familiares, numa transumância deÆnida pelo Tejo. “Não era tragédia nenhuma.” Havia até quem aproveitasse para pescar à varanda. “Lembro-me perfeitamente de a minha avó ir buscar-me à escola e de fazermos barcos de papel para ver se a água ia para cima ou para baixo.” Quando a maré descia, a corrente podia ser perigosa, tirando isso, a freguesia do Rossio ao Sul do Tejo “parecia Veneza”, com os barqueiros a transportar gentes e bens de uma margem do rio para outra, de casa em casa ou para o trabalho e vice-versa, recorda Carlos Bernardo, viajante proÆssional, autor do blogue O Meu Escritório É Lá Fora e nosso guia por Abrantes, cidade onde nasceu, cresceu e reside. “Até aos 15 anos, tirei sempre as coisas de casa”, recorda. Depois acabou. “Agora, a nossa tragédia é o Tejo não ter água.” Estamos no topo da torre de menagem do castelo de Abrantes e a vista daqui é prodigiosa, não só para o Ros-
sio – como, por aqui, se abrevia o nome da freguesia, aninhada no outro lado do rio –, como para o centro histórico, sobre a colina ao nosso lado. Vêem-se os edifícios da antiga unidade fabril da CUF em Alferrarede, ali em baixo, e, mais à frente, os terrenos agrícolas a formar um coração aos pés do Tejo. “Em dias bons, praticamente vê-se Santarém”, aponta Filomena Gaspar, arqueóloga do município. É Filomena quem nos conduz pelo antigo castelo, uma estrutura defensiva que, segundo vestígios arqueológicos, remonta “pelo menos à Idade do Bronze”, ainda que a maior parte da estrutura que vemos tenha sido erguida a partir do século XVIII, “com grandes alterações no século XIX”. Do ponto de vista estratégico, a torre de menagem tinha uma “posição fundamental”, já que daqui se conseguia controlar “o único local onde era possível atravessar o Tejo”, até a vau nos meses de Verão, e invadir Abrantes a partir do Sul. A fortaleza esteve ocupada por militares até à construção de um novo quartel, em 1954. Na altura em que lá estivemos, em Julho, o castelo encontrava-se encerrado ao público, para obras, embora não existisse qualquer aviso aÆxado à entrada ou no site da autarquia. Se o acesso se mantiver fechado ou quiser prolongar o pas-
Joana Borda d’Água e Carlos Bernardo querem trazer sangue novo ao centro histórico
seio, desça até ao jardim do castelo, recuperado no último ano, com novos canteiros de Çores, e aprecie as vistas do outeiro de São Pedro. Entre depois pelo novelo do centro histórico. E não se esqueça do Rossio: o relvado do Aquapolis, à beira Tejo, é ideal para um piquenique.
Arte e museus Vamos percorrendo as ruas de Abrantes, atentos às fachadas de antigos palacetes aburguesados, testemunhas da importância mercantil e industrial da cidade, primeiro enquanto porto
Çuvial (daqui partiam produtos vindos do Alentejo para Lisboa e vice-versa), depois como centro industrial na região, com várias fábricas instaladas no concelho. O que Carlos quer mostrar-nos, no entanto, é que, entre a tradição e as novas gerações, há um centro histórico com vontade de rejuvenescer e de tornar-se novamente o coração activo da cidade. Aqui e ali, ao longo das ruelas, encontram-se vestígios da arte urbana criada durante o Creative Camp, evento organizado na cidade pelo Canal 180 entre 2013 e 2018. Na Rua Grande, por exemplo, ainda
espreitam algumas das minúsculas Æguras instaladas pelo artista galego Isaac Cordal sobre beirais, esquinas de edifícios e candeeiros. Ainda sem data de abertura, sucessivamente adiada, estão vários espaços museológicos na cidade. A igreja de Santa Maria do Castelo, no interior da estrutura muralhada, deverá reabrir ao público, agora exclusivamente como Panteão dos Almeidas, família do conde de Abrantes. Era aqui que se situava anteriormente o Museu Ibérico de Arqueologia e Arte de Abrantes, que irá ocupar o antigo Convento de São Domingos. Também o Edifício Carneiro, junto ao jardim do castelo, encontra-se em obras para receber o Museu de Arte Contemporânea Charters de Almeida, alicerçado na obra do escultor português.
Ganhar amor pelo centro histórico Passamos pela sede d’O Meu Escritório É Lá Fora, aberta ao público no ano passado, após seis anos de blo-
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“muito interessantes”. “As pessoas também estão a ganhar outra vez aquele amor pelo centro histórico e a vir às lojas tradicionais”.
gue, e entramos na Drogaria Nova. A loja ainda vende os artigos típicos de uma drogaria tradicional, mas Joana Borda d’Água quis dar novo fôlego à primeira casa comercial fundada pelo avô, em 1943. Sobre as prateleiras dos armários antigos, encontramse produtos gourmet e ingredientes a granel, artesanato português e peças ecológicas, sabonetes artesanais e os clássicos detergentes, a benzina e o bicarbonato de sódio ou as escovas de cedro e as pás de zinco. “Assim juntamos públicos de várias idades e de tipos diferentes para conseguir que a loja sobreviva”, conta a proprietária. Em criança, Joana saía muitas vezes da escola e vinha para a loja do avô, “chatear quem cá estava a trabalhar”, ri-se. Passava horas atrás do balcão. Foi depois para Coimbra, estudar Arquitectura, mas a área “estava muito difícil” e decidiu regressar para tomar o pulso à drogaria do avô, em 2013. “Ele tinha aberto outras, mas esta foi sempre aquela que considerámos a mais bonita. Tínhamos um carinho muito especial e vontade de fazer alguma coisa diferente.” Os primeiros anos, recorda, “foram muito difíceis”, mas começa a sentir uma certa “renovação” na cidade, com a abertura de outros espaços
Não muito longe, a Janela dos Sabores na Nacional 2 acabava de abrir portas, aproveitando o mediatismo que a mítica estrada portuguesa, a celebrar 75 anos, tem colhido nos últimos tempos, especialmente neste Verão de férias em território nacional, devido à pandemia. Foi, aliás, por causa do impacto da covid-19 que Elsa Cristóvão decidiu lançar-se com esta pequena loja virada à rua Monteiro de Lima. Com o fecho das lojas durante o conÆnamento, muitas “que nem sequer reabriram”, a proprietária Æcou sem ter onde vender as compotas em bisnaga que produz desde 2016. “Pensei que isto podia arrastar-se e resolvi ser eu a vender as minhas coisas também.” Continua a distribuir por outras lojas e aqui junta-lhe outros produtos tradicionais das diferentes localidades por onde atravessa a EN2, assim como marmelada à fatia e seca aos cubos, hortícolas e vários produtos regionais, incluindo enchidos, azeite e cerveja artesanal. No restaurante Santa Isabel, na rua que lhe dá nome, Alberto Lopes garante estar “a trabalhar melhor agora do que antes da covid-19”. “Acho que as pessoas vão menos a restaurantes, por isso são mais selectivas e têm de ter conÆança.” O espaço, a celebrar 25 anos, é já uma instituição na cidade. Não só pela gastronomia regional que chega à mesa, como pelo carisma do proprietário. “Quem é de fora vem ao Santa Isabel, quem é da cidade vem ao Alberto”, aponta Carlos Bernardo. O prato “mais emblemático” são os Æletes de polvo com arroz malandrinho de feijão, mas também são famosas as enguias fritas, a açorda de ovas de sável e as migas (de espargos, de alheira, de feijão com couve e broa de milho, de ovas, entre outras). Depois, há aqueles pratos que fogem à ementa, feitos no dia, porque acaba de chegar um bom produto, como o rabo de boi estufado com puré de batata servido a alguns clientes na noite em que lá estivemos. Nos últimos anos, tem recebido cada vez mais turistas estrangeiros e nacionais. Há noites em que mal se ouve português. “Quando os museus estiverem abertos, e se o passadiço for feito na encosta do castelo, não tenho dúvidas nenhumas de que Abrantes vai ter muita gente”, acredita Alberto. A Fugas viajou a convite da Tagus – Associação para o Desenvolvimento Integrado do Ribatejo Interior e de O Meu Escritório Lá Fora
SEJA RESPONSÁVEL BEBA COM MODERAÇÃO.
Sabores de Abrantes