Mídia B

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Revista Laboratório do Curso de Jornalismo Faculdade Social da Bahia (FSBA) Ano 6 – no 4 – 2009

“Morte ao Cemitério!” Entenda por que há mais de 170 anos, populares demoliram o Campo Santo, um dos mais tradicionais abrigos fúnebres de Salvador

A terra parou

Com a greve da PM, em 2001, a capital baiana viveu dias de fúria e medo

Quebra-quebra Em 1930, revoltados com preços altos e serviços ruins, soteropolitanos destruíram 80 bondes

A fonte secou

Um dia, as águas dos rios caudalosos de Salvador foram suficientes para abastecer a cidade

Omar Sharif era um pão! Nos anos 1960, os cinemas de bairros eram o reduto de brotos e gente bacana



Carta ao Leitor A Fonte Nova nunca mais será a mesma

O

tema desta edição da revista MÍDIA B é a história de Salvador. No ano em que a cidade comemora 460 anos, a revista faz uma justa homenagem à primeira capital brasileira. Desde a chegada da armada de Tomé de Souza, em 1549, até hoje, muito já foi vivido por aqui. Algumas histórias nos despertam o orgulho de que “nunca mais o despotismo regerá nossas ações” *. Outras, nos apontam o aeroporto como a melhor saída. Salvador é assim mesmo: cheia de contradições. A terceira maior metrópole do País (e a mais antiga delas) sofre com problemas no mínimo anacrônicos: um mosquito assassino, um metrô que só se move nas páginas do jornal, escolas sem professor, postos de saúde sem médico, rios sem água. Por falar em rios, a reportagem de Laís Santos retrata a degradação sofrida pela rede fluvial soteropolitana através do tempo. A contraditória capital baiana é rica em manifestações populares, como o “Quebra- bondes”, episódio que em 1930 reduziu a escombros 70% da frota, tema da reportagem de Sara Gomes. Já em 1933, a Igreja da Sé foi demolida para dar passagem a novos trilhos, cuja instalação estava prevista no projeto de modernização da cidade. Outro quebra-quebra memorável aconteceu em 1836. A “Cemiterada” surpreendeu o presidente da província, quando um grupo de manifestantes (que hoje equivaleria a 45 mil pessoas) depredou as instalações do cemitério do Campo Santo, no bairro da Federação, e fez voltar ao pó a proibição de enterros em igrejas. Nesta edição você também vai relembrar um fato recente, mas não menos importante: a greve da Polícia Militar em 2001. Durante 13 dias, Salvador virou uma “terra de ninguém”, e a própria população se incumbiu de prender bandidos. A terra que gerou Gregório de Mattos, Nilda Spencer, Dorival Caymmi e viu crescer Glauber Rocha é historicamente um berço das artes. O cinema é homenageado nas páginas da revista. As editorias levam o nome de filmes de cineastas baianos como José Araripe Júnior (Mr. Abrakadabra), Orlando Senna (Diamante Bruto) e Edgard Navarro (Eu me lembro), entre outros; e a bela reportagem de Íris Queiroz (“Velhos tempos, belos dias”) relata com precisão e poesia quem eram e como se comportavam os cinéfilos locais nos anos 1960. No ano em que fomos escolhidos como uma das subsedes da Copa de 2014, não poderíamos deixar de fora um assunto: a Fonte Nova. Em entrevista exclusiva a Gabriel Guimarães, o radialista José Ataíde, 60 anos de carreira, relata cenas antológicas vividas no estádio. Salvador tem muita história para contar. E, nós, da MÍDIA B, estamos fazendo a nossa parte. Boa leitura!

És belo, és forte...

Fora dos trilhos O bonde pede passagem

Águas do passado

Caos na capital

Necrópole à beira da morte

Além de Glauber Velhos tempos, belos dias

Risos à mão

Um carnaval ímpar

* Trecho do Hino ao Dois de Julho

O Magnífico Reitor

Faculdade Social da Bahia Av. Oceânica, 2717, Ondina, Salvador-BA C.E.P.: 40170-010 / Tel.: (71) 4009-2840/41 www.faculdadesocial.edu.br Diretora Geral Maria Alice Teixeira da Silva (FCM)

Coordenação do Curso de Jornalismo Edson Fernando Dalmonte Jornalistas/Professores responsáveis Bárbara Souza, Carlos Henrique Brito, Jussara Maia e Lilian Reichert Coelho

Repórteres Ariadne Ferraz, Ciranda Campos, Gabriel Guimarães, Íris Queiroz, Laís Santos, Patrícia Príncipe, Paula Britto, Simone Caetano Farias, Rafael Brito, Sara Gomes, Taciana Soares e Tom Correia.

Projeto Gráfico, Diagramação e Capa Carlos Henrique Brito

Tiragem 3.000 exemplares

Vice–direção de Graduação Girogio Borghi

Edição Bárbara Souza (editora-chefe), Ciranda Campos, Gabriel Guimarães, Laís Santos e Tom Correia (subeditores)

Impressão

Vice–Diretor Administrativo Luís Alberto Bastos Azevedo da Silva

Revisão Lilian Reichert Coelho

Diretor da Faculdade Antônio Alberto da Silva Monteiro de Freitas

[MÍDIA B] 2009


por Gabriel Guimarães

“A Fonte Nova nunca mais será a mesma”

Q

uando José Ferreira Júnior retornou, em 1901, de uma temporada de estudos em Londres, trazendo consigo uma bola, provavelmente, não imaginava o sucesso que aquela pelota faria entre os soteropolitanos. Zuza Ferreira, como era conhecido, voltou à capital baiana para trabalhar, porém se tornou o precursor do futebol na Bahia. As primeiras partidas eram amadoras e adotavam um vocabulário britânico, devido à origem inglesa do esporte. Escanteio chamava-se córner. Aos poucos, os jovens da elite soteropolitana iam montando seus clubes e times. Ypiranga, São Salvador, Club Bahiano de Tênis e Vitória foram algumas das agremiações esportivas que se dedicaram à prática do soccer, dando início à profissionalização na Bahia, com a realização do primeiro campeonato estadual de futebol em 1905, conquistado pelo Clube Internacional de Cricket. Salvador ainda não possuía locais adequados para o futebol e tinha de se adaptar para realizar as partidas. Por quase meio século, as disputas na Soterópolis aconteceram no Campo da Pólvora, no Hipódromo do Rio Vermelho (atualmente, Parque Lucaia) e no Campo da Graça, construído especificamente para o esporte. Mas, a grande transformação do futebol baiano aconteceria Mídia B – O senhor começou sua carreira como narrador no Campo da Graça. Mas, o senhor esteve presente na inauguração da Fonte Nova? José Ataíde - Os meus colegas da época apregoavam, com muita felicidade que a vinda do estádio da Fonte Nova seria um marco muito grande na história do futebol baiano. Passou-se a fazer um intercâmbio com outros estados - São Paulo, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul - para jogarem aqui, de sorte que todos [MÍDIA B] 2009

em 1951. Três dias antes do fim do mandato, em 28 de janeiro, o então governador, Octávio Mangabeira inaugurou o equipamento esportivo mais importante da Bahia, o Estádio Octávio Mangabeira, popularmente chamado de Fonte Nova. Durante os 56 anos em que funcionou, o estádio foi palco de momentos importantes do futebol baiano e brasileiro: campeonatos estaduais, grandes clássicos, três decisões de competições nacionais, além de jogos da Seleção Brasileira. Uma pessoa especial acompanhou a maior parte desses momentos. Com 60 anos de profissão, o radialista José Ataíde, nascido no dia de 15 de março de 1934, na cidade de Santa Inês, a 288 km de Salvador, vivenciou histórias inesquecíveis. Ele estreou no rádio com apenas 15 anos, em 1949, narrando uma partida de futebol pela Rádio Excelsior da Bahia, ainda no Campo da Graça. O cronista, que já trabalhou nas rádios Sociedade da Bahia, Salvador FM, Clube, Cruzeiro, Bahia e Cultura, na qual, atualmente, apresenta, de segunda a sexta-feira, ao meio-dia, a resenha Boa Tarde Bola, conversou com a reportagem de MÍDIA B e contou detalhes de histórias vividas na Fonte Nova.

ficavam encantados com a inauguração da Fonte Nova. MB – Quando se fala o nome Fonte Nova, qual é a primeira lembrança que vem à sua mente? J. A. – Campeonato Brasileiro, 1953. Naquela época, não existia Campeonato Brasileiro de clubes, existia o de seleções; então, os clubes se preparavam para formar as suas seleções - paulista, pernambucana, etc. A Bahia se preparou muito bem para disputar essa copa; o

treinador chamava-se Sotero Monteiro e formou um time de maior categoria possível, com aqueles atletas que, podemos dizer, germinaram na Fonte Nova para enfrentar a seleção paranaense. Fomos infelizes, tomamos uma goleada de cinco a zero, na estreia dessa seleção, em plena Fonte Nova, com mais ou menos 50 mil pessoas. Aí, a torcida começou a gritar, referindo-se a Sotero: “Sotero é de morte, fez um time fraco e diz que é forte”.


MB – A primeira grande conquista do futebol baiano em nível nacional: Esporte Clube Bahia, campeão da Taça Brasil de 1959. O que o senhor lembra da partida decisiva contra o Santos aqui, na Fonte Nova? J.A. – Eu me lembro que o Bahia começou o jogo com Nadinho, Leoni, Henrique, Vicente e Pepe. Flávio e Mário, Marito, Alencar, Léo e Biriba. Foi um jogo que a torcida esperava a definição mais fácil, embora o Santos fosse aquele time incrível, com Doval, Mengálvio, Coutinho, Pelé e Pepe. E aí o Santos venceu. A final acabou no Maracanã (Rio de Janeiro), quando o Bahia tirou Flávio e colocou Ponteiro no lugar dele e repetiu o resto da equipe, uma das melhores que o Bahia já teve até hoje. MB – E, afora o Pelé, que jogava naquela época e atuou na Fonte Nova, qual o jogador que encantava, o craque? J.A. – Eu não estou comparando quem foi melhor, Pelé ou San Felipo, claro que o melhor foi Pelé. Mas, acontece que, jogando futebol, eu narrando ou vendo pela televisão, as atuações de San Felipo foram muito melhores. Eu costumo dizer o seguinte: é incontestável que Pelé foi muito melhor do que San Felipo mas, jogando na Fonte Nova, foi o maior craque que eu já vi jogar até hoje. Fazia artes com a bola o argentino que jogou no Bahia. MB – Com relação ao grande clássico do futebol baiano, o BA x VI, qual foi o que mais te marcou, aquele jogo inesquecível? J.A. – Eu não sei se esse que eu vou citar foi o mais importante ou foi o mais emocionante, mas, com absoluta certeza você vai gostar de um detalhe. Era um BA x VI com 60 mil pessoas; nesse jogo, eu era repórter. Aconteceu um fato inédito, as duas equipes começaram o jogo com dez jogadores. E por que isso? Os dirigentes de Bahia e Vitória não queriam árbitros locais, e a Federação Bahiana, não me lembro o presidente, mandou buscar um juiz do Rio de Janeiro. E veio um acostumado a, por qualquer coisa, expulsar. O nome dele era Amílcar Ferreira e, naquela época, não existiam os cartões. O árbitro, quando as equipes entraram em campo, reuniu os 22 jogadores e passou instruções. O capitão do Vitória chamava-se Pinguela e o capitão do Bahia, Otonei, e o juiz falou: “comigo não tem negócio de capitão não; bobeou, eu boto pra fora”. Pinguela falou: “isso é um absurdo!”. E o juiz: “Tá expulso, rua!” Agora, imagine para explicar aos ouvintes o que estava

acontecendo... E o capitão do Bahia: “Mas, seu juiz, tá errado”. E o juiz: “Rua”. E aí começou o jogo, com 10 para cada lado. Acho que foi ainda na década de 1950. MB – A reinauguração da Fonte Nova, em 1971, foi um dia de festa, mas também ficou marcado pela primeira tragédia do estádio. O que o senhor lembra dos bastidores daquele dia, já que se vivia no período do regime militar? J.A. – O general Emílio Garrastazu Médici foi o convidado especial para assistir àquele jogo, uma rodada dupla, Bahia x Flamengo e Vitória x Grêmio, e alguém, não posso adiantar quem tenha sido... foi meu colega França Teixeira? Acho que não foi... teria dito o seguinte: “a Fonte Nova não vai aguentar tanta gente”, e se foi para o estádio com essa perspectiva sombria. E o que aconteceu foi que, em uma parte da geral, alguém gritou que o estádio estava desabando e veio aquele tumulto. Isso está fixado na minha mente, as pessoas de cima rolavam para baixo, caindo todo mundo no fosso. Eu estava embaixo, olhei para cima e, neste exato momento, vi o general fumando seu cigarro, tranquilo, impávido, como ele era, frio, não disse nem “ai, Jesus” e nem “meu Deus”. MB – Décadas de 1980 e 1990. Bahia, campeão brasileiro de 1988 e Vitória vice-campeão brasileiro de 1993. O que o senhor traz de recordações desses períodos? J.A. – Eu me lembro de Bobô, que foi o grande maestro daquele time e foi realmente uma epopeia vivida pelo Esporte Clube Bahia. Não sei se tinha 110 mil pessoas naquele jogo contra o Fluminense (semifinal), a Fonte Nova regurgitando e, depois, o título, que viria no zero a zero contra o Internacional, no Rio Grande do Sul. Agora, eu vou lhe pedir permissão para falar de uma época sombria da Fonte Nova, quando a imprensa decidiu protestar contra os Com a escolha de Salvador como uma das sedes da Copa de 2014, a Fonte Nova pode voltar a seu tempo áureo

atos do então presidente do Vitória, Nei Ferreira. Ele tinha autorizado que prepostos dele espancassem um jornalista da Rádio Sociedade chamado Cléo Meirelles, e esse rapaz fazia um tipo de oposição ao presidente. Ele foi atacado em um ônibus, em frente ao Bahiano de Tênis; eles deram uma surra no radialista. A imprensa, tendo em vista que nenhuma providência oficial foi tomada, a não ser o então governador, Antonio Balbino (1955–1959), que se mexeu para alguma coisa, mas era sogro de Nei Ferreira. ACM estava começando na política, a imprensa resolveu não noticiar nenhum fato sobre o Vitória. Ficamos quatro ou cinco meses com as emissoras sem dar uma nota sequer relacionada ao Vitória, nem jornais, nem televisão e, muito menos, as emissoras de rádio. Foi um período que, quando você chegava no estádio, a torcida do Vitória já ia te xingando, ameaçando, hostilizando, até fisicamente. MB – Em sua opinião, o que a Fonte Nova representou para o futebol baiano? E, com a futura reforma, a tradição vai ser mantida? J. A. – É difícil, a Fonte Nova nunca mais vai ser a mesma. Mas, a Fonte Nova está para o futebol baiano assim como o Pelourinho, o Forte de São Marcelo estão para Salvador, é um monumento. Por lá passaram grandes craques, grandes dirigentes, grandes torcedores, grandes cronistas e, por mais que o governo, eu não sei e lhe digo sinceramente, certo ou errado, queira destruir a Fonte Nova, fazer um novo estádio, eu acho que ficará sempre na nossa memória, que vivemos de 1950 pra frente, aquela beleza de estádio, inicialmente para 50 mil e depois para 100 mil torcedores. E, hoje, a gente passa, como eu passei agora pela manhã (27/05/2009) e disse para o taxista: “Aí está o gigante adormecido!”. Foto: Nilton Souza

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por Simone Caetano

És belo, és forte... V

estida com trapos sujos e em cores sombrias, a personagem “Imagem do Forte” surge numa apresentação teatral ao ar livre e declama: “Minha alma agoniza e pede socorro pálido, fraco, solto. Do abandono, ventos sopram e levam minhas memórias em ruínas, canhões silenciados e lançados ao esquecimento”. Na cena seguinte, a personagem, já livre do velho traje, dança alegremente com roupas coloridas. O antagonismo entre as duas cenas é uma metáfora que representa a transformação do forte São Marcelo: o espaço, ora abandonado, torna-se um ponto turístico e cultural. Escrito pelo museólogo e pesquisador Anderson Moreira, o roteiro faz parte do projeto Arte Forte, uma das ações do programa de revitalização do São Marcelo. Tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) desde 1938, o monumento esteve fechado por 40 anos. Em março de 2006, foi aberto à visitação pública por iniciativa da Associação Brasileira dos Amigos das Fortificações Militares e Sítios Históricos (Abraf ). Concebido e administrado pela equipe supervisionada pelo Coronel Anésio Ferreira Leite, atual presidente da Abraf, por Anderson Moreira e pela diretora artística, Edva Barretto, o Arte Forte conta com o apoio da Secretaria Municipal de Educação, Cultura, Esporte e Lazer (SMEC). Com a recuperação, o forte ganhou museus interativos, projeto pedagógico e espaço educativo, além de salas de exposição artística, apresentações teatrais e de dança. Durante uma visita ao forte com um grupo de militares, em 1999, o Coronel Leite constatou o abandono e percebeu que aquele local poderia ser utilizado para fins culturais e turísticos. Ele resolveu encampar a causa. No mesmo dia, redigiu um ofício ao Iphan solicitando a revitalização do monumento e, a partir de então, começou

Quatro séculos e ainda muito trabalho a fazer: soteropolitanos encontram educação e cultura no forte São Marcelo [MÍDIA B] 2009


ha as crianças nos compartimentos do forte e conta três séculos de história do Brasil, iniciada na Bahia”, explica Edva. Para a professora Sueli Lorenzo, a encenação é importante para que as crianças assimilem melhor os temas abordados: “é a nossa história contada de maneira lúdica e prazerosa, com personagens caricaturados, interagindo com as crianças. É um relato vivo também para os adultos que ainda não a conhecem”, diz. Além da peça e do acervo, o projeto Arte Forte conta com a apresentação de dança folclórica e contemporânea e passeio náutico noturno. A revitalização está no início. Ainda há outras etapas a serem cumpridas e mais recursos precisam ser captados para a reforma da estrutura submersa, obras de impermeabilização, sondagem e serviços de manutenção de equipamentos eletrônicos como o canhão cibernético e o simulador náutico. Também está prevista a construção de duas caravelas com capacidade para 120 e 150 pessoas. Segundo o Coronel Leite, a renda da visitação – o ingresso custa R$ 7 e a média diária de público é 140 – só paga as despesas fixas. Por isso, a administração já acena a possibilidade de conquistar novos parceiros e realizar eventos de empresas que busquem um ambiente diferenciado para eventos. Entretanto, é necessária a autorização do Iphan. “Estamos aguardando a decisão para esse ano”, declara o Coronel. Enquanto, de um lado, o forte São Marcelo enfrenta dificuldades, devido à escassez de recursos financeiros, por outro, é abundante a beleza natural ao redor do prédio de planta circular, construído assim para permitir que as armas pudessem atirar em qualquer direção. Do banco de areia em que está locali-

zado, a 300 metros da orla, é possível avistar, de suas janelas-moldura, quadros da paisagem viva da cidade: o Elevador Lacerda, o Mercado Modelo, a Avenida Contorno e a população que fervilha à beira da baía de Todos os Santos.

Telefone

3525-7142 Ingresso para travessia e tour no forte

R$ 12 R$ 7 (meia entrada) Tour Náutico (noturno)

R$ 35 Dias e horários

todos os dias, das 9h às 18h Arte Forte

visitas em grupos: horário e preço a combinar

Simone Caetano

a buscar parceiros que auxiliassem no projeto. “Durante cinco anos, fiz várias tentativas para a empreitada da reforma, fui buscar apoio em outros estados, sem sucesso, até que surgiu a oportunidade de mostrar o projeto ao prefeito João Henrique e consegui sensibilizá-lo”, lembra o militar. Em 2005, o projeto foi aprovado, e a Abraf conquistou parceiros do setor privado. As obras de recuperação foram concluídas, e o forte, construído de forma circular no século 17 para defender a cidade, passou a ser um símbolo de cultura e arte. Hoje, nas salas arejadas, funcionam três museus, formados por peças dos séculos 16 a 19. Fazem parte do acervo equipamentos balísticos utilizados na defesa do porto de Salvador e ferramentas de engenho usadas na produção do açúcar, cachaça, algodão e tabaco. Roteiro cultural - O passeio completo tem duração de três horas. As crianças são recebidas nos ônibus por monitores vestidos à moda da época colonial. Eles contam histórias sobre o porto da cidade e entoam cantigas típicas do folclore brasileiro. Já no forte, as crianças partem na caravela quinhentista Príncipe Regente – Monte Serrat, dando início à visita náutica à baía de Todos os Santos. Os passageiros da caravela visualizam diversos fortes: Monte Serrat, Forte de Santo Antônio da Barra, Santa Maria, São Diogo, Santo Antônio Além do Carmo, São Paulo da Gamboa e retornam ao São Marcelo. No interior, os visitantes encontram o personagem “Arauto do Rei”, interpretado pelo ator Cláudio Machado, que conta a origem da fortificação - e fala sobre presos ilustres do passado como Bento Gonçalves e Cipriano Barata. “O ‘Arauto’, de forma divertida, acompan-

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por Sara Gomes

Fora dos trilhos E

ra fim de tarde de um sábado ensolarado, e a cidade começava a ficar escura. Nas ruas, o “corre-Cristo”, funcionário da companhia de energia, saía de poste em poste interligando os fios elétricos e garantia a iluminação pública nos principais pontos da capital baiana. Das janelas das casas, viam-se trilhos, cabos elétricos, passageiros e, claro, o motorneiro no controle dos bondes que circulavam transportando a população, sempre vestido com camisa cáqui, calça comprida e chapéu. Mas, aquela não seria uma noite comum. Sentado em uma das camas que lotam a ala masculina do Abrigo Dom Pedro II, localizado no Largo de Roma, Carlos Ribeiro de Araújo não cansa de narrar, detalhadamente, as histórias da época em que andava de bondes. Apesar dos cabelos brancos, Seu Carlos lembra com clareza o momento em que o povo resolveu sair às ruas para protestar. Para ele, a manifestação foi a única forma dos soteropolitanos exigirem melhores condições do transporte público. Apesar de não haver nenhum livro publicado sobre o assunto, o episódio que passou à história como o Quebrabondes causou nervosismo e medo aos moradores de Salvador. Iniciado no Terreiro de Jesus, no dia 4 de outubro de 1930, os manifestantes seguiram em direção ao Campo Grande, passando pelo Campo das Hortas (atual Barroquinha), Largo de Santana e Baixa dos Sapateiros. No caminho, dois barracões da empresa Linha Circular de Carris da Bahia, que fazia transportes urbanos, foram completamente destruídos. As portas da Igreja de São Francisco de Assis, onde estava sendo realizada uma missa em louvor ao santo, foram fechadas, devido à confusão. De acordo com Geraldo da Costa Leal, autor de Perfis Urbanos da Bahia: os bondes, a demolição da Sé, o futebol e os gallegos, “notava-se que havia algo inusitado e o povo avançava pelas ruas com gritos de ‘viva o Brasil e abaixo a Circular, quebra, incendeia, cadê Pedrito, o gato comeu!’”. Os manifestantes chamavam Pedrito, o secretário de Polícia da cidade, Pedro Gordilho, que despertava insatisfação por reprimir protestos organizados por quem exigia seus direitos de cidadão. Em 1930, a Linha Circular de Carris da Bahia era a única que transportava passageiros pelo centro da cidade, onde se concentrava a maior parte dos 283 mil habitantes da capital. Além disso, a empresa fazia o serviço de condução nos Planos [MÍDIA B] 2009

Inclinados Gonçalves, do Pilar e ainda no Elevador Lacerda, que havia sido reformado naquele ano, ganhando quatro novas cabines, cada uma com capacidade para 27 passageiros. Para andar de bonde, a população deveria pagar 100 réis ou um tostão, mas a Circular pretendia aumentar a tarifa, que passaria para dois tostões. Pode-se comparar o preço do transporte, na época, com o valor de gêneros alimentícios como um litro de feijão. O valor era considerado elevado e não se via a contrapartida: não havia melhoria do sistema de transporte e faltava segurança. Eram comuns mortes causadas por choques elétricos e atropelamentos. Com a promessa de atender aos anseios populares, o então prefeito de Salvador (1928-1930), Francisco de Souza, onerou as tarifas. Revoltada com a crise econômica que assombrava o Brasil, a população decidiu sair às ruas. Estima-se que mais de 500 soteropolitanos participaram, em meio a gritos, das depredações contra os bondes. As manifestações foram violentas, provocando número ainda desconhecido de mortos e feridos. Não há registros apontando os líderes do Quebrabondes, entretanto, suspeitos foram presos, entre eles, três jornalistas: Joel Presídio, Alfredo Lopes e Cosme de Farias, que ficaram detidos por quatro anos. O intenso quebra-quebra durou pouco mais de 5 horas, mas parecia não ter fim. Além do centro da capital, distritos distantes do lugar onde as decisões políticas eram deliberadas como Retiro, Itapuã e Brotas, tiveram as ruas tomadas pelos populares, que permaneciam enfurecidos enquanto depredavam os bondes. A descentralização do movimento, que se espalhou por diferentes pontos de Salvador, mostra que os protestos eram fortes e organizados. Com a chegada da Polícia Militar, o movimento findou. Na segunda-feira, os jornais O Imparcial, Diário de Notícias, Diário da Bahia, Era Nova e A Tarde tiveram as matérias sobre o Quebra-bondes censuradas e, para deixar clara a retaliação, foram publicados com espaços em branco. Três dias depois da confusão, o serviço de bondes começou a ser restabelecido de maneira precária pelas ruas da capital, como foi publicado no dia 7 de outubro, no jornal Era Nova: “Graças a Deus os acontecimentos surprehendentes da noite de 4 de outubro passaram, voltando a população a calma de sempre. O serviço de bondes que estava suspenso foi hoje restabelecido em parte e esperamos, baseados no aviso da Direção da Circular, que muito breve o serviço de trafego


seja inteiramente restabelecido. Temos a certeza de que a população desta Capital ordeira como tem sido sempre continuará tranqüilla e que nenhuma anormalidade lhe perturbará”. O movimento deixou consequências para a população, e os prejuízos giraram em torno de um milhão de dólares. Foram 84 bondes destruídos (70% da frota), além do Elevador Lacerda, Planos Inclinados e a sede recém-inaugurada do jornal A Tarde, na Praça Castro Alves. O impresso apoiava o aumento no preço das passagens e foi incendiado por um grupo de populares que, carregando garrafas de gasolina, decidiu colocar fogo no maquinário. Em Perfis Urbanos da Bahia, Geraldo da Costa Leal afirma que a multidão gritava: “Não se leva nada. É para ser quebrado e incendiado”. Origens da quebradeira Apesar dos livros e jornais indicarem o aumento da tarifa como motivo do levante, existem outras hipóteses: o desrespeito pela bandeira nacional, que teria sido utilizada como porta de um dos

banheiros da Circular; e o golpe dado por Getúlio Vargas, que assumiu a presidência da República no dia anterior, em 3 de outubro. Este fato causou repulsa aos brasileiros que resolveram se manifestar por todo o país, começando em Porto Alegre e se estendendo pelo Rio Grande do Sul, Minas Gerais e Paraíba. Contudo, não há registros de que o Quebra-bondes tenha ligação com a revolta de 1930. Para o historiador e autor da tese para doutoramento Capital Estrangeiro e História Política Baiana, Joaci Cunha, o movimento foi uma resposta da comunidade a uma série de fatores, entre eles a perseguição do poder policial às manifestações populares. “Eles protestavam contra o jornal A Tarde, de Simões Filho [1886-1957], por conta do seu acordo com o grupo estrangeiro, pelo suposto fato dele ter sido beneficiado com recursos e protestavam também contra o uso indevido da bandeira nacional, ao mesmo tempo que canalizaram a ação para os bondes”, conta. Entre o final da década de 1920 e o início dos anos 1930, a Bahia, como todo o país, atravessava uma série de

crises políticas, sociais e econômicas. Com a quebra na bolsa de valores de Nova Iorque, dezenas de fábricas foram fechadas e as demissões em massa tornaram-se comuns: havia mais de dois milhões de brasileiros desempregados. O salário dos trabalhadores sofreu redução que variava entre 40% e 50%. O medo do desemprego e a fome espalhavamse pelo Brasil. De acordo com Consuelo Novais Sampaio, autora do livro Partidos Políticos da Bahia na Primeira República - Uma política de acomodação, “a crise econômico-financeira que abalou o mundo em fins de 1929 atingiu profundamente a Bahia, cuja economia era totalmente dependente do setor exportador, e cujas finanças se alimentavam de empréstimos estrangeiros, como de resto acontecia com todo o Brasil”. Em Salvador, desde longa data, eram comuns protestos populares contra o custo de vida. A população que se encontrava desempregada na época, via-se impedida de procurar empregos em outros distritos (bairros) devido à falta de dinheiro para a condução. Para o professor de História do Brasil da

Baixa dos Sapateiros: na manhã do dia 5 de outubro, a Linha Circular começa a contar os prejuízos.

Arquivo IGHB

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Arquivo IGHB

Universidade do Estado da Bahia (Uneb) e pesquisador dos Movimentos Operários na Primeira República, Aldrin Castellucci, o motivo para a revolta que limitou os serviços de transporte a 30%, além da carestia, foi a insatisfação social e política. “A explicação está na absoluta falta de alternativa que os sucessivos governos impunham à população em termos de qualidade de vida. Salvador concentrava um espetáculo de contradições, entre muita riqueza e muita pobreza. Poderia se reclamar de preço de passagens em 1930, mas se reclama do preço da passagem do transporte público hoje. Aliás, o sistema de transporte em Salvador sempre foi muito caro e muito restrito”, afirma. Velho filme: 51 anos depois Para Cunha, não há um motivo único que explique o Quebra-bondes. Além disso, há a possibilidade de uma quarta hipótese. “Existia um conglomerado norte-americano, a Bounde Chair que, na Bahia era responsável monopolisticamente pelos serviços de transportes urbanos, fornecimento de gás, energia elétrica e telefonia”, afirma. Para ele, a formação de um monopólio na capital baiana abriu caminho para a explicação dos protestos ocorridos em 1930. O fato de haver apenas uma empresa responsável pelos principais serviços elevava as tarifas, causando insatisfação numa população que possui até hoje, questões recorrentes contra o aumento de preços. O quebra-quebra de ônibus, ocorrido em 1981, quando foi estabelecido reajuste de 61% na passagem dos transportes urbanos. Inconformados com a majoração, estudantes saíram às ruas para reivindicar, deixando cerca de 750 ônibus danificados; e a revolta do buzú, ocorrida entre o final de agosto e o início de setembro de 2003, quando centenas de estudantes se uniram para protestar, mais uma vez, contra o aumento no preço das tarifas, provocando engarrafamentos em diferentes pontos de Salvador. Há quase oitenta anos, pouco a pouco, em meio aos destroços, os bondes não danificados voltaram a funcionar, servindo primeiro aos moradores da Cidade Alta. A Linha Circular abriu um processo contra a Fazenda do Estado da Bahia e a Fazenda do Município de Salvador, responsabilizando-as pela destruição dos bondes e exigindo indenização. Hoje, os bondes se foram. Mas, para Seu Carlos, restaram as lembranças e os reflexos de uma cidade mal servida de transportes. [MÍDIA B] 2009

Bonde incendiado pelos soteropolitanos na Praça do Comércio. A manifestação ganhou proporções violentas.

Breve histórico do transporte público em Salvador Lei Municipal estabelece o serviço de ônibus ou gôndolas (carros puxados por animais) Início do serviço regular de transporte em duas linhas: uma na Cidade Alta e outra na Cidade Baixa. Surgem algumas linhas sobre trilhos e são aprovadas as concessões para os serviços de transportes entre a Cidade Alta e a Cidade Baixa. Começam a circular, de maneira precária, os ônibus. Inaugurado o serviço de trólebus (ônibus elétrico) como tentativa de substituição aos bondes. Início do processo de bilhetagem eletrônica pelo Sindicato das Empresas de Transporte de Passageiros de Salvador (Setps). Projeto para a implantação do metrô de Salvador. Fonte: Sindicato das Empresas de Transportes de Passageiros de Salvador - SETPS


por Patrícia Príncipe

O bonde pede passagem Igreja vista da Cidade Baixa, 1860, Benjamin Mulock

A demolição da Igreja da Sé, marco da chegada dos portugueses ao Brasil, para a construção de trilhos, dividiu as opiniões da sociedade da época

A

pós 21 anos de discussões e disputas políticas, em 1933, a Igreja da Sé foi derrubada. O motivo? A realização de um novo projeto urbanístico, segundo o qual os trilhos dos bondes, um dos principais meios de transporte da época, passariam pelo local onde o templo estava edificado. Construída em 1553, além do valor artístico e histórico, a igreja possuía grande importância religiosa, principalmente por ter sido catedral até o ano de 1765. A destruição da igreja é até hoje encarada como um dos atos mais violentos contra o patrimônio histórico no Brasil. O plano de modernização em questão, intitulado “urbanismo demolidor”, teve início na primeira gestão do governador José Joaquim Seabra (19121916). Nessa época, outras cidades brasileiras, como o Rio de Janeiro e Belém já haviam passado por grandes transformações, seguindo o modelo dos projetos urbanísticos realizados na Europa. O impulso progressista que surgiu no Brasil era reflexo das grandes mudanças ocorridas no mundo com a Revolução Industrial, durante o período que antecedeu a Primeira Guerra Mundial. O pensamento das lideranças políticas baianas era unânime: para acompanhar o processo civilizatório, as reformas eram necessárias. Uma nova aparência elevaria Salvador ao mesmo patamar no qual se encontravam as principais capitais do país. Isto incluía a implantação de um novo sistema de transportes urbanos e, para isso, era preciso abrir espaço para os trilhos dos bondes e automóveis. A ordem dada por J. J. Seabra era tirar o

Em 1808, a Igreja da Sé foi usada como fortaleza contra os invasores holandeses. [MÍDIA B] 2009


Lateral esquerda da Sé, 1928, Eduardo Braga

que estivesse no caminho do progresso. O historiador Fernando da Rocha Peres afirmou que o desejo de progresso sobrepunha qualquer preocupação com o conjunto arquitetônico anteriormente edificado: “eles destruíram todo o Rio de Janeiro tentando imitar Paris e a elite da época queria fazer a mesma coisa aqui. Era a política do bota abaixo”. Em seu livro Memória da Sé, Peres relata como a opinião pública foi influenciada pela imprensa e atribui a ela papel fundamental durante as discussões sobre pôr abaixo a igreja ou não. A maioria da população era analfabeta e não se posicionava nas decisões políticas. Os jornais circulavam entre a elite letrada. As matérias reduziam a importância da igreja e a desqualificavam constantemente com palavras chulas, enquanto enalteciam as belas avenidas que ocupariam o seu lugar. Segundo os jornais, a população que se referia à Sé como um “trambolho” - aderiu com entusiasmo, concordando com a destruição do patrimônio. Mas, foi a intelligentsia baiana que deu respaldo popular à decisão dos líderes políticos. Arquitetos e historiadores atestam o valor da igreja da Sé, erguida por ordem de Tomé de Souza quando chegou à baía de Todos os Santos, em 1549. Logo após ordenar o levantamento de muros em torno do território demarcado para os limites da cidade, o primeiro governadorgeral do Brasil mandou erguer os templos para oração. “Na parte baixa da cidade faz a Igreja da Conceição da Praia, e na parte alta, a primeira Sé, feita de taipa e coberta de palha”, conta Fernando Peres. Exemplo da arquitetura colonial brasileira, o interior da Sé era adornado com trabalhos de entalhe na madeira, pinturas e esculturas trazidas da Europa pelos holandeses. O seu valor histórico era inquestionável; em duas ocasiões, a igreja serviu de fortaleza na luta contra os holandeses: nos anos de 1633 e 1638. Foi neste santuário que aconteceu a celebração do Te Deum - louvação agradecendo a Deus - na chegada do príncipe regente D. João VI, em 1808. Na Igreja da Sé eram realizadas as cerimônias oficiais de posse dos governantes baianos e, em seu púlpito, o padre Antônio Vieira proferiu muitos dos seus sermões. O arquiteto e urbanista André Sá afirma que, “em princípio, a preservação de um patrimônio arquitetônico deverá ser priorizada. A sua demolição deverá ser evitada usando-se os recursos da engenharia moderna nas intervenções necessárias”. [MÍDIA B] 2009

Sai a igreja, chegam os vagões. A Sé foi demolida para facilitar a circulação de veículos. A demolição Os objetos retirados da Igreja da Sé foram distribuídos entre outras igrejas. Por imposição dos fiéis, as imagens dos santos foram levadas em procissão para a Catedral Basílica. A demolição da Sé aconteceu no dia 7 de agosto de 1933, “o povo curioso, afluiu ao templo para certificar-se do que iria acontecer”, relata Peres, em seu livro. Na matéria de capa do jornal A Tarde daquele dia foi publicado que, “sob a orientação do engenheiro Enéas Gonçalves Pereira, encarregado pela prefeitura municipal foram iniciados definitivamente os trabalhos de demolição hoje às 8 horas. Uma numerosa turma de operários trabalhava activamente na parte interior da igreja”. Ainda de acordo com o relato do historiador Fernando Peres, “o principal responsável no encadeamento do fato foi quem afinal autorizou a demolição, o arcebispo do Brasil, Dom Augusto Alves da Silva. Antes dele, D. Jerônimo Tomé da Silva já havia pedido autorização ao Vaticano para a destruição da igreja”. Para André Sá, deve haver um consenso nas tomadas de decisões em questões que envolvem a descaracterização de um patrimônio arquitetônico. O planejamento viário de uma cidade nunca deve ser voltado a atender as soluções do momento; o espaço para uma futura ampliação já deve estar incluído em qualquer projeto. Hoje, no lugar antes ocupado pela igreja, há o monumento da Cruz Caída, criado pelo escultor Mário Cravo. “Ao se fazer um monumento, registra-se uma revolta aliada a uma memória, uma lembrança. A Cruz Caída incorpora, com uma beleza emblemática, parte da revolta dos baianos pela sua demolição”, conclui o arquiteto.

No livro Memória da Sé, o autor Fernando da Rocha Peres relata a existência de outros projetos urbanísticos nos quais havia planos viários alternativos que possibilitava a implantação dos trilhos, sem necessidade de demolir a igreja: “Conjuntamente com as tentativas telegráficas, veremos a elaboração de propostas ou projetos arquitetônicos e urbanísticos que visam salvar o edíficio, como é o caso da solução apresentada pelo engenheiro Israel Zimelson, que vem aos jornais defender ‘a construção de um túnel em arco atravessando a Igreja da Sé, para ligar a Rua da Misericórdia com a rua do arcebispo’... É sabido que outra solução já havia sido apresentada, a de Gama Abreu, em 1928, a qual recebia agora um reforço com a variante de um projeto da autoria do engenheiro civil Eurico da Costa Coutinho, definido e publicado em 1933, no qual estava previsto uma nova avenida [...] que liga a praça Rio branco à do Terreiro, hoje 15 de Novembro, partindo do ponto terminal da Rua Chile, passando em frente à Prefeitura e dirigindo-se ao prédio da Pastelaria triunfo, cortando-a até galgar a rua do Colégio no cruzamento com a rua do Liceu, ponto final da rua da Ajuda”.


por Laís Santos

Águas do passado Esgoto corre a céu aberto por onde antes passavam os rios que davam mais beleza a Salvador e abasteciam, com folga, a população

No século 19, o rio dos Seixos ocupava boa parte do que viria a ser o canteiro central da avenida Centenário.

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Marc Ferrez / 1884

U

m aprazível fim de tarde de sábado no Rio Vermelho e o Largo da Mariquita, um dos redutos da boemia soteropolitana, começa a receber seus fieis frequentadores para outra noite animada. Uma brisa morna sopra do oceano em direção à cidade, e o cheiro de maresia, característico de regiões litorâneas, cede espaço para os odores do progresso: o azeite de dendê que ferve no tacho, o combustível queimado dos veículos de condutores apressados, a fumaça dos cigarros acesos e, o mais incômodo, o cheiro de esgoto que exala das águas poluídas do rio Lucaia. Somando os principais rios e seus afluentes, a capital baiana tem 26 vias fluviais, que se estendem por todo seu território, do subúrbio ao centro. Entretanto, quase todos estão degradados. A exceção é o rio do Cobre, que nasce em Coutos e desemboca na Enseada do Cabrito, resistente às consequências de um processo de urbanização desordenado e o descaso dos governantes e dos moradores em relação à malha hídrica da cidade. Durante o período de dominação portuguesa, a capital baiana contava com recursos hídricos suficientes para abastecer a população e ainda fornecer água para os navios que atracavam por estas bandas. Atualmente, para distribuir os cerca de 900 milhões de litros de água consumidos diariamente por três milhões de moradores, Salvador conta com um sistema de abastecimento que envolve os municípios de Lauro de Freitas, Simões Filho, Candeias, Madre de Deus e São Francisco do Conde, localizados na Região Metropolitana. O rio Paraguaçu é o que mais contribui com este sistema ,provendo 34,1% da água utilizada, seguido pelos rios Jacuípe (33,2%), Joanes (29,3%), Ipitanga (2,4%) e Cobre (1%). Destes, apenas o Cobre fica em Salvador. Os principais problemas encontrados nos rios da capital baiana são o despejo irregular de esgoto doméstico e industrial e o acúmulo de lixo nos leitos. Para a ambientalista Telma Lobão, a situação atual tem raízes históricas e advém das etapas de desenvolvimento do município. “Os governantes pretendiam transformar Salvador numa cidade de primeiro mundo, negando seu passado e apagando sua geografia, rica em vales e montanhas, que poderiam


continuar existindo como refúgios de fauna e flora dentro da cidade”, declara. O processo de urbanização de Salvador é um dos principais responsáveis pelo abandono dos rios. Durante a Primeira República (1889 – 1930), serviços básicos como abastecimento de água e redes de esgoto eram restritos. Apenas alguns poucos socialmente privilegiados eram beneficiados com estes recursos. Foi o governador José Joaquim Seabra (1855-1942) que deu início à urbanização da capital do estado. Durante seus dois mandatos (1912 – 1916; 1920 – 1924), ele aplicou em Salvador uma política de modernização que tinha por base facilitar a circulação dos veículos. O espaço urbano modernizava-se para receber máquinas como o bonde elétrico e os carros. No entanto, não houve preocupação dos governantes quanto às vias fluviais da cidade. “Dos grandes planos de desenvolvimento urbano para Salvador, apenas mais contemporaneamente é que começou a aparecer a preocupação com os recursos hídricos da cidade”, conta o especialista em saneamento ambiental e professor da Escola Politécnica da Universidade Federal da Bahia (Ufba), Luiz Moraes. Água limpa?! O Camarajipe, também chamado de Camurujipe, é o maior e mais poluído rio da capital baiana. Com 15 quilômetros de extensão, ele nasce na Boa Vista de São Caetano e deságua no Costa Azul. É o Camarajipe que dá as boas-vindas aos que chegam à cidade pelo sistema de transporte rodoviário intermunicipal. Basta observar o trecho que fica próximo à estação Iguatemi para perceber a situação que se aplica também aos demais rios da cidade. Mau cheiro, lixo e lama são a realidade da maior parte dos canais fluviais de Salvador. Camarajipe é uma palavra de origem Tupi que, ironicamente, significa “água limpa e própria para o consumo”. No passado, sua foz original era o Largo da Mariquita, mas isso foi modificado devido à interferência humana. O professor Moraes foi um dos coordenadores do projeto Ações Integradas de Saneamento Ambiental na Baixa do Camarajipe (Aisam). Através de pesquisas e conversas com os moradores de São Caetano, bairro onde o projeto se [MÍDIA B] 2009

concentrou, a equipe da Ufba verificou que, devido à falta de infraestrutura urbana e à carência da população, não havia redes de esgoto no local e todos os resíduos produzidos pelas pessoas da região caíam nas águas do rio e se espalhavam pela cidade. Pelo quintal da casa do artista plástico Joselito Sampaio, 64 anos, morador do Imbuí há 48, passa o trecho de um dos afluentes do rio das Pedras. A estreita faixa de água limpa transforma-se num grande problema para seu Joselito: “quando chove demais, a água invade o terreno”, conta, enquanto mostra a vala que fez para tentar evitar os alagamentos. Ele revela ainda que no passado, as pessoas consumiam a água daquele rio, mas que hoje, a via fluvial que passava nas proximidades foi aterrada pela população, devido à necessidade de construir residências. Ao longo do tempo, a cidade cresceu e passou por cima dos rios. Casos como os citados por seu Joselito podem ser relacionados aos grandes investimentos imobiliários que têm provocado a devastação da vegetação original em nome do crescimento econômico: “a ocupação de áreas verdes da periferia da cidade e da Avenida Paralela tem contribuído para a expansão do problema”, declara Lobão. Em alguns pontos da cidade, houve tanta transformação que as únicas marcas da existência dos canais são fotografias e a memória da população. É o caso, por exemplo, do rio dos Seixos, que percorre a Avenida Centenário: “os mapas mais antigos de Salvador mostram a área do rio dos Seixos bem destacada; hoje, se você levar uma criança que nunca andou por ali e disser que passa um rio, ela vai dar risada”, relata Moraes. O Seixos foi o primeiro rio de Salvador no qual foi aplicado o polêmico projeto da prefeitura, que defende a cobertura das vias fluviais, a fim de resolver os frequentes alagamentos que atingem a cidade em épocas de chuva. O canal por onde passava o rio, já bastante degradado, foi coberto por uma pista de concreto de 1,5 km de extensão, e a área de lazer construída sobre essa pista foi entregue à população em 21 de setembro de 2008. Especialistas e ambientalistas foram contrários ao projeto, argumentando que a prefeitura

não havia realizado estudos relacionados ao impacto ambiental. “É preciso dialogar com a sociedade e mostrar que cobrir estes rios pode ser um equívoco muito grande e, se está coberto, ninguém vai lutar para resolver o problema”, enfatiza Moraes. Já foi anunciado que o mesmo projeto será aplicado ao rio das Pedras e, segundo Moraes, em outras sete vias, entre elas a do Camarajipe: “no mundo inteiro não se faz mais isso, pelo contrário, busca-se a revitalização, e os rios voltam a compor o cenário urbano”, complementa. Na contramão A tendência nas grandes cidades é a reurbanização das áreas circunvizinhas aos rios, a fim de resgatá-los e novamente inseri-los na sociedade. Em Seul, capital sul-coreana, a prefeitura realizou, em três anos, um projeto ousado: demoliu uma via expressa de quatro pistas que encobria um rio poluído e o recuperou, devolvendo sua vitalidade. Foram mais de mil reuniões entre os governantes e a população até que o projeto fosse aprovado. Os técnicos coreanos responsáveis pela obra visitaram o Brasil recentemente, num seminário organizado pela Universidade de São Paulo, para discutir soluções alternativas que solucionem os problemas dos rios Pinheiros e Tietê, em São Paulo. No Brasil, a cidade de Belo Horizonte vem apresentando resultados satisfatórios com a política de reintegrar os rios à cidade. O Manuelzão, programa de extensão da Universidade Federal de Minas Gerais, aposta há 12 anos na educação ambiental para conscientizar a população, aliada a ações de revitalização da Bacia do rio Velho. “O homem não teve cuidado em edificar a cidade e conviver com a malha hídrica, dando uso a essa água e ao mesmo tempo protegendo os rios de Salvador”. A opinião do professor Luiz Moraes resume bem o que aconteceu aos rios da capital baiana. O progresso desordenado e as necessidades de uma população que crescia desenfreadamente provocaram um impacto ambiental quase irrecuperável. Revitalizar o ambiente e preservar a história, “voltar ao tempo” e aproveitar os bens naturais que foram perdidos pela ação inconsequente do homem, é um projeto grandioso que, para ser posto em prática, precisa da colaboração e participação de todos os setores da sociedade.


por Ciranda Campos

Caos na capital J

ulho, 2001. A população soteropolitana estava inquieta, temerosa com as notícias de arrastões, saques e roubos que ganhavam repercussão na imprensa nacional. Treze dias de completo abandono. Salvador era uma verdadeira terra sem lei. Boatos sobre morte e cenas de violência espalhavam-se pela cidade. Portas trancadas, alerta máximo. Em meio ao caos que se instaurou na capital baiana, o medo alcançou a população, que já não sabia mais o que era verdade e o que não passava de rumor. No outro extremo da situação, policiais militares mascarados como ninjas, a fim de não serem identificados, estavam parados. Nas ruas não se encontravam viaturas porque os veículos sequer deixavam as garagens. Os módulos ficaram entregues às moscas. A greve da categoria, que reivindicava

aumento salarial e melhores condições de trabalho, atingiu a todos, sem distinção de classe social, sexo ou idade. A segunda greve da Polícia Militar da Bahia começou no dia 5 de julho de 2001. No quinto dia de paralisação, apenas 126 policiais, de acordo com dados da Associação de Cabos e Soldados, trabalharam normalmente nas ruas de Salvador. Neste dia, 2.324 PMs tinham sido escalados para fazer a segurança de 2,3 milhões de pessoas que, em meio ao pânico, tentavam manter a rotina. O comerciante João da Silva foi um dos que sofreram com a situação. O ambulante, que trabalha na subida da estação da Lapa há 15 anos, trabalhou durante todos os dias da paralisação. Ele traz consigo recordações dos arrastões, saques e tombamentos. Em um dos episódios, João

Xando P./A Tarde, em 12/07/2001

Durante a greve, soldados aquartelados improvisaram máscaras para proteger a identidade

[MÍDIA B] 2009


Manu Dias/A Tarde, em 13/07/2001

relembra quando os bandidos desceram a ladeira da Lapa, quebrando tudo que encontraram pelo caminho. Em meio ao quebra-quebra, os ambulantes tentavam reunir o mais rápido que podiam as mercadorias, para ir embora. Na estação, a frota reduzida de coletivos não atendia à população que tentava, de alguma forma, chegar ilesa ao seu destino. “Quando as pessoas que estavam na Estação da Lapa souberam que, na parte de cima, estava tendo arrastão, todos ficaram com medo. As pessoas tentavam ligar para casa e não conseguiam, os telefones estavam todos mudos”, recorda um vendedor ambulante da Estação que prefere não se identificar. Facas, peixeiras, facões e revólveres eram as principais armas utilizadas pelos bandos que invadiam e saqueavam shoppings e demais estabelecimentos comerciais. A onda de assaltos aliada aos rumores sobre mais arrastões fizeram os shoppings Center Lapa e Piedade fecharem as portas no sétimo dia da greve. Foi também nesse dia que a maior estação de transbordo da cidade, a Lapa, paralisou suas atividades. Em 2001, 100 mil pessoas, em média, circulavam pela Lapa, diariamente. Mas, o centro da cidade não foi a única região em que aconteceram os arrastões. O clima de tensão chegou ao Subúrbio Ferroviário, onde as histórias

O medo dos arrastões deixou a população em pânico se repetiam. Em Periperi, um arrastão formado por 40 pessoas invadiu escolas e pequenos estabelecimentos, agredindo os populares. Duzentos comerciantes do bairro de Paripe deixaram de trabalhar após os boatos de mais arrastões. O mesmo ocorreu ao comércio de Fazenda Coutos, Alto do Cabrito, Lobato e Baixa do Fiscal . A greve foi o estopim da situação que se arrastava desde 2000, quando, insatisfeitos com os baixos salários e as más condições de trabalho, os policiais militares manifestaram sua indignação durante a festa de comemoração aos 500 anos do Brasil, em Eunápolis. O fato foi ocultado pela PM. A posse da delegada Kátia Alves na Secretaria de Segurança do Estado, em novembro

daquele ano, contribuiu ainda mais com o clima de descontentamento. A exsecretária afirmou à época que coronéis da Polícia Militar estariam envolvidos com roubos na corporação, acusação que culminou com o pedido de demissão do Coronel Francisco Edson de Araújo, então comandante do Batalhão de Choque. Mais de um ano após a manifestação em Eunápolis, os policiais decidiram reivindicar aumento salarial. A primeira reunião foi em junho de 2001, no Ginásio de Esportes do Sindicato dos Bancários, na qual os PMs acertaram uma nova assembleia para criação de uma comissão de negociação. Realizada naquele mesmo mês, a assembleia deflagrou a ameaça de greve que seria cumprida em cinco de julho, caso não houvesse Manu Dias/A Tarde, em 13/07/2001

Como várias lojas de Salvador, a Arapuã da Baixa dos Sapateiros foi saqueada

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Balanço De acordo com dados do Instituto Médico Legal (IML) de Salvador, nos 13 dias de greve, o índice de assassinatos passou de 3,16 pessoas por dia para 9,4. No período, 10% da frota de ônibus foi assaltada; hospitais, escolas e bancos permaneceram fechados devido à falta de segurança; 80 lojas foram saqueadas representando, para os comerciantes baianos, prejuízos de R$ 8 milhões. Diante dos estragos, os empresários exigiram o parcelamento em duas vezes do ICMS (Imposto sobre a Circulação de Mercadorias e Serviços) de julho e agosto, indenização pelos prejuízos sofridos e financiamento de créditos especiais do Desenbanco (atual Desenbahia – Agência de Fomento do Estado da Bahia), no intuito de renovar o capital de giro. As perdas do Estado ficaram estimadas em R$ 2 milhões. Dentre as 26 reivindicações colocadas em pauta pelos grevistas, 23 foram atendidas pelo governo. O reajuste de 20 % sobre o salário base de R$180,00 * (valor sem as bonificações) obedeceu à seguinte escala: 10% seriam repassados em agosto de 2001 ; 5% em março do mesmo ano e, por fim, 5% em julho de 2002 . Compare os valores na tabela ao lado.

Antonio Saturnino/A Tarde, em 16/08/2001

contrapropostas do governo estadual. A pauta de reinvidicações, elaborada naquela reunião, era composta por 26 itens, entre eles, o aumento do piso salarial e das gratificações, assistência social, seguro de vida e revogação disciplinar da Polícia Militar. No dia 5 de julho de 2001, após duas semanas de negociações, a ameaça foi cumprida, e os policiais militares da Bahia, insatisfeitos com as respostas do Governo do Estado às suas reivindicações, decretaram greve por tempo indeterminado. A paralisação durou até o dia 17 de julho. Na memória das pessoas, ainda estão os instantes de aflição que foram vividos durante esses dias. “Meu pai trabalhou todos os dias da greve. Eu e minha mãe ficávamos trancadas em casa. As escolas pararam, inclusive a que eu estudava”, rememora a assistente administrativa Paula Pereira, 25 anos. O Exército Brasileiro esteve presente nas ruas de Salvador durante sete dias, com 3,5 mil homens. A técnica em química Letícia Silva, 28 anos, recorda como viveu durante a greve: “o Exército demorou de ir para as ruas. Deixei de sair de casa por falta de segurança”.

Tanques do Exército fizeram o policiamento nas ruas de Salvador.

Salário Base (com gratificações) junho/2001 Polícia Civil Polícia Militar Reivindicação

R$ 600 R$ 450 Salário Base

ago/01 mar/02 jul/02

Acordo posterior à greve-Reajuste

10% 5% 5%

Soldado Sargento Oficial

Salário Base- Maio/2009

R$ 1,2 mil

R$ 1.200 R$ 1.300 R$ 3.200

Evolução da greve Saiba o que aconteceu nos principais dias da greve da PM baiana

05/07/01 (primeiro dia)

Decretada greve das polícias militar e civil baianas

09/07/01 (quinto dia)

Proposta de reajuste salarial de 14% é rejeitada. Delegados de polícia aderem ao movimento.

10/07/01 (sexto dia)

A estudante Marijoce Santana Gomes, 19 anos, morre, após levar um tiro no peito durante assalto ao curso pré-vestibular Sartre. Na Barra, assaltante é espancado e depois preso por guardadores de carro. Durante seis hora,s ele ficou amarrado a um poste, após tentar roubar um veículo.

11/07/01 (sétimo dia)

Exército dispõe-se a ir às ruas, mas o governador César Borges (1999 – 2002) não aceita. [MÍDIA B] 2009


por Tom Correia

Necrópole à beira da morte

V

Arquivo da Fundação Gregório de Mattos

iver em Salvador por volta dos anos 1830 não era fácil. Suja, sem iluminação pública ou sistema de transporte, a ex-capital do Brasil caminhava para atingir a marca de 70 mil habitantes, algo pouco maior do que a atual população de Santo Amaro. Os traços de desigualdade social, simbolizados pelos negros de ganho e mestiços que perambulavam pelas ruas sem calçamento, não ficavam limitados apenas à vida. Para uma população que não contava com uma política de higienização e acostumada a se dar por satisfeita quando atingia a idade de 40 anos morrer, naquela época, era muito simples. Enterrar os mortos é que era complicado.

Campo Santo [MÍDIA B] 2009


Arquivo da Fundação Gregório de Mattos

Até a primeira metade do século 19, os enterros no Brasil eram realizados dentro das igrejas ou no adro dos templos, tradição iniciada no século IV d.C. para assegurar a salvação das almas. De acordo com os costumes, ser sepultado longe das casas religiosas também significava grande desonra para as famílias ricas. Na Bahia, durante as epidemias de cólera e febre amarela, era comum que corpos fossem deixados nas ruas, nos pátios das igrejas ou mesmo despejados no mar, já que nem todos dispunham de recursos financeiros para as despesas funerárias. Sem que houvesse um sistema eficiente de recolhimento e sepultamento, as condições sanitárias da cidade eram as piores possíveis. Todo o lucro originado pelas taxas de funeral ficava com a Igreja e as irmandades católicas, até que, em 1836, a Assembleia Provincial, antecessora da Assembleia Legislativa, aprovou a lei no 17. Além de proibir o enterro nas igrejas, o dispositivo garantia a uma empresa privada (José Carlos Araújo Matos & Cia) o monopólio dos enterros. No livro “A morte é uma festa – ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX”, o historiador e professor da Universidade Federal da Bahia (UFBA), João José Reis, registra que, desde os tempos coloniais, os enterros eram feitos pelas confrarias católicas, principalmente as Santas Casas de Misericórdia. Na Bahia, a instituição era responsável por orfanatos, casas de saúde e, claro, cemitérios. Em torno da morte havia uma verdadeira rede econômica, que estabelecia preços para todos os tipos de serviço e artigos funerários: aluguel de tumbas, castiçais, encomendação da alma, acompanhamento de defunto e velas, muitas velas. Os cortejos fúnebres eram comumente feitos à noite, o que talvez significasse “um fator de integração do morto em seu novo mundo, enquanto a queima de velas simbolizava a vida que se extinguia e a iluminação do caminho para a vida eterna”, escreve João Reis. Já os parentes que, por prestígio social ou fervor religioso, desejavam funerais decentes para seus entes queridos, tinham que desembolsar quantias substanciais, das quais apenas uma ínfima parcela da população dispunha. Atrelada a toda essa economia funerária, havia uma cidade que vivia tempos propensos a levantes. Os lamentos da Revolta dos Malês, ocorrida em 1835, ainda ecoavam pelas ruas acanhadas de um lugar que ansiava por modernização, mas que desprezava os clamores sociais. Cemitério em apuros A manhã do dia 25

Campo Santo, anos 1970: o zelo com sepulturas fora das igrejas era impensável na Bahia do século XIX de outubro de 1836 foi marcada pelos sinos que ressoavam nas torres das igrejas. O chamado orientava os manifestantes que protestavam contra a lei que entraria em vigor no dia seguinte, para se reunirem no centro político da cidade, a praça do Palácio (praça Municipal). Ali, as irmandades entregaram ao presidente da província, Francisco Sousa Paraíso (1793-1843), um manifesto com 280 assinaturas. Uma delas se destacava: a do influente Joaquim Pires de Carvalho e Albuquerque, o Visconde de Pirajá (1801-48), um dos heróis da Independência da Bahia. Após discursos inflamados e um clima de tumulto, o presidente negociou com os manifestantes, adiando a vigência da lei para 7 de novembro, quando seria submetida à nova votação na Assembleia. Os ânimos pareciam estar sob controle, até que os revoltosos decidiram caminhar até o Campo Santo, construído pela Mattos & Cia, armados com machados e pedaços de ferro. Aos gritos de “morra o cemitério!”, arruinaram tudo o que foi possível. Testemunhos da época apontam para um número que varia de 1.000 a 3.000 insurgentes, formada em grande parte por mulheres. Proporcionalmente, se a Cemiterada acontecesse nos dias de hoje, a hipótese mais conservadora contaria 45 mil manifestantes, como explicou o professor João Reis. Inventário realizado após a depredação que durou uma tarde inteira revelou a dimensão do estrago: portão, colunas e pilares destruídos; pedras de mármore e sessenta carneiros em ruínas; muro demolido e incendiado, além das carruagens e panos funerários reduzidos a pedaços. Durante o ataque, até a capela serviu de alvo para a multidão, que só depôs as armas após a chegada do Visconde de Pirajá. Após as tropas do governo dispersarem o movimento, os manifestantes retornaram ao centro

com ar triunfal. À noite, mais branda, a Cemiterada foi marcada pela iluminação das janelas com velas e tochas, numa demonstração de apoio da população ao movimento. Médicos e estudantes de medicina como Antônio José Alves (1818-1866), pai do poeta Castro Alves (1847-1871), consideraram o comportamento popular como atos de gente “ignorante e bárbara”, classificando de superstição popular o ato de enterrar corpos nas igrejas. Sob influência da nova tendência europeia, os médicos brasileiros alertavam que a prática disseminava doenças entre os vivos. O próprio José Alves registraria, anos mais tarde, sua impressão sobre a turbulência [veja box]. Após o dia de fúria, o governo recuou. Revogou a lei e indenizou a Matos & Cia pelos prejuízos. Uma investigação foi aberta para identificar os líderes da revolta, mas ninguém foi preso ou punido. Em 1840, a Santa Casa comprou a área e, em 1844, o cemitério começou a funcionar sem encontrar resistência na sociedade, cada vez mais assustada com as epidemias que matavam enorme contingente de pessoas. A historiadora Vanessa Sial relata, na dissertação de mestrado “Moralização dos cortejos fúnebres”, defendida em 2005 na Universidade de Campinas, que o episódio da Bahia influenciaria a reforma cemiterial de Pernambuco, Rio de Janeiro e São Paulo. Mas, relata que também naquelas províncias houve resistência da sociedade. “A privatização do serviço funerário e a justificativa de uma epidemia não foram suficientes para que as pessoas abrissem mão de seus costumes e crenças. A população acreditava que os empresários seriam beneficiados e prejudicariam as agremiações religiosas a ponto de extingui-las”, afirma Sial. João José Reis discorda da interpretação do evento feita por alguns autores e críticos contemporâneos. Para ele, as causas [MÍDIA B] 2009


Arquivo da Fundação Gregório de Mattos

da revolta foram mais profundas do que a mera motivação econômica. “Enterros em igrejas revelavam a enorme preocupação de nossos antepassados com seus próprios cadáveres e os cadáveres dos seus entes próximos. A Cemiterada nasceu de uma população que se recusou a deixar uma companhia privada gerir uma visão de mundo tão importante e tão arraigada”, conclui. Discriminação mortal As diferenças sociais, marca indelével que aflige o Brasil e, particularmente, a Bahia, atingem de modo direto e indireto a vida da população e permanecem ao lado dela até o “descanse em paz”. Mas, esse fenômeno nada tem de recente. Na época da Cemiterada, suicidas, escravos e indigentes eram amontoados em banguês – espécie de esquifes ordinários cobertos por panos imundos – e despejados como lixo, no acanhado cemitério do Campo da Pólvora. Na Salvador do século 21, a segregação no momento dos funerais proporciona cenas de subdesenvolvimento, acentuando o último dos abismos que existe entre os estratos sociais, especialmente os urbanos. Se, na Quintas dos Lázaros, ainda é possível tropeçar em ossadas humanas revolvidas por cães nas covas rasas, no Jardim da Saudade o gramado asséptico e o rito fúnebre com ares de sóbria comoção emolduram os caixões feitos com madeira nobre; as sepulturas das necrópoles como as localizadas em Brotas, Itapoan ou Periperi nem de longe se assemelham aos imponentes jazigos perpétuos ornados com estátuas de mármore e bronze que são atração do circuito cultural no Campo Santo. O mesmo cemitério, que há mais de 170 anos, esteve muito próximo da extinção..

A partir de 1844, com a reabertura do Campo Santo, a Santa Casa passou a vender covas, chamadas de “chão simples”

A repercussão da Cemiterada na sociedade baiana “Eram duas horas, haviam 1400 pessoas de povo, em Palácio, e ali se achava um escritório com uma linda tabuleta que indicava a escritura do Cemitério ou da Sociedade. Eis que de repente caía sobre ela uma nuvem de pedras que em dois minutos derrubou tudo, e dizem que as pedras tinham sido levadas por uma porção de mulheres que ali estavam e que as trouxeram debaixo das capas”. Jornal do Commercio. 1836.

[MÍDIA B] 2009

“Nenhum de nós deixa de recordar-se como em trofeos trazia pelas ruas públicas d’esta Cidade a escoria da plebe os fragamentos dos mantos funéreos, dos carros, e das tumbas, dando vivas diferentes, e até ameaçando a aquelles que se mostravão descontentes de semelhantes scenas ou procurando disfeitar a alguem que sympathisasse com a instituição que elles acabavão de aniquilar”. Antônio José Alves, 1844.


Enterros no século XIX, na Bahia O economista Daniel Cunha afirma que a primeira metade do século XIX não foi pródiga em gerar material bastante para atualizações monetárias. “Infelizmente, a memória histórica do poder aquisitivo da moeda no Brasil é muito rara, e boas fontes disponíveis fornecem dados a partir de 1870, graças ao comércio do café, no auge do reinado de D. Pedro

II”, explica. Como parâmetro, em 1836, escravos podiam ser enterrados pagando míseros 960 réis ou três patacas, equivalente a três dias de seu trabalho. Já quem podia pagar por toda pompa e circunstância dos ritos, gastava o equivalente a um ano de salário do presidente do Tribunal da Relação, então a maior autoridade judiciária baiana.

CARACTERÍSTICAS

PRIMEIRA CLASSE

SEGUNDA CLASSE

TERCEIRA CLASSE

QUARTA CLASSE

Ornamentação dos carros

Colunas douradas; cortinas com franjas de ouro fino; pano rico com franja; galão de ouro

Colunas pretas; sanefa de pano com franja e borla de ouro fino

Colunas pintadas de preto; guarnições e filetes de ouro; sanefas com franja e bordas de seda cor de ouro; pano com cruz

Carro de 4 rodas; colunas pintadas de preto; filetes amarelos; sanefas e franja pretas com caixão e pano.

Cocheiro vestimenta

farda de veludo preto

farda preta

farda preta

boleeiro vestido de Preto

Tração animal

4 cavalos ricamente enfeitados

4 cavalos enfeitados

4 bestas

2 animais

[não]

[não]

1 carro para vigário puxado por 2 animais

[não]

Complemento para a Família

1 carro de luto para a 1 carro de luto para a família do morto puxado família do morto puxado por 4 cavalos por 4 bestas

Complemento para a Igreja

1 carro para vigário e sacristão puxado por 2 cavalos

1 carro para vigário e sacristão puxado por 2 bestas

Fonte: 50 anos de Urbanização – Salvador da Bahia no século XIX. SAMPAIO, Consuelo Novais. 2005. Odebrecht.

Cemitério 1965

Arquivo da Fundação Gregório de Mattos

[MÍDIA B] 2009


por Ariadne Ferraz

Além de Glauber

E

Ação! Roberto Pires dirigiu o primeiro longa baiano

[MÍDIA B] 2009

ra 1895. Um grupo de espectadores reunidos no Grand Cafe, em Paris, levantou-se e fugiu desesperado ao ver o trem que ameaçava invadir a sala em disparada. No entanto, não havia perigo algum. Difícil entender a novidade. Assim foi a primeira exibição cinematográfica, produzida pelos irmãos Auguste Lumière (1862 – 1954) e Louis Lumière (1864 – 1948). Em 1896, foi a vez dos brasileiros descobrirem o que tanto assustou os franceses. Na Bahia, a primeira exibição aconteceu naquele mesmo ano, no teatro Politeama, trazida pelas mãos de Dionísio Costa. Graças a um “graphophone” acoplado ao cinematógrafo, as imagens puderam aliar-se ao som, tecnologia que ainda não tinha sido incorporada na película das fitas.


Logo no início, o cinema baiano foi marcado por exibições itinerantes, em antigos sobrados e casarões barrocos, como registra Sílio Boccanera Junior, em Os Cinemas da Bahia: 1897 – 1918. O primeiro espaço criado especificamente para as projeções foi o Cine Bahia, em 1909, na Rua Carlos Gomes. Até 1920, os baianos só produziam filmes documentais. Diomedes Gramacho, pioneiro no estado, dedicou-se ao registro de manifestações da cultura popular. Mas, um dos “sucessos de bilheteria” à época foi um trabalho de Alexandre Robatto Filho: produzido para um congresso de medicina, o vídeo sobre a vacina contra tuberculose encontrou um público tão receptivo que até Robatto ficou surpreso. Apesar desses primeiros sinais, ainda tímidos, fazer cinema na Bahia era uma atividade cara e, portanto, restrita. Então, vieram os anos 1950. Conforme escreve o professor André Setaro, em Panorama do Cinema Baiano, aquele foi um período marcante para a sétima arte: Walter da Silveira fundou o Clube de Cinema na Bahia, Glauber Rocha e outros cineastas resistiam às dificuldades de se fazer cinema no estado. A atividade era quase utópica, pois não existia qualquer apoio do governo. Entretanto, ainda nessa época foi lançado o primeiro longametragem baiano: Redenção (1959), de Roberto Pires, o “inventor do cinema baiano”, nas palavras de Glauber. Mas, foi na década de 1960 que o cinema local teve seu grande impulso. Nos primeiros anos, com Barravento (1962), de Glauber Rocha; A grande feira (1961) e Tocaia no Asfalto (1962), de Pires. Salvador passa, então, a ser considerada a “meca do cinema brasileiro”, segundo um artigo do crítico e

historiador francês Georges Sadoul. Já a partir de 1964, o destaque vai para as produções underground, com foco no caos e na angústia dos jovens, como explica Petrus Pires, filho de Roberto. São dessa fase produções como Meteorango Kid, o herói intergaláctico (1969), de André Luiz Oliveira. A produção cinematográfica brasileira entrou numa fase de ostracismo na década de 1980, devido ao fechamento da Empresa Brasileira de Filmes (Embrafilme), estatal de fomento à produção de filmes nacionais. A retomada da atividade aconteceria nacionalmente, em 1994, com Carlota Joaquina, de Carla Camurati. Porém, os baianos só voltaram a produzir em 2001: o longa-metragem Três histórias da Bahia apresenta um trio de narrativas distintas, ligadas ao carnaval, cada uma dirigida por um diretor: Sérgio Machado, José Araripe Jr. e Edyala Iglesias. Para o jornalista e cineasta, presidente da Associação Baiana de Cinema e Vídeo (ABCV), Lula Oliveira, o cinema baiano “já teve o seu momento”; atualmente, estamos vivendo outra fase, que só poderá ser melhor definida daqui a alguns anos. Entre os destaques recentes da produção

Cartaz do filme Redenção local estão o documentário Samba Riachão, de Jorge Alfredo, premiado no Festival de Brasília de 2001; Eu me lembro, de Edgard Navarro, que levou sete prêmios no Festival de Brasília em 2006; Cidade Baixa, de Sérgio Machado, e Trampolim do Forte, de João Rodrigo Mattos. Está previsto para o segundo semestre de 2009, o lançamento, em Salvador, do longa-metragem de um dos mais jovens cineastas do Brasil, o baiano Paulo Alcântara, 33 anos. Segundo Alcântara, a cópia zero de Estranhos já foi assistida por três mil pessoas no Festival de Recife, em maio último. [MÍDIA B] 2009


por Iris Queiroz

Velhos tempos, belos dias D

écada de 60. A capital baiana transpira glamour. Quem quer saber o que está acontecendo na cidade tem de ir à Rua Chile, no centro. É lá o ponto chique dos soteropolitanos. Início dos anos 1970. A administração pública é transferida para a Avenida Luiz Viana Filho, com a construção do Centro Administrativo da Bahia. Os bairros são calmos. Poucos ônibus e automóveis. Alguns bondes. Os meninos jogam bola na rua tranquilamente porque se pode ouvir, ao longe, o motor do carro que se aproxima. Os homens exibem impecáveis ternos, chapéus, sapatos bicolores. As mulheres não dispensam suas joias, vestidos feitos sob encomenda, luvas e salto alto. O cinema é a principal diversão de moças e rapazes. As manifestações artísticas baianas tiveram grande destaque a partir de 1964. Na música popular, surgiu o movimento tropicalista de Caetano e Gil. Em 19 de novembro de 1960, é inaugurada a TV Itapoan. Segundo o professor e estudioso de cinema André Setaro, o aparelho não é inicialmente muito atrativo: “a televisão não tinha uma definição muito boa. Não chegou a fazer concorrência ao cinema imediatamente”, conta. Nesse período, havia salas de cinema nos bairros mais populosos de Salvador. Setaro recorda que, quando era jovem, nos anos 50 e 60, existia “o circuito lançador, que ficava concentrado no Centro Histórico, nos cines Excelsior, Liceu, Guarani, Tamoio e Bahia. Existiam também cinemas da Baixa dos Sapateiros como o Pax, Jandaia, Aliança, Tupi”. Chegaram a funcionar na capital, simultaneamente, 22 cinemas, alguns com cinco mil lugares. O professor conta que os cines eram frequentados pelo “povão”. O filme era lançado no centro e depois percorria a Baixa dos Sapateiros, a preços que permitiam que qualquer pessoa fosse às salas. “O Cine Jandaia, por exemplo, andava lotado. O motorista de ônibus, o gari da prefeitura, assistindo a filmes de qualidade e se entusiasmando com o cinema”, complementa Setaro. O fotógrafo José Carlos Modesto, amante da sétima arte desde os seis anos, fala com saudosismo sobre sua primeira lembrança cinematográfica: “ao ver aquelas imagens em movimento na tela, eu praticamente me apaixonei”. Segundo Modesto, tudo se aprendia dentro das salas de exibição. “O cinema me incentivava a ler os grandes livros, os grandes romances. Por causa dos filmes, eu comecei a conhecer, por exemplo, O Conde de Monte Cristo, as obras de Alexandre Dumas”. Para um jovem da época, tudo ficava em segundo plano para ver a beleza das atrizes. Quantos suspiros provocados! Modesto lembra que, ele mesmo, ao assistir ao filme Um lugar ao sol, com Elizabeth Taylor, ficou apaixonado. “Eu me sentia um verdadeiro Montgomery Clift trabalhando com ela”, relata. O ator citado por Modesto era uma das sensações de Hollywood nos anos 1960. Registros sobre a vida de Clift dão conta de que o artista era um homem assediado pelas mais belas atrizes da época, entre elas Elizabeth Taylor, porém, rejeitava a todas por causa da sua assumida homossexualidade. Os cines das décadas de 60 e 70 primavam pela decoração. As salas eram majestosas, atapetadas, com poltronas acolchoadas, grandes lustres de cristal. Alguns, como o [MÍDIA B] 2009


Sara Gomes

Guarany, tinham paineis de madeira com gravuras em alto relevo. Hoje, o Guarany, como parte do projeto de revitalização do centro de Salvador, tornou-se o Espaço Unibanco de Cinema. Matinês e Soirées A ida ao cinema era ritual. O jovem daquele período costumava ir, no mesmo dia, de um cine para outro. Eram sessões contínuas. Modesto rememora que, enquanto se esperava o próximo filme começar, o passatempo era passar na sorveteria A Cubana, na praça municipal, e comer bolinhos tomando milk shake ou refrigerante. No livro Um cinema chamado saudade, de Geraldo da Costa Leal, lançado em 2007, há uma referência à famosa sorveteria. O autor conta que “aquela sorveteria, com mesinhas na balaustrada, do lado direito do Elevador Lacerda, ligou-se à história dos cinemas, pois era o complemento final das matinês e soirées”. A programação das matinês, sessões que, aos domingos, iniciavam pela manhã

Modesto e sua coleção de filmes

e, em outros dias, à tarde, era quase sempre voltada para as crianças, com a exibição de faroestes, capítulos de seriados, comédias, policiais, aventuras de Tarzan ou de Flash Gordon. As soirées eram sessões noturnas. Outro costume comum era a troca de revistas que acontecia dentro dos cinemas. “As moças da época viviam sonhando com uma revista chamada Grande Hotel, na qual se lia histórias de romances adocicados,

e os rapazes trocavam revistas em quadrinhos”, recorda Leal. Segundo ele, no ano de 1965, o gênero bang-bang era moda, e a cidade andava repleta de “mocinhos”. “A influência do Western era tamanha que vendiam brinquedos para crianças com cartucheiras, revólver de mentira, com balas falsas de plástico”, narra. Namorar no escurinho, cometendo o delito de amar antes da idade permitida pelos pais era cena recorrente nas salas de exibição. Para as moças, sair sozinhas

[MÍDIA B] 2009


e, principalmente, namorar, não era fácil. Censura O Comissário de menor, esporadicamente, fazia plantão na entrada do cinema, exigindo documentos que comprovassem a idade. E, quem fosse descoberto tentando dar um “jeitinho” de enganar a vigilância, voltava para casa, acompanhado da autoridade, que alertava os pais sobre o que havia acontecido. “Naquele tempo, fazíamos de tudo para assistir aos filmes proibidos; se você era filho de alguém conhecido, ficava mais fácil”, recorda Modesto. Para um menino da época, o grande desafio era driblar o porteiro do cinema - figura imponente, com sua gravata borboleta - fosse com carteira de escola falsificada, pagando inteira ou ficando escondido na sala, esperando a próxima sessão. Frequentadores dos cinemas daquela época revelam-se nostálgicos ao relatar as experiências vividas e são quase unânimes em afirmar que, hoje, tudo mudou. O Jornal da Bahia, em fins de 1971, já anunciava o começo da decadência dos cinemas de bairro. Num texto sobre o cine de Itapagipe, o veículo diz: “o tempo passou. Não mais nas suas portas casais de namorados, nas tardes de domingo. A criançada nunca mais viu as graças do Gordo e do Magro, a fantasia dos desenhos animados. O bairro perdeu, perdendo seu cineminha”. Leal, conta que, esse cine “durou de 1920 até 1965, sendo arrasado pela construção de um posto, onde o litro da gasolina é vendido por R$2,50, que equivaleria a um ingresso de meia-entrada para uma matinê”. O advento dos novos suportes como a TV em cores, com melhor definição e boas imagens, as fitas VHS e, mais recentemente, o DVD e a Internet, colaboraram para a decadência dos cinemas de rua. Para André Setaro, os valores dos ingressos também privam a população de ir ao cinema. Hoje, um casal que decide ir assistir a um filme no shopping gasta, em média, só com o ingresso, R$34,00. “A nova geração não está indo ao cinema. As perspectivas são as piores possíveis, salvo se forem tomadas iniciativas de se implantarem cinemas nos bairros novamente”, considera o professor. Para Setaro, vai longe o tempo em que ir ao cinema era programa obrigatório e apaixonante, “hoje é tudo comércio”, finaliza. [MÍDIA B] 2009

arquivo A Tarde

O cine Guarani anunciava mais uma de suas matinês

THE END O que aconteceu com as principais salas de exibição? Cine Art 1 e Art 2

Politeama. Transformou-se na igreja evangélica Renascer em Cristo, há oito anos.

Cine Bahia

Rua Carlos Gomes. Um dos mais antigos de Salvador, inaugurado no início do século passado. Na década de 90, seu espaço passou a ser usado pela Igreja Universal do Reino de Deus.

Cine Tupi

Baixa dos Sapateiros. Inaugurado em 1956, atualmente é ponto de encontro gay e exibe, diariamente, filmes pornôs.

Cine Teatro Jandaia

Baixa dos Sapateiros. Construído em 1911, está fechado há cerca de 15 anos em estado de total decadência. Os planos para uma possível restauração não saíram do papel.

Cine Pax

Baixa dos Sapateiros. Em estado decadente, o antigo e majestoso Cine Pax está fechado e também aguarda processo de revitalização.

Cine Aliança (ex-Olímpia)

Baixa dos Sapateiros. Em 1975, transformou-se em uma loja de confecções.

Cine Capri

Largo Dois de Julho Em 1981, um incêndio destruiu o prédio de um dos cinemas mais requintados da cidade.

Cine Roma

Largo de Roma. Construído nos anos 40 com a ajuda de irmã Dulce, abrigou o Cine Roma (onde Raul Seixas se apresentava na adolescência) até o início dos 80. Hoje, acolhe a Igreja de Nossa Senhora da Imaculada Conceição da Mãe de Deus. Fonte: http://www.jornalexpress.com.br/noticias/detalhes.php?id_jornal=15135&id_noticia=5


por Paula Britto

Risos à mão Presentes na Bahia desde o século 19, grupos de teatro de bonecos são ferramenta do ensino que divertem crianças e adultos.

Grupo “Os Imaginários” utiliza técnicas de manipulação de bonecos para ensinar e divertir o público.

Genifer Gerhardt

V

Bonecos e atores também divertem adultos, mas crianças ainda são o público mais atento e interativo.

ila Sésamo e os Muppets. Quem faz parte de uma geração que assistiu aos programas exibidos na TV brasileira nos anos 1970 e 1990, entende a fórmula: bonecos manipulados por gente, mas que possuem personalidade própria, como se fossem humanos. De origem milenar e presentes nas antigas civilizações da China e do Japão, o teatro de bonecos é utilizado como instrumento educativo, estimulando a curiosidade, divertindo e auxiliando no desenvolvimento de pessoas de ampla faixa etária. Em Salvador, os registros mais antigos relacionados ao Teatro de Bonecos datam de 1830, quando as apresentações eram realizadas em residências no bairro da Liberdade, os chamados “Teatros de Coquinhos”, assim conhecidos porque os bonecos eram confeccionados com cascas de coco. Mas, apesar de atraírem uma audiência eclética, é comum atrelar a imagem dos grupos de teatro de bonecos apenas ao público infantil. A integrante de “Os Imaginários” e graduada em Licenciatura e Artes Cênicas pela Ufba, Genifer Gerhardt atribui o costume a um traço da cultura local. “Lá no Rio Grande do Sul, por exemplo, existem muitas peças de teatro de bonecos que são voltadas exclusivamente para o público adulto e até para a terceira idade”, enfatiza. Reconhecido como uma atração voltada para a diversão, o uso da arte dos bonecos como ferramenta educativa e lúdica é habitual em instituições de ensino. A doutora em Artes Cênicas e professora da Escola de Teatro e da Escola de Belas Artes da Ufba Sônia Rangel explica que, apesar de eficaz, a técnica exige alguns cuidados. “A criança brinca e se encanta naturalmente com qualquer boneco, que parece um brinquedo para ela, mas o trabalho em sala de aula tem que ser voltado de acordo com as habilidades naturais dos pequenos”, adverte. [MÍDIA B] 2009


por Rafael Brito

Um carnaval ímpar Arquivo IPAC

Década de 1960: alegria dos foliões do carnaval maragogipano teve início ainda na segunda metade do século 19.

A

o final de cada mês de fevereiro, discussões são retomadas em torno do futuro da maior festa popular do Brasil. Elitista, discriminatória e, principalmente, já apresentando sinais de saturação comercial, a folia em Salvador vem perdendo suas raízes diante de tanta repetição e falta de criatividade. Mas, a pouco mais de 130 km da capital baiana, discretamente abrigada no contorno do Recôncavo, uma cidade de 40 mil habitantes tem no carnaval um dos pontos mais fortes de sua identidade cultural. Em Maragogipe, desde 1893, segundo os primeiros registros, alegres grupos carnavalescos fantasiados de caretas e pierrôs mantêm viva a atmosfera descontraída e de ampla participação popular na organização da festa. A origem é um desdobramento do Entrudo, os folguedos introduzidos no [MÍDIA B] 2009

país pelos portugueses a partir do século 16. Rosália Araújo, 94, é uma das foliãs mais antigas da cidade. Lúcida e bastante extrovertida, ela conta que chegou a deixar dois pretendentes por causa de sua paixão. “É só amanhecer o sábado de carnaval e já estou na rua, tomando minha cerveja. Eu mesmo monto tudo: careta, máscara, roupa, com a minha ideia e felicidade de ir para a rua, não preciso da ajuda de ninguém. Saio de manhã e só chego de noite”, revela, orgulhosa. Rosa Carapeba, como é conhecida, é uma das testemunhas vivas da evolução da manifestação cultural que, no ano passado, foi tombada como patrimônio imaterial pela Secretaria de Cultura do Estado. O reconhecimento significa que os folguedos maragogipanos são um bem intangível transmitido de geração a geração, mas assimilando as recriações contemporâneas. Para o museólogo e subgerente de Documentação e Memória do Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural (Ipac), Mateus Torres, “toda cultura autêntica se identifica melhor com seu povo, por isso a folia daqui expressa a riqueza e o simbolismo de sua população”. Além de se tornar patrimônio da Bahia, o carnaval de Maragogipe pode também ganhar um museu próprio. Um projeto apresentado pelo Ipac ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) prevê a concepção de um local específico para reunir o acervo com documentos e fotos registradas a partir de 1910. Fundador do Grupo Recreativo


dos Amigos Mascarados de Maragogipe (Gramma), Máximo Muniz sente tanto orgulho da festa que chega a comparála, ao mesmo tempo, a uma religião e ao carnaval de Veneza. “As pessoas aqui brincam com tranquilidade, é muito bonito. Se quiser colocar talco, você coloca, se quiser botar só uma máscara, tudo bem. Tudo vale”, enfatiza. Antes de Armandinho – O Bloco das Almas, as Resistentes, o Trio Maragós e o Gramma são algumas das atrações que fazem da festa um evento singular. Na praça Conselheiro Rebouças ou na Rua do Dendê, foliões fantasiados oferecem um colorido a mais à cidade que, graças à localização destacada, detinha o título de entreposto comercial mais importante do Recôncavo durante

o período colonial. Tão importante quanto a figura de Aidil do Nascimento, o Mestre Dica, 79, um dos primeiros a montar um trio elétrico e a fazer shows nos bairros locais. Como se não bastasse a contribuição de uma vida inteira, o músico autoproclama-se, com propriedade, o responsável pela invenção de um instrumento fundamental para a folia. “Tem a história de uma guitarrinha de cinco cordas que eu criei, do tamanho da guitarra baiana. Mais tarde, vieram dizendo que foi Armandinho, mas, na verdade, ele inventou aquela do estilo bandolim”, esclarece, sem mágoa. É com o auxílio das palavras do historiador e escritor Ronaldo Souza, autor do artigo Maragogipe: de como aconteceu a primeira lavagem, que

se pode traduzir como a comunidade se identifica com o seu bem maior, a autenticidade espontânea, elevada ao grau máximo durante os dias da festa. “O nosso carnaval é único, diferente de tudo o que se vê por aí. Ele é feito por um povo que teima em ser feliz: piratas do Porto Grande, palhaços das Palmeiras, pierrôs do Caijá, colombinas do Areal, sultões e marajás do Angolá, venezianos da Enseada, todo mundo junto e misturado, num congraçamento fraterno de mascarados”. Se depender da animação de Rosa Carapeba, da criatividade de Mestre Dica e da devoção de Máximo, a singularidade do carnaval maragogipano ainda vai perdurar, atravessando o século e reescrevendo a própria história. Arquivo IPAC

A animação dos zorros da cidade carnavalesca são uma mostra da alegria que toma conta dos maragogipanos e visitantes. [MÍDIA B] 2009


Por Taciana Soares

O Magnífico Reitor A

medicina estava presente na vida de Edgard. Nem os passeios dominicais com a família, em seu automóvel Jordan vermelho, deixavam de lado a vontade do doutor de contribuir para a sociedade com os seus serviços. Enquanto a esposa, Carmem Santos, e os filhos Eduardo, Roberto e Fernando o esperavam no carro, o médico atendia seus pacientes. Nessa época havia poucas opções gastronômicas na cidade e almoçar fora era um programa bissexto para a família. Por conta disso, a alternativa de lazer mais viável para a família Santos era apreciar as conquistas do Magnífico Reitor da Universidade Federal da Bahia, cargo que ocupou com reconhecido mérito durante 15 anos. A unificação das Universidades da Bahia, em 1946, foi o primeiro passo para a consolidação das obras que seriam realizadas durante a sua gestão, como a criação do Hospital das Clínicas, das primeiras escolas de superiores de Música, Teatro e Dança, além da criação do Museu de Arte Sacra da Ufba, no Convento de Santa Tereza. A relação de Edgard Santos com a universidade foi um dos pontos mais marcantes em sua vida. O filho do médico João Pedro dos Santos e Amélia Rego Santos, nasceu em 8 de janeiro de 1894, em Salvador. Morou durante a infância na Ladeira do Pelourinho, próximo à Faculdade de Medicina, que fora inaugurada no início do século 19. Já no século seguinte, em 1912, o jovem estava às vésperas de ingressar na faculdade, e o curso escolhido fora o de Direito. Justamente porque não era dado a arroubos, todos ficaram surpresos quando souberam que ele mudara de ideia e ingressara no curso de Medicina, na velha faculdade no Terreiro de Jesus, sua antiga vizinha, e que marcaria o início da ligação de Edgard com a Universidade da Bahia. Formou-se aos 23 anos, optando pela atuação na área clínica. Mudou-se a trabalho para São Paulo, com o intuito de adquirir experiência, tendo viajado posteriormente para estudar na França e Alemanha. O retorno à Bahia, em 1924, marcou uma nova etapa na vida de Edgard. O casamento com dona Carmem gerou três filhos, que eram tratados sempre [MÍDIA B] 2009

com muito carinho e zelo pelo doutor. “Ele convivia muito conosco, acompanhava muito os nossos estudos. Depois, já na fase da adolescência, na fase adulta, acompanhava os preparativos para uma carreira. Sempre interessado em saber como iam, desde o ensino mais elementar, com alguns cursos de línguas estrangeiras, e também no curso regular das escolas e depois nas faculdades”, recorda Roberto Santos, 82, segundo filho de Edgard que, pela influência do pai, também optou pela medicina. Além da família, uma outra característica do doutor Edgard Santos era a de cultivar uma boa relação com parentes e amigos. Monsieur Augendré, um francês, grande amigo de Edgard, mandou-lhe frequentemente periódicos e livros vindos diretamente de Paris. Dentre as publicações que recebia, Edgard não dispensava a leitura da revista “A Ilustração”, que trazia em seu conteúdo notícias sobre os movimentos culturais na França. Por sinal, as manifestações artísticas e culturais também merecem uma página especial na biografia de Edgard Santos, fundador das escolas de artes na Ufba e um dos maiores apreciadores dos concertos da Orquestra Sinfônica da Bahia, sempre na companhia da esposa e dos filhos. O cinema também estava entre os interesses do médico; apesar de frequentar poucas vezes as salas de exibição, não perdia os filmes da alemã UFA. No casting da produtora estava a atriz e cantora Martha Eggerth, que se destacava pela realização de Operettas, pequenas óperas com um tom mais leve do que as óperas tradicionais. Todas essas características dão conta, mesmo que parcialmente, de um Edgard Santos a quem poucas pessoas tiveram a oportunidade de conhecer. Um homem que, mesmo com uma intensa rotina trabalho, durante o tempo em que seus pais foram vivos, os visitava pelo menos uma vez por dia A morte do médico, aos 67 anos, em 1961, levou o marido, o pai, o amigo e o profissional, que nos deixou como legado, além de um exemplo, obras de indiscutível importância para a medicina, a educação e a cultura da Bahia e do Brasil.




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