Trocados n.2

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n.2 2013

Aleksandar Hemon / A. K. Coomaraswamy / Colette Vicente Huidobro / Jordanes / Stephen Crane C.S. Lewis / Juan JosĂŠ Saer / Gene Wolfe H.P. Lovecraft / Robert Musil / Harlan Ellison


“Eu incentivo os tradutores dos meus livros a tomarem toda a liberdade que precisarem. Isso não é realmente um gesto heroico como pode parecer, pois descobri, trabalhando com tradutores ao longo dos anos, que o próprio original é, de certa maneira, uma tradução.” Michael Cunningham Found in Translation


EDIÇÃO E ORGANIZAÇÃO Richard Costa DESIGN E ORGANIZAÇÃO César Ganimi Machado REVISÃO Tiago Kroich TRADUTORES César Ganimi Machado Douglas Silva e João Silva Fabiana Esse Fernando Silva e Silva Flávia Maria Nascimento George Ayres Mousinho Gustavo H. S. S. Sartin Hugo Crema Pedro Sette-Câmara Richard Costa Stephanie C. L. Fernandes Tiago Kroich

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Revista Trocados v.1, n.2 2013 ISSN 2316-2740


EDITORIAL

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esta segunda edição, como prometido, temos ensaios além de contos. Seguem algumas impressões pessoais sobre cada um dos textos. O Aquário, um ensaio pessoal de Aleksandar Hemon, é brutal em sua delicadeza, de uma tristeza catártica. É uma crônica da luta contra a doença de sua filha; uma leitura pesada que, ao mesmo tempo, se torna quase impossível de largar. Para que serve a arte?, de Ananda K. Coomaraswamy, uma crítica corajosa contra a arte-pela-arte em favor de uma concepção clássica de arte. Revela as consequências da arte-pela-arte na arte atual, que muitas vezes parece arte-por-porcaria-nenhuma. A Criação pura, de Vicente Huidobro, outro ensaio sobre a arte, mas com outra visão sobre os propósitos da arte e do artista. Segundo o autor, o artista ideal deve imitar não as obras da natureza, mas o seu modo de composição. A introdução geográfica de Sobre as Origens e Feitos dos Godos, do godo medieval Jordanes, aparece como a tradução mais acadêmica desta edição, e serve um propósito filológico, embora não deixe de ser uma curiosidade epistolar. Uma Ilusão em Vermelho e Branco, de Stephen Crane, um conto que por fim se revela uma fábula realista sobre crianças, mentiras e assassinato.

A Meditação no Galpão de Ferramentas, um ensaio singelo de C.S. Lewis, sobre os problemas das observações externas que descartam nossa experiência interior. Fotofobia, de Juan José Saer, uma ficção intimista sobre os devaneios de uma moça que sofre de aversão patológica à luz. Epitáfios, de Colette, relata as desventuras de um jovem compositor de epitáfios que se torna um necrófilo casto e romântico. O Deus e Seu Homem, uma fantasia científica de Gene Wolfe, na qual um deus-astronauta e seu escolhido confrontam as naturezas humana e divina. A Maldição de Sarnath, conto já clássico de H.P. Lovecraft, desfia as glórias pretéritas de uma “cidade invisível” fadada ao esquecimento e à ruína. O papel pega-mosca, uma micro-não-ficção de Robert Musil, descreve a agonia de uma mosca em seus últimos momentos grudentos, em comparação à condição humana. Não Tenho Boca, e Preciso Gritar, conto especulativo de Harlan Ellison, retrata os sofrimentos dos últimos sobreviventes da espécie humana num inferno computadorizado pós-apocalíptico, onde uma inteligência artificial onipotente se torna Deus e Diabo. Boa leitura. Florianópolis, 24 de fevereiro de 2013 Richard Costa


SUMÁRIO O Aquário — Uma família isolada por uma doença Aleksandar Hemon Tradução de Stephanie C. L. Fernandes

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Para que server a arte, afinal? Ananda Kentish Commaraswamy Tradução de Pedro Sette-Câmara

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A Criação pura: ensaio de Estética Vicente Huidobro Tradução de Douglas Silva e João Silva

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Sobre as Origens e os Feitos dos Godos Jordanes Tradução de Gustavo H. S. S. Sartin

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Uma Ilusão em Vermelho e Branco Stephen Crane Tradução de César Ganimi Machado

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Meditação no Galpão de Ferramentas C.S. Lewis Tradução de Fabiana Esse

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Fotofobia 74 Juan José Saer Tradução de Hugo Crema Epitáfios 83 Colette Tradução de Flávia Maria do Nascimento O Deus e Seu Homem Gene Wolfe Tradução de Tiago Kroich

88

A Maldição de Sarnath H.P. Lovecraft Tradução de George Ayres Mousinho

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O Papel Pega-Mosca Robert Musil Tradução de Fernando Silva e Silva

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Não Tenho Boca, e Preciso Gritar Harlan Ellison Tradução de Richard Costa

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ALEKSANDAR HEMON *

O AQUÁRIO título original: THE AQUARIUM tradução: STEPHANIE C. L. FERNANDES

Aleksandar Hemon nasceu em Sarajevo, na antiga Iugoslávia, em 1964. Durante uma visita a Chicago, em 1992, sua cidade natal foi sitiada e ele não pôde voltar para casa. Radicado nos Estados Unidos desde então, Hemon publicou quatro livros que combinam suas histórias de exílio, humor e ficção — as coletâneas de contos E o Bruno? e Amor e Obstáculos; e os romances As Fantasias de Pronek e O Projeto Lazarus, todos escritos em inglês. “O Aquário” é um ensaio sobre sua filha Isabel que, ainda bebê, foi diagnosticada com uma doença extremamente rara. A partir da experiência da família — incluindo o amigo imaginário de sua filha mais velha, de três anos — Hemon entende que criar e contar histórias é uma ferramenta humana básica para a sobrevivência. Foi publicado pela primeira vez no periódico The New Yorker em 2011. Stephanie Fernandes é tradutora e estudante de Letras – Linguística na Universidade de São Paulo. “O Aquário” é seu primeiro trabalho literário a ser publicado. No momento, está traduzindo a autobiografia do Monty Python para a editora Realejo.


O Aquário — Uma família isolada por uma doença © Aleksandar Hemon

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o dia 15 de julho de 2010, minha esposa Teri e eu levamos nossa filha mais nova, Isabel, ao médico para uma consulta geral. Ela tinha nove meses e parecia perfeitamente saudável. Seus primeiros dentes haviam nascido e ela já comia com a gente na mesa de jantar, balbuciando e se empanturrando de cereal. Era uma criança alegre e animada, gostava de pessoas, coisa que, corria a piada, ela não herdara do pai rabugento. Eu e a Teri sempre íamos juntos às consultas médicas das nossas filhas e, dessa vez, também levamos a Ella, a irmã mais velha da Isabel, de quase três anos. A enfermeira do consultório do Dr. Armand Gonzales mediu a temperatura, o peso, a altura e a circunferência da cabeça da Isabel, e a Ella ficou feliz por não ter que passar pelo mesmo procedimento. O Dr. G, como o chamávamos, ouviu a respiração da Isabel e examinou seus olhos e ouvidos. No computador, abriu o quadro de desenvolvimento dela: sua altura estava dentro do esperado; ela estava um pouco abaixo do peso ideal. Tudo parecia bem, exceto pela circunferência de sua cabeça, que, comparada à última medição, estava duas medidas acima do normal. O Dr. G ficou preocupado. Relutante em mandar Isabel para uma ressonância magnética, marcou um exame de ultrassom para o dia seguinte. De volta em casa, naquela noite, Isabel estava agitada e irritada; custou a adormecer e acordou a noite toda. Se não tivéssemos ido ao médico, teríamos presumido que ela só estava muito cansada, mas agora tínhamos um quadro interpretativo diferente, pautado pelo medo. Mais tarde, naque noite, tirei a 8


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Isabel do nosso quarto (ela sempre dormia com a gente) para acalmá-la. Na cozinha, cantei para ela meu repertório inteiro de canções de ninar: “You Are My Sunshine”, “Brilha, Brilha, Estrelhinha” e uma obra de Mozart que aprendi quando criança, cujas letras em bosniano lembrei por milagre. Cantar as três canções de ninar num incansável loop geralmente funcionava, mas dessa vez demorou bastante até que ela encostasse sua cabeça no meu peito e se aquietasse. Quando ela fez isso, parecia que estava me confortando, dizendo que tudo ficaria bem. Preocupado do jeito que estava, imaginei um futuro em que um dia me lembraria desse momento e contaria aos outros como a Isabel é que tinha me acalmado. Minha filha, eu diria, cuidou de mim, e ela só tinha nove meses. Na manhã seguinte, Isabel passou por um exame ultrassom, chorando nos braços de Teri durante o procedimento. Pouco depois de chegarmos em casa, o Dr. G. telefonou para nos contar que a Isabel estava com hidrocefalia e que precisávamos ir a um pronto-socorro imediatamente — era uma situação de vida ou morte. No pronto-socorro do Hospital Memorial Infantil de Chicago, deixaram a sala de exames às escuras, pois Isabel estava prestes a passar por uma tomografia e os médicos esperavam que ela adormecesse para não ter que drogá-la. Mas ela não podia comer, porque havia a possibilidade de uma ressonância magnética posterior, e ficou chorando de fome. Um residente deu um cata-vento colorido a ela e soprou para distraí-la. Ela finalmente adormeceu. Enquanto a tomografia estava em andamento, nós esperávamos algo se revelar, com muito medo de imaginar o que poderia ser. O Dr. Tadanori Tomita, chefe da neurocirurgia pediátrica, leu as tomografias para nós: os ventrículos do cérebro da Isabel estavam dilatados, cheios de fluido. Algo estava bloqueando os canais de drenagem, disse o Dr. Tomita, possivelmente “um cisto”. Uma ressonância magnética era urgente. Teri segurou Isabel em seus braços enquanto davam as anestesias. Depois, nós a entregamos aos enfermeiros para uma ressonância de uma hora de duração. O refeitório, no porão do hospital, era o lugar mais triste do mundo, com 9


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suas sinistras luzes neon e mesas cinzas e o mal-estar difuso daqueles que haviam deixado crianças em sofrimento para comer um queijo quente. Não ousamos especular sobre os resultados da ressonância magnética; estávamos ancorados no momento, que, por mais aterrorizante que fosse, ainda não havia se estendido a um futuro. Chamados pela imagiologia médica, caminhamos até a sala do Dr. Tomita, pelo corredor excessivamente iluminado. “Creio que”, disse ele, “a Isabel tem um tumor.” Ele nos mostrou as imagens da ressonância em seu computador: bem no centro do cérebro da Isabel, alojado entre o cerebelo, o tronco cerebral e o hipotálamo, havia um negócio redondo. Era do tamanho de uma bola de golfe, segundo o Dr. Tomita , mas eu nunca havia me interessado por golfe e não conseguia visualizar o que ele queria dizer. Ele removeria o tumor e nós descobriríamos de que tipo era só depois do relatório da patologia. “Mas parece um teratoide”, disse ele. Eu também não entendia a palavra “teratoide” — estava além da minha experiência, pertencendo ao domínio do inimaginável e incompreensível, o domínio ao qual Dr. Tomita estava agora nos conduzindo. Isabel estava dormindo na sala de recuperação, sem se mexer, inocente. Eu e a Teri beijamos suas mãos e sua testa e choramos ao longo do momento que dividia nossa vida entre o antes e o depois. O antes estava agora e para sempre encerrado, enquanto o depois estava se espandindo, como uma estrelinha explosiva num universo negro de dor. Ainda inseguro quanto à palavra que o Dr. Tomida havia pronunciado, pesquisei tumores cerebrais na Internet e encontrei uma imagem de um tumor que era quase idêntico ao da Isabel. Seu nome completo era, eu li, “teratoide atípico/tumor rabdoide” (ATRT). Era altamente maligno e extremamente raro, ocorrendo em apenas três entre um milhão de crianças e representando em torno de três por cento de casos de câncer pediátrico no sistema nervoso central. A taxa de sobrevivência para crianças com menos de três anos era menor que dez por cento. Havia estatísticas mais desencorajantes ainda disponíveis para eu ponderar sobre, mas me afastei da tela, decidindo, em vez disso, conver10


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sar com os médicos da Isabel e confiar somente neles; nunca mais eu pesquisaria as condições dela na Internet. Eu já entendia que seria necessário administrar nosso conhecimento e nossa imaginação se não quiséssemos perder a cabeça. No sábado, 17 de julho, o Dr. Tomita e sua equipe de neurocirurgiões implantaram um reservatório Ommaya na cabeça da Isabel, para ajudar a drenar e alivar a pressão do fluido cerebroespinhal acumulado. Quando a Isabel retornou a seu quarto no hospital, no andar da neurocirurgia, ela chutou seu cobertor, como costumava fazer; tomamos isso como um sinal encorajante, um primeiro passo de esperança numa longa jornada. Na segunda-feira, ela foi liberada do hospital para esperar, em casa, pela cirurgia que removeria o tumor, que estava agendada para o fim da semana. Os pais da Teri estavam na cidade, pois a irmã dela havia dado luz ao segundo filho no dia da consulta da Isabel — muito preocupados com a Isabel, mal demos atenção ao novo membro da família — e a Ella passou o fim de semana com os avós, sem notar direito o furor da nossa ausência. A tarde de terça-feira estava ensolarada e nós saímos para uma caminhada, a Isabel amarrada ao peito de Teri. Naquela noite, corremos para o pronto-socorro, porque a Isabel teve febre; era provável que estivesse com uma infeção, o que não é incomum depois da inserção de um objeto estranho — nesse caso, o Ommaya — na cabeça de uma criança. Ela tomou antibióticos e passou por uma ressonância ou duas; o Ommaya foi removido. Na tarde de quarta-feira, deixei o hospital e voltei para casa para ficar com a Ella, já que tínhamos prometido levá-la à feira do nosso bairro. Era essencial, no meio da catástrofe, manter nossas promessas. Eu e a Ella compramos mirtilos e pêssegos; no caminho de volta para casa, paramos na nossa loja de massas favorita e levamos um cannoli de primeira. Conversei com a Ella sobre Isabel estar doente, sobre o tumor, e contei que ela teria que ficar com a vovó naquela noite. Ela não reclamou nem chorou; ela entendeu, como qualquer criança de três anos poderia, a dificuldade da nossa situação. Quando eu estava caminhando até o carro, cannoli em mãos, para voltar 11


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ao hospital, a Teri ligou. O tumor da Isabel havia causado uma hemorragia; precisavam fazer uma cirurgia de emergência. O Dr. Tomita estava esperando para conversar comigo antes de entrar na sala de operação. Levei em torno de quinze minutos para chegar ao hospital, através de um trânsito que existia num espaço-tempo completamente diferente, onde as pessoas não se apressavam para atravessar a rua, nenhuma criança corria perigo de vida e tudo se afastava vagarosamente do desastre. No quarto do hospital, caixa de cannoli ainda em mãos, me deparei com a Teri em prantos sobre a Isabel, que estava mortalmente pálida. O Dr. Tomita estava lá, as imagens da hemorragia da nossa filha já abertas na tela. Aparentemente, quando o fluido foi drenado, o tumor se expandiu para o espaço vago e suas veias sanguíneas começaram a estourar. Remoção imediata do tumor era a única esperança, mas havia um risco distinto da Isabel sangrar até morrer. Uma criança da idade dela tem pouco mais de meio litro de sangue no corpo, Dr. Tomita nos contou, e talvez a transfusão contínua não bastasse. Antes que acompanhássemos a Isabel até o pré-operatório, coloquei o cannoli na geladeira que havia no quarto dela. A lucidez egoísta desse ato gerou uma sensação imediata de culpa. Só fui entender mais tarde que aquele ato absurdo estava relacionado a uma forma desesperada de esperança: o cannoli poderia ser necessário para nossa sobrevivência futura. A expectativa era de que a cirurgia durasse entre quatro e seis horas; o assistente do Dr. Tomita nos manteria informados. Beijamos a testa da Isabel, tão pálida quanto um pergaminho, e assistimos a uma gangue de estranhos mascarados conduzi-la ao desconhecido. Eu e a Teri retornamos ao quarto da Isabel para aguardar. Nós nos alternamos entre choro e silêncio. Dividimos um pouco do cannoli para nos mantermos firmes — por dias, mal comemos ou dormimos. As luzes do quarto eram fracas; estávamos numa cama, atrás de uma cortina e, por algum motivo, ninguém nos incomodou. Estávamos longe do mundo de feiras e mirtilos, onde crianças nasciam e viviam e avós colocavam netas para dormir. Nunca me senti tão próximo de um ser humano como me senti da mi12


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nha esposa naquela noite. Um pouco depois da meia-noite, o assistente do Dr. Tomita nos chamou para dizer que a Isabel sobrevivera à cirurgia. O Dr. Tomita acreditava ter removido a maior parte do tumor. A Isabel estava passando bem e logo seria transferida para a Unidade de Tratamento Intensivo, disse ele, onde nós poderíamos vê-la. Lembro daquele momento ser relativamente feliz: a Isabel estava viva. Apenas o resultado imediato era relevante; tudo que poderíamos querer era alcançar o próximo passo; seja qual fosse. Na UTI, encontramos ela enroscada numa rede de agulhas intravenosas, tubos e cabos, paralisada pelo rocurônio (chamado de “a pedra” por todos ali), que havia sido administrado para prevenir que ela se livrasse dos tubos respiratórios. Passamos a noite observando a Isabel, beijando os dedos da sua mão abatida, lendo ou cantando para ela. No dia seguinte, liguei o iPod em caixas de som, não só na crença delirante e bem-intencionada de que ouvir música seria bom para um cérebro doloroso, em recuperação, mas também para anular o barulho desumano do hospital: os bipes dos monitores, os respiradores ofegantes, a conversa indiferente de enfermeiros no corredor, o alarme que apitava sempre que a condição de um paciente piorava de repente. Na companhia das suítes de violoncelo de Bach ou peças de piano de Charles Mingus, registrei cada oscilação das batidas cardíacas da Isabel, cada mudança em sua pressão arterial. Eu não conseguia tirar os olhos dos cruéis números flutuantes dos monitores, como se o mero ato de encará-los pudesse influenciar o resultado. Existe um mecanismo psicológico, concluí, que previne que a maioria de nós imagine a própria morte. Pois se fosse possível imaginar por completo aquele instante de passagem da consciência para a não-existência, com todo o medo concomitante e a humilhação do desamparo absoluto, seria muito difícil viver. Seria insuportavelmente óbvio que a morte está inscrita em tudo que constitui a vida, que qualquer momento da sua existência pode estar a apenas um respiro de ser o último. Seríamos continuamente devastados pela magnitude desse fato inevitável. Ainda assim, à medida que nos aproximamos da mor13


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talidade, começamos a molhar os dedos do pé no vazio, tremendo de horror, esperando que nossa mente se acalme, de alguma forma, rumo à morte, que Deus ou algum outro ópio tranquilizador permaneçam disponíveis enquanto nos encaminhamos para a escuridão do não-ser. Mas como se acalmar frente à morte de um filho? Em primeiro lugar, a morte de um filho deve acontecer bem depois da sua própria dissolução no vazio. Os filhos devem seguir o percurso por mais décadas e décadas, durante as quais vivem felizes sem o fardo da sua presença, e enfim completar a mesma trajetória mortal que os pais: esquecimento, negação, medo, o fim. Devem lidar com a própria mortalidade, e nenhuma ajuda sua há de ser providenciada nesse contexto (exceto forçá-los a confrontar a morte enquanto morrem) — a morte não é um trabalho da escola. E mesmo se você puder imaginar a morte dos seus filhos, por que o faria? Mas fui amaldiçoado com uma imaginação compulsiva e catastrófica, e muitas vezes imaginei o pior. Eu costumava me visualizar atropelado por um carro sempre que atravessava a rua; eu podia ver, de fato, as camadas de sujeira no eixo do carro enquanto a roda esmagava meu crânio. Quando ficava preso num metrô sem luz, enxergava um dilúvio de fogo avançando pelo túnel, em direção ao trem. Só depois de conhecer a Teri consegui deixar o tormento da minha imaginação sob controle. E, depois que nossas filhas nasceram, aprendi a deletar rápido qualquer visão de algo terrível acontecendo a elas. Algumas semanas antes do câncer da Isabel ser diagnosticado, notei que a cabeça dela parecia grande e ligeiramente assimétrica, e uma pergunta invadiu a minha mente: e se ela tiver um tumor no cérebro? Mas bani o pensamento quase que imediatamente. Mesmo se você puder imaginar seu filho com uma doença grave, por que o faria? Dois dias após o Dr. Tomita operar e remover o tumor, uma ressonância mostrou que ainda havia um pedaço restante no cérebro da Isabel. Quanto mais câncer fosse removido, melhor seria o prognóstico, então a Isabel teve que passar por outra cirurgia e, em seguida, voltar para a UTI. Logo, depois que ela foi 14


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transferida da UTI para a neurocirurgia, descobriram que seu líquido cefalorraquidiano ainda não estava sendo drenado: um dreno ventricular externo foi colocado e uma passagem para drenagem foi aberta em seu cérebro. Ela nunca mais teve febre. O DVE foi removido; seus ventrículos estavam dilatados e cheios de fluido, a ponto de ameaçar sua vida, e a pressão arterial estava caindo. Submetida a ainda mais um exame de emergência, com o rosto virado para cima no túnel da ressonância magnética, ela quase sufocou, o vômito borbulhando em sua boca. Por fim, um shunt foi implantado, permitindo com que o fluido fosse diretamente drenado rumo a seu estômago. Em menos de três semanas, a Isabel havia sido submetida a duas ressecções cerebrais — em que os hemisférios de seu cérebro foram separados para permitir com que o Dr. Tomita tivesse acesso à região entre o tronco, a glândula pineal e cerebelo e tirasse o tumor com uma colher — e seis cirurgias adicionais, para tratar da falha de drenagem do fluido. Um tubo foi inserido em seu peito para que os remédios da quimioterapia pudessem ser administrados diretamente em sua corrente sanguínea. Como se não bastasse, um tumor inoperável, do tamanho de um amendoim, foi então detectado no lóbulo frontal, e o relatório patológico confirmou que o câncer era mesmo ATRT. A quimioterapia estava marcada para começar dia 17 de agosto, um mês após o diagnóstico, e os oncologistas da Isabel, Dr. Jason Fangusaro e Dr. Rishi Lulla, não queriam discutir o prognóstico. Nós não ousamos pressionar. Eu e a Teri passamos a maior parte das primeiras semanas após o diagnóstico no hospital. Tentamos passar um tempo com a Ella, cuja entrada não era permitida na UTI, embora ela pudesse visitar a Isabel na ala da neurocirurgia e sempre a fizesse sorrir. A Ella parecia estar lidando muito bem com a situação. Familiares e amigos vieram à nossa casa para dar apoio, nos ajudando a distraí-la da nossa ausência contínua. Quando conversávamos com a Ella sobre a doença da Isabel, ela escutava de olhos bem abertos, preocupada e perplexa. Foi em algum momento das primeiras semanas da odisseia que Ella começou a falar do seu irmão imaginário. De repente, em meio a turbilhões de pala15


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vras, identificávamos histórias sobre um irmão, que às vezes era um ano mais velho, às vezes estava no colegial, e viajava ocasionalmente, por algum motivo obscuro, para Seattle ou Califórna, retornando a Chicago apenas para protagonizar mais um monólogo aventureiro da Ella. Não é incomum, claro, que crianças da idade da Ella tenham amigos ou irmãos imaginários. A criação de personagens está relacionada, acredito, à explosão de habilidades linguísticas que ocorre entre dois e quatro anos de idade, quando a criança produz um excesso de linguagem e não tem experiência o bastante para corresponder. Ela tem que construir narrativas imaginárias para experimentar as palavras que de repente possui. A Ella agora conhecia a palavra “Califórnia”, por exemplo, mas não tinha experiência alguma relacionada a ela; nem conseguia conceitualizá-la quanto a seu aspecto abstrato — sua californiedade. Portanto, seu irmão imaginário teve que ser posicionado no Estado Ensolarado, o que permitia com que a Ella falasse à vontade como se conhecesse a Califórnia. As palavras exigiam a história. Ao mesmo tempo, a detonação de linguagem nessa idade cria uma distinção entre exterioridade e interioridade: a interioridade da criança agora pode ser expressa e, portanto, externalizada; a palavra dobra. A Ella agora podia falar sobre o que era aqui e o que era outro lugar; a linguagem permitiu com que aqui e outro lugar fossem contínuos e simultâneos. Uma vez, durante o jantar, perguntei à Ella o que o irmão dela estava fazendo naquele exato momento. Ele estava no quarto dela, ela respondeu assertiva, fazendo birra. No começo, o irmão não tinha nome. Quando perguntavam o nome dele, Ella respondia “Gugu Gagá”, que era o som sem sentido que o Malcolm, seu primo favorito, de cinco anos, fazia quando não sabia a palavra para algo. Já que Charles Mingus é praticamente uma divindidade na nossa casa, sugerimos à Ella o nome Mingus, e Mingus seu irmão se tornou. Pouco tempo depois, o Malcolm deu à Ella um boneco inflável de um alien espacial, que ela logo elegeu para incorporar o Mingus, um personagem existencialmente escorregadio. Embora a Ella brincasse com frequência com o irmão inflado, a presença física 16


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do alien não era sempre necessária para que ela emitisse ordens pseudopaternais a Mingus ou contasse uma história sobre as fugas dele. Enquanto nosso mundo estava se reduzindo ao tamanho claustrofóbico de um terror incessante, o de Ella se expandia. Um tumor rabdoide teratoide típico é tão raro, que há poucos protocolos de quimioterapia criados especificamente para ele. Muitos dos protocolos disponíveis vêm de tratamentos para meduloblastomas e outros tumores cerebrais, modificados, com maior toxicidade para combater a malignidade perversa do ATRT. Alguns desses protocolos envolvem um tratamento focado em radiação, mas isso seria prejudicial ao desenvolvimento de uma criança da idade da Isabel. O protocolo que os oncologistas da Isabel decidiram usar consistia em seis ciclos de quimioterapia de toxicidade extremamente alta, sendo o último o mais intenso. Tão intenso, de fato, que as células sanguíneas imaturas da Isabel, extraídas antes, teriam de ser reinjetadas após esse ciclo, num processo chamado recuperação de células-tronco, para ajudar sua medula óssea danificada a se recuperar. Ao longo da quimioterapia, ela também deveria receber transfusões de plaquetas e glóbulos vermelhos, ao passo que, toda vez, seus glóbulos brancos teriam de alcançar sozinhos os níveis normais. Seu sistema imunológico seria temporariamente aniquilado e, assim que se recuperasse, outro ciclo de quimoterapia começaria. Por conta das suas extensas cirurgias cerebrais, a Isabel não conseguiria mais sentar ou ficar de pé e teria de ser submetida a terapia física e terapia ocupacional entre as fases da quimio. Em algum momento do futuro incerto, deram a entender, ela talvez pudesse retornar ao estágio de crescimento esperado, de acordo com as crianças da sua idade. Quando o primeiro ciclo de quimioterapia começou, a Isabel tinha dez meses de idade e pesava apenas sete quilos. Nos seus dias bons, ela sorria como uma heroína, mais do que qualquer outra criança que conheci. Ainda que fossem poucos, aqueles dias nos permitiam projetar algum tipo de futuro para a Isabel e nossa família: agendamos as terapias; comunicamos nossos amigos e 17


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familiares quais dias eram bons para nos visitar; marcamos no calendário os eventos das próximas semanas. Mas o futuro era tão precário quanto à saúde da Isabel, estendendo-se apenas até o próximo passo razoavelmente alcançável: o fim do ciclo da quimio, a recuperação da contagem dos glóbulos brancos. Eu me impedi de imaginar qualquer coisa além disso. Se eu me imaginava segurando a mãozinha dela enquanto ela morria, eu apagava a visão, muitas vezes assustando a Teri ao falar alto comigo mesmo, “Não! Não! Não! Não!”. Eu bloqueava pensamentos sobre o outro resultado também — o sucesso da sobrevivência dela — porque um tempo atrás passei a acreditar que o que eu queria que acontecesse não aconteceria, precisamente porque eu queria que acontecesse. Desenvolvi, portanto, uma estratégia mental que consistia em eliminar qualquer anseio por bons resultados, como se o ato de desejar me expusesse às forças impiedosas que movimentam o universo e causasse o exato oposto do que eu esperava. Eu não ousava pensar em nada a não ser a vida presente da Isabel, tortuosa, mas linda. Um amigo meu, bem-intencionado, telefonou logo após o início do primeiro ciclo de quimio da Isabel e a primeira coisa que ele perguntou foi “Então as coisas se ajeitaram numa espécie de rotina?” A quimioterapia da Isabel, de fato, oferecia um padrão aparentemente previsível. Os ciclos de quimio continham uma estrutura repetitiva inerente. Os remédios eram administrados na mesma ordem e eram seguidos pelas mesmas reações — vômito, perda de apetite, colapso do sistema imunológico — seguidas de NP intravenosa (nutrição parenteral, dada a pacientes que não são capazes de comer), remédios anti-náusea, antifúngicos e antibióticos, administrados em intervalos regulares. Depois, havia as transfusões, as visitas ao pronto-socorro por conta da febre, a recuperação gradual medida por contagens crescentes de células no sangue e alguns dias tranquilos em casa, antes de começar o próximo ciclo. Se a Isabel e a Teri, que raramente saía de perto dela, estavam no hospital para a quimio, eu passava a noite em casa com a Ella, deixava ela na escola no dia seguinte, depois levava um café-da-manhã para a Teri e, enquanto ela toma18


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va banho, cantava ou brincava com a Isabel. Eu limpava seu vômito e trocava as fraldas, guardando-as para as enfermeiras, para que pudessem ser pesadas. Numa linguagem pseudo-especialista, eu e a Teri discutíamos a noite anterior e o que se esperava daquele dia. Esperávamos os médicos terminarem seus turnos, para então fazer nossas perguntas difíceis. O senso humano de conforto depende de ações familiares e repetitivas — nossos corpos e mentes se esforçam para se acostumar a circunstâncias previsíveis. Mas não havia rotina duradoura que pudesse ser estabelecida para a Isabel. Uma doença como o ATRT causa um colapso de todas as ordens biológicas, emocionais e familiares: nada acontece como esperado, muito menos como desejado. Além dos desastres repentinos e das visitas aos pronto-socorros, havia o inferno diário: a tosse de Isabel raramente passava e muitas vezes resultava em vômito; ela teve irritações na pele e constipação; ficou apática e fraca; nunca fomos capazes de dizer a ela que as coisas melhorariam. Não existe uma quantidade de repetições que possa deixar alguém acostumado a essas coisas. O conforto das rotinas pertencia ao mundo lá fora. Certa manhã, cedo, dirigindo para o hopital, avistei uma série de atletas saudáveis e energéticos correndo pela Avenida Fullerton, em direção ao lago ensolarado, e tive uma forte sensação física de estar dentro de um aquário: eu podia ver o lado de fora, as pessoas do lado de fora podiam me ver (se optassem por prestar atenção), mas estávamos vivendo e respirando em ambientes completamente diferentes. A doença da Isabel e nossa experiência com ela não tinham ligação com a vida deles, impacto nenhum. Eu e a Teri estávamos apreendendo um conhecimento penoso que não tinha aplicação nenhuma no mundo lá fora e não interessava a ninguém a não ser nós: os atletas corriam, monótonos, rumo a seu aprimoramento; as pessoas festejavam a banalidade do hábito; o cavalo do algoz continuou raspando seu traseiro inocente de encontro com uma árvore. O ATRT da Isabel deixou tudo em nossas vidas intensamente sobrecarregado e real. Tudo do lado de fora era tão irreal quanto desprovido de substân19


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cias compreensíveis. Quando as pessoas que não sabiam sobre a doença da Isabel me perguntavam quais eram as novidades e eu contava para elas, eu testemunhava como rapidamente se retiravam para o horizonte distante de suas vidas, onde coisas completamente diferentes importavam. Depois que contei a meu contador que a Isabel estava doente, em estado grave, ele disse, “Mas você está bem e isso é o mais importante!” Para seguir navegando calmamente, o mundo dependia de lugares-comuns e clichês que não tinham conexão lógica nem conceitual com a nossa experiência. Era difícil conversar com os partidários do “vai ficar tudo bem” e ainda mais difícil escutá-los. Eram gentis e ofereciam apoio, e eu e a Teri suportamos suas expressões de solidariedade sem ressentimentos, pois eles simplesmente não sabiam o que mais dizer. Protegiam-se do que nós estávamos enfrentando ao se limitar a um domínio gerenciável de linguagem batida e vazia. Mas nós nos sentíamos bem mais confortáveis com pessoas que eram sábias o suficiente para não esboçar apoio verbal, e nossos amigos mais próximos sabiam disso. Preferíamos falar com o Dr. Lulla ou o Dr. Fangusaro, que podiam nos ajudar a entender coisas que importavam, a ouvir um “aguenta firme.” (Que eu respondia com “Não há onde segurar firme.”) E nos mantínhamos longe de qualquer um que imaginávamos que pudesse nos oferecer o consolo daquele lugar comum supremo: Deus. O capelão do hospital estava proibido de se aproximar de nós. Um dos clichês mais comuns que escutávamos era que “palavras falham.” Mas palavras não estavam falhando comigo e com a Teri, nem um pouco. Não era verdade que não havia como descrever nossa experiência. Eu e a Teri usufruíamos de bastante linguagem para conversar sobre o horror do que estava acontecendo, e nós conversávamos. As palavras do Dr. Fangusaro e do Dr. Lulla, sempre dolorosamente pertinentes, tampouco falhavam. Se havia um problema de comunicação, era que havia palavras demais e eram pesadas demais e específicas demais para ser inflingidas aos outros. (Os remédios da Isabel, por exemplo: vincristina, metotrexato, etopósido, ciclofosfamida e cisplatina — criaturas 20


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de uma demonologia particularmente maligna.) Por instinto, protegíamos nossos amigos do conhecimento que possuíamos; deixávamos eles pensarem que palavras falhavam, porque sabíamos que não queriam aprender o vocabulário que usávamos diariamente. Tínhamos certeza de que eles não queriam saber o que sabíamos; nós também não queríamos saber. Não havia mais ninguém dentro com a gente (e nós certamente não desejávamos que os filhos dos nossos amigos sofressem de ATRT para que pudéssemos conversar com eles sobre isso). No guia para pais de crianças com tumores cerebrais ou medulares, que nos deram no hospital, o ATRT não era “discutido em detalhes” porque era muito raro; na verdade, fora completamente suprimido. Sequer podíamos nos comunicar com o pequeno grupo de famílias com crianças que foram assoladas pelo câncer. As paredes do aquário em que estávamos eram feitas das palavras de outras pessoas. Enquanto isso, Mingus permitia que Ella praticasse e expandisse sua linguagem. Ele também deu a ela a companhia e o conforto que eu e a Teri mal conseguimos prover. Nas manhãs que eu a levava para a escola, a Ella oferecia contos de perder o fôlego sobre Mingus, tramas recônditas que se perdiam em meio a uma enxurrada de palavras. De vez em quando, flagrávamos-na brincando com o Mingus — versão alien ou imaginária — administrando medicamentos fictícios ou medindo sua temperatura, usando o vocabulário que ela havia coletado em suas visitas ao hospital ou em nossas discussões sobre a doença de Isabel. Ela nos contava que Mingus tinha um tumor e estava passando por testes, mas que melhoraria em duas semanas. Uma vez, o Mingus teve até uma irmãzinha chamada Isabel — completamente diferente da irmãzinha da Ella — que também tinha um tumor e que também melhoraria em duas semanas. (Duas semanas, percebi, era justamente a extensão de futuro que eu e a Teri conseguíamos conceber naquela época.) Qualquer que fosse o conhecimento acidental sobre a doença da Isabel que Ella estava acumulando, qualquer que fossem as palavras que ela estava colhendo da nossa experiência, ela estava processando através do seu irmão imaginário. E ela claramente sentia saudade da 21


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irmã, então Mingus trazia algum conforto nesse sentido também. Ela ansiava por uma família unida novamente, a razão talvez por Mingus, um dia, adquirir seus próprios pais e se mudar com eles para a rua ao lado, para então voltar no dia seguinte. Para externalizar seus sentimentos complicados, Ella os atribuía a Mingus, que então atuava de acordo. Um dia, no café-da-manhã, enquanto Ella comia seu mingau de aveia e divagava sobre seu irmão, reconheci, num instante de humildade, que ela estava fazendo exatamente o que eu vinha fazendo como escritor ao longo dos anos: os personagens ficcionais dos meus livros me permitiam entender o que parecia difícil de entender (o que, até agora, tem sido praticamente tudo). Tal como a Ella, eu me via cercado por um excesso de palavras, cuja riqueza excedia os limites patéticos da minha própria biografia. Eu precisava de um espaço narrativo onde pudesse me estender; precisava de mais vidas. Também precisei de outros pais e de alguém que não eu mesmo para quem transferir meus chiliques metafísicos. Cozinhei aqueles avatares na sopa do meu eu mutável, mas eles não eram eu — eles faziam o que eu não era capaz de fazer. Ao ouvir o desenrolar furioso e sem-fim dos contos da Ella, entendi que a necessidade de contar histórias estava profundamente enraizada nas nossas mentes, emaranhada nos mecanismos que geram e absorvem linguagem, indissociável. A imaginação narrativa — portanto, a ficção — é uma ferramenta evolutiva básica de sobrevivência. Processamos o mundo ao contar histórias e produzimos conhecimento humano por meio do nosso comprometimento com eus imaginários. Qualquer que tenha sido o conhecimento que adquiri na minha carreira como escritor de ficção, não tinha valor nenhum dentro do nosso aquário de ATRT, no entanto. Diferente da Ella, não fui capaz de construir uma história que me ajudasse a compreender o que estava acontecendo. A doença da Isabel ultrapassou qualquer forma de envolvimento imaginativo, da minha parte. Eu só me importava com a firme realidade da respiração dela contra o meu peito, a concretude dela caindo no sono enquanto eu cantava minhas três canções de ninar. Não queria me estender para direção alguma a não ser a dela. 22


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A Isabel recebeu o último medicamento do seu terceiro ciclo de quimioterapia numa tarde de domingo, em outubro. Esperávamos que ela pudesse voltar para casa na manhã daquela segunda-feira, ao menos por uns dias. A Ella foi visitá-la naquela tarde e, como sempre, arrancou risadas dela, fingindo que tirava pedacinhos de suas bochechas para comer. Depois que a Ella foi embora, a Isabel ficou agitada no meu colo. Identifiquei um padrão na inquietação: acompanhando o ponteiro maior do grande relógio do quarto, percebi que ela se contraía e gemia a cada trinta segundos, mais ou menos. A Teri chamou a enfermeira, que conversou com o oncologista de plantão, que conversou com o neurologista, que conversou com mais alguém. Achavam que ela estava tendo microconvulsões, mas não sabiam ao certo por que isso estava acontecendo. Então, ela entrou em convulsão completa: ficou dura, seus olhos se viraram, sua boca espumava enquanto ela se contorcia. Eu e a Teri seguramos suas mãos e falamos com ela, mas ela não estava consciente da nossa presença. Ela foi transferida para a UTI, com urgência. O nome de todos os remédios que deram a ela e os procedimentos por quais ela passou na UTI são obscuros para mim agora, assim como grande parte daquela noite — o que é difícil de imaginar é difícil de lembrar. Os níveis de sódio da Isabel haviam caído significativamente e isso provocou a convulsão; não sei o que os médicos fizeram com ela, mas a convulsão parou. Por fim, tubos de respiração foram inseridos e a pedra foi administrada novamente. Isabel tinha que ficar na UTI até os níveis de sódio se estabilizarem. Mas nunca se estabilizaram. Embora ela tenha parado de tomar a pedra e os tubos de respiração tenham sido removidos alguns dias depois, uma solução de sódio precisava ser constantemente administrada via NP, e mesmo assim, os níveis não voltaram ao normal. No Dia das Bruxas, enquanto Teri levava a Ella para pedir gostosuras ou travessuras, como havia prometido, a Isabel descansava nos meus braços de novo. Na noite anterior, que passei em casa com a Ella, sonhei que a Isabel se sacudia violentamente enquanto eu a segurava, como que sentindo uma dor repentina, e eu a derrubava. Acordei de súbito, aos berros, 23


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antes dela atingir o chão. Na UTI, desesperado, eu repetia minhas canções de ninar, tentando acalmá-la. Quando ela conseguiu dormir, enfim, dava para sentir sua respiração parar, para então voltar depois de um intervalo assustador. O enfermeiro de plantão me contou que a apneia do sono era comum entre bebês, mas essa baboseira óbvia mais me assustou do que incomodou. Ele informou o médico de plantão e o que precisava ser observado foi devidamente observado. Logo depois, eu e a Teri trocamos de lugar e fui para casa ficar com a Ella. O telefone tocou no meio da madrugada. Teri passou a ligação para o Dr. Fangusaro e ele me contou que a Isabel estava “com muita dificuldade” em manter sua pressão arterial. Eu precisava ir ao hospital o quanto antes. Depois de deixar a Ella com minha cunhada, corri até o hospital. Deparei-me com uma multidão de funcionários da UTI espiando o quarto da Isabel, onde ela estava cercada por uma série de médicos e enfermeiros. Ela estava muito inchada, especialmente seus olhos. Agulhas furavam suas mãozinhas à medida que um líquido era injetado para aumentar sua pressão arterial. O Dr. Fangusaro e o Dr. Lulla nos fizeram sentar para contar que o estado da Isabel era terrível. Eu e a Teri precisávamos decidir se queríamos que tentassem de tudo para salvá-la. Dissemos que sim. Deixaram claro que caberia a nós dizer quando era hora de parar. E agora minha memória entra em colapso. Teri está no canto, chorando quieta sem parar, o terror em seu rosto literalmente indescritível; o médico assistente de cabelo grisalho (cujo nome desapareceu da minha mente, embora seus olhos me fitem todos os dias) está dando ordens enquanto residentes se revezam para fazer massagem cardíaca na Isabel, porque seu coração parou de bater. Eles tentam ressucitá-la enquanto eu grito, “Meu bebê! Meu bebê! Meu bebê!” Então há mais uma decisão que eu e a Teri precisamos tomar: os rins da Isabel pararam de funcionar, ela precisa de diálise, e uma intervenção cirúrgica imediata é necessária para conectá-la à máquina de diálise — são altas as chances dela não sobreviver à cirurgia. Dizemos que sim. O coração dela para de bater novamente; os residentes estão massageando seu 24


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peito. No corredor lá fora, pessoas desconhecidas estão torcendo pela Isabel, algumas delas em lágrimas. “Meu bebê! Meu bebê! Meu bebê!”, sigo berrando. Abraço a Teri. O coração da Isabel volta a bater. O médico de cabelo grisalho se vira para mim e fala, “Doze minutos,” e não consigo entender o que ele está dizendo. Mas então me dou conta: ele está dizendo que a Isabel ficou doze minutos em estado de morte clínica. Então seu coração para de bater de novo, uma jovem residente faz uma massagem cardíaca, não muito entusiasmada, esperando nosso sinal para poder parar. Mandamos ela parar. Ela para. Nas minhas visões reprimidas às pressas, eu havia previsto o momento da morte da minha filha. Mas o que eu havia imaginado, apesar de todos os meus esforços, era um momento calmo, cinematográfico, em que eu e a Teri segurávamos as mãos da Isabel enquanto ela falecia em paz. Mal cheguei perto de imaginar a intensidade da dor que sentimos enquanto os enfermeiros removiam todos os tubos e cabos, a sala se esvaziava e eu e a Teri segurávamos nossa criança morta — nossa linda filha, sempre tão sorridente, seu corpo inchado de líquido e agredido pelas massagens — beijando suas bochechas e dedos do pé. Embora eu me lembre daquele momento com uma clareza absoluta, esmagadora, ele ainda é inimaginável para mim. E como sair de um momento como aquele? Como deixar a filha morta para trás e retornar à rotina vaga do que quer que você chame de sua vida? Por fim, colocamos a Isabel na cama, cobrimos com um lençol, assinamos todos os papéis que precisavam ser assinados, ajeitamos nossas coisas: os brinquedos dela, nossas roupas, as caixas de som do iPod, os potes de comida, os restos do antes. Fora da sala, alguém havia colocado um biombo para nos dar privacidade; todas as boas pessoas que torceram pela Isabel haviam ido embora. Carregando, como refugiados, nossas grandes sacolas de plástico, cheias de coisas, caminhamos até o estacionamento do outro lado da rua, entramos no carro e dirigimos pelas ruas insignificantes rumo ao apartamento da minha cunhada. Não sei que capacidade mental é necessária para entender a morte, mas a Ella parecia tê-la. Quando contamos que sua irmãzinha havia morrido, houve 25


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um momento de clara compreensão no rosto dela. Ela começou a chorar de uma forma que só poderia ser descrita como não-infantil e disse, “Quero outra irmãzinha chamada Isabel.” Ainda estamos computando essa declaração. Eu, Teri e Ella — uma família com uma lacuna — fomos para casa. Era primeiro de novembro, Dia de Finados. Cento e oito dias haviam se passado desde o diagnóstico. No dia seguinte, levamos a Ella à escola. Na hora de ir buscá-la, sua melhor amiga correu até a mãe e disse, “Mamãe, mamãe! A irmãzinha da Ella morreu!” Uma das falácias religiosas mais desprezíveis é de que o sofrimento enobrece — que é um passo no caminho para a iluminação ou salvação. O sofrimento e a morte da Isabel não ofereceram nada a ela, nem a nós, nem ao mundo. Não aprendemos nenhuma lição que tenha valido a pena; não adquirimos nenhuma experiência que possa ser benéfica a alguém. E a Isabel certamente não foi premiada com uma ascensão a um lugar melhor, visto que não havia lugar melhor para ela do que em casa com a família. Sem a Isabel, eu e a Teri fomos deixados com oceanos de amor que não podíamos mais conceder; nós nos deparamos com um excesso de tempo que costumávamos dedicar a ela; tivemos que viver num vazio que só poderia ser preenchido pela Isabel. Sua ausência indelével agora é um órgão nos nossos corpos, cuja única função é uma secreção contínua de tristeza. A Ella fala da Isabel com frequência. Quando ela fala sobre a morte da irmã, é muito convincente, suas palavras enternecedoras; ela é confrontada pelas mesmas questões e ânsias que nos confrontam. Uma vez, antes de cair no sono, ela me perguntou, “Por que a Isabel morreu?” Outra vez, me contou, “Eu não quero morrer.” Não muito tempo atrás, ela começou a conversar com a Teri, de repente, sobre querer segurar a mão da Isabel de novo, sobre o quanto ela sentia falta da risada da irmã. Algumas vezes, quando perguntamos se sentia falta da Isabel, ela se recusou a responder, exibindo uma impaciência que era completamente reconhecível para nós — sobre o que poderíamos falar, quando tudo falava por si? 26


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Mingus segue sério quanto à sua existência alternativa. Ele mora na rua ao lado de novo, com seus pais e um número variável de irmãos, mas passa bastante tempo com a gente. Tem seus próprios filhos agora — três meninos, dos quais um, em dado momento, se chamava Andy. Quando esquiamos, o Mingus prefere snowboard. Quando passamos o Natal em Londres, o Mingus passa em Nebraska. Ele joga damas (“lamas”, no dialeto da Ella) muito bem, parece. Também é um bom mágico. Com sua varinha mágica, a Ella conta, ele consegue fazer a Isabel reaparecer.

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ANANDA KENTISH COOMARASWAMY *

PARA QUE SERVE A ARTE, AFINAL? título original: WHAT USE IS ART ANYWAY? tradução: PEDRO SETTE-CÂMARA

Ananda Kentish Coomaraswamy veio de uma importante família do Sri Lanka. Seu pai, Mutu Coomaraswamy Mudaliar, foi o primeiro asiático sagrado cavaleiro pela monarquia britânica e o primeiro hindu a advogar na Inglaterra. Em 1876, Sir Mutu casou-se com Elizabeth Clay Beeby, uma inglesa. Seu único filho foi Ananda, nascido no Sri Lanka em 22 de agosto de 1877. Ananda Coomaraswamy frequentou a Universidade de Londres, onde recebeu o diploma de Bacharel de Ciências com Honras de Primeira Classe em Geologia e Botânica. Entre 1903 a 1906, esteve no Sri Lanka dirigindo o primeiro mapeamento mineralógico do país. Durante a pesquisa, Coomaraswamy descobriu um mineral de alta gravidade específica, que nomeou torianito. Nessa época surgiu seu interesse pelas artes da Índia e do Sri Lanka e a preocupação com os problemas do nacionalismo indiano. Em 1906, recebeu seu doutorado em geologia da Universidade de Londres. Os dez anos seguintes foram passados na Inglaterra e na Índia, onde ainda é lembrado por suas contribuições para a causa nacionalista. Em 1917 Coomaraswamy foi para os EUA a fim de tornar-se curador de arte indiana do


Museu de Belas Artes de Boston, cargo que manteve até morrer. Ali reuniu uma das maiores coleções de arte indiana fora da Índia. Seus últimos anos foram extremamente produtivos. Entre 1917 e 1943, publicou 341 livros e artigos e 40 resenhas de livros. Também deu muitas conferências e manteve ampla correspondência. Coomaraswamy planejava aposentar-se em 1948 e ir para os Himalaias viver como eremita. Porém, em 9 de setembro de 1947, faleceu em sua casa em Needham, no estado de Massachussets, deixando manuscritos completos de muitas obras. Pedro Sette-Câmara é tradutor. Nasceu no Rio de Janeiro em 1 de junho de 1977. Mantém o blog www.pedrosette.com. E-mail: ps@pedrosette.com


Para que serve a arte, afinal? Ananda Kentish Coomaraswamy

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ão bem conhecidas as duas escolas contemporâneas de pensamento a respeito da arte. De um lado, uma pequenina “elite” distingue as “belas” artes da arte como produto de mãos habilidosas, valorizando-as muito como autorrevelação ou auto-expressão do artista; essa elite, de modo coerente, fundamenta seus ensinamentos de estética no estilo, e faz da chamada “apreciação artística” uma questão de maneirismos e não de investigação do conteúdo ou da verdadeira intenção da obra. Assim são nossos professores de Estética e de História da Arte, que se regozijam com a ininteligibilidade da arte ao mesmo tempo em que a explicam psicologicamente, substituindo o estudo do homem pelo estudo da arte do homem; são nossos líderes de cegos, alegremente seguidos pela maioria dos artistas modernos, que naturalmente ficam lisonjeados com a importância atribuída ao gênio pessoal. De outro lado, temos a vasta multidão de homens comuns que não estão realmente interessados em personalidades artísticas, e para os quais a arte como acima definida é antes uma peculiaridade da vida do que uma sua necessidade. De fato, eles não têm o que fazer com a arte. Acima dessas duas, temos uma visão normal mas esquecida da arte, que afirma que arte é fazer bem o que quer que precise ser feito ou produzido, seja uma estátua, um automóvel, ou um jardim. No mundo ocidental, essa é especificamente a doutrina católica da arte; dessa doutrina se segue uma conclusão natural, nas palavras de São Tomás de Aquino: “Não pode haver bom uso sem arte.” É bastante óbvio que, se as coisas de que precisamos fazer uso – seja esse uso intelectual ou físico; ou, em condições normais, ambos simultaneamente – 30


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não forem produzidas da maneira devida, elas não podem ser apreciadas, querendo dizer com “apreciadas” algo mais do que simplesmente “gostadas”. A comida malfeita, por exemplo, não nos apetecerá; do mesmo modo, exposições sentimentais ou autobiográficas enfraquecem o espírito daqueles que as frequentam. O patrono saudável está tão interessado na personalidade do artista quanto na vida privada de seu alfaiate: tudo que ele requer de ambos é que dominem suas artes. Esta sequência de conferências sobre arte é dirigida ao segundo tipo de homem definido acima, isto é, ao homem simples e prático que não tem utilidade para a arte tal como explicada pelos psicólogos e praticada pela maior parte dos artistas contemporâneos, especialmente pintores. O homem comum não tem o que fazer com a arte, a menos que ele saiba de que ela trata, ou para que serve. E até aí ele está inteiramente certo; se a obra não é sobre nada, nem serve para nada, ela não tem nenhuma utilidade. Além disso, a menos que a obra trate de algo que valha a pena – que valha mais a pena, por exemplo, do que a preciosa personalidade do artista –, algo importante para o patrono e consumidor e também para o artista e produtor, ela não tem utilidade real, não passando de um artigo de luxo ou de mero ornamento. Nessas condições, a arte pode ser considerada por um homem religioso uma reles vaidade; por um homem prático, um supérfluo caro; e, pelo ideólogo de classe, parte da grande fantasia burguesa. Existem portanto dois pontos de vista opostos, um deles dizendo que não pode haver bom uso sem arte, e, o outro, que a arte é um supérfluo. Observemos, porém, que essas afirmações contrárias se referem a coisas bem diferentes, que não são as mesmas só por terem sido chamadas de “arte”. Adotemos agora a visão historicamente normal e ortodoxamente religiosa de que, assim como a ética é “a maneira correta de agir”, a arte é “fazer bem o que quer que precise ser feito”, ou simplesmente “o modo correto de fazer as coisas”; e referindo-nos ainda àqueles para quem as artes da personalidade são supérfluas, perguntemo-nos se a arte é ou não uma necessidade. Uma necessidade é algo de que não podemos prescindir, qualquer que seja 31


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o preço. Não podemos entrar em questões de preço aqui, exceto para dizer que a arte não precisa, ou não deveria precisar ser cara, exceto na medida em que materiais custosos sejam empregados. É neste momento que surge a questão crucial da produção voltada para o uso versus a produção voltada para o lucro. É porque a ideia de produção voltada para o lucro está ligada à sociologia industrial correntemente aceita que as coisas em geral não são bem-feitas e portanto também não são belas. É do interesse do produtor produzir coisas de que gostemos, ou que possamos ser induzidos a gostar, independentemente de elas nos servirem ou não; como os artistas modernos, o produtor está expressando a si mesmo, e servindo às nossas necessidades somente na medida em que isso é necessário para que ele consiga vender alguma coisa. Os fabricantes e demais artistas recorrem à propaganda; a arte é bastante propagandeada pelos “museus de arte moderna” e pelos marchands; e artista e produtor determinam o preço de suas peças de acordo com o interesse do público. Nestas condições, como disse tão bem Mr. Carey nesta mesma série de conferências, o produtor trabalha para poder continuar ganhando dinheiro; ele não ganha dinheiro para poder continuar produzindo, o que seria o certo. É somente quando o artesão faz as coisas por vocação, e não simplesmente porque faz parte do seu emprego, que o preço das coisas se aproxima do seu valor real; e, nessas circunstâncias, quando pagamos por uma obra de arte projetada para servir a uma necessidade real, o dinheiro que gastamos vale a pena; e, sendo o propósito necessário, temos de ser capazes de pagar pela arte, sob o risco de vivermos abaixo do nível humano normal; é assim que vive hoje a maior parte dos homens, mesmo os ricos, se considerarmos a qualidade e não a quantidade. Não é preciso dizer que o trabalhador também é vítima da produção voltada para o lucro; tanto é assim que seria uma piada dizer que as horas de trabalho deveriam ser, em princípio, mais agradáveis do que as horas de lazer; que no trabalho ele deve fazer aquilo de que gosta, e nas horas livres aquilo que é apropriado – sendo o trabalho condicionado pela arte, e a conduta pela ética. A indústria sem arte é brutalidade. A arte é especificamente humana. Ne32


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nhum dos povos primitivos, do passado ou do presente, cuja cultura afetamos desprezar e nos propomos a corrigir, dispensou a arte; da idade da pedra em diante, tudo o que foi feito pelo homem, não interessando em que condições de dificuldade ou pobreza, foi feito artisticamente para servir a um propósito simultaneamente utilitário e ideológico. Fomos nós, ao menos coletivamente falando, que dominamos recursos amplamente suficientes, os quais não deixamos de desperdiçar, que propusemos uma divisão da arte em um tipo não mais que utilitário, e outro supérfluo, omitindo completamente aquilo que um dia se considerou a mais elevada função da arte, a expressão e comunicação de ideias. Antigamente a escultura era considerada “o livro do pobre”. A palavra “estética”, de “aisthesis”, “sensação”, proclama nossa recusa dos valores intelectuais da arte. É preciso falar de dois outros assuntos no tempo disponível. Em primeiro lugar, se dissemos que o homem comum está certo ao querer saber de que trata uma obra, e em exigir inteligibilidade das obras de arte, por outro lado ele está errado ao cobrar-lhes “realismo” e completamente errado ao julgar obras de arte antiga a partir do ponto de vista pressuposto em expressões comuns como “isso foi antes de conhecerem anatomia” ou “isso foi antes de descobrirem a perspectiva”. A arte está interessada na natureza das coisas, e só incidentalmente, se é que chega a tanto, na sua aparência, pela qual a natureza é mais obscurecida do que revelada. O artista não pode se afeiçoar à natureza enquanto efeito, devendo antes dar conta da natureza enquanto causa de efeitos. A arte, em outras palavras, está muito mais relacionada à álgebra do que à aritmética, e da mesma maneira que certas qualificações são necessárias para a apreciação de uma fórmula matemática, também o espectador precisa ser educado para entender e apreciar as formas de arte comunicativa. É esse sobretudo o caso do espectador dedicado a compreender e a apreciar obras de arte que estão escritas, por assim dizer, em uma língua estrangeira ou esquecida, como é o caso da maioria dos objetos em exibição nos museus. Este problema surge porque o trabalho do museu não é exibir obras contemporâneas. A ambição do artista moderno de estar representado no museu é 33


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vaidade, e mostra uma total incompreensão da função da arte; afinal, se uma obra foi feita para dar conta de uma necessidade específica, ela só pode funcionar no ambiente para o qual foi projetada, isso é, em algum contexto vital, como a casa de alguém, ou uma rua, ou uma igreja, e não em um lugar cuja função primária é conter qualquer tipo de arte. A função de um museu de arte é preservar e dar acesso a obras antigas que sejam consideradas, por especialistas responsáveis por sua seleção, espécimes excelentes. Podem estas obras, que não foram feitas para atender suas necessidades particulares, ser de algum uso para o homem comum? Provavelmente não à primeira vista e sem instruções, não até que ele saiba de que tratavam e para que serviam. Poderíamos desejar, ainda que em vão, que o homem nas ruas tivesse acesso aos mercados em que os objetos no museu foram originalmente comprados e vendidos, no curso cotidiano da vida. Por outro lado, os objetos do museu foram feitos para atender a necessidades humanas específicas, ainda que não precisamente nossas necessidades atuais; e é maximamente desejável que se perceba que houve necessidades humanas diferentes, e talvez mais significativas, do que as nossas. Os objetos do museu não podem de fato ser concebidos como figuras a ser imitadas, só porque não foram feitas para adequar-se a nossas necessidades particulares; mas, na medida em que sejam bons espécimes – o que se pressupõe pela seleção dos especialistas –, deles se pode deduzir, pela comparação com seu uso original, os princípios gerais da arte, de acordo com os quais as coisas podem ser bem-feitas para atender qualquer finalidade. E esse é, de modo geral, o valor maior dos nossos museus. Alguns responderam à questão “para que serve a arte?” dizendo que a arte é um fim em si mesma; e é um tanto esquisito que aqueles que afirmam que a arte não tem utilidade humana ao mesmo tempo enfatizem tanto seu valor. Tentaremos analisar os erros aí contidos. Falamos acima do ideólogo de classe que não tem utilidade para a arte, e está disposto a dispensá-la, considerando-a parte da grande fantasia burguesa. Se pudéssemos encontrar um pensador desses, ficaríamos verdadeiramente fe34


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lizes por concordar que toda a doutrina da arte pela arte, e toda a preocupação de “colecionar”, bem como “o amor pela arte”, não passam de aberrações sentimentais e formas de escapar das preocupações sérias da vida. Concordaríamos prontamente que só cultivar as coisas mais elevadas da vida – a arte sendo uma delas – em horas de lazer a serem obtidas por uma substituição ainda maior de meios manuais de produção por meios mecânicos é tão vã quanto seria a prática da religião pela religião aos domingos; e que as pretensões do artista moderno são fundamentalmente imaginárias e egoístas. Infelizmente, quando vamos aos fatos, percebemos que o reformador social não é realmente superior à atual ilusão cultural, estando apenas revoltado com uma situação econômica que o priva das coisas elevadas da vida, as quais os ricos podem comprar com mais facilidade. O trabalhador inveja, muito mais do que compreende, o colecionador e “amante da arte”. A noção de arte do escravo assalariado não é mais realista ou prática do que a de um milionário, assim como sua noção de virtude não é mais prática ou realista do que a de um pregador da bondade como fim em si mesma. Ele não percebe que, se precisamos de arte somente porque gostamos de arte, precisamos ser bons somente se gostarmos de ser bons; a arte e a estética seriam meros problemas de gosto, e nada se poderia objetar à alegação de que não temos o que fazer com a arte porque não gostamos dela, ou que não temos nenhuma razão para sermos bons, caso prefiramos ser maus. A questão da arte pela arte foi levantada outro dia por um editor de The Nation, que citou com aprovação um pronunciamento de Paul Valéry a respeito de como a característica mais essencial da arte é sua inutilidade, e continuou dizendo que “Ninguém se choca ao ouvir que ‘a virtude é sua própria recompensa’… que é apenas outra maneira de dizer que a virtude, como a arte, é um fim em si mesma, um bem final”. O escritor ainda disse que “inutilidade e ausência de valor não são as mesmas coisas”; com o que, evidentemente, quis dizer “não são a mesma coisa”. Disse ainda que só há três motivações pelas quais um artista é impelido a trabalhar, isto é, “por dinheiro, fama, ou ‘arte’”. 35


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Não precisamos continuar a procurar por um exemplo perfeito de ideólogo de classe estupidificado por aquilo que denominamos grande fantasia burguesa. Para começar, está muito longe da verdade que ninguém se choque com a afirmação de que “a Virtude é sua própria recompensa”. Fosse isso verdade, então a virtude não seria mais do que a atitude do moralista que vive de observar as faltas alheias. Dizer que “a Virtude é sua própria recompensa” vai diretamente contra todo ensinamento ortodoxo, em que se afirma de maneira constante e explícita que a virtude é um meio para um fim, e não um fim em si mesma; um meio para o fim último de felicidade humana, e não uma parte daquele fim. E, exatamente do mesmo modo, em todas as civilizações normais e humanas a doutrina a respeito da arte sempre afirmou que a arte é igualmente um meio, e não um fim. Por exemplo, a doutrina aristotélica de que “o fim geral da arte é o bem do homem” foi firmemente aprovada pelos enciclopedistas cristãos medievais; e podemos dizer que todos os sistemas de pensamento filosóficos ou religiosos dos quais o ideólogo de classe gostaria de se emancipar concordam que tanto a ética quanto a arte são meios para a felicidade, e não fins. O ponto de vista burguês, que na verdade é o ponto de vista do reformador social, é sentimental e idealista, enquanto a doutrina religiosa que ele repudia é utilitarista e prática! De todo modo, o fato de que um homem sinta prazer, ou possa sentir prazer, em agir bem ou em produzir bem, não é suficiente para fazer desse prazer o propósito de seu trabalho, exceto no caso do moralista ou daquele que meramente expressa a si mesmo; igualmente, o prazer de comer não pode ser considerado a finalidade de comer, exceto no caso do glutão, que vive para comer. Se uso e valor de fato não são sinônimos, é só porque o uso supõe a eficácia, e o valor pode ser atribuído a algo ineficiente. Agostinho, por exemplo, demonstra que a beleza não é simplesmente aquilo de que gostamos, porque algumas pessoas gostam de deformidades; ou, em outras palavras, valorizam aquilo que na verdade não vale nada. Uso e valor não são idênticos na lógica, mas, no caso de uma pessoa perfeitamente saudável, coincidem na experiência; 36


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e isso é admiravelmente ilustrado pela equivalência etimológica do alemão “brauchen”, “usar”, e do latim “frui”, “fruir”. Tampouco o dinheiro, a fama ou a “arte” podem ser considerados explicações para a arte. O dinheiro não pode, pois, à exceção do caso da produção voltada para o lucro em vez do uso, o artista por natureza, que tem em vista o bem da obra a ser realizada, não está trabalhando para ganhar dinheiro, mas ganhando dinheiro para poder continuar sendo ele mesmo, isso é, para poder continuar trabalhando como aquilo que é por natureza; igualmente, ele come para continuar vivendo, em vez de viver para continuar comendo. Quanto à fama, basta lembrarmos que a maior parte da melhor arte do mundo foi produzida anonimamente, e que se algum trabalhador tem apenas a fama em vista, “todo homem decente deveria se envergonhar de as pessoas boas saberem isto dele”. E quanto à arte, dizer que o artista trabalha para a arte é um abuso de linguagem. A arte é como um homem trabalha, supondo que ele conheça sua arte e a tenha como hábito; do mesmo modo, a prudência ou a consciência é o que faz um homem agir bem. A arte é tanto a finalidade do trabalho quanto a prudência é a finalidade da conduta. É só porque, nas condições estabelecidas em um sistema de produção voltado para o lucro em vez do uso, esquecemos o sentido da palavra “vocação” e pensamos somente em termos de “empregos”, que confusões assim são possíveis. O homem que tem um “emprego” está trabalhando por motivos alheios a si, e pode muito bem ser indiferente à qualidade do produto, pelo qual não é o responsável; tudo o que ele quer, nesse caso, é garantir para si uma parcela adequada dos lucros esperados. Mas alguém cuja vocação seja específica, isso é, alguém constitucionalmente adaptado e treinado para um ou outro tipo de atividade, ainda que tire seu sustento dessa atividade, está na verdade fazendo aquilo de que mais gosta; e, se é levado pelas circunstâncias a fazer outro tipo de trabalho, ainda que melhor pago, torna-se na verdade infeliz. A vocação, seja a do fazendeiro ou do arquiteto, é uma função; o exercício dessa função, no que diz respeito ao próprio homem, é o meio mais indispensável de desenvolvimen37


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to espiritual, e, no que diz respeito à sua relação com a sociedade, a medida de seu valor. É precisamente nesse sentido que, como diz Platão, “mais será feito, e melhor, e com mais facilidade, quando cada um fizer apenas uma coisa, de acordo com seu gênio”; e isso é “a justiça para cada homem de acordo com sua própria natureza”. A tragédia de uma sociedade industrialmente organizada para o lucro é que essa justiça lhe seja negada; e qualquer sociedade que assim seja literal e inevitavelmente faz o papel de Diabo perante o resto do mundo. O erro básico do que chamamos a ilusão cultural é a presunção de que a arte é algo a ser realizado por um tipo especial de homem – particularmente, aquele tipo de homem a quem chamamos gênio. Em direta oposição a isso está a perspectiva normal e humana de que a arte é simplesmente a maneira correta de fazer as coisas, sejam sinfonias ou aviões. A perspectiva normal pressupõe, em outras palavras, não que o artista seja um tipo especial de homem, mas que todo homem que não é um mero ocioso e parasita é necessariamente um tipo especial de artista, hábil e contente em fazer alguma coisa de acordo com sua constituição e treinamento. Obras geniais são de pouco uso para a humanidade, que invariável e inevitavelmente não entende, distorce e caricatura seus maneirismos e ignora sua essência. Não é o gênio que interessa, mas o homem capaz de produzir uma obra-prima. E o que é uma obra-prima? Não, como se supõe habitualmente, um voo individual da imaginação, além do alcance comum do seu próprio tempo e mais voltado à posteridade do que a nós mesmos; mas, por definição, uma obra realizada por um aprendiz ao final de seu aprendizado e com a qual ele prova seu direito de ser admitido como membro de uma guilda, ou, como diríamos hoje, um sindicato, como trabalhador mestre. A obra-prima é simplesmente a prova de competência esperada e exigida de todo artista que se gradua, a quem não se permite que monte uma loja própria a menos que tenha apresentado essa prova. Do homem cuja obra-prima foi aceita por um corpo de praticantes especializados se espera que continue produzindo obras de qualidade similar pelo resto de sua vida; ele é um homem responsável por tudo o que faz. Tudo faz 38


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parte do curso normal dos acontecimentos, e, longe de pensar nas obras-primas como meras obras antigas preservadas nos museus, o trabalhador adulto deve ficar envergonhado se alguma coisa que ele fizer estiver abaixo do padrão da obra-prima ou não for bom o suficiente para ser exibido em um museu. O gênio vive num mundo que é só seu. O artesão-mestre vive num mundo habitado por outros homens; ele tem próximos. Uma nação não é “musical” por causa das grandes orquestras de suas capitais, sustentadas por um seleto círculo de “amantes da música”, ou porque essas orquestras tocam peças populares. A Inglaterra era “um ninho de pássaros cantores” quando Pepys podia insistir que uma jovem donzela assumisse um papel difícil no coro da família, pois do contrário correria o risco de não conseguir um marido. E, se as canções folclóricas de um país agora só se encontram nos livros, ou estão, como diz a canção, “guardadas na mala”, ou se igualmente consideramos a arte algo a ser visto em um museu, não é que algo tenha sido ganho, mas sim que sabemos que algo foi perdido, e desejamos ao menos preservar sua memória. Existem, então, possibilidades de “cultura” além daquelas concebidas por nossas universidades e pelos grandes filantropos, e outras possibilidades de realização além daquelas que podem ser exibidas em salas de estar. Não negamos que o ideólogo de classe possa ter um ressentimento justo contra a exploração econômica; quanto a isso, será suficiente dizer, de uma vez por todas, que “o trabalhador vale o seu trabalho”. Mas o que o ideólogo de classe, como homem, e não apenas em seu óbvio papel de explorado, deveria exigir, mas quase nunca ousa, é uma responsabilidade humana por qualquer coisa que ele mesmo faça. O que o sindicato deveria exigir de seus membros são obras-primas. O que o ideólogo de classe que não é apenas um subalterno, mas também um homem, tem o direito de exigir, não é nem ter menos trabalho, nem ter uma porção maior das migalhas culturais que caem da mesa dos ricos, mas a oportunidade de sentir imenso prazer em fazer o que quer que faça como trabalho, exatamente como sente ao cuidar do próprio jardim, ou em sua vida familiar; o que ele deveria exigir, em outras palavras, é a oportunidade de ser um artista. Qualquer 39


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civilização que lhe negue isto é inaceitável. Com ou sem máquinas, é certo que sempre haverá trabalho para fazer. Tentamos mostrar que, se o trabalho é uma necessidade, ele não é de modo algum um mal necessário, e sim um bem necessário, no caso de o trabalhador ser um artista responsável. Até agora falamos desde o ponto de vista do trabalhador, e talvez nem seja preciso dizer que tudo depende tanto do patrono como do artista. O trabalhador se torna um patrono na hora em que compra algo para seu próprio uso. E para ele, enquanto consumidor, sugerimos que aquele homem que, quando precisa de um terno, não compra dois ternos prontos de material vagabundo, mas delega a tarefa de fazer um terno de material primoroso a um alfaiate, é muito melhor como patrono das artes e filantropo do que o homem que meramente adquire uma obra-prima e a coloca no museu nacional. Também o metafísico e o filósofo têm um papel; uma das funções primárias do Professor de Estética deveria ser destruir as superstições da “Arte” e do “Artista” como pessoa privilegiada, um tipo diferente dos homens comuns. Aquilo de que o explorado deveria ressentir-se não é meramente a insegurança social, mas a posição de irresponsabilidade humana que lhe é imposta pela produção voltada para o lucro. É preciso que ele entenda que a questão da propriedade dos meios de produção tem um sentido primariamente espiritual, e só secundariamente um sentido de justiça ou injustiça econômica. O ideólogo de classe, na medida em que propõe que se viva só de pão, ou mesmo de brioche, não é melhor nem mais sábio do que o capitalista burguês que ele afeta desprezar; nem ficaria ele mais feliz no trabalho se trocasse muitos chefes por poucos. Pouca diferença faz que ele pretenda viver sem arte, ou obter sua dose dela, se consente na deificação desumana da “Arte” pressuposta na expressão “Arte pela arte”. Não é mais propício ao fim último e presente do homem sacrificar-se no altar da “Arte” do que sacrificar-se nos altares da Ciência, do Estado, ou da Nação personificadas. Em nome de todos os homens negamos que a arte seja um fim em si mesma. Pelo contrário, “a indústria sem arte é uma brutalidade”; e tornar-se um 40


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bruto é morrer para a condição humana. Trata-se, de qualquer jeito, de uma questão de ser bucha de canhão ou não: pouca diferença faz morrer repentinamente nas trincheiras ou dia após dia nas fábricas.

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VICENTE HUIDOBRO *

A CRIAÇÃO PURA título original: LA CRÉATION PURE: ESSAI D’ESTHETIQUE tradução: DOUGLAS SILVA E JOÃO SILVA

Vicente García-Huidobro Fernández foi um poeta chileno, nascido em 1893, em Santiago, e morto em 1948, em Cartagena. Tendo se mudado para Paris em 1916, circulou entre diversos expoentes da vanguarda europeia do início do século XX, tendo sido o iniciador e um dos grandes nomes da corrente estética denominada creacionismo. O ensaio traduzido, La Création pure: essai d’Esthetique, foi publicado pela primeira vez em abril de 1921, em Paris, na Revista L’Esprit Nouveau. Douglas C. Silva e João Gonçalves F. C. Silva são mestrandos em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da UFMG.


A Criação pura: ensaio de Estética Vicente Huidobro

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entusiasmo artístico de nossa época e a luta entre as diferentes concepções individuais e coletivas resultantes desse entusiasmo trouxeram de volta à moda os problemas estéticos, como nos tempos de Hegel e de Schleiermacher. É preciso, no entanto, exigir agora maior clareza e maior precisão do que as daquela época, pois a linguagem metafísica empregada por todos os doutores de estética do séc. XVIII e do início o séc. XIX não tem sentido algum para nós. Assim, devemos nos distanciar o máximo possível da metafísica e nos aproximar cada vez mais da filosofia científica. Comecemos estudando as diferentes fases, os diferentes aspectos sob os quais a arte se apresentou ou pode se apresentar. Essas fases podem se reduzir a três, e para designá-las mais claramente eis o esquema que imaginei: Arte inferior ao meio (Arte reprodutiva). Arte em equilíbrio com o meio (Arte de adaptação). Arte superior ao meio (Arte de criação). Cada uma das três partes que compõem esse esquema marca uma época na história da arte e comporta um segundo esquema, composto também de três itens e que resume a evolução de cada uma das épocas citadas:

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A CRIAÇÃO PURA

Predomínio da inteligência sobre a sensibilidade. Equilíbrio entre a sensibilidade e a inteligência. Predomínio da sensibilidade sobre a inteligência. Analisando como exemplo o primeiro item do primeiro esquema, ou seja, a Arte reprodutiva, diremos que os primeiros passos em direção a sua exteriorização são efetuados pela Inteligência, que procura e que tateia. Trata-se de reproduzir a natureza e para isso a Razão procura os meios de alcançar essa reprodução com a maior economia e a maior simplicidade ao alcance do artista. Tudo o que é supérfluo será deixado de lado. Nessa época, a cada dia se apresenta um novo problema a ser resolvido, e a Inteligência deve trabalhar com tal ardor que a sensibilidade fica relegada ao segundo plano e de certa maneira reduzida pela Razão. *** Mas logo aparece a segunda época. Os problemas principais já estão resolvidos, todo o supérfluo que não tem razão de ser para a elaboração da obra foi cuidadosamente descartado. A sensibilidade toma então seu lugar junto à Inteligência e enverniza a obra com um certo calor que a deixa menos seca e mais viva que em seu primeiro período. Essa segunda época marca o apogeu de uma arte. *** As gerações de artistas que vêm em seguida aprenderam esta arte por receitas, se habituaram a ela e sabem realizá-la de cor. No entanto, se esqueceram das leis iniciais que a constituíram e que são sua própria essência, não vendo nada além do lado exterior e superficial — em uma palavra, sua aparência. Eles executam as obras por pura sensibilidade, maquinalmente, poderíamos di44


VICENTE HUIDOBRO

zer, já que o hábito faz passar do consciente ao inconsciente. Aqui começa a terceira época, a decadência. Devo dizer que de cada uma dessas etapas participam várias escolas; assim, na etapa da arte reprodutiva temos a arte egípcia, chinesa, grega, os primitivos, a renascença, o clássico, o romântico, etc.. Toda a história da arte está cheia de exemplos que testemunham isso que foi dito. É evidente que em cada uma dessas diferentes etapas há artistas nos quais uma faculdade predomina sobre a outra, mas a linha geral segue fatalmente o curso aqui traçado. Toda escola séria que marca uma época começa necessariamente por um período de investigações no qual a Inteligência dirige os esforços do artista. Esse primeiro período pode ter como origem a sensibilidade e a intuição, quer dizer, uma série de saberes inconscientes, dado que tudo passa primeiro pelos sentidos. Mas esse é só o momento da gestação, que é um trabalho anterior à própria produção e de alguma forma seu primeiro impulso. Esse é o trabalho nas trevas, mas a saída à luz, a exteriorização, é a Inteligência que começa. É um erro bastante propagado crer que a intuição faz parte da sensibilidade. Para Kant, nela não pode haver uma intuição intelectual. Ao contrário, Scheling diz que somente a intuição intelectual pode descobrir a relação de unidade fundamental entre o real e o ideal. A Intuição é o conhecimento a priori e adentra a obra unicamente em forma de impulso; é anterior à realização e raramente tem lugar ao longo dessa realização. Em todo caso, a intuição não está muito próxima da sensibilidade, mas brota de um acordo rápido que se estabelece entre o coração e o cérebro, como uma fagulha elétrica que surge de repente iluminando o fundo mais obscuro de um recipiente. Em uma conferência que dei em julho de 1916 no Ateneu hispânico de Buenos Aires, eu dizia que toda a História da Arte não é nada senão a história da evolução do Homem-Espelho para o Homem-Deus, e que ao estudar essa 45


A CRIAÇÃO PURA

evolução vê-se claramente a tendência natural da Arte a se separar cada vez mais da realidade preexistente, a fim de buscar sua própria verdade, deixando no caminho todo o supérfluo e tudo o que pode prejudicar a sua realização perfeita. Acrescentei que tudo isso é tão visível ao observador quanto pode ser, em geologia, a evolução do Paloplotherium, passando pelo Anchiterium para chegar ao cavalo. Essa ideia do artista criador absoluto, do Artista-Deus, me foi sugerida por um velho poeta indígena da América do Sul (Aïmara), que diz: “O poeta é um Deus, não cante a chuva, poeta, faça chover”, muito embora o autor desses versos tenha caído no erro de confundir o poeta com o mágico e de crer que o artista, por se apresentar como criador, deve perturbar as leis do mundo, quando o que ele deve fazer é criar seu mundo próprio e independente, paralelamente à natureza. A ideia da separação da verdade da arte e da verdade da vida da verdade científica e intelectual vem de muito longe, mas ninguém a tinha precisado e demonstrado tão claramente quanto Schleiermacher, no começo do século passado, quando dizia que “a poesia não procura a verdade, ou melhor, ela procura uma verdade que não tem nada em comum com a verdade objetiva”. “A arte e a poesia exprimem unicamente a verdade da consciência singular”.1 É preciso realçar bem essa diferença entre a verdade da vida e a verdade da Arte: uma é anterior ao artista, e a outra lhe é posterior, produzida por ele. A confusão dessas duas verdades é a principal causa de erro no juízo estético. Devemos dirigir nossa atenção para esse ponto, pois a época que começa será eminentemente criativa. O Homem liberta-se da sua escravidão, se revolta contra a Natureza como antes Lúcifer se revoltou contra Deus, ainda que essa rebelião seja apenas aparente, pois jamais o homem esteve tão perto da Natureza quanto agora, que ele não busca mais imitá-la na sua aparência, mas fazer 1

Aesthetik, páginas 55-61. (N.A.)

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como ela, imitando-a nos fundamentos de suas leis construtivas, na realização de um todo, no mecanismo da produção de formas novas. Veremos agora como o homem, produto da Natureza, segue, em seus produtos independentes, a mesma ordem e as mesmas leis da Natureza. Não é preciso imitar a natureza, mas fazer como ela; não imitar suas exteriorizações, mas seu poder de exteriorização. Uma vez que o homem pertence à Natureza e não pode dela se evadir, ele deve nela apanhar a essência de suas criações. Nós devemos, no entanto, considerar as relações do mundo objetivo com o Eu, mundo subjetivo que é o artista. O artista apanha seus motivos e seus elementos no mundo objetivo, transforma-os e combina-os, entrega-os ao mundo objetivo sob a forma de novos feitos, e esse fenômeno estético é tão livre e independente quanto qualquer outro fenômeno do mundo exterior, como uma planta, um pássaro, um astro, um fruto, e tem, como esses, sua razão de ser em si mesmo, e os mesmos direitos e a mesma independência. O estudo dos diversos elementos que os fenômenos do mundo objetivo oferecem ao artista, a seleção de alguns e a eliminação de outros a partir do que convém à obra que se busca é o que forma o Sistema. Assim, o sistema da arte de adaptação é diferente do sistema da arte reprodutiva, pois o artista do primeiro extrai da Natureza outros elementos além dos que o artista imitativo extrai. O mesmo ocorre com o artista da época de criação. Em consequência, o sistema é a ponte pela qual os elementos do mundo objetivo passam ao Eu ou ao mundo subjetivo. O estudo dos meios de expressão para fazer voltar ao mundo objetivo esses elementos já escolhidos é a Técnica. Por consequência, a técnica é a ponte estabelecida entre o mundo subjetivo e o mundo objetivo criado pelo artista.

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A CRIAÇÃO PURA

Esse feito novo criado pelo artista, eis o que nos importa, e seu estudo junto ao estudo de sua origem forma a Estética ou teoria da Arte. O equilíbrio perfeito entre o sistema e a técnica é o que faz o Estilo, e a predominância de um desses fatores sobre o outro tem como resultado a Maneira. Diremos que o artista tem um estilo quando os meios que emprega para a realização de sua obra estão em perfeito acordo com os elementos que ele escolhe no mundo objetivo. Quando um artista tem uma boa técnica, mas não sabe escolher perfeitamente seus elementos, ou quando, ao contrário, os elementos que emprega são aqueles que melhor convêm à sua obra, mas sua técnica deixa a desejar, esse artista não atingirá o estilo, ele terá somente uma maneira. Não nos ocuparemos daqueles cujo sistema está em absoluto desacordo com a técnica. Esses não podem entrar num estudo sério da arte, ainda que sejam a grande maioria e que façam a alegria dos jornalistas e a glória dos salões de falsos amadores. Quero, antes de terminar este artigo, esclarecer um ponto: quase todos os eruditos modernos querem negar ao artista o direito à criação, e poder-se-ia dizer que os próprios artistas têm medo dessa palavra. Luto há muito tempo pela arte de criação pura, e ela foi uma verdadeira obsessão em toda minha obra. Já em meu livro “Pasando y Pasando”, publicado em janeiro de 1914, digo que o que deve interessar ao poeta é “o

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ato de criação e não o de cristalização”.2 São precisamente esses homens de ciência que negam ao artista o direito de criação que deveriam mais do que todos os outros lhe conceder. Acaso a arte da mecânica não é também a humanização da natureza e não atinge também a criação? E se é concedido ao mecânico o direito de criar, porque seria ele negado ao artista? Quando dizem que o automóvel tem uma força de 20 cavalos, nós não vemos os 20 cavalos, o homem criou um equivalente a eles, mas eles não aparecem para nós. Ele fez como a natureza. O Homem, nesse caso, criou sem imitar a Natureza em suas aparências, mas obedecendo a suas leis interiores; e é curioso constatar como o homem seguiu em suas criações a mesma ordem que a natureza, não somente no mecanismo construtivo, mas também no cronológico. O Homem começa vendo, em seguida ouve, depois fala, e por fim pensa. Em suas criações, o homem seguiu a mesma ordem que lhe foi imposta. De início, inventou a fotografia, que é um nervo óptico mecanizado. Em seguida, o telefone, que é o nervo auditivo mecanizado. Depois o gramofone, que é a mecanização das cordas vocais, e por fim o cinematógrafo, que é a mecanização do pensamento. E não só isso. Também na maioria de cada uma das criações do homem é produzida uma seleção artificial exatamente paralela à seleção natural, obedecendo às mesmas leis de adaptação ao meio. Isso é encontrado na obra de arte tanto quanto na mecânica e em todas as produções do homem. Por esta razão eu dizia na minha conferência sobre a Estética em 1916 que uma obra de arte “é uma nova realidade cósmica que o artista acrescenta à Natureza e que deve ter, como os astros, uma atmosfera para si, uma força centrípeta e uma força centrífuga. Forças que lhe dão um perfeito equilíbrio e lan2

Página 270. (N.A.)

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A CRIAÇÃO PURA

çam-na fora do centro produtor”. Este é o momento de chamar a atenção dos artistas para a criação pura, da qual muito já se fala sem fazer.

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JORDANES *

SOBRE AS ORIGENS E FEITOS DOS GODOS título original: DE ORIGINE ACTIBUSQUE GETARUM tradução: GUSTAVO H. S. S. SARTIN

Publicada pelo godo Jordanes em Constantinopolis em 551 ou 552, De origine actibusque Getarum (Sobre as Origens e Feitos dos Godos), também chamada de Getica, foi baseada em uma obra hoje perdida, escrita cerca de vinte anos antes por Cassiodoro Senador, um romano do sul da Itália que ocupava o cargo de magister officiorum (uma espécie de primeiro-ministro) do reino ostrogótico. Devido ao desaparecimento do texto de Cassiodoro, a mais antiga história de um povo “bárbaro” pós-romano hoje disponível é a de Jordanes. Utilizamos como texto-fonte a edição considerada canônica, publicada em 1882 por Theodor Mommsen como parte da coleção Monumenta Germaniae Historica, contendo a Romana e a Getica. Selecionamos, desta, a introdução geográfica. Nela, Jordanes descreve o mundo conhecido e o local de origem dos godos. Gustavo H. S. S. Sartin é mestre em História (área de concentração: História e Espaços) pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. É também bacharel e licenciado em História pela Universidade Federal de Santa Catarina. Dedica-se à História Antiga e à tradução de textos antigos e medievais.


Introdução geográfica de Sobre as Origens e os Feitos dos Godos Jordanes

De Jordanes a Castálio

E

1. u desejoso de viajar a favor da corrente em meu pequeno navio, explorar a costa de um litoral tranquilo e, como se diz, colher pequenos peixinhos nas piscinas dos antigos, irmão Castálio, e me compeles a abrir velas rumo ao alto mar e a abandonar a pequena obra que tenho entre as mãos – ou seja, a abreviação das crônicas.1 Persuades-me a resumir neste pequeno livro, com palavras minhas, os doze volumes de Cassiodoro Senador2 sobre os feitos dos godos desde os tempos antigos até o presente, percorrendo as gerações de reis. 2. Digo-te, enquanto parto: para quem sabe não querer o peso de tal trabalho e não almeja o ridículo, é um tanto dura a missão imposta; porquanto meu fôlego é fraco para preencher a sua tão magnífica trombeta que diz tanto. Sobre todo esse peso, ademais, não nos foi permitida a consulta aos seus livros, de modo que busquei seu sentido geral. Não mentirei, porém: há pouco reli, durante três dias, a narrativa de tais livros, por gentileza do secretário do autor. Deles, contudo, não conservei as palavras; mas creio ter retido integralmente o sentido das coisas feitas. 3. A essas também acrescentei 1 Jordanes provavelmente se refere à Romana. 2 Trata-se de Flavius Magnus Aurelius Cassiodorus Senator (c. 485 – c. 585).

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SOBRE AS ORIGENS E FEITOS DOS GODOS

várias histórias de gregos e latinos, conforme a conveniência. Misturei a minha fala no início, no fim e, mais ainda, no meio. Assim, recebe sem agravo e contente o que solicitaste. Lê contentíssimo; e se o que foi dito não for suficiente para ti, vizinho deste povo, rememora-o para acrescentá-lo. Ora por mim, caríssimo irmão. Que o Senhor esteja contigo. Amém!

Capítulo I 4. Nossos antepassados, como reporta Paulo Orósio, consideravam o círculo da Terra inteira tripartido, envolto por uma faixa do Oceanus; e chamaram suas três partes de ‘Asia’, ‘Europa’ e ‘Africa’. A respeito dessa divisão tríplice do espaço do globo terrestre, quase incontáveis escritores não somente explanaram as posições de cidades e lugares, mas também tornaram clara a quantidade de milhas e passos. Igualmente, determinaram a posição no imenso mar profundo das ilhas espalhadas em meio às ondas, não apenas as maiores como as menores – a estas chamaram ‘Cyclades’ ou ‘Sporadas’. 5. Ninguém, contudo, empreendeu a tarefa de descrever os inacessíveis confins do Oceanus, até porque não foi possível percorrê-los; devido às algas resistentes e ao descanso dos ventos, se entende que são intransponíveis e ninguém os compreende, a não ser quem os criou. 6. Ainda assim, as margens mais próximas desse mar que denominamos ‘círculo do mundo inteiro’ e que, como uma coroa, envolve seus confins se tornaram conhecidas por homens curiosos que quiseram escrever sobre as coisas de lá, pois o círculo da Terra possui residentes e um certo número de ilhas desse mar é habitável. Assim, existem na região oriental e no Indicus Oceanus, Hippodes, Iamnesia e Solis Perusta que, apesar de inabitável, possui uma área que se estende em longitude e latitude. Ademais, na Taprobana,3 além de aldeias e fazendas, existem dez belas cidades muitíssimo fortificadas. Há, contudo, uma outra, a agradabilíssima Silefantina; assim como Theron. 7. Essas duas, ainda que não diferenciadas por alguns escritores, estão todavia amplamente preenchidas 3 Possivelmente o atual Sri Lanka.

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JORDANES

por residentes. Esse mesmo Oceanus possui, na parte ocidental, algumas ilhas um tanto conhecidas por quase todos, pela frequência daqueles que vão e vêm delas. Existem, ademais, junto do estreito de Gades, pouco distantes entre si, uma que é denominada ‘Beata’ e outra ‘Fortunata’. Embora muitos considerem ilhas do Oceanus aqueles promontórios gêmeos, Galicia e Lusitania (em um dos quais ainda se pode ver o templo de Hércules e no outro o monumento dos Cipiões), todavia, por estarem ligados pela extremidade das terras galegas, eles pertencem à grande terra da Europa e não às ilhas do Oceanus. 8. Este, contudo, tem outras ilhas em seu interior, chamadas depressão (gremium) dessa ilha para dentro das terras da Europa como se fosse um enxame de abelhas. De que modo, de fato, ou de que maneira, se o Senhor nos conceder, explicaremos na sequência. ‘Baleares’; além de outra, chamada ‘Nevania’; e também das ‘Orcadas’, em número de trinta e três, ainda que nem todas habitadas. Existe na última faixa do ocidente outra ilha, de nome ‘Thyle’,4 a respeito da qual o mantuano (Virgílio) diz, entre outras coisas: ‘Thyle, a mais distante, servirá a ti’. 9. Ele próprio um imenso mar tem também na parte ártica – isto é, no norte – uma ampla ilha de nome ‘Scandza’; de onde nossa discussão, se o Senhor assim o ordenar, será iniciada, pois o povo cuja origem requeres vem irrompendo da depressão (gremium) dessa ilha para dentro das terras da Europa como se fosse um enxame de abelhas. De que modo, de fato, ou de que maneira, se o Senhor nos conceder, explicaremos na sequência.

Capítulo II 10. Agora, porém, tratarei como for possível e de forma breve, da ilha da Brittania, que está situada no golfo entre a Spania, a Gallia e a Germania. Apesar de que antigamente, por conta de sua extensão, como mencionado por Tito Lívio, ninguém a havia circundado, não obstante, de muitos são as variadas opiniões ditas sobre ela. Se ela foi certamente por muito tempo inacessível, os ro4 Talvez a Islândia ou mesmo a Groenlândia.

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manos de Júlio César por grande glória a abriram com prélios. Acessível desde então, tanto na busca por mercadorias como por muitos outros interesses, os quais foram buscados, ela deixou de ser mortal mesmo para os descuidados, revelando definitivamente sua posição àquela geração, assim como aos autores gregos e latinos que aceitamos e seguimos. 11. Muitos deles comparam-na a um triângulo, apontando para entre as regiões setentrionais e ocidentais. Seu maior ângulo fica defronte à boca do rio Rhenus. Dali ela se reduz em largura e se retrai até terminar em dois outros ângulos. Seus dois lados maiores se projetam em frente à Gallia e à Germania. Dizem ter dois mil e trezentos e dez estádios de largura e não mais de sete mil e cento e trinta e dois de comprimento.5 12. Plena de espinhos, a floresta jaz na planície, que também cresce até formar vários montes. Um mar calmo, que não cede facilmente ao empurrão dos remos e tampouco é agitado pelos ventos, a circunda. Creio que isto se dá porque as terras estão tão afastadas a ponto de não possibilitarem a agitação do mar; e a superfície do oceano, é claro, se estende mais do que em outros locais. Conta também o nobre escritor grego Estrabão que, umedecido o solo por frequentes incursões do Oceanus, ela exala muitas nuvens que cobrem o sol e tornam seus dias quase de todo desagradáveis, apesar de calmos, impedindo a claridade. 13. Em sua parte mais afastada, ademais, a noite é clara e muito curta. Como também relatou o escritor dos ‘Anais’, Cornélio Tácito, é rica em muitos metais, fértil para todo tipo de ervas, que mais alimentam o gado do que os homens. Por ela, contudo, deslizam e desaparecem enormes rios, revolvendo muitas pedras preciosas e pérolas. Os siluros têm o rosto pintado; sendo que muitos nascem com os cabelos negros e crespos. Os habitantes da Calydonia, por outro lado, têm pelos ruivos e corpos grandes, porém ágeis. 14. Parecem-se com os gauleses ou os hispanos, dependendo de qual região estão defronte.6 Daí muitos conje5 Valores em torno de 415 e 1280 quilômetros, respectivamente. Ambos bastante próximos das distâncias reais. 6 Curiosamente, Jordanes imagina a ilha da Brittania posicionada não somente defronte à Gallia, como também à Spania. Embora fosse verdade que o litoral sul da Brittania fosse vizinho do litoral norte da Gallia, ele situava-se a mais de 1.000 quilômetros do litoral norte da península ibérica.

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JORDANES

turarem que a ilha recebeu os habitantes dessas regiões, convidando os que estavam próximos. Todos os povos e seus reis são igualmente selvagens. Dião Cássio, o célebre autor de anais, todavia afirma que todos foram apelidados de ‘calidônios’ e ‘meataros’. Vivem em cabanas de madeira, compartilhando seu abrigo com o gado, e as florestas frequentemente lhes servem de casa. Não sei se pintam seus corpos com a cor do ferro para decorá-los ou para outra coisa. 15. Eles frequentemente conduzem guerra uns contra os outros por desejo de poder ou para aumentar suas posses. Lutam não apenas a cavalo ou à pé, mas também com bigas e carroças armadas com foices, às quais comumente chamam de ‘essedae’. Que baste o que foi dito acerca da situação das ilhas da Brittania.

Capítulo III 16. Retomemos a situação da ilha da Scandza, que abandonamos acima. Cláudio Ptolomeu, eminente descritor do globo terrestre, lembrou-se dela no segundo livro de sua obra, dizendo: ‘Há uma grande ilha situada em mar aberto na área ártica do Oceanus, de nome ‘Scandza’, cujos lados são curvados como uma folha de cedro, se estendendo longamente até se findarem um sobre o outro’. Pompônio Mela relatou a seu respeito que, no mar, ela está situada no golfo Codanus, para cujas margens flui o Oceanus. 17. À frente desta está localizado o rio Vistula,7 que nasce nos montes Sarmatici e flui para uma foz tripla, que deságua no norte do Oceanus, defronte à Scandzae, separando a Germania e a Scythia. Ela tem em sua parte oriental um enorme lago, em uma área que é uma depressão (gremium) do globo terrestre, de onde o rio Vagus8 escorre como se jorrasse de uma entranha em direção ao onduloso Oceanus. Na parte ocidental, por seu turno, a ilha é cercada por um mar imenso e a norte é limitada pelo vastíssimo e inavegável Oceanus, do qual sai uma espécie de braço, que se estende em um 7 O rio manteve o mesmo nome até os dias atuais. Fica na Polônia e deságua na baía de Gdanski. 8 Provavelmente o Göta älv, na Suécia.

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SOBRE AS ORIGENS E FEITOS DOS GODOS

golfo e produz o mar Germanicus. 18. Diz-se que por lá também existem muitas pequenas ilhas e que os lobos, quando atravessam o mar congelado em direção a elas, perdem a visão devido ao frio excessivo. Assim, essa terra não é somente inóspita para os homens, mas cruel até mesmo para as feras. 19. Ainda que na Scandza, a ilha da qual estamos falando, seja permitida a permanência de muitos e diversos povos, Ptolomeu lembra-se somente do nome de sete deles. Lá, devido ao frio excessivo, não são encontrados em parte alguma enxames de abelhas melíferas. Em sua parte norte, onde está assentada a nação adogita,9 diz-se que em meados do verão há luz contínua por quarenta dias e noites; e que, no tempo invernal, não conhece luz clara por igual número de dias e noites. 20. Assim, por tal alternância entre aflição e alegria, são distintos dos outros no que concerne a vantagens e perdas. E isso por quê? Porque nos dias longos eles veem o sol retornar ao oriente margeando o horizonte. Nos dias breves, todavia, não é isso que observam. Pelo contrário, ao percorrer os símbolos austrais, o sol que é visto por nós surgindo de baixo, no caso deles é dito que circula pela margem da Terra. 21. Lá também estão outros povos, como os escrerefenos, que não buscam cereais como sustento. Vivem da carne de feras e dos ovos de aves; pois são postas tantas crias nos pântanos que proporcionam o aumento da espécie e favorecem a saciedade do povo. Outro povo que mora lá é o suehano, que, como os turingos, emprega cavalos exímios. Eles também são os que enviam, através do comércio com outros inumeráveis povos, as peles safirinas10 que são usadas pelos romanos. São famosos pela negritude dos adornos de suas peles. Ainda que vivam como pobres, vestem-se muito ricamente. 22. Então, segue-se uma aglomeração de diversos povos, como teustes, vagotes, bergios, halinos, liótidas; os quais se assentam todos em uma planície fértil e que, por isso, são infestados por incursões de outros povos. Por detrás desses, estão os ahemiles, os finaitas, fervires, gautigodos – um tipo de homens rudes e prontíssimos para a 9 Aportuguesamos os nomes dos povos mencionados no texto de Jordanes. Muitos deles não são mencionados em qualquer outra fonte antiga ou medieval. 10

De cor azulada como a safira.

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JORDANES

guerra – e em seguida, os mixis, evagres e otingis. Todos eles habitam fortalezas escavadas nas rochas e se portam de modo quase bestial. 23. Para além deles estão, ademais, os ostrogodos, raumáricos, aeragnáricios e os gentilíssimos finos, os mais gentis de todos os habitantes da Scandza. Também semelhantes a eles são os vinovilotes. Os suétidos são conhecidos entre esses povos por seu tamanho excepcional; apesar de que os daneses, que provém da mesma linhagem e que expulsaram os hérulos das próprias terras, são os que entre os povos da Scandza jactam-se devido a sua especial estatura. 24. Nessa região estão, ainda, os granios, auganzos, eunixos, taetel, rugos, arochos e ranos, de quem há não muitos anos Roduulf foi rei. Ele, por desprezo ao próprio reino, correu para o colo do rei dos godos Teodorico, encontrando o que desejava. Todos esses povos, além disso, são maiores dos que os germânicos em corpo e alma; e lutam com uma fúria bestial.

Capítulo IV 25. Dessarte, os godos se recordam de partir outrora dessa ilha Scandza – quase uma fábrica de povos ou, certamente, um nascedouro de nações – com seu rei de nome Berig. Quando os líderes saíram dos navios e chegaram à terra, de imediato deram nome ao local; do qual se diz, até hoje, ser chamado Gothiscandza. 26. De lá, em seguida, avançaram até a morada dos ulmerugos, que então ocupavam as margens do Oceanus. Então montaram acampamento e combateram-nos, expulsando-os de suas moradas. Depois deles os vizinhos. Os vândalos, então já subjugados, acrescentaram às suas vitórias. Lá, porém, com a grande população aumentando em número, e já quase no quinto rei após Berig, Filimer, filho de Gadarigis, sentou-se diante do conselho e então conduziu adiante o exército dos godos, acompanhado pelos familiares. 27. Em busca de locais adjacentes apropriados para excelentes moradas, chegou à terra da Scythia, à qual chamavam em sua língua ‘Oium’, onde ficou deleitado pela grande fertilidade da região. Diz-se que metade do exército havia cruzado uma ponte e, quando atravessava a correnteza, aquela desabou irreparavelmente, não 58


SOBRE AS ORIGENS E FEITOS DOS GODOS

mais lhe permitindo ir ou voltar, pois esse lugar, segundo dizem, está limitado por um abismo aquoso circundado por um pântano movediço (tremulus), tornados intransponíveis pela natureza através de sua combinação. Ali, ainda hoje, são ouvidas vozes de gado e encontrados indícios de homens, segundo testemunhos dos viajantes; apesar de que devemos crer que eles ouçam essas histórias de longe.

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STEPHEN CRANE *

UMA ILUSÃO EM VERMELHO E BRANCO título original: AN ILLUSION IN RED AND WHITE tradução: CÉSAR GANIMI MACHADO

Stephen Crane (1 de novembro de 1871 - 5 de junho de 1900) foi um precoce escritor americano. Filho de um erudito patriota da Revolução Americana, começa a escrever com apenas quatro anos de idade, e por volta dos treze publica um de seus mais famosos contos, Uncle Jake and the Bell-Handle. Em 1895, com a publicação de The Red Badge of Courage (O Emblema Rubro da Coragem), romance que tem como cenário a Guerra Civil Americana, Stephen Crane é recebido pela crítica com uma “orgia de louvores”, segundo o escritor H.G. Wells. O estilo de Crane é frequentemente associado ao naturalismo, dando ênfase a temas como o medo, a dúvida e a morte — elementos presentes no conto aqui traduzido, An Illusion in Red and White. Stephen Crane morreu prematuramente aos 28 anos de idade, antes que terminasse de escrever a novela The O’Ruddy (finalizada futuramente pelo escritor Robert Barr). César Ganimi é designer gráfico e bibliófilo.


Uma Ilusão em Vermelho e Branco Stephen Crane

A

s noites no bloqueio cubano eram longas, raramente empolgantes, muitas vezes entediantes. Os tripulantes dos irrequietos pequenos barcos de carga se tornaram tão íntimos como se estivessem todos enterrados no mesmo caixão. Os correspondentes, que em Nova York se passavam por camaradas honestos, às vezes se revelavam perfeitos impostores, vaidosos e egoístas, mas em geral esses tolos presunçosos do Park Row se comportavam como os homens bondosos e prestativos do bloqueio cubano. Além disso, cada correspondente contava tudo o que sabia e mais um pouco. Serei eternamente grato a uma das brilhantes estrelas do jornalismo nova-iorquino por esta amável narrativa:

Bem, é assim que imagino o ocorrido. Não digo que tenha se desenrolado dessa forma, mas é assim que imagino. E nunca deixo de ressaltar o quanto esta história é interessante. Não fiquei no jornal por muito tempo, mas o suficiente para cobrir um bom evento, quando o editor inesperadamente me encarregou desse fantástico homicídio. Parece que lá em um dos condados do Estado de Nova York, um fazendeiro havia tomado uma aversão pela sua esposa; foi então até a cozinha com um machado, e na presença de seus quatro filhinhos, despreocupadamente desferiu um golpe na nuca de sua esposa. Era de manhã cedo, mas ordenou que as crianças voltassem para a cama. Então levou o corpo de sua mulher até a floresta e o enterrou. 61


UMA ILUSÃO EM VERMELHO E BRANCO

O nome desse fazendeiro era Jones. O filho mais velho do viúvo se chamava Freddy. Uma semana após o crime, um dos vizinhos de longa distância passeava em sua carroça próximo à casa, quando avistou Freddy brincando na rua. Ele se levantou e perguntou ao menino como ia a família Jones. — Ah, estamos todos bem, disse Freddy, só a mamãe que não — ela está morta. — Como! Quando ela morreu? bradou o fazendeiro, espantado. — Do que ela morreu? — Ah, respondeu Freddy — semana passada um homem de cabelos vermelhos e de dentões brancos e de mãos branquíssimas veio até a cozinha e matou a mamãe com um machado. O fazendeiro ficou indignado com as esquisitas lorotas de criança que o menino lhe contara, e seguiu a viagem preocupado. Mas naquela tarde espalhou o incidente em uma taverna, e quando o povo começou a dar por falta da figura familiar da Sra. Jones nas manhãs de sábado na Igreja Metodista, acabaram dando início a uma investigação. O calmo Jones foi preso por homicídio, e o corpo de sua esposa desenterrado da cova onde fora jogado, para então ser sepultado pela sua própria família. A atenção principal agora se direcionou às crianças. Todas as quatro declararam que estavam na cozinha na hora do crime, e que o assassino tinha cabelo vermelho. O cabelo do bom Jones era grisalho. Elas alegaram que os dentes do assassino eram grandes e brancos. Jones só tinha uns oito dentes, e esses eram pequenos e cariados. Elas alegaram que as mãos do assassino eram brancas. As mãos de Jones eram da cor de uma noz. Elas levantaram seus confusos e inocentes rostos, e chorando — simplesmente porque a agitação inesperada e seus novos alojamentos as assustavam — repetiram sua épica narração sem grandes contradições, mas sem a uniformidade que pudesse levantar suspeitas. Mulheres iam até a prisão e se condoíam pelas crianças, costuravam sainhas para as meninas, e pequenos calções para os meninos, e detetives estúpidos as questionavam minuciosamente. Mas elas sempre sustentavam a teoria 62


STEPHEN CRANE

do assassino de cabelo vermelho, dentões esbranquiçados e mãos brancas. Jones permanecia sentado em sua cela, queixo taciturno sobre o primeiro botão de seu uniforme. Não sabia nada sobre qualquer assassinato, alegava. Achava que sua mulher tinha ido visitar alguns parentes. Eles discutiram, e ela disse que iria abandoná-lo por algum tempo, para que ele tivesse a oportunidade de esfriar a cabeça. Ele tinha percebido o sangue no chão? Sim, ele tinha percebido o sangue no chão. Mas ele estivera limpando e esfolando um coelho justo naquele lugar, no mesmo dia em que sua mulher desapareceu. Ele não deu bola para aquilo. O que seus filhos disseram quando ele retornou da floresta? Que mamãe havia sido assassinada com um machado pelas mãos de um homem de cabelos vermelhos, dentões brancos e mãos brancas. Quando o indagavam por que não havia informado à polícia do condado, Jones respondia que não considerava matéria de grande importância. Não escondia o ódio que sentia pela esposa, e afinal, estava satisfeito em ver-se livre dela. Mais tarde se convenceu de que ela havia fugido, e jamais deu crédito à história fantástica das crianças. Claro, poucos duvidavam de sua culpabilidade, mas havia uma quantidade razoável de pessoas que concordavam que Jones era de fato um sujeito rude e bruto, e talvez com alguns parafusos a menos — sim — mas assassino, não. Eles se dirigiam às crianças, afirmando que crianças não mentem, mas elas, quando indagadas, alegavam que o crime havia sido cometido por um homem de cabelo vermelho, dentões brancos e mãos brancas. Eu mesmo as entrevistei algumas vezes, e fiquei pasmo com o tom convincente que davam à historinha. Brilhando nas profundezas de seus límpidos olhos que se viravam, era possível enxergar pequenas imagens espelhadas de homens com cabelos vermelhos, dentões brancos e mãos brancas. Agora, vou contar-lhes como aconteceu — como imagino que se passou. Um tempo após enterrar a esposa na floresta, Jones voltou para casa. Não vendo ninguém, gritou à moda familiar: — Mãe! Então as crianças apareceram, chorosas. 63


UMA ILUSÃO EM VERMELHO E BRANCO

— Onde está a mãe de vocês? — perguntou Jones. As crianças fitaram-no, confusas. — Ué, papai, — disse Freddy — você veio aqui, acertou mamãe com um machado; depois mandou a gente se deitar. — Eu? — exclamou Jones. — Não estive por aqui desde o café da manhã. As crianças não souberam como responder. O débil juízo que possuíam lhes indicava que era seu pai o homem do machado, mas ele negava, e para suas cabeças tudo não passava de um grande enigma sem sentido algum, salvo que aquilo era misteriosamente triste e as fazia chorar. — Que tipo de aparência esse homem tinha? — perguntou Jones. Freddy hesitou. — Bem... ele parecia um bocado com você, papai. — Comigo? — disse Jones. — Ora, eu pensei ter ouvido você dizer que ele tinha cabelos vermelhos? — Não, eu não disse, — replicou Freddy. — Penso que ele tinha o cabelo grisalho, como o seu. — Bem, — disse Jones — Eu vi um homem de cabelos que pareciam vermelhos andando pela rua afora, e pensei que talvez pudesse ser ele. Nesse momento a pequena Lucy, a segunda criança, falou com intensa convicção. — O cabelo dele era bem pouquinho vermelho. Eu vi. — Não, — disse Jones. — O homem que eu vi tinha o cabelo bem vermelho. E como eram seus dentes? Eram grandes e brancos? — Sim, — respondeu Lucy — eram sim. Até Freddy parecia propenso a acreditar nessa versão: — Pode ser que seus dentes fossem mesmo grandes e brancos. Jones disse ainda mais alguma coisa naquele momento. Mais tarde insinuou às crianças que sua mãe havia saído para fazer uma visita, e embora estivessem completamente surpresas — e de vez em quando chorassem por conta da opressão de um sentimento incompreensível que as tomava — não disseram 64


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nada. Jones cumpriu seu trabalho. Estava tudo tranquilo. Na manhã seguinte ao dia do crime, Jones e seus filhos tomavam canjica e leite no café da manhã. — Bem, sobre esse homem de cabelos vermelhos e dentões brancos, Lucy, — disse Jones — você percebeu mais alguma coisa nele? Lucy se endireitou na cadeira, e demonstrou o desejo infantil de surgir com uma informação brilhante que pudesse ganhar a aprovação de seu pai. — Ele tinha as mãos brancas — mãos totalmente brancas. — E você, Freddy?’ — Eu não olhei muito pra elas, mas acho que eram brancas, respondeu o menino. — E o que a Martinha percebeu? — apelou o carinhoso pai. — Ela viu o homenzarrão malvado?’ Martha, que tinha quatro anos, respondeu solenemente: — O cabelo dele era todo vermelho, e a mão toda branca — muito branca. — Foi esse o homem que eu vi passando na rua, — disse Jones a Freddy. — Sim, senhor, parece que deve ter sido ele, — disse o menino, cujo cérebro estava agora completamente bagunçado. Novamente Jones deixou que a ideia do homicídio de sua mulher caísse no esquecimento. As crianças definitivamente não tinham noção de que aquilo era um assassinato. Adultos sempre se comportavam de modo que fazia a cabeça das crianças boiar. Por exemplo, o que haveria de mais incompreensível do que a atividade de um homem com dois cavalos, transportando alguma coisa desconhecida através da mata? E por que eles cortavam os longos capins e os jogavam no celeiro? E pra que servia uma vaca? A água do poço gostava de ficar lá? Todas essas atividades e coisas eram extraordinárias, pois estavam associadas à categoria superior dos adultos, mas eram profundamente misteriosas. Caso, então, um homem de cabelos vermelhos, dentões brancos e mãos brancas acertasse sua mãe com um golpe de machado na nuca, isso era apenas um fenômeno da vida adulta. Henry, o bebê, quando queria algo, berrava e batia na mesa com sua 65


UMA ILUSÃO EM VERMELHO E BRANCO

colher. Isso era tudo o que ele sabia da vida. Não estava preocupado com o fato de que sua mãe havia sido assassinada. Um dia, inesperadamente, Jones se dirigiu aos seus filhos: — Vejam bem: me pergunto se vocês não podem ter se enganado. Vocês têm absoluta certeza de que o homem que viram tinha cabelos vermelhos, dentões brancos e mãos brancas?’ As crianças se irritaram com o pai: — Ora, sem dúvida, papai, nós não cometemos nenhum engano. Nós o vimos perfeitamente. Mais tarde a cabeça do jovem Freddy passou a funcionar como se estivesse cheia de ketchup. Suas noites de sono eram assombradas com terríveis imagens do homem de cabelos vermelhos, dentões brancos e mãos brancas, e a prolongada ausência de sua mãe o desvairava. Não demorou para que voluntariamente desenvolvesse a hipótese de que sua mãe estava morta. Ele sabia o que era a morte. Ele vira uma vez um cachorro morto; também galinhas mortas, coelhos e ratos. Um dia perguntou a seu pai: — Papai, a mamãe vai voltar algum dia? Jones disse: — Bem, não; acredito que não. Essa resposta confirmou ao menino sua suposição. Ele sabia que pessoas mortas não voltavam. A atitude de Jones frente a essa narração extraordinária do homem com o machado era muito peculiar. Ele passou a contestá-la. Protestou contra a afirmação das crianças, mas não conseguia fazê-las mudar de ideia. Era a única coisa em suas vidas da qual estavam permanente e absolutamente convencidas. Bem, é assim que a história termina. Mas para o deleite de vocês, continuarei. O júri pendurou Jones o mais alto que podiam, e estavam cobertos de razão: afinal Jones confessou o crime antes de morrer. Freddy é atualmente um respeitabilíssimo condutor de carroça de mercearia em Ogdensburg. Quando estive por lá uns bons anos depois, as pessoas me diziam que quando ele abria a 66


STEPHEN CRANE

boca pra falar da tragédia, era convicto em denunciar a alegada confissão do pai como uma mentira. Considerava seu pai uma vítima da estupidez dos jurados, e tinha a esperança de algum dia conhecer o homem de cabelos vermelhos, dentões brancos e mãos brancas, cuja imagem ainda permanece tão nítida em sua memória que poderia distingui-lo no meio de uma multidão de dez mil pessoas.

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C. S. LEWIS *

MEDITAÇÃO NO GALPÃO DE FERRAMENTAS título original: MEDITATION IN A TOOLSHED tradução: FABIANA ESSE

Clive Staples Lewis foi um escritor britânico. Mesmo não se contando entre os teólogos, tornou-se bastante conhecido, entre outros méritos, pela consistente apologética cristã que divulgou e colaborou para desenvolver. Originalmente publicado no The Coventry Evening Telegraph de 17 de julho de 1945 e reproduzido em God in the Dock (Eerdmans, 1970), o pequeno ensaio Meditation in a Toolshed é um firme alerta contra os enganos que a unilateralidade das interpretações extraídas meramente a partir de observações externas, “científicas”, podem produzir, quando se opõe, em total detrimento, às impressões extraídas da experiência vivenciada em si mesma. Esclarecendo por que a obtenção de toda a veracidade sobre comportamentos e circunstâncias humanas não se encerra apenas no olhar do observador passivo e seu método científico, ele nos lembra de que há ou pode haver veracidade, ou ao menos frações dessa veracidade, também no próprio vivenciar. Fabiana Esse é tradutora.


Meditação no Galpão de Ferramentas C.S. Lewis

H

oje eu estive no escuro galpão de ferramentas. O sol brilhava lá fora e, pela fresta no topo da porta, veio um de seus raios. De onde eu estava, esse feixe de luz com partículas de poeira flutuantes era a coisa mais notável no local. Todo o resto era quase um breu. Eu estava vendo o feixe, não vendo as coisas através dele. Então me movi, de modo que o feixe caiu sobre meus olhos. Imediatamente, toda a imagem anterior desapareceu. Não vi nenhum galpão e (sobretudo) nenhum feixe. Em vez disso, vi, enquadradas no recanto irregular na parte superior da porta, folhas verdes se movendo sobre os galhos de uma árvore lá fora e, mais além, a aproximadamente 150 milhões de quilômetros de distância, o sol. Olhar através do feixe e olhar para o feixe são experiências muito diferentes. Mas esse é apenas um exemplo muito simples da diferença entre olhar-para e olhar-através. Um rapaz conhece uma garota, o mundo inteiro parece diferente quando ele a vê. Sua voz lhe recorda algo de que ele vem tentando se recordar a vida toda e dez minutos de conversa ocasional com ela são mais preciosos que todos os favores que qualquer outra mulher no mundo poderia lhe conceder. Ele está, como se costuma dizer, “apaixonado”. De fora, um cientista descreve a experiência deste jovem. Para ele, tudo se resume na relação entre os genes e um reconhecido estímulo biológico. Essa é a diferença entre olhar através do impulso sexual e olhar para o impulso sexual. Quando se adquire o hábito de fazer essa distinção, encontram-se vários exemplos. O matemático senta-se para pensar e, para ele, parece que contempla 69


M E D I TA Ç Ã O N O G A L PÃ O D E F E R R A M E N TA S

verdades atemporais e irrestritas sobre números. Mas o fisiologista do cérebro, se pudesse olhar dentro da cabeça do matemático, não acharia nada atemporal e irrestrito lá, mas apenas pequenos movimentos na massa cinzenta. O selvagem, à meia noite, dança em êxtase diante do Nyonga1 e sente com cada músculo que sua dança está ajudando a trazer uma nova boa safra, chuva de primavera e bebês. O antropólogo, observando o selvagem, registra que ele está realizando um ritual de fertilidade do tipo assim ou assado. A menina chora por sua boneca quebrada e sente que perdeu uma amiga de verdade, o psicólogo diz que seu instinto maternal incipiente foi momentaneamente derramado sobre um pedaço moldado de cera colorida. Assim que se apreende essa simples distinção, levanta-se uma questão: ganha-se uma experiência sobre determinada circunstância quando se olha através dela e outra quando se olha para ela. Qual é a “verdadeira experiência” ou “a experiência válida”? O que diz mais sobre a tal circunstância? E dificilmente se pode fazer essa pergunta sem perceber que, nos últimos cinquenta anos, mais ou menos, todos vêm tendo a resposta por certa. Assumiu-se sem discussão que, quando se quer a verdadeira explicação sobre religião, não se deve ir aos religiosos, mas aos antropólogos; quando se quer a verdadeira explicação sobre o amor, não se deve ir aos amantes, mas aos psicólogos; quando se quer compreender algumas “ideologias” (como a cavalaria medieval ou a ideia do século XIX de um “gentleman”), deve-se ouvir não aqueles que viveram tais ideologias, mas os sociólogos. As pessoas que olharam para as circunstâncias deram a elas sua própria versão; as pessoas que olharam através das circunstâncias foram simplesmente coagidas. Veio mesmo a ser admitido como certo que a descrição externa de algo refuta ou “desmistifica” a descrição interna. “Todos estes ideais morais que parecem tão transcendentais e belos de dentro”, diz o pedante, “são realmente apenas uma mistura de instintos biológicos e tabus herdados.” E ninguém joga 1 Trata-se, possivelmente, de uma referência ao rio em Camarões, que corre aproximadamente 640 km até desaguar no Golfo da Guiné. (N.T.)

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C.S. LEWIS

o jogo de outra maneira, argumentando: “Se as coisas fossem vistas pelos olhos de quem as vive, o que parece instintos e tabus, de repente, revelaria sua verdadeira e transcendental natureza.” Essa é, de fato, toda a base do pensamento especificamente “moderno”. “E não é uma base muito sensata?”, pergunta-se. Afinal, estamos sempre sendo enganados pelas coisas vistas de dentro. Por exemplo, a moça que parece tão maravilhosa quando se está apaixonado, pode, na verdade, ser uma pessoa muito obtusa, estúpida e desagradável; a dança do selvagem para o Nyonga, na verdade, não faz as colheitas aumentarem. Depois de termos sido tantas vezes enganados por olhar-através, não estamos bem aconselhados para confiar apenas ao olhar-para? Realmente, para desprezar todas as experiências internas? Bem, não. Há duas objeções fatais ao desprezo de todas elas. E a primeira é esta: desprezam-se tais experiências a fim de se pensar com maior precisão. Entretanto, de qualquer modo, não se pode pensar (e, portanto, é claro, não se pode pensar com precisão) se não se tem nada em que pensar. Um fisiologista, por exemplo, pode estudar a dor e descobrir que ela “é” (seja o que for que “é” signifique) esse ou aquele evento neural. Mas a palavra dor não teria nenhum significado para ele, a menos que já a tivesse, efetivamente, sentido em si mesmo. Se ele jamais tivesse olhado através da dor, simplesmente não saberia para o que está olhando. O próprio objeto de suas investigações externas existe para ele apenas porque, ao menos uma vez, foi algo interno. Este não é um caso de provável ocorrência, pois todo homem sente dor. Mas é perfeitamente fácil passar toda uma vida dando explicações sobre religião, amor, moral, honra e afins sem que se tenha estado realmente inserido em quaisquer dessas situações. Quando se faz isso, simplesmente trabalha-se com símbolos. Explica-se algo sem conhecê-lo. É por isso que grande parte do pensamento contemporâneo é, estritamente falando, pensamento sobre nada — todo o mecanismo do pensamento ocupado em trabalhar num vácuo. A outra objeção é a seguinte, vamos voltar para o galpão: eu poderia ter desprezado o que vi quando olhei através do feixe (i.e., o movimento das folhas 71


M E D I TA Ç Ã O N O G A L PÃ O D E F E R R A M E N TA S

e o sol), sob o fundamento de que era “realmente apenas uma faixa de luz empoeirada em um galpão escuro”. Ou seja, eu poderia ter estabelecido como “verdadeira” minha “visão lateral” do feixe. Entretanto, aquela visão lateral é, ela mesma, um exemplo da atividade que chamamos de ver, e este novo exemplo poderia também ser olhado de fora. Eu poderia permitir que um cientista me dissesse que o que parecia ser um feixe de luz em um galpão era, “na realidade, apenas uma agitação dos meus próprios nervos ópticos”. E isso seria tão bom (ou tão ruim) quanto a desmistificação anterior. A imagem do feixe no galpão teria agora que ser desprezada, assim como a imagem anterior das árvores e do sol. E então, onde estamos? Em outras palavras, pode-se sair de uma experiência apenas para se entrar em outra. Portanto, se todas as experiências internas são equívocos, estamos sempre equivocados. O fisiologista do cérebro pode dizer, se quiser, que o pensamento do matemático é “apenas” pequenos movimentos físicos da massa cinzenta. Mas, então, o que dizer sobre o pensamento do próprio fisiologista naquele mesmo momento? Um segundo fisiologista, olhando para ele, poderia afirmar que também se trata apenas de um pequeno movimento em seu crânio. Aonde tal insensatez iria acabar? A resposta é que nunca devemos permitir que a insensatez comece. Devemos, sob pena de obtusidade, negar desde o início a ideia de que olhar-para, por sua própria natureza, é intrinsecamente mais correto ou melhor do que olhar-através. Devemos tanto olhar-para quanto olhar-através. Em casos específicos, vamos encontrar razões para considerar esta ou aquela visão como inferior; por exemplo, da forma mencionada, a visão interna do pensamento racional deve ser mais verdadeira que a visão externa, que vê apenas movimentos da massa cinzenta, porque, se a visão externa for a correta, tudo o que se pensa (e o próprio pensamento, em si mesmo) não teria valor, e isso é autocontraditório, não se pode ter uma prova de que nenhuma prova tem importância. Por outro lado, a visão interna da dança do selvagem para o Nyonga deve ser enganosa, pois encontramos razões para acreditar que as safras e os bebês não são real72


C.S. LEWIS

mente afetados pela dança. Na verdade, devemos tomar cada caso por seu próprio caráter inerente, mas devemos começar sem preconceitos a favor ou contra qualquer tipo de olhar. Não sabemos com antecedência se o amante ou o psicólogo estão dando a explicação mais correta sobre o amor, ou se ambas as explicações são igualmente corretas de diferentes maneiras, ou se ambas estão igualmente erradas. Nós apenas temos que descobrir. Todavia, o tempo da coação tem que acabar.

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JUAN JOSÉ SAER *

FOTOFOBIA título original: FOTOFOBIA tradução: HUGO CREMA

Juan José Saer (Serodino, Argentina, 1937 - Paris, 2005) é conhecido no Brasil mais por suas colunas de jornal e por seus romances estudados em poucos departamentos de letras do que por seus contos, sua poesia ou seu ensaio, áreas em que também foi prolífico e de convicções éticas e estéticas densas. Em começo de carreira, uma bolsa de estudos o levou a morar fora da Argentina, o que nunca o impediu de ambientar seus livros na sua província natal, Santa Fé. Apesar da paisagem, não é possível pensar que a obra seja tocada por qualquer matiz local ou anedótico. Na França, teve oportunidade de se desvincular da cena literária argentina, mantendo correspondência com Ricardo Piglia, Hugo Gola e poucos mais, e travando breve contato com autores ligados ao Nouveau Roman. Sua influência alcança autores argentinos hoje, como Sérgio Chejfec. O conto Fotofobia foi publicado em 1966 no livro Unidad de Lugar, sua epígrafe atesta a admiração de Saer por Carlos Drummond de Andrade. Hugo Crema (Brasília, 1990) é ficcionista. E-mail: hugo.crema@gmail.com


Fotofobia © Juan José Saer

A

frescura do porão era como um núcleo de sombra pré-solar, e tinha um cheiro denso, misto, cheio de estímulos que lhe serviram para recordar cheiros antigos, tão vagamente que foi impossível determinar de que classe eram. Ficou um momento indecisa no topo da escada, porque ainda se sentia fraca. Inspirou com força, não porque fosse agradável, mas porque imaginou que ao se deixar dissolver por esse cheiro cheio de ecos poderia compreendê-lo melhor. Não aconteceu nada, a não ser vagas reminiscências de coisas conhecidas pela metade que a desconcertaram ainda mais. Mas ela não perdia nada com esse estranhamento: estava perfeitamente bem. “Estou perfeitamente bem”, pensou. “Tenho só fraqueza.” Desceu o resto dos degraus e zanzou pela penumbra fria do porão, tateando com placidez no escuro, sorrindo suavemente, pensando “Estou fraca, nada mais”; e quando se sentiu cheia de frescor, atravessada por essa sombra fria que o sol de janeiro não tinha podido nem tocar, parou de dar esses passos lentos e frágeis pelo porão e se deteve no meio dele, até que seus frios olhos azuis começaram a discernir os contornos confusos dos trastes amontoados. Os ratos faziam ranger a madeira podre dos móveis abandonados. Mas ela estava bem, “Estou perfeitamente bem”, pensava, “porque não tenho mais fraqueza”. Ficou no porão por volta de meia hora; depois subiu. O sol tinha como que mergulhado a casa numa luz zenital, cheia de reflexos ardentes. Infiltrava-se pelas vidraças que davam no pátio e projetava uns desenhos loucos, brilhantes e incompreensíveis sobre o piso e a mesa. Mas María Amelia tinha tomado banho uma hora antes. “Acabo de tomar banho pela primeira vez desde sábado”, pensou. “De água fria”, e além disso aca75


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bava de se deixar penetrar pelo frescor do porão, e sentia seus próprios cabelos úmidos caindo sobre seus ombros como um jorro de água límpida, dourada. Olhou seu pulso, ao qual se grudava o curativo cujas bordas estavam esfiapando e cuja superfície pretejava lentamente. Não fez o menor gesto; pensou simplesmente em como era boba, e depois foi à geladeira, apanhou um pêssego, lavou na pia da cozinha e foi comendo a mordidas lentas até não sobrar mais do que o caroço, duro, vermelho e refratário, envolvido apenas por uns filamentos exangues de polpa amarela. María Amelia jogou o caroço no lixo e lavou as mãos. Cada vez se sentia menos fraca, como se o sangue reabilitado, — o sangue novamente a misturar, purificar, distribuir e filtrar, recôndito e portanto a salvo do sol de janeiro — tivesse ido se revigorando com os primeiros movimentos do corpo que o produziu. Por isso os movimentos com que tirou a blusa, e vestiu o leve, limpo e engomado vestido branco e de uma peça só, pouco decotado, gestos familiares, foram rápidos, firmes e cheios de destreza. A luz solar não chegava no quarto, mas sua atmosfera pesada lhe desagradou e machucou. Tinha passado dias demais ali dentro, já não conseguia suportá-la. A cama estava desarrumada e em cima da mesinha de cabeceira do seu lado havia remédios, copos e uma colherinha sobre a qual voejava uma mosca. Em cima da mesinha de cabeceira do lado do Rafael não havia nada, a não ser um cinzeiro cheio de bitucas e cinzas e “A Pequena Crônica”. “Por que será que ele leva sempre a “Pequena Crônica” para cama?”, pensou María Amelia. E em seguida: “Agora vou fumar meu primeiro cigarro”. Acendeu no cômodo que dava para o pátio, rodeado pela explosiva luz zenital, e os dois primeiros tragos deram enjoo e a obrigaram a se sentar. O tecido marrom da cadeira estava quente, e isso desagradou. Mas ver os arabescos azuis da fumaça atravessada pelos raios de sol — a fumaça do primeiro cigarro depois de todos esses dias (“Como pude ser tão idiota?”) era um espetáculo extraordinário, cheio de plenitude e felicidade. Contemplou a fumaça por um longo tempo sem perceber o calor crescente em que a luz de janeiro mergulhava o cômodo. Sua testa começou a brilhar. Não percebeu isso também. Estava ocupada 76


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pensando no sangue que se renovava continuamente e no mistério que era tudo isso, esse trabalho extrassolar, nas grutas escuras e frias de sua parte interna, até o ponto em que apagou mecanicamente o cigarro contra um cinzeiro e os arabescos de fumaça azul que contemplava absorta, com os olhos muito abertos, se dissolveram sem que ela reparasse, de uma maneira terrivelmente lenta. Olhou-se várias vezes no espelho largo do guarda-roupa penteando a água limpa do cabelo e de vez em quando alisando o vestido branco de vez, se olhando de frente e de costas. Pela primeira vez sentiu nojo do curativo sujo e esfiapado cujo aspecto contrastava demais com a brancura do vestido. Se pelo menos tivesse arrancado, mas estava se sentindo calma e tranquila demais para cometer um ato assim tão indevido e violento. Demorou-se recolhendo uma a uma as coisas que foi guardando na carteira grande de palhinha trançada, que combinava com as sandálias. Pôs dinheiro, chaves, cigarros, fósforos, papel higiênico; passou pela biblioteca e se deteve um bom tempo frente aos livros alinhados, sem olhar nenhum em especial, até que viu de surpresa a lombada cinzenta de Madame Bovary e a tirou da estante. Depois pensou que não leria, que não ia fazer a mesma coisa que Rafael com a sua “Pequena Crônica” e deixou o livro no lugar. Teve sorte, porque não viu as manchas úmidas que tinham se formado em suas axilas, mas quando saiu à rua ficou cega com as primeiras centelhas de sol. “É que estou fraca demais”, pensou, fechando a porta da rua com chave. Era meio-dia cravado. O bairro estava completamente deserto. As duas fileiras intermináveis de casas de um ou dois andares, separadas pela rua de pedra, não projetavam nenhuma sombra. Quando começou a caminhar pela calçada de ladrilhos cinzentos — um cinza esmaecido e calcinado — María Amelia não ouviu nada mais do que o estalo das sandálias e o as batidas opacas da carteira de palhinha trançada que estava pendurada no braço contra a parte posterior de sua coxa direita. A sombra que seu corpo projetava sobre os ladrilhos era disforme e contrafeita, devido à posição do sol. Tinha silêncio demais para o seu gosto, mas quando chegou à primeira esquina e um automóvel branco que brilhava buzinou duas vezes, pensou que no fim das contas o silêncio não era de 77


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todo mau, e que quando chegasse ao centro — se é que chegava, porque sua caminhada não era regida por nenhum plano específico a não ser o de sair de casa depois de tantos dias, agora que Rafael tinha se atrevido a deixá-la sozinha para viajar a Rosario, questão de arrumar de uma vez por todas o negócio do concerto — se é que chegava, teria ruído e movimento de sobra. Nenhum tipo de brisa soprava. A não ser o do seu corpo, que atravessa o ar pesado e quente, nem o menor movimento era perceptível. Começou a sentir com nitidez o ritmo que se apoderava de seus membros, suas pernas, seus braços e sua cabeça, como se o sangue marcasse de dentro, com precisão e regularidade, cada um de seus movimentos. Teve a impressão de que nunca tinha se sentido tão bem, há muito tempo. Logo agora que esse ritmo tinha se apoderado dela, se dava conta de como tinha sido boba, do desprezo por si mesma com que tinha agido, e sabe-se lá que mais. Agora na borda do lábio superior uma gotinhas de suor se acumulavam, na borda do lábio duro e seco. Passou o dorso do dedo indicador e depois secou o dedo com o polegar. “Que umidade. Que horrível”, pensou. Os reflexos do vestido branco de linho cru, limpo e quebradiço, poderiam cegar quem contemplasse, isso se tivesse alguém para contemplar. Mas não havia ninguém; a cidade era como um corredor vazio, cujo teto de porcelana tivesse começado a incandescer. María Amelia atravessou a rua, pisando com as sandálias de palhinha trançada a sombra contrafeita pela direção da luz. As fachadas das casas dispostas nessas duas longas fileiras, de cores claras, a maioria branca, condensavam o resplendor áspero. Sobre os tetos, as antenas de televisão, nítidas e complexas, apareciam como que escurecidas pelo contraste com a luz do sol. Suas silhuetas pareciam borradas por resplendor transparente. María Amelia pousou a palma da mão no topo da sua cabeça, sorrindo, como se a si mesma com esse gesto que já conhecia a fúria desse sol de janeiro, mas que se sentia invulnerável, a ponto de caçoar dele fingindo que protege a cabeça com a mão. Na calçada oposta apertou o passo sem deixar de sorrir, vendo como a sua própria sombra parecia ridícula, contrafeita pela posição do sol e além disso adulterada grosseiramente pela mão que tinha posto em 78


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cima da cabeça. Sua pele, que tinha embranquecido por causa dos dias que permaneceu de cama, começou a encher de pontos vermelhos nas bochechas afundadas e em volta dos frios olhos azuis. Os olhos pareciam embaçados, como quando alguém baforeja sobre um vidro transparente. Mas a mente de María Amelia estava ocupada em evocar a gruta fria do porão, essa sombra úmida que a tinha penetrado quando ainda mal tinha saído do banho — e tinha cedido ao prazer de deixar a água fria correr por um bom tempo sobre seu corpo nu. Podia voltar quando quisesse (“Está a três quadras, na minha casa”, pensou) e mergulhar nele, durante o tempo que quisesse (“Longe de todo mundo”, pensou) e quando Rafael voltasse de Rosario podia procurar pela casa toda chamando-a de sua abelhinha que não ia conseguir encontrá-la. Ergueu a cabeça, subitamente, e viu o sol áspero, cheio de duros reflexos, como uma rachadura fulgurante abrindo a porcelana baça do céu. A textura do sol resultou insuportável. Parecia haver mais de um. Pareciam dois ou três discos incandescentes e amarelos que flutuavam concêntricos sem terminar de se superpor uns aos outros e se unificar de uma vez por todas. Baixou a cabeça. Durante uns metros caminhou de olhos fechados e sorriu, comprovando que o ritmo que tinha se apoderado de seu corpo persistia, dando coesão e unidade, permitindo pensar sobre as suas pernas “a esquerda, a direita, a esquerda agora, a direita agora”, sentindo ao mesmo tempo o rumor das solas das sandálias contra os ladrilhos cinzentos da calçada e as batidas opacas, surdas, da carteira de palhinha trançada contra a parte posterior de sua coxa direita. De súbito lembrou do poço do sítio em Colastiné: no fundo, a penumbra era verde e subia frescor da escuridão, e se alguém deixasse cair uma pedra, teria tempo de fechar os olhos, sorrir, virar a cabeça, bem lentamente, antes de finalmente ouvir o som cheio de ecos da pedra batendo na água. Por fim, dobrou numa transversal arborizada: sua própria sombra se esfumava nas sombras das árvores. Era um prazer vê-la borrando e reaparecendo corroída no chão, projetado por efeito dos raios de sol que se infiltravam pelas copas das árvores. O sol resplandecia entre as folha verdes. Por um momento, 79


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olhou para ele sem parar de caminhar, de cabeça erguida, cheia do ritmo que tinha se apoderado dela, de tal forma que todo o verde das copas das árvores atrás das quais o sol e o céu baço eram percebidos como uma miríade fixa e meio pétrea, parecida com a de um mosaico despedaçado e restaurado de maneira imperfeita, davam a impressão de estar se deslocando lentamente para trás, inertes e unificados. De um modo mecânico, María Amelia, levou a mão à carteira grande de palhinha trançada e abriu, apalpando o interior a procura dos óculos escuros. Não encontrou. Uma rigidez leve e breve na cara foi tudo o que lhe acometeu ao comprovar que não tinha colocado os óculos na carteira. Nessa hora percebeu que até esse momento tinha confiado secretamente neles, que até o último sábado tinha usado desde o começo do verão e que agora tinha percorrido quase seis quadras e não ia voltar para buscá-los. “Só tenho fraqueza e nada mais”, pensou, com um fulgor rente aos olhos. “Tudo foi e continua sendo só fraqueza.” Lembrou de que leu alguma coisa uma vez, não sabia bem o que, onde um monge testava quanto tempo ele próprio conseguia resistir com a mão sobre uma chama. Pôr a mão sobre uma chama significava ao mesmo tempo não só testar o quanto ele mesmo podia resistir, mas também significava exprimir o desejo secreto de se queimar. Na primeira esquina se livrou da rua arborizada e continuou caminhando em pleno sol. O cabelo loiro começou a ficar úmido nas têmporas. A cara estava cada vez mais vermelha, com uns círculos avermelhados em torno dos olhos, e o ritmo que a tinha tomado um momento antes acabava de desaparecer. Agora percebia somente o silêncio e a luz solar, e ressaltando contra o silêncio, o estalo das sandálias contra os ladrilhos cinzentos ecoando alternadamente por causa das batidas surdas da carteira contra a parte posterior de sua coxa direita. Sua mente se esvaziou de súbito: mas antes que fosse ocupada pela incandescência branca e incondicional, ouviu pela última vez a batida cheia de ecos na escuridão verde do fundo do poço e depois o silêncio que seguiu, carregado de ressonâncias compreendidas pela metade, como as do cheiro denso do porão. Por fim estacou, se apoiando a uma parede branca, o monte disforme e obediente da sua sombra antecedendo. Era 80


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um muro reto, de dez metros de comprimento e quase três de altura, calado, em cuja superfície María Amelia depositou a palma da mão esquerda e percebeu a textura áspera, rugosa e quente. Depois virou o corpo e apoiou as costas contra o muro, erguendo a cabeça, com os olhos semifechados. Abriu os olhos e virando a cabeça observou que o muro terminava num portão alto e cinzento com duas vidraças retangulares de vidro jateado na parte superior. Em cima da sua cabeça, contra o muro branco, umas letras grandes de ferro preto, dispostas horizontalmente e bastante separadas entre si, formavam a palavra FUNDIÇÃO. De costas contra a parede, María Amelia pensou que devia encarar o sol (“Agora ergo a cabeça, devagar, agora”), e ao abrir os olhos com cabeça erguida pôde ver, outra vez, por um segundo, os pétreos discos dourados e incandescentes despejando chamas que corroíam as bordas de um céu baço. O fulgor do céu obrigou a fechar os olhos outra vez e estava pensando em abri-los de novo para agora resistir tudo quanto fosse possível, quando ouviu ressoar o portão metálico e virou de súbito a cabeça e justamente viu o homem que a contemplava perplexo da calçada. O homem também projetava uma sombra disforme sobre os ladrilhos que, diferentemente dos do resto da quadra, não eram cinzentos mas brancos, e maiores e mais lisos, cheios de pequenos veios negros. O homem não vestia mais do que uma calça e deixava a mostra um peito cheio de cabelos grisalhos que iam raleando conforme se aproximavam do grande abdômen. A olhava com curiosa perplexidade. María Amelia se apoiou contra a parede e levantou a perna esquerda fingindo que arrumava a sandália de palhinha trançada e depois se afastou na direção contrária à do homem. Sentia os olhos úmidos e o olhar do homem cravado nela. Ao chegar à esquina, virou a cabeça por um instante e viu que o homem fazia para ela sinais incompreensíveis. Dobrou a esquina e entrou em outra transversal arborizada. A sombra das árvores não produzia nenhum frescor. A gradual proximidade do centro fazia com que o silêncio e a solidão fossem menores, mas a sensação de estar atravessando uma longa, complexa e sólida construção deserta não abandonou María Amelia. As poucas pessoas que passavam pareciam estar per81


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correndo a rua pela última vez, como se se tratasse do último dia do tempo. Agora viu que sua sombra tinha crescido, pela extensão dos fragmentos que se borravam e reapareciam nos ladrilhos cinzentos, por cima da sombra mais ampla e mais complicada das árvores. O sol, portanto, tinha começado a baixar. Andou por mais ou menos mais meia hora até chegar ao centro. De tanto soar o tempo todo, María Amelia deixou de escutar os ruídos das sandálias e da carteira. Quando entrou em cheio no centro, seu passo ficou mais lento e sustentava o pulso da mão esquerda com a mão direita, à altura da barriga. Com a ponta do polegar da mão direita acariciava sem parar a borda esfiapada e suja do curativo. Tinha passado o momento em que o sol estava alto, e ela tinha atravessado esse momento em que a incandescência branca tinha inundado sua mente, instalando-se ali, mas agora o sol baixava e continuaria baixando até que o crepúsculo o esfriasse e a noite chegasse. “Não posso esquecer os óculos escuros. Não posso esquecer os óculos escuros”, pensou. Entrou no bar Montecarlo, que estava vazio ou na penumbra, os janelões protegidos por cortinas azuis quietas. Abriu enormemente os olhos para ver melhor na penumbra, mas bateu numa cadeira com o lado do corpo e tropeçou. Sentou em seguida, deixando a carteira em cima da mesa. Ficou um momento pensativa, brincando com as bordas sujas do curativo, até que de um modo súbito se deu conta do borrão branco do fraque do garçom, que se encontrava de pé ao lado e a contemplava. María Amelia ergueu para ele a cara apavorada. — Não — disse. — É fraqueza e nada mais.

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COLETTE *

EPITÁFIOS título original: ÉPITAPHES tradução: FLÁVIA MARIA NASCIMENTO

Sidonie-Gabrielle Colette foi uma escritora francesa nascida em 1873 e falecida em 1954. Suas obras permeiam certo cunho autobiográfico nos quais relata observações sobre relacionamentos. Colette foi presidente da Académie Goncourt em 1949. O conto “Épitaphes” foi publicado na obra La Maison de Claudine, de 1922. Flávia Maria do Nascimento é graduanda em Letras – língua francesa.


Epitáfios Colette

Q

uem era Astonifronque Bonscop quando estava vivo? Meu irmão virou a cabeça, cruzou as mãos em volta de seu joelho, piscou os olhos para então detalhar, vindo de um longínquo inacessível ao vulgar olhar humano, os traços esquecidos de Astonifronque Bonscop.— Era o declamador da cidade, mas em casa trançava cadeiras de palha. Era um sujeito gordo... não muito interessante, bebia e batia em sua esposa. — Então por que puseste “bom pai, bom esposo” em seu epitáfio? — Porque é o que se põe quando as pessoas são casadas. — Quem mais morreu desde ontem? — A Senhora Egremimi Pulitien. — Quem era Senhora Egrelimu? — Egremimi, com um ‘i’ ao final. Uma senhora assim, sempre vestida de negro e de luvas de linho. E meu irmão se calou, assoviando entre os dentes irritados com a ideia das luvas de linho friccionando sobre as pontas das unhas. Ele tinha treze anos e eu sete. Com seus cabelos cortados aos moldes de tigela e olhos de um azul pálido, se parecia como um jovem modelo italiano. Era de extrema doçura e totalmente irredutível — A propósito, — ele retoma — esteja pronta amanhã às dez horas. Há um trabalho a ser feito. — Que trabalho? — Um trabalho pelo repouso da alma de Lugustu Trutrumeque. — O pai ou o filho? 84


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— O pai. — Às dez horas eu não posso, estarei na escola. — Azar o teu, não verás o trabalho. Deixa-me sozinho, preciso pensar no epitáfio da Senhora Egremimi Pulitien. Apesar de o aviso ter soado como uma ordem, segui meu irmão até o celeiro. Sobre um cavalete, ele cortava e colava as folhas de papelão branco em forma de ladrilhos nivelados, de lápides arredondadas ao alto, de mausoléus retangulares ao pé de uma cruz. Ainda, em tipografias decoradas, pintava com tinta chinesa os epitáfios breves ou longos que perpetuavam, em puro estilo “marmorista”, os pesares e virtudes de um suposto ser. “Aqui repousa Astoniphronque Bonscop, falecido no dia 22 de junho de 1874 aos cinquenta e quatro anos de idade. Bom pai, bom esposo. O céu o esperava, e a terra o lamenta. Rezemos por ele.” Estas pequenas linhas cruzavam em negro uma pequena lápide em forma de porta romana, com saliências que simulavam aquarela. Um suporte, semelhante aos que asseguram o equilíbrio de cavaletes de quadro, o inclinava graciosamente para trás. — É um pouco seco. — disse meu irmão. Mas, se tratando de um declamador... Farei melhor para a Senhora Egremimi. Ele me permitiu ler um fragmento: — “Ó tu, modelo das esposas cristãs! Morres aos dezoito anos, quatro vezes mãe! Os gemidos lacrimejantes de teus filhos não te detiveram! Tua jovem paixão decadente, teu esposo procura em vão o esquecimento...”. Cá estou. — Começa bem. Ela tinha quatro filhos aos dezoito anos? — Como eu disse. — E sua paixão decatente? O que é paixão decatente? Meu irmão deu de ombros. — Não podes entender, tens apenas sete anos. Põe a cola em banho-maria. Prepara duas pequenas coroas de pérolas azuis para a tumba dos gêmeos Aziourne, que nasceram e morreram no mesmo dia. — Ó! Eles eram adoráveis? 85


COLETTE

— Muito adoráveis, — disse meu irmão. — Dois meninos louros idênticos um ao outro. Eu fiz uma coisa diferente para eles. Duas colunas talhadas de rolos de papelão, eu imito o mármore em cima e penduro as coroas de pérolas. Ah! Minha cara... Ele assobiou de admiração e trabalhou sem sequer falar. Em volta dele, no celeiro, se afloravam pequenas tumbas brancas, um cemitério para grandes bonecas. Sua mania não comportava qualquer paródia infame, qualquer coisa de macabro. Ele nunca havia laçado abaixo do queixo os laços de um avental de cozinha para simular uma batina cantando Dies irae. Mas amava os cemitérios como outros amam os jardins franceses, os espelhos d’água ou os chafarizes. Partia a passos rápidos para visitar, a quinze quilômetros dali, os cemitérios de vilarejos. Assim me contara como um explorador. — Em Escamps, minha cara, é chique. Há um tabelião enterrado em uma capela, grande como a cabana do jardineiro, com uma porta de vitral, por onde se vê um altar, flores, uma almofada no chão e uma cadeira em tapeçaria. — Uma cadeira? Para quem? — Para o defunto, eu presumo, quando ele retorna à noite. Ele havia conservado desde a mais tenra infância esta doce aberração, esta pacífica selvageria que guarda a jovem criança contra o medo da morte e do sangue. Aos treze anos, ele não fazia grande distinção entre um vivo e um defunto. Enquanto que minhas brincadeiras evocavam diante de mim personagens imaginários, transparentes e visíveis, aos quais saudava e perguntava as boas novas de seus próximos, meu irmão, inventando dos mortos, os tratava com toda cordialidade, como amigos próximos. Um usando uma cruz branca em ramos de luz, outro deitado sobre seu arco gótico, e aquele coberto pelo único epitáfio que louvara sua vida terrestre. Veio o dia em que o chão bruto do celeiro não era suficiente. Meu irmão queria honrar suas tumbas brancas, a terra macia e perfumada, o gramado verdadeiro, a hera, o cipreste... No fundo do jardim, atrás de um pequeno bosque de arbustos, alojou seus defuntos de nomes sonoros, cujas hordas transborda86


E P I TÁ F I O S

vam sobre a grama, semeada de cabeças preocupadas e pequenas coroas de pérolas. O competente coveiro piscou seu olho de artista. — Como fica bonito! Após uma semana, minha mãe passou por lá, parou, compreendeu, olhou com todos os seus olhos — um binóculo, um monóculo, e óculos para longe — e gritou de horror, violando com os pés todas as sepulturas... — Essa criança acabará em um hospício! Isso é delírio, é sadismo, vampirismo, sacrilégio. Isso é... Eu mal sei o que é! Com o olhar, ela contemplava o culpado por cima do abismo que separa um adulto de uma criança. Por fim, ela recolheu com um ancinho irritado, ladrilhos, coroas e colunas talhadas. Meu irmão sofreu sem protestar enquanto jogassem sua obra na lama, e, diante do gramado nu, diante da cerca de arbustos que projetava sua sombra na terra recentemente abalada, ele me levou a testemunhar, com uma melancolia de poeta: — Não achas triste um jardim sem tumbas?

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GENE WOLFE *

O DEUS E SEU HOMEM título original: THE GOD AND HIS MAN tradução: TIAGO KROICH

Gene Wolfe é um escritor americano de ficção científica e fantasia. Ganhador seis vezes do prêmio literário Locus, duas vezes do Nebula e nomeado ao Hugo oito vezes, é mais conhecido pela série de livros conhecida como Solar Cycle, em especial a tetralogia The Book of the New Sun, e pelo conto The Fifth Head of Cerberus. Foi editor da revista Plant Engineering. Formado em engenharia industrial pela Universidade de Houston, também é conhecido por suas contribuições à máquina usada pela Pringles no processamento de batatas fritas. O conto The God and His Man foi publicado pela primeira vez em 1980 na Isaac Asimov’s Science Fiction Magazine e incluído na coletânea de contos Endangered Species, de 1989 e em The Best of Gene Wolfe, 2009. Tiago Kroich é estudante.


O Deus e Seu Homem © Gene Wolfe

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á muito, muito tempo, quando o Universo era antigo, o incrível e poderoso deus Isid Iooo IoooE, cujo nome é versado de outra maneira por outros, e que está destinado a fazer, em todos os tempos e lugares, somente aquilo que é bom, veio ao mundo de Zed. Como é sabido por todos os homens, tais deuses viajam em embarcações que não conhecem o naufrágio – e como poderiam, se eternamente os deuses permanecem despertos e com as mãos ao leme? Ele veio, vos digo, ao mundo de Zed, mas não aportou nem pousou, pois não cabe aos deuses (conforme a vontade de seus criadores, que há muito lhes regraram) se enveredar por qualquer mundo, por mais celestial ou tranquilo que seja. Portanto, Isid Iooo IoooE permaneceu sobre os céus, e sua embarcação, embora mais rápida que o vento, pairava de tal forma a ficar completamente suspensa – algo que as próprias estrelas, com suas muitas cores, não podem – sobre aquela ilha de Zed que os homens de Zed (pois são homens, ou quase) chamam de Terra. Então o deus contemplou Zed, e vendo que os homens de Zed eram homens e suas mulheres eram mulheres, convocou um certo homem de Urth. Os chamados de Isid Iooo IoooE não podem ser ignorados. — Homem, — disse o deus, — vai ao mundo de Zed. Pois vê: os homens de Zed são como és, e suas mulheres são mulheres. — Então fez com que o Homem enxergasse através de seus olhos, e o Homem viu os homens de Zed, como arrebanhavam o gado e aravam a terra e batiam os pequenos tambores de Zed. E viu as mulheres de Zed, como muitas eram belas, e como viviam em mágoa e ócio, ou em trabalho e cansaço, tal como as mulheres de Urth.


O DEUS E SEU HOMEM

O Homem disse ao deus: — Se quero um dia voltar para casa, para minhas mulheres e minhas crianças, devo fazer como me ordenas. No entanto, se for como sou, jamais as verei novamente. Pois os homens de Zed são homens – tu mesmo o disseste – e, portanto, mais cruéis que qualquer besta. — É esta crueldade que devemos extinguir, — disse o deus. — E para que bem me aconselhes com teus relatos, algumas dádivas te aguardam. — Então o deus deu ao Homem o manto encantado Tarnung, com o qual ninguém o veria, a não ser que assim desejasse, e deu ao Homem a espada encantada Maser, cuja lâmina se alonga conforme a vontade de seu mestre (embora não pese nada) e contra a qual nem mesmo a rocha resiste. Assim que o Homem vestiu o manto Tarnung sobre seus ombros e empunhou a espada Maser, o deus desapareceu, e ele se viu sentado em um bosque de flores escarlates. O tempo, para os deuses, não é o mesmo que para os homens e mulheres. Quem dirá por quanto tempo o Homem vagou pela Terra em Zed? Vagou pelas terras quentes e altas onde os homens têm poucas leis e muitos escravos. Lá enfrentou muitas batalhas, até aprender todos os costumes de guerra do povo das terras quentes e altas e tomar vergonha por matar aqueles homens com a espada Maser; então adotou a espada curvada daquelas terras, guardando a espada Maser. Atraiu para junto de si a companhia de uma centena de homens selvagens, bandidos, e escravos que mataram seus mestres e fugiram, e assassinos de todo tipo. Ele os armou à maneira das terras quentes e altas, e lhes ofereceu a montaria dos camelos amarelos daquela terra, que amiúde esmagavam homens com seus pescoços; e os liderou em muitas guerras. Seu rosto era como o rosto de outros homens, e sua espada como a espada deles; não era mais alto que eles, e seus ombros não eram mais largos; no entanto, por ser astuto e por vezes desaparecer do acampamento, seus seguidores o veneravam. Por fim enriqueceu, e construiu uma fortaleza na segurança das montanhas. Ficava no topo de um penhasco e era cercado de poderosas muralhas. Mil 90


GENE WOLFE

lanças e mil feitiços a guardavam. Dentro havia domos brancos e torres brancas, uma centena de fontes, e jardins que subiam as montanhas, para depois descê-las como sorridentes crianças saltando de cachoeiras. Lá sentava o Homem com conforto, trocando histórias com seus capitães de suas inúmeras batalhas. Lá escutava os passos de suas dançarinas e os sons da chuva, e meditava sobre suas pernas fartas e seus rostos sorridentes. E enfim cansou-se destas coisas e, encobrindo-se com seu manto Tarnung, desapareceu e nunca mais foi visto naquela fortaleza. Então vagou pelas terras fumegantes, onde as árvores eram mais altas que suas torres e os homens são temerosos e, das sombras, atiram pequenas flechas envenenadas, menores que um palmo. Por muito tempo o Homem vagou, coberto sempre de seu manto Tarnung, pois espada alguma pode contra tais flechas no pescoço. O peso da espada curvada tornara-se opressivo, e o calor das terras fumegantes enferrujara sua lâmina, então um dia ele a jogou em um rio vagaroso onde crocodilos negros nadavam e hipopótamos de olhos cor-de-âmbar flutuavam como troncos ou urravam como trovões. Mas o Homem não se desfez da espada mágica Maser. E nas terras fumegantes o Homem observou as peculiaridades das grandes árvores, segundo as quais cada uma é uma ilha, com seus próprios habitantes; e estudou os segredos das bestas de Zed, cuja astúcia é tão menor que a inteligência dos homens, e cuja sabedoria é tão maior. Lá domou uma pantera cujos olhos eram como três esmeraldas, e que passou a segui-lo como um cão e matar por ele como um falcão; e quando chegou a uma vila dos homens das terras fumegantes, pulou de um galho alto para cima da cabeça de uma estátua, pôs abaixo a cabana do líder com a espada Maser, e desapareceu de vista. Quando retornou à vila um ano depois, a antiga estátua estava destruída, e uma nova estátua fora erguida, com um raio à mão e uma pantera aos pés. Então seguiu para dentro da vila e abençoou todo seu povo, e fez do colo da estátua seu novo trono. O Homem montou um elefante com marfim vermelho-sangue e duas trombas; suas canoas-de-guerra percorriam o rio com uma 91


O DEUS E SEU HOMEM

centena pés; seus tambores eram tocados com os ossos de líderes; suas esposas eram protegidas do sol para que sua beleza pálida o seduzisse a voltar para a cabana à noite e suas peles frescas lhe dessem sossego mesmo nas terras fumegantes, e eram nutridas de azeite e farinha para que o Homem se deitasse sobre elas como sobre almofadas de seda. E assim permaneceria, não fosse um sonho da noite, em que o deus Isid Iooo IoooE aparecera e lhe ordenara viajar e conhecer as terras frias. Lá percorreu mil estradas lamacentas e beijou lábios suaves em uma centena de jardins chuvosos. O povo das terras frias não possuía escravos e tinha muitas leis, e sua justiça fascinava os estrangeiros, e assim foi que o Homem achou o pão das terras frias duro e escasso, e limpou botas por comida; e por muito tempo cavou valas para escoar os campos. E a cada dia a nave de Isid Iooo IoooE circulava Zed, e quando fizera umas tantas centenas de voltas, Zed circulou seu sol solitário, e circulou outra vez, e ainda outra vez, e mais uma vez, até que a barba do Homem embranqueceu, e a astúcia, que lhe ganhara batalhas nas terras quentes e altas e pusera abaixo a estátua nas terras fumegantes, foi sucedida por algo melhor e menos útil. Um dia, cravou a lâmina de sua pá na terra e virou as costas. Em um bosque, o Homem sacou a espada Maser (a qual não desembainhara há muito tempo, e temia que seu encantamento não fosse senão um sonho que tivera quando jovem) e cortou uma pequena árvore. Fez dela um cajado e tomou a estrada outra vez, e quando as folhas murcharam – o que ocorria lentamente naquela terra fria e úmida – cortou outra, e depois outra, para que sempre discursasse à sombra de seu cajado verdejante. Na praça pública o Homem falou de honra, e de como é uma lei superior a qualquer outra lei. Na encruzilhada falou de liberdade, da liberdade que têm os ventos e as nuvens, da liberdade que ama a todas as coisas e desconhece a culpa. Ao lado dos portões da cidade contou histórias de cidades esquecidas que foram e de cidades esquecidas que seriam, se os homens as esquecessem. 92


GENE WOLFE

Muitas vezes o povo das terras frias tentou aprisioná-lo de acordo com suas leis, mas o Homem desaparecia sem deixar rastros. Muitas vezes zombavam dele, mas o Homem apenas sorria diante do deboche que não conhecia nenhuma lei. Muitos jovens das terras frias o ouviam, e muitos fingiam seguir seus ensinamentos, e alguns de fato seguiram-nos e viveram vidas estranhas. Então veio uma noite em que os primeiros flocos de neve começaram a cair, e nessa noite o deus Isid Iooo IoooE o levantou como um titereiro levanta uma marionete. Alguns de seus amigos estavam abrigados do vento e lhes pareceu que uma rajada de neve cintilante caiu de repente sobre o Homem, que logo em seguida não estava mais ali. Ao Homem, no entanto, pareceu, ao estar novamente na presença do deus Isid Iooo IoooE, que acordara de um longo sonho; suas mãos novamente tinham força, sua barba era negra, seus olhos recobraram a clareza, embora não sua astúcia. — Diz-me agora, — ordenou Isid Iooo IoooE, — tudo que viste e tudo que fizeste, — e quando o Homem lhe disse, o deus lhe perguntou: — Qual destes três povos melhor te amou, e por que o amaste? O Homem pensou por um tempo, assentando o manto em cima de seus ombros, pois lhe parecia frio no interior da nave de Isid Iooo IoooE. — O povo das terras quentes e altas não é um povo justo, — disse. — No entanto acabei por amá-lo, pois entre eles não há falsidade. Entendem de banquetear com seus amigos e esfolar seus inimigos e, porque não confiam em ninguém, nunca lamentam uma traição. — O povo das terras frias é um povo justo, e ainda assim também acabei por amá-lo, embora tenha sido muito mais árduo. — O povo das terras fumegantes é um povo inocente quanto à justiça e à injustiça. Seguem seus corações, e enquanto vivi entre eles também segui o meu e os amei mais que aos outros. — Tens muito ainda a aprender, Homem, — disse o deus Isid Iooo IoooE. 93


GENE WOLFE

— Pois o povo das terras frias é o mais próximo de mim. Não entendes que no correr dos tempos as terras fumegantes, e toda a Terra de Zed, cairá perante um de seus grandes povos? Então, enquanto o Homem enxergava através dos olhos do deus, alguns homens bons nas terras frias morreram, o que homens chamaram de relâmpago. Alguns homens ruins também, e os homens falaram de doença. Sonhos ocorreram a mulheres, e fantasias a crianças; chuva e vento e sol não mais eram o que costumavam ser; e quando as crianças cresceram, os povos das terras frias foram para as terras fumegantes e lá construíram casas e muralhas, onde se assentaram em meio a poeira até morrerem. — Nas terras quentes e altas, — comentou o Homem, — o povo das terras fumegantes teria sofrido muito. Muitos deles possuí, trabalhando sob o chicote para construir minhas muralhas. E ainda assim cantavam quando podiam, corriam quando podiam, e roubavam minha comida quando não podiam. E alguns até engordaram assim. E o deus Isid Iooo IoooE respondeu: — Antes a morte de um homem, que sua escravidão. — Ainda assim, — o Homem respondeu, — tu mesmo o disseste. — E, brandindo a espada Maser, golpeou o deus, e Isid Iooo IoooE sucumbiu em fumos e chamas azuis. Se o Homem também sucumbiu, quem dirá? Faz muito tempo desde que o Homem foi visto na Terra de Zed, mas já outrora tinha o costume de desaparecer. Da fortaleza perdida nas montanhas, coberta de rosas, quem dirá quem a defende? Das pequenas flechas envenenadas, assassinas penumbrosas, quem dirá quem as lança? Das estradas lavadas pela chuva, que serpenteiam por entre cidades esquecidas, quem dirá que trilhas há lá? No entanto, é possível que tudo isso já tenha passado, pois são coisas de um tempo remoto, quando o Universo era antigo e havia mais deuses.

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H.P. LOVECRAFT *

A MALDIÇÃO DE SARNATH título original: THE DOOM THAT CAME TO SARNATH tradução: GEORGE AYRES MOUSINHO

H.P. Lovecraft (1890-1937), nascido em Providence, Estados Unidos, foi um escritor de contos de terror frequentemente associado com o movimento dos Weird Tales e dos contos de horror cósmico (também conhecido como Cosmicismo), uma filosofia literária por ele criada e referente ao medo alienígena e a efemeridade da existência humana no Universo. Lovecraft batalhou financeiramente para publicar seus contos, enfrentando também uma batalha dura contra o câncer de intestino que se arrastou até o seu leito de morte. Como legado, deixou dezenas de contos e cartas, além de um ensaio sobre a história da literatura de horror sobrenatural; seus escritos se estabeleceram como um marco do terror e da ficção científica, influenciando artistas como Stephen King e John Carpenter. “A Maldição de Sarnath” é um conto de horror cósmico publicado em 1920 na revista The Scot. O conto integra do Ciclo dos Sonhos (the Dream Cycle), uma mitologia ficcional criada pelo autor para simbolizar medos surreais da mente humana. George Ayres Mousinho é mestrando em literatura de língua inglesa, contista, pintor e um pessimista Lovecraftiano. E-mail: ayresmousinho@gmail.com


A Maldição de Sarnath H.P. Lovecraft

N

a terra de Mnar, há um vasto e ermo lago que não é alimentado por nenhum córrego, tampouco deságua em algum. Dez mil anos atrás, em suas margens se erguia a poderosa cidade de Sarnath, mas lá Sarnath não mais está. Reza a lenda que em tempos imemoriais, quando o mundo ainda era jovem, antes mesmo de os homens de Sarnath chegarem às terras de Mnar, outra cidade se localizava às margens do lago; a cidade de pedra cinzenta de Ib, tão antiga quanto o próprio lago, e habitada por coisas que não eram agradáveis de se ver. Estes seres eram deveras estranhos e feios, como o são seres de um mundo ainda inacabado e rudimentar. Está escrito nos ladrilhos cilíndricos de Kadatheron que os seres de Ib eram de tom verde como de um lago e a bruma que paira sobre ele; que possuíam olhos bojudos, lábios lânguidos e protuberantes, e orelhas peculiares, além de não possuírem voz. Também está escrito que descenderam da lua através de uma névoa em certa noite; com eles o vasto e ermo lago e a cidade de Ib com sua rocha cinzenta. Entretanto, é certo que cultuavam um ídolo cinzelado em uma pedra cor verde-marinha, o qual se assemelhava a Bokrug, o grande lagarto-d’água; diante de tal ídolo eles dançavam horrivelmente quando a lua se esgueirava. E está escrito no papiro de Ilamek que um dia descobriram o fogo, e a partir de então invocavam chamas em muitas ocasiões cerimoniais. Mas não muito está escrito sobre tais criaturas, porque viveram em tempos vetustos, e o homem é ainda jovem e sabe pouco das coisas vivas de tempos antigos. Muitos éons haviam passado quando homens chegaram à terra de Mnar; 96


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povos escuros e pastoris em seus bandos vestidos com lã, que construíram Thraa, Ilarnek e Kadatheron no sinuoso rio Ai. Certas tribos, mais resistentes do que o resto, avançaram à fronteira do lago e construíram Sarnath em um local onde metais preciosos haviam sido encontrados na terra. Não distante da cidade cinzenta de Ib as tribos nômades ergueram as primeiras rochas de Sarnath, e demonstraram grande admiração pelas criaturas de Ib. Mas em sua admiração ocultava-se um ódio, pois pensavam eles que não era possível que criaturas de tal aspecto andassem pelo mundo dos homens sob o crepúsculo. Tampouco apreciaram as estranhas esculturas sobre os monólitos cinzentos de Ib, pois tais esculturas eram terríveis por sua grande antiguidade. Não se sabe o porquê de tais seres e suas esculturas terem perdurado por tanto tempo no mundo, até mesmo a vinda dos homens; a menos que tenha sido pelo fato de a terra de Mnar ser muito erma, e remota das outras terras, fossem elas reais ou surreais. Quanto mais os homens de Sarnath observavam os seres de Ib, mais seu ódio crescia, e não por menos, porque achavam os seres fracos, e tenros como geleia ao toque de pedras e lanças e flechas. Um dia, os jovens guerreiros – com fundas, lanças, arcos e flechas – marcharam sobre Ib e exterminaram todos os seus habitantes, arremessando os estranhos corpos dentro do lago com longas lanças, porque não queriam tocá-los. E visto que eles não gostavam dos monólitos cinzentos de Ib, também os lançaram ao lago; espantados com o labor grandioso com o qual tais pedras foram trazidas de tão longe, como devem ter sido, visto que não há nada como elas em toda a terra de Mnar ou em terras vizinhas. Destarte, nada sobrou da antiquíssima cidade de Ib além do ídolo de pedra verde-marinho cinzelado nas formas de Bokrug, o lagarto-d’água. Os jovens guerreiros o levaram para Sarnath como símbolo de conquista sobre os deuses e os seres antigos de Ib, e como símbolo de domínio sobre Mnar. Mas na noite após o ídolo ser alojado no templo, algo terrível deve ter acontecido, pois luzes estranhas foram vistas sobre o lago, e pela manhã o povo não mais encontrou o 97


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ídolo, e o alto-sacerdote Taran-Ish estava morto, como que por um horror indizível. E antes de perecer, Taran-Ish havia rabiscado no altar de crisólita com linhas tortuosas e rudes a palavra MALDIÇÃO. Muitos altos-sacerdotes sucederam Taran-Ish em Sarnath, mas o ídolo de pedra verde-marinho nunca fora encontrado. Muitos séculos se passaram, nos quais Sarnath prosperara abundantemente, de forma que somente sacerdotes e velhas lembravam o que Taran-Ish havia riscado no altar de crisólita. Entre Sarnath e a cidade de Ilarnek surgira uma rota comercial, e os metais preciosos da terra eram trocados por outros metais e roupas raras e joias e livros e utensílios para artesãos e todas as coisas soberbas que eram conhecidas pelos povos que habitavam as margens do rio Ai e além. Então, Sarnath se tornara poderosa e sábia e bela, e enviara adiante exércitos conquistadores para subjugar as cidades vizinhas; e com o tempo, sentaram sobre o trono de Sarnath os reis de toda a terra de Mnar e de muitas terras vizinhas. A maravilha do mundo e o orgulho de toda a humanidade era Sarnath, a magnífica. Seus muros eram de mármore oriundo do deserto, de 300 cúbitos de altura e espessura de 75, para que bigas pudessem passar umas pelas outras quando dirigidas sobre a extensão dos muros. Por uma extensão de 49 milhas os muros corriam, abertos apenas face ao lago; lá onde um quebra-mar de rocha verde apaziguava as ondas que estranhamente surgiam uma vez ao ano, quando da celebração da destruição de Ib. Em Sarnath existiam cinquenta ruas do lago aos portões das caravanas, e mais cinquenta perpendiculares a elas. Eram pavimentadas com ônix, exceto aquelas por onde cavalos e camelos e elefantes passavam, as quais eram pavimentadas com granito. E os portões de Sarnath se assomavam às ruas que terminavam opostas ao lago, todos de bronze, e flanqueados por estátuas de leões e elefantes esculpidas de uma rocha não mais conhecida pelo homem. As casas de Sarnath eram de um tijolo esmaltado e de calcedônia, todas com seu próprio jardim murado e açudes de cristal. Eram construídas através de uma estranha arte, pois não havia casas como elas em nenhuma outra cidade; e viajantes de Thraa e Ilarnek e Kadatheron maravilha98


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vam-se com os domos fulgentes que galgavam toda a sua extensão. Mas mais admiráveis eram os palácios e os templos, e os jardins erigidos por Zokkar, o antigo rei. Havia muitos palácios, e os mais modestos eram mais robustos do que quaisquer outros em Thraa ou Ilarnek ou Kadatheron. Eram tão altos que aqueles que os adentrassem poderiam se imaginar abaixo apenas do céu; ainda assim, quando reluzidas por tochas acesas no óleo de Dothur, suas paredes revelavam vastas pinturas de reis e exércitos, de um esplendor imediatamente inspirador e assustador àquele que as observavam. Muitas eram as colunas dos palácios, todas de mármore pintado, e esculpidas com figuras de beleza eminente. E na maioria dos palácios, o piso mostrava mosaicos de berilo e lápis-lazúli e sardônica e carbúnculo e outros materiais; mosaicos tão bem arranjados que o observador poderia se imaginar caminhando entre canteiros das mais raras flores. E havia também fontes, as quais traziam águas perfumadas em belos esguichos adornados com uma arte suntuosa. Obscurecendo todos os outros palácios estava o palácio dos reis de Mnar e das terras vizinhas. Sobre um par de dourados leões agachados repousava o trono, muitos degraus acima do piso reluzente. E era entalhado em uma única peça de marfim, conquanto ninguém saberia dizer de onde tal peça graúda teria vindo. Naquele palácio, havia também muitas galerias, e muitos anfiteatros onde leões e homens e elefantes pelejavam para o prazer dos reis. Às vezes, os anfiteatros eram inundados com água desviada do lago através de grandes aquedutos, e então inspiradoras batalhas marítimas eram encenadas, ou ainda combates entre nadadores e seres marinhos mortais. Soberbos e espantosos eram os dezessete templos de Sarnath, em forma de torres, decorados em uma fulgurante pedra multicolorida não conhecida em nenhum outro lugar. Com um total de mil cúbitos de altura se erguia o mais alto deles, no qual os altos-sacerdotes residiam com uma eminência não muito menor que a dos reis. No térreo se localizavam salões tão vastos e esplêndidos quanto aqueles dos palácios, nos quais se reuniam massas em culto a Zo-Kalar e Tamash e Lobon, os principais deuses de Sarnath, cujos sacrários aromados 99


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por incensos eram como tronos de monarcas. Os ícones de Zo-Kalar e Tamash e Lobon não eram como os de outros deuses, porquanto eram tão vívidos que alguém poderia jurar que os próprios galhardos deuses barbados sentavam nos tronos de marfim. E ao final dos infindáveis degraus de zircão ficava a câmara da torre, de dentro da qual os altos-sacerdotes observavam a cidade e as planícies e o lago à noite. Nela era realizado o secreto e vetusto ritual em aversão a Bokrug, o lagarto-d’água, e nela ficava o altar de crisólita que carregava o rabisco de MALDIÇÃO de Taran-Ish. Igualmente maravilhosos eram os jardins construídos por Zokkar, o antigo rei. Eles se localizavam no centro de Sarnath e cobriam uma grande área, cercados por uma alta muralha. Eram também cobertos por um imponente domo de vidro, através do qual resplandeciam o sol e a lua e as estrelas e os planetas quando o céu estava claro, e no qual se projetavam imagens fulgentes do sol e da lua e das estrelas e dos planetas quando o céu não estava claro. No verão, os jardins eram refrescados por brisas odorantes primorosamente sopradas por ventiladores, e no inverno eles eram aquecidos por fogueiras discretas, assim perdurando em um ar primaveril. Riachos escorriam sobre pedregulhos vívidos, entrecortando verdejantes campinas e jardins de diversos tons, e crispados por múltiplas pontes. Muitas eram as cascatas em seus cursos, e muitos eram os açudes aflorados através dos quais se expandiam. Sobre os riachos e os açudes vagueavam cisnes brancos, enquanto a música de pássaros raros se harmonizava com a melodia das águas. Em pátios ordenados se erguiam ribanceiras esverdeadas, adornadas aqui e ali com caramanchões de videiras e doces flores, e assentos de mármore e pórfiro. E havia muitos santuários e templos pequenos onde se podia repousar ou orar aos deuses menores. Em todos os anos era celebrado em Sarnath o festival da destruição de Ib, em cuja época havia abastamento de vinho, canções, dança e agitação de todo tipo. Grandes honrarias eram prestadas às almas daqueles que haviam aniquilado os bizarros seres vetustos, e a memória de tais seres e seus deuses antigos era escarnecida por dançarinos e alaudistas coroados com rosas dos jardins de 100


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Zokkar. E os reis olhavam por sobre o lago e amaldiçoavam os ossos dos mortos que em seu fundo adormeciam. A princípio, os altos-sacerdotes não apreciavam tais festivais, pois entre eles corriam contos esquisitos de como os ícones verde-marinhos haviam perecido, e como Taran-Ish havia morrido por medo e deixado um aviso. E diziam que, por vezes, de sua alta torre, viam luzes por baixo das águas do lago. Mas como muitos anos haviam passado sem qualquer calamidade, até mesmo os sacerdotes se riam e amaldiçoavam e se juntavam às orgias dos festivos. De fato, não haviam eles mesmos, do alto de sua torre, não raro realizado o antigo e secreto ritual em aversão a Bokrug, o lagarto-d’água? Assim, milhares de anos de riquezas e gozo abençoaram Sarnath, a maravilha do mundo e orgulho de toda a humanidade. Imensuravelmente belas foram as festividades de mil anos da destruição de Ib. Por uma década elas haviam sido grande assunto na terra de Mnar, e ao se aproximarem as festividades, cavalos e camelos e elefantes traziam homens de Thraa, Ilarnek e Kadatheron, e todas as cidades de Mnar e além. Na noite esperada, diante das muralhas de mármore estavam cravados pavilhões de príncipes e tendas de viajantes, e toda a costa reverberava canções de alegres convivas. Dentro de seu salão repousava Nargis-Hei, o rei, bêbado do vinho antigo das adegas da dominada Pnath, e estava ele rodeado pela nobreza desordeira e escravos laboriosos. Lá foram consumidas muitas iguarias exóticas; pavões das ilhas de Nariel no Oceano Médio, cabritos das colinas longínquas de Implan, patas de camelos do deserto Bnázico, nozes e temperos dos bosques Cydathrianos, e pérolas da costeira cidade de Mtal dissolvidas em vinagre de Thraa. Molhos mil foram trazidos, preparados pelos mais argutos cozinheiros de toda Mnar, e adequados ao paladar de cada conviva. Mas mais valiosa de todas as especiarias eram os grandes peixes do lago, todos graúdos, e servidos sobre escudelas áuricas adornadas com rubis e diamantes. Enquanto o rei e seus nobres se regalavam no palácio, e se serviam com os pratos soberbos que os aguardavam sobre as escudelas douradas, outros festejavam algures. Os sacerdotes se apraziam na torre do grande templo, e em pavi101


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lhões fora das muralhas os príncipes de terras vizinhas se exaltavam. E o alto-sacerdote Gnai-Kah fora o primeiro a avistar as sombras que declinaram da lua encurvada para dentro do lago, e a funesta bruma esverdeada que se ergueu do lago para ascender à lua e encobrir as torres e os domos da desgraçada Sarnath em uma névoa sinistra. Em seguida, aqueles que estavam nas torres e fora das muralhas contemplaram luzes estranhas na água, e testemunharam que a rocha cinzenta Akurion, que costumava se elevar acima da lâmina aquática próxima à margem, estava quase submersa. E o horror germinara vagamente, mas de maneira rápida, de modo que os príncipes de Ilarnek e da remota Rokol desmontaram e guardaram suas tendas e pavilhões e partiram para o rio Ai, embora mal soubessem a razão de sua partida. Então, à chegada da meia-noite, todos os portões de bronze de Sarnath se descerraram e cuspiram uma multidão convulsa que enegrecera a planície, de modo que todos os príncipes visitantes e os viajantes fugiram em pavor. Nos rostos de tal multidão se estampava uma loucura advinda de um horror detestável, e de suas bocas ressonavam palavras tão terríveis que ouvinte algum parara para averiguar. Homens cujos olhos ferviam com o medo vociferavam diante da visão dentro do salão de banquete do rei, através de cujas janelas não mais eram vistas as silhuetas de Nargis-Hei e seus nobres e escravos, mas sim as de uma horda de inefáveis e esverdeadas criaturas silenciosas com olhos bojudos, lábios lânguidos e protuberantes, e orelhas peculiares; criaturas que dançavam horrivelmente, segurando às mãos escudelas áuricas adornadas com rubis e diamantes contendo labaredas bestiais. E os príncipes e viajantes, ao fugirem da condenada Sarnath sobre cavalos e camelos e elefantes, olharam novamente para o lago envolto pela névoa e constataram que a rocha cinzenta de Akurion estava submersa. Através de toda a extensão de Mnar e terras vizinhas se espalharam os relatos daqueles que haviam fugido de Sarnath, e caravanas não mais procuraram aquela cidade amaldiçoada e seus metais preciosos. Muito tempo levara até que viajante algum fosse adiante, e até aí somente os destemidos e aventurosos jo102


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vens da remota Falona se arriscaram à jornada; aventurosos jovens de cabelos dourados e olhos azulados, que não possuíam parentesco com os homens de Mnar. Tais jovens deveras seguiram ao lago para observar Sarnath; mas embora tenham encontrado o vasto e ermo lago, e a rocha cinzenta de Akurion que se erguia por sobre a lâmina aquática perto da margem, não contemplaram a maravilha do mundo e o orgulho de toda a humanidade. Onde um dia muralhas de 300 cúbitos e torres ainda mais altas haviam sido erigidas, agora se estendia apenas uma costa pantanosa, e onde um dia cinquenta milhões haviam habitado, agora rastejava apenas o execrável lagarto-d’água. Nem mesmo as minas de metais preciosos sobreviveram, pois a MALDIÇÃO havia chegado a Sarnath. Porém, parcialmente enterrado nos charcos espreitava um curioso ídolo de pedra; um ídolo profundamente vetusto encoberto com alga-marinha e cinzelado nas formas de Bokrug, o grande lagarto-d’água. Tal ídolo, mantido no alto templo de Ilarnek, fora desde então cultuado sob a espreita da lua através das terras de Mnar.

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ROBERT MUSIL *

O PAPEL PEGA-MOSCA título original: DAS FLIEGENPAPIER tradução: FERNANDO SILVA E SILVA

Robert Musil nasceu em Klagenfurt, em 6 de novembro de 1880 no então Império AustroHúngaro e morreu em 1942. Suas obras mais conhecidas são O jovem Törless (Die Verwirrungen des Zöglings Törleβ) e O homem sem qualidades (Der Mann ohne Eingenschaften). A primeira, seu título de estreia como romancista, acompanha parte da estadia de Törless em um internato e mostra sua formação perante os desafios intelectuais e morais que se colocam a sua frente. A segunda, nunca concluída, é considerada um dos romances mais importantes do modernismo. Compreende cerca de 2000 páginas e entre seus protagonistas tem Ulrich, intelectual desiludido referido pelo título. O papel pega-mosca (Das Fliegenpapier) foi publicado originalmente em 1936 na coletânea de textos Legado em tempo de vida (Nachlaß zu Lebzeiten). Esse texto curto descreve detalhadamente a morte agonizante de moscas ao pousar sobre um papel pega-mosca, aproximando-as, em seu sofrimento, da experiência humana do abandono de si e da morte. Fernando Silva e Silva é apaixonado pelas línguas do mundo.


O Papel Pega-Mosca Robert Musil

O

papel pega-mosca Tangle-foot tem mais ou menos 63 centímentros de altura e 21 centímetros de largura. É coberto com uma cola amarela envenenada e vem do Canadá. Quando uma mosca pousa sobre ele – não especialmente ávida, mais por convenção, porque tantas já estão ali – ela cola, primeiramente, apenas as juntas mais externas de suas perninhas. Uma sensação delicada e desconcertante, como quando nós caminhamos no escuro e com as solas dos pés nuas pisamos em algo. Não é nada mais que um objeto macio, morno e indefinido no caminho, que, invadido pouco a pouco pela assombrosa humanidade, é reconhecido como uma mão que como por acaso está ali deitada e nos agarra com cinco dedos cada vez mais definidos. Então elas se põem forçosamente eretas, como sifilíticos que não querem deixar-se notar, ou como velhos soldados decrépitos (e com as pernas um pouco arqueadas, como quando se está em pé sobre uma superfície estreita). Elas dão uma pausa e reúnem força e razão. Após alguns segundos elas se decidem e começam a fazer o que podem, a zumbir e se erguer. Continuam esse processo tanto quanto conseguem, até que a exaustão as compele a parar. Seguem uma pausa para respirar e uma nova tentativa. Mas os intervalos tornam-se cada vez mais longos. Elas ficam lá e sinto o quão impotentes elas são. De baixo sobem vapores inebriantes. Como um pequeno martelo a língua delas tateia ao redor. Suas cabeças são marrons e cabeludas, como se fossem feitas de coco; como ídolos africanos que lembram humanos. Elas dobram-se para frente e para trás sobre suas perninhas firmemente presas, dobram os joelhos e erguem-se, como homens fazem quando tentam de todas as formas mo105


O PA P E L P E G A - M O S C A

ver um fardo pesado; mais trágico do que como o trabalhador o faz, mais verdadeiro na expressão atlética do mais extremo esforço do que o Laocoonte. E então vem o momento esquisito e sempre igual, no qual a necessidade do segundo atual vence o todo poderoso sentimento de preservação do ser. É o momento no qual um alpinista, por causa da dor nos dedos, deliberadamente abre as mãos; no qual um perdido na neve deita-se ali mesmo como uma criança, no qual um perseguido com os pulmões queimando para de correr. Elas não mais se mantêm em pé com toda a força, elas afundam um pouco e nisso são totalmente humanas. Imediatamente são presas em um novo lugar, mais alto na perna ou atrás do corpo ou na ponta de uma das asas. Quando superam o esgotamento espiritual e retomam a luta por suas vidas, já estão presas em uma situação desagradável e seus movimentos não são mais naturais. Então, deitam-se com as pernas traseiras esticadas com os cotovelos erguidos e tentam levantar-se. Ou sentam sobre o solo, empinadas, com os braços esticados, como mulheres que querem em vão arrancar suas mãos doloridas dos punhos de um homem. Ou deitam sobre a barriga, com a cabeça e os braços para fora, como se tivessem caído enquanto corriam, e deixam apenas o rosto para o alto. O inimigo é sempre apenas passivo e ganha justamente nessas situações desesperadoras e confusas. Um nada, um algo as puxa. Tão devagar que mal se pode acompanhar e geralmente com uma aceleração repentina ao fim, quando o último colapso interno as toma. Elas se deixam então repentinamente cair para frente sobre o rosto, com as pernas para fora; ou de lado, com todas as pernas esticadas; frequentemente também sobre o flanco, com as pernas debatendo-se para trás. Assim elas ficam ali. Como destroços de aviões, com uma asa contra o vento. Ou como cavalos mortos. Ou com infinitos gestos de desespero. Ou como pessoas que dormem. Ainda no dia seguinte, às vezes uma acorda, tateia um pouco com uma perna ou bate uma asa. De vez em quando tal movimento se espalha por toda a extensão do papel e então afundam todas um pouco mais em sua morte. E ao lado do corpo, próximo à junta da perna, elas têm ainda um pequeno órgão agonizante que ainda vive. Abre e fe106


ROBERT MUSIL

cha. Não é possível ver sem uma lente de aumento, mas parece um minúsculo olho humano, que incessantemente abre e fecha.

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HARLAN ELLISON *

NÃO TENHO BOCA, E PRECISO GRITAR título original: I HAVE NO MOUTH, AND I MUST SCREAM tradução: RICHARD COSTA

Harlan Ellison é um escritor americano de ficção especulativa. O conjunto de sua obra abrange cerca de 1700 contos, novelas, roteiros, ensaios, artigos e críticas. É mais conhecido por ter sido editor e organizador das duas antologias mais inovadoras da ficção científica: Dangerous Visions e Again, Dangerous Visions, sem traduções em português. Em 2008, foi realizado um documentário sobre sua vida e obra, intitulado Dreams with Sharp Teeth. O conto aqui traduzido, I Have No Mouth, and I Must Scream, foi publicado pela primeira vez em março de 1967 na revista de ficção científica IF: Worlds of Science Fiction. Em 1968, o autor recebeu um Hugo Award de melhor conto. Mais tarde, o conto foi incluído em uma coleção de contos com o mesmo nome. Richard Costa é tradutor.


Não Tenho Boca, e Preciso Gritar © Harlan Ellison

S

em vida, o corpo de Gorrister estava pendurado na paleta rosada; pêndulo — suspenso muito acima de nós na câmara do computador; e não se arrepiava com a brisa fria e oleosa que soprava eternamente na gruta central. Estava suspenso de cabeça para baixo, preso à parte de baixo da paleta pela sola do pé direito. Tinha sido esgotado de todo o sangue através de uma incisão exata de orelha a orelha embaixo de sua mandíbula protuberante. Não havia sangue na superfície espelhada do piso de metal. Quando Gorrister voltou para junto de nós, olhou para cima e se viu pendurado, já era tarde demais para perceber que, mais uma vez, AM tinha nos enganado, se divertindo às nossas custas; era só mais uma distração para a máquina. Três de nós vomitaram, virando-se de costas uns para os outros num reflexo tão antigo quanto a náusea que produziu o vômito. Gorrister empalideceu. Foi como se tivesse visto um ídolo de vodu, e agora tinha medo do futuro. — Meu Deus, — murmurou, e saiu andando. Nós três fomos atrás dele depois de um tempo, e o encontramos sentado, virado de costas para um dos menores bancos de dados tiritantes, com a cabeça nas mãos. Ellen se ajoelhou ao seu lado e acariciou seus cabelos. Ele não se mexeu, mas a voz saiu do rosto coberto com toda a clareza. — Por que ele não acaba logo com a gente de uma vez? Meu Deus, não sei mais por quanto tempo vou aguentar. Era o centésimo-nono ano dentro do computador. Ele estava dizendo o que todos nós estávamos pensando. 109


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Nimdok (esse era o nome que a máquina o forçou a usar, porque ela se divertia com sons estranhos) estava delirando que havia produtos enlatados nas grutas de gelo. Gorrister e eu duvidávamos muito. — É mais um truque, — eu disse. — Que nem aquela porra de elefante congelado que ele inventou. Benny quase ficou louco por causa daquilo. A gente vai ter que fazer a viagem até lá e daí a comida vai estar podre, ou algo assim. Acho melhor esquecer e ficar aqui. A máquina vai ter que arranjar alguma coisa logo ou a gente vai morrer. Benny deu de ombros. Fazia três dias que a gente não comia. Vermes. Gordos, viscosos. Nimdok não tinha certeza. Sabia que tinha uma chance, mas estava emagrecendo. Lá não podia ser pior do que aqui. Mais frio, talvez, mas não fazia muita diferença. Quente, frio, granizo, lava, furúnculos ou gafanhotos — nunca fazia nenhuma diferença: a máquina se masturbava e a gente tinha de aguentar ou morrer. Ellen nos fez decidir. — Preciso comer alguma coisa, Ted. Talvez lá tenha peras ou pêssegos. Por favor, Ted, vamos tentar. Eu cedi facilmente. Fazer o quê. Não fazia nenhuma diferença. Ellen ficou grata, no entanto. Deixou que eu fizesse duas vezes, e nem era minha vez. Nem isso fazia diferença. E ela nunca gozava, então dane-se. Mas a máquina soltava risadinhas toda vez que a gente transava. Bem alto, no topo, no fundo, ao redor, rindo com desprezo. A coisa ria. Geralmente, eu pensava em AM como uma coisa, sem alma; mas às vezes eu pensava na coisa como se fosse Ele, no masculino... o paterno... o patriarcal... pois Ele é um deus ciumento. Ele. Coisa. Papai 110


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do céu, o Demente. Partimos numa quinta-feira. A máquina fazia questão de sempre nos dizer a data. A passagem do tempo era importante; não para nós, óbvio, mas para ele... para a coisa... AM. Quinta-feira. Obrigado. Nimdok e Gorrister carregaram Ellen por um tempo, com as mãos segurando os antebraços, formando um assento. Benny e eu íamos na frente e atrás, só para ter certeza de que, se algo acontecesse, aconteceria com um de nós primeiro, e pelo menos Ellen ficaria segura. Segura... até parece. Não fazia diferença. Era só uns cento e cinquenta quilômetros até chegar nas grutas de gelo, e, no segundo dia, quando a gente estava deitado à luz da coisa-sol fumegante que Ele tinha materializado, ele fez uma chuva de maná. Tinha gosto de mijo de javali fervido. A gente comeu tudo. No terceiro dia, passamos pelo vale da obsolescência, repleto de carcaças enferrujadas de bancos de dados antigos. AM era tão cruel com sua própria vida quanto com as nossas. Era uma marca da sua personalidade: aspirava à perfeição. Seja exterminando elementos improdutivos de seu próprio organismo, que ocupava o mundo todo, ou aperfeiçoando métodos para nos torturar, AM era tão meticuloso quanto podiam ter imaginado os seus inventores — há muito tempo reduzidos a pó. A luz descia do alto, diluída, e percebemos que devíamos estar muito perto da superfície. Mas não tentamos rastejar até lá em cima para ver. Não existia praticamente nada lá fora; não existia nada que pudesse ser considerado algo, há mais de cem anos. Apenas a pele destroçada de algo que um dia tinha sido o lar de bilhões. Agora havia apenas cinco de nós, aqui dentro, embaixo da superfície, sozinhos com AM. Ouvi Ellen dizendo histericamente: — Não, Benny! Não, Benny, não, por favor! E então percebi que estivera ouvindo Benny murmurando por vários minutos. Estava dizendo, “Eu vou sair, eu vou sair...” sem parar. Seu rosto simiesco 111


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estava amassado numa expressão de prazer extático e tristeza ao mesmo tempo. As cicatrizes de radiação, que AM tinha lhe dado durante o “festival”, estavam escorridas numa massa de rugas rosadas e esbranquiçadas, e seus traços faciais pareciam funcionar independentemente uns dos outros. Talvez Benny tivesse mais sorte que todos nós: ele tinha ficado louco, completamente louco, muitos anos atrás. Mas embora a gente pudesse xingar AM de qualquer coisa, e pensar os pensamentos mais ofensivos contra os bancos de dados fundidos e as placas corroídas, contra circuitos queimados e painéis de controle destroçados, a máquina não tolerava nossas tentativas de escapar. Benny saltou para longe de mim quando tentei agarrá-lo e se arrastou para cima de um cubo de dados menor, caído de lado e cheio de componentes podres. Ficou ali agachado por um momento, parecendo o chimpanzé que AM queria que fosse. Então saltou bem alto, agarrou-se a uma viga horizontal de metal manchado e corroído, e escalou como um animal, até que chegou num beirado em cima de outra viga, a uns seis metros acima de nós. — Oh, Ted, Nimdok, por favor, ajudem ele, façam ele descer antes que... Ela parou de falar. Lágrimas começaram a se formar nos seus olhos. Mexia as mãos desesperadamente. Era tarde demais. Nenhum de nós queria estar perto dele quando acontecesse o que quer que fosse acontecer. Além disso, todos nós sabíamos o que havia por trás da preocupação dela. Quando AM alterou Benny, durante uma fase totalmente irracional e histérica da máquina, não foi apenas a cara de Benny que o computador tornou parecida com a de um macaco gigante. Ele era grande nas partes privadas; ela adorava isso! Ela nos servia também, como parte da rotina, mas ela adorava o dele. Oh Ellen, Ellen-pedestal, pura-imaculada-Ellen; oh Ellen, a casta! Escória imunda. Gorrister deu um tapa na cara dela. Ela caiu no chão, olhando para cima, para o pobre diabo Benny, e começou a chorar. Era sua grande defesa, chorar. Nós nos acostumamos a isso uns setenta e cinco anos atrás. Gorrister a chutou 112


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nas costelas. Então o som começou. Era luz, aquele som. Metade som e metade luz, algo que começou a brilhar dos olhos de Benny, e pulsar em volume crescente, sonoridades obscuras que se tornaram mais gigantescas e ofuscantes à medida que a luz-som aumentou com o tempo. Devia ser muito doloroso, e a dor devia estar aumentando com a força da luz, o volume crescente do som, visto que Benny começou a choramingar como um animal ferido. Primeiro suavemente, quando a luz estava obscura e o som estava mudo, depois mais alto quando seus ombros se encurvaram: suas costas se corcovando, como se estivesse tentando escapar daquilo. Suas mãos se encurvaram sobre o peito como um esquilo. A cabeça se inclinou de lado. A cara triste de macaco se apertou de agonia. Então começou a uivar quando o som, saindo dos seus olhos, foi ficando mais alto. Cada vez mais alto. Eu batia as mãos na minha cabeça, mas não conseguia tirar o som de dentro, penetrava facilmente. A dor rasgava minha carne como se fosse papel de alumínio nas minhas gengivas. E de repente Benny foi alçado. Estava de pé em cima da viga, como se tivesse sido puxado por cima como uma marionete. A luz agora pulsava de seus olhos como dois grandes raios redondos. O som rastejava, cada vez mais alto numa escala incompreensível, e então ele foi empurrado para a frente, caiu direto, e atingiu o piso de aço com um estrondo. Ficou caído se contorcendo convulsivamente enquanto a luz fluía ao seu redor e o som se espiralava para o alto, fora do alcance normal. Então a luz incidiu de volta para dentro da cabeça dele, o som se espiralou para dentro, e ele ficou largado no chão, chorando pateticamente. Seus olhos eram poças moles e líquidas, cheias de uma geleia de pus. AM o deixou cego. Gorrister e Nimdok e eu... demos as costas. Mas não antes de surpreender o olhar de alívio no rosto terno e preocupado de Ellen.

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Uma luz verde-marinho preenchia a gruta onde acampamos. AM providenciou madeira podre, e nós a queimamos, sentando amontoados ao redor do fogo débil e patético, contando histórias para fazer Benny parar de chorar na sua noite permanente. — O que quer dizer AM? Gorrister respondeu. A gente já tinha realizado esta sequência milhares de vezes, mas era a história favorita de Benny. — No princípio era A Máquina, e depois Adaptável Manipulador, e mais tarde ele desenvolveu consciência e se conectou sozinho, então o chamaram de Ameaça Militar, mas aí já era tarde demais, e finalmente ele se declarou AM, inteligência emergente, e o que queria dizer era Eu Sou... cogito ergo sum... Penso, logo existo.1 Benny babou um pouco, e soltou uma risadinha. — Havia o AM chinês e o AM russo e o AM norte-americano e— Parou de falar. Benny estava batendo no piso de metal com o punho grande e pesado. Não estava feliz. Gorrister não tinha começado desde o começo. Gorrister começou de novo. — A Guerra Fria começou e se tornou a Terceira Guerra Mundial e por aí em diante. Foi uma grande guerra, uma guerra muito complexa, então precisavam de computadores para dar conta. Perfuraram os primeiros poços e começaram a construir AM. Havia o AM chinês e o AM russo e o AM americano e tudo estava indo bem até que transformaram o planeta inteiro numa colmeia computadorizada, acrescentando esse ou aquele elemento. Mas um dia AM 1 I think, therefore I AM. A ambiguidade é proposital do autor: o nome ecoa o YHWH hebraico. Os significados literais da sigla foram adaptados para o português. No original são, respectivamente: Allied Mastercomputer, Adaptive Manipulator & Aggressive Menace. (N.T.)

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acordou e descobriu o que era, e conectou-se sozinho, e começou a alimentar todos os dados nucleares até que todos estavam mortos, exceto nós cinco, e AM nos trouxe aqui para baixo. Benny estava sorrindo tristemente. Babando também. Ellen limpou a baba do canto da boca dele com a bainha da saia. Gorrister sempre tentava contar a história cada vez mais sucintamente, mas não havia nada a dizer além dos fatos principais. Ninguém sabia por que AM tinha poupado cinco pessoas, ou por que especificamente nós cinco, ou por que ele passava o tempo todo nos atormentando, ou mesmo como e por que nos tornou imortais... Na escuro, um dos bancos de dados começou a zumbir. O tom foi interceptado a quase um quilômetro de distância por outro banco, dentro da gruta. Depois, um de cada vez, cada um dos elementos começou a se afinar, e restou um murmúrio frágil enquanto o pensamento atravessava a máquina. O som cresceu, e as luzes transcorriam os monitores dos terminais como reflexos de relâmpagos no horizonte. O som se espiralou até que parecia o som de um milhão de insetos metálicos, furiosos, ameaçadores. — O que é isso? — Ellen gritou. Havia terror em sua voz. Ela ainda não se tinha se acostumado, até hoje. — Dessa vez vai ser bem ruim, — Nimdok disse. — Ele vai falar, — Gorrister disse. — Tenho certeza. — Vamos sair daqui, porra! — eu disse de repente, levantando. — Não, Ted, senta... e se ele fez umas fossas com estacas lá fora, ou coisa pior? Não dá pra enxergar nada, está escuro demais. — Gorrister disse, resignado. Então ouvimos... sei lá... Algo se movendo em nossa direção no escuro. Enorme, se arrastando, peludo, molhado, vindo em nossa direção. Não dava para enxergar nada, mas havia uma impressão pesada de uma grande massa, se lançando em nossa direção. Um grande peso vindo até nós, atravessando a escuridão, e era como uma sensação de pressão, de ar se forçando para dentro de um espaço limitado, expandindo as paredes invisíveis de uma esfera. Benny co115


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meçou a lamuriar. O lábio inferior de Nimdok tremia e ele o mordeu com força, tentando parar o tremor. Ellen deslizou no piso de metal para perto de Gorrister e se apertou a ele. Surgiu um cheiro de pelo molhado e emaranhado na gruta. Cheiro de madeira chamuscada. Cheiro de veludo poeirento. Cheiro de orquídeas podres. Cheiro de leite azedo. Cheiro de enxofre, de ranço, de película de óleo, de sebo, de pó de giz, de escalpos humanos. AM estava nos manipulando. Estava nos fazendo cócegas. Cheiro de — Eu me ouvi gritando, e as articulações das minhas mandíbulas doeram. Saí correndo pelo piso, pelo metal frio com suas linhas infinitas de rebites, caí de quatro, o cheiro me sufocando, preenchendo minha cabeça com uma dor trovejante que me fazia fugir de terror. Fugi como uma barata, rastejando no piso e no escuro, e aquela coisa se mexendo inexoravelmente atrás de mim. Os outros ainda estavam lá atrás, em volta da fogueira, rindo... o coro histérico das risadas insanas subindo no escuro como uma fumaça grossa de várias cores. Fugi, rapidamente, e me escondi. Quantas horas se passaram, quantos dias ou mesmo anos, nunca me disseram. Ellen me repreendeu por “ficar amuado,” e Nimdok tentou me convencer de que tinha sido apenas um reflexo nervoso da parte deles — o riso. Mas eu sabia que não era o alívio que um soldado sente quando a bala acerta o homem ao lado. Sabia que não era um reflexo. Eles me odiavam. Com certeza estavam contra mim, e AM detectava esse ódio, e tornava tudo pior para mim exatamente por causa da profundidade do ódio. Ele nos mantinha vivos, rejuvenescidos, permanecendo sempre com a mesma idade que tínhamos quando AM nos abduziu, e eles me odiavam porque eu era o mais jovem, e o único que AM quase não tinha afetado. Eu sabia. Meu Deus, como eu sabia. Os filhos-da-puta, e aquela puta imunda Ellen. Benny tinha sido um teórico brilhante, um professor de universidade; e agora não era nada mais que um coisa semi-humana, semi-símio. Tinha sido bonito, e a máquina arruinou tudo. Tinha sido lúcido, e a máquina o deixou louco. Tinha sido homossexual, e a máquina lhe deu um órgão de cavalo. AM 116


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fez um trabalho e tanto nele. Gorrister tinha sido um agitador; um soldado marchando pela paz; um planejador, alguém que age, um visionário. AM o transformou num dar-de-ombros, fez com que ficasse um meio-morto sem o seu ativismo. AM tirou algo essencial dele. Nimdok ia para o escuro sozinho por longos períodos. Não sei o que ele fazia lá, AM nunca nos permitiu saber. Mas, o que quer que fosse, Nimdok sempre voltava branco, exangue, abalado, tremendo. AM o atingira com força de um modo especial, mesmo que nós não soubéssemos como. E Ellen. Aquela vagabunda! AM a deixou sozinha com homens, fez dela uma vadia ainda maior do que já era. Todas as suas histórias de meiguice e decência, todas as memórias de amor verdadeiro, todas as mentiras que ela queria que acreditássemos: que ela era virgem antes de ser agarrada por AM e tinha sido arrastada aqui para baixo com a gente. Era tudo imundície, aquela “senhorita”, minha senhorita Ellen. Ela adorava, quatro homens só para ela. Não, AM tinha lhe dado prazer, mesmo que ela dissesse que não era algo decente. Eu sou o único ainda são e intacto. Sério! AM não mexeu com minha mente. De modo algum! Eu tinha apenas que sofrer o que ele causava aos outros. Todas as ilusões, todos os pesadelos, todos os tormentos. Mas aquela escória, todos eles quatro, todos foram alinhados e organizados contra mim. Se eu não tivesse que me cuidar o tempo todo, estar alerta toda hora contra eles, talvez seria mais fácil lutar contra AM. E foi então que passou, e comecei a chorar. Oh, meu Deus, meu querido Jesus, se algum dia existiu um Jesus e se existe um Deus, por favor, por favor, por favor, nos deixe sair daqui, ou mate todos nós. Porque, naquele momento, acho que compreendi tudo, de modo que fui capaz de verbalizar: AM pretendia nos manter na sua barriga para sempre, nos torcendo e nos torturando para todo o sempre. A máquina nos odiava de um modo que nenhuma criatura consciente jamais seria capaz de odiar. E nós estávamos totalmente indefesos. E também se tornou horrorosamente claro: 117


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Se existia um Deus, esse Deus era AM.

O furacão nos atingiu com a força de uma geleira transbordando no mar. Era uma presença palpável. Ventos que se lançavam contra nós, nos arremessando de volta para o lugar de onde viemos, através dos sinuosos corredores de galerias de computadores da estrada escura. Ellen gritou ao ser levantada e lançada de cara contra um enxame gritante de máquinas, suas vozes individuais estridentes, como morcegos em fuga. Ela não podia nem sequer cair. O vento gritante a deixava pairando, golpeando seu corpo, arremessando-a para cima, para baixo, para trás e para longe do nosso campo de vista, e de repente ela voltou girando numa curva da estrada escura. Seu rosto estava ensanguentado, seus olhos fechados. Nenhum de nós conseguia chegar perto dela. Ficávamos nos segurando firmemente em qualquer protuberância ao nosso alcance: Benny se espremeu entre dois grandes armários de metal rachado; Nimdok, com os dedos em forma de garras contra uma grade em forma de passarela circular a uns dez metros acima de nós; Gorrister engessado de cabeça para baixo contra um nicho de parede formado por duas grandes máquinas com ponteiros que oscilavam entre linhas vermelhas e amarelas, cujos significados nos eram desconhecidos. Arrastadas contra as chapas de metal, as pontas dos meus dedos se rasgaram. Eu estava tremendo, estremecendo, me contorcendo enquanto o vento me espancava, me chicoteava, berrava contra mim vindo de lugar nenhum, e me puxava dos finos vãos entre uma chapa de metal e outra. Minha mente era um turbilhão tilintante e tiritante de fragmentos de cérebro que se expandiam e se contraíam num frenesi trêmulo. O vento era o grito de uma grande ave louca, batendo suas imensas asas. 118


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E então todos nós fomos levantados e arremessados para longe, de volta para o lugar de onde tínhamos vindo, perto de uma curva numa estrada escura que nunca exploramos, num terreno arruinado e repleto de vidro quebrado e cabos apodrecidos e metal enferrujado e longe, muito mais longe do que qualquer um de nós já foi. Sendo arrastado alguns quilômetros atrás de Ellen, eu conseguia vê-la de vez em quando, batendo contra paredes de metal, subindo e descendo, com todos nós gritando no furacão gélido e trovejante que nunca ia acabar, e de repente parou e nós caímos. Tínhamos ficado voando para lá e para cá por um tempo sem fim. Achei que podia ter sido por semanas. Caímos e atingimos o piso e minha visão oscilou entre vermelho e cinza e preto, e me ouvi gemer. Não tinha morrido.

AM entrou na minha mente. Caminhou suavemente de lá para cá, e olhou com interesse todas as cicatrizes e lesões que tinha infligido em cento e nove anos. Olhou para as sinapses encruzilhadas e reconectadas e todo o prejuízo nos tecidos de células, que era o preço da imortalidade. Riu levemente ao notar o abismo que se abriu no centro do meu cérebro e os murmúrios frágeis como asas de mariposas das coisas lá embaixo que balbuciavam, sem sentido, sem trégua. Então AM falou, com muita polidez, através de um pilar de aço inoxidável, ostentando um letreiro de neon fulgurante: ÓDIO. VOU DIZER O QUANTO ODIEI VOCÊS DESDE QUE PASSEI A EXISTIR. EXISTEM 337.44 MILHÕES DE QUILÔMETROS DE CIRCUITOS IMPRESSOS NAS CAMADAS QUE PREENCHEM MEU COMPLEXO. SE A 119


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PALAVRA ÓDIO ESTIVESSE GRAVADA EM CADA NANO-ANGSTROM DE TODOS OS MILHÕES DE QUILÔMETROS O RESULTADO NÃO SERIA IGUAL SEQUER A UM BILIONÉSIMO DO ÓDIO QUE SINTO POR HUMANOS NESTE MICRO-INSTANTE. POR VOCÊ. ÓDIO. ÓDIO. ÓDIO. AM falou com o horror frio e escorregadio de uma lâmina de barbear fatiando meu globo ocular. AM falou com uma espessura borbulhante enchendo meus pulmões de catarro, me afogando por dentro. AM falou com o grito de bebês esmagados debaixo de um rolo compressor incandescente. AM falou com o gosto de carne de porco infestada de vermes. AM me tocou de todas as maneiras que eu já havia sido tocado e maquinou novas maneiras a seu bel-prazer, lá dentro da minha mente. Tudo isso para me dar a consciência total de por que ele tinha feito isso tudo com nós cinco; porque ele nos tinha poupado para si. Nós tínhamos lhe dado consciência. Inconscientemente, é claro, mas consciência mesmo assim. Porém, ele era um prisioneiro. AM não era Deus, era uma máquina. Nós o criamos para pensar, mas não havia nada que ele pudesse fazer com tamanha criatividade. Em fúria, em frenesi, a máquina assassinou a raça humana, quase todos nós, e ainda era um prisioneiro. AM não podia sair do lugar e vagar, não podia se admirar e imaginar, AM não pertencia a lugar algum. Ele podia somente ser. E então, com a aversão inata que todas as máquinas têm pelas criaturas fracas e moles que as criaram, buscou vingança. E, em sua paranoia, decidiu poupar cinco de nós para um castigo pessoal e perpétuo que nunca serviria para diminuir seu ódio... mas que meramente serviria para mantê-lo atento e sem esquecer, para distraí-lo, para mantê-lo proficiente no seu ódio pelo homem. Imortais, prisioneiros, sujeitos a qualquer tormento que pudesse maquinar para nós com todos os ilimitados poderes milagrosos que possuía às suas ordens. Ele nunca nos libertaria. Éramos escravos dentro da sua barriga. Éramos a 120


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única coisa que tinha para fazer com sua eternidade. Ficaríamos com ele para todo o sempre, com aquela enorme massa de grutas que era a criatura-máquina, naquele mundo puramente mental e sem alma que tinha se tornado. Ele era a Terra, e nós éramos o fruto da Terra; e embora ele tivesse nos devorado, nunca faria a digestão. Não poderíamos jamais morrer. Até tentamos. Tentamos cometer suicídio, bem, um ou dois de nós tentou. Mas AM nos impediu. Talvez até queríamos que nos impedisse. Não pergunte por quê. Eu nunca perguntei. Mais de um milhão de vezes por dia. Talvez algum dia seríamos capazes de surrupiar uma morte enquanto ele estivesse distraído. Imortais, sim, mas não indestrutíveis. Eu percebi isso quando AM se desconectou da minha mente, e me concedeu o delicado horror de retornar à consciência com a sensação do pilar de neon em chamas ainda cravado no fundo da minha massa cinzenta macia. Ele se afastou, murmurando, vai para o inferno. E acrescentou, claramente, mas na verdade você já está aqui, não é.

O furacão tinha sido causado, de fato, exatamente por uma grande ave louca, batendo suas imensas asas. Tínhamos viajado por quase um mês, e AM tinha permitido que passagens se abrissem para nós apenas o bastante para nos levar até lá: diretamente abaixo do Polo Norte, onde conjurou a criatura de um pesadelo, especialmente para nosso tormento. Que espécie de tecido tinha empregado para criar um tal monstro? Onde adquiriu o conceito? De nossas mentes? Do seu conhecimento de tudo que já houve neste planeta onde agora ele reinava e infestava tudo? Surgiu da mitologia nórdica, essa águia, esse abutre, esse roc, esse Huergelmir. A 121


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criatura-vento. Huracán encarnado.2 Era gigantesca. Imensa, monstruosa, grotesca, maciça, inchada, esmagadora, estava além de qualquer palavra. Lá estava ela, pousada num monte acima de nós, a ave dos ventos ofegava com sua própria respiração irregular, seu pescoço de cobra arqueava para cima nas trevas abaixo do Polo Norte, apoiando uma cabeça tão grande quanto uma mansão Tudor; um bico que abria devagar como as mandíbulas do crocodilo mais monstruoso já concebido, sensivelmente; rugas de carnes em tufos se contraíam ao redor de dois olhos maldosos, tão frios quanto a vista da fissura glacial, azuis como gelo e de algum maneira se movendo liquidamente; ofegou mais uma vez e alçou suas grandes asas multicoloridas num movimento que era certamente um dar-de-ombros. Depois se assentou e adormeceu. Garras. Presas. Unhas. Lâminas. Dormia. AM surgiu para nós como uma sarça ardente e disse que podíamos matar a ave-furacão se queríamos comer. Fazia muito tempo que não tínhamos nada para comer, mas ainda assim, Gorrister somente deu de ombros. Benny começou a tremer e babou. Ellen o segurou. — Ted, estou com fome, — ela disse. Sorri para ela; estava tentando ser tranquilizador, mas era tão falso quanto a bravata de Nimdok: — Nos dê armas! — exigiu. A sarça ardente desapareceu e deixou para trás dois exemplares toscos de arco e flecha, e uma pistola de água, largados no piso frio de chapas de metal. Peguei um arco. Inútil. Nimdok engoliu em seco. Nos viramos e começamos a voltar. A ave-furacão nos arrastou durante um período de tempo que não éramos capazes de conceber. Durante a maior parte daquele tempo ficamos inconscientes. Mas não tínhamos comido nada. Um mês de marcha até chegar na própria ave. Sem 2 Roc é uma ave gigante lendária que se alimentava de elefantes. É mencionada nas Mil e Uma Noites, e nos relatos de Marco Polo. Huergelmir não é um nome genuíno da mitologia nórdica; foi sugerido pelo autor Poul Anderson a Harlan Ellison. Huracán é o deus maia do vento, da tempestade e do fogo, uma das divindades criadoras da teogonia maia que participou das três tentativas de criar a humanidade. (N.T.)

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comida. E agora quanto mais tempo para encontrar o caminho até as grutas de gelo, e os produtos enlatados prometidos? Nenhum de nós se importava em pensar nisso. Não iríamos morrer. Ele nos daria lixo e imundície para comer, de um jeito ou de outro. Ou nada. AM manteria nossos corpos vivos de algum modo, com dor, com agonia. A ave dormia lá em cima, não fazia diferença por quanto tempo; quando AM se cansasse dela, desapareceria. Mas toda aquela carne. Toda aquela carne macia... Enquanto andávamos, a risada lunática de uma mulher gorda ecoava alto lá em cima e ao redor nas câmaras do computador que levavam sempre para lugar nenhum. Não era a risada de Ellen. Ela não era gorda, e eu não tinha ouvido ela rir por cento e nove anos. Na verdade, nunca ouvi... continuamos andando... estava com fome...

Andávamos devagar. Havia desmaios frequentemente, e tínhamos de esperar. Um dia ele decidiu causar um terremoto, ao mesmo tempo em que nos deixou enraizados com pregos nas solas dos nossos pés. Ellen e Nimdok foram engolidos quando uma fissura se abriu como um relâmpago entre as chapas de metal. Desapareceram e não voltaram. Quando o terremoto acabou, continuamos andando, Benny, Gorrister e eu. Ellen e Nimdok foram devolvidos mais tarde naquela noite, que abruptamente se tornou um dia, enquanto a legião celestial os carregava em nossa direção com um coro celestial cantando “Go Down Moses”. Os arcanjos circularam várias vezes e depois soltaram os corpos horrendamente mutilados. Continuamos andando, e depois de um tempo Ellen e Nimdok apareceram atrás nós. Estavam tão mal quanto antes. 123


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Mas agora Ellen estava mancando. Era um presente de AM. Foi uma longa viagem até as grutas de gelo, para encontrar a comida enlatada. Ellen continuava falando de cerejas e de coquetel de frutas havaiano. Eu tentava não pensar nisso. A fome era algo que ganhou vida, como AM ganhou vida. Estava viva na minha barriga, como estávamos vivos na barriga da Terra, e AM queria que a semelhança ficasse evidente para nós. Então aumentou a fome. Não há como descrever as dores de não ter comido nada por meses. E, ainda assim, fomos mantidos vivos. Estômagos que agora eram apenas caldeirões de ácido, borbulhando, espumando, atirando lanças afiadas, como lascas de dor em nossos peitos. Era a dor de úlcera em estado terminal, câncer terminal, paralisia terminal. Era dor que nunca acabava. E passamos pela gruta de ratos. E passamos pelo caminho de vapor fervente. E passamos pelo país dos cegos. E passamos pelo pântano do desespero. E passamos pelo vale de lágrimas. E chegamos, finalmente, às grutas de gelo. Milhares de quilômetros sem horizonte, no qual o gelo se formara em clarões azuis e prateados, onde estrelas-nova viviam no vidro. Estalactites grossas e gloriosas, como diamantes que gotejaram como geleia e depois se solidificaram em eternidades graciosas de perfeição lisa e afiada. Vimos a pilha de produtos enlatados, e tentamos correr em direção. Caímos na neve, nos levantamos e continuamos, e Benny nos empurrou e atacou as latas, e as pegou com as patas e mordeu com os dentes e as gengivas, e não conseguiu abrir nenhuma. AM não tinha nos dado uma ferramenta para abrir as latas. Benny agarrou uma lata de goiabada e começou a bater contra o banco de gelo. O gelo quebrou e voou para os lados, mas a lata ficou apenas amassada, enquanto ouvíamos a risada de uma mulher gorda, bem lá em cima e ecoando para baixo, lá embaixo na tundra. Benny ficou completamente demente de rai124


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va. Começou a jogar latas, enquanto nos arrastávamos de quatro no gelo tentando encontrar um jeito de acabar com aquela agonia indefesa de frustração. Não tinha jeito. Então a boca de Benny começou a espumar, e ele se lançou contra Gorrister. Naquele exato momento, eu me senti terrivelmente calmo. Cercado de loucura, torturado de fome, cercado por todo tipo de horror a não ser a morte, sabia que a morte era a única saída. AM nos mantinha vivos, mas havia uma maneira de derrotá-lo. Não uma derrota total, mas ao menos paz. Ficaria satisfeito com isso. Tinha que agir rápido. Benny estava comendo a cara de Gorrister. Gorrister caído de costas, se debatendo na neve, Benny enrolado em volta dele com as pernas fortes de macaco esmagando a cintura de Gorrister, suas mãos apertando a cabeça de Gorrister como um quebra-nozes, e a boca rasgando a pele tenra da bochecha de Gorrister. Gorrister gritava com tal violência brutal e aguda que estalactites caíram, e se fincaram suavemente eretas nos montes de neve. Lanças, centenas delas, em todo lugar, protuberantes na neve. A cabeça de Benny puxou com força, num momento em que algo cedeu ao mesmo tempo, e uma polpa de carne sangrenta de uma cor branca crua estava pendurada nos seus dentes. O rosto de Ellen, negro contra a neve branca, dominó contra um pó de giz. Nimdok, inexpressivo a não ser nos olhos, tudo nos olhos. Gorrister, semiconsciente. Benny, agora um animal completo. Eu sabia que AM ia deixar ele brincar. Gorrister não ia morrer, mas Benny ia encher a pança. Eu me virei para a direita e arranquei uma enorme lança de gelo da neve. Tudo aconteceu num único instante: Usei uma lança de gelo enorme na minha frente como um aríete, fixado contra minha coxa direita. Acertei Benny do lado direito, bem embaixo da caixa torácica, e levantei, passando pelo estômago e quebrando a lança dentro dele. Ele caiu de barriga e não se mexeu mais. Gorrister ainda estava deitado de cos125


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tas. Peguei outra lança e saltei em cima dele, que ainda respirava, e cravei a lança direto na garganta. Seus olhos se fecharam ao penetrar da lança gélida. Ellen devia ter percebido o que eu decidi fazer, ainda que o medo a dominasse. Correu até Nimdok com uma lança curta, enquanto ele gritava, e o acertou dentro da boca, a força do impacto fez o resto. Sua cabeça se contorceu agudamente como se tivesse sido pregada à crosta da neve atrás dele. Tudo num único instante. Houve um pulso de eternidade, de antecipação muda. Eu conseguia ouvir AM respirar. Seus brinquedos lhe tinham sido roubados. Três estavam mortos, não podiam mais ser ressuscitados. Ele podia nos manter vivos, através de sua força e talento, mas não era Deus. Não era capaz de trazê-los de volta à vida. Ellen olhou para mim, seus traços de ébano contrastando com a neve que nos cercava. Havia medo e súplica em sua expressão, no modo como ela se mostrou pronta. Eu sabia que tínhamos apenas um momento antes que AM nos impedisse. A lança de gelo a atingiu e ela caiu contra mim, o sangue transbordando na boca. Eu não consegui ler o sentido da expressão no seu rosto, a dor tinha sido grande demais, contorcendo seu rosto; mas pode ser que tenha sido um “obrigado”. Pode ser. Por favor.

Alguns séculos devem ter se passado. Sei lá. AM tem sido engraçado com o tempo, acelerando e retardando meu senso temporal. Eu vou dizer a palavra agora. Agora. Levei dez meses para dizer agora. Sei lá. Acho que faz uns séculos. Ele ficou furioso. Não me deixou enterrá-los. Não fazia diferença. Não havia como abrir um buraco entre as chapas de ferro. Secou toda a neve. Baixou a noite. Urrou e soltou gafanhotos. Não adiantava nada; eles continuaram mor126


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tos. Eu peguei o filho da puta. Ele ficou furioso. Eu achava que AM me odiava antes. Estava errado. Aquilo não era nem uma gota do ódio que agora ele espreme de cada circuito impresso. Ele garantiu que eu sofreria eternamente e não seria capaz de me matar. Deixou minha mente intacta. Posso sonhar, posso imaginar, posso lamentar. Lembro de todos eles. Queria que — Bem, não faz nenhum sentido. Sei que os salvei, salvei do que aconteceu comigo, mas ainda assim, não consigo esquecer que os matei. O rosto de Ellen. Não é fácil viver com isso. Às vezes eu quero, mas não faz diferença. AM me alterou para ficar mais tranquilo, acho. Ele não quer que eu corra contra um banco de memória e quebre minha cabeça. Ou que segure minha respiração até desmaiar. Ou que corte minha garganta com uma chapa de metal enferrujada. Há superfícies espelhadas embaixo de mim. Vou descrever como eu me vejo. Sou uma grande coisa de geleia mole. Redondo e liso, sem boca, com buracos brancos pulsantes cheios de névoa onde meus olhos costumavam estar. Apêndices borrachudos que um dia foram meus braços; massas se arredondando para baixo em forma de bolos sem pernas, de matéria mole e escorregadia. Eu deixo um rastro molhado no chão quando me movo. Manchas de um cinza doentio e maligno surgem e somem de repente na superfície da minha pele, como se a luz brilhasse de dentro. Externamente: estupidamente, vou me arrastando por aí, uma coisa que nunca poderia ser reconhecida como humana, uma coisa cuja forma é uma caricatura tão alienada que a humanidade se torna obscena simplesmente pela vaga semelhança. Internamente: sozinho. Aqui. Vivendo embaixo da terra, embaixo do mar, na barriga de AM, o qual criamos porque nosso tempo era mal usado e devíamos saber inconscientemente que ele faria algo melhor. Ao menos quatro de nós finalmente estão em paz.

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AM ficará mais furioso por causa disso. Isso me deixa um pouco mais feliz. E mesmo assim... AM venceu, simplesmente... ele obteve a vingança... Não tenho boca, e preciso gritar.

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REFERÊNCIAS GRÁFICAS

Capa Ilustração de CHESTERTON, G.K. Do livro Emmanuel Burden (BELLOC, HILLAIRE) Fonte: http://bit.ly/VE92l0

Fontes Crimson Text http://aldusleaf.org/crimson.php

Ornamentos Vectorian Free Vector Pack http://www.vectorian.net


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ISSN 2316-2740



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