Páginas que nao li

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PÁGINAS

Li QUE NÃO

A J MARCHI




© 2017, A. J Marchi Proibida a reprodução, no todo ou em parte, mediante quaisquer meios. Os direitos morais do autor foram assegurados. Esta é uma obra de ficção, baseada em fatos reais. Qualquer semelhança com pessoas ou fatos será mera coincidência. PRODUÇÃO EDITORIAL Coordenação Fernanda Hinnig Projeto gráfico, capa e ilustrações Fernanda Hinnig Revisão e texto das orelhas Felipe Lenhart Nesta edição, respeitou-se o novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.

M315p Marchi, A. J., 1958 Páginas que não li / A. J. Marchi ; ilustrações de Fernanda Hinnig. – Florianópolis : Tripous, 2017. 131 p. : il.; 14x20 cm.

ISBN 978-85-93325-01-4

1. Ficção brasileira. I. Hinnig, Fernanda. II. Título.

CDD B869.3

Ficha catalográfica elaborada por Juliana Pitz – CRB 14/1362. Direitos desta edição: www.tripous.com.br info@tripous.com.br +55 48 99621.4277


“Mais real do que fazer da vida um sonho, é fazer do sonho uma vida, porque nem sempre temos a vida que sonhamos, mas sempre teremos um sonho para viver.” Então, por que não sonhar com o que ainda não nos atrevemos? Por que não realizar o que tanto nos aflige? Por que não viver cada segundo, em vez de morrer a cada um deles? Expressões A J Marchi, 2016


SUMÁRIO PRÓLOGO .......................................................................................... 09 CAPÍTULO 1 – AMBIENTE HOSTIL..................................................... 15 CAPÍTULO 2 – SONHO PERDIDO....................................................... 29 CAPÍTULO 3 – PESADELO................................................................. 45 CAPÍTULO 4 – ADVERSIDADES.........................................................55 CAPÍTULO 5 – DESVENTURAS..........................................................63 CAPÍTULO 6 – DIFICULDADES...........................................................73


CAPÍTULO 7 – VERGONHA..............................................................81 CAPÍTULO 8 – INCOMPREENSÃO..................................................89 CAPÍTULO 9 – DESESPERO ...........................................................101 CAPÍTULO 10 – TORMENTO ............................................................109 CAPÍTULO 11 – CONFLITO ..............................................................117 EPÍLOGO ............................................................................................125 NOTA DO AUTOR .............................................................................129



CAPÍTULO 1

AMBIENTE HOSTIL Inverno de 1957. Salto do Bugre, em Rio da Serra, planalto serrano catarinense, Sul do Brasil. Uma névoa densa e baixa pairava sobre nossa humilde habitação enquanto amanhecia. Aquela neblina assegurava uma umidade ainda mais intensa e penetrante. Fechei a porta e rapidamente voltei para minha cama. Pensei ter ouvido alguns ruídos estranhos, algumas estocadas contra as paredes do barracão onde vivíamos. Minha mãe fervia água para nosso mate, pois, muitas vezes, não tínhamos café. O fogo no fogão a lenha acalentava o interior rústico e simples de chão batido, enquanto a chaleira chiava sobre a chapa incandescente de

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ferro fundido. Meu pai era um grileiro descendente de ucranianos e estava de pé com a cuia de chimarrão nas mãos, enquanto ouvíamos novamente as estocadas contra as paredes de tábuas de canela, tão resistentes quanto duras. Sabíamos da existência de indígenas pelas redondezas. Eram denominados de errantes ou nômades por não se fixarem em lugar algum. Fugiam pelo interior das matas, empurrados que eram pelos homens brancos, a quem chamavam de caiporas, que iam ocupando as terras com suas plantações. Os índios da etnia Xokleng (sic) eram ainda considerados selvagens e viviam como tal. Extraíam e coletavam o que a mata lhes oferecia. A terra era generosa, fornecia pinhão, palmito e muitas frutas, como amora-do-mato, uvaia, grumixama e guabiroba. Era só colocar a mão no tronco vazio da imbuia e retirar a “casca de mel”, cheia de favos. Para acalmar as abelhas, expeliam fumaça da casca do timbó-cipó. A mesma técnica era utilizada para a pesca, porém, amassavam o cipó e o jogavam na água do rio. Escolhiam os peixes entorpecidos e aos outros davam soltura. Eram artífices caçadores. Exímios predadores de pássaros grandes como macucos e inhambus, tucanos e aracuãs, perdigões e perdizes,

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papagaios e maritacas, que eram aprisionados em ardilosas armadilhas. Vez ou outra, achávamos dependuradas em árvores algumas carcaças de tatus, pacas, javalis, quatis, cutias, tamanduás, bugios e até de jabotis. Era só seguir o gavião-preto. Denominados de bugres, os índios Xokleng aproximavam-se dos caiporas apenas para poder “espiar”. Se houvesse algum objeto fora da casa, com certeza não amanheceria onde deveria estar. Quando a caça era pouca e não encontravam o que comer, lançavam flechas contra as casas em tom de ameaça pelo fato de estarem famintos. Era uma espécie de linguagem, um sinal. Por isso, quando escutávamos as estocadas nas paredes de nossa habitação, sabíamos de quem se tratava. Então, assim como faziam nossos avós, minha mãe, uma índia rude a quem meu pai chamava de bruaca botocuda, preparava mingau de mandioca e cozia milho. Colocava-os em folhas de inhame, os enrolava e amarrava com fibras da própria folha. Assim, as “trouxas” eram levadas para longe da casa e penduradas em alguma árvore, onde havia uma picada aberta na mata. Desta forma, os bugres saciavam a fome e por um longo tempo desapareciam. Pássaros, gatos, cães, porcos, ovelhas, cabras e cabritos eram mortos constantemente, e tê-los era algo inviável, porém necessário.

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Meus pais criavam galinhas que quase sempre eram dizimadas por predadores como gambás, onças, jaguatiricas e ratazanas. Sabíamos disso porque encontrávamos pegadas entre penas e plumas espalhadas pelo terreiro. Em outras ocasiões, era creditado aos bugres o êxito de sumirem com as galinhas sem deixar rastro. Os bugres, na sua ânsia de saciar a fome, não respeitavam nem mesmo a tenra idade dos bichos, pois os matavam a flechadas e os puxavam pelo mato adentro. Não matavam os cavalos por respeito, porque deles meu pai dependia, até mesmo para buscar suprimentos na cidade. Foram tempos inglórios, tempos de penúria, quando nada mais fazia sentido. Aquelas terras em meio às matas ainda cerradas de araucárias haviam sido herdadas de meus avós, que não possuíam lavratura. Meu avô paterno, devido à descendência ucraniana, por aqui era tido como “polaco”. Ao chegar ao Brasil, quem tivesse possibilidade, comprava terras. Quem não tinha, se embrenhava no mato. Tornava-se posseiro, grileiro. Muitos enfrentaram os bugres, também denominados de botocudos, para sobreviver ou morrer. Quem sobrevivia passava a ser respeitado até mesmo pelos próprios bugres. Afinal, se para os

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índios animais ferozes eram as onças, passaram a conhecer algo bem pior. Meu bisavô, pobre colonizador e posseiro, chegou a ser “bugreiro”. Precisava defender suas conquistas, suas terras. Então, entrou para a companhia de “Batedores do Mato”, cujo objetivo era o de afugentar os bugres ou tentar pacificá-los; se não, matá-los. Assim, muito tempo depois, eu ainda vivia em meio aos perigos, entre os bugres e os animais, de peçonhentos a felinos. Mas estava ambientado. Medo não havia, porém, a falta desse sentimento poderia abreviar nossa existência. Nossas brincadeiras de criança eram sempre muito próximas a casa, com minha mãe mascando tabaco e cuspindo para espantar botocudos e maus presságios. Ela própria descendia de pais acaboclados, os caburés. Meio negro, meio índio. Havia sido pega no laço, como dizia meu pai. Era rude, nem doce, nem meiga. Além da lida com a roça, da qual extraíamos erva-mate, milho, feijão, mandioca, cará e inhame, nada tínhamos para nos entreter, a não ser folguedos infantis como jogo de peteca e algumas brincadeiras tão primitivas que talvez nem fizessem a menor diferença. Certa vez, caçando em meio à mata fechada, ouvimos o grito desesperado de um bugio que

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estava preso nas garras do gavião preto. Com a espingarda, meu pai derrubou o gavião; na queda, morreu também o filhote de bugio. Assamos ambos, macaco e gavião. Nunca tínhamos ido à cidade, eu e meus dois irmãos. Não tínhamos a menor ideia de como seria. Apenas ouvíamos falar. Pensando nisso, meus pais resolveram matricular-nos em uma Escola Isolada próxima a uma represa, a quase dez quilômetros de distância. Tínhamos dois anos de diferença entre cada um de nós. Como não frequentáramos nenhuma escola, colocaram-nos na mesma turma. A inexistência de estradas fazia com que andássemos em meio à mata no interior do sertão do planalto serrano, ainda coberto por araucárias em um lugar ermo e inóspito para a época, denominado Salto do Bugre. Para encurtar a distância, abríamos picadas a facão em meio ao cipoal. Os bugres, arredios e desconfiados, às vezes deixavam-se olhar de relance e sumiam no meio da mata. Nunca se aproximaram ou causaram qualquer inconveniente que representasse perigo. Parecia que conheciam nossa rotina. Para eles, ficara fácil obter alimentos, então nos acompanhavam como que para nos defender. Eu tinha por volta de quatorze anos de idade naquele ano de 1957. Havíamos frequentado

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a escola por três longos meses. Caminhávamos vinte quilômetros, por quatro horas, todos os dias. Mal tínhamos sido apresentados ao “abc” ou às vogais. Éramos analfabetos. Não havia quem aplacasse nossa desilusão pelo fato de aquela escola ter sido fechada. Não entendíamos os motivos. Assim, meu pai cavalgou até a cidade de Rio da Serra, detendo-se por lá durante alguns dias. A viagem durava um dia inteiro. Eram doze quilômetros até alcançar a estrada e mais vinte e quatro quilômetros até a cidade. Sempre que viajava a cavalo, ou quando transportava erva-mate na carroça, deixava uma espingarda com minha mãe para o “caso de precisão”. Meu pai era um homem rude, bicho do mato. Apelidado de “casca grossa”, portando facão e punhal, impunha respeito na cidade. Talvez por ser grileiro, de “fala mansa e timbre forte”. Naqueles tempos, pessoas como ele eram bem tratadas, pois quando viajavam para a cidade, era por doença ou a negócio. Levara em sua carroça tudo o mais que pudesse carregar: tubérculos, carne de caça conservada em latas grandes de banha de porco, pinhas de pinhão, frutas do mato, folhas de erva mate e feijão de vara.

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No retorno da cidade, trazia muitos víveres, como trigo, farinha de milho, sal, erva-mate, café, pinga, querosene, creolina, e alguns materiais para serem utilizados na roça ou na manutenção da casa. Querosene era algo de que não se podia prescindir. Além de iluminar o breu da noite, era utilizado para retirar bernes, bicho de pé, piolho, traças e recuperar os pelos de cães e cavalos. A creolina é uma substância forte, bactericida, germicida, fungicida. Era utilizada tanto por nós, seres humanos, quanto para manter a saúde dos animais. No inverno, meu pai conseguia algumas roupas pesadas e cobertores para que pudéssemos suportar o insólito frio sobre aquelas paragens.

Enquanto aguardávamos sua volta, tomávamos todas as providências para que não fôssemos molestados pelos bugres ou algum “indesejável forasteiro”. O risco de sermos surpreendidos era constante, porém, sentíamo-nos seguros pelo fato de nunca termos sido colocados à prova por malfeitores em carne e osso. Nunca, até sentirmos os calafrios do perigo eminente.

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Era noite alta quando ouvimos o relinchar de cavalos chegando pela picada aberta em direção a casa. Por segurança, na ausência de meu pai dormíamos em uma espécie de refúgio dentro do celeiro, onde guardávamos os animais durante a noite. No alto, próximo ao teto de telhas de madeira e folhas de caeté, dormíamos dependurados em um tipo de cama de campanha presa ao teto e às paredes, apoiadas por troncos de árvores. Sobre um gradeado de sarrafos eram colocadas as palhas de milho por sobre as quais passávamos as noites maldormidas. A todo momento, acordávamos com algum ruído costumeiro, e às vezes mais forte, que vinha dos arredores do celeiro. Aqueles ruídos de cavalos chegando prenunciavam algo de muito ruim, pois não ouvimos o rodar de carroça que talvez pudesse ser meu pai. Pelo trotear, suspeitamos serem dois os forasteiros. Escutamos apearem e mais alguns bufos dos cavalos. Minha mãe de imediato estendeu-me a espingarda para que atirasse caso invadissem nossa casa ou o celeiro. Quando se aproximaram da casa, os bichos e os cães ouriçaram-se, assustando-os. Pelo que vimos quando soltei os cães, saíram em desabalada carreira pela trilha de acesso à propriedade, não sem antes atirarem para o alto, como que

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avisando que voltariam, pelo fato de eu também ter disparado a espingarda. Sem dúvida eram ladrões, mas chegamos a pensar que eram capatazes a mando de algum proprietário maior, com intenção de afugentar-nos dali, por não termos a certidão de posse daquelas terras. Quando meu pai voltou da cidade, nos contou sua ideia, pois já refletira sobre nosso futuro. Sabia que algum dia teríamos problemas com a posse definitiva, apesar de que a lei por usucapião nos protegesse. Mas seria um futuro incerto, amargo e duvidoso. Poderíamos sofrer represálias e perseguições. Apesar de sua ignorância, meu pai nunca deixou de pensar no futuro dos filhos, ou pelo menos em sua educação. Portanto, por não conseguir outra escola para nós, havia procurado por algumas pessoas que lhe eram conhecidas. Finalmente, acabou por nos dar uma boa e uma má notícia. A má é que não havia conseguido “padrinho” para todos. A boa: apenas um “padrinho” e um emprego. Enquanto aguardava ansiosamente pelo dia em que iria para a cidade, ajudava meus pais na lida para preparar outra carroça com produtos para serem vendidos por lá. Era fim de tarde e estava escovando o pelo de um dos cavalos quando enxerguei um vulto ao longe, no início da trilha de acesso à nossa

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propriedade. Pensei ter visto alguma sombra ou algo parecido. Enganei-me. Corri para dentro do celeiro e fiz pontaria com a espingarda de meu pai, que estava na área de roça próxima da casa. Galoparam furiosamente contra nós, prontos para disparar suas garruchas. Naquele momento de incerteza, a única reação seria atirar para sobreviver, e foi o que fiz. Então, fui encaminhado à cidade para poder trabalhar e estudar, muito mais cedo do que imaginava. Tinha uma casa para morar e um emprego em uma madeireira. Os estudos viriam depois, talvez nunca, embora fizessem parte dos sonhos. Antes, porém, teria contas a prestar com o delegado da cidade, e descarregar um defunto da carroça. Para nossa e talvez minha particular sorte, o indivíduo morto com um tiro no cenho frontal era Gildásio, vulgo “berne”, um conhecido ladrão de cavalos. O outro, que certamente levou um dos tiros, fazia parte da dupla de assaltantes e era muito conhecido do delegado local. Apesar das investidas da polícia pela região, o Ubirajara “cara de cavalo” não fora encontrado, causando-nos severa preocupação. Diante destes fatos, iniciara-se aí a minha auto-emancipação. De qualquer modo, não poderia mais viver naquelas terras, pelo temor de colocar

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minha vida e da família em risco pelo fato de ter matado um bandido perigoso e ferido outro da pior estirpe. Afinal, a notícia de que um certo “mateiro” de 14 anos havia se transformado em matador corria feito rastilho de pólvora pela região. Foi de bom alvitre a iniciativa de antecipar minha ida à cidade, algo que já fora irremediavelmente planejado. Pensava que poderia afastar para longe qualquer represália ou atentado à minha vida e à de minha família. Passei muito tempo desconfiando até de minha própria sombra, mas acreditava estar seguro na cidade, no novo lar e na madeireira.

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