Editora Ampulhera 01

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Coleção

Políticos do Século XX A Editora Ampulheta tem a honra de apresentar ao seu público leitor a coleção “Políticos do Século XX”: uma série em dez volumes de obras monográficas sobre as trajetórias de vida de importantes políticos brasileiros do século XX. Boa leitura.


Expediente Conselho Editorial

Renata P.F. de Carvalho Helton Rubiano de Macedo

Editores

Felipe Augusto Dias de Freitas Tyego Franklim da Silva Vânia Jucara da Silva

Revisão

Felipe Augusto Dias de Freitas Vânia Jucara da Silva

Capa e diagramação

Tyego Franklim da Silva

Supervisão editorial

Helton Rubiano de Macedo

Catalogação da Publicação na Fonte Editora Ampulheta Bibliotecária Vânia Juçara da Silva D192m Dantas, Elynaldo Gonçalves. Marighella: aquém do que se vê / Elynaldo Gonçalves Dantas; – Natal: Editora Ampulheta, 2015. 66 p. : il. ; 23 cm (Políticos do Século XX) ISBN 9**-**-****-***-* 1.História do Brasil. 2. Política. 3.Comunismo. 4.Brasil. 5. Marighella. II. Título. II. Série. CDU 94(81) Esta edição é para fins acadêmicos e sua comercialização e circulação são proibidas. Todos os direitos desta edição são reservados ao autor do texto, Elynaldo Gonçalves Dantas.


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Sumário Introdução ................................................................................. 6 Capítulo I: Em nome do Partido ............................................. 12 Capítulo II: Fé cega, faca amolada.......................................... 40 Referências bibliográficas ....................................................... 64 Sobre o autor ....................................................................... 66

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____________________________ Introdução

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eu interesse por estudar Carlos Marighella, surgiu da reflexão sobre um período recente da nossa história, a Ditadura Militar, período esse carregado de alegrias e sofrimentos, de batalhas travadas nas trevas. E nesse contexto Carlos Marighella figura como um dos expoentes das batalhas contra a ditadura. Mas quem seria mesmo Carlos Marighella? Quem seria esse homem que nos aparece hoje como um herói da luta pela liberdade, que nos é apresentado como representação do militante ideal, forjado no ardor das batalhas? O mergulho intelectual na vida de Marighella me fez descobrir um universo de obras de sua própria autoria, por meio das quais podemos acompanhar não só a transformação do seu pensamento político, mas também podemos ver um homem que sofreu de amor em suas poesias e que, embalado por um bom samba e uma caipirinha, assistia maravilhado Garrincha jogar e mais maravilhado ainda admirava a beleza e a sensualidade das mulatas. Um homem que procura ligar sua identidade revolucionária à uma ascendência que juntava o sangue italiano com o sangue africano. Um homem e uma fé cega – o Comunismo. Um homem que pela Causa sacrificou sua mocidade, e que ao perceber a inércia do Partido Comunista Brasileiro frente aos desmandos dos “militares fascistas”, e a possibilidade de um novo caminho, as armas, “a faca amolada”, decide ir à luta, uma luta teórica e prática em busca de uma sociedade livre.

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A escolha desse tema se inscreve dentro de uma perspectiva atual e legítima, uma vez que assistimos uma ascensão dos partidos que tem suas origens ligadas à esquerda, fenômeno não exclusivo ao Brasil, mas que acontece também em toda América Latina. Além disso, também são acaloradas as discussões acerca das posições políticas adotadas durante os “anos de chumbo”. Já na comunidade acadêmica é crescente o interesse pelas questões referentes ao período do Regime Militar e vários trabalhos têm escritos nesse sentido, alguns partindo da intenção de revelar uma verdade escondida, ocultada, pretendendo mostrar quem são os heróis e vilões dessa época, e acabando por construir mitos. Nesse livro, porém, não pretendemos entrar no mérito de quem estava certo ou errado, nosso esforço é o de acompanhar o percurso de vida e o desenvolvimento intelectual de Carlos Marighella, o que nos fará entender como ele foi transformado em mito ainda em vida, e como esse mito ganhou novo significado após sua morte, entendendo ainda que em cada contexto esses mitos serviram para a construção de certas realidades. Encaramos a construção do mito Carlos Marighella como sendo resultado de verdades elaboradas para atender a determinadas demandas do presente que (re)configuram o passado, criando assim uma realidade, na qual a construção do mito Carlos Marighella é utilizada como símbolo de um povo de uma nação que luta pelos seu direitos que luta pela liberdade, uma nação gigante e brava de um passado glorioso. O processo de redemocratização brasileira foi assentado por um processo conciliador, no qual, em nome da democracia, vencedores e vencidos se deram as mãos. Com a ascensão de partidos que tem suas origens ligadas à esquerda, se faz necessária a elaboração de um imaginário que projete visões, e que molde condutas, visando atingir o coração dos brasileiros.

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Nesse esforço de reconstrução da memória histórica nacional, são construídos mitos que redesenhados, a cada momento, possibilitam a projeção do presente no passado, servindo então para a construção de uma realidade idealizada. Nesse sentido, como exemplo dos valores democráticos de liberdade e igualdade serve a produção do mito Carlos Marighella. No dia 04 de setembro de 2009, na comemoração dos quarenta anos da morte de Marighella, pudemos acompanhar em alguns canais televisivos, na câmara dos Deputados, nas ruas, atos políticos quem buscavam (re)lembrar a sua vida e luta. Junto às fotos do revolucionário, nos saltam aos olhos frases “Marighella vive”, “é preciso resistir”. O nome Carlos Marighella, é então colocado ao lado de “heróis” símbolos da luta pela liberdade, como, Che Guevara e Tiradentes. Mas será que Marighella foi desde sempre a representação da sociedade brasileira? Será ao menos que seu nome foi consenso dentre a esquerda brasileira? Em discurso emocionado feito no dia 10 de dezembro de 1979, ano da decretação da Anistia Política, por ocasião do sepultamento dos restos mortais de Marighella, Luís Carlos Prestes, um dos maiores nomes do Partido Comunista Brasileiro (PCB), afirma: “O Brasil popular e socialista cultuará para todo o sempre a tua memória”.1 Nosso objetivo é procurar entender quais foram os caminhos trilhados por Carlos Marighella, desde a sua infância na cidade de Salvador, passando por seu ingresso na vida política por meio do PCB, seu assassinato sob a alcunha de inimigo público número um do Brasil (do Regime Militar), até o processo em que tem sua imagem ressignificada em herói nacional. Herói este que nasce onde

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EMILIANO, José. Carlos Marighella, o inimigo número um da ditadura militar. 2ª ed. São Paulo: Sol & Chuva. 1997, 94 p.

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se encontram poder e saber, gestado a partir de práticas discursivas e imagéticas. Nesse sentido, se faz necessário olhar aquém do que se vê, olhar aquém do mito Carlos Marighella para perceber quais as peças utilizadas em sua construção. Mito esse que serve como mais uma peça do processo de reconstrução da memória histórica, da reconstrução da nossa realidade. Para isso é preciso romper com a ideia de uma verdade única, de uma linearidade dos acontecimentos. A vida de Marighella, foi marcada por contradições, por lutas e por (r)evoluções de pensamento, mitificado ainda em vida, ganhou novo sentido após sua morte, sua imagem a muito serviu para a construção de realidades diversas, promovidas por grupos distintas em vários contextos. Não devemos situar o mito Carlos Marighella num plano a-histórico, pois ele é parte da construção de certas realidades, entendendo essas realidades como múltiplas instâncias que se inter-relacionam em um processo de afirmação e negação mútuo. Para realizar essa pesquisa partiremos da análise de vários tipos de fontes, desde biografias, passando por livros, cartas, panfletos, poesias de autoria própria de Marighella, até publicações em jornais e revistas, que trataram da imagem e do pensamento de Carlos Marighella, representações construídas a partir de práticas discursivas, assim como por meio de outras práticas que participam da elaboração do real. Não nos preocupamos em trazer à luz um Marighella verdadeiro, legítimo, mas sim um Marighella problematizado. Nesse encalço esse livro foi dividido em três capítulos: “Em nome do Partido”, “Fé cega, faca amolada - Marighella entre a cruz e a espada” e “A (re)Construção do mito”. No primeiro capítulo procuramos fazer um balanço biográfico de Carlos Marighella, desde seu nascimento até o Golpe de 1964. Buscando a partir da análise de seu pensamento e de sua

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trajetória de vida, buscamos entender em que condições se deu sua entrada na política nacional, como foram os seus mais de trinta anos de militância no Partido Comunista e quais as causas que o levaram a uma ruptura teórica com o mesmo. No segundo capitulo, a partir da análise biográfica e de seus próprios escritos, busco apresentar o lado humano de Carlos Marighella, sujeito às mudanças de pensamentos e, ao sabor dos acontecimentos. Tentamos apresentar o homem Carlos Marighella, que como tal, era muitas vezes contraditório, e sujeito a mudanças em suas perspectivas e aspirações. Que após 1964, vivenciou profundas revoluções em suas ideias e em seu comportamento. Um homem que jamais aceitou sair do Brasil para o exílio, que deixou seus ideais sobressaírem perante os riscos. Para tal fim, busco a partir de seus textos, analisar como se deu essa (re)volução em seu pensamento, o que fez o então veterano militante político de 57 anos de idade, romper com o partido que defendera durante mais de 30 anos, assumindo então uma opção radical pelo combate armado. Ressaltando que com as experiências acumuladas, expostas no capitulo anterior, ele já tinha bases concretas que permitiam que pusesse em prática uma nova opção política. No terceiro capitulo, visamos, a partir da desconstrução do mito, apresentar as peças que participaram da elaboração de realidades diversas. Quais os discursos e imagens participaram de construções tão diferentes sobre a mesma pessoa, transformando-o em vilão símbolo máximo do mal comunista que ameaçava toda a ordem brasileira ou em herói a favor da liberdade. Buscamos entender, assim, qual o lugar que a representação de Marighella ocupa no imaginário coletivo brasileiro desde meados dos anos 1960, a partir de práticas discursivas diversas, uma das quais contou com o próprio Carlos Marighella como participante. Entendendo à luz do pensamento de Cornelius Castoriadis, que a institucionalização social

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imaginária do mito Marighella funciona como tecido complexo de significações que “[...]impregnam, orientam e dirigem toda a vida de "uma dada" sociedade e todos os indivíduos que, corporalmente, a constituem”2. Caracterizado assim como criação social-histórica que forma um conjunto de significações imaginárias, dado que é um processo de criação e por não corresponder e nem se esgotar em referências a elementos “racionais” ou “reais”. E social, porque só têm existência enquanto são instituídas e compartilhadas por um coletivo impessoal e anônimo.3

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CASTORIADIS, Cornelius. O social histórico e significações imaginárias da sociedade. 5 ed. São Paulo: Paz e Terra, 2000, p. 230. 3 Ibid., p.231.

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Capítulo I

Em nome do Partido

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arlos Marighella nasceu na cidade de Salvador, no dia 5 de dezembro de 1911, filho de Augusto Marighella, mecânico nascido na Itália e de Maria Rita Marighella, negra descendente dos haussás. Desde fins do século XIX o Brasil recebia uma imensa leva de imigrantes italianos, que viviam uma conjuntura difícil no seu país de origem, onde o intenso processo de industrialização gerou uma realidade de milhares de camponeses sem terra e de milhares de desempregados, fato este que incentivou o crescimento dos movimentos sociais de orientação socialista e anarquista. Já os haussás faziam parte de um dos grupos africanos islamizados vindos do norte do Sudão que juntos aos mandiga ficaram conhecidos na Bahia como malês, conhecidos por suas lutas libertárias. É dessa união das identidades italiana e haussá, que Carlos Marighella mais tarde irá procurar justificar sua personalidade, justificando seu espírito rebelde e contestador. Na poesia “Canto Para Atabaque”, Marighella implicitamente liga sua ascendência africana à sua consciência revolucionária: Ei Brasil-africano! Minha avó era nega haussá, Ela veio da África, Num navio negreiro.

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Meu pai veio da Itália, Operário imigrante. O Brasil é mestiço, Mistura de índio, de negro, de branco. Bum! Qui bum-rum! Qui bum-rum! Bum-bum! Quem fez o Brasil foi trabalho de negro, de escravo, de escrava, com banzo, sem banzo, mas lá na senzala, o filão do Brasil veio da lá foi da África.4

O orgulho por sua ascendência, Marighella levou para o resto de sua vida como marca fundamental de sua identidade. Já em meados da década de 60, o próprio afirma que desde muito cedo passou a assumir ideais de justiça e liberdade graças a sua criação e sua condição de mulato: Descendo de italiano. Meu pai era operário, nascido em Ferrara. Chegara como imigrante em São Paulo e se transladara á Bahia. Minha ascendência por linha materna procede de negros haussás, escravos áfricos trazidos do Sudão (e afamados na história das sublevações baianas contra os escravistas). Desde criança habituei-me a meditar sobre um problema a respeito do qual meu pai me falava quase diariamente: - Por que o pobre trabalha toda sua vida e nunca tem nada? [...] Buscava uma interpretação da sociedade brasileira, algo que explicasse as contradições observadas no ambiente em que vivia- operários, estudantes, homens e mulheres do povo, sincretismo religioso, preconceitos de elite... Como homem do povo, escolhi cedo o caminho, que só podia ser o da luta pela liberdade.5

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MARIGHELLA, C. Poemas: Rondó da Liberdade. São Paulo: Brasiliense, 1994, p.3. 5 NOVA, Cristiane; NÓVOA, Jorge (Orgs.). Carlos Marighella: O homem por trás do mito. São Paulo: UNESP, 1999. p.45.

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Ao concluir o primário, Carlos foi estudar no Ginásio da Bahia, escola onde se destacou pelo espírito inventivo, irreverência e inteligência. Foi aí que seu espírito poético aflorou, merecendo destaque uma prova de Física respondida em versos no ano de 1929, a qual recebeu nota 10. Consta que se tratou de ponto sorteado – “Catóptrica, leis de reflexão e sua demonstração, espelhos, construções de imagens e equações catóptricas” – o que confere caráter de improviso à referida poesia, da qual são os versos a seguir: [...] Doutor, a sério falo, me permita Em versos rabiscar a prova escrita. Espelho é a superfície que produz, Quando polida, a reflexão da luz. Há nos espelhos a considerar Dois casos, quando a imagem se formar. Caso primeiro: um ponto é que se tem; Ao segundo um objeto é que convém. Seja a figura abaixo que se vê, O espelho seja a linha Beta-Cê. O ponto F um ponto dado seja. Como raio incidente, R se veja. O raio refletido vem depois E o raio luminoso ao ponto 2. Foi traçada em seguida uma normal, O ângulo 1 de incidência a R igual. No prolongamento, luminoso raio Que o refletido encontra de soslaio. Dois triângulos então o espelho faz, Retângulos os dois, ambos iguais. Iguais porque um cateto têm comum, Dois ângulos iguais formando um [...]6

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MARIGHELLA, op. cit., p.13.

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Em depoimentos sobre sua juventude casos como os da prova escrita em versos ou de brincadeiras de criança são constantes, e esse espírito brincalhão, poético, aluno dedicado explicitam um lado de sua personalidade que irá acompanhá-lo até o fim de sua vida. Em 1929, matricula-se no curso de Engenharia Civil da Escola Politécnica de Salvador. A chamada “Revolução de 30”, que pôs termino à “Republica Velha”, viera como uma alternativa para os impasses estruturais e políticos sobre os quais se debatiam as oligarquias dominantes, e a busca por industrialização a qualquer custo, trouxe como consequência a expansão da classe operária e sua concentração nos grandes centros urbanos. E foi nos sindicatos independentes do Estado, mas nas mãos dos anarquistas a anarcossindicalista, que a classe operária encontrou uma possibilidade de se expressar. A “Revolução de 30” viera também com a proposta de “domesticar” os trabalhadores e suas organizações, como estratégia fundamental da dominação burguesa no país. Uma outra saída para a classe trabalhadora era o Partido Comunista do Brasil (PCB), que havia sido criado em 1922 por Astrogildo Pereira, trazendo consigo a sombra da Revolução Soviética e os ideais de um mundo mais justo e humano. É nesse quadro político que em 1932 Carlos Marighella ingressa na Juventude Comunista, atraído pelas bandeiras socialistas e pelas leituras de Marx e Lênin, que pareciam responder as suas questões sociais e existenciais. Nesse período a Bahia estava sob a liderança do interventor Juracy Magalhães, efetivado no cargo pela ditadura Vargas, que abre guerra aberta contra a imprensa, com censura, empastelamento de jornais, prisão de jornalistas, iniciando uma série de atos autoritários impede um comício promovido pela Liga Baiana Pró-Constituinte, em 1932. Juracy Ordena no mesmo ano o cercamento da Faculdade

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de Medicina pela polícia, para impedir uma assembleia estudantil de apoio a Revolução Constitucionalista que tinha por objetivo a derrubada do Governo Provisório de Getúlio Vargas e a promulgação de uma nova constituição para o Brasil. Entre outras séries de medidas autoritárias manda prender 512 estudantes e sete professores, que apoiavam a proposta democrática de uma Constituinte. Marighella foi preso pela primeira vez nesse ano, devido às suas críticas ao Interventor da Bahia, Juracy Magalhães. Ainda preso Mariguella ataca Magalhães com sua poesia “Vozes da Mocidade Acadêmica”, paródia do poema “Vozes da África” de Castro Alves. Juracy! Onde estás que não respondes!? Em que escuso recanto tu te escondes? Quando zombam de ti? Há duas noites de mandei meu brado, Que embalde corre então alarmado... Onde estás, Juracy? […] tu me encerrastes um dia Nas celas vis da infinda galeria, Provisória Galé... Por tóxico – me deste uma água escassa! E imenso bolachão – foi a argamassa! Que ligastes ao café... […] Se protesto... a cadeia é iminente! Talvez pra que o protesto, ó vil tenente! Não se mude em vulcão. […] 7

No mesmo ano, quando libertado, prosseguiria na militância política junto ao movimento estudantil baiano, interrompendo os estudos universitários no 3o ano, e tornando-se um dos principais articuladores do Partido no estado, se envolvendo nas articulações da Juventude Comunista. Marighella destaca-se no Partido, como 7

NOVA; NÓVOA, op. cit., p.13.

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militante ativo e hábil em relação às articulações políticas e em função dos seus dotes oratórios, ele participou da Aliança Nacional Libertadora (ANL) entendendo que uma agenda nacional e popular traria conta das transformações sociais e políticas que urgiam ao Brasil. E em 1936, é convocado pela Direção Nacional do PCB para atuar do Rio de Janeiro e em São Paulo, no intuito de ajudar na reorganização do Partido, abandonando o curso de engenharia. Sobre sua demonstração de entrega ao Partido, nesse momento, ele se refere mais tarde: Abracei a causa do comunismo quando ainda freqüentava os estudos de engenharia civil na velha Escola Politécnica da Bahia. Pouco antes de terminar o curso, abandonei a Escola e desisti da carreira. Um sentimento profundo de revolta ante a injustiça social não me permitia prosseguir em busca de um diploma e dedicar-me à engenharia civil, num país onde as crianças são obrigadas a trabalhas para comer.8

O país enfrentava nessa época um momento de intensa repressão, o PCB era duramente combatido pelo governo Vargas, que diante do levante militar de 1935, organizado pelo PCB e por membros da ex-Aliança Nacional Libertadora deu “carta branca” aos generais Eurico Gaspar Dutra e Filinto Müller no combate aos comunistas, e se utilizando também da Lei de Segurança Nacional para condenar seus adversários. Internamente o partido encontrava-se em crise, enfraquecido pela derrota do movimento de 1935 e pela prisão de seu secretário-geral, Antonio Maciel Bonfim do líder Luís Carlos Prestes. Em 1o de maio de 1936 Marighella foi novamente preso e enfrentou, durante 23 dias, as terríveis torturas da polícia de Filinto Müller, chefe de Polícia do Distrito Federal posto que exerceu de 1933 a 1942–, se negou a ceder qualquer informação à polícia 8

NOVA; NÓVOA, op. cit., p. 47.

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política. A polícia queria informações sobre o Partido, mas Marighella ao negar-se a ceder qualquer informação demonstra sua capacidade de resistência e de lealdade à causa, capacidades estas que lhe acompanharam por toda sua vida e que foram marcas destacadas de sua personalidade. O Deputado João Mangabeira em pronunciamento na Câmara, em 1936, denunciou as torturas infligidas a Marighella: O que se fez com o estudante de engenharia Marighella, no dia 1º de maio, é de fazer piedade a um coração empedernido. As torturas infligidas a esse rapaz, a noite inteira chicoteado, pisado, ora na Polícia Central, ora na Polícia Especial, se revelam até nas fotografias que tenho, publicadas num dos jornais matutinos, com seu retrato como comunista, com tabela em que vem o seu número. 9

O jornalista Vitor do Espírito Santo, ao depor na CPI dos Atos Delituosos da Ditadura, no dia 27 de outubro de 1947, afirma: “Com referência ao Deputado Carlos Marighella, afirmou-me aquele médico (doutor Nilo Rodrigues) que nunca viu tanta resistência aos maus tratos e tanta bravura “10. Contudo, em 1937 a crise interna no PCB se agravou, surgindo então duas posições distintas sobre a posição que o Partido deveria adotar nas eleições presidenciais previstas para 1938. De um lado estavam os que preconizavam a candidatura de José Américo de Almeida, candidato oficialmente apoiado pelo governo Vargas e também pela Internacional Comunista, Komintern, e do outro lado os que apoiavam o nome do ex-governador de São Paulo Armando de Sales Oliveira. Dentre os apoiadores de Armando Hermínio Sachetta que estava à frente do Comitê Regional de São Paulo. A ala que apoiava o candidato de Vargas, liderada por Lauro Reginaldo da 9

EMILIANO, op. cit., p. 147. Ibid, p. 148.

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Rocha prevaleceu na disputa o que levou um grupo de militantes a deixar o partido e aderir ao trotsquismo. Porém as eleições não chegaram a ser realizadas em virtude do golpe Estado promovido pelo governo Vargas, que implantou o Estado Novo em 1937. Transferindo-se para o Rio de Janeiro e logo em seguida para São Paulo, Marighella combate com rigor as correntes dissidentes que atuavam dentro e fora do Partido – eram anarquistas, socialistas e trotskistas. E com bastante disciplina exerce sua função, expulsando vários dissidentes e também conseguindo evitar a saída de muitos outros membros. Essa ação de Marighella se justificaria na medida que em 1938 o mundo estava a beira da Segunda Guerra com os regimes nazi-fascistas ganhando força. Mais, em agosto de 1939, os comunistas de todo o mundo assistiram confusos ao Pacto GermanoSoviético, cabe ressaltar que uma das principais argumentações do antitrotskismo nos PCs dizia respeito a uma suposta colaboração dos trotskistas com o regime nazista. Nesse período, Marighella trabalhou com a articulação operária e na luta contra o nazi-fascismo, e começa a estruturar o Conjunto Nacional de Operações Práticas, que tinha como objetivo pressionar o Brasil a entrar na guerra contra o nazi-fascismo, e popularizar as bandeiras defendidas pelo PCB. Mas novamente, junto com a maior parte dos integrantes do comitê regional paulista, Marighella foi preso em 1939. Sendo mais uma vez torturado de forma brutal na Delegacia de Ordem Política e Social (DOPS) de São Paulo, mas se negando a fornecer qualquer informação à polícia. Ainda preso em São Paulo escreve o poema Liberdade: Não ficarei tão só no campo da arte, e, ânimo firme, sobranceiro e forte, tudo farei por ti para exaltar-te,

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serenamente, alheio à própria sorte. Para que eu possa um dia contemplar-te dominadora, em férvido transporte, direi que és bela e pura em toda parte, por maior risco em que essa audácia importe. Queira-te eu tanto, e de tal modo em suma, que não exista força humana alguma que esta paixão embriagadora dome. E que eu por ti, se torturado for, possa feliz, indiferente à dor, morrer sorrindo a murmurar teu nome.11 Julgado e condenado por crimes políticos, seu primeiro destino depois de condenado foi a Ilha de Fernando de Noronha. Ao chegar, Marighella se deparou com circunstâncias bastante diferentes das vividas nas celas de São Paulo e o do Rio de Janeiro. Em Fernando de Noronha tinha a possibilidade de caminhar, de tomar banho de sol, alimentação de melhor qualidade e dentre os trabalhos físicos que todos os prisioneiros políticos eram submetidos, estava o de carregar e descarregar navios, armazenar mercadorias, fornecer verduras a todas as famílias da Ilha. Posteriormente Marighella descreve seu encanto por Fernando de Noronha, em poesia: “Fernando de Noronha” [...] E os mulungus e as bananeiras de folha ao vento, subindo as encostas escarpadas do Pico. Os cajueiros carregados de frutos vermelhos, mamoeiros, pinhais e coqueiros de palmas verdes tremulando sobre os bancos das praias […]12 11 12

MARIGHELLA, op. cit., p.21. Ibid., p.55.

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Como em 1942 Vargas decide que Fernando de Noronha seria utilizado enquanto base militar para os esforços de guerra, os prisioneiros políticos foram transferidos para Ilha Grande, no Rio de Janeiro, para o presídio Colônia de Dois Rios, no Rio de Janeiro onde as condições eram semelhantes às de Fernando de Noronha. Durante os seis anos que esteve recluso, Marighella pode se dedicar mais a poesia, como contraponto à sua ação comunista. Poesias estas que refletem através de uma linguagem poética sua visão revolucionária, explicitando suas idéias políticas, vezes utilizando-se de aspectos da vida social outras do discurso político direto. Exemplos dessas poesias são: Liberdade, O Urubu, Muralha, Luís Carlos Prestes, A Prestes, Rondó da Liberdade. Nestas poesias ficam claros além de seus ideais seu respeito e admiração pelo Partido. No período em que Marighella esteve preso, em 1939-1945, o PCB ficou reduzido a uns milhares de militantes dispersos, graças à perseguição imposta pelo governo Vargas ao partido. Os núcleos mais estruturados do Partido, o da Bahia e do Rio de Janeiro, se articularam com a mediação de Diógenes de Arrúda Câmara, que atuava em São Paulo, para formarem a Comissão Nacional de Organização Provisória, como fruto deste trabalho realizou clandestinamente em agosto de 1943 a II Conferência Nacional do PCB, em uma cidade do Vale do Paraíba, que ficou conhecida como Conferência da Mantiqueira. Nesta conferência foi aprovada a linha política que preconizava a “união nacional em torno do governo” o apoio contra o nazi-fascismo e a eleição de um Comitê Central, no qual o nome de Prestes foi indicado para o cargo de secretário geral e o de Marighella para integrar a direção nacional do PCB, mas, ambos se encontravam detidos. Quanto à postura de Marighella em relação à linha adotada nesta conferência é clara a sua posição contra o nazi-fascismo e por

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isso ao lado do Estado, o que não significava, entretanto, que concordava com o apoio irrestrito ao governo Vargas, ainda mais que as feridas causadas a militância ainda não haviam cicatrizado. Por conseguinte, os dados sobre esse assunto não são muito precisos, seus companheiros da época evitaram falar sobre o ocorrido. Quem rompe esse silêncio é Jacob Gorender que afirma em seu livro, Recordações de um Companheiro, que Marighella, por não concordar com tal linha traçada, recusou momentaneamente o cargo de membro do Comitê Central e não reconheceu o órgão da Conferência da Mantiqueira como representativo do Partido por este não contar com a presença das principais lideranças. Há também um acontecimento narrado por Noé Gertel, que se encontrava preso com Marighella na Ilha Grande, em que Gertel faz referência a uma “cisão interna” do Partido dentro do presídio, onde uma parte dos militantes estava disposta a seguir na íntegra a linha traçada pelo partido, acreditando que com o apoio ao governo devia-se “passar a prestar serviços para a prisão”. Nós (entre estes, ele e o próprio Marighella) achávamos que não. Que a nossa colaboração devia ser apenas de apoio político. Isso foi muito discutido, mas os dois lados ficaram intransigentes e pela primeira vez aconteceu uma coisa inédita, que foi o aparecimento de duas chapas para presidência do coletivo dos presos (que era eleito de dois em dois meses). De um lado havia o Pedro Mota, um grande jornalista e grande intelectual e do outro o Marighella. Mota perdeu a eleição... Foi de cubículo em cubículo nessa mesma noite (Marighella), perguntando aos presos quais deles estavam a favor do coletivo ou do Mota. E expulsou do coletivo, os que disseram que estavam com o Mota... Esse episódio saiu da cabeça do Marighella, na realidade não havia princípio nenhum nessa briga. Eu acho que Marighella acreditava que a influência desse grupo poderia contaminar aqueles camaradas mais fracos que estavam dispostos a trabalhar para o presídio. E que isso iria criar um caso grave. Que o coletivo perderia a autoridade e que os presos em lugar

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de prestar contas ao coletivo que no fundo era o partido, iriam prestar conta à prisão, passando à condição de empregado da casa e não mais de preso político. Esse foi o problema. Pedro Mota Lima foi excluído, mas depois que saiu, continuou trabalhando para o Partido com os outros também. 13

Essa situação narrada por Gertel demonstra as contradições de Marighella, um homem, que na maioria dos depoimentos sobre sua pessoa é apontado como extremamente democrático. E demonstra também o que possa ter sido o primeiro momento de divergência entre o pensamento de Marighella e a direção do PCB. Se faz necessário atentar que nessa conjuntura política nacional o Estado Novo se encontrava em crise e a decisão de Vargas de entrar na guerra oferecia um suspiro a mais a um regime já moribundo, ao enfatizar a importância da “unidade nacional” na luta contra o fascismo. Ato que encontrou aceitação entre vários setores da sociedade e no próprio PCB, não como um todo, e como já foi mostrado Marighella apontava algumas ressalvas à esse apoio. O ano de 1943 assinalava o prazo final para que a Carta de 1937 fosse submetida a plebiscito. No PCB duas linhas se debatem, uma que buscava acordos com os setores “burgueses progressistas” à que Marighella se encaixa, e outra que preconizava uma forte aliança com Vargas, esta ultima saiu vitoriosa, e sobre esse tema Prestes em 1945, afirma: “O PC vem lutando pela União Nacional... perseguido com seus dirigentes encarcerados... soube esmagar ressentimentos para estender a mão a todos e pregar a União Nacional em todo o governo.” 14 Esse apoio por parte do PCB à Vargas se fará presente mesmo após o fim da 2° Guerra, no conhecido “movimento queremista”, que visava possibilitar a continuidade de Vargas na

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NOVA; NÓVOA, op. cit., p. 54-55. Ibid., p. 57.

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presidência, dado que este havia convocado eleições para o final de 1945. É então em abril de 1945, que Marighella é anistiado em uma conjuntura de fim de guerra na qual a União Soviética desponta com enorme prestígio pelo papel desempenhado na vitória contra as tropas nazistas, e com o PCB, devido a sua política de apoio a Vargas, posto na legalidade, podia então participar do processo eleitoral. Logo que anistiado, Marighella se mostra mais uma vez fiel as decisões do Partido e participa no Rio de Janeiro de uma reunião com os principais dirigentes do PCB. Nesta reunião, a linha adotada na Conferência da Mantiqueira, de apoio a Vargas, é em quadros gerais mantida, e é posto também em pauta a necessidade de se intensificar o trabalho sindical e a organização do Partido por todo o território nacional. Marighella então assume seu cargo como membro do Comitê Central do Partido, e graças ao seu destaque é então cogitado como um dos principais nomes à candidatura a deputado federal. Marighella seguiu fielmente as orientações do Partido, por vê-lo como a única instituição capaz de realizar a sua tão sonhada revolução socialista. Aceitando a sua candidatura retorna ainda em 1945 à Salvador. Chegando à Bahia Marighella se deparou com um PCB bem organizado, com Giocondo Dias como secretário-geral e com um semanário – O Momento – que contava com Mário Alves, futuro fundador do Partido Comunista Brasileiro Revolucionário, na chefia da redação. Em meio à campanha de Mariguella, Eurico Gaspar Dutra lidera o golpe que depõe Vargas. Frente a esse acontecimento o PCB manteve a atenção voltada para as eleições, afirmando a necessidade de salvaguardar sua legalidade institucional e de apoiar os setores progressistas da burguesia nacional. Nesse momento Marighella se pôs a favor da linha adotada pelo Partido e fez uma campanha

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bastante movimentada, principalmente nos bairros populares de Salvador, no movimento sindical e na Cidade Baixa. Ana Montenegro, advogada, tradicional militante e dirigente do PCB, diz que Marighella sabia como cativar as pessoas. A tal ponto, que à margem das determinações do partido, que a queria trabalhando para toda a chapa do PCB, se dedicou inteiramente à campanha de Marighella 15.

Disputando as vagas do PCB, com nomes como Luís Carlos Prestes, (candidato também à câmara, já que na época era possível postular, ao mesmo tempo uma cadeira no Senado e outra na Câmara), Diógenes Arruda Câmara e Juvenal Souto Júnior Marighella sobressaiu como o mais votado, obtendo 5.187 dos 18.600 votos que o partido recebeu para Deputado Federal.16 O que garantiu apenas seu mandato. Ao final das eleições o PCB contava com uma bancada de 14 deputados federais e um senador, o mais votado do país, Luís Carlos Prestes. A Assembléia promulgou a nova Constituição em 14 de setembro de 1946, convertendo-se em Congresso Ordinário. Marighella passou a secretário da bancada comunista na Câmara Federal no inicio da primeira legislatura ordinária posterior ao Estado Novo, iniciada em 27 de dezembro de 1946. Na Câmara, Marighella, em pronunciamento em nome da bancada comunista, logo na abertura da Constituinte, pediu a revogação imediata da constituição de 1937 considerada por ele fascista, esse momento deu início a discussão sobre todo o autoritarismo do governo Vargas. O PCB não perdeu a oportunidade de criticar tanto o Estado Novo quanto o governo Dutra, a esse respeito Marighella logo fez questão de deixar claro:

15 16

EMILIANO, op. cit., p. 165. Ibid., p. 166

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Nossa posição, diante desse governo, seria clara, firme e dedicada, de apoio a todos os seus atos democráticos, como também de repulsa e combate o mais implacável e impiedoso, a todos os atos reacionários, partissem do próprio general Dutra ou de quaisquer elementos mal-intencionados, inimigos da democracia, elementos esses que, infelizmente, ainda o cercam17.

Marighella em sua atuação como deputado também foi bastante enfático ao expor suas ideias no que diz respeito à família e à religião, o que desagradou e muito, alguns setores mais conservadores da sociedade, ao defender uma rigorosa separação entre Estado e Igreja e a se por favorável ao divórcio e ao casamento civil sem intromissão do clero, afirmando que o casamento indissolúvel e seria ficção do capitalismo, onde só os homens têm vantagens e que só surgiu porque o homem rico tinha a necessidade de saber exatamente quais eram seus filhos pra poder lhes confiar a herança. Nesse sentindo afirma também: “Fora de dúvida, entretanto, é que as mulheres vencidas conseguiram, pelo menos, enfeitar as respeitáveis cabeças de seus maridos, única vingança que podem tirar, até que transformemos exata sociedade”18. Outra bandeira defendida por Marighella junto com a bancada comunista foi a do direito de greve e da liberdade sindical. Foram muitos os debates em torno da Constituição de 1946, apontada por muitos como liberal, por restabelecer a independência dos poderes, autonomia dos Estados e garantir direitos individuais. Porém entendida pela bancada comunista como conservadora no essencial e a reboque da burguesia nacional. Marighella também se preocupou com as demandas mais pontuais do povo, por exemplo, recebendo telegramas, enviados por parte da população, tratando dos mais diversos problemas sociais, e 17 18

Ibid., p.168. Ibid., p. 169.

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lendo-os na Câmara cobrava soluções, como foi o caso do seu discurso no dia 12 de dezembro de 1946 no qual denunciava problemas da ordem: senhoras de Alagoinhas pedem encaminhamento acerca do divórcio; ex-empregados dos cassinos pedem solução para falta de indenizações para sua categoria; o Comitê Municipal de Feira de Santana do PC solicita solucionar problemas urgentes como água e esgoto, saneamento geral, hospital e escola profissional para menores abandonados.19 Estes discursos foram citados para ilustrar o quanto foi ampla e intensa a atuação parlamentar de Marighella em seu curto mandato. Sobre esse período os depoimentos de Clara Charf e de Jorge Amado, ressaltam que mesmo com tanto trabalho, Marighella conseguia deixar fluir seu lado espontâneo e irreverente, tanto em pequenos gestos segundo Jorge Amado, que recebia um “adeusinho” de seu amigo mesmo quando este se encontrava presidindo uma sessão, e como no famoso “caso dos pães”, no qual Marighella depois de receber várias queixas da população quanto a diminuição do tamanho de qualidade desse produto, vai às ruas verificar a veracidade da denúncia, e pede para que o povo lhe trouxesse amostras desses pães, então Marighella recolhe-os em uma maleta e decide levá-los a tribuna, sobre esse caso Clara Charf narra: Ele não teve conversa, chegou na Câmara com a maletinha, que ninguém sabia o que tinha dentro... Ele tinha uma cara de pau, com aquela cara séria, parecendo que não estava tramando nada. Por dentro estava morrendo de rir... Ele subiu na tribuna com a mala, a colocou do lado e fez uma denúncia violenta contra o imperialismo americano. À medida em que ele foi falando e explicando, ele abriu a mala e foi mostrando qual tipo de pão estava sendo vendido para o povo. Caiu pão

19

NOVA; NÓVOA, op. cit., p. 62.

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para todo lado, foi um show. Ele tinha essa capacidade, essa coragem. Era uma coisa quase natural...” 20.

Dona Elza que trabalhava na assessoria coletiva na bancada do PC no congresso, união que se efetiva após a passagem do PCB à clandestinidade. Marighella tendo tantas ocupações políticas acabou por abdicar de sua família, nesse período a visitou raríssimas vezes. E no ano de 1947 sua mãe vem a falecer, dez anos mais tarde foi à vez de seu pai. Porém suas atribulações políticas não o impediram de ter relacionamentos amorosos, e ainda em 1947 namora Elza Sento-Sé, e como fruto desse relacionamento nasce seu único filho Carlos Augusto Marighella em 22 de maio de 1948. No fim desse ano rompe com Elza e inicia sua relação com Clara, relacionamento que durará até o fim de sua vida. Talvez esse lado íntimo de sua vida tenha sido bastante prejudicado por sua entrega à causa socialista, mas em seus poemas líricos Marighella abre seu interior e revela possíveis segredos do seu ser, em poesias como, Morena, ele nos mostra um lado amoroso sensual que muitas vezes a imagem do revolucionário ofusca: Morena linda, redonda, cor de jambo ou sapoti, de cabelos cacheados lábios sensuais entreabertos como uma flor em botão. Lábios que eu beijo mordendo como se foram dois frutos da mesma cor e sabor dos frutos do jamelão. Teus braços são como um laço tentando me sufocar. 20

Ibid., p.63.

28


Teus dois seios duas conchas, todas duas emborcadas, qu’eu apalpo uma a uma no côncavo da minha mão.21

Apesar do clima de repressão que passa a se instalar durante o governo Dutra e de sua aproximação cada vez maior com os estadunidenses a quem Marighella tanto atacava ele ainda estava bastante confiante no avanço das ideias comunistas, pois nas eleições Legislativas de 1947, o PCB saiu com 46 deputados estaduais em 15 Estados e uma bancada de 18 vereadores para a Câmara do Distrito Federal, que possuía, então, 50 vereadores. E se em 1943 o partido podia contar com 3.000 militantes. Ao final de 1946, possuía dois jornais, duas editoras e quase 200.000 militantes organizados. Quanto a sua remuneração de parlamentar, Marighella ficava com apenas 20% do que recebia, o restante ia para o Partido. Em 1947, foi o primeiro diretor da revista Problemas, órgão teórico do comitê central do PCB, sendo substituído em novembro de 1948 por Diógenes Arruda. No plano internacional se intensificava, a luta dos EUA com a URSS pela hegemonia mundial, a chamada Guerra Fria. E o Brasil logo deixara clara sua posição de aliado dos EUA. Em sete de maio de 1947, alegando a existência de duplicidade estatutária e de vínculos internacionais com a URSS, o Tribunal Superior Eleitoral cancelou o registro do PCB, por três votos a dois. Menos de dois anos após voltar à legalidade novamente, o Partido fora posto na ilegalidade, mas seus deputados continuaram a exercer seus mandatos, e particularmente Marighella não mediu esforços para denunciar o caráter repressor do governo Dutra, que naquele mesmo dia 7 de setembro decretara a intervenção em 14

21

MARIGHELLA, op. cit., p. 48.

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sindicatos e fechara a Confederação Geral dos Trabalhadores e todas as Uniões Sindicais de estados e municípios. Ainda em 1947, antes da cassação do partido, em discurso pronunciado na Câmara, Marighella repudiou o projeto de Lei de Segurança Nacional, e fez duras críticas ao chefe da Casa Militar da Presidência da República, general Álcio Souto. Também no mês de junho do mesmo ano, qualifica o governo do general Dutra como uma ditadura: Fechado um partido político, o Partido Comunista, (...) volvem-se agora para o Legislativo os canibais da democracia, esse pequeno grupo de militares fascistas com o senhor Dutra à frente, e exigem os mandatos dos comunistas. (...) Não seremos servis! A maior ameaça é à democracia, a todos os sinceros democratas com assento nesta Casa. A nós, comunistas, as ameaças não assustam nem conseguirão nos afastar um só milímetro da linha que seguimos em defesa da Constituição. Não temos o fetichismo da legalidade e já sabemos como lutar contra a tirania em quaisquer circunstâncias. No Parlamento ou fora dele, continuaremos imperturbáveis a luta contra a ditadura, pelos interesses do povo, contra a venda do Brasil ao imperialismo, contra a guerra imperialista, pela ordem constitucional 22.

Em outros pronunciamentos, ainda em 1947 ataca o governo dos Estados Unidos: Veremos, logo atrás de toda essa trama contra a democracia e a Constituição de 1946, uma ofensiva do capital financeiro norte-americano, para dominar por completo nosso país reduzindo-o à situação de colônia, entrando no domínio por completo e absoluto de nossas fontes de riquezas minerais23.

22 23

EMILIANO, op. cit., p. 175 Ibid., p.176.

30


A luta da bancada comunista durou até o dia 8 de janeiro de 1948, quando todos os parlamentares comunistas tiveram seus mandatos cassados, à exceção de Diógenes Arruda e Pedro Pomar, que haviam sido eleitos pelo Partido Social Progressista. Durante o exercício do seu mandato, Marighella se destaca como um parlamentar bastante atuante e comprometido com as bandeiras do Partido, pronunciando 195 discursos e sendo o autor de boa parte das 330 emendas apresentadas pelos comunistas. Com a cassação dos mandatos parlamentares, o PCB volta à clandestinidade, e passa a seguir uma orientação mais radical, reconhecendo os erros do partido em não organizar uma resistência extra - parlamentar contra o governo Dutra. Nesse mesmo sentido Prestes lança em janeiro de 1948, um manifesto à Nação, intitulado Como Enfrentar os Problemas da Revolução. Mais tarde, em agosto de 1950 sob forte influência da Revolução Chinesa ocorrida em 1949, Prestes propõe que fossem estimuladas formas de luta “mais altas”. A decisão tomada, pelo que ficou conhecido como Manifesto de Agosto, foi a de conclamação do povo à luta armada contra o governo, a partir da constituição de um Exército Popular de Libertação Nacional, propostas estas que foram feitas sem nenhuma garantia que a respaldasse. Pouco tempo depois Vargas é eleito presidente do Brasil no dia 3 de outubro de 1950. A política oficial do Partido era contrária ao governo Vargas, apesar de, sobretudo a base do PCB ter votado a favor de Vargas, por ver nele a resposta a uma série de reivindicações, como exemplo a política vitoriosa de cunho nacionalista e antiimperialista intitulada O Petróleo é Nosso, que foi encabeçada por Marighella e que resultou na criação da Petrobrás em 1953. Nesse período Marighella é destacado para atuar em São Paulo, tornando-se, até 1952, o dirigente máximo do Partido na capital paulista. Nesse mesmo ano foi designado para dirigir o

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comitê regional do Piratininga, que incluía São Paulo e várias outras cidades de sua periferia, além de substituir temporariamente João Amazonas na direção sindical do partido. Os comunistas que atuavam junto a Marighella no movimento Sindical foram os primeiros a afirmar que a aplicação do chamado Manifesto de agosto, que entre outras medidas orientava que se abandonassem todos os sindicatos, estivessem ou não sobre a intervenção estatal e adotassem a tática dos sindicatos paralelos, estava enfraquecendo a influência do Partido dentro dos sindicatos, e passaram a colocar-se contrários à essa política sindical. Como o prestigio de Marighella aumentava a cada dia, principalmente dentro dos movimentos sindicais, onde realizou um papel fundamental no processo de greves desencadeado em 1953, rompendo de certa forma com a burguesia nacional e com a política sindical que o partido havia adotado, e com seu nome despontando como um dos nomes mais fortes às eleições internas do PCB, e ainda Marighella começava a discutir a linha traçada pelo Partido, os dirigentes resolveram afastá-lo por um tempo enviando-o em viagem a China, temendo sua influência nos setores mais radicais do PCB. Em 1969, Marighella em entrevista ao semanário francês Front, admitia a manobra do partido: “Fui à China em 1953-1954. Foi o Partido que me mandou. Eu começava, na época, a contestar sua linha e era o mais forte candidato às eleições internas para o Estado de São Paulo. Então me afastaram, por algum tempo.”24 Contudo o suicídio de Vargas em agosto de 1954 fez recuar não só os agentes golpistas que tanto o pressionavam, mas também a política do PCB, que era antivarguista, e o partido se viu obrigado a defender alianças táticas com a burguesia nacional, representada então pelo PTB, em processos eleitorais, decisão essa contestada por alguns militantes do PCB. Essa mudança na linha política do Partido 24

NOVA; NÓVOA, op. cit., 72.

32


foi apresentada por Marighella ao IV Congresso do PCB, realizado em novembro de 1954, mas apenas em 1958 o partido adotou oficialmente, acreditando em uma política de convivência pacifica que acabaria, segundo suas concepções, por conduzi-los rumo a legalização. Em 1955 o PCB se mobiliza pra apoiar Juscelino Kubitschek e João Goulart à presidência. E com a vitória dos dois o partido inaugura uma nova fase de boa convivência com o governo, embora ainda fosse mantido na ilegalidade. Nesse mesmo ano Marighella é destacado para dar orientação ao trabalho no campo, onde entra em contato com o quadro de exploração dos trabalhadores rurais e percebe a pouca atenção com que o PCB os tratava. A partir da posse de Kubitschek, Marighella pôde viver um período de certa tranqüilidade familiar, desfrutando melhor do cotidiano da casa e recebendo seu filho Carlinhos, com então oito anos de idade, e com o qual morou ao lado de Clara até 1964. Esse período de certa tranqüilidade familiar e de convivência pacifica com o governo JK, se deu em meio a uma crise interna sem precedentes em movimentos comunistas do mundo todo, pois em 14 de fevereiro de 1956, durante o XX Congresso da PCUS o principal dirigente da URSS, Nikita Kruschev denuncia todos os crimes cometidos por Stalin nos anos em que este dirigia o Estado Soviético, trazendo à luz os crimes do homem tido por todos os comunistas, inclusive Marighella, viam como o herói do proletariado internacional. José Emiliano em seu livro, Carlos Marighella o Homem por trás do Mito, analisa as denuncias de Kruschev como uma “jogada oportunista” do então novo dirigente da nova URSS: Na verdade, a política de Kruschev indicava os novos rumos que a nova URSS adotaria em seguida na geopolítica internacional e pode também ser considerada como um golpe cinicamente oportunista de quem, em busca de poder,

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“mordia a mão de quem lhe havia dado de comer” e assim o fazia porque seu antigo chefe havia morrido a três anos. Kruschev havia participado e aprovado grande parte dos processos que agora estava denunciando. Como representava uma nova casta da burocracia que assumia o poder, interna e externamente, precisava se apresentar com uma nova roupagem política, com uma capa anti-tração stalinista, matava-se o pai para dar continuidade ao seu poder. Seu ato, não obstante tenha causado uma das maiores crises dos PCs no mundo, pôde aumentar seu poder internamente e seu prestígio no Ocidente.25

Derrubava-se assim um dos mitos maiores do comunismo, abrindo-se então caminho para uma série de divergências. Com isso, ao invés do PCB procurar refletir sobre os erros soviéticos, o que em última instância poderia resultar no seu próprio fim, sua Executiva preferiu não abrir o debate ao coletivo do partido, o que o dividiu entre os que apoiavam o debate amplo, os “abridistas” e os que não eram a favor de abrir o debate, chamados de “fechadistas”. Esse fato alimentou a crise interna no partido, quando muitos militantes descontentaram-se com a postura autoritária adotada pelo núcleo dirigente do PCB. Num primeiro momento Marighella não refletiu sobre o significado de tudo o que acabara de ser informado, talvez por não ser capaz de suportar aquilo que poderia ser o fim de suas aspirações de liberdade e justiça e do próprio Partido. Seu posicionamento público foi o mesmo oficializado pelo PCB. Numa reunião do Comitê Central, realizada após a confirmação das denúncias, que contou com a presença de Jorge Amado, Marighella externou toda sua tristeza ao ver a imagem de um de seus heróis, Stalin, destruída:

25

NOVA; NÓVOA, op. cit., 72.

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“[...] de repente ... vieram os dirigentes do Partido Comunista da União Soviética e nos disseram que esse homem tinha cometido tais crimes, tinha feita tais monstruosidades... que, pela luta pelo poder, ele tinha sacrificado idéias, ideais, a generosidade com que se tinha vivido a luta. Cada um de nós reagiu de uma forma diferente... E Marighella começou a falar, e, de repente, os soluços se irromperam e ele começou a chorar e não pôde se quer concluir seu discurso.”26

Nesse momento tão difícil para o Partido, o pensamento e a ação de Marighella se voltaram no sentido da necessidade de se manter a coesão. Em entrevista Clara Charf justifica a atitude do seu companheiro: O Marighella ficou muito atingido, mas ele achava que, independentemente disso, nós tínhamos que reconstruir o verdadeiro Partido Comunista no Brasil, trabalhando com outra visão. A partir daí, o pessoal começou a sair fora e ele segurou o Partido para não se esfacelar. Ele teve um grande papel na reconstrução do Partido diante daquele quadro de denúncia do culto à personalidade de Stalin.27

Em meio a essa crise Marighella também se dedicou para que o Partido intensificasse a luta pela legalização, apontando a volta de Prestes como fundamental, pois como nome maior do Partido não poderia continuar na clandestinidade neste momento difícil. O que só seria feito em meados de 1957, quando a antiga Comissão Executiva, composta por Diógenes de Arruda Câmara, Maurício Grabois, João Amazonas e Sérgio Holmos, é destituída e uma nova é composta com as presenças de Prestes, Giocondo Dias e Marighella. Em 1958, graças aos “novos ares”, da política nacional, o PCB rompe com a linha do Manifesto de Agosto, que defendia a luta armada como forma de resistência ao autoritarismo e a penetração do 26

AMADO, Jorge. O homem que ria e chorava. In: NOVA, C.; NÓVOA, J., Op. cit. p. 388-389. 27 NOVA; NÓVOA, op. cit., p. 60.

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imperialismo americano. E se decide seguir pelo caminho pacífico para o socialismo, onde o processo democrático do país seria visto como uma tendência permanente à qual nada conseguiria impedir. Subordinando-se então às teses do PCUS de coexistência pacífica com o capitalismo, tese contrária a qual a China de Mao havia se colocado. No entanto alguns fatos-chaves na história da luta pelo socialismo no mundo ocorreram no ano de 1959, vindo a desestabilizar a política pacifista que PCUS orientava e o PCB, enquanto partido seguia. A vitória da Revolução Cubana, que adotara a tática de guerrilhas; a resistência dos chamados vietcongs aos EUA, na Guerra do Vietnã; e o rompimento de relações entre a URSS e a China. Todos esses acontecimentos iriam suscitar dúvidas e questionamentos entre os militantes comunistas, os quais emergiriam de forma mais contundente a partir dos acontecimentos políticos do inicio da década de 60. No V Congresso do Partido, realizado em agosto de 1960, foi oficializada a linha que preconizava a coexistência pacífica com o capitalismo, sendo alguns de seus opositores destituídos do Comitê Central, o que resultaria na criação do PCdoB, em 1962. Em setembro de 1961, o nome do PCB passa de Partido Comunista do Brasil, para Partido Comunista Brasileiro, sob a alegação de que isso facilitaria seu processo de legalização, no entanto, o PCB só mudou de nome, mantendo sua estrutura rígida e hierarquizada. Marighella ainda aspirava por mudanças na estrutura do Partido, pois na sua percepção entendia que somente dentro da estrutura partidária do PCB, é que ele poderia melhor servir à transformação da sociedade brasileira. Para as eleições presidenciais de 1960, novamente o Partido se encontrava em difícil situação, já que de um lado da disputa presidencial estava Jânio Quadros candidato pela UDN, e do outro

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lado o marechal conservador Henrique Teixeira Lott. O PCB decide então apoiar o nome de Lott, por considerá-lo mais próximo à tese de aliança com a burguesia nacional, pelo seu caráter nacionalista, e também por seu vice ser João Goulart que havia se identificado com a questão salarial dos trabalhadores. Ao final das eleições de 1960, como era possível eleger o presidente de uma chapa e o vice de outra, com 5,6 milhões de votos Jânio Quadros é eleito presidente, e Jango, com 4,5 milhões de votos é eleito vice. Pela forma como conduziu a presidência, Jânio Quadros acabou isolado politicamente, optando então pela renúncia em 25 de agosto de 1961. O país volta a viver novamente momentos de tensão, quando setores conservadores decidem impedir a posse do vice João Goulart. É então detonada uma nova onda de perseguição aos comunistas. Marighella então passa a criticar a política conciliadora do PCB junto à burguesia nacional, afirmando frente à instabilidade democrática que o país vivenciava nos últimos anos, a necessidade de se preparar uma resistência armada. Vale salientar que essas divergências com a linha traçada pela Executiva, se davam num momento em que Marighella alcançava uma maior força no interior da estrutura partidária, resultado da crise de 1956 que, somada com a influência, principalmente, da Revolução Cubana, influenciariam bastante o seu pensamento político. No período que vai de 1961 até 1964, os comunistas conseguiram intensificar sua presença no movimento sindical urbano e ganharam força também junto às massas por seu apoio as de reformas de base, que abrangiam os setores educacionais, fiscal, político e agrário. A revolução democrática proposta pela linha conciliadora parecia estar próxima. Enquanto isso os setores conservadores junto com o apoio do governo norte-americano se preparavam pra intervir. Uma possível luta armada ainda não estava

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nos planos oficiais da esquerda, acreditava-se que caso ocorresse um golpe político, este seria logo sufocado pelas forças populares. Apesar das críticas de Marighella, o PCB seguiu à reboque do governo Jango, intensificando sua influência junto aos aparelhos sindicais, mas sempre adotando uma linha moderada e criticando os setores da esquerda que propunham uma radicalização. Isso aponta o inicio da ruptura ideológica entre Marighella e boa parte da direção do PCB, inclusive Prestes. Sobre suas discordâncias com a linha traçada pelo Partido, o próprio Marighella afirma, em texto escrito no ano de 1967: “Primeiro rompi ideologicamente em uma Conferência Nacional do Partido, em 1962, quando critiquei a direção individual e os falsos métodos da direção que comprometeram o método marxista-leninista.”28 Mas, mesmo com as discordâncias ideológicas, assumidas publicamente apenas em 1964, Marighella representou disciplinarmente a linha orientada pelo PCB junto ao governo Jango. Marighela via claramente a possibilidade de um golpe da direita, e apesar de obedecer às orientações vindas do PCB, já reivindicava desde a queda do governo Jânio Quadros, a necessidade do Partido de preparar, a si mesmo e às massas, uma reação caso o golpe fosse concretizado, acreditando num preparo ideológicomilitar para fazer frente a esse possível golpe. Goulart já tendo informações sobre o golpe que estava sendo articulado contra seu governo, reuniu em 13 de março de 1964, na praça em frente à Central do Brasil no Rio de Janeiro, mais de 200.000 pessoas, e anunciou entre outras medidas, as tão sonhadas, reformas de base. Este fato esse que precipitou a ação dos militares, então apoiados pelas camadas médias, Igreja e meios de comunicação. Não houve reação da população. O PCB encontrava-se então condenado à inação por acreditar na legalidade constitucional. 28

NOVA; NÓVOA, op. cit., p. 69.

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Para Marighella, o golpe foi a confirmação na descrença da política pacificadora adotada pelo Partido, assentando todas as condições que lhe fariam romper com a política do PCB. Numa conjuntura de contradições na política brasileira e na forma de se encarar os caminhos para se chegar ao socialismo dentro dos PC, Marighella já em 1964 rompe com a política pacifista do PCB e passa a defender a necessidade de se preparar uma resistência armada ao Regime Militar.

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Capítulo II

Fé cega, faca amolada Marighella entre a cruz e a espada

M

arighella, no primeiro momento do Regime Militar buscou novos caminhos, pretendendo transformar o PCB em um partido revolucionário, que correspondesse à situação política resultante do Golpe Militar. Porém esse mérito não foi só dele: desde 1964, ficou explicita a incapacidade da esquerda como um todo, de liderar qualquer reação ao golpe, e esta então, grosso modo, se dividiu entre os que eram partidários do caminho pacífico para derrotar a Ditadura e os partidários da luta armada para se chegar ao mesmo fim. No campo ideológico, também grosso modo, a esquerda podia se encontrava dividida entre os que defendiam a luta como de libertação nacional, e que para isso preconizavam uma ampla frente e uma provável etapa de sobrevivência do capitalismo, e os que acreditavam que o Brasil já era um país capitalista, pronto para uma revolução socialista sem etapas e sem qualquer papel à ser atribuído a burguesia. Esse debate sensibilizou todas as organizações de esquerda, porém o PCB foi o único que se manteve irredutível em sua opção pela via pacífica. A Esquerda nesse período, exceção do PCB enquanto partido, respirava os ares cubanos e chineses, propensos à luta aramada. Marighella condenava a inação do PCB frente ao golpe, que ele isso era inadmissível. No livro de Emiliano José, Carlos Marighella o Inimigo Número Um da Ditadura, o autor afirma que Ana Montenegro, amiga de Marighella, tentou dissuadi-lo da opção pela via armada:

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Dizia-lhe (Ana Montenegro), que a guerra não nasce de uma hora pra outra, e que um homem sozinho, sem o Partido, pouco pode fazer. Ao que ele, sempre muito fraternal, respondia, entre firme e desolado: -Estou cansado de ficar na praia esperando a onda. Agora, não espero mais!29

Seu estado de espírito naquele momento se faz refletir em poesia de sua autoria intitulada “O País de uma Nota Só” Não pretendo nada, nem flores, louvores, triunfos. nada de nada. Somente um protesto, uma brecha no muro, e fazer ecoar, com voz surda que seja, e sem outro valor, o que se esconde no peito, no fundo da alma de milhões de sufocados. Algo por onde possa filtrar o pensamento, a ideia que puseram no cárcere. A passagem subiu, o leite acabou, a criança morreu, a carne sumiu, o IPM prendeu, o DOPS torturou, o deputado cedeu, a linha dura vetou, a censura proibiu, o governo entregou, o desemprego cresceu a carestia aumentou, o Nordeste encolheu, o país resvalou. Tudo dó, tudo dó, 29

EMILIANO, José. Op. cit. p. 200

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tudo dó... E em todo o país repercute o tom de uma nota só... de uma nota só...30

Já nos primeiros dias do golpe Marighella, passou a denominar os golpistas de fascistas militares31 visando muito mais o valor impactante da palavra, e tenta obter junto ao Comitê Central o apoio para iniciar uma levante armado na Vila Militar, no Rio de Janeiro, que realizado logo seria debelado. Perseguido pela polícia é preso no dia 9 de maio de 1964, em frente a um cinema na Tijuca, mas não sem oferecer forte resistência como ato de protesto. Marighella foi libertado no dia 5 de junho de 1964, graças a um habeas corpus impetrado pelo advogado Sobral Pinto. No entanto, após sua soltura soube que a Segunda Auditoria Militar de São Paulo já decretara sua prisão preventiva por razão de seu nome constar nas famosas cadernetas de Prestes, que estavam em posse dos militares. A única saída passou a ser então a clandestinidade. No ano de 1965, decide escrever o livro, Por que Resisti à Prisão, de modo que mais pessoas pudessem saber o que tinha ocorrido com ele e como ele analisava toda aquela conjuntura. A partir de então suas relações com a direção do PCB não seriam mais as mesmas, pois, além de relatar como foi sua prisão, Marighella expõe publicamente, ainda que de forma moderada, suas posições políticas de forma sistematizada. Nos primeiros capítulos do livro, ele traz um panorama geral de como se deu sua prisão, e denuncia as violências e arbitrariedades com a qual o Regime Militar tratava seus presos. Já nos últimos capítulos expõe sua visão sobre a situação brasileira o que acaba por iniciar sua luta com a direção do Partido. Conta que sua resistência a prisão, vista como provocação pela direção do PCB, devia ser entendida como uma atitude de rebeldia “à odiosa submissão à

30 31

MARIGHELLA, C. Op. Cit. p.92. Idem. p. 202

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ordem dos potentados que representam e defendem os interesses das classes exploradas32. Expressa confiança na juventude, uma geração tida por ele como política e determinada a alcançar a liberdade e o progresso. Analisa também os rumos da ditadura, não desconhecendo os problemas da legitimação do novo regime, entendia que à contradição entre o poder militar e poder civil poderia vir a resultar em uma nova Constituição, o que acabaria ocorrendo em 1967, e reconhece uma “linha dura” dentro da corporação militar e a possibilidade de um golpe dentro do Golpe. Defende uma frente ampla para derrotar a ditadura, porém faz ressalvas quanto o papel da burguesia nacional, caracterizando-a como débil e vacilante. Então alcança, o paroxismo de seu pensamento sobre a forma de combater o Regime, quando afirma a necessidade de se responder com a mesma moeda as violências dos golpistas. Antecipa também que na conjuntura que o Brasil se encontrava o aparecimento de guerrilhas seria iminente, tomando para isso o caso cubano: “nada há de esperar de uma via pacífica para a conquista da independência ou do progresso social, sem que o povo organize sua própria força e sem que disponha de seus próprios recursos (desde a autodefesa de massas à sua organização armada), sem admitir a possibilidade de insurreição popular, somente com base na confiança em relação à capacidade dirigente de setores burgueses interessados em reformas, é impossível libertar o povo”.33

Curiosamente, logo após a edição clandestina do Por que resisti à prisão, ter saído no inicio de 1965, Marighella com o objetivo de concorrer em um concurso de poesia organizado pelo jornal O Globo, elabora uma “sonata em três tempos”. Algumas dessas poesias já haviam sido escritas há anos, outras haviam sido feitas durante o correr do ano de 1964.

32 33

Idem, pag. 211 Idem. p. 213.

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No primeiro tempo da sonata, Marighella faz uma exaltação às belezas do Brasil: o Rio de Janeiro, “a ventura de ver-te –mesmo só um momento- bem que vale uma vida”; o samba que baixa nos terreiros “das filhas-de-santo, na branca sapeca, na negra saliente, na morena, na índia; a alegria do povo ao ver Garrincha jogar; a gigante São Paulo; a capoeira; a caninha com água de coco. Notamos aí um lado da personalidade de Marighella que muito se assemelha a figura do típico malandro carioca, apreciador de praias, de uma roda de samba, uma caipirinha e de uma bela morena. No segundo tempo de sua sonata, Marighella canta o amor e os desejos íntimos: “Quando você vem a mim, corola vermelha aberta, eu sou como um cavaleiro medieval, armado de lança em riste. E quero então penetrar.”34 “CORPO mignon tostado pelo sol, de curvas graciosas e busto bronzeado, onde seios túrgidos flutuam como duas boias solitárias indicando ao navegante os perigos do mar”35. Quem se faz falar aí é a voz de um homem entregue aos amores, à luxúria, que narra em seus versos suas aventuras ou apenas aos desejos mais íntimos, já que sua vida tão atribulada limitava-o. No terceiro tempo há uma exaltação à liberdade, na qual o autor faz ecoar seu grito de protesto, sem pretender com isso “nem flores nem louvores”36. “-Abram os domicílios! Entreguem-nos seus filhos e filhas, suas mulheres...- gritam os homens de botas, de farda olivácea, brandindo o chicote.” “É preciso não ter medo, é preciso ter coragem de dizer”. Essa é imagem do Marighella político, forjado no calor da luta, firme em suas ideias, denunciador das arbitrariedades de seus inimigos, amante da liberdade. Como é de se esperar, sua “sonata em três tempos”, não foi premiada, mas ao menos foi relacionada pela comissão julgadora. Segundo Clóvis Moura, “todo revolucionário é um poeta nato”, dado que sua visão romântica do mundo leva-o a recolher dentro de si todo o sofrimento daqueles que são oprimidos impulsionando-o a uma atitude dinâmica de tentar transformar o mundo de opressão onde vive. E assim foi Carlos Marighella um 34

MARIGHELLA, Carlos. Op. cit. p. 74. Idem p. 78 36 Idem. p. 92 35

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poeta revolucionário, dedicado à transformação da sociedade brasileira, seja por meio da ação seja por meio das palavras. Marighella também já não acreditava mais fielmente nas orientações do partido: no seu poema, Canção dos Lírios, ele reflete sua forma de pensar afirmando ser necessário “abrir uma clareira no bosque” o que mostra sua convicção em mudar os rumos em relação às linhas pacifistas do PCB: “Eu canto a vida, eu canto a liberdade, como os lírios crescem em nossos campos, livres, selvagens. Se já não crescem como antes, existe algo sombrio, é preciso abrir uma clareira no bosque. Não me limitarei ao campo da arte... E não escolherei momento, tempo e modo, de exaltar-te, lírio, flor, canção, fruto, amor- a liberdade. Não calarei jamais e sempre te direi a mais bela, a mais pura. Se já não crescem como antes os lírios em nossos campos, existe algo sombrio, é preciso abrir uma clareira no bosque.”37

O posicionamento do Partido em relação ao livro Por que resisti à prisão, feito só em reunião realizada em maio de 1965, foi bastante claro. Antes de tudo era inaceitável que um dirigente comunista andasse pelas ruas daquela maneira, pouco mais de um mês do golpe militar e a resistência diante dos policiais foi tida como desnecessária e provocativa. As partes do livro que tratavam sobre os interrogatórios e as brutalidades do regime em relação aos que estavam presos, foram consideradas bastante pertinentes, mas a

37

MARIGHELLA, C. Op. Cit. p.85.

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tentativa de discutir o problema da revolução brasileira, destoava de tudo o que o PCB pensava. Depois da reunião ficaram evidentes as divergências entre Marighella e o núcleo dirigente do Partido, mas como afirma Emiliano José: “Mas ele estava fortalecido. Seu destemor, valentia, ousadia revolucionária tornaram-no quase um mito dentro do partido, e naquele momento ele preferiu não marchar, para o rompimento, segundo o que relata um dos participantes da reunião, Jacob Gorender. Marighella teria evitado o confronto direto com a maioria do núcleo dirigente com a intenção de conservar o posto na Comissão Executiva do partido, e conservou. Pretendia conquistar mais espaço na estrutura do PCB e cargo na Executiva do partido lhe dava chance de alcançar esse objetivo.38

A partir dessa reunião, Marighella junto com outros dirigentes, como Mario Alves, Jacob Gorender e Joaquim Câmara Ferreira, intensificaram o trabalho político e teórico dentro do Partido, no esforço de, ou modificá-lo radicalmente ou romper definitivamente com ele. No ano 1966 Marighella escreve o ensaio “A Crise Brasileira”, este texto se destaca pela importância que teve no momento em que foi publicado e pela herança intelectual deixada para toda esquerda brasileira. Sua posição teórica é bem clara entendendo que a revolução deveria vir da base e aí sim atravessar todos os níveis estruturais, não havendo mais esperanças no caminho pacífico. No texto ele busca analisar a raiz da crise econômica brasileira e contextualizá-la com a crise do capitalismo em escala mundial. Reflete também sobre o caráter da burguesia nacional apontando suas limitações. Porém o foco do texto se concentra na argumentação contra a linha pacífica do PCB. Para Marighella, insistir na orientação de coexistência pacífica significava concordar com a institucionalização do golpe militar. Então aponta a necessidade da “insurreição armada popular”, reconhecendo, porém, 38

Emiliano José. p. 214-215.

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que a opção pelas armas não será fácil, sem sacrifícios, aponta também a necessidade da união de todas as forças possíveis contra a ditadura, mas afirma que só sobre a direção dos comunistas é que a revolução seria concretizada na íntegra. Outra critica severa, contida nesse texto, ao PCB, diz respeito à orientação de se preocupar quase que exclusivamente com as causas urbanas em detrimento das rurais, onde Marighella afirma que o Partido tinha virado as costas para o campesinato. Nesse momento Marighella entendia que a luta de guerrilhas seria apenas mais uma forma de resistência ao lado da insurreição e da guerra civil. O campo aparecia no pensamento do autor como o palco principal para o desenrolar de uma guerrilha, por considerar que o camponês seria o braço forte e fiel da guerrilha; pelas facilidades de movimentação características do meio rural; e por que somente no meio rural haveria terreno suficiente para expandir a guerrilha. A crise brasileira então é entendida por Marighella como uma crise crônica, generalizada, ao mesmo tempo econômica, política e cultural. Seu pensamento vislumbrava a necessidade de se desconstruir toda a lógica de organização dos partidos, e a revolução não pararia no plano político organizacional, ela deveria passar por todos os níveis a partir de uma ação que concomitantemente operaria junto ao trabalho ideológico. Sendo assim possível unir o proletariado ao camponês, absorvendo outros setores como os estudantes e os membros das Forças Armadas contra a ditadura que acabaria inevitavelmente por sucumbir. Marighella por ainda pertencer à Executiva do PCB, e por seu trabalho teórico junto a outros militantes, obriga então o Partido a discutir a luta armada. A luta interna se intensifica- entre os que defendiam o caminho pacífico e os que eram adeptos à luta armada. Marighella estava desacreditado da forma como a direção do PCB se comportava frente à Ditadura, mas não desacreditado do marxismo pra ele somente através do marxismo se alcançaria uma sociedade mais justa. Após tantas divergências com a Comissão Executiva sobre a forma de se conduzir a revolução, suas diferenças chegam ao limite, e em dezembro de 1966, Marighella escreve uma carta à Executiva pedindo demissão e criticando duramente a Comissão Executiva por

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sua inação. Ressalva as relações pessoais, o que demonstra além de tudo seus laços afetivos extra partidários feitos ao longo de sua militância, mas é duro nas críticas. Afirma que não quer ficar mais preso ao jogo burocrático da Comissão Executiva, a qual, segundo ele, se limitava a redigir notas políticas e informes, sem nada contribuir, materialmente, para a luta dos trabalhadores e do povo. Afirma também que suas discordâncias políticas com a orientação do Partido, já remontavam ao caso da renúncia de Jânio Quadros, onde para ele ficou comprovado o despreparo político-ideológico do PCB, alegando a falta de uma “vigilância de classe”, que correspondia a uma vigilância maior sobre os interesses e necessidades gerais do proletariado. E ao final da carta concluí: A causa revolucionária brasileira, a libertação de nosso povo do julgo dos EUA, o empenho pela unidade do partido em torno da ideias marxistas estão acima de qualquer acomodação, sobretudo quando o que mais se exige de nós, comunistas revolucionários marxista-leninistas, é justamente a coragem de dizer e agir.39

Marighella agora se encontrava mais livre para se manifestar, ganhara terreno dentro do Partido, mais ainda por ter sido eleito, em meados de 1966, secretário-geral do Partido em São Paulo, centro das atividades do PCB no Brasil. A conferencia estadual do Partido realizada em abril de 1967, se deu sobre um clima bastante pesado. O Comitê Central sabia da força de Marighella e o risco que ele representava, por suas influências junto aos demais militantes e envia uma delegação chefiada pelo próprio Prestes. Estava então em jogo mais que uma disputa de ideias, se confrontavam naquele momento em torno de suas convicções, Prestes, o mártir do Estado Novo, o mito do comunismo brasileiro, e Carlos Marighella uma pessoa tão antiga no partido quanto o próprio Prestes, mas agora em franca ascensão, por suas ideias e ações frente ao Regime Militar. Nessa conferência, todo o prestigio de Marighella e de seus ideais foram traduzidos nos 39

Idem. p. 217

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votos, onde, com 34 votos dos 37 delegados participantes40, as ideias de Marighella saíram vitoriosas. A opção pela luta armada e a aliança operário-camponesa, em detrimento da linha pacifista e de aliança com a burguesia nacional, ganhara terreno. Prestes ainda saíra derrotado no Rio de Janeiro e no Rio Grande do Sul, porém o Comitê Central acabara intervindo a favor de Prestes. O ano de 1967 marcaria dois movimentos distintos no país: por um lado a o esforço por parte do militares em direção à institucionalização do regime, quando uma nova constituição foi aprovada, tornando a eleição para presidência indireta. Com o voto dos congressistas abertos, o Presidente da República poderia governar por meio de decretos-leis. A autonomia dos Estados foi bastante limitada, e somente dois partidos foram autorizados a funcionar, a Aliança Renovadora Nacional (ARENA) pela situação, e o Movimento Democrático Brasileiro (MDB), pela oposição. Foram promulgadas as novas leis de Imprensa e de Segurança Nacional que seguem à margem da constituição. Por outro lado os populares retomam suas lutas, os estudantes retomam as ruas, setores religiosos passam a promover manifestações públicas contra a política repressiva, os intelectuais começam a demonstrar sua insubmissão frente às arbitrariedades dos militares. Havia ainda, a expectativa de que os operários tomassem consciência de seus problemas, como o arrocho salarial, e se levantassem contra a Ditadura. Em 1967 não reconhecendo mais a autoridade da direção do PCB, Marighella viaja para Cuba, para participar da I Conferência da Organização Latino-Americana de Solidariedade (OLAS), de 31 de julho a 10 de agosto, que tinha a intenção de se articular a luta revolucionária na América Latina. Em Cuba, Marighella afirma em discurso, que: “nenhuma vanguarda pode pretender-se tal se não se preparou e não preparou o povo por meio da luta armada”41. Se a OLAS era então um esforço cubano de promoção à revolução latino-americana, mas porém URSS não apoiava iniciativas que objetivassem promover revoluções armadas pelo 40 41

Idem. Carlos Marighella, In: Dicionário Biográfico Brasileiro. p. 3573.

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mundo, decisão em voga desde o fim da Segunda Guerra Mundial, e rigorosamente cumprindo essa orientação encontrava-se o PCB. Então a ida de Marighella à Cuba foi entendida como uma provocação e, considerada como ato indisciplinar. No entanto, para Marighella, a reunião da OLAS pode ter sida decisiva em sua convicção de que não seria necessário um partido para se fazer a revolução, principalmente naquele momento em que para ele a luta armada era inevitável. Talvez nesse sentido muito contribuíssem as ideias de Régis Debray, expressas no livro Revolução na Revolução, as quais afirmam que a revolução independeria de qualquer partido. Régis Debray também era um incentivador da ideia de que a luta armada deveria ser deflagrada imediatamente no campo, sem a necessidade de vínculos junto aos movimentos de massas. Marighella, ainda em Cuba em setembro de 1967, fica ciente de sua expulsão do PCB por “atividades fracionistas, incompatíveis com a condição de membro do partido”. A qual ele responde dando por encerrada sua trajetória de mais de 30 anos de militância no PCB: É evidente que compareci sem pedir permissão ao CC, primeiro porque não tenho que pedir licença para praticar atos revolucionários, segundo porque não reconheço nenhuma autoridade revolucionária nesse Comitê Central para determinar o que devo ou não fazer... As divergências que tenho com a Executiva, da qual já me demiti em data anterior, são as mesmas que tenho com o atual Comitê Central. Uma direção pesada como é, com pouca ou nenhuma mobilidade, corroída pela ideologia burguesa, nada pode fazer pela revolução. Eu não posso continuar pertencendo a esta espécie de Academia de Letras, cuja única função consiste em se reunir (...) Falta ao CC a condição mais importante para a liderança marxista-leninista, que é saber conduzir e enfrentar a luta ideológica. E como não pode fazê-lo, recorre a medidas administrativas constantes, suspendendo, afastando, expulsando militantes, apreendendo documentos e proibindo a leitura de materiais dos que discordem. É o CC da censura, das reprimendas, das desautorizações, do crê ou morre. (...)

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Em minha opinião de comunista, à qual jamais renunciarei, que não pode ser dada nem retirada pelo CC, pois o Partido Comunista e o marxismo-leninismo não tem donos e não são monopólios de ninguém, prosseguirei pelo caminho da luta armada, reafirmando minha atitude revolucionária e rompendo definitivamente com vocês. 42

Prestes temia a influência de Marighella, e de outros dissidentes sobre os demais militantes do partido no VI Congresso do PCB, que seria realizado ainda em 1967, decidindo-se pela expulsão de todos os que pudessem “virar o jogo” dentro do Partido. Nesse seu esforço, nomes como Joaquim Câmara Ferreira, Jover Telles, Mário Alves, Jacob Gorender, Miguel Batista dos Santos e Apolônio de Carvalho, também são expulsos. Iniciava-se assim uma nova história tanto para o Partido e seus dissidentes, como para o Brasil. Marighella ainda se encontrava em Cuba, quando ficou sabendo da morte de Che Guevara na Bolívia. Caia assim um dos heróis de Marighella, e sob esse acontecimento Marighella se põe a refletir mais sobre as guerras de guerrilha e como se dariam no Brasil, um país de dimensões continentais, com então cerca de 90 milhões de pessoas. Escreve então acerca de suas reflexões sobre as guerrilhas um documento denominado “Algumas Questões sobre as Guerrilhas no Brasil” em outubro de 1967, que seria publicado na integra pelo jornal do Brasil, de 5 de setembro de 1968. Nesse documento, Marighella, pretende “homenagear a memória do comandante Che Guevara, cujo exemplo de guerrilheiro heroico perdurará pelos tempos e frutificará em toda a América Latina”43, e também faz suas considerações acerca de como deveria proceder às guerrilhas no Brasil. A preparação da guerrilha estaria dividida em três fases fundamentais: a do planejamento e preparação da guerrilha; a do lançamento e sobrevivência da guerrilha; a do crescimento da guerrilha e sua transformação em guerra de manobras. Os 42

MARIGHELLA, Carlos. Algumas questões sobre as guerrilhas no Brasil. In: _____. Escritos de Carlos Marighella. São Paulo: Ed. Livramento, 1979, p.129. 43 EMILIANO, José. Op. cit. p. 223.

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guerrilheiros deveriam, em um primeiro momento se preparar, em Cuba, e a primeira turma já seguiu em 1967, e evitar o cerco dos militares, que se concentravam apenas no litoral e áreas urbanas. Deveriam se dirigir rumo ao interior, o oeste do Brasil, deslocandose constantemente, o que ele chamaria de guerra de movimento, correspondente a uma segunda fase da guerrilha. Essa estratégia, somada com a integração dos camponeses, daria inicio a terceira fase, que seria a formação do Exercito Revolucionário. “O tempo de duração de todas ou de cada uma dessas fases não importa, como ensina a história, pois os povos que lutam pela libertação jamais se preocupam com o tempo de duração de sua luta.” No final do documento Marighella afirma: “O segredo da vitória é o povo.” Faz-se necessário lembrar que o projeto da guerra de guerrilhas no Brasil era anterior ao golpe militar de 1964 e defendido por organizações como a Política Operária (POLOP) e as Ligas Camponesas de Francisco Julião44. O exemplo da Revolução Cubana existia desde 1959 e o projeto de se pegar em armas já fizera parte da linha teórica do próprio PCB, como foi o caso do levante armado de 1935. E como o próprio Marighella lembra no documento: “a criação de um exército dessa natureza é um princípio geral da revolução, princípio sobre o qual Lênin insistia, ao afirmar o seguinte. (...) O exército revolucionário corresponde a uma necessidade porque os grandes problemas históricos só podem resolver-se pela força, e a organização da força é, na luta moderna, a organização militar.” 45

Portanto, não se pode considerar a luta armada apenas como resultante do golpe militar de 1964: as ideias já estavam postas, embora não se possa negar que a opção pela guerrilha viera à tona no pensamento de Marighella, a partir das conjunturas políticas que este vivenciara nesse período 1964-1967. 44

ROLLEMBERG, Denise. O apoio de Cuba à luta armada no Brasil. Rio de Janeiro: MAUAD, 2001. 45 Artigo publicado no "Proletari", em 1905, sob o título "Exército Revolucionário e o Governo Revolucionário".

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Marighella voltou de Cuba com a certeza de que estava na hora de iniciar a luta guerrilheira; mais do que socialismo, era uma questão de libertação nacional: “Quando se desencadeou o golpe de abril de 64, no Brasil, não houve resistência. O imperialismo norte-americano e os "gorilas" nacionais se aproveitaram disso e estão massacrando o nosso povo. Se fizermos a resistência, eles tentarão aniquilá-la, para que tenha prosseguimento a exploração do Brasil. Mas a resistência deve ser feita. A resistência do povo brasileiro é a guerrilha. A guerrilha é para defender a causa dos pobres, dos humilhados e ofendidos, dos homens e mulheres de pés descalços. É para conquistar a libertação do Brasil, expulsar o imperialismo norte-americano, aniquilar a ditadura e suas forças armadas, derrubar seu poder, e instaurar o poder do povo.46

De volta ao Brasil, Marighella, Rolando Frati, Raphael Martinelli, Joaquim Câmara Ferreira, junto com alguns outros exmembros do PCB, formam o Agrupamento Comunista de São Paulo. No primeiro documento divulgado pelo Agrupamento, em fevereiro de 1968, suas posições são definidas. O Agrupamento seria uma organização clandestina, móvel, flexível. De vanguarda, pronta pra agir e fazer a revolução, esta que precisava ser feita diariamente, livre de qualquer burocracia. Os princípios do Agrupamento giravam em torno de três eixos: o dever de todo revolucionário é fazer a revolução, não se pede licença para praticar atos revolucionários e o único compromisso de seus integrantes era com a revolução. Seguindo esse esforço Marighella viaja por vários estados brasileiros atraindo militantes para sua organização, o que acaba por dar um caráter nacional ao seu Agrupamento, que agora se torna a Aliança Nacional Libertadora (ALN). A ALN não se colocou como objetivo primeiro uma revolução socialista, pois era, em seus princípios, uma organização de libertação nacional. O nome Aliança 46

MARIGHELLA, Carlos. Op. cit. p.129.

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Nacional Libertadora seria uma referência à Aliança Libertadora Nacional de 1935, com a diferença de que não se tratava mais de uma política de alianças, mas, de uma ação direta. A ANL, liderada por Prestes, agrupou grande parte da esquerda brasileira dos anos 30 em torno de seus objetivos, e a ALN, liderada por Marighella, buscava igual êxito, sustentando muitas bandeiras de sua precursora, tais como a luta anti-imperialista e anti-latifundiária. A ALN propunha a guerrilha rural como fim a ser alcançado (tarefa estratégica), embora a maior parte de suas ações em toda a sua trajetória tenha ocorrido nas cidades (as ações urbanas eram tarefa tática), consideradas como meios de apoio para fins de propaganda política, para ações de obtenção de fundos (expropriações, como assaltos a bancos), recrutamento de quadros para a guerrilha e ataques estratégicos ao inimigo. Era uma organização em que se permitia pequenos grupos com total independência tática desde que estivessem subordinados à sua estratégia geral; sua estrutura pode ser entendida como horizontal, sem hierarquias: “(...) o militante era incentivado a atuar, a agir, não ficar esperando orientação de um poder centralizado. Não, ao contrário. O militante que se considerasse capaz de formar um grupo para fazer ações expropriatórias que o fizesse. Os grupos e as ações, assim, se multiplicariam. A centralização emperraria a organização, que, ao contrário, deveria ser ágil”.47

Do Agrupamento Comunista à consolidação da ALN houve uma série de mudanças em termos de concepção, pois quem compunha o Agrupamento, em sua maioria, eram quadros oriundos do PCB, que tinham uma visão de guerrilha à longo prazo e em situação excepcional. A ALN inovou em termos de quadros e estrutura, criticando, por exemplo, o centralismo democrático, fator inerente a qualquer partido comunista: agir, resistir, para Marighella era o fundamental. Dizia Marighella: 47

ROLLEMBRG, Denise. Esquerdas revolucionárias e luta armada. Op.cit., p.70.

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Todos nós somos guerrilheiros, terroristas e assaltantes e não homens que dependem de votos de outros revolucionários ou de quem quer que seja para se desempenharem do dever de fazer a revolução. O centralismo democrático não se aplica a Organizações revolucionárias como a nossa. Em nossa Organização o que há é a democracia revolucionária. E a democracia revolucionária é o resultado da confiança no papel desempenhado pela ação revolucionária e nos que participam da ação revolucionária.48

O ano de 1968 trouxe muitas expectativas à Marighella, foi o ano em que se pretendeu assaltar os céus no mundo todo. Um ano, de lutas por liberdades, pelo anticonservadorismo, revoluções culturais e sexuais explodiam. Marighella ganhará acima de tudo um novo fôlego pra continuar. Via no intenso movimento estudantil um celeiro para o recrutamento de quadros para a luta armada, porém era preciso prepará-los para iniciar a primeira fase da guerrilha. É deflagrada então a guerrilha urbana. Várias ações são realizadas com o propósito de se levantar fundos para o movimento guerrilheiro, como assaltos a bancos e a carros fortes, muitas dessas ações contaram com o próprio Marighella à frente. Nota-se então um Marighella atuante, que não se preocupava só com as teorizações, mas sim em estar junto em fazer parte das operações. Paralelamente outras organizações armadas também realizavam ações semelhantes. De inicio estas ações eram realizadas na clandestinidade o que confundia bastante os militares sobre quais organizações criminosas estariam por trás da onda crescente de assaltos. Contudo a repressão crescia e o final de 1968 já não apontava horizontes tão animadores, em novembro desse ano, após muitas seções de tortura, por meio de um preso que participara daquelas ações e que acabara sendo preso, os militares tiveram a confirmação de se que quem estava por trás das ações eram em sua maioria grupos de esquerda e que nesse caso especial uma organização chamada ALN, da qual Marighella era o mentor e que este participava pessoalmente de diversas ações. 48

CARONE, Edgard. Movimento Operário n 37 Ibidem, p. 550.

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Pouco depois ocorreu a promulgação do Ato Institucional nº 5 (AI-5), em dezembro de 1968, sinalizando o fechamento do regime militar dando poderes extraordinários ao Presidente da República, e suspendendo várias garantias constitucionais. A decretação do AI-5 foi o braço forte do mecanismo de coerção dos governos, estes mecanismos de repressão agora dispunham de uma forma mais sistemática e racional de atuação, contando inclusive com a ajuda logística de organismos internacionais como a CIA. Porém, se faz necessário ressaltar, como nos aponta Michel Foucault em seus estudos sobre a genealogia do poder, a existência de outros mecanismos de exercício de poder que agem, e no caso da ditadura militar brasileira, articulados ao Estado, servindo à sua sustentação, eficácia e legitimação, como a escola, o esporte, e a mídia, pois o poder não se faz sentir apenas no uso da força, da repressão, isso por si só não daria base para sua sustentação, o poder cria verdades, saberes, heróis. Assim que fora descoberto que grupos de esquerda revolucionária estavam por trás dos vários assaltos a bancos, ataques a quartéis e a carros pagadores, e que Marighella comandava um dos grupos mais atuantes nesse sentido este passou a ser considerado o inimigo número um da ditadura, seu rosto passando a ser estampado na imprensa como terrorista. Marighella responde com o Chamamento ao Povo Brasileiro, datado de dezembro de 1968, texto no qual externou toda sua revolta contra a ditadura, fez denuncias de como agiam os militares a frente do governo e estabelece algumas medidas a serem executadas com a vitória da revolução: De algum lugar do Brasil me dirijo à opinião pública, especialmente aos operários, agricultores pobres, estudantes, professores, jornalistas e intelectuais, padres e bispos, aos jovens e à mulher brasileira. Diante da escandalosa avalanche de mentiras e acusações terrivelmente injuriosas lançadas contra mim, não tenho outra atitude a tomar senão a de responder à bala ao governo e às suas asquerosas forças policiais, empenhadas em minha captura, vivo ou morto.

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Agora não será como em 1964, quando eu estava desarmado e a polícia disparou sem que pudesse pagar com a mesma moeda. Não derrubaremos a ditadura através de quarteladas, nem de eleições, redemocratizações ou outras panaceias da oposição burguesa consentida. Violência contra violência. E a única saída é fazer o que estamos fazendo: utilizar violência contra os que tiveram a primazia em usá-la para prejudicar os interesses da pátria e das massas populares.

Nesse texto Marighella demonstra mais uma vez sua personalidade forte e decidida, chamando pra si as responsabilidades de todos os atos revolucionários praticados e fazendo referência a sua própria poesia, Canção dos Lírios, decreta uma abertura no bosque: O que acontece em nosso país é um vasto movimento de resistência contra a ditadura. E, de dentro dele, irromperam as operações e táticas guerrilheiras. E aceitando o honroso título de "inimigo público número um: que me foi outorgado pelo governo "gorila", assumo a responsabilidade pela irrupção de tais operações e táticas guerrilheiras. A iniciativa revolucionária está em nossas mãos. Já passamos à ação. Nada mais vamos esperar.49

Tendo entre seus princípios ideológicos palavras de ordem como “A ação faz a vanguarda” e “Não precisamos pedir licença para praticar atos revolucionários”, liberdade de ação era o que mais se pregava nas fileiras da ALN. Há um documento fundamental nesse sentido, uma carta de Marighella dirigida aos revolucionários de São Paulo, de dezembro de 1968, intitulada Quem samba Fica Quem não Samba Vai Embora:

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MARIGHELLA, C. Chamamento ao povo brasileiro, dez, 1968, In: Carone, E. Op. Cit. ,1984, p.54.

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Vocês tem carta branca na frente guerrilheira para desencadear a ação. Só não tem carta branca para coisas burocráticas, isto é, para impedir ações planejadas por outros grupos, sejam eles quais forem. Nem podem fazer discussões formais. É preciso ação e mais ação. Distribuir manifestos, pichar muros, sabotar, fazer política de terra arrasada, tudo isto com trabuco na cintura.

O jovem é visto como o futuro da revolução, mas é preciso prepará-lo, e nesse sentido todo o capital deve ser empregado. Mais o fundamental é a ação, todos devem agir e serem chamados para ação conjunta sendo ou não dos quadros da ALN “De todo modo, o problema é quem samba fica, quem não samba vai embora.” Nessa carta, Marighella, também aborda a estratégia a qual os revolucionários devem seguir. Apontando a guerrilha urbana como complementar, pois ela serve para viabilizar a guerrilha rural. A cidade é vista como um “cemitério de homens e recursos. Quanto mais recurso se lança na cidade, mais é preciso empregar.” Ou seja, a estratégia rural era o foco do pensamento de Marighella, nesse momento, esta quando bem alicerçada arrastaria a área urbana junto. Outra característica dessa carta é uma indireta, bastante direta, a algumas dissensões internas, despertando muitas polêmicas nos dias de hoje ao tentarmos supor a quem ou a que grupo dentro da ALN Marighella teria se dirigido: Nossos vínculos são ideológicos. Quem diverge ideologicamente deve dizer e colocar-se em sua verdadeira posição. A verdade deve ser dita claramente; (...) Se alguém acha que o nosso caminho armado é o correto ou não é correto, faça o favor, siga o seu caminho e não está obrigado a seguir o nosso.

O líder finaliza o documento dizendo: "É melhor cometer erros fazendo, ainda que disto resulte a morte. Os mortos são os únicos que não fazem autocrítica",50 Comentário esse dirigido 50

MARIGHELLA, Carlos. In: NOVA, Cristiane; NÓVOA, Jorge (Org.). Op. cit. p. 550.

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explicitamente à Executiva do PCB, que Marighella entendia que estava condenada pela inação. As suas reflexões convergiam sempre para a necessidade prioritária de se transformar toda a sociedade e o único meio entendido por ele para tal fim seria o socialismo revolucionário o qual não deslumbrava revoluções possíveis, mas sim revolução em atos, a partir não da direção de cúpulas que impunham suas vontades através de um sistema vertical, mas sim da valorização do trabalho de base, capaz de gerir agentes conscientes. Em 1969 observa-se, a partir de um conflito teórico – prático, uma transformação significativa no pensamento de Marighella, o qual passa a enxergar as ações na cidade como fundamentais. Já não admitia também interromper a guerrilha, pois entendia que se isso fosse feito seria mostrar um enfraquecimento não só de sua organização, mas de toda a revolução latino-americana. Em texto de maio de 1969, intitulado O Papel Revolucionário na Organização, Marighella faz um balanço positivo da ação revolucionária, afirma o crescimento da ALN, crescimento esse que só foi possível por meio da ação, e ratifica o seu modo de pensamento tático que priorizava agora a ação urbana “as manifestações concretas da guerra revolucionária surgiram em 1968, nas grandes cidades brasileiras, e através da guerra psicológica, prenunciadora da guerrilha rural em nosso país”. Entendo como guerrilha urbana a ação armada contra o governo e contra os grandes representantes do capitalismo nacional e internacional. E guerra psicológica como uma técnica pra manter o inimigo, a ditadura, perdido em meio suas ações. Então, para Marighella, 1969 seria um ano marcado pela necessidade se continuar as ações armadas nas cidades. Em decorrência disso, no mês de junho Marighella escreveria o “Minimanual do guerrilheiro urbano”, onde tenta sintetizar de forma didática como e quais as ações possíveis de uma guerrilha urbana e como deveria proceder, um guerrilheiro urbano, desde suas características, as armas, a organização até sua forma de ação. Também deixa clara sua base teórica: o marxismo, o leninismo e o castro-guevarismo. Ressalta o papel fundamental dos estudantes e dos eclesiásticos na luta contra o poder militar e o imperialismo

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norte-americano. Havia também a ideia de se intensificar as operações urbanas para poder se chegar à implantação da guerrilha rural. O texto não traz grandes mudanças no pensamento de Marighella, porém evidencia a importância dada a ação urbana naquele momento. O Minimanual do guerrilheiro urbana se tornou um dos textos mais conhecidos e difundidos de Marighella, traduzido em diversos idiomas, e ganhando grande circulação dentro de movimentos revolucionários do mundo todo nas décadas de 1970 e 1980, como a alemã Facção Exército Vermelho também conhecido como Baader-Meinhof e o italiano Brigadas Vermelhas. E ainda hoje circula em grupos que se intitulam revolucionários. Em setembro de 1969, Marighella escreve o texto “As perspectivas da revolução brasileira”. Esse texto vem no sentido de reforçar a necessidade do apoio das massas no processo revolucionário, desde que elas estejam preparadas para o combate com o os “gorilas”, como Marighella chama os militares. Aponta a necessidade de “unidade e solidariedade dos povos que lutam por sua liberação”51, e afirma ter chegado o momento de se desencadear a segunda fase das guerrilhas que seria a rural. Em outubro de 1969, Marighella volta a afirmar que a guerrilha rural seria a segunda fase da guerra revolucionária, no texto “Alocução sobre a guerrilha rural”, e que esta fase surgira em função da ação urbana “A segunda fase da guerra revolucionária é a guerrilha rural e não surge por acaso”.52 Nesse mesmo período concede uma entrevista à Conrad Detrez, da revista francesa, Front, onde se mostra bastante confiante e responde de forma incisiva que toda vanguarda nasce da ação, negando a necessidade de formação de uma organização aos moldes da estrutura partidária, pois a revolução teria um caráter socialista. Quando perguntado sobre a participação das massas e sua tomada de consciência, ele afirma que: “em termos de guerra revolucionária, 51

MARIGHELLA, C. Las perspectivas de la revolucion brasileña. In: _____ La guerra revolucionaria. México: Diógenes, 1970. p.96. 52 MARIGHELLA, C. O Brasil será um novo Vietnã. In: ___. CARONE, E. op. cit., 1984, p. 58.

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trabalho de massa e luta armada são simultâneos e interdependentes, um age sobre o outro e vice-versa”.53 Essas suas respostas à revista francesa são marcadas pela demonstração de otimismo com os rumos da luta, mas na verdade não era bem assim que Marighella estava analisando a conjuntura daquele momento, porém não poderia mostrar fraquezas frente aos inimigos e frente a seus seguidores. A repressão alcançava cada vez mais êxitos em relação às organizações clandestinas, que por sua vez se viam cada vez mais encurraladas. Mas em suas análises Marighella ainda entendia a necessidade de se intensificar as ações, era preciso não ter medo, era preciso agir. O paroxismo dessas ações é alcançado no caso do sequestro do embaixador norte-americano no Brasil, Charles Elbrick, no dia 4 de setembro de 1969, em ação conjunta da ALN e do MR-8. O sequestro se mostrou, no primeiro momento, vitorioso, pois, todas suas demandas foram atendidas: a exibição em meios de comunicação de massa de um discurso e a libertação de 15 presos políticos de diversas organizações. Muitos são os debates em torno da participação de Marighella nessa ação, porém é de sua autoria um texto no qual publicamente mostra apoio à ação, e saúda os quinze patriotas libertos: Estamos seguros de que o povo brasileiro aprova a atitude da Ação Libertadora Nacional e dos que com ela participaram do sequestro do embaixador dos Estados Unidos... A ditadura não teve outro recurso senão cumprir todas as exigências... O que desejamos alcançar não é somente a união dos revolucionários, mas também a união de todo o povo brasileiro, para implantar um governo revolucionário do povo, substituindo o aparato burocrático-militar do Estado brasileiro pelo povo armado.54

53 54

Idem. MARIGHELLA, C. Saludo a los quince patriotas. In: ___ Op. cit. p.83-87.

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Mas, novamente Marighella ao se expressar publicamente, não demonstra a sua real impressão sobre a conjuntura daquele momento. Emiliano José afirma que: Marighella teve uma conversa muito dura com Joaquim Ferreira, testemunhada por Antonio Flávio Médice de Camargo... Marighella disse a Ferreira que não entendia como havia ficado à margem da discussão sobre uma ação daquela magnitude. Achava que deveria ter sido melhor avaliada, sobretudo em suas consequências. 

Nós não vamos aguentar a repressão que vem pela frente.55

O Governo Militar vivia um momento de crise, em virtude do afastamento do Presidente Costa e Silva, que sofrera um derrame em agosto de 1969. Seu vice Pedro Aleixo que era civil e não favorável a chamada “linha dura”, tinha sido impedido de tomar posse. Uma junta formada pelos três ministros militares assumira então o governo por intermédio de mais um Ato Institucional, promulgando então uma nova constituição A qual a legalizava todo o aparato repressivo e acrescentaria ainda a Lei de Segurança Nacional, aumentando mais ainda os poderes do Executivo. No dia 25 de outubro de 1969, o nome do general Emílio Garrastazu Médice é indicado pela junta militar como novo Presidente da República brasileira. O golpe dentro do golpe havia se concretizado, a “linha dura” elegera seu representante paro o governo do Brasil. Os anos de 1969 a 1972 marcam a derrubada da maioria dos movimentos contestatórios à ditadura. A maioria dos relatos de pessoas íntimas à Marighella converge no sentido que ele havia se dado conta da necessidade de um recuo estratégico para assegurar a estrutura da organização. Mas já era tarde demais, o cerco tinha se fechado: Segundo rumores que correm na policia paulista, Marighella está em São Paulo, na Capital, dentro de um circuito de investigações que se fecha gradativamente. Com todas as 55

EMILIANO, José. Op. cit. p. 61

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saídas para Minas, Rio, Paraná, litoral e Oeste paulista vigiados, Marighella estaria sem chances de escapar. Esperase mesmo que ele tente uma fuga desesperada e não se acredita que ele venha a ser preso com vida. 56

Na ALN, haviam sido mortos e presos, alguns de seus principais militantes, pessoas com informações privilegiadas, o que representava um risco para toda a Organização. Marighella pedira a Joaquim Câmara Ferreira, que havia coordenado o sequestro do embaixador americano, para ir momentaneamente a Cuba. Em conversa com seu irmão Caetano, Marighella havia jurado que nunca seria preso ou torturado novamente. Também jamais aceitou sair para o exílio. Como nos fala Cristiane Nova e Jorge Nóvoa: Talvez esse tenha sido também um atalho inconsciente por onde Marighella deixou-se conduzir para sair “vitorioso” num caminho que, àquela altura, só apontava a derrota...57 Carlos Marighella foi morto por uma equipe policial comandada pelo delegado Sérgio Paranhos Fleury, após uma emboscada na noite do dia 4 de novembro de 1969 na Alameda Casa Branca, em São Paulo. Seu corpo foi enterrado como indigente no cemitério de Vila Formosa, em São Paulo.

56 57

Veja, 21 nov. 1969 NOVA, Cristiane; NÓVOA, Jorge (Org.). Op. cit. p. 178

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____________________________ Referências bibliográficas ALBUQUERQUE Jr, Durval Muniz; de. Experiência: uma fissura no silêncio. Rev. Eletrônica. CARONE, Edgard. Movimento Operário no Brasil (1887-1944). São Paulo: Difel, 1979. CASTORIADIS, Cornelius. O social histórico e significações imaginárias da sociedade. São Paulo: Paz e Terra, 2000, 5º Ed. CARVALHO, José Murilo de. Introdução. A formação das almas: o imaginário da república no Brasil. São Paulo. Companhia das Letras Dicionário Biográfico Brasileiro EMILIANO, José. Carlos Marighella, o inimigo número um da ditadura militar. 2ª ed. São Paulo: Sol & Chuva. 1997 GOLDENBERG, Mirian. Bandido ou herói? In: ___ De perto ninguém é normal. Rio de Janeiro: Record, 2004. MARIGHELLA, C. Poemas: Rondó da Liberdade. São Paulo: Brasiliense,1994 MARIGHELLA, Carlos. Algumas questões sobre as guerrilhas no Brasil. In: _____. Escritos de Carlos Marighella. São Paulo: Ed. Livramento, 1979 NOVA, Cristiane; NÓVOA, Jorge (Org.). Carlos Marighella: O homem por trás do mito. UNESP, 1999

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PAZ, C. E. Viagem à luta armada: memórias romanceadas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1996. ROLLEMBERG, Denise. O apoio de Cuba à luta armada no Brasil. Rio de Janeiro: MAUAD, 2001. SANTOS, Douglas apud GOERTTERT, Jones Davi. “Sobre o espaço”: Elementos para uma leitura das transformações espaciais do corpo e da casa a partir do processo civilizador, de Norbert Elias. In: Simpósio Internacional Processo Civilizador, 11. Buenos Aires, SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade representação. Rio de Janeiro: Ed. Contraponto, 2001.

e

Disponível em: http://www.liderancapsol.org.br/noticia/acessado em 26/06/2010. Disponível em: http://veja.abril.com.br/arquivo_veja/capa_12111969.shtml/ acessado em 26/06/2010. Disponível em: http://veja.abril.com.br/arquivo_veja/capa_15041970.shtml/ acessado em 26/06/2010. Disponível em: http://veja.abril.com.br/arquivo_veja/capa_13081969.shtml/ acessado em 26/06/2010. Disponível em:http://veja.abril.com.br/arquivo_veja/capa_20111968.shtml/ acessado em 26/06/2010. BANDO armado toma rádio de assalto. O Globo, Rio de Janeiro, 16 ago. 1969. GENERAL França deve chefiar em São Paulo caça a Marighella. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 13 nov. 1968.

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____________________________ Sobre o autor Elynaldo Gonçalves Dantas é bacharel e mestre em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Suas obras versam sobre temas como: política, identidade, Estado, poder e representações culturais. Essa obra em especial, é fruto do seu trabalho final de graduação em 2010. É autor de Gustavo Barroso, o führer brasileiro: Nação e Identidade no discurso integralista barrosiano de 1933-1937, publicado em 2015.

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Esta edição é resultado de uma atividade acadêmica da disciplina BIB0106 - EDITORAÇÃO (2015.2), do curso de Biblioteconomia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Seu propósito é inteiramente para fins acadêmicos e sua comercialização e circulação são proibidas. Esta edição é para fins acadêmicos e sua comercialização e circulação são proibidas. Todos os direitos desta edição são reservados ao autor do texto, Elynaldo Gonçalves Dantas.

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