O Brasil como realidade e multiplicidade A diversidade de modos de vida humanos é uma diversidade dos modos de nos relacionarmos com a vida em geral. A vida vive da diferença; toda vez que uma diferença se anula, há morte. A diversidade é um valor superior para a vida; ela é a própria idéia de valor, é o valor de todo valor. O coração da realidade supõe e afirma a diversidade. A identidade cultural é uma consequência, não uma causa da diversidade cultural. Falar em diversidade não é fazer uma constatação, mas um chamado à luta. Não se trata de celebrar ou lamentar uma diversidade passada, residualmente mantida ou irremediavelmente perdida — uma diferença diferenciada, estática, sedimentada em identidades separadas, embaladas e prontas para consumo. Sabemos como a diversidade, tomada como mera variedade no mundo, pode ser usada para substituir as verdadeiras diferenças por diferenças factícias, por distinções narcisistas que repetem ao infinito a morna identidade dos consumidores, tanto mais parecidos entre si quando mais diferentes se imaginam. A bandeira da diversidade real aponta para o futuro, para uma diferença diferenciante, aquilo que se quer produzir, promover, favorecer. Não é uma questão de preservação de identidades, mas de perseveração na diferença. Não é um problema de tolerância e acomodação passiva, mas um movimento de generosidade ativa, de grandeza de imaginação, e de determinação política. Não uma guerra de identidades em perpétua divisão, mas a paz criativa das diferenças que se multiplicam entre si. O contrário da intolerância não é a tolerância, mas [como lembrou ontem Beto Cruz], o respeito. O respeito, palavra que tem a mesma etimologia que a palavra relação (por isso se diz “a respeito de”, para dizer “em relação a”; ter respeito é estabelecer uma relação). A relação como respeito, o respeito como relação: isso traduz uma concepção do laço social não como mesmificação, assimilação, identificação pelas semelhanças, fusão de consciências unificadas em torno de um Credo, um Ideal, um País, ou qualquer outro avatar do Todo Transcendente (e todo Todo é invenção de uma parte, fiquem certos disso: a parte que se identifica ao todo e mede a identidade alheia pela distância em relação a sua própria todidade). A relação como respeito e o respeito como relação traduzem uma idéia da diferença relacionante, propõem a sociedade como uma arte das distâncias, o desenvolvimento de uma sensibilidade para o potencial
positivo, criativo, liberador da diferença como fundadora de relação. Nem apartheid (e nenhum apartheid aparta do mesmo jeito pelos dois lados), nem assimilação (pois toda assimilação é unilateral e assimétrica), mas respeito, que é bom e a gente gosta. O que é preciso respeitar é a alteridade do Outro, não a autoridade do Um. “Só me interessa o que não é meu: lei do homem; lei do antropófago.” Esse é um aforisma
pescado no célebre Manifesto Antropófago de Oswald de Andrade,. É
preciso entendê-lo não como uma declaração de cobiça desenfreada pelos bens do próximo, isto é, como uma confissão de banqueiro ou de ladrão, mas como uma declaração de amor ao distante (amar o próximo é fácil, dificil é amar o distante, i.e. o diferente. E amar é respeitar incondicional e irrestritamente, não é outra coisa). “Só me interessa o que não é meu” significa: só o que não é meu me enriquece existencialmente, só o que o Outro aporta à relação é que conta para mim — eu estou suspenso pela corda que me liga ao outro, aos outros, todos os outros. Só me interessa, em suma, o que não sou eu. Para poder sê-lo; quero dizer, para poder ser eu, preciso me desinteressar do eu e me interessar pelo que não é meu, pelo que não sou eu. Por isso identidade é resultado e não causa de diversidade. Quem começa pela identidade não sai mais dela. Já “perdeu”, como se diz na gíria do crime. O propósito desta conferência é investigar a aplicação dessas proposições abstratas e genéricas à chamada “realidade brasileira”. Em particular, trata-se de interrogar as condições em que é possível (e necessário) pensar (e agir) o Brasil como multiplicidade. *** Em meus tempos de estudante, era obrigatório criticar-se a tese dita “dualista” do sociólogo Jacques Lambert, avançada em Os dois Brasis, livro do final dos anos 50. Os dois Brasis eram, “evidentemente” — o advérbio diz muito —, o Brasil rico e o Brasil pobre, o Brasil capitalista, citadino, avançado, letrado e o Brasil précapitalista, rural, analfabeto, atrasado etc. Poderíamos acrescentar outros atributos: o Brasil branco e o Brasil índio-negro, o Brasil cristão e o Brasil pagão, o Brasil
civilizado e o Brasil primitivo. A tese era criticada, sobretudo pela esquerda, por não insistir sobre o mais importante, a saber, o fato de que a dualidade brasileira era, naturalmente, dialética. Os dois Brasis formavam um só Brasil, o Brasil rico o era às custas do Brasil pobre, e vice-versa. A dualização do Brasil era o resultado divisivo de uma máquina capitalista única, dentro da qual o Brasil, inteiro, era apenas mais um: os dois Brasis eram as duas partes mutuamente necessárias de uma pequena parte (a parte que nos cabia) do grande todo contraditório que era (e é) o sistema capitalista mundial. A distinção entre os dois mundos do capitalismo, a metrópole e a periferia, era a verdadeira distinção, a verdadeira dualidade da qual os dois Brasis eram uma simples reduplicação interna. O Brasil do Brasil era o Brasil pobre, negro, rural, etc. O outro Brasil, o Brasil rico, era como os Estados Unidos do Brasil. Ou seja, havia talvez dois Brasis, mas um era mais brasileiro do que o outro. Para melhor ou para pior. Na verdade, e esta era a quase toda a questão — para melhor ou para pior? Quase toda a questão dizemos, porque nem tudo estava em questão; fosse como fosse, a dualidade era unanimemente vista como maligna: o Brasil precisava deixar de ser dois para um dia vir cumprir seu ideal, tornando-se um grande Brasil. Militares e comunistas, patriotas em geral, equivocados ou não, convergiam para esse ponto luminoso. Ainda que, como sabemos, o Brasil único que se mirava não fosse necessariamente o mesmo. Ou pior, fosse. A tese dos dois Brasis foi várias vezes reafirmada ao longo do século XX. Uma de suas reencarnações mais famosas foi a “Belíndia”, noção proposta por Edmar Bacha, nos idos de 1970, para caracterizar a distribuição escandalosamente desigual da renda no país. Um pequeno núcleo desenvolvido e civilizado enquistado em um continente obscuro e miserável: um pequeno mas poderoso Brasil “belga” dentro de um imenso mas impotente Brasil “indiano”. Um Brasil dos sonhos dentro de um Brasil de pesadelo; ambos, aliás, reais, ainda que divididos na proporção de 10% de sonho para 90% de pesadelo. Não faltou quem apontasse na fórmula da Belíndia a mesma timidez conceitual da tese de Lambert: pois teria sido preciso insistir que nossa Bélgica era causa e consequência de nossa Índia, e assim por diante. Isso é, sem dúvida, verdade. Mas
não sei se alguém lembrou também (provavelmente sim) que os dois países escolhidos como insígnias dos dois Brasis eram, na verdade, melhores do que a encomenda, para essa função de dividir (ou multiplicar) analogicamente o Brasil. Pois ambos não são exatamente modelos de homogeneidade interna. A Bélgica é uma entidade ela própria dual, estruturada como está em torno de uma divisão nem sempre pacífica, e variamente incômoda, entre a Bélgica latina (os valões) e a Bélgica germânica (os flamengos). Se ela é sede da União Européia, é precisamente por sua qualidade de fronteira ou de zona híbrida, de contato não-fusional entre contrários. Quanto à Índia, não é preciso enumerar seus impressionantes títulos à megadiversidade, étnica, cultural e social. Ainda mais agora, em que toda essa diversidade não impede que nos vejamos diante de “duas Índias”, uma que está sob vários aspectos “à frente” do Brasil, por exemplo dos pontos de vista tecnológico e econômico, e outra que continua a desempenhar sua função tradicional de exemplo do atraso, da miséria e da abjeção. Mas então, afinal, o Brasil é um ou dois? Ou seriam dois que são, cada um por seu lado, eles mesmos dois, ou mesmo muitos? Ou seriam “simplesmente” muitos, muitos muitos, uma multiplicidade irredutível a qualquer dualidade? Talvez haja, na verdade, dois Brasis: um Brasil para o qual só há um Brasil, ainda dividido belindianamente mas futura e idealmente unido, e um outro Brasil que, este sim, é muitos, ou melhor, que está em estado permanente de multiplicação. Essa maneira de formular o problema — mas, e isso já demanda um principal esforço de estranhamento, haveria primeiro que nos perguntarmos se há um problema, por que há um problema, e sobretudo, para quem há um problema — essa maneira sugere que a unidade ou diversidade do Brasil não são características empiricamente afirmáveis ou infirmáveis, atributos objetivos dessa entidade chamada ‘Brasil”, mas modos de nos orientarmos diante de uma realidade relativa, isto é, modos de nos relacionarmos a ela e com ela. A verdadeira questão, nos termos dos princípios genéricos enunciados acima, não é assim a de decidir se somos “um” ou “muitos”, no sentido extensivo — quantas culturas? quantas etnias? quantas identidades? etc. —, e sim qual é o regime dessa multiplicidade, em sentido intensivo, em que consiste o Brasil.
*** Eu disse acima que a tese dos dois Brasis era um objeto de detestação especial por parte da esquerda. Mas há que acrescentar que uma versão curiosa do tema dos dois Brasis se encontra no fato de que a esquerda (e este é um pais em que todo mundo é de esquerda!) ela própria tem “dois Brasis” na cabeça: esses dois Brasis estão representados de maneira muito desigual na composição do presente governo — pois há uma maioria e uma minoria dentro do governo, com projetos distintos para o “Brasil”. Há Brasil nº 1 da soja, do biodiesel e do gado (e do petróleo, e do minério, e das montadoras de veículos funcionando em plena carga, do consumo em plena expansão etc.); e o Brasil nº 2 da floresta, do desenvolvimento sustentável (sustentável para valer, i.e., um conceito que distingue radicalmente entre desenvolvimento e crescimento, entre aceleração do crescimento econômico e aumento da felicidade humana), da agricultura doméstica, do pequeno produtor, do camponês, dos quilombolas, dos índios, das minorias em geral; este é o Brasil da economia de energia, do cuidado com as águas, da reciclagem, da consciência da necessidade de não ser os Estados Unidos ou a Europa, da atenção para o que vai se passando no mundo, com o mundo, por nossa causa. (Como queremos ser? Como os Estados Unidos do séc. XX? Por ora pareceremos mais com os EUA do século XIX, só que aqui, como já dissera o mesmo Oswald de Andrade, o Brasil escravista ganhou a guerra de secessão; nem precisou lutá-la na verdade.) Esses dois Brasis são representados, dizia eu, desigualmente no governo: cada vez mais desigualmente, na verdade, depois da lamentável derrota da Ministra Marina Silva. Antes, tínhamos de um lado os dois Ministérios da Sociedade: o Ministério da Natureza (MMA) e da Cultura (MinC); do outro lado, todos os outros ministérios juntos, que poderiam ser consolidados em um só, o Ministério do Mercado, o ministério do Brasil nº 1, sob o comando da Chefe da Casa Civil, a nossa muito provável futura Presidente. *** Façamos uma constatação amarga: o Brasil está perdendo a oportunidade histórica única (difícil a historia dar mais de uma oportunidade a quem quer que seja) de tornar-se o primeiro país, o primeiro grande país, a implantar um modelo
civilizacional efetivamente inédito, diferente da paisagem geopolítico-cultural estabelecida nos séculos XIX e XX. (A questão da diversidade interna do Brasil é assim, como veremos, decisiva para a questão da diversidade externa do Brasil). Países como a Índia e a China chegam na pós-modernidade hipercapitalista com milênios de pré-modernidade civilizacional em sua bagagem, milênios estes que farão tais países infletirem o futuro do ecúmeno — a economia e a ecologia planetárias — em direções que não podemos sequer imaginar com clareza. Já o Brasil chega às portas do futuro sem nada, feito como é — como foi feito — de restos do velho patrimonialismo ibérico, de tomismo contra-reformista, de desprezo genocida pelos povos nativos, de uma exploração maciça de escravos… Sem nada, digo, é claro, em comparação com o Velho Mundo, o verdadeiro Velho Mundo tornado Novíssimo que são a China ou a Índia. Sem nada do que se orgulhar, sem nada a mostrar, além de seus pífios títulos a uma diversidade quase-acidental, feita daquilo que não se conseguiu esmagar inteiramente — os índios—, daquilo que não se conseguiu apagar da lousa da história nacional — os escravos—, e daquilo que se importou com o objetivo explícito de corrigir a má diversidade nacional para aproximá-la da apolínea brancura do hemisfério norte — os imigrantes europeus do Sul do país, vindos para melhorar a raça e a economia — política que na verdade continua, como mostraremos mais adiante. Mas enfim: que por uma vez esse “sem nada”, essa “falta de identidade”, permita ao país constituir-se como um laboratório de futuro, em lugar privilegiado para que se pense uma nova idéia de lugar (ecologia é: teoria do lugar: onde estamos?): o lugar dos brasileiros no Brasil, mas mais importante, o lugar da espécie humana no mundo, a relação dos seres humanos com seu lugar. Parar de pensar só no Brasil, parar de pensar só na espécie humana, começar a definir a vida, o vivente como nosso país, nosso território existencial. *** Já observei, em um escrito anterior, que a idéia do “Brasil, país do futuro” realizouse de um modo um tanto irônico, como sempre acontece com as realizações históricas de idéias grandiosas e um pouco estapafúrdias. Há alguns meses atrás, conversava com amigos sobre como o capitalismo tinha mudado no mundo todo: o
novo sistema de controle da mão-de-obra do capitalismo moderno, com o trabalhor constantemente vigiado pela internet, com o consumo tornado trabalho (ver TV é parte do trabalho do trabalhador, é por ali que ele orienta seu consumo produtivo, i.e. a reposição de sua força de trabalho, inclusive a imaginária); mais geralmente sobre a precarização do emprego, a informalização geral das economias, etc. E aí alguém lembrou que isso sempre existiu no Brasil. E eu fiquei pensando, pois é, sempre disseram que o Brasil era o país do futuro, iria ser o grande país do futuro. Mas foi o futuro que virou Brasil. O Brasil não chegou ao futuro, foi o contrário. Para o bem ou para o mal, agora tudo é Brasil. E se agora tudo é Brasil — talvez esteja na hora de acabar com a paranóia de acharmos que os EUA querem ter o Brasil, enquanto o Brasil quer ser os EUA (e aí ter talvez o Paraguai, a Bolívia…?). Hora de pensar, de parar de acelerar e pensar. Parar para pensar para não parar de pensar de vez. O Brasil precisa mais que crescer; precisa se reinventar. Reinventarse com o que tem: com uma grande biodiversidade, e com condições que favorecem (não garantem) uma não menor sociodiversidade. Como o país de um outro futuro que esse que já chegou para todos (falo de todos do mundo, o que, surpresa!, nos inclui, aos brasileiros), e que, convenhamos cá entre nós, é péssimo. Para essa reinvenção é preciso muita imaginação e muita humildade ao mesmo tempo, começando pela disposição em reconhecer que o Brasil é um país ainda bem menos que diverso: é um país dividido, que não está de forma alguma unido em torno de um “projeto nacional”. Primeiro, porque isso de “projeto nacional” é coisa de rico. Quem tem projeto nacional é Antonio Ermirio de Moraes, a FIESP, por aí. Ou quem gosta de mandar: projeto nacional é coisa de quem se acha dono do Brasil, fardado ou não. Quais são os projetos nacionais calados, que projetos outros que nacionais mantêm vivos e ainda esperançosos os que não se acham, nem são, donos do Brasil? Mas projeto nacional, se há, é uma dissonâncioa: o Brasil imaginado pelos mega-plantadores de soja, pelo donos de fazendas de gado do tamanho de pequenos países, ou o Brasil imaginado pelos fiéis da IURD, ou ainda por aquela classe média que sonha em comprar seu segundo utilitário esportivo para ir às compras no Shopping Eldorado nos intervalos de seus intervalos em Miami — esse não é o Brasil que eu, pelo menos imagino. Eu e outros, confio e espero. O Brasil dos 50% de detestadores de LGBT, como vimos na pesquisa de
ontem, é o mesmo que o “meu” Brasil? Duvido. Então o tema da diversidade é ele próprio objeto de diversidade, ou antes de dissensso. Para uns é solução, para outros, problema. Sobre a diversidade brasileira, talvez esteja na hora de irmos além das constatações ufanistas e reconhecer que se este é um país de muitas diferenças (diferenças diferenciadas, historicamente sedimentadas, historicamente resistentes), está longe de ser um país muito diverso (no sentido que deu à palavra o José Márcio de Barros, do Observatorio da Diversidade Cultural, ontem), e mais longe ainda de ser um país plural (idem). Na verdade, a construção do Brasil foi uma obra de violenta homogeneização cultural do território nacional: da administração colonial aos bandeirantes, destes aos militares da ditadura, passando pelo sistema da plantation canavieira e cafeeira. Hoje, o Brasil Central e a Amazônia está nas mãos de agentes econômicos oriundos majoritariamente do sul do Brasil, RGS e SC principalmente, descendentes daqueles migrantes importados pelo império e a república velha para substituir os escravos e melhorar a qualidade da raça nacional (mas raça não existe, nos dizem os biólogos, e aliás se houvessem, elas estariam misturadas no Brasil, então… Então o que? Se raça não existe, porque o elgoio da mesticagem? Para que? E aliás, e sobretudo, quem foi que disse que precisa existir raça para existir racismo? Como me dizem meus amigos negros: dizem que ninguém sabe quem é negro mesmo no Brasil, todo mundo é misturado… Bem, a polícia sabe muito bem quem é negro; os proteiros de prédio de rico também.) A diversidade existente no Brasil é uma diversidade resistente, não é obra, é descuido. Lembro que a noção de mestiçagem foi muito tempo usada como remédio para a diversidade, justamente, para acabar com a diversidade, homogeneizar a raca e a cultura brasileiras. Há, de fato, hoje, dois Brasis, um Brasil dos gaúchos, paulistas do interior, sulistas em geral, em expansão pela Amazônia e pelo Cerrado, com suas fazendas de soja e de gado, seus eucaliptos, sua cultura country, seus agrotóxicos e sua vigorosa, corrupta e corruptora bancada ruralista. E um Brasil dos negros, dos migrantes nordestinos, dos índios, dos pobres, dos favelados, mas também de uma certa classe média que não se reconhece no Brasil country, mas antes em uma certa idéia de mundo, uma certa consciência de que o Brasil é grande mas o mundo é
pequeno, e que temos de cuidar dele, pois a Terra é de fato nossa mãe: como mãe, terra só tem uma. O Brasil é maior que S.Bernardo e Barretos: os dois Brasis da imaginação desenvolvimentista do governo atual, nisso tão semelhante aos governos da ditadura. Isso para não falarmos em outra espécie de diversidade ou de diferença no Brasil: a nossa imensa “diversidade” socioeconômica, quero dizer, nossa escandalosa desigualdade socioeconômica, a distância abissal entre os ricos e os pobres, as condições infames de saude e de educação oferecidas à imensa maioria da população brasileira. (Mas quanto a isso, é preciso registrar, para louvá-lo,, que o governo atual está incomparavelmente mais atento que os governos anteriores, todos, juntos). Essa “diversidade”, de fato, é espetacular, e é ela que é a verdadeira ameaça a qualquer projeto de Brasil uno e grande. Pois não são os índios que vão balancar o coreto da nacionalidade, e sim os morros e favelas, povoados de exíndios e de descendentes de escravos. E o medo ou ódio suscitado pela política de cotas? As cotas são criticas na medida em que ali se cruxzam as “duas sociodiversidades brasileiras”, a de classe e a de etnia ou côr. Não é preciso insistir sobre a violenta sobredeterminação afetiva que o tema das cotas mobiliza (sobretudo entre os brancos), em nome de nosso Brasil mestiço. Mestiço e racista: isso sim é uma autêntica contribuição brasileira à estupidez humana? Nem isso: outros países latino-americanos são parecidos: veja-se Cuba, Colombia, os países andinos, etc. *** Um ou dois Brasis? Ou muitos? As perguntas que deveríamos fazer são talvez outras. Por exemplo: por que a insistente existência de povos indígenas no Brasil continua a ser vista como uma ameaça política por tantos pais, padrinhos e afilhados da pátria? Por que continuamos a ser “um país” sociologicamente escravocrata e ideologicamente racista, e tanto mais escravocrata e mais racista quanto mais “nós” o negamos? As respostas a tais perguntas passam por uma decisão de tirar todas as consequências de uma relação com o Brasil enquanto multiplicidade: uma relação que parta do princípio de que no Brasil todo mundo é índio, exceto quem não é. Índio ou outro, como somos todos; exceto, como (os de)
sempre, quem não é. No Brasil todo mundo é índio, exceto quem não é. Índio ou outro: cigano, quilombola, quebrador de coco babaçu, faxinalense, LGBT, pomerano, refugiado, caboclo… Porque o ônus da prova é do acusador: quem pode dizer que não é outro? Quem pode dizer que é a regra, a norma, e que o outro (o índio, o cigano etc.) é a exceção? O fenômeno mais auspicioso que vem se desenhando há algum tempo no país é a emergência de um Barsil que não é mais dois, ou um, mas muitos. Lembro de uma anedota contada por Lévi-Strauss em seu livro Tristes Trópicos. No começo da década de 1930, às vésperas de embarcar para São Paulo para ensiunar na recém-fundada USP, Lévi-Strauss procurou o embaixador do Brasil na França para lhe perguntar sobre os índios brasileiros, como poderia fazer para visitar as áreas indígenas etc. O embaixador, sujeito, diz Lévi-Strauss, extremanente elegante e afável, respondeu em tom nostálgico: ah, Monsieur, esta é uma triste história, mas no Brasil há muito tempo que já não há mais índios… Isso em 1930! Quando sabemos que, desde mais ou menos o século XVII, quando a população indígena das Américas terá provavelmente atingido seu ponto mais baixo, nunca houve tantos índios no Brasil como agora, 2008! Quando sabemos como, na década de 1970, as gigantescas obras de infratestrutura da ditadura expuseram dezenas de povos indígenas que viviam isolados (isolados voluntariamente, diga-se de passagem) da sociedade envolvente. Quando sabemos que os últimos vinte anos, i.e. desde a Constituição de 1988, novos povos indígenas surgem a cada mês, isto é, comunidades rurais e camponesas do Nordeste e do Sudeste se redescobrem povos indígenas, após séculos de catequese, discriminação, assimilação forçada, censura à língua nativa. No Brasil todo mundo é índio; apenas uns são mais que os outros. Somos todos os índios de alguém. Exceto… *** Como sou um antropólogo com mais experiência de trabalho e reflexão junto a povos indígenas (antes que as demais minorias que juntas, formam a maioria do Brasil), gostaria de concluir com algumas palavras sobre a idéia frequentemente repetida de que os índios estão virando brancos, estão perdendo sua cultura, e que por isso, essa deve ser preservada (ao ponto de se tirarem os objetos d ebranco de
um filme como o de ontem, para mostrar o índio puro — quando é vio que os adereços tradicionais do ritual filmado foram feitos com matéria prima industrializada — e daí? O ritual não era made in China, mas made in Xingu. Isso que importa). Ou, como preferem os inimigos dos índios, como aqueles plantadores de arroz do norte de Roraima que, vindos do sul do país no tempo da ditadura e seus generosos incentivos fiscais para branco, acham que os índios de lá não têm direitos sobre as terras que ocupam porque eles já viraram brancos (enquanto o fato de eles plantadores serem brancos e por isso se acharem com direitos sobre as terras não lhes parece uma contradição…), a cultura dos índios já desapareceu, não há mais índios puros no Brasil etc. A idéia tradicional que todos nós tínhamos, até alguns anos atrás, era de fato que os índios estavam virando brancos. Isso, lamentávamos ou celebrávamos, foi o resultado de um esforço secular de desvalorização radical da cultura indígena. Essa desvalorização era a pré-condição para que os povos indígenas (o que sobrou dos povos indígenas) virassem brancos, partes indiferenciadas, e, naturalmente, partes de baixo, do grande povo brasileiro. Ora, na verdade, não se tratava de virar branco, mas apenas de deixar de ser índio. A tal da “integração e assimilação” que o Estado brasileiro entendia (e que muito ainda entendem) como sendo seu objetivo no trato com os povos indígenas era vista como inevitável e desejável, mas o fato é que ela não era desejável coisa nenhuma — é só conferir: poucos índios se mostram satisfeitos com a branquitude que os camelôs dos brancos (padres, educadores, administradores) lhes venderam junto com outras quinquilharias identitárias —, e, felizmente, tampouco se mostrou inevitável. Ali onde ela aconteceu, o “resultado” foram pessoas e comunidades que não eram mais índias, mas que não eram brancas também. Porque não eram reconhecidas como brancas, a quem eram negadas as prerrogativas dos brancos. Na verdade essas pessoas e comunidades vieram a formar o chamado “povo brasileiro”, brancos envergonhados de serem, no fundo, índios no fundo, de terem parentes índios… O triste destino do filho de pai branco e de mãe índia (ou negra), contado de maneira magistral por Guimarães Rosa em “Meu Tio o Iauaretê”. A outra idéia tradicional de que “ser branco” e “ser índio” era um jogo de soma-
zero, ou um sistema de vasos comunicantes fechados: quanto mais branco, menos ndios, e vice-versa. Voltar a ser índio era diminuir o branco dentro do índio, e viceversa. O que se percebe hoje é que, se houve um momento (que ainda continua para muitas pessoas e povos, infelizmente) em que é possível ser pouco índio e pouco branco, isto é, não ser nem (mais) índio nem (jamais) branco), então deve ser possível ser mais branco e mais índio ao mesmo tempo, ser tanto mais índio quanto mais branco se é. Entenda-se, no final das contas: ser índio e ser branco não são um jogo de soma-zero, mas uma relação em que ambos os termos podem ser reforçar em vez de se enfraquecer mutuamente, ou simplesmente de trocar seus valores quantitativos por assim assim. Isso é particularmente claro agora, quando certos aspectos os mais marcados pela cultura do branco — por exemplo as novas tecnologias de informação, que supõem toda a cultura ocidental da ciência, da matemática, da astronomia (e da guerra: cf. as origens militares da internet) etc. — estão sendo justamente utilizados pelos índios não para aperfeiçoar seu processo de virar branco, mas para ajudá-los a virar índios de novo, ou a reforçar e proteger e divulgar sua condição de índio. Ou seja, este é um processo em que o aumento do conhecimento que os índios têm da cultura dos brancos, e o controle de certos instrumentos tecnologicos fundamentais dessa cultura, é utilizado para aumentar a indianidade, não a branquitude dos índios. É possível ser mais branco e mais índio ao mesmo tempo. Mas isso não é um processo tranquilo. É claro que ser mais branco e mais índio ao mesmo tempo é mais dificil que ser só branco, só índio, e mesmo que ser nem branco nem índio. O lado branco e o lado índio sempre haverão de conflitar. Isso porque o que os índios desejam é a cultura do branco, mas não sua sociedade. Isto é, eles desejam a tecnologia do branco, mas não as relações sociais, o modo de vida (na família, nas relações econômicas, na relação com o meio-ambiente, nas formas de violência etc.). Os índios não estão interessado em sua cultura por que ela é bela, mas porque ela é o veículo de sua forma social de existêncua, e é na forma social de vida que está a felicidade, o bem-estar. Ora, não é nada fácil separar a cultura da sociedade, e várias experiências dolorosas têm mostrado que quando importamos a cultura, a sociedade vem junto. Mas é ainda assim possível
apropriar-se criativamente da cultura alheia e utilizá-la para reforçar os valores mais importantes da nossa própria cultura — o que não deixará entretanto de modificála. Em suma, vai ser preciso aprender a conviver com certas contradições e certos mal-estares. O que é preciso é estar consciente deles e saber geri-los, saber administrar as dificuldades inevitáveis neste processo de apropriação da tecnologia dos brancos com o fim de reforçar e revalorizar e proteger a cultura e a sociedade indígenas. Eu lembro aqui, ainda dentro dessa distinção entre cultura e sociedade (essa distinção que na verdade não é fácil de fazer, pois como vimos importar uma cultura, uma dada tecnologia p.ex., traz consigo a alta probabilidade de contrabandear a sociedade junto), que a cultura indígena que os índios querem proteger e divulgar é, na verdade, aquela parte de sua cultura que simboliza sua sociedade de maneira mais central, aquela parte da cultura responsável pela preservação de sua sociedade, das relações sociais, familiares, da formação das novas gerações etc. Pois a cultura está sempre a serviço da sociedade e nunca o contrário. Quando o contrário acontece, estamos na crise atual: a tecnologia comanda a sociedade. Por isso, o dilema, por assim dizer, indígena de hoje é o de se apropriar da cultura do branco sem ter de engolir inconscientemente, sem se deixar envenenar inocentemente, pela sociedade do branco. Fazer com que a tecnologia do branco sirva de alimento, e aprender a separar desse alimento, antes de consumi-lo, o suco tóxico, os ingredientes venenosos que ele contém. Como na mandioca brava. É preciso desenvolver uma tecnologia indígena de detoxificação da tecnologia do branco para torná-la útil, nutritiva por assim dizer. Mas isso vale para os índios como vale para o Brasil inteiro, para todos os brasileiros, isto é, para todos os muitos índios (os índios e os outros) que formam o povo brasileiro (exceto quem não é), face às mercadorias culturais que abarrotam as prateleiras do supermercado tecno-semiótico em que o planeta se transformou. O antropófago cultural tem de tomar cuidado com o que come. Só me interessa o que não é meu: mas nem tudo o que não é meu me interessa. Só o que me aumenta.
Eduardo Viveiros de Castro