Os Cristãos e os Desafios Contemporâneos

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Os cristaos e os desafios contemporaneos ^



John Stott Revisado e atualizado por Roy McCloughry Com um novo capĂ­tulo de John Wyatt

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Os cristaos e os desafios contemporaneos ^

Traduzido por MEIRE PORTES SANTOS


os cristãos e os desafios contemporâneos Categoria: Ética / Teologia / Vida cristã

Copyright © John R. W. Stott, 2006

Publicado originalmente por Zondervan, Grand Rapids, Michigan, Estados Unidos Título original em inglês: Issues Facing Christians Today

Primeira edição: Março de 2014 Coordenação editorial: Bernadete Ribeiro Tradução: Meire Portes Santos Preparação e revisão: Claudete Agua de Melo Luísa Ramos Botelho Colaboração: Fernanda Moreira Natália Superbi Diagramação: Bruno Menezes Capa: Ana Cláudia Nunes

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Stott, John, 1921–2011 Os cristãos e os desafios contemporâneos / John Stott; revisado e atualizado por Roy Mccloughry; com um novo capítulo de John Wyatt; traduzido por Meire Portes Santos. — Viçosa, MG: Editora Ultimato, 2014. Título original: Issues facing Christians today. ISBN 978-85-7779-104-0 1. Evangelicalismo 2. Igreja e problemas sociais 3. Sexo - Aspectos religiosos - Cristianismo 4. Sociologia cristã 5. Vida cristã - Autores anglicanos I. Título.

14-01099

CDD-261.8

Índices para catálogo sistemático: Sociologia cristã 261.8

Publicado no Brasil com autorização e com todos os direitos reservados Editora Ultimato Ltda Caixa Postal 43 36570-000 Viçosa, MG Telefone: 31 3611-8500 Fax: 31 3891-1557 www.ultimato.com.br

A marca FSC é a garantia de que a madeira utilizada na fabricação do papel deste livro provém de florestas que foram gerenciadas de maneira ambientalmente correta, socialmente justa e economicamente viável, além de outras fontes de origem controlada.


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Sumario Prefácio à primeira edição Prefácio à segunda edição Prefácio à terceira edição Prefácio do editor à quarta edição Um lembrete de John Stott

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Parte 1 | Questões contextuais

1. Nosso mundo mutável: O envolvimento cristão é necessário? 2. Nosso mundo complexo: A mente cristã é diferente? 3. Nosso mundo pluralista: O testemunho cristão é influente?

23 49 73

Parte 2 | Questões globais

4. Guerra e paz 5. Cuidando da criação 6. Convivendo com a pobreza mundial 7. Direitos humanos

103 141 167 197

Parte 3 | Questões sociais

8. O mundo do trabalho 9. Relacionamentos no mundo dos negócios 10. Celebrando a diversidade étnica 11. Simplicidade, generosidade e contentamento

225 253 283 311


Parte 4 | Questões pessoais

12. Mulheres, homens e Deus 13. Casamento, coabitação e divórcio 14. Aborto e eutanásia 15. A nova biotecnologia (Professor John Wyatt) 16. Relacionamentos entre pessoas do mesmo sexo

341 375 405 437 465

Conclusão

17. Um chamado à liderança cristã

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Notas

523

Guia de estudo (compilado por Matthew Smith)

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Índice

583

Abreviaturas ARA – Almeida Revista e Atualizada ACRF – Almeida Corrigida e Revisada Fiel ARC – Almeida Revista e Corrigida J. B. Phillips – Tradução de John Bertram Phillips As citações bíblicas não seguidas de indicação são da Nova Versão Internacional.


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Prefacio a Primeira Edicao `

Nos últimos dez a quinze anos, uma das características mais notáveis do movimento evangélico pelo mundo inteiro tem sido a recuperação de nossa consciência social, que ficou perdida por um tempo. Por aproximadamente cinquenta anos, entre 1920 e 1970, os cristãos evangélicos estiveram preocupados com a tarefa de defender a fé bíblico-histórica contra os ataques do liberalismo teológico e reagir contra o seu evangelho social. Mas agora estamos convencidos de que Deus nos deu tanto responsabilidades sociais quanto evangelísticas neste mundo. Porém, o meio século de negligência nos deixou muito aquém nesta área. Temos um longo caminho a percorrer para alcançar o ponto onde deveríamos estar. Este livro é minha contribuição pessoal nesse sentido. Sua origem pode ser datada de 1978 ou 1979, quando Michael Baughen, hoje bispo de Chester e naquela época reitor da All Souls Church, convidou-me


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para pregar uma série de sermões especiais sob o título Questões que desafiam a Grã-Bretanha hoje. Vários capítulos tiveram seu início de vida no púlpito e posteriormente se desenvolveram em conferências no London Institute for Contemporany Christianity, cujo objetivo é ajudar as pessoas a desenvolverem uma perspectiva cristã sobre as complexidades do mundo moderno. Confesso que, várias vezes no decorrer da escrita, fui tentado a desistir. Às vezes me sentia um tolo, outras, presunçoso por me incumbir de tal empreendimento, pois de maneira alguma posso me considerar um especialista em teologia moral ou em ética social e não tenho especialização alguma ou experiência em alguns dos campos pelos quais me aventuro. Além do mais, cada tópico é complexo, tem gerado uma literatura ampla, da qual tenho conseguido ler apenas uma pequena parte, e tem um grande potencial de gerar divisão – em alguns casos é até explosivo. Mesmo assim, tenho perseverado, principalmente porque o que me aventuro a oferecer ao público não é uma composição literária profissional apurada, mas o trabalho amador e grosseiro de um simples cristão que está lutando para pensar de forma cristã, isto é, para aplicar a revelação bíblica aos assuntos urgentes dos nossos dias. Pois essa é a minha preocupação. Começo com um comprometimento com a Bíblia como Palavra escrita de Deus, que é a sua descrição nos artigos anglicanos e como ela tem sido recebida por quase todas as igrejas até recentemente. Essa é a pressuposição básica deste livro; não faz parte do meu objetivo aqui argumentá-la. Mas nós, cristãos, temos um segundo comprometimento, com o mundo no qual Deus nos colocou. E nossos dois compromissos muitas vezes parecem conflitantes. Por ser uma coleção de documentos que se relacionam a eventos distantes e particulares, a Bíblia dá uma impressão arcaica. Parece incompatível com nossa cultura ocidental, com suas sondas espaciais e microprocessadores. Como qualquer outro cristão, me sinto preso na dolorosa tensão entre esses dois mundos. Eles estão há séculos de distância. Todavia, tenho procurado resistir à tentação de me afastar de um deles em sujeição ao outro. Alguns cristãos, ansiosos, sobretudo por serem fiéis à revelação de Deus sem concessões, ignoram os desafios do mundo moderno e vivem no passado. Outros, ansiosos por reagir ao mundo ao seu redor, podam e torcem a revelação de Deus em sua busca por relevância. Tenho lutado para evitar ambas as armadilhas. Pois o cristão tem uma condição livre, que lhe permite não se render à antiguidade nem à modernidade. Antes,


Prefácio à primeira edição

tenho procurado com integridade submeter tudo à revelação de ontem, dentro das realidades de hoje. Não é fácil aliar lealdade ao passado com sensibilidade ao presente. Porém, este é o nosso chamado cristão: viver, sob a Palavra, no mundo. Muitas pessoas me ajudaram a desenvolver meu raciocínio. Agradeço à “sucessão apostólica” de meus assistentes de estudo – Roy McCloughry, Tom Cooper, Mark Labberton, Steve Ingraham e Bob Wismer –, que compilaram bibliografias, montaram grupos para a discussão de temas de sermões, ajuntaram informações e conferiram referências. Bob Wismer ajudou de forma especial na etapa final, lendo o manuscrito duas vezes e fazendo sugestões valiosas. Da mesma forma, Frances Whitehead, minha secretária por 28 anos. Ela e Vivienne Curry digitaram o manuscrito. Steve Andrews, meu atual assistente de estudo, foi meticuloso na revisão de provas. Também agradeço a amigos que leram diferentes capítulos e me deram o privilégio de seus comentários – Oliver Barclay, Raymond Johnston, John Galdwin, Mark Stephens, Roy McCloughry, Myra Chave-Jones e meus colegas do London Institute, Andrew Kirk, diretor adjunto, e Martyn Eden, deão. Sou grato de forma especial a Jim Houston, diretor fundador e agora chanceler do Regent College, em Vancouver, cuja visão da necessidade de os cristãos terem uma cosmovisão integrada estimulou meu próprio raciocínio e a fundação do London Institute. John Stott Junho de 1984

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Prefacio a Segunda Edicao `

Seis anos já se passaram desde a publicação de Os Cristãos e os Desafios Contemporâneos e neste breve período o mundo testemunhou muitas mudanças. A tensão entre as superpotências diminuiu e o desarmamento começou. Liberdade e democracia, nem sequer sonhadas há apenas um ano, enraizaram-se na Europa Oriental e na União Soviética, apesar de simultaneamente a repressão brutal esmagá-las na China. Velhos debates, como a ameaça nuclear, continuam, enquanto novos debates, como a epidemia da aids, surgem. Disso veio a necessidade da segunda edição, revisada, deste livro. As estatísticas sobre armamentos, violação dos direitos humanos, outras religiões, desemprego, divórcio e aborto foram atualizadas. Foi necessário ler e refletir sobre livros recentemente publicados sobre quase todos os assuntos. Vários deles foram escritos por autores evangélicos, o que é um sinal animador do desenvolvimento da nossa consciência social. Outro


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sinal disso é a fusão do London Institute for Contemporary Christianity com o Shaftesbury Project for Christian Involvement in Society, para formar o Christian Impact e assim unir pesquisa, educação e pensamento com a ação. Outros sinais, ainda, são o compromisso mais forte com a ação social explícito no Manifesto de Manila, adotado no segundo Congresso de Evangelização Mundial, de Lausanne (1989), e o projeto Sal e Luz, patrocinado pela Aliança Evangélica Britânica. Esta segunda edição de Os Cristãos e os Desafios Contemporâneos também incorpora novos materiais sobre muitos temas – o rápido crescimento do movimento verde e suas advertências sobre a diminuição da camada de ozônio e sobre o efeito estufa, o Relatório Brundtland, conhecido como Nosso Futuro Comum, e seu conceito de desenvolvimento sustentável, o peso da dívida externa carregado por muitas famílias no Ocidente e, em um grau incapacitante, por países do Terceiro Mundo, os três importantes documentos cristãos publicados recentemente na África do Sul, reflexões adicionais de cristãos evangélicos a respeito do papel, ministério e liderança de mulheres, a fertilização humana e as modernas tecnologias reprodutivas, os aspectos teológico, moral, pastoral e educacional da aids e a efetividade do protesto e do testemunho social cristão. Expresso meu agradecimento sincero a Toby Howarth e a Todd Shy, meu anterior e meu atual assistente de estudo, por relerem meticulosamente todo o livro e fazerem várias sugestões. A Martyn Eden, Elaine Stolkey, Roy McCloughry, Maurice Hobbs, John Wyatt e Stephen Rand, por examinarem algumas seções ou capítulos e proporem mudanças. A Lance Pierson, por fazer o Guia de Estudo, e a Frances Whitehead, por tanta redigitação e algumas edições de “recortar e colar” muito eficazes. Para concluir, sinto necessidade de declarar novamente o que escrevi no prefácio à primeira edição, isto é, que este livro representa as lutas de uma pessoa sem pretensões de se declarar infalível, ansiosa por continuar aumentando sua integridade cristã diante das pressões de uma sociedade altamente secular, e que, por isso, está continuamente procurando uma nova luz das Escrituras. John Stott Janeiro de 1990


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Prefacio a Terceira Edicao `

Os Cristãos e os Desafios Contemporâneos foi publicado

pela primeira vez em 1984 e sua segunda edição, revisada, foi lançada em 1990. Desde então, 8 anos se passaram e uma terceira edição, atualizada, já sai tardia. É extraordinário perceber que, nos assuntos de todos os capítulos, o debate avançou e, em alguns casos, a situação mudou significativamente. Com o colapso do marxismo europeu, que se seguiu à demolição do Muro de Berlim, grande parte do mapa da Europa teve de ser redesenhado. O fim da Guerra Fria tornou alguns tratados internacionais de desarmamento possíveis. A Rio + 20, também conhecida como Cúpula da Terra, ocorrida em 1992, refletiu e estimulou o crescimento do temor público a respeito da diminuição da camada de ozônio e do aquecimento global. Novas políticas de desenvolvimento e propostas para o cancelamento de dívidas trouxeram esperança real para as nações


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mais pobres. A liderança conciliadora do presidente Mandela e o final do apartheid brilham, em contraste com o aumento da violência racial e o ressurgimento do nacionalismo na Europa. Os cristãos também estão perturbados com influências que enfraquecem o casamento e a família, especialmente a coabitação e o relacionamento entre pessoas do mesmo sexo, e que desafiam a santidade da vida humana, especialmente o aborto e a eutanásia. Dez consultores, cada um especialista em sua área, foram gentis em ler o capítulo de sua especialidade, recomendar alterações, indicar leituras e novos assuntos a se considerar. Sou grato, acima de tudo, por suas críticas e sugestões. São eles, em ordem alfabética de sobrenome: Sir Fred Catherwood, Martyn Eden, Dr. David Green, Gary Haugen, Sir John Houghton, Roy McCloughry, Dr. Alan Storkey, Pradip Sudra, Dr. Neil Summerton e Prof. John Wyatt. Reservo minha gratidão especial a John Yates, meu atual assistente de estudos. Ele não apenas se deu a tarefa de ler a segunda edição do livro várias vezes, como fez suas próprias sugestões, bastante perspicazes, atualizou as estatísticas, acompanhou as propostas dos consultores, fez, ele mesmo, um pouco da reescrita do livro e me aconselhou quanto a livros e artigos que eu precisava ler e ponderar para esta edição. Não posso elogiar suficientemente seu diligente trabalho. John Stott Outono de 1998


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Prefacio do editor~ ` a Quarta Edicao `

Trabalhar na quarta edição deste livro tem sido um privilégio, não apenas por causa de sua grande influência sobre o pensamento cristão desde a primeira edição, em 1984, mas também pela sua influência sobre a minha própria jornada, na época em que eu era um estudante em Londres e ouvia os sermões de John Stott sobre os assuntos do livro. Depois, como seu primeiro assistente de estudos, há 25 anos atrás, continuei a ser influenciado pelo seu pensamento sobre esses temas. Como alguém chamado a refletir, como cristão, sobre a vida política, econômica e social contemporânea, considero sua abordagem esclarecedora e estimulante. Esta edição teve mais revisões do que as anteriores. Principalmente porque alguns dos capítulos da terceira edição se referiam a acontecimentos ou discussões que não eram mais relevantes. Por exemplo, o relatório Brandt não está mais no centro da discussão sobre a pobreza global,


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nem a discussão sobre as relações industriais é tão relevante para a vida empresarial hoje como o era na época das edições anteriores. Alguns capítulos permanecem relativamente intocados, tendo apenas as estatísticas revisadas, já que John considerou que elas ainda resumiam o que ele tinha a dizer sobre o assunto. O capítulo “Guerra e paz”, por exemplo, ainda contém uma reflexão teológica substancial sobre guerra nuclear. Outros capítulos passaram por uma cirurgia mais extensa para serem atualizados. Contudo, John e eu estamos muito cientes de que tudo está mudando muito rapidamente em cada uma das áreas abordadas neste livro. Como os computadores, que já estão obsoletos quando saem de suas caixas, os leitores verão que alguns fatos discutidos aqui já estão defasados desde a impressão do livro. Felizmente, muitos que lerem este livro terão acesso à internet, o que lhes permitirá se atualizarem um pouco mais. Em todo o livro, está bem separado o momento em que se define a situação e o momento de reflexão e análise teológicas de John. Apesar da possibilidade de a situação ter mudado, a análise e a reflexão não mudaram. Os críticos podem dizer que a discussão teológica progrediu e é claro que estariam corretos no sentido de que atualmente existem mais livros e artigos competentes sobre cada um dos temas — ainda bem —, escritos por cristãos, muitos deles evangélicos. Entretanto, a razão para essa quarta edição é que milhares de pessoas ainda se beneficiam da sabedoria e reflexão de John sobre esses assuntos. Sua forma habilidosa de manusear as Escrituras e a aplicação que faz dela a muitos problemas contemporâneos serão procuradas por muitos anos à frente. Por todo o livro, fui cuidadoso em não permitir que meus próprios preconceitos e tendências se mostrassem no texto, especialmente naquelas áreas em que John e eu nos expressamos sobre algo de modo diferente. O livro é dele, não meu, e minha esperança é que os leitores ainda reconheçam sua distinta voz ao lerem suas páginas. Aquelas pessoas que perceberem uma mudança na postura de John a respeito de assuntos importantes, nesta edição, estarão erradas. Com exceção de uma breve inserção no capítulo “Mulheres, homens e Deus”, John não escreveu qualquer coisa nova para esta edição, apesar de a ter lido e ter feito correções onde necessário. Todas as mudanças partiram de mim ou de alguns daqueles que foram gentis em me oferecerem sua perícia, em todos os casos sem ônus, o que demonstra muita generosidade. São eles: Christopher Ash, Andrew Cornes, Mark Greene, Martin Hallet, Peter Harris, Mark Lovatt, Stephen Rand, Nick Riley, Trevor Stammers, Neil


Prefácio do editor à quarta edição

Summerton, Beverly Thomas e Scott Thomas. Mencioná-los aqui não significa que eles concordem com tudo — nem mesmo com uma coisa apenas! — que foi escrito em sua área de conhecimento. Eu gostaria de agradecer a três pessoas em especial. Meu amigo John Wyatt de boa vontade cedeu tempo de sua agenda extremamente cheia para escrever o capítulo “A nova biotecnologia” e para oferecer opiniões sobre o capítulo “Aborto e eutanásia”. Sou muito grato a ele. De mesmo modo, Matthew Smith, assistente de estudo de John durante este projeto, foi extremamente importante, não somente atualizando as estatísticas e outros detalhes semelhantes, mas contribuindo para o capítulo “Relacionamentos no mundo dos negócios”. Ele também escreveu o Guia de Estudo, que esperamos ser útil não apenas para estudos individuais, mas também para aqueles que desejam estudar o livro em grupo. Meu assistente pessoal, Kaja Ziesler, também contribuiu muito para esta edição, não somente em termos de pesquisa, mas também escrevendo esboços e dando opiniões. Eu assumo a responsabilidade por qualquer erro de omissão ou de instrução! Esta edição levou muito mais tempo para ser terminada do que qualquer um de nós envolvido no projeto havia imaginado no início, e sou grato a John por sua paciência e cortesia. Zondervan nos incentivou muito, em tudo, e eu gostaria de agradecer a Amy Boucher-Pye, Maryl Darko e Angela Scheff em particular. Espero que você aprecie esta nova edição e ore para que ela possa continuar influenciando uma nova geração e desafiando-a a não só pensar de maneira cristã sobre o mundo, mas a agir para torná-lo mais agradável a Deus. Roy McCloughry West Bridgford Setembro de 2005

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Um lembrete de John Stott Ser convidado para atualizar o livro de outra pessoa é uma tarefa ingrata! Mas Roy McCloughry fez isso com muita habilidade, graça e perseverança. Eu pedi a Roy para se responsabilizar pela quarta edição de Os Cristãos e os Desafios Contemporâneos primeiramente porque na minha idade, 85 anos, sei que não poderia e também porque tinha total confiança de que ele seria capaz. Não fiquei desapontado. Apesar de ter dado completa liberdade ao Roy e sua revisão ter sido perfeita, algumas vezes essencial, foi entendido entre nós que no final o livro ainda seria reconhecidamente meu, e é. Para indicar isso, em vários lugares a primeira pessoa do singular, eu, e algumas anedotas pessoais foram preservadas. Sou imensamente grato a Roy pela enorme quantidade de tempo e energia que ele empregou no trabalho editorial, e a todos aqueles que o assistiram, os quais ele cita em seu prefácio, especialmente a Matthew Smith, meu assistente de estudo durante este projeto. Publicamos esta quarta edição de Os Cristãos e os Desafios Contemporâneos com orações e esperança de que ela estimule uma nova geração de leitores a pensar de forma cristã a respeito de alguns dos grandes assuntos de nossa época. John Stott Setembro de 2005



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Parte 1

Questoes contextuais



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Nosso mundo mutavel: ~

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O envolvimento cristao e necessario?

No início do século 21, somos confrontados com uma enorme gama de desafios, os quais nunca poderíamos ter imaginado há cinquenta anos. O ritmo das mudanças tecnológicas confirmam a inteligência da humanidade, mas a persistência da pobreza mundial continua sendo um desafio ao nosso senso de justiça. Cada vez mais somos interdependentes globalmente e as oportunidades de negócios são abundantes, no entanto ricos e pobres nunca estiveram tão distantes. Somos tratados como consumidores e não como cidadãos, em uma sociedade materialista de grande sofisticação, mas de pouco propósito. As consequências involuntárias das nossas ações causaram problemas ambientais que ameaçam seriamente nosso futuro juntos. Apesar da ameaça de uma guerra nuclear ter regredido, temos de lidar com o aumento do terrorismo global, com o surgimento de homens-bomba e com o ressurgimento da violência inspirada na religião. O colapso da família, principalmente no Ocidente, tem colocado cargas pesadas sobre pais solteiros, ameaçado a coesão da


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comunidade e, em muitos casos, levado a um senso de alienação entre pessoas jovens. Estamos confusos no que diz respeito à natureza da identidade humana e essa confusão pode ser vista tanto na destruição da vida, por meio do aborto e da eutanásia, quanto em nossa intenção de criar vida, por intermédio da genética e da clonagem. Por que nos envolvermos em tal mundo? É extraordinário que precisemos fazer essa pergunta e que a controvérsia deva surgir na relação entre evangelismo e responsabilidade social. Todos esses assuntos e muitos outros afetam tanto cristãos quanto os que não têm fé religiosa e desafiam nosso senso de identidade e propósito. Desafiam-nos a aplicar o raciocínio cristão a novas questões, que nos atingem em proporções elevadas. No próximo capítulo, observaremos como os cristãos são chamados a desenvolver uma mente cristã, mas, neste capítulo, quero olhar para o chamado de se envolver neste mundo. Ainda existem pessoas que acreditam que os cristãos não têm responsabilidade social no mundo, apenas a missão de evangelizar aqueles que ainda não ouviram o evangelho. Porém, é evidente que em seu ministério público Jesus “foi [...] ensinando [...] pregando” (Mt 4.23; 9.35) e “fazendo o bem e curando” (At 10.38). Como consequência, “o evangelismo e o interesse social estão intimamente relacionados por toda a história da Igreja [...] O povo cristão frequentemente se envolvia em ambas as atividades voluntariamente, sem necessidade alguma de definir o que eles estavam fazendo ou o porquê”.1 Nosso Deus é um Deus amoroso, que perdoa aqueles que se voltam para ele arrependidos, mas também é um Deus que deseja justiça e nos chama, como seu povo, não somente para vivermos de forma justa, mas para advogarmos a causa do pobre e do fraco. Por que os cristãos devem se envolver? No fim, existem apenas duas atitudes possíveis que os cristãos podem adotar em relação ao mundo. Uma é a fuga e a outra é o envolvimento (você poderia dizer que existe uma terceira opção, ou seja, a acomodação. Mas, nesse caso, os cristãos se tornam indistinguíveis do mundo e por causa disso não são mais capazes de desenvolver uma atitude distinta para com ele. Eles simplesmente se tornam parte dele). Acomodação significa virar as costas para o mundo, em rejeição, lavando as mãos (apesar de descobrirmos com Pôncio Pilatos que a responsabilidade não sai com a lavagem) e cobrindo o coração com aço contra seus gritos agonizantes de pedido de ajuda. Em contrapartida, envolvimento significa voltar a face para o mundo, em compaixão, sujando nossas mãos, machucando-as e usando-as em serviço deste, e sentindo


Nosso mundo mutável: O envolvimento cristão é necessário?

no mais profundo de nosso íntimo o agir do amor de Deus, que não pode ser contido. Muitos de nós evangélicos já fomos ou ainda somos acomodados irresponsáveis. A comunhão mútua na igreja é muito mais cômoda do que o serviço em um ambiente indiferente e hostil lá fora. É claro que fazemos incursões evangelísticas casuais no território inimigo (essa é a nossa especialidade evangélica), mas depois nos retraímos novamente, do outro lado do fosso, em nosso castelo cristão – a segurança da nossa própria comunhão evangélica –, puxamos nossa ponte levadiça e até tampamos os ouvidos para os clamores daqueles que batem no portão. Quanto à atividade social, temos tendência a dizer que é basicamente uma perda de tempo, em virtude da volta iminente do Senhor. Afinal de contas, quando a casa está pegando fogo, o que vale pendurar cortinas novas ou mudar a posição dos móveis? A única coisa que vale a pena é resgatar os que perecem. Assim nós temos tentado salvar nossa consciência, com uma teologia espúria.

A herança do interesse social evangélico2 Ainda que os evangélicos tenham uma história notável no que se refere ao seu envolvimento com justiça social e econômica, isso aconteceu de forma especial na Europa e na América do século 18. O avivamento evangélico, que agitou ambos os continentes, não deve ser lembrado apenas em referência à pregação do evangelho e à conversão de pecadores a Cristo. Ele também levou à filantropia generalizada e afetou a sociedade profundamente, em ambos os lados do Atlântico. John Wesley continua sendo o exemplo mais admirável. Ele é lembrado principalmente como evangelista itinerante e pregador ao ar livre, mas o evangelho que ele pregava inspirou pessoas a abraçarem as causas sociais em nome de Cristo. Historiadores têm atribuído à influência de Wesley, mais que a qualquer outra, o fato de a Grã-Bretanha ter sido poupada dos horrores de uma revolução sangrenta como a da França.3 A mudança que sobreveio à Grã-Bretanha durante esse período foi bem documentada no notável livro de J. Wesley Bready England; Before and After Wesley – the evangelical revival and social reform [Inglaterra: antes e depois de Wesley – o avivamento evangélico e a reforma social]. Sua pesquisa o forçou a concluir que “o verdadeiro sustentador do espírito e dos valores de caráter que criaram e sustentaram as instituições livres

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em todo o mundo de língua inglesa”, de fato “a linha divisória moral da história anglo-saxônica”, foi “o tão negligenciado e muitas vezes satirizado avivamento evangélico”.4 Bready descreveu “a profunda crueldade de grande parte do século 18”,5 que foi caracterizado da seguinte forma: A tortura gratuita de animais como esporte, a embriaguez irracional da multidão, o tráfico desumano de negros africanos, o sequestro de conterrâneos para exportação e venda como escravos, a mortalidade de filhos de membros da igreja, a obsessão universal pela jogo, a crueldade do sistema penitenciário e do código penal, o monstro da imoralidade, a prostituição do teatro, o crescente predomínio da ilegalidade, da superstição e da lascívia, a corrupção e o suborno político, a arrogância e truculência eclesiástica, as pretensões superficiais do deísmo, a insinceridade e depravação desenfreadas na Igreja e no Estado – tais manifestações sugerem que o povo britânico era, na época, tão profundamente degradado e pervertido quanto qualquer povo da cristandade.6

Depois as coisas começaram a mudar. No século 19 a escravidão e o tráfico de escravos foram abolidos, o sistema presidiário foi humanizado, as condições nas fábricas e minas foram melhoradas, a educação se tornou disponível para o pobre e os sindicatos trabalhistas tiveram seu início. De onde veio, então, essa humanidade pronunciada? Essa paixão pela justiça social e sensibilidade aos males humanos? Existe apenas uma resposta coerente com a imbatível verdade histórica: a mudança deriva de uma nova consciência social. E se essa consciência social, reconhecidamente, foi fruto de mais de um progenitor, ela foi gerada e alimentada pelo avivamento evangélico de um cristianismo vital e prático – um avivamento que iluminou os postulados centrais da ética do Novo Testamento, que tornou real a paternidade de Deus e a irmandade dos homens, que apontou a primazia da personalidade sobre a propriedade e que direcionou coração, alma e mente ao estabelecimento do reino de justiça na terra.7

O avivamento evangélico “fez mais para transfigurar o caráter moral do populacho geral do que qualquer outro movimento que a história britânica pode recordar”.8 Pois Wesley foi pregador do evangelho e profeta da justiça social. Ele foi “o homem que restaurou à nação a sua alma”.9 Os líderes evangélicos da geração seguinte foram comprometidos, com igual entusiasmo, com o evangelismo e com a atuação social. Os mais famosos entre eles foram Granville Sharp, Thomas Clarkson, James Stephen, Zachary Macaulay, Charles Grant, John Shore (Lord


Nosso mundo mutável: O envolvimento cristão é necessário?

Teignmouth), Thomas Babington, Henry Thornton e, é claro, sua estrela-guia, William Wilberforce. Devido a vários deles viverem em Clapham — na época uma vila há três milhas do sul de Londres, pertencente à Clapham Parish Church, cujo reitor, John Venn, era um deles —, vieram a ser conhecidos como o partido de Clapham, apesar de, no parlamento e na imprensa, serem zombados como os santos. Foi o interesse deles pela situação dos escravos africanos que os uniu pela primeira vez. Três dias antes de sua morte, em 1791, John Wesley escreveu a Wilberforce para assegurá-lo de que Deus o havia levantado para o seu empreendimento glorioso e para estimulá-lo a não se cansar de fazer o bem. Em grande parte, é ao partido de Clapham (sob a liderança de Wilberforce) que pertence o crédito pelo primeiro assentamento de escravos libertos em Serra Leoa (1787), a abolição do tráfico (1807), o registro dos escravos nas colônias, que colocou um fim ao contrabando (1820), e finalmente a emancipação dos escravos (1833). É verdade que os santos eram aristocratas ricos, que compartilhavam algumas das obliterações sociais de sua época, mas eles eram extremamente generosos em sua filantropia e o alcance de seus interesses era extraordinário. Além do assunto da escravidão, eles se envolveram na reforma penal e parlamentar, na educação popular (escolas dominicais, folhetos e o jornal Christian Observer), na obrigação da Grã-Bretanha com suas colônias (especialmente a Índia), na propagação do evangelho (eles foram instrumentais na fundação tanto da Sociedade Bíblica quanto da Sociedade Missionária da Igreja) e na legislação das fábricas. Eles também fizeram campanhas contra os duelos, jogatinas, embriaguez, imoralidade e esportes cruéis com animais. Do começo ao fim, eles foram direcionados e motivados por sua forte fé evangélica. Ernest Marshall Howse escreveu sobre eles: Esse grupo de amigos de Clapham pouco a pouco foi entrelaçado por uma intimidade e solidariedade surpreendentes. Eles planejavam e trabalhavam como um comitê que nunca se dissolvia. Nas mansões de Clapham, eles se reuniam por um ímpeto comum, a partir do qual escolheram chamar as reuniões de seu Conselho de Ministros, em que discutiam os males e injustiças que eram uma vergonha para o seu país e as batalhas que seria necessário lutar para estabelecer a justiça. Depois, no Parlamento e fora dele, eles se movimentavam como um corpo, delegando a cada homem o trabalho que esse podia fazer melhor, para que os princípios comuns pudessem ser mantidos e seus propósitos comuns, realizados.10

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Em sua biografia de Wilberforce, Reginald Coupland comentou oportunamente: “Foi realmente um fenômeno singular – essa fraternidade de políticos cristãos. Nunca mais houve qualquer coisa semelhante na vida pública britânica”.11 Anthony Ashley Cooper foi eleito para o Parlamento britânico em 1826, aos 25 anos de idade. Primeiramente na Câmara dos Comuns e depois na Câmara dos Lordes, como o sétimo Conde de Shaftesbury, ele se interessou sucessivamente pela condição dos deficientes mentais, pelo trabalho infantil nas fábricas e nos moinhos, pelos meninos que limpavam chaminés, pelas mulheres e crianças nas minas e pelas crianças dos cortiços, das quais mais de 30 mil estavam sem lar em Londres e mais de 1 milhão estava sem escola em todo o país. Sua biógrafa, Georgina Battiscombe, que muitas vezes lhe faz críticas bem severas, conclui, entretanto, o registro de sua vida com este generoso tributo: “Na verdade, nenhum homem fez tanto para diminuir a amplitude da miséria humana ou para acrescentar à soma da felicidade humana”.12 Ele próprio se sentiu apto a dizer que “a maioria dos grandes movimentos filantrópicos do século se originaram dos evangélicos”.13 O mesmo pode ser dito dos Estados Unidos no século 19. O envolvimento social foi tanto filho da religião evangélica como irmão gêmeo do evangelismo. Isso é visto claramente em Charles G. Finney, que é mais conhecido como o advogado que se tornou evangelista e autor de Lectures on Revivals of Religion (1835) [Palestras sobre reavivamentos da religião]. Por meio de sua pregação do evangelho, várias pessoas foram trazidas à fé em Cristo. O que não é muito conhecido é que ele era interessado por reformas tanto quanto o era por avivamentos. Ele estava convencido, como Donald W. Dayton mostra em sua obra Discovering an Evangelical Heritage [Descobrindo uma herança evangélica], de que o evangelho “libera um poderoso impulso na direção da reforma social” e que a negligência da Igreja em relação à reforma social entristece o Espírito Santo e impede o avivamento. É maravilhoso ler a declaração de Finney em sua 23ª Conferência sobre avivamento de que “o grande trabalho da Igreja é reformar o mundo [...] A Igreja de Cristo foi organizada originalmente para ser um grupo de reformadores. A própria profissão do cristianismo implica a profissão, a verdade no juramento, de fazer todo o possível para a reforma universal do mundo”.14 Não é de se surpreender, entretanto, que por intermédio do evangelismo de Finney Deus levantou “um exército de jovens convertidos


Nosso mundo mutável: O envolvimento cristão é necessário?

que se tornaram as tropas do movimento de reforma de sua época”. Em particular, “as forças antiescravidão [...] vieram, em grande parte, dos convertidos nos avivamentos de Finney”.15 O século 19 é conhecido também pela grande expansão das missões cristãs que ele testemunhou. Contudo, não se deve imaginar que os missionários se concentravam exclusivamente na pregação, ou mesmo que seu interesse social se restringia a socorrer e prestar assistência, negligenciando o desenvolvimento e até mesmo a atividade sociopolítica. É duvidoso até mesmo que essas distinções tenham sido traçadas na prática. Não, eles acolheram a medicina e a educação, a técnica agrícola e outras tecnologias como expressões de missão e compaixão. Eles fizeram campanhas contra a injustiça e a opressão, em nome do evangelho. A missão deles não era de palavras, mas de palavras e obras.

A grande inversão Entretanto, mais tarde aconteceu algo para desafiar o compromisso evangélico com o interesse social. Isso ficou visível especialmente durante os primeiros 30 anos do século 20, sobretudo durante a década seguinte à Primeira Guerra Mundial, quando uma mudança drástica aconteceu, a qual o historiador americano Timothy L. Smith denominou a grande inversão, e que David O. Moberg investiga em seu livro com esse mesmo título.16 A luta contra o liberalismo

Primeiramente, houve a luta contra o liberalismo teológico, que negligenciava a pregação do evangelho. Os evangélicos sentiam que estavam contra a parede.17 Compreensivelmente, eles se tornaram preocupados com a defesa e a proclamação do evangelho, pois ninguém mais parecia estar advogando o cristianismo bíblico-histórico. Esse foi o período (1910–1915) em que uma série de doze pequenos livros intitulada The Fundamentals [Os fundamentos] foi publicada nos Estados Unidos, cujo nome deu origem ao termo fundamentalismo. Ocupados na tentativa de defender os fundamentos da fé, os evangélicos sentiam que não tinham tempo para questões sociais.

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A rejeição do evangelho social

Em segundo lugar, os evangélicos reagiram contra o chamado evangelho social, conceito desenvolvido pelos liberais teológicos da época, o qual tinha por objetivo produzir uma sociedade cristã pela ação social e política. Teólogos como Walter Rauschenbusch, que era professor de história da Igreja no Rochester Seminary, em Nova York, entre 1897 e 1917, criticavam o capitalismo e defendiam um tipo simples de comunismo ou socialismo cristão.18 Primeiramente, ele errou ao identificar o reino de Deus com “uma reconstrução da sociedade, com base cristã”.19 Em segundo lugar, ele inferiu que os seres humanos podem estabelecer o reino divino por si mesmos, enquanto Jesus sempre falou do reino como um dom de Deus. O reino de Deus não é sociedade cristianizada. É o preceito divino na vida daqueles que reconhecem Cristo. Precisa ser recebido, acolhido ou herdado por uma fé humilde e penitente a Cristo. A nova sociedade de Deus é chamada para exibir os ideais de seus estatutos no mundo e assim apresentar ao mundo uma realidade social alternativa. Esse desafio social do evangelho do reino é bem diferente do evangelho social. É compreensível, apesar de lastimável, que, reagindo a ele, os evangélicos tenham se concentrado no evangelismo e na filantropia pessoal e se mantido afastados da ação sociopolítica. O impacto da guerra

A terceira razão da negligência evangélica à responsabilidade social foi a ampla desilusão e o pessimismo que se seguiram à Primeira Guerra Mundial, devido à exposição da maldade humana. Programas sociais anteriores haviam falhado. Seres humanos e sociedades pareciam ser irreformáveis. As tentativas de reformar eram inúteis. Na verdade, devido às doutrinas bíblicas do pecado original e da depravação humana, os evangélicos não deveriam ter sido tomados de surpresa. Porém, entre as guerras, não houve nenhum líder evangélico que articulasse a providência e a graça comum de Deus como fundamento para a esperança perseverante. O cristianismo reformado, histórico, estava em eclipse. A influência do pré-milenismo

Em quarto lugar, houve a difusão da visão pré-milenista, especialmente por meio do ensino de J. N. Darby, popularizado na Bíblia Scofield. Esse


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ensino retrata o presente mundo mau como se estivesse fora do alcance de melhorias ou redenção e prediz, em lugar disso, que ele se deteriorará constantemente até a volta de Jesus, que então estabelecerá seu reino milenar na terra. Se o mundo está ficando pior e se apenas Jesus, em sua vinda, o consertará, logo não existe razão para tentar reformá-lo neste ínterim. “Adotar programas políticos é como limpar os camarotes do Titanic depois de ele ter-se chocado com o iceberg [...] É muito mais importante simplesmente pregar o evangelho e resgatar almas para a vida além”.20 O surgimento das classes médias

A quinta razão da alienação evangélica do interesse social provavelmente foi a difusão do cristianismo entre pessoas da classe média, que tendiam a enfraquecê-lo ao adaptá-lo à sua própria cultura. Precisamos admitir que muitos de nós que dão grande valor à salvação são profundamente conservadores culturalmente e preferem preservar o status quo a envolverem-se na desordenada atividade da atuação social e política. Essa é uma das razões pelas quais muitos estereotipam os cristãos como sendo tão preocupados com sua própria salvação que não se importam com a situação do pobre e do fraco. Certamente, se formos fiéis ao evangelho cristão, devemos agir contra a injustiça onde quer que a encontremos. Apesar de eu ter conseguido mencionar anteriormente alguns exemplos excelentes de atuação social nos séculos 18 e 19, com certeza houve outras situações em que a igreja cedeu à opressão e à exploração e não tomou medida alguma contra esses males, nem mesmo protestou contra eles. A grande inversão é explicada por essas cinco razões. Não culpamos nossos antepassados evangélicos; se estivéssemos em seu lugar, provavelmente teríamos reagido às pressões da mesma maneira. Nem todos os evangélicos corromperam sua consciência social no início do século 20 e no período entre guerras. Alguns continuaram lutando, profundamente envolvidos tanto na sociedade como nos ministérios evangélicos, preservando assim esse trabalho indispensável ao evangelho, sem o qual o cristianismo perde parte de sua autenticidade. Mas a maioria abandonou essa prática. Depois, durante a década de 60, a década do protesto, quando os jovens se rebelaram contra o materialismo, a superficialidade e a hipocrisia do mundo adulto que haviam herdado, a corrente evangélica recuperou o ânimo e as coisas começaram a mudar.

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