Los Militares en la Transicion Espanola (Portugues)

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Os militares na transição espanhola Jorge Zaverucha* A Espanha conheceu um longo período de intervenções militares e, consequentemente, desenvolveu uma fraca tradição democrática. Nos últimos 150 anos, por exemplo, ocorreram cerca de trinta pronunciamientos, ou seja, uma média de um golpe a cada cinco anos. 0 último golpe, liderado pelo General Franco, deu origem a um regime que durou cerca de quarenta anos. Mesmo com toda essa tradição de autoritarismo, a Espanha é, hoje em dia, uma democracia consolidada. A transição espanhola do autoritarismo para a democracia pode ser considerada um paradigma. Em um breve espaço de tempo, ocorreram eleições gerais, uma nova Constituição foi redigida, um partido socialista governa o país desde 1982 (em que pese a derrota da esquerda na Guerra Civil) e o controle civil democrático sobre os militares foi estabelecido. 1 Como explicar ter a Espanha conseguido se libertar da tutela militar e ter chegado a uma situação onde os comandos civis são repetidamente obedecidos pelos militares como nas democracias mais consolidadas?2 Como foi o desenrolar do jogo civil-militar durante a transição? As divisões internas dos militares Os militares espanhóis estavam divididos entre "duros" (favoráveis à manutenção do legado franquista) e "liberais" (que apoiavam a transição). 0 temor que o "liberal" General Manuel Diez-Alegria viesse a ter papel semelhante ao do General Spinola na Revolução dos Cravos, fez corn que os "duros" forçassem o primeiro-ministro Carlos Arias Navarro a demitir Diez-Alegria da chefia do Estado Maior Militar, e nomeasse o "duro" General Carlos Fernandez Vallespin para substituí-lo. Se "duros" e "brandos" divergiam acerca do papel das Forças Armadas na política, convergiam suas críticas para três pontos importantes: ?? Baixos salários - Franco não criou um estado militar mas uma ditadura personalística. Ele conseguiu ganhar a lealdade do Exército ao absorver mais quadros que o necessário, e ao fornecer empregos na administração governamental aos oficiais superiores. Como não havia lugar para todos nas estatais, os oficiais juniores procuraram emprego suplementar no setor privado para poderem sobreviver (pluriempleo). A politicagem franquista terminou por construir, na Espanha, um Exército de tempo parcial; ?? Lentidão nas promoções - um oficial graduado pela Academia Militar de Zaragoza esperava 27 anos para tornar-se tenente-coronel. Por conseguinte, o exército espanhol possuia alguns coronéis na faixa dos 60 anos, 15 anos mais velhos que seus colegas europeus; ?? Baixo orçamento militar - como Franco inchou os quadros do exército, restou pouca verba para aquisição de novos equipamentos. Baixos salários, corpo de oficiais envelhecidos, equipamentos obsoletos: tudo isto explicava a péssima performance do exército espanhol no campo de batalha, como ficou patenteado no conflito do Sahara, ou quando o exército fazia manobras com seus congêneres europeus. As Forças Armadas espanholas, segundo Garcia, transformaram-se no pariente pobre del franquismo.3 Um grupo de doze oficiais, a maioria capitães, que estavam insatisfeitos tanto corn a situação interna do exército quanto corn o regime autoritário, decidiu criar uma organização clandestina. Em setembro de 1974, a *

Doutor em Ciência Política pela Universidade de Chicago, membro do Núcleo de Estudos Estratégicos da UNICAMP e pesquisador no Departamento de Ciência Política da Fundação Joaquim Nabuco. 1 Controle civil democrático sobre os militares significa a capacidade das autoridades constituídas (Executivo, Legislativo e Judiciário) delimitar o poder autônomo das Forças Armadas, eliminando os enclaves autoritários dentro do aparelho de Estado. Nos países comunistas, os partidos estabelecem controle civil sobre os militares, mas não de um modo democrático. 2 Das transições que conheço, somente Espanha e Grécia conseguiram a proeza de controlar os militares. 3 GARCIA, M. "The Armed Forces: Poor Relation of the Franco Regime", in Paul Preston (ed.), Spain in Crisis, London, Barnes & Noble, 1976.


Union Militar Democrática (UMD) iniciou suas atividades e cresceu tão rapidamente (chegando a atingir 300 membros) que foi obrigada a descentralizar sua direção através da criação de representantes de áreas para as diversas regiões do país. Além do fato de representar uma séria ameaça para a coesão das Forças Armadas, dois outros fatores tornavam a UMD suspeita aos olhos do regime autoritário. Primeiro, a Revolução dos Cravos ocorrera recentemente, 25 de abril de 1974, com a participação ativa do MFA, a organização clandestina dos capitães portugueses.4 Em segundo lugar, a UMD não queria apenas derrubar o velho regime, pois tinha uma proposta política alternativa para as Forças Armadas. Ao contrário de Pion-Berlin a Buchanan, 5 não creio que a UMD desejasse apenas o retorno das Forças Armadas ao profissionalismo clássico. A UMD tinha uma proposta mais progressita. Os "umedos" advogavam a criação de um Ministério da Defesa (controlado por um civil), menor diferenciação na concessão de privilégios entre soldados e oficiais, reforma no sistema judiciário militar e criação de um novo estatuto militar que permitisse a qualquer soldado reivindicar seus direitos quando violados, sem receio de ser punido.6 Os úmedos decidiram não pedir ajuda aos generais liberais ou aos soldados rasos. Aos primeiros porque estavam em posição vulnerável: caso Franco descobrisse sua participação em manobras clandestinas, eles seriam imediatamente mandados para a reserva. Os soldados, por sua vez, se pegos seriam severamente punidos, podendo pegar de doze a vinte anos de prisão, além de responder processo em corte marcial. Por esta razão, a UMD negou-se a trabalhar em conjunto com a Union Democrática de Soldados, pois esta recrutava soldados para lutar contra o regime. 7 Portanto, os oficiais juniores estavam situados numa posição ideal no escalão militar para participar de atividades clandestinas. Longe o suficiente do topo, não seriam facilmente identificados pelo Alto Comando Militar, podendo permanecer por mais tempo na clandestinidade. A força da UMD foi reconhecida pelo governo temeroso com os rumos da sucessão de Franco. Enquanto o caudilho estava em coma, negociações foram mantidas para que os úmedos abandonassem suas atividades em troca da não punição. Os "úmedos" rejeitaram os termos do acordo. Os que foram pegos, todavia, sofreram pesadas punições.8 Em 1977, a UMD se autodissolveu às vesperas das eleições parlamentares. Para os úmedos não se justificava a existência de movimentos clandestinos numa democracia.

O jogo militar de Adolfo Suárez Suárez iniciou seu mandato como primeiro-ministro em 7 de julho de 1976. Tendo conseguido apoio do Parlamento para iniciar reformas democráticas faltava, todavia, o aval das Forças Armadas. Para isso tentou convencer os militares que seus interesses não seriam afetados pelo novo regime e procurou apoio nos quartéis. Apontou para a chefia do Estado Maior do Exército o general Gutierrez Mellado, um discípulo do general Diez-Alegria. Mellado tentou criar uma nova atmosfera de trabalho ao editar o Informe Geral 1/76. Nele, anunciou os principais pontos do pacto estabelecido entre governo e lideranças militares, e incentivou que o mesmo fosse amplamente lido em reuniões militares e até mesmo criticado. 9 A cúpula militar aceitou as reformas, mas vetou liberdades políticas dentro dos quartéis e a readmissão dos líderes da UMD que haviam sido expulsos do exército. Também foi rejeitada a redução dos quadros do exército e o drástico rejuvenescimento das tropas.10 4

0utras rebeliões lideradas por oficiais jovens como Tenentismo no Brasil, Derhg na Etiópia, Oficiais Jovens no Egito, Cara-Pintada na Argentina e R.A.M. Boys nas Filipinas, ajudam-nos a entender porque a UMC era temida, não somente pelo governo mas também pelas Forças Armadas, como instituição. 5 PION-BERLIN, David and BUCHANAN, Paul. "Civil-Military ‘Games’ and Democratic Control", manuscrito, 1988, p.25. 6 YNFANTE, Jesús. El Ejército de Franco y de Juan Carlos, Madrid, Ruedo Iberico, 1976, pp.73-74. 7 Restituto Valero, entrevista com o autor, 06 de julho de 1988, Madrid. Valero foi membro da UMD. 8 Vejamos o que Przeworski pensa acerca de quem tem um projeto político alternativo: "O que ameaça os regimes autoritários não é a quebra de legitimidade, mas a organização da contra-hegemonia: projetos coletivos para um futuro lternativo. Só quando se organizam alternativas coletivas é que indivíduos isolados tem acesso a escolha política. Essa é a razão por que os regimes autoritários detestam organizações independentes: ou as incorporam sob controle centralizado ou as reprimem pela força". PRZEWORSKI, Adam. "Como e onde se bloqueiam as transições para a democracia?", in J.A.Moises a J.A.Guilhon Albuquerque (Orgs.), Dilemas da Consolidação da Democracia, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1989, p.23. 9 CAPARROS, Francisco. La UMD: Militares Rebeldes, Barcelona, Argos Vergara, 1983, p.152. 10 MORALES, José Luis e CELADA, Juan. La Alternativa Militar, Madrid, Editorial Revolucion, 1982, pp.32-33.


0 primeiro conflito entre Suárez e os militares ocorreu em setembro de 1987. 0 vice-presidente do governo e ministro sem pasta, tenente-general Fernando de Santiago y Diez Mendevil, renunciou em protesto por Suárez ter concedido liberdade de ação aos sindicatos. Suárez o substitui pelo general Gutierrez Mellado. Ao final de 1976, Gutierrez Mellado introduziu um novo critério para promoção: não apenas antiguidade mas competência. 0 critério da profissionalização tinha um sabor político - não foi à toa que a direita ficou enfurecida ao, constatar que profissionalização não significava neutralidade política. A cúpula militar do exército era predominantemente franquista. Manter o critério de antiguidade era manter no poder generais que se opunham a qualquer desvio do antigo regime e que, consequentemente, trabalhavam contra os ventos da renovação. 11 Mellado também procurou executar reformas institucionais. Em 13 de janeiro de 1977, ele reorganizou a cadeia de comando do exército ao determinar que o chefe do Estado Maior, tenente-general José Vega Rodriguez, passasse a ser a mais alta autoridade do exército. 0 objetivo de Mellado era organizar cada força da Instituição Militar em torno de um chefe de Estado Maior para, posteriormente, criar a Junta de Jefes del Estado Mayor (JUJEM). Mellado estava convencido que a JUJEM só deveria ser criada e submetida ao ministro da defesa, após a definição explícita da cadeia de comando.12 Por conta disso, Mellado foi insultado em público pelo capitão Menendez Viver durante o funeral de um policial que havia sido assassinado pelo GRAPO (Grupo Fascista Primeiro de Outubro). Mellado continuou avançando suas reformas institucionais. Desta vez através do Decreto-Lei 10, de 1977, que regulamentou as atividades politicas dos militares. Por exemplo, a lei estipulou quais posições na administração civil poderiam ser exercidas por militares e determinou que os militares desejosos em concorrer às eleições de 1977 deveriam abandonar suas carreiras nas Forças Armadas. Para incentivar os oficiais que tinham ligações partidárias a concorrerem às eleições, Mellado permitiu que os mesmos passassem à reserva antes da data prevista. A incerteza da liça eleitoral não deveria inibir o oficial, pois seus proventos seriam garantidos legalmente. Com isso, Mellado além de diminuir os quadros das Forças Armadas afastava o partidarismo político dos quartéis. Em 9 de abril de 1977, Suárez legalizou o Partido Comunista Espanhol. Prevendo a ira dos militares, Suárez anunciou o fato num feriado nacional, o Sábado Santo. Além disso, limitou a quantidade de gasolina nos quarteis para evitar alguma ação contra o governo.13 0 almirante Pita da Veiga renunciou tão logo soube da legalização do PCE. Na reunião ministerial seguinte, o ministro do exército Félix Alvarez Arenas também renunciou, mas seu pedido não foi aceito.14 Suárez resolveu convocar uma reunião com o Alto Comando Militar para explicar sua decisão. Na ocasião, mostrou uma fita gravada no último encontro deste tipo (8 de setembro de 1976) onde ele dizia que o PCE não seria legalizado enquanto este mantivesse uma estratégia revolucionária. Como o PCE demonstrou moderação durante a transição, não havia motivos, acreditava Suárez, para mantê-lo na ilegalidade. Os militares aceitaram a legalização do PCE mas enviaram uma mensagem para Suárez. Em 14 de abril de 1977, o general Mix Alvarez Arenas publicou uma nota em que dizia estar o exército comprometido a defender a unidade da pátria, sua bandeira, o bom nome das Forças Armadas e a integridade das instituições monarquicas.15 Ao ser eleito pelo voto popular em 15 de junho de 1977, Suárez ganhou força política. Contudo, seu relacionamento com os militares continuava deveras volátil. Sua decisão de criar o Ministério da Defesa e de nomear Gutierrez Mellado como ministro, enfureceu a ala "dura" das Forças Armadas. Os militares se irritaram ainda mais quando, em 2 de novembro de 1977, Suárez criou o Centro Superior de Informacion de la Defensa

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A experiência do Chile de Allende confirma os temores de Mellado. O pacto Allende/Cristãos-Democratas (Estatutos de Garantia), colocou o presidente numa situação ingrata. Allende foi proibido de interferir na estrutura do comando militar, ficando impossibilitado de remover oficiais golpistas do Alto Comando. Ou seja, não pode promover seus seguidores já que foi obrigado a aceitar o critério da antiguidade. MICHAELS, Albert. "Background to a coup: Civil-Military Relations in Twentieth-Century Chile and the Overthrow of Salvador Allende", in Claude Welch (ed.), Civilian control over the military, Albany, State University Press, 1976, p.292. 12 MORALES e CELADA. La Alternativa, op.cit., p.35.s 13 PRESTON, Paul. The Triumph of Democrucy in Spain, London, Methuen, 1987, pp.114-115. 14 MORALES e CELADA. La Alternativa, op.cit., p.36. 15 URBANO, Pilar. Con la venia. yo indague el 23-f, Barcelona, Argos Vergara, 1982, p.357.


(CESID). Até então, a Espanha tinha onze serviços de inteligência. 0 CESID veio centralizar o fluxo de informações e passou a trabalhar com a JUJEM.16 Os militares "duros", ao sentirem que Suárez estava disposto a democratizar as relações civis-militares, resolveram reagir mais explicitamente. Eles se reuniram entre os dias 13 a 16 de setembro de 1977 em Jativa (Valência), e decidiram enviar uma carta ao rei Juan Carlos exigindo a demissão de Suárez e Mellado. Na mesma missiva, os "duros" avisaram que, caso os dois não fossem removidos de seus postos, eles se sentiriam à vontade para dar o golpe, até mesmo contra o rei. 17 0 governo reagiu moderadamente a tamanho afronte. Mellado removeu alguns altos oficiais para novas posições, como no caso do general Milans del Bosch que foi transferido do comando da mais poderosa unidade militar, a Divisão Brunete, estacionada nas cercanias de Madrid, e enviado para comandar uma unidade menos importante em Valência. Ou seja, o governo permitiu que Milans del Bosch continuasse conspirando, só que noutra cidade. Mellado tinha a prerrogativa de admoestar Milans del Bosch, tirando do comando e, caso persistisse, enviando para a reserva e até mesmo convocar o Conselho de Guerra se achasse que ele era uma ameaça ao regime. Ao preferir a acomodação, Mellado, sob a ótica militar ganhou a reputação de fraco, pois sua atitude foi interpretada como quem cedeu a um subalterno. Em 12 de janeiro de 1978, Milans del Bosch mostrou mais uma vez não ter qualquer respeito para com o ministro da defesa. No seu discurso de posse, demonstrou falta de deferência para com o governo constituído, ao afirmar que sua avidez em assumir o comando da III Região Militar era somente guiada pelo seu desejo em melhor servir a Espanha, sua Majestade, Juan Carlos e ao exército.18 O governo fingiu ignorar o ocorrido. As reações militares contra o comportamento de Mellado continuaram. Em dezembro de 1977, o almirante Carlos Buhigos renunciou em protesto contra o modo pelo qual o ministro da defesa estava realizando as reformas militares. Em maio de 1978, o tenente-general Jose Vega Rodriguez, comandante-em-chefe do exército, demitiu-se por discordar da decisão de Gutierrez Mellado de promover o general Antonio Ibafiez Freire ao posto de capitão geral da IV Região Militar e o tenente-general Antonio Pascual Gomes ao comando da Divisão Brunete. 19 O general Vega Rodriguez foi substituído pelo general Tomas Liniers Pidal, que logo embaraçaria Mellado. Em 15 de junho de 1978, durante viagem a Argentina, Pidal foi homenageado pelo presidente, general Videla. Ao agradecer a honraria, Pidal disse que tanto o exército argentino como o espanhol tiveram que se defender de ataques feitos pelo "inimigo ateu materialista".20 Tal comparação significava que, para Pidal, a idéia de uma "guerra suja" para além do Atlântico não deveria ser descartada. Ao voltar a Espanha, Pidal não foi punido pelo governo. Às vesperas do referendo constitucional de 1978, Mellado visitou algumas unidades militares no afã de contrabalançar a campanha movida pelos "duros". Estes estavam procurando associar as reformas democráticas, como a concessão de autonomia aos bascos, ao crescente número de atentados perpetrados pelo ETA que culminaram na morte de vários membros da Guarda Civi1.21 Em novembro de 1978, na Região Militar sediada em Valencia, Mellado foi insultado na frente de duzentos oficiais. 0 general Atarés Peña o chamou de traidor, porco, espião e maçom. 22 Quase que simultaneamente, a conspiração intitulada "Operação Galáxia" foi descoberta. 0 golpe seria dado pelo tenente-coronel Antonio Tejero Molina que tomaria o Palacio de La Moncloa a faria reféns os

16 YNFANTE. El Ejército de Franco op.cit., p.24; FERNANDEZ, Carlos. Los Militares en la Transicidn Polfca, Barcelona, Argos Vergara, 1982, p.190. 17 MORALES e CELADA. La Alternativa, op.cit.,p.111. 18 FERNANDEZ. Los Militares, op.cit., p.199. 19 MORALES e CELADA. La Alternativa, op.cit., p.83-89. 20 Ib., p. 141. 21 Vale a pena lembrar que a transição espanhola apresentou muito mais vítimas do que a brasileira. Portanto, os espanhóis tiveram uma boa desculpa para não importunar os interesses militares. Todavia, estes, ao contrário dos brasileiros, procuraram estabelecer o controle civil sobre os militares. 22 MORALES e CELADA. La Alternativa..., op.cit., p.45. Seis meses depois, Pei`ias foi inocentado por um tribunal militar da acusação de ter ofendido um superior. GILMOUR, David. The Transformation of Spain, London, Quartet Books, 1985, p.237.


ministros, enquanto o capitão Saens de Ynestrillas ocuparia pontos estratégicos em Madrid. 0 momento do golpe seria aquele no qual o rei estaria no México e Mellado fora da capital.23 A Constituição A Lei Orgânica franquista de 1967 estipulava que o papel das Forças Armadas, constituídas pelos exércitos de terra, mar e ar e pelas Forças de Ordem Pública, era garantir a unidade e independência da pátria, a integridade dos territórios nacionais, a seguranca nacional e a defesa da ordem institucional. Já a Constituição de 1978, conferiu um papel significativamente diferente aos militares. Seu artigo oitavo dizia que as Forças Armadas são constituídas pelo exército, marinha e aeronáutica e que sua missão é de garantir a soberania e independência da Espanha, a defesa da integridade de seu território e a ordem constitucional. Como se depreende, a Constituição de 1978 aboliu as Forças de Ordem Pública franquistas e criou as Forças e Corpos de Segurança sem vinculação direta com as Forças Armadas. Por conseguinte, os constituintes espanhóis fizeram uma clara separação entre a função da polícia e das Forças Armadas. A partir de então, tanto a Guarda Civil como as forças policiais deveriam ser vistas como organizações paramilitares independentes, ao invés de extensões das Forças Armadas. A nova Constituição também mudou o papel das Forças Armadas de defesa da ordem institucional franquista para a defesa da ordem constitucional democrática. Mais do que mero formalismo, essa mudança representou um maior obstáculo contra intervenções militares autônomas na política. 24 Com este artifício institucional, a Constituição espanhola reconheceu que os militares podem intervir na política (não autonomamente) desde que convocadas pelo governo constitucional para defender o regime democratico.25 Ao invés de isolar as Forças Armadas do nascente regime democrático, a Constituição deu aos militares um papel político institucionalizado de defensores da democracia mas sob a supervisão civil.26 Os lideres civis foram diligentes no sentido de evitar que qualquer brecha constitutional permitisse a intervenção militar autônoma. O princípio da obediência devida que, na "guerra suja" argentina, serviu ao jogo de empurraempurra entre os que deram ordens atrozes e os que as cumpriram, foi diluido pelo Decreto-Lei real 85, de 28 de dezembro de 1978. Seu artigo 34 dizia claramente que nenhum militar está obrigado a cumprir ordens que transgridam a lei, particularmente a constitucional. Quem as cumprir, por conseguinte, assumirá a responsabilidade pelos seus atos. 27 A Constituição espanhola tomou uma outra decisão importante em prol do estabelecimento do controle civil sobre os militares. O artigo 107 estabeleceu o princípio da unidade jurisdicional como base para organização e funcionamento das cortes de justiça. Destarte, a prática da jurisdição militar ficou restrita a assuntos militares como abusos de autoridade militar, deserção e espionagem militar, etc. Com isso, um golpista militar seria automaticamente julgado por tribunal civil e as cortes militares finalmente perderam o privilégio de serem parte aejuiz em questões militares.

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"Tejeros e Saens Ynestrillas foram levemente punidos. Em 1980, eles foram condenados a penas de sete a seis meses de prisao respectivamente. Afora isto, o tribunal vetou qualquer possibilidade dos golpistas serem julgados por Tribunal Civil. E! Pais, 5 de agosto de 1980. 24 Há várias pessoas que acham que mudanças no texto constitucional não afetam o comportamento das Forças Armadas, pois os militares rasgarão a Constituição quando desejarem, independente do que estiver nela escrito. Se novas regras são insignificantes, tais pessoas devem explicar porque os debates sobre o papel constitucional das Forças Armadas foram tão intensamente disputados na Espanha. No Brasil, por exemplo, o general Leonidas Pires criticou asperamente os constituintes por terem suprimido, na primeira versão constitutional, o direito das Forças Armadas serem guardiãs da lei e da ordem. 25 Walder de Góes tem uma interpretação distinta. Para ele, as Constituições de paises democráticos não conferem um papel político aos militares. Portanto, diz ele, a Constituição espanhola de 1978 retirou qualquer papel político dos militares. GÓES, Walder de. "Militares e Política, uma Estratégia para a Democracia", in F.W.Reis a G.O'Donnel (eds.), A Democracia no Brasil, Sao Paulo, Vertice, 1988, pp.249-250. 26 A experiência espanhola deitou por terra a crença huntingtoniana de que somente se o corpo de oficiais estivesse motivado por ideais democráticos é que as Forças Armadas se tornariam obedientes ao Estado e, consequentemente, o controle civil seria estabelecido. HUNTINGTON, Samuel. The Soldier and the State, Cambridge, Harvard University Press, 1957, p.74. 27 PERTIERA, Gustavo. Legislación sobre Defensa Nacional, Madrid, Tecnos, 1988, p.395. Lembro que o Congresso argentino levou anos para decidir sobre a lei de obediência devida. Só não levou mais tempo porque uma rebelião militar, liderada por Aldo Rico, pressionou os congressistas a aprovarem tal lei.


A queda de Mellado e a tentativa de golpe A autoridade de Gutierrez Mellado já vinha em franca decadência. No início de 1978, este processo se intensificou. O braço militar do ETA incrementou seus ataques e terminou por assassinar o comandante Herrera Hernandez e o governador militar de Madrid, general Ortin Gil, cujo enterro transformou-se numa manifestação contra o governo Suárez e, em particular, contra Mellado. Ele foi insultado por alguns soldados que também gritaram Ejército al poder e fizeram a saudação facista.28 O terrorismo basco serviu para unificar as Forças Armadas como instituição, e os "duros" valeram-se dessa situação para atacar o governo democrático. Em abril de 1978, Suárez decidiu transferir Mellado para o recém-criado cargo de vice-presidente para assuntos de defesa e segurança, e o substituiu por um civil: Augustín Rodriguez Sahagún. Um mês depois de ter assumido o cargo, Sahagún se viu obrigado a tomar uma decisão importante: nomear um novo comandante-em-chefe do exército. Sahagún foi pressionado pelos "duros" para usar o critério de senioridade. O Comando Superior do Exercito estabeleceu as condições para a escolha do novo Jefe del Estado Mayor del Ejército (JEME) e propôs uma lista com três nomes. Sahagún, todavia, manteve o critério de Mellado: promoveu o general de divisão José Gabeiras Monteiro a tenente-general e o empossou.29 Entrementes, o braço armado do ETA continuava a fazer suas vítimas. Em 25 de maio de 1979, foram assassinados o tenente-general Luis Gomes Hortiguela e os coronéis Augustin Laso Corral e Jesús Avalos Gomariz. Em 23 de setembro de 1979, foi a vez do governador militar de Guipuzcoa, tenente-general González Vallés. Imediatamente, três altos oficiais da ativa (Milans del Bosch, González de Yerro e Pedro Merry Gordon) criticaram publicamente o governo acusando-o de falta de autoridade. Ao não punir os manifestantes, o governo corroborou o teor das críticas dos oficiais. Em janeiro de 1980, o Boletin Oficial del Estado publicou notícia onde o general Torres Roja, que se encontrava em férias nas Ilhas Canárias, havia sido removido do posto de comandante da poderosa Divisão Brunete. Ele fora nomeado governador militar de La Coruña, o que equivalia a um rebaixamento de função contrariando a tradição, pois quem deixava a Divisão Brunete era alçado a uma posição ainda mais alta. Miguel Angel Aguillar, editor do jornal Diário 16, revelou o verdadeiro motivo da transferência do general Rojas: ele tinha tentado dar um golpe. A revelação de Aguillar foi veementemente negada pelo ministro Sahagún em programa de televisão. No dia seguinte, Aguillar depôs ante juízes militares, desejosos por saber sua fonte de informação. Aguillar ficou obrigado a ter audiência mensal com o juiz militar e só podia sair de Madrid com autorização militar. 30 O incidente Aguillar mostrou que o princípio da unidade jurisdicional aprovado pela Constituição não funcionava na prática e trouxe à tona a fragilidade da autoridade de Sahagún: ele não controlava os militares mas não podia admitir publicamente o fato. Sua tentativa de transferir o general Rojas na surdina serviu para solidificar sua imagem de fraqueza. Os "duros" teriam uma nova importante vitória. Em 6 de maio de 1980, o tenente-coronel Tejero Molina e o capitão Saenz Ynestrillas foram punidos levemente por terem planejado um golpe (Operação Galáxia). Em liberdade, Tejero logo procurou minar a iniciante e frágil democracia espanhola. Junto com o civil García Carrés, organizou três festivais populares em homenagem à Guarda Civil. Ambos trataram de conseguir a adesão de 500.000 pessoas com vistas a pressionar o Parlamento e modificar o artigo constitucional 38 que havia criado diferentes papéis para as Forças Armadas e Guarda Civil. Tejero queria que a Guarda continuasse a ser uma extensão das Forças Armadas tal qual no regime franquista. Mesmo sob tensa atmosfera nas relações civis-militares, o Parlamento aprovou, em julho de 1980, a Lei Orgânica 6/1. Esta importante lei tanto estabeleceu o critério básico que regularia a defesa nacional e a organização militar como o ajudou a institucionalizar o controle civil sobre os militares. O Parlamento decidiu que: a) caberia ao Legislativo controlar as ações administrativas do governo e dos militares; b) o rei foi confirmado como supremo comandante das Forças Armadas e deveria presidir os encontros da recém-criada Junta de Defesa Nacional - orgão consultor do governo para assuntos de defesa nacional; c) a JUJEM, representante das três forças militares, tornou-se organicamente dependente do Ministério de Defesa; d) a natureza da Guarda Civil foi explicitada. Em época de guerra, a Guarda ficaria sob a jurisdição exclusiva do Ministério da Defesa. Já em tempo de paz, a Guarda dependeria do Ministério da Defesa para assuntos militares, 28

"MORALES e CELADA. La Alternativa, op.cit., pp.40-50; GILMOUR. The Transformation, op.cit., p.237. Alguns tenentes-generais, para expressar seu descontentamento, boicotaram o tradicional almoço oferecido pelo JEME por ocasião da reunião do Comando Militar do Exército. ARMADA, Afonso. Al Servicio de la Corona,Barcelona, Editorial Planeta, 1989, p.215. 30 Miguel Angel Aguillar, entrevista com o autor, 26 de junho de 1989.

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como por exemplo, participar de manobras e treinos militares, e do Ministério do Interior para assuntos referentes a manutenção da ordem e da segurança pública.31 É importante realçar que caberia ao Parlamento decidir quando o paÍs se encontrava em situação de guerra ou paz. 0 desencanto com a democracia espanhola crescia a olhos vistos: aumento da inflação, criminalidade, corrupção, deterioração do nível de vida, crise político- partidária, etc., fazia com que os espanhóis suspeitassem da validade do projeto democrático. Os militares captaram os sinais das ruas e reavaliaram para cima a probabilidade de sucesso de um golpe de Estado. Os "duros" tinham programado para o dia 2 de maio de 1981 o golpe dos coronéis. Por sua vez, alguns membros da JUJEM articularam um golpe mais brando. 0 lider da empreitada seria o general Alfonso Armada Comyn que deveria deslanchar a Operação Charles De Gaulle no dia 21 de março de 1981. Neste golpe, o rei seria preservado e Armada procuraria criar um governo de unidade nacional cabendo a ele próprio o papel de grande lider, como no exemplo francês. 0 general Milans del Bosch, ao descobrir que Armada também planejava um golpe, tratou de antecipar o golpe dos coronéis e organizou a Operação Duque de Ahumada. 0 governo estava tão debilitado, que os golpistas se deram ao, luxo de competir entre si sobre quem e qual grupo arrebataria primeiro o poder. No dia 29 de janeiro de 1981, Suárez, num programa televisivo, fez um anúncio surpreendente: renunciava ao cargo de primeiro-ministro alegando não querer que o regime democrático fosse mais uma vez um parentese na historia espanhola. 32 A renúncia de Suárez tomou de surpresa os lideres golpistas, e aumentaram os rumores acerca do advento do golpe. Esta hipótese era abertamente comentada inclusive pela imprensa. Dois dias depois da partida de Suárez, o colunista do jornal ABC, Emilio Romero, publicou um artigo discorrendo sobre a "Solução Armada", um trocadilho envolvendo o golpe armado e o líder golpista general Armada. 33 O rei Juan Carlos estava atento aos acontecimentos. No dia 3 de fevereiro de 1981, chamou Armada e avisou que ele deixaria de ser governador militar de Lérida e iria para Madrid, pois havia sido promovido a Segundo Jefe del Estado A7ayor del Ejército (JEME).34 Em 13 de fevereiro de 1981, o general Armada se encontrou com o rei e o vice-presidente general Gutiérrez Mellado para informar sobre sua "preocupação com a situação espanhola".35 Os "duros" também estavam preocupados com a transferência de Armada para a capital, interpretando-a como sinal de debilidade do governo e apoio a um golpe brando.36 Em 23 de fevereiro de 1981, o incontrolável tenente-coronel Antonio Tejero Molino passou por cima da organização do golpe e tomou o Parlamento juntamente com duzentos membros da Guarda Civil. Do Parlamento anunciou que só aceitava ordens do general Milans del Bosch.37 Tejero pagaria caro pelo seu gesto tresloucado: a maioria das unidades militares não foram em seu auxílio. O comandante da Divisão Brunete, general Juste, por exemplo, vacilou a princípio até que decidiu ficar contra os golpistas.38 Supostamente, o rei desempenhara um importante papel na manutenção da democracia espanhola. Durante o golpe, tanto Tejero quanto Milans del Bosch, mostraram deferência para com Juan Carlos. Do Congresso, Tejero enviou mensagem a ser publicada pelo jornal El Alcdzar na qual dizia que ele e suas tropas "aceitam e respeitam o rei” e queriam que ele liderasse o país "com o apoio das Forças Armadas".39 Por sua vez, Milans del Bosch, enquanto movia tropas em Valencia em apoio a Tejero, mandou um comunicado afirmando ser "minha obrigação garantir a ordem na região militar do meu comando até que receba ordens de Sua Majestade o rei".40 Mais recentemente, o líder comunista Santiago Carrillo declarou que se a Espanha fosse uma República, o Tejerazo teria tido sucesso.41

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PERTIERA. La Legislación, op. cit., pp. 33-44. URBANO. Con la Venia, op. cit., p. 54. 33 PRESTON. The Triumph, op.cit., p.189 34 ARMADA. Al Servicio, op.cit., p.228; URBANO. Con la Venia..., op.cit., p.72. Temeroso de um golpe a la Turquia, o rei optou por um golpe brando que preservaria a realeza 35 Ib. p.285. 36 De acordo com a sentença do golpe de 23 de fevereiro de 1981, os preparativos finais para o golpe haviam sido suspensos por um mês até que os golpistas encontrassem a data correta. A moção parlamentar contra Suárez e a promoção de Armada para Segundo JEME foi interpretada pelos golpistas "duros" como sinal de chegada do momento ideal. Ib., p.252. 37 GILMOUR. The Transformation, op.cit., p.242. 38 Ib. p.243. 39 El País, 3 de abril de 1981. Durante o julgamento do golpe de 23-f, Tejero, todavia, confessou ser republicano. 40 El Pais, 25 de agosto de 1988. 41 ABC, 25 de agosto de 1988. Para chegar a essa conclusão, Carrillo confundiu duas unidades de análise: realeza/república com rei/presidente. 32


Discordo dos autores que ainda acreditam ter o golpe falhado na Espanha graças a atuação de Juan Carlos. não podemos cair na armadilha do ex post determinismo ou do ex post facto hipoteticismo. Ou seja, não devemos ignorar a possibilidade de que o golpe poderia ter dado certo só porque o mesmo deu errado, nem devemos gerar hipóteses ligando duas variáveis depois que seu relacionamento já é conhecido. 0 rei Juan Carlos tinha dois exemplos que poderiam tê-lo influenciado na adesão à democracia. Seu avô, o soldado-rei Alfonso XXIII, apoiou o golpe liderado pelo general Primo de Rivera mas terminou perdendo a coroa quando o ditador foi deposto. Na Grécia, seu cunhado, o rei Constantito, simpatizou com o golpe militar e também perdeu o cetro quando os golpistas foram aprisionados. Todavia, exaltar o compromisso democrático de Juan Carlos a partir desses fatos é precipitado. Algumas alternativas ex ante poderiam ter ocorrido: a) por que Juan Carlos concordou em transferir o general Armada para Madrid quando se comentava abertamente uma "Solução Armada"? Se ao invés de Tejero, Armada saísse na frente, como teria reagido o rei? Optaria pela democracia caso o golpe "brando", ao invés do "duro", tivesse ocorrido?; b) embora Juan Carlos houvesse convencido, oficiais relutantes a ficarem contra o golpe, a pergunta contrafatual permanece válida: como podemos garantir que o oposto não poderia ter ocorrido, isto é, os militares terem convencido o rei? 0 famoso discurso real foi proferido na madrugada do dia 24 de fevereiro, ou seja, ele teve tempo suficiente para estimar se o golpe ia bem ou mal. Por que o rei não defendeu a democracia logo que soube que o Parlamento fora tomado? O novo governo 0 novo primeiro-ministro, Leopoldo Calvo Sotelo, e seu ministro da defesa, Alberto Oliart, entenderam rapidamente que se Tejero defendeu uma alternativa inválida, isto, todavia, não representava o âmago do problema. A questão básica a ser enfrentada era: no bojo de uma nova crise teriam os militares o direito de intervir novamente em nome da ordem e da lei? Oliart tratou de implementar mudanças institucionais que excluíssem a possibilidade dos militares continuarem com seu comportamento autônomo ao mesmo tempo em que procurou mostrar que a democracia não ameaçaria os valores militares, como a unidade da pátria. 0 governo democrático persuadiu os militares que a concessão de autonomia para a Catalunha, Galícia e País Basco não significava independência destas regiões da Espanha. Oliart tambeé evitou uma razzia dentro das Forças Armadas. "Não devemos julgar os militares pelo que pensam, mas pelo que fazem", explicou-me o ministro42 para justificar a promoção do general Luis Caruana, acusado de ter simpatizado com Milans del Bosch na noite do golpe. Para Oliart, o mais importante foi que Caruana cumpriu as ordens do comandante-em-chefe do exército e prendeu o general golpista. Focos reacionários continuavam a existir. Em 5 de dezembro de 1981, alguns (sub)oficiais assinaram o Manifiesto de los Cien em protesto contra a liberdade de imprensa e a política militar do novo governo. Calvo Sotero reagiu com pulso ao encarcerar alguns dos manifestantes bem como prejudicou suas carreiras.43 Um dos pontos altos da gestão Oliart foi o julgamento por Corte Militar de Tejero e Milans del Bosch. A referida Corte ordenou a expulsão dos golpistas do exército. Pela primeira vez na recente história espanhola, um tribunal militar puniu militares por terem cometido crimes contra civis. Paralelamente, Oliart se negou a discutir a possibilidade de conceder anistia aos membros da UMD, e tratou de introduzir a Espanha na OTAN.44 No início de junho de 1981, o Parlamento aprovou um Decreto-Lei que regulava e clarificava conceitos jurídicos como estado de alarme, exceção e sítio. Ficou explícito que somente em caso de extrema necessidade uma autoridade militar comandaria o país, cabendo ao governo ou Parlamento a decisào de nomear e demitir a referida autoridade. A lei com suas filigranas jurídicas tinha o propósito de criar suficientes obstáculos para deter qualquer tentativa militar, diante de acontecimentos excepcionais, de tentar violar compromissos democráticos anteriores. Oliart não se descuidou dos serviqos de inteligência. 0 CESID havia sido criado para manter o governo informado, mas com o passar do tempo passou a informar diretamente as Forças Armadas. Através da Ordem Ministerial 15, de 30 de setembro de 1991, Oliart procurou trazer o CESID de volta às suas origens: ser a agência de informações civil do primeiro-ministro.

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Alberto Oliart, entrevista com o autor, Madrid, 30 de junho de 1988. BUSQUETS, Julio. Pronunciamientos a Golpes de Estado en Espaiea, Barcelona, Ed. Planeta, 1982, p.60. 44 Sugiro não se superestimar a influência dessa variável externa na explicação do sucesso da transição espanhola. A Turquia também é membro da OTAN , mas lá não foi estabelecido o controle civil sobre os militares. 43


Um socialista no Ministério da Defesa Com a vitória do PSOE, nas eleições de outubro de 1982, Narciso Serra foi nomeado ministro da defesa. Ao contrário de Sahagún e Oliart, Serra tomou posse numa atmosfera política bem mais calma. Seu mérito maior residiu na capacidade de conduzir a relação estratégica civil-militar rumo a criação de arranjos institucionais que beneficiassem tanto civis como militares. Em fevereiro de 1983, Serra introduziu mudanças no papel da JUJEM por motivos técnico e político.45 De acordo com uma publicação do Ministério da Defesa46, as Forças Armadas chegaram a conclusão que ter um corpo coletivo discutindo operações militares não era o modo mais eficiente de se tomar decisões. Por isso mesmo, as Forças Armadas favoreceram o estabelecimento de um comando único. Politicamente, Serra queria deixar claro quem comandava e controlava as Forças Armadas pois, até então, as prerrogativas da JUJEM se chocavam com as do ministro da defesa. Serra continuou a promover mudanças institucionais. A Lei Orgânica 1/5, de janeiro de 1984, introduziu as seguintes mudanças: a) somente através da delegação do primeiro-ministro, estaria o ministro da defesa capacitado a exercitar alguns de seus deveres relacionados com a política militar e de defesa; b) a JUJEM, ao invés de um corpo de comando militar, tornou-se uma organização militar consultiva. Este artifício institucional impediu que a JUJEM pudesse interferir na autonomia do ministro da defesa; c) criou-se a figura do Jefe del Estado Mayor de la Defensa (JEMAD), que passou a ser o principal assessor do Ministério da Defesa para assuntos de planificação e execução da política militar;47 d) caberia ao Parlamento, como orgão controlador da administração civil e militar, autorizar a guerra e a paz e fazer tratados ou acordos militares internacionais. Afora isso, o Parlamento teria o direito de debater as linhas gerais da política de defesa e orçamento para programas militares de armamento. Como se nota, sob o pálio de dar mais eficiência as Forças Armadas, esta lei retirou o conteúdo político das instituições militares. Por exemplo, Serra tinha o direito de nomear o JEMAD e negociar diretamente com o mesmo os assuntos militares. Enquanto isso, a JUJEM só seria convocada quando o governo julgasse importante ouvir sugestões militares. Para contrabalançar as suscetibilidades militares, Serra levou o Parlamento a aprovar, em 14 de maio de 1984, uma lei que teve efeitos distributivos. As Forças Armadas receberam um orçamento maior para enfrentar as necessidades materiais referentes ao período 1986-1994. De fato, desde que Serra assumiu o Ministério, o Parlamento aprovou um acréscimo médio de 11% ao ano.48 O Decreto-Real, de 12 de dezembro de 1984, ao mudar a lei sobre a reserva ativa, tentou novamente avançar o controle civil sobre os militares. Até então, os membros da JUJEM eram substituídos pelo critério de idade. Com a nova lei, o JEMAD e os "jujemistas" puderam ficar em seus postos por quatro anos além da idade de reserva. O momento da aprovação da lei foi estratégico: Serra tinha acabado de trocar os antigos membros da JUJEM e nomeado o JEMAD. Mais uma vez, sob o pretexto de conferir maior eficiência às Forças Armadas, Serra reteve por um período mais longo um grupo de oficiais sintonizados com suas idéias políticas e profissionais. Serra, tal qual Oliart, procurou exercer maior controle democrático sobre o CESID. O Decreto-Real 135, de 1984, determinou que o CESID ficasse organicamente dependente do ministro da defesa e funcionalmente sob a alçada do primeiro-ministro. Além disso, o primeiro-ministro estabeleceu ser o CESID somente seu serviço de inteligência mesmo que dependente organicamente do Ministério da Defesa.49 O uso indiscriminado dos serviços de inteligência para assuntos internos foi abolido na Espanha, bem como a mentalidade franquista do "inimigo interno". Por exemplo, a mais poderosa unidade militar espanhola, a Divisão Brunete, estava estacionada na periferia de Madrid, sem espaço para manobras militares.50 Serra

45

A JUJEM foi criada através do Decreto Real 11, em 08 de fevereiro de 1977. Por definição, a JUJEM era o corpo superior das Forças Armadas para assuntos de politica militar. Em 1978, a lei que criou o Ministério da Defesa determinou que a JUJEM ficasse organicamente dependente deste Ministério. 46 MINISTRO DE DEFESA. Memória de la Legislatura (1982-1986), Madrid, Secretaria General Técnica, 1986, p. 46. 47 0 líder da JUJEM tinha o título de presidente, enquanto que o comandante do JEMAD recebeu o titulo de Jefe. Mais que mera mudança semântica, Serra procurou deixar claro aos militares que o JEMAD tinha um superior imediato: o ministro da defesa. Luis Reverter (porta-voz de Narciso Serra), entrevista com o autor, Madrid, 4 de julho de 1988. 48 ABC, 07 de agosto de 1988. 49 MINISTÉRIO DE DEFENSA. Memoria de la..., op.cit., p.75. 50 No Brasil, a Vila Militar continua encravada no Rio de Janeiro sem espaço para manobras com armamento pesado.


entendeu que o objetivo dela era exercer controle social sobre a população e decidiu dividí-la: enviou a Brigada mecanizada para longe da capital - Badajoz. 0 controle democrático sobre a polícia também foi contemplado por Serra. Em 1979, Adolfo Suárez trocou o nome de Policia Armada, responsável pela repressão politica, pelo de Policia Nacional e também o uniforme.51 Saiu o gris e entrou o marrom. 52 Como as mudanças foram apenas no nome e uniforme, o antigo esqueleto policial e suas práticas permaneceram. Por exemplo, durante a manifestação estudantil realizada em Madrid no dia 8 de dezembro de 1979, a polícia matou dois estudantes. Suárez havia iniciado o processo de desmilitarização da polícia conforme contemplado pela Constituição que havia separado as funções de polícia das Forças Armadas. Serra adotou tal política e especificou que policiais só poderiam receber treinamento em suas próprias academias e o governo reconheceu os sindicatos policiais. Em 1983, Serra incentivou a junção dos Cuerpos Superiores de la Policia, a polícia à paisana, com a Policia Nacional redundando no Cuerpo Nacional de Policia. Com este movimento, Serra aumentou o número de civis na força policial. No ano de 1984, as Forças policiais, pela primeira vez, estiveram ausentes da parada em homenagem ao Dia das Forças Armadas. A Guarda Civil exigiu uma solução particular. Tradicionalmente vista como uma força reacionária, seus membros costumavam morar em quartéis no interior, onde era forte a presença franquista. Na Espanha democrática, a Guarda passou a ter uma função mais urbana deixando para trás seu isolacionismo a imagem autoritária. Pela primeira vez em 150 anos de história, um civil e membro do PSOE foi nomeado por Serra, em novembro de 1986, para comandar a Guarda. Como a Guarda estava subordinada tanto ao ministro da defesa como ao do interior, o plano de Serra foi criar uma polícia civil e uma militarizada (mas não militar), nos moldes da Policia Nacional e Gendarmeria francesa. Portanto, ao contrário da época franquista, um guarda civil poderia ser soldado ou policial, mas nenhum soldado ou policial poderia se tornar guarda civil.53 Serra também mostrou habilidade quando, ao invés de isolar os militares da ordem democrática, procurou fundir as atividades civis com as militares e vice-versa. A Lei Orgânica 9/15, de julho de 1983, é emblemática desse espírito. 0 artigo 4.4 ao mesmo tempo que desestimulava o partidarismo militar, incentivava os militares, mesmo fardados, a participarem de atividades públicas civis. Ao diferenciar o ser militar do agir como militar e de quando ele se comporta como civil, a lei enfatizou uma importante crença: o exercício da cidadania fora dos quartéis daria aos militares um duplo incentivo em defesa da democracia - como cidadãos e como militares. As Leis Orgânicas 12 a 13, aprovadas em novembro e dezembro de 1985, seguiram o mesmo espírito de aproximar os interesses civis dos militares e vice-versa. Elas diferenciaram as ofensas civis das militares. Violações dentro da esfera militar, tais como indisciplina, indecência, quebra de confiança, abuso de autoridade, etc., ou qualquer comportamento que prejudicasse a missão constitucional das Forças Armadas, deveriam ser julgadas pelo Código Penal Militar. Por sua vez, ofensas como tentativa de golpe, má conduta de oficial ante autoridade civil, deveriam ser julgadas por responsabilidade civil. A Lei Orgânica 4/15, de julho de 1987, propiciou a oportunidade para que civis e militares trabalhassem sob o mesmo teto. Ela organizou e estabeleceu a competência da jurisdição militar e introduziu duas mudanças capitais. Em primeiro lugar, somente corpos militares judiciais passaram a ter prerrogativa de exercer funções judiciais, já que anteriormente corpos de comando tinham exercido tal função. Segundo, foi criada a Sala de lo Militar del Tribunal Supremo, composta de oito membros: quatro civis nomeados pelo Judiciário e quatro militares oriundos do Judiciário Militar, mas nomeados através de Decreto-Real com o consentimento do ministro da defesa. Estas mudanças significavam que o governo, além de poder controlar nomeações corporatistas, podia rastrear mais facilmente movimentos suspeitos dentro dos quartéis. Do mesmo modo, os militares tiveram a garantia de que a hierarquia não seria confundida com intolerância e isto os incentivou a ter um comportamento mais democrático, já que poderiam apelar aos juizes civis para julgarem seus casos. Convém lembrar que a Sala de lo Militar tornou-se a mais alta instância militar de apelação judicial, pois tinha poder de veto sobre as decisões tomadas pelo Tribunal Central Militar e os Tribunais Militares Territoriais.54 51

HUDSON, Robert C. "Democracy and the Spanish Police Forces", in The Police Journal, n°- 59, 1975, p.56. Cinza em espanhol significa gris. Daí a Polícia Armada ser chamada de Gristapo. 53 Isto explica porque Serra não concedeu o direito de sindicalização à Guarda Civil. 54 Este exemplo de mudança institucional lembra o incorreto argumento de Fábio Wanderley Reis. Ele sugeriu o estabelecimento de um poder militar corporativo paralelo ao civil para se estabelecer o controle civil sobre os militares. Usou um exemplo interessante: os militares brasileiros "duros" quando nomeados para o Supremo Tribunal Militar se 52


O Jogo Um dos propósitos de ter escrito uma cronologia histórica foi mostrar que a estratégia de um ator político é função da história observada. Vimos, portanto, ocasiões em que os civil tentaram impor o controle civil e foram continuamente rechaçados pelos militares. Por maior que fosse a resolução dos civis, de nada adiantaria, pois os militares tinham uma estratégia dominante: desafiar a autoridade civil independente de seu comportamento. Por sua vez, os civis deixaram nitidamente de impor sua vontade nos momentos que antecederam a queda de Suárez. Ou seja, os civis foram se ajustando aos interesses militares e estes passaram a competir entre si para ver quem seria o primeiro a dar o golpe. Com o fracasso do golpe, observamos uma mudança no comportamento dos militares. Ao perceberem que seu peso político havia diminuído, mesmo os militares cuja preferência principal era viver sob o regime autoritário passaram a apoiar o regime democrático, pois perceberam que a probabilidade de um golpe ser bem sucedido era muito baixa. Assim sendo, eles que costumavam desafiar os movimentos de imposição do controle democrático, começaram a obedecer sistematicamente aos comandos civis. Concomitantemente, os civis não mais se intimidaram com os desafios militares e passaram a impor sua vontade sem vacilações. A natureza das relações civil-militar até o golpe de 23 de fevereiro e após o mesmo são sintetizadas nas figuras abaixo:

Impõem

Militares Desafiam Obedecem X

Civis

Impõem

Militares Desafiam Obedecem X

Civis Ignoram

Ignoram

Fig. 1: situação pré-golpe

Fig. 2: situação pós-golpe

Mesmo depois do fracassado golpe, os civis continuaram a ter as Forcas Armadas como parceiras no novo regime em lugar de transformá-las num quisto social. Através de arranjos institucionais, ao invés de um processo de ressocialização, 55 os civis conseguiram provar aos militares que as relações sociais democráticas e não as autoritárias, fariam melhor avançar os interesses militares. De fato, a democracia espanhola assegurou às Forças Armadas maior orçamento, melhor performance nos campos de batalha, maior qualidade de vida aos seus membros e um código profissional mais humano.

comportam moderadamente. REIS, F.W. "Rationality, Sociology, and the Consolidation of Democracy", Manuscrito, Chicago, Universidade de Chicago, 1989, p.54. Na Espanha, todavia, a moderação foi obtida institucionalmente com a criação da Sala de lo Militar, isto é, civis e militares passaram a trabalhar juntos numa instituição investida de poder parlamentar. 55 Acredito que lançar um programa de reeducação sem mudanças paralelas nas condições políticas que envolvam os setores é inútil: oficiais africanos foram enviados para estudar em Sandhurst a Saint Cyr, no entanto, ao retornarem lideraram golpes de Estado. Durante a gestão Allende, o general Pinochet era considerado o exemplo de oficial constitucionalista. O general Ogania pertenceu à facção "profissionalista" azul, mas não hesitou em golpear o presidente Illia. Mais recentemente, o general Noriega, que recebeu treinamento em academia militar norte-americana por dois anos, tornou-se o homem forte do Panamá. A Espanha também teve seu exemplo: o general Torres Rojas, que tentou o golpe de 1980 a apoiou o 23-f, recebeu treinamento em Fort Bragg, Carolina do Norte.


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