Fundamentos da Educação: A Perspectiva Antropológica

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FUNDAMENTOS DA EDUCAÇÃO: A PERSPECTIVA ANTROPOLÓGICA Mário José Dias


Prof. Paulo Arns da Cunha Prof. José Pio Martins Prof. Carlos Longo Prof. Renato Dutra Profa. Manoela Pierina Tagliaferro Prof. Mário José Dias Aline Scaliante Coelho Renata Waleska Pimenta Aline Scaliante Coelho e Regiane Rosa Layout de Capa Valdir de Oliveira

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Biografia Conceito Contexto

Esclarecimento

Exemplo



Sumário Apresentação...................................................................................................................13 O autor..............................................................................................................................14 Capítulo 1 O fenômeno educativo em seus fundamentos antropológicos.......................................15 1.1 Introdução ao estudo dos conceitos de Antropologia e Educação.............................15 1.1.1 A natureza dos conceitos........................................................................................................................................ 16 1.1.2 Construindo uma matriz referencial....................................................................................................................... 16 1.1.3 O conceito de antropologia......................................................................................................................................18 1.1.4 O conceito de educação...........................................................................................................................................18

1.2 A questão da antropologia.........................................................................................19 1.2.1 História da antropologia..........................................................................................................................................19 1.2.2 O homem e sua natureza....................................................................................................................................... 21 1.2.3 As interfaces da antropologia................................................................................................................................ 22 1.2.4 O homem: um ser relacional...................................................................................................................................24

1.3 A questão da educação..............................................................................................25 1.3.1 Educar o homem.................................................................................................................................................... 25

1.4 Antropologia e educação............................................................................................27 1.4.1 O lugar da antropologia no contexto educacional................................................................................................. 27 1.4.2 O lugar da educação no contexto antropológico................................................................................................... 28 1.4.3 A ação educativa como condição humana............................................................................................................ 29 1.4.4 Identidade e diferença............................................................................................................................................ 29

Referências.......................................................................................................................31


Capítulo 2 Cultura, educação e escola em perspectiva antropológica..............................................33 2.1 O processo civilizatório...............................................................................................33 2.1.1 A sociedade da barbárie.......................................................................................................................................... 33 2.1.2 As primeiras civilizações......................................................................................................................................... 35 2.1.3 Comunicação e sociedade...................................................................................................................................... 36 2.1.4 Educando a sociedade............................................................................................................................................ 37

2.2 Descobrindo a cultura................................................................................................38 2.2.1 O conceito de cultura.............................................................................................................................................. 38 2.2.2 Cultura e culturas................................................................................................................................................... 39 2.2.3 Alteridade cultural.................................................................................................................................................. 40 2.2.4 O outro e o mesmo.................................................................................................................................................41

2.3 Os desafios de uma educação para cultura...............................................................43 2.3.1 O processo de educação em busca da valorização da cultura............................................................................... 43 2.3.2 A sociedade e o complexo cultural........................................................................................................................ 45 2.3.3 Educação e cultura................................................................................................................................................. 46 2.3.4 Pensando a sociedade............................................................................................................................................ 47

2.4 As tendências sociais e a natureza humana...............................................................48 2.4.1 O olhar da antropologia.......................................................................................................................................... 48 2.4.2 Educar o humano para conviver com os outros..................................................................................................... 49 2.4.3 Vivendo a realidade................................................................................................................................................ 50 2.4.4 Para além da barbárie............................................................................................................................................ 52

Referências ......................................................................................................................54


Capítulo 3 O ser humano e sua relação com a sociedade.................................................................57 3.1 Conhecendo a sociedade............................................................................................57 3.1.1 A sociedade e os indivíduos.................................................................................................................................... 57 3.1.2 As estruturas sociais.............................................................................................................................................. 58 3.1.3 A complexa relação social...................................................................................................................................... 59 3.1.4 Os fenômenos sociais.............................................................................................................................................. 60

3.2 A sociedade dos símbolos e do consumo..................................................................61 3.2.1 Os paradoxos sociais................................................................................................................................................61 3.2.2 A sociedade do efêmero........................................................................................................................................ 62 3.2.3 O significado dos símbolos.................................................................................................................................... 63 3.2.4 Por uma educação de valores................................................................................................................................ 64

3.3 A importância do sagrado na configuração social.....................................................65 3.3.1 O sentido do sagrado.............................................................................................................................................. 65 3.3.2 Para além dos mitos e ritos.................................................................................................................................... 66 3.3.3 Educar para viver em sociedade............................................................................................................................. 67 3.3.4 Dos símbolos aos ritos............................................................................................................................................ 67

3.4 A contribuição da antropologia na construção da sociedade....................................67 3.4.1 A evolução da humanidade.................................................................................................................................... 68 3.4.2 O homem e a sociedade......................................................................................................................................... 69 3.4.3 As relações interpessoais........................................................................................................................................ 69 3.4.4 Por uma educação da humanidade........................................................................................................................ 70

Referências.......................................................................................................................71


Capítulo 4 A sociedade e a cultura: desafios e perspectivas educativas ..........................................73 4.1 A antropologia em sua dimensão cultural.................................................................73 4.1.1 Antropologia e cultura ............................................................................................................................................74 4.1.2 O ser humano e a cultura ....................................................................................................................................... 75 4.1.3 Educar e socializar o ser humano .......................................................................................................................... 75 4.1.4 O espaço da diversidade..........................................................................................................................................76

4.2 O processo cultural e a socialização da humanidade ................................................77 4.2.1 Humanização da sociedade ................................................................................................................................... 77 4.2.2 Os desafios da sociedade de hoje ......................................................................................................................... 78 4.2.3 Estar na companhia dos outros ............................................................................................................................. 78 4.2.4 Identidade cultural................................................................................................................................................. 79

4.3 Os temas que envolvem a cultura e a educação da humanidade..............................80 4.3.1 Ética e cultura ........................................................................................................................................................ 80 4.3.2 A tendência ao relativismo cultural ....................................................................................................................... 81 4.3.3 O etnocentrismo na sociedade............................................................................................................................... 82 4.3.4 O fenômeno da cultura moderna........................................................................................................................... 84

4.4 A escola como um ambiente cultural e de preservação do legado da humanidade.85 4.4.1 Os processos de educação cultural ........................................................................................................................ 85 4.4.2 A estética da sala de aula ...................................................................................................................................... 86 4.4.3 O ambiente educativo e formativo ........................................................................................................................ 87 4.4.4 Os desafios de uma sala de aula............................................................................................................................ 87

Referências ......................................................................................................................89


Capítulo 5 Os espaços do saber pedagógico em sua dimensão antropológica.................................91 5.1 Etnografia como forma de conhecer e contribuir com o fazer docente.....................91 5.1.1 Conhecendo o método etnográfico........................................................................................................................ 92 5.1.2 Conhecendo a realidade da escola.......................................................................................................................... 92 5.1.3 Cultura imaterial..................................................................................................................................................... 93 5.1.4 Tradição e cultura................................................................................................................................................... 94

5.2 Textos e contextos presentes no ambiente educativo...............................................94 5.2.1 Dar voz aos alunos.................................................................................................................................................. 94 5.2.2 Alguns desafios: pensar a condição antropológica na perspectiva do aluno........................................................ 95 5.2.3 Imersão na realidade.............................................................................................................................................. 95 5.2.4 Desafios e possibilidades........................................................................................................................................ 96

5.3 As dimensões do fazer docente.................................................................................97 5.3. Contribuição da antropologia................................................................................................................................... 98 5.3.2 Conhecendo a realidade social............................................................................................................................... 98 5.3.3 O entorno social do aluno...................................................................................................................................... 98 5.3.4 Fazer-se presente na vida do aluno........................................................................................................................ 99

5.4 Da etnografia a etnologia: ressignificando a prática docente....................................99 5.4.1 Por uma nova etnologia do saber........................................................................................................................ 100 5.4.2 O encontro com o outro........................................................................................................................................101 5.4.3 O lugar e o significado do diálogo ........................................................................................................................101 5.4.4 O ambiente da acolhida educativa.......................................................................................................................102

Referências ....................................................................................................................103


Capítulo 6 Antropologia e educação no contexto brasileiro...........................................................105 6.1 As teorias culturais que marcaram a história...........................................................105 6.1.1 A percepção evolucionista.................................................................................................................................... 106 6.1.2 Os desdobramentos das teorias........................................................................................................................... 107 6.1.3 A força do estruturalismo..................................................................................................................................... 109 6.1.4 A indústria cultural................................................................................................................................................110

6.2 As contribuições e a análise antropológica dos impactos das teorias culturais no campo social.............................................................................110 6.2.1 O papel mediador da antropologia.......................................................................................................................111 6.2.2 As possíveis mediações culturais..........................................................................................................................111 6.2.3 Das teorias à sala de aula......................................................................................................................................112 6.2.4 Construindo novos paradigmas............................................................................................................................112

6.3 O comportamento humano e as estruturas antropológicas ...................................113 6.3.1 Do conceito ao preconceito ..................................................................................................................................114 6.3.2 Localizando a antropologia em seu universo cultural..........................................................................................114 6.3.3 Das teorias culturais à perspectiva antropológica ...............................................................................................115 6.3.4 Educação e antropologia: diálogos necessários ...................................................................................................115

6.4 Sintomas do mundo contemporâneo e a realidade brasileira..................................115 6.4.1 O paradoxo social: o Brasil e o mundo desenvolvimentista..................................................................................115 6.4.2 “O homem cordial”: uma releitura crítica do Brasil...............................................................................................116 6.4.3 A percepção social da realidade............................................................................................................................117 6.4.4 Aprendendo com a realidade e a alteridade.........................................................................................................117

Referências .................................................................................................................... 119


Capítulo 7 Temas contemporâneos da educação em perspectiva antropológica...........................121 7.1 A presença indígena na cultura brasileira.................................................................121 7.1.1 A identidade cultural indígena...............................................................................................................................121 7.1.2 A resistência indígena........................................................................................................................................... 123 7.1.3 Projetos de educação indígena............................................................................................................................. 123 7.1.4 Aprender com os índios.........................................................................................................................................124

7.2 A presença do afrodescendente na cultura brasileira...............................................125 7.2.1 A identidade cultural afro..................................................................................................................................... 125 7.2.2 A resistência dos escravos.....................................................................................................................................126 7.2.3 A luta pela liberdade e a necessidade das cotas...................................................................................................126 7.2.4 Por um projeto de educação afro: a riqueza cultural do encontro........................................................................127

7.3 O multiculturalismo em debate................................................................................127 7.3.1 O espaço da sala de aula como encontro das diferenças.......................................................................................128 7.3.2 O que nos faz pensar que somos diferentes?........................................................................................................128 7.3.3 As resistências a uma política de inclusão social................................................................................................. 129 7.3.4 Multiculturalismo e interculturalidade: aproximações e distanciamentos........................................................... 129

7.4 Projeto de educação dos valores em defesa de uma cultura plural.........................130 7.4.1 Por uma educação plural...................................................................................................................................... 130 7.4.2 O outro como um valor..........................................................................................................................................131 7.4.3 Desafios de uma sala de aula................................................................................................................................131 7.4.4 Globalização cultural?............................................................................................................................................131

Referências ....................................................................................................................133


Capítulo 8 Debates e temas contemporâneos de uma antropologia educacional..........................135 8.1 O mundo em rede e suas implicações na vida em sociedade..................................136 8.1.1 O privado se tornou público................................................................................................................................. 136 8.1.2 As redes sociais invadem a sala de aula................................................................................................................137 8.1.3 Educar em rede......................................................................................................................................................137 8.1.4 Somos uma teia.....................................................................................................................................................137

8.2 A condição humana em tempos de redes sociais....................................................137 8.2.1 Complexidade e desafios..................................................................................................................................... 138 8.2.2 O humano nas redes............................................................................................................................................ 138 8.2.3 O olhar invisível do outro lado.............................................................................................................................139 8.2.4 Os paradigmas da condição humana....................................................................................................................139

8.3 O espaço da sala de aula e o mundo digital.............................................................140 8.3.1 Ressignificando os espaços escolares................................................................................................................... 140 8.3.2 Sociedade e cultura digital....................................................................................................................................141 8.3.3 Os novos campos do saber...................................................................................................................................141 8.3.4 Liberdade para pensar...........................................................................................................................................141

8.4 Novos tempos e desafios contemporâneos.............................................................142 8.4.1 Informação e conhecimento..................................................................................................................................142 8.4.2 O percurso cultural das novas gerações................................................................................................................142 8.4.3 As novas “tribos”...................................................................................................................................................142 8.4.4 Educar a humanidade............................................................................................................................................143

Referências ....................................................................................................................144


Apresentação Este material é um convite à reflexão pessoal e coletiva sobre a importância e a contribuição de um legado construído ao longo de toda a tradição da humanidade e seus impactos na compreensão que o homem tem de si mesmo, do outro e do mundo. Nesse espaço de aprendizagem, esperamos que você descubra que a nossa singularidade é carregada de uma herança que não nos condena à solidão, ao contrário, nos convida a viver sempre na companhia dos outros, estejam eles onde estiverem com suas crenças, tradições, culturas e etnias. A antropologia, como veremos, faz parte do grupo das ciências que estudam o homem em todas essas dimensões. Juntos faremos esse percurso a partir da origem dos conceitos que atribuímos a humanidade, a sociedade, a natureza e o mundo. Descobriremos o que a antropologia é uma ciência interdisciplinar e o porquê seu elo fundamental está ligado à educação. Neste sentido há um caminho e um método próprio que tem sido percorrido pelos antropólogos para refazer os passos do homem primitivo até os dias de hoje. A proposta e o objetivo desta disciplina é que você descubra a importância deste processo civilizatório na construção do projeto de sociedade na qual estamos inseridos e, como futuros educadores, perseguir a formação integral do cidadão. Você terá a oportunidade de rever seus conceitos sobre o mundo, aprender com as outras culturas, descobrir o universo em todas as suas dimensões: temporais e espaciais. Poderá descobrir-se para ressignificar seu próprio mundo. Para isso é fundamental aprimorar nossa visão crítica, reflexiva e formativa na direção de uma sociedade plural capaz de conviver e aprender com as diferenças individuais. Por isso, sinta-se parceiro na construção de um saber que busque sempre o respeito às diferenças para encontrar nelas a riqueza de seu próprio e único ser no mundo.


O autor O professor Mário José Dias é Doutor em Memória Social pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro e mestre em História Social pela Universidade Severino Sombra. Especialista em Gestão de Ensino à Distância pela Universidade Federal de Juiz de Fora e Graduado em Filosofia, História e Pedagogia. É professor universitário e também professor pesquisador da Prefeitura Municipal de Resende/RJ. Por 20 anos exerceu a função de diretor de instituição de ensino no município de Resende. Currículo Lattes: <lattes.cnpq.br/7868916450213196>

Escrevo às pessoas a quem aprendi a amar, por fazerem parte do legado de minha história: minha mãe, família, uns poucos amigos e, principalmente à Vera e o Airton Dias, companheira e filho que partilham comigo a afirmação da vida. À Jerolina, minha primeira professora, como deixar de lembrar!


1 O fenômeno educativo em seus fundamentos antropológicos A educação é um processo de busca e apreensão do saber que deve impactar a vida em sociedade. O homem, enquanto ser social, necessita buscar o sentido e significado de seu existir, dessa forma, se torna importante o estudo do legado da tradição enquanto matriz referencial de uma cultura que aproxima os povos, nações e os indivíduos entre si.

O nosso ponto de partida deste estudo se baseia na concepção de que todos nós, enquanto pessoas, precisamos viver na companhia dos outros. Essa condição de sociabilidade é que dá sentido e significado ao que o filósofo Aristóteles definiu como “animal racional”. Viver em sociedade passa a ser parte integrante da racionalidade humana. Somente pelo uso dessa razão é que criamos normas, regras e padrões de comportamentos que nos ligam uns aos outros, tendo como pressuposto o “viver bem”. Tal garantia, própria do estar no mundo com e para os outros, precisa ser tratada do ponto de vista da ciência com objetividade e, ao mesmo tempo, com a medida certa de subjetividade. O campo da antropologia, enquanto um conceito que busca compreender o homem em sua relação com o mundo, encontra eco no campo educativo, que se preocupa, nesse âmbito, em informar e formar indivíduos cada vez mais aptos a descobrir-se a si mesmos e a transformar a sociedade que os circunda. A objetividade do campo da antropologia pressupõe, antes de tudo, que a ciência não se restrinja a analisar como o homem surgiu, mas que se aprofunde na multiplicidade de ações que dele decorre ao longo da história da humanidade. A subjetividade está centrada no estudo dos homens em sua relação com o mundo. É fundamental, nessa perspectiva, que se encontre o elo entre a objetividade e a subjetividade, daí o papel da Educação, enquanto uma ciência cujo objetivo é introduzir a criança, jovem e adulto ao mundo complexo e diverso das relações sociais. Nossa questão inicial parte desses pressupostos, por isso, precisamos começar pelo caminho originário que une a antropologia e a educação: o estudo sobre os conceitos, sua importância e representatividade para as relações com o eu, o outro e o mundo.

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1.1 Introdução ao estudo dos conceitos de Antropologia e Educação


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1.1.1 A natureza dos conceitos

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Já parou para pensar que tudo o que sabemos sobre nós mesmos, o outro e o mundo é mediado por conceitos? O nosso próprio nome já é um conceito, tal como a família, a sociedade, as coisas que nos circundam. Ele é parte integrante da linguagem e esta, por sua vez, representa o que somos e possibilita nosso entendimento do mundo. Quanto mais amplo um conceito, melhor e maior é a nossa compreensão do mundo. Muitos deles são considerados universais e dificilmente podem ser modificados, por exemplo, aqueles ligados à natureza, tais como dia, noite, sol, lua. Esta é a garantia da aproximação da linguagem com o mundo. Podemos afirmar que os conceitos são originários do contato humano com a natureza expressa pela linguagem que reúne, em si, a cultura, a tradição e a forma como interagimos com o mundo, quer por uma imagem esculpida na rocha ou um clássico da literatura. Compreender o mundo significa, portanto, a possibilidade de entender o sentido e o significado dos conceitos. A escrita, datada de aproximadamente 3.000 a.C., foi a primeira manifestação desses conceitos legados à humanidade. A Antropologia, como um campo do saber sobre o estudo da humanidade, necessita dessas informações conceituais para mapear o conhecimento do homem e as diversas formas como ele vive e atua em sociedade. Quanto mais o indivíduo se apropria de um conceito, maior é sua compreensão do mundo e, portanto, menores as dúvidas que tem sobre a origem do homem e sua relação consigo mesmo, com o outro e com o mundo. Este é um campo aberto para entender os fundamentos da educação em perspectiva antropológica.

1.1.2 Construindo uma matriz referencial Quando afirmamos que a linguagem é o elo que funda o conceito, podemos fazer as devidas apropriações para entender como, ao longo da história da humanidade, eles foram sendo construídos. A pergunta que nos move é: qual a importância de uma matriz referencial? Pode um conceito ser modificado? No passado, tínhamos como certo, por exemplo, que a Terra era um ponto fixo no universo e, com base nessa matriz, construímos os significados fundamentais da pessoa, da sociedade e do mundo. A partir da evolução da humanidade e, principalmente, nos séculos XV e XVI, o universo se abriu a este conceito: a América (encontrada pelos espanhóis em 1492) o Brasil (com a chegada dos portugueses em 1500) e os novos caminhos trilhados pelo mar deram ao homem uma nova perspectiva do mundo. O que era fixo se tornou móvel. O que era


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uma verdade incontestável precisou passar por um longo processo de aculturação. Era preciso reeducar a humanidade para novas descobertas que aconteciam no mundo e, a partir delas, buscar e construir uma nova matriz conceitual.

Primeiro: todos os conceitos que não derivam dos universais (dia, noite, nascer, morrer) podem ser modificados ao longo do tempo, principalmente por conta da evolução da ciência e, consequentemente, da humanidade: por exemplo, não se admitia nas forças armadas a presença feminina em seus quadros, por considerar que era uma função exclusivamente masculina, o que não ocorre nos dias de hoje. Segundo: vivemos em tempos de grandes transformações que nos colocam diretamente em contato com outros povos, culturas e civilizações. O mundo se transformou em um “clique” proporcionando uma proximidade de segundos entre as distâncias que nos separam fisicamente uns dos outros. É possível acreditar que estamos vivendo em um processo contínuo de mudanças e, por isso mesmo, precisamos reaprender a conviver com os outros. O mundo não é mais linear, como antes se pensava. Não temos garantias de que o amanhã será um reflexo do hoje e, portanto, novas verdades precisam aparecer, redesenhadas. Ao mudar a matriz, mudamos os conceitos. Nunca se falou tanto em diversidade cultural, tolerância e respeito às diferenças. Esta é a nova matriz referencial que se está construindo no mundo contemporâneo. A nossa hipótese é de que somente a partir da desconstrução da matriz referencial é possível construir um novo conceito de mundo, de pessoa, sociedade.

Anote as mudanças que estão ocorrendo a sua volta e desenhe uma projeção para o futuro. Compare com o que seus avós pensavam sobre o mundo. Certamente você constatará atos incríveis que fazem parte do processo natural que é próprio da maneira como os homens veem o mundo.

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Aculturação é o processo de assimilação que ocorre a partir do convívio entre duas ou mais culturas. Ela pode se dar de maneira natural, respeitando o tempo histórico, ou intencionalmente, utilizando-se de mecanismos ideológicos de força e domínio sobre o outro, como foi o caso dos colonizadores.


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A definição mais comum da antropologia parte de sua raiz etimológica grega: anthropos – homem em toda a sua inteireza – e logos – conhecimento. Se juntarmos as duas raízes, teremos uma matriz conceitual estruturada: antropologia é a ciência do conhecimento do homem em toda a sua extensão e compreensão, ou seja, desde sua primitiva existência até sua relação com os outros e o mundo. Podemos classificar a Antropologia no conjunto das ciências que têm o homem como centro e objeto de estudo. Por conseguinte, ela é interdisciplinar por natureza, pois precisa das outras ciências, não como auxiliares, mas como complementares ao estudo mais amplo do homem e da humanidade: História, Sociologia, Filosofia, Cultura, Biologia. Podemos afirmar, portanto, que toda ciência que tem o homem como seu objeto se torna interesse da Antropologia.

1.1.4 O conceito de educação Todo projeto de humanidade pressupõe um legado, uma herança, um tesouro que precisa constantemente ser revisitado, sob pena de se perder na escuridão da ignorância. Este é o papel fundamental da educação: permitir aos seres humanos se deixarem conhecer a si mesmos, ao outro e o mundo que os circunda. Se buscarmos a raiz dessa palavra, encontraremos o sentido pleno, quer seja, sair para fora, o que pode ser traduzido por conduzir o indivíduo de um lugar para outro. Educação é um processo dinâmico, sempre necessário e contínuo. Sempre temos algo para tirar de nós mesmos e colocar à disposição do mundo e, como uma via de mão dupla, reconhecemos que há sempre uma porta para abrir no passado que se faz presente e deste lançar-se para o futuro. No centro de toda essa atividade está o “animal homem”, que, como afirmou o filósofo Aristóteles, precisa encontrar sua racionalidade. A partir dessas ideias que apresentamos neste primeiro momento, podemos concluir que todo processo que envolve o ser humano parte de uma matriz referencial deixada por um legado da tradição. Os conceitos que formulamos, a visão que temos sobre o mundo e as coisas podem e devem ser, constantemente, revistas e analisadas. Não se entende a vida em sociedade sem pressupostos que possam aliar a história da humanidade, por isso vamos, no próximo tópico, entender melhor o caminho da antropologia.

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1.1.3 O conceito de antropologia


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1.2 A questão da antropologia Como já afirmado, a Antropologia é uma ciência que tem como seu objeto, sua matriz referencial, o homem em toda a sua inteireza. Isso significa que, para compreender o mundo, a civilização e o homem, necessariamente passamos pelo estudo antropológico. Não há como pensar o homem desassociado de seu passado, das relações com a evolução do mundo, da ciência, da sociedade e da cultura. Nosso objetivo é centrar nosso estudo nesse contexto de mundo e de civilização, entendendo que a antropologia não se preocupa em analisar uma sociedade específica, mas as sociedades em sua abrangência e complexidade. Ela é o fruto natural da necessidade e curiosidade do homem em se descobrir pertencente a um universo infinito, em que os outros homens, com sua cultura e conhecimento, contribuem para seu próprio estar no mundo.

1.2.1 História da antropologia Pode-se afirmar que o mundo, tal como o conhecemos, foi pensado e estudado durante décadas com os olhares atentos da filosofia. Ela é considerada, pela literatura, a “mãe de todas as outras ciências”. Pensar o mundo, o homem e suas relações sociais é o objeto de estudo e de admiração dos filósofos. Constata-se, portanto, que os homens da ciência eram, antes de tudo, filósofos, que estavam ao lado da sabedoria e eram seus amigos mais próximos. Pense, por exemplo, que antes de formular um cálculo matemático, um dado da física, Pitágoras, Descartes, Newton e outros estavam preocupados com as coisas do mundo, da natureza e tudo o que envolvia o homem. Esse pensamento acompanhou a civilização desde o encontro da cultura grega com o mundo romano, ultrapassando épocas até chegar aos primeiros indícios de que as verdades construídas pelo homem pela simples observação da natureza poderiam ser repensadas. A invasão dos chamados bárbaros ao império romano construído por Cesar foi o início desse longo processo iniciado no século V, que marcou a história denominada “Idade Média”. Nesse período, marcado pelo Teocentrismo – Deus como centro do Universo e o homem apenas seu servo fiel –, ocorreu aos poucos a aculturação desses “povos invasores” “ e, com isso, uma nova perspectiva de civilização se desponta.

Na visão de Duby (1998), historiador medievalista, o homem sempre teve em sua companhia o medo do outro, da fome, da miséria, da violência e do que ocorre no “além da vida”.

Aos poucos, esse mundo medieval foi conhecendo novas fronteiras, primeiro por conta das Cruzadas – movimento religioso para reconquista de Jerusalém –, depois


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com a abertura das universidades. Para que houvesse o conhecimento do “mundo novo”, foi preciso que antes o homem começasse a redescobrir o conhecimento, a pesquisa e a investigação. Papel fundamental para entender o mundo, passava pelas universidades, criadas em meados da Idade Média com o objetivo primordial de investir em pesquisas e preparar o homem para o novo momento que já se apresentava. O século XV se abre para as possibilidades de conquistas e de rupturas, de aventuras em busca das novidades que vinham do “além-mar”.

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A questão passa a ser: o que muda quando do encontro do homem com a “civilização além-mar” (América, África)? Novas perspectivas se abriram e, com isso, era preciso repensar a matriz referencial dos conceitos até então conhecidos. Nesse processo de redesenhar o mundo, a sociedade começa a ter outros olhares sobre a natureza e, consequentemente, sobre o homem. O movimento para entender a racionalidade e a potencialidade do homem ocupa o espaço da investigação da vida, da ciência e dos negócios. O auge do período monárquico tem sua centralidade não somente na figura de um rei, mas na abertura para o diferente: a cultura do outro, tão diverso e complexo. A fé cede espaço para o conflituoso e necessário debate com a ciência. A filosofia não estava mais sozinha no contexto desse novo cenário do mundo. É o tempo do humanismo, do rompimento com o pensamento único e da dificuldade em se lidar com as diferentes formas de ver o mundo. A razão ilumina as ações dos homens e as reações ao pensamento hegemônico cedem espaço às disputas políticas e religiosas que conduziriam aos movimentos revolucionários na Inglaterra, na França e na América. Os símbolos da realeza e da centralidade do poder cedem espaço aos ideais democráticos cravados na conhecida trilogia francesa: igualdade, liberdade e fraternidade. Esses ideais passam a fazer parte do homem moderno que faz renascer as velhas questões filosóficas: quem é o homem? De onde veio e para onde vai? Nesse contexto, pode-se afirmar que as respostas filosóficas se tornaram insuficientes e, por isso, era necessário que outras ciências assumissem igual responsabilidade pelas questões tão complexas que envolviam a vida do homem na sociedade. Se, para os antropólogos Hoebel e Frost (1989), caberia à antropologia o papel e a função de ser uma ciência da humanidade e da cultura, sua função passaria a ser a de entender desde o comportamento até as ações do homem em sua relação consigo mesmo, com o outro e com o mundo. Em uma visão perspectiva, é possível entender a dinâmica vinda da sociedade em toda sua ação cultural, biológica e filosófica.


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Como toda ação humana é um contínuo processo de evolução, era de se esperar que os ideais revolucionários que citamos marcassem o surgimento de outras ciências do homem no século XIX. A grande questão posta à antropologia foi assumir o compromisso de estudar o homem em suas diversidades étnicas, culturais e políticas. Não há como se propor a fazer um estudo antropológico com uma visão fechada à alteridade e à pluralidade própria da condição humana. A dificuldade histórica que marca esse campo do saber é constituí-la não como uma ciência narradora de fatos culturais ocorridos no passado, mas de propor uma alternativa sempre essencial de compreensão do homem e das necessárias e importantes relações interpessoais. Ao se reportar à época dos “homens da caverna”, não se deseja voltar ao passado para dele se constituir uma morada permanente. As marcas e os registros deixados por eles, quer na configuração de alguns traços nas paredes da caverna, nos instrumentais de uso para preservação da vida ou mesmo na suposta realidade de convivência entre esses homens primitivos, devem servir de parâmetro para os estudos do “comportamento“ social, biológico e cultural na compreensão do nosso tempo.

Um filme de animação que ilustra o que estamos afirmando é “Os croods” (2013), que narra a aventura de uma família isolada do mundo, vivendo apenas da rotina. A riqueza de detalhe remete aos padrões de comportamento e ao processo de leitura dos conceitos que se apresentam sempre que descobrimos algo novo.

1.2.2 O homem e sua natureza Seguindo por esse caminho de uma antropologia que se ocupe das “coisas” do homem e de sua relação com o mundo, é possível entender a dinâmica estabelecida no complexo mundo de suas relações. A concepção originária do homem como um ser em relação constitui sua natureza social, política, econômica, religiosa e cultural. Falar em natureza humana pressupõe admitir que a existência é um processo ininterrupto de formação e adaptação do homem para o viver em sociedade. Isso significa afirmar que estamos em um processo contínuo de aprendizagem social. Ao longo do percurso e da evolução histórica da humanidade, as relações sociais, culturais e políticas foram sendo modificadas, ou melhor, adaptadas às novas realidades do mundo, porém, a natureza do homem permaneceu centrada em sua concepção de ser social e, por isso mesmo, racional. A racionalidade é a justificativa mais adequada para concebê-lo como social. Pode-se afirmar, nesse contexto, que ela é a capacidade própria do homem para se fazer relação entre os outros e deriva-se da necessidade do homem de estabelecer parâmetros de convivência e, por conta disso, determinar as formas, as regras e as matrizes


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Isso significa afirmar que a linguagem é parte integrante dessa natureza do homem. Não é possível estabelecer relações senão pelo uso da linguagem, mesmo entendida em seu contexto mais amplo, como manifestação de uma cultura simbólica que reúne os homens a fim de viverem e construírem um projeto constante e renovado da sociedade na qual estão inseridos. Essa capacidade humana de estar na companhia dos outros é fato marcante e característico de sua natureza. Ao tratar dessa questão, o antropólogo Boas (2010), afirma que há uma história singular própria de um grupo social e que é preciso compreendê-la em seu contexto cultural, linguístico, sem a pretensão de universalidade conceitual, mas como constitutivo da natureza do homem que é capaz de se adaptar ao ambiente em que está inserido.

1.2.3 As interfaces da antropologia Seguindo a lógica aqui estabelecida de que a antropologia enquanto ciência não pode pensar o homem, enquanto matéria-prima de seu estudo, desassociado de seu contexto histórico, social, político, econômico, cultural e religioso, pode-se deduzir que ela necessita do suporte teórico e prático dos diversos campos do saber. É possível afirmar que a antropologia é uma ciência interdisciplinar e transdisciplinar, pois não se esgota em si mesma, necessita ir além do formalismo cientificista enquadrado em único referencial e suporte teórico. A antropologia é adjetivada de outros estudos sobre o homem, porém, tem uma especificidade que garante a ela uma ação interpretativa peculiar sobre os fatos sociais que marcam a trajetória do homem. Por isso, seguindo a divisão proposta por Marconi e Presotto (2014), a Antropologia pode ser analisada em suas interfaces com a Física ou Biologia e na perspectiva cultural. No quadro a seguir, podemos observar seus desdobramentos específicos: Podemos ainda acrescentar a esses dois campos próprios do estudo da Antropologia a necessidade de se reportar às outras ciências sociais e humanas no sentido de ampliar sua compreensão do homem, como, por exemplo, Sociologia, Psicologia, História, Economia, Ciências Políticas, Geografia. A dimensão da interdisciplinaridade se faz presente quando se utilizam as técnicas científicas próprias desses campos específicos do saber:

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de comportamentos sociais adequados ao estilo de cultura próprio do ambiente, região, estado, país no qual está inserido. Como constitutivo dessa natureza, há de se ressaltar a importância dos símbolos e ritos manifestados pelo uso da linguagem como instrumento mediador entre a racionalidade e a sociabilidade.


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Método histórico Quando se recorre ao tempo histórico que marcou um determinado evento do passado a fim de ampliar os conhecimentos sobre o presente;

Método estatístico Como instrumento de medida quantitativa e qualitativa que possa colaborar para analisar um determinado fenômeno e seus impactos sociais na vida do homem;

Método etnográfico A sociedade necessita de coleta de dados e registros sobre os diversos estilos de vida e de cultura específicos de grupos originários e primitivos como forma de preservação e de garantia de sobrevivência da memória e do resgate dessas civilizações ágrafas ou rurais;

Método comparativo ou enológico A partir do levantamento de dados, amplia-se o estudo da evolução do homem para, em posse dessas informações, fazer as devidas apropriações, distinções e comparações pertinentes à natureza, civilização e cultura na qual a humanidade está fixada;

Método monográfico ou estudo de caso Cada vez mais se torna importante analisar os registros e os sinais da presença do homem na vida em sociedade. As marcas do passado de um determinado agrupamento social se tornam imprescindíveis para a compreensão e o resgate da memória de um povo e de toda sua riqueza cultural, política e econômica. Sem o estudo atento do etnógrafo, é possível que a herança do passado de uma determinada civilização se perca;

Método genealógico Um dos campos mais tradicionais do saber está centrado na análise das raízes culturais oriundas do mapeamento familiar com finalidade específica de reunir informações históricas que possam contribuir para entender melhor o legado das primeiras gerações. É mais do que uma simples constatação, pois envolve aspectos profundos de análise cultural, econômica, política e social ocorridos durante um longo período histórico;

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Método funcionalista Tem em sua especificidade a peculiaridade de levantar informações referentes aos impactos que uma determinada cultura exerce na relação e na formação de uma identidade societária. Em posse dessas informações, é possível aferir e qualificar melhor os movimentos e os processos civilizatórios ao longo da trajetória humana.

Por meio dessa variedade de abordagens podemos verificar as várias interfaces da antropologia. Passaremos agora às especificidades do objeto de estudo dessa ciência.

1.2.4 O homem: um ser relacional No intuito de reforçar o que foi abordado anteriormente, destaca-se a necessidade de ampliar a discussão sobre a natureza do homem enquanto um ser relacional. Não se pode entender o homem senão enquanto ser que se faz e se constitui na relação consigo mesmo, com o outro e o mundo. Lançar-se à aventura do desconhecido é admitir que sua presença é fonte primordial para ressignificar a ação do mundo. Conhecer suas origens, mapear suas ações e reações ao longo da trajetória civilizatória da humanidade é parte constitutiva do saber antropológico que analisa cada fato, acontecimento e perspectivas sociais que possibilitem conhecer melhor a intervenção humana no processo de construção da vida em sociedade. Não é mera coincidência que, no século XIX, a antropologia se torna, entre outras ciências, o foco de atenção das sociedades industriais. A estruturação social baseada no mapeamento econômico, simbolizada pela organização do capital, gerou manifestos e protestos tanto do ponto de vista teórico-filosófico, tendo Marx como seu principal interlocutor, como do ponto de vista prático, analisado por August Comte, mais tarde Durkheim e Weber. O ponto comum entre estes e outros autores era compreender como a vida em sociedade se configuraria no “futuro.“ A certeza era (e continua sendo) de que o homem precisaria se reinventar para viver em sociedade. Se, por um lado, o capitalismo afirmava e prometia vida longa e próspera àqueles que se adaptassem à dinâmica do capital, por outro lado, o socialismo denunciava a exploração do trabalhador e, consequentemente, o abismo social entre aqueles que detinham a força e o poder do capital e os outros que deles dependiam para sobreviver. Era uma questão de perspectiva e de análise sobre a sociedade na qual os homens fazem e constituem sua morada.


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Vivemos um período de mudanças de paradigmas e modelos, levando-se em conta a sociedade da informação e a velocidade com que o mundo digital nos aproxima uns dos outros (CASTELLS, 2013).

1.3 A questão da educação Sempre que nos reportamos à questão da educação, somos impelidos a acreditar que ela é um processo ininterrupto de formação e transformação da sociedade. O princípio básico desse processo é pensar que a sociedade só se compreende na e com a presença dos homens e, por isso mesmo, precisa ser ressignificada, papel este complexo no qual a educação tem uma função fundamental de reafirmar compromissos e descobrir as potencialidades humanas presentes em toda e qualquer relação.

1.3.1 Educar o homem Admitindo que o homem é um ser em relação consigo mesmo, com os outros e com o mundo, é possível reforçar o conceito e o papel da educação na formação e na condução do destino da “sociedade.“ A função clássica da educação está ligada à necessidade de transmitir o legado cultural herdado da tradição histórica. Isso significa que ela pode ser considerada como responsável pela formação comportamental do indivíduo/cidadão. Tudo isso parece ser validado pelos discursos explícitos e implícitos de qualquer política institucionalizada: formar bons e honestos cidadãos. No entender de Delors (2003), a educação contemporânea deve se concentrar em fortalecer quatro pilares fundamentais: o saber, o saber fazer, o saber ser e o saber conviver. Estabelece-se, com isso, não apenas um compromisso, mas um movimento dialético entre educação, sociedade e processo civilizatório. O papel fundamental passa a ser compreender como é possível educar o homem senão nos dispusermos a entendê-lo a partir do passado, de seu legado cultural, sua formação étnica e os valores herdados e ressignificados ao longo de sua evolução. O desafio que se tem pela frente passa a ser construir redes de relações que se interconectam com o mundo, a vida em sociedade e seus mecanismos de poder e cultura. Ao partir do pressuposto comum de que a “educação“ é parte integrante do processo de amadurecimento da sociedade e ao aceitar como finalidade da educação a formação integral da pessoa, admite-se, igualmente, que ele, o homem, é fruto de um tempo histórico presente em um complexo contexto social. Sendo assim, está sujeito


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a várias matrizes culturais, nas quais é chamado a responder às expectativas e demandas sociais próprias dessa realidade em que está inserido. Os compromissos fundamentais da educação passam a ser aqueles nos quais o foco principal está centrado nos consagrados princípios de Delors (2003): aprender a ser, aprender a conviver, aprender a aprender e aprender fazer. Isso significa afirmar o quanto é importante assumir como princípio fundante a formação integral do indivíduo e sua autêntica atuação na vida em sociedade. Todo e qualquer pressuposto de compromisso com a educação que tenha como ponto de partida e chegada o pressuposto teórico/prático, enquanto forma de contemplação e reflexão sobre a ação, corre um sério risco de ficar apenas no campo do ideal e se afastar da realidade vivida na sociedade.

A Unesco, preocupada com os desafios do mundo contemporâneo, organizou, no final da década de 1990, um texto contendo questões fundamentais para orientar a educação no século XXI (DELORS, 2003).

Sempre que se toma como referência a educação e sua relação com a sociedade, o senso comum é unânime em afirmar que é necessário e importante que esse diálogo aconteça e se estabeleça de maneira profícua e atuante. Nesse sentido, há uma complexidade inerente a todo e qualquer projeto educativo. Por isso, a ação educativa tem uma intencionalidade e, quando falamos na perspectiva de uma formação integral, defendemos o princípio de que ela cumpre seu papel quando possibilita ao indivíduo pensar e agir livremente em sintonia com a leitura de um mundo do qual ele participa como agente proativo, portanto, apto a refletir e agir sobre e com o mundo. Esta é uma ação complexa, pois envolve uma dimensão que vai além das instituições estabelecidas pela e na sociedade. Isso significa afirmar que não é uma tarefa fácil, pois necessita repensar os valores que, ao longo da história, se constituíram marcas de um legado da tradição. A educação enquanto um processo amplo de inserção do homem no mundo da vida, entre seus muitos objetivos, tem por princípio desenvolver nele suas capacidades de sociabilidade, ou seja, agir e interagir entre os outros. A sociabilidade e a racionalidade, presentes nessa perspectiva, permitem que as potencialidades humanas sejam colocadas a serviço dos outros. Um dos aspectos importantes, do ponto de vista antropológico, é entender o homem em toda sua complexidade, diferenças e singularidades. Para atingir tais pretensões, é necessário percorrer a história da civilização e encontrar as diversas culturas que, de forma direta ou indireta, colaboraram para a formação de nossa identidade.


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Para Marconi e Presotto (2014), é fundamental compreender que essas culturas, por mais simples ou complexas que sejam, contribuem para o despertar das potencialidades do homem: criatividade, convivência com as diferenças, tolerância etc. Isso permite ao homem, enquanto indivíduo, viver a vida em toda sua inteireza criativa. Não há limites para a potencialidade humana, basta que ele se abra para o mundo. Nesse contexto, ele se depara com crenças, mitos, culturas diversas e plurais, ideologias e modos de pensar a vida, tradições e costumes, legados familiares, violência, solidariedade, desigualdade e justiça. Todos esses elementos e situações estão presentes na vida do homem e, por isso mesmo, influenciam no despertar de suas características individuais e na descoberta constante de suas potencialidades. Para Roberto da Matta (1987) essas potencialidades se evidenciam a cada encontro com as demais culturas, em que podemos nos deparar com as diferenças que, somadas às nossas, permitem ao homem se “reinventar”. Com isso, podemos concordar com Nobert Elias (1994) e outros estudiosos: o homem tende a encontrar novos sentidos e significados para sua vida em sociedade. As potencialidades humanas são inúmeras e sua capacidade de se adaptar a novas realidades parte de sua intensa e complexa descoberta de si, do outro e do mundo.

O nosso desafio agora é tornar explícita a indissociabilidade entre Antropologia e Educação. A leitura do mundo e das pessoas se insere nesse processo de descoberta do homem e de seu real papel na vida em sociedade. Essa ação educativa revela a identidade e a diferença própria de cada um e a riqueza da pluralidade da vida em sociedade.

1.4.1 O lugar da antropologia no contexto educacional Ao estabelecer as especificidades desses campos do saber e suas possíveis interfaces, é possível concluir que há uma interdependência necessária e fundamental entre a antropologia e a educação. Para Adorno (1999), a educação cumpre seu papel quando emancipa o homem e o torna autônomo. Encontrar um lugar para a educação com esse propósito é possível se igualmente entendermos que todo processo da evolução humana precisa encontrar seu espaço no contexto educacional. Algumas das questões fundamentais a serem respondidas nessa perspectiva são:

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1.4 Antropologia e educação


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• Qual o espaço, no atual contexto educacional brasileiro, dedicado ao conhecimento e aprofundamento das diversas visões de mundo presentes nas culturas indígenas e afro-brasileiras? • Quais os conceitos fundantes da humanidade a partir da evolução do homem no percurso de sua história? Poderíamos ainda elencar outros questionamentos que revelariam a importância e o momento em que a antropologia se torna uma das ciências que ajudariam a melhor compreender o homem em todo seu processo evolutivo. O contexto educacional, normalmente, trata dessas questões de forma “periférica”, sem a necessária compreensão das leituras presentes no mundo ao longo do processo de humanização da sociedade. Para o antropólogo e educador Darcy Ribeiro (2015), é necessário que a educação, em sua concepção mais ampla, conduza o processo de resgate da memória dos povos para que o legado da tradição não seja perdido em nome do progresso e do cientificismo prático que tenta homogeneizar a ação humana aniquilando a riqueza cultural presente em cada geração distinta de povos.

1.4.2 O lugar da educação no contexto antropológico

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A educação, como já foi abordada, tem em sua raiz a necessidade de “conduzir” e, ao mesmo tempo, de “seduzir” o homem a viver em sociedade. Não se trata apenas de uma tarefa de transmissão de conteúdos que precisam ser “decorados” ou “decodificados” pelo homem, mas de uma profunda reflexão sobre “quem ele é” e para qual futuro desejamos que ele projete a sociedade. Viver a pluralidade da riqueza das diferenças exige um esforço de encontrar no contexto antropológico a inserção do homem na vida em sociedade, desde seu estilo de vida primitiva até o momento tecnológico dos dias de hoje. Torna-se, portanto, necessário para o convívio social, perceber, em cada manifestação de um povo, o que agregamos e o que segregamos em nosso mundo contemporâneo. Como ciência relativamente nova destinada, no século XIX, a compreender os processos de aculturação do homem à vida industrial, a Antropologia declara sua preocupação com as estruturas de pensamento, cultura, linguagem, mito e tradições com que as diversas manifestações do legado da tradição conduziram e formaram o modo de viver em sociedade. Para Elias (1994, p. 56), essa tarefa exige, antes de tudo, compreender que as relações entre os homens se dá de maneira natural e que, portanto, a história necessita


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ser constantemente revisitada, pois o “[...] indivíduo só pode ser entendido em termos de sua vida em comum com os outros. A estrutura e a configuração do controle comportamental de um indivíduo dependem da estrutura das relações entre os indivíduos”.

1.4.3 A ação educativa como condição humana Todo processo educativo pressupõe uma ação do homem na sociedade. A reflexão teórica e fundamentada no argumento da intencionalidade educativa está bem próxima do que nós denominamos “civilização da cultura” e do projeto exercido pela educação em sua ação sobre o mundo. A barbárie e a cultura permitem que esse processo de aculturação possa ser constantemente revisitado como forma de compreender como esse homem age em sociedade. Arendt (2005), cientista política e filosófica do século XX, utiliza-se da expressão “condição humana” para aprofundar a ação do homem “em concerto com o mundo”, ou seja, há uma pluralidade sempre emergente que alimenta a esperança do diálogo entre as diferenças presentes na singularidade humana. Este parece ser o papel fundamental para a efetivação da ação do homem no mundo. Para agir, é preciso entender o legado do homem no mundo, desde as pinturas nas cavernas, sua condição de sobrevivência, da demarcação de seu território, de sua submissão e busca da liberdade. A trilogia sempre presente nas sociedades – barbárie, civilização e cultura – exige uma valorização cada vez mais forte no mundo. A ação educativa deve se centrar nessa perspectiva de tornar o cidadão cada vez mais próximo da realidade e desejar transformá-la. Nesse processo ininterrupto de releitura do mundo, há sempre de se ter presente a condição humana que é dotada de vontade, instinto e razão. A sociabilidade humana e sua vocação à alteridade é o princípio fundante para um projeto que seja capaz de pensar o outro como um complemento do “meu ser pessoa”. Não há projetos exitosos se não estivermos aptos a buscar a nossa identidade e encontrar no outro a diferença que me completa.

1.4.4 Identidade e diferença Iniciamos este capítulo apresentando a natureza conceitual que norteia os caminhos de qualquer ação na qual o homem está envolvido. Suas concepções sobre o mundo, a vida, a natureza e os outros passam pelo crivo de uma matriz referencial que determina sua postura frente a qualquer desafio e projeto social. Concluímos que qualquer conceito, para ser mudado, modificado ou adaptado, precisa, antes de tudo, de uma outra matriz referencial. No entender de um filósofo da ciência, Thomas Khun (2006), um paradigma só pode ser alterado com o aparecimento de um outro que responda às necessidades de um contexto cultural diverso. A Antropologia, como uma


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ciência que estuda o homem, precisa, por isso mesmo, dialogar com o mundo que cada vez se apresenta de forma diversa e complexa. Desse modo, o caminho mais propício para se encontrar o elo entre o homem e o mundo é apostando nas ciências da educação, cujo compromisso passa a ser tornar possível e claro o legado da tradição e preparar os indivíduos para viverem plenamente a vida em sociedade. Para isso, torna-se imprescindível compreender a natureza e as potencialidades desse indivíduo: sua identidade e diferença.

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A identidade, de acordo com o senso comum, pode ser resumida como “aquele que é diferente do outro”. Somos únicos, diferentes e singulares. Cada época se mostra e confirma essa constatação da diferença que surge a cada conceito novo de mundo. O processo evolutivo da sociedade é revelador dessa mudança não apenas de comportamento social, mas na forma de pensar, agir e interagir com o mundo. Norbert Elias, em sua obra A Sociedade dos Indivíduos (1994), chega à constatação de que podemos atribuir a um fenômeno individual as ações isoladas que reforçam a ideia de que o ser humano é autônomo, correndo o risco de cair nas “armadilhas” comuns do individualismo que anula as diferenças e tenta, sob o pretexto de aculturação, anular as diferenças pessoais, grupais, tribais, simbólicas. É a primazia de uma “identidade-eu” sobre as outras identidades. Por outro lado, quando ultrapassamos as barreiras dessa “identidade-eu” para uma “identidade-nós”, aprendemos a conviver com as diferenças e, portanto, com a pluralidade, símbolo do respeito à dignidade do outro e do legado da cultura de cada povo, grupo, etnia etc. Identidade e diferença não são opostas, mas complementares. Ao pensar o fenômeno educativo em seus pressupostos antropológicos, verificamos que o ponto de partida é sempre pensar a partir de uma matriz referencial, principalmente por ser ela a responsável pela construção e elaboração de nossos conceitos. O mundo, cada vez mais dinâmico e globalizado, exige de cada ser humano o esforço pessoal para compreender como podemos agir em sintonia conosco, com o outro e com a sociedade. Consequentemente, foi necessário resgatar os princípios fundantes da educação e sua inevitável proximidade com o mundo e os outros. Ao afirmar que vivemos em um mundo plural, condicionamos (positivamente) o homem a viver na companhia dos outros. Esta é uma exigência da natureza humana e que constitui sua identidade de ser pessoa presente no mundo.


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2 Cultura, educação e escola em perspectiva antropológica A cultura, enquanto cultivo e cuidado, está diretamente vinculada ao legado deixado pelo homem às gerações futuras. Ao entramos em contato com o mundo, este já estava construído e, portanto, pronto para ser habitado por nós na companhia dos outros. Pensando nisso é que nos propomos a analisar o papel maior da educação e seu espaço privilegiado: a escola. Entender a escola em uma perspectiva antropológica é dar a oportunidade de repensar o ser estar no mundo e, por conseguinte, contribuir para a emancipação do sujeito.

2.1 O processo civilizatório Ao longo de toda a trajetória da sociedade, o homem busca incessantemente encontrar respostas para as questões fundamentais da vida humana. Encontrar um lugar seguro para morar, conviver e estabelecer relações com os outros e o mundo passou a ser seu caminho em busca da felicidade. Torna-se fundamental compreender como se processou, ao longo da história da humanidade, tal caminho que começa em sua concepção mais primitiva, a denominada sociedade da barbárie, passando pelas “primeiras civilizações” até a necessidade e importância da comunicação, acreditando ser possível renovar, constantemente, o papel da educação nessa construção social. Isso significa iniciar um processo de construção mental, portanto teórico, que nos faz pensar de forma binária (certo/errado, bem/mal, verdadeiro/falso), atribuindo o valor da civilização por seu oposto: a barbárie, do ponto de vista antropológico, nos interessa perceber o quanto essas teorias reforçam a forma dualista (civilização x barbárie) de pensar do ser humano e como elas impactam o modo dele agir e viver em sociedade.

Convencionou-se conceituar como barbárie toda atividade humana na qual estão presentes ações que envolvem a autopreservação individual ou de natureza em que o instinto age de forma mais forte sobre a racionalidade e a sociabilidade humana. Normalmente se atribui tal comportamento à situação do homem primitivo que precisava, para sobreviver, viver do que a natureza poderia lhe proporcionar e, tal como um predador, disputava com seus pares alimento e tudo que lhe proporcionasse melhores

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2.1.1 A sociedade da barbárie


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condições de sobrevivência. Seria a barbárie uma condição natural presente na essência humana? É possível atribuir à barbárie uma “espécie” de transgressão à ordem? Se formos buscar a raiz etimológica da palavra, é natural que encontremos razões para acreditar nesses questionamentos. A história, durante muito tempo, foi contada pelos sujeitos que tinham o controle da vida em sociedade e, por razões que envolvem poder e cultura, a historiografia definiu os hominídeos como os homens sem história. Por isso, eles foram rotulados como primitivos, bárbaros, ou, em outras palavras, homens sem civilização. A história nos mostra como esse conceito de barbárie era percebido pelos povos antigos: os gregos se referiam a todos os que não pertenciam à pólis como bárbaros; os romanos atribuíam a ruína do império aos povos vindos de outras regiões e a estes a história denominou de bárbaros. Essa constatação, muito comum nas leituras apressadas do tempo histórico, pode nos levar a pensar sempre como negativa a presença da diversidade e rotular como bárbaro todo aquele que ousar viver em um universo destoante da cultura formalmente aceita e entendida como legítima. No entanto, há outra forma de pensar a civilização como uma sociedade agregada à barbárie. O que isso significa? A evolução é um processo contínuo e possível de se atingir se admitirmos pluralidade e a riqueza presente nas diversas culturas. Para entender esse processo, precisamos, antes de tudo, incluir a barbárie como própria da sociedade humana. O argumento que podemos levantar é que, aos poucos, esses “homens solitários” foram se agrupando e aprendendo a conviver. Com isso, houve um processo de ocupação dos espaços previamente demarcados, estruturados e organizados pela própria natureza instintiva dos homens. A tensão, própria da convivência, cedeu espaço para que os costumes, as tradições e a própria necessidade de subsistência organizassem um espaço social de convivência. A partir desse momento, instaura-se um processo de sedentarização dos grupos sociais, uma condição nômade da sociedade, ou seja, os homens se agruparam em lugares nos quais era possível sobreviver à fome, às intempéries do tempo e das adversidades naturais. Enquanto a natureza pudesse prover o sustento, o homem ali permanecia. Será esta a condição da barbárie ou própria da condição humana? O que queremos afirmar é que, para as discussões no campo da antropologia, tal como apresentou Wolff (2004), é possível que a civilização conviva com a barbárie. Isso não se remete somente à condição primitiva, mas também aos movimentos que percebemos na sociedade contemporânea. Para compreender melhor esse argumento, vamos partir das primeiras civilizações e tentar entender como se deu esse processo de aculturação e assimilação do outro.


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2.1.2 As primeiras civilizações Para iniciar este tema, pode-se partir do conceito do antropólogo francês LéviStrauss (2013) de que, a partir do momento em que os homens, ao se organizarem, estabelecem normas e regras de convivência e, dessa forma, a cultura se instaura, inicia-se um processo civilizatório. Para nos remeter ao passado, em que se convencionou dividir em algumas fases o processo de civilização cultural do homem. Para Hoebel e Frost (1999), não é possível entender esse movimento se não partirmos dessas origens nas quais se pode observar tanto o aspecto da evolução biológica quanto cultural. Podemos resumir esses períodos culturais, presentes nas primeiras civilizações, no seguinte quadro conceitual:

Primeiras civilizações Etapa

Período (+/-)

Característica

Paleolítico (Inferior/Médio/ Superior)

500 a 10 mil anos (a.C.)

O homem predador e em, alguns registros, prática de canibalismo.

Nesse período, evidencia-se o processo de produção de recursos de sobrevivência.

12 a 10 mil anos (a.C)

Técnica do aprimoramento das pedras lascadas.

A invenção da canoa, utilização de palafitas.

10 mil (a.C)

Pedra polida.

Início do processo de “ocupação” das terras com o cultivo de alimentos.

Mesolítico Neolítico

Curiosidade

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Fonte: Marconi, 2010, p. 49. (Adaptado).

Estas são as clássicas divisões e nelas podemos inserir as diversas matrizes de ocupação civilizatória até chegar à escrita que, segundo registros, podemos datar aproximadamente de 3.000 a.C. É possível afirmar que essas civilizações marcam um período importante de ocupação e desenvolvimento das primeiras organizações tribais e familiares até chegar à concepção que hoje temos de sociedade. Para cada tempo histórico, foi necessário que o homem buscasse se adaptar à realidade na qual estava inserido, mas, com o desenvolvimento das organizações sociais, as relações se tornaram mais complexas e pautadas em outros fatores que não só a sobrevivência. Podemos apontar como exemplo o surgimento dos primeiros rituais fúnebres oriundos das reflexões sobre a vida e a morte que ganharam muita


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importância na cultura dos povos antigos e não estavam atrelados a nenhuma lógica de sobrevivência, mas sim às visões metafísicas de mundo.

Para Lévi-Strauss (2013, p. 59), “[...] o sábio nunca dialoga com a natureza pura, senão com um determinado estado de relação entre a natureza e a cultura, definida por um período da história em que vive, a civilização que é a sua e os meios materiais de que dispõe”.

2.1.3 Comunicação e sociedade Ao classificar o processo civilizatório como uma ação própria às condições de desenvolvimento do homem, igualmente é possível admitir que todo esse movimento se dá com a aquisição da linguagem, com a qual é possível estabelecer laços de compreensão de si, do outro e do mundo. A comunicação passa a ser o elemento fundante de uma relação que se quer buscar para compreender esse processo de ocupação dos espaços de sobrevivência e, consequentemente, como parte integrante da arte de viver em sociedade. O legado da tradição nos mostra o quanto é importante e imprescindível estabelecer códigos e símbolos de linguagem como forma de tornar compreensível a convivência humana. Para Norbert Elias (1994) e outros estudiosos sobre o assunto, é da natureza humana viver em sociedade e, por isso mesmo, necessário e fundamental que se organizem por grupos de interesses. Para o autor de A sociedade dos indivíduos (ELIAS, 1994, p. 108), “[...] nas comunidades mais primitivas e unidas, o fator mais importante do controle do comportamento individual é a presença constante dos outros, o saber-se ligado a eles pela vida inteira e, não menos importante, o medo direto dos outros”. Portanto, a ideia básica de uma comunicação para além de uma simples constatação, na qual se exige a presença do emissor e do receptor, é saber que ela representa o elo fundante da estrutura de uma sociedade. Pela comunicação, compreendemo-nos uns aos outros e, ao mesmo tempo, nos permitimos educar e ser educados para viver em sociedade.

Assista ao filme “O quarto poder”, filme do diretor Costa-Gravas lançado em 1997 que trata do tema do poder da comunicação e de como ela pode produzir uma opinião pública. As situações reveladas nessa película tratam do drama humano e envolvem sentimento, respeito e tolerância.


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2.1.4 Educando a sociedade

Dessa maneira, o passado é presentificado como forma, não apenas temporal e romântica, mas como uma herança que precisa ser transmitida às gerações futuras. Seguindo por esse caminho, é possível mostrar que a própria natureza nutriu o homem de sabedoria e o tornou capaz de se adaptar a seu meio, ou seja, o educou a viver e confiar na necessidade de viver em grupos. A educação se tornou parte do instinto de natureza na qual a família primitiva, tal como era concebida, se encarregava de criar seus filhos para viverem em grupos e se auxiliarem mutuamente. Educar os instintos e adaptá-los à realidade da vida em sociedade era condição de garantir a própria sobrevivência. Os registros de memória, quer pela arte rupestre, pelo manejo e fabricação dos utensílios de caça, pesca e luta ou mesmo pelo cultivo da terra, revelam um aspecto interessante não só da cultura, mas também da forma natural como o processo de educação era transmitido e ressignificado em cada tempo histórico. Podemos, a partir desse movimento, começar a entender que a educação, em seu significado mais amplo, é parte integrante de um processo de adaptabilidade do homem ao meio e, consequentemente, parte significativa e importante de seu ser estar no mundo. Viver no mundo significa estar pronto para enfrentar os desafios dos encontros e desencontros com outros agrupamentos sociais. Este é um processo que pode ocorrer ao longo dos movimentos migratórios comuns à natureza instintiva dos homens. Ao sair da condição de “homem primitivo”, tornou-se uma necessidade reeducar os indivíduos a não somente se descobrirem como parte integrante de um universo mais amplo, como também a perceberem o sentido e significado da cultura e das interfaces que dela derivam para um processo de redefinição da própria sociedade.

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Iniciamos este espaço de aprendizagem afirmando e reafirmando os princípios básicos de uma relação que ocorre “entre” os homens: o processo de convivência e de organização de seus instintos de natureza. A sociedade, mais do que um agrupamento de pessoas, é movida pela necessidade que temos de viver com e entre os outros. Todo processo de ocupação dos espaços da natureza tinha como propósito servir de sustento e garantia de sobrevivência.


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2.2 Descobrindo a cultura

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A sociedade é mais do que um agrupamento de indivíduos isolados em seus espaços territoriais: ela se configura como o lugar do encontro, da partilha, da diferença e da pluralidade. Nesse processo de adaptabilidade social é que podemos entender como a cultura se torna peça fundamental para agregar as diferentes formas de ver e analisar o mundo. Nessa perspectiva, o legado deixado pela tradição conduz os rumos da sociedade que está posta e pronta para receber as diversas manifestações de grupos, tribos ou pares. Os ritos e os símbolos, frutos desse legado, constituem uma das matérias-primas dos pesquisadores da e sobre a cultura. Descobrir em cada um desses movimentos um processo contínuo de modificações, adaptações e novas configurações faz parte integrante da própria natureza da humanidade. Como seres plurais, somos chamados a vivenciar essas experiências, ou seja, seguir os rastros transmitidos pela memória oral e escrita. Ao descobrir a cultura presente em cada uma dessas perspectivas, desses olhares convertidos em realidade, o homem se descobre e se reinventa.

2.2.1 O conceito de cultura Há, certamente, vários conceitos que se ligam à palavra cultura, por exemplo, a associação ao ciclo da natureza: preparar a terra para o cultivo, semear o grão, esperar o tempo de maturação e da “colheita”. Essa relação foi apropriada principalmente por se levar em conta uma das formas mais substanciais da sobrevivência: vivemos do que a terra nos oferece. Pensando por esse lado, é possível fazer as devidas apropriações para o que mais tarde se configurou como interfaces ou derivados da cultura. As manifestações mais comuns, os ritos mais simbólicos estavam todos ligados e interligados ao início ou final de uma colheita: as festas, os lugares de encontros, os gestos, as roupas que deveriam compor o ritual, as danças, as músicas etc. Se pensarmos, por exemplo, a origem da nossa tradicional “festa junina” veremos que ela acontecia para “celebrar a colheita”, com ritos e gestos próprios como forma de agradecimento e de congraçamento entre todos da comunidade. Se todo conceito parte de uma matriz referencial, podemos afirmar que a cultura nasce dessa apropriação dos “feitos da natureza” e da íntima ligação que o homem tem com a terra.


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Se olharmos para a raiz etimológica presente na língua alemã, encontraremos na expressão Kultur toda essa apropriação feita por um grupo, segmento social que, ao redor de seus símbolos, marca crenças, valores e estabelece instituições.

2.2.2 Cultura e culturas Ao adotarmos a definição de cultura atrelada à condição humana de se perceber ligada às tradições, costumes, crenças e normas, é possível ampliar o campo teórico-prático do como se realiza tal agrupamento. Enquanto identidade cultural, é natural que possamos pensar na amplitude que o conceito permite e, dessa forma, aceitar o fato de pertencermos a uma aldeia global denominada mundo. Nesse sentido, podemos, em um primeiro movimento, agrupar toda a humanidade ao bloco daqueles que têm a capacidade de pensar e agir com e sobre os outros.

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Como não há homogeneidade em nossas ações e dadas as condições de natureza, é comum nos unirmos àqueles que possuem traços semelhantes aos nossos: tradição, gosto, afinidade, religião etc. Em meio a esses movimentos, podemos transitar livremente entre um grupo e outro e, dessa maneira, aceitar o fato de que a uma identidade cultural se agrupam tantas outras culturas. A questão passa a ser tratada não como um único nicho cultural capaz de agrupar a todos de forma uniforme, mas de aceitar o fato de que há “culturas em movimento”. Para explicar melhor essa teoria, podemos observar o quanto o ser humano é capaz de enfrentar os processos de mudanças que ocorrem em seu entorno social. Essa capacidade de dialogar com o tempo pode traduzir um processo de mudança e, simultaneamente, a dificuldade que se tem de aceitar a presença das diversas culturas. O processo de socialização do homem demonstra essa dicotomia entre a racionalidade que nos diferencia dos outros animais e a capacidade de conviver ou não com os diversos agrupamentos culturais. Os conhecidos conflitos presentes na história da humanidade, quer por conta da necessidade humana de ampliar os domínios de poder territorial, político e econômico, quer por questões culturais, raciais e/ou religiosas, demonstram o quanto temos dificuldades em aliar a racionalidade com a sociabilidade. Tudo que envolve valores e crenças se constitui um campo cultural de convivência social; conhecer e compreender os múltiplos valores significa ampliar a ideia que se tem da natureza humana e, assim, caminhar em prol do bom convívio com a pluralidade.


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Há na literatura antropológica pelo menos duas explicações para entender os movimentos culturais: evolucionismo e relativismo cultural. Por evolucionismo entendemos toda a ação própria do homem no tempo histórico. Essa corrente de pensamento defende a tese de que, apesar dos movimentos migratórios, há um processo originário, responsável pela concepção de uma lei de natureza na qual os mais fortes sobrevivem à “luta pela sobrevivência”. Essa teoria ficou mais em evidência a partir dos escritos de Darwin sobre a origem das espécies, no final do século XIX, e que até hoje é motivo de estudos, debates e controversas culturais, acadêmicas e religiosas. Em contrapartida, o segundo movimento, relativismo cultural, passa a ser entendido como uma oposição ao evolucionismo por defender a ideia de que não há uma explicação razoável para unificar o desenvolvimento humano a partir da origem das espécies. A explicação estaria muito mais voltada ao processo de adaptação do homem e toda a sua relação com a natureza. Dessa tríplice ação – homem/natureza/ação – decorreria o processo de adaptação, acomodação, conservação e transgressão da cultura. Importante salientar que somente a partir desse processo é que se torna possível entender a defesa mais abrangente pela apropriação da existência das culturas presentes em uma mesma sociedade. Nessa visão perspectivista, é possível entender diversos movimentos que ocorrem nos agrupamentos sociais e a necessidade que temos de conviver com as diversas tribos e gerações.

Por alteridade definimos a capacidade que temos de estabelecer uma ação dialógica com os homens e o mundo. Ao agregarmos a dimensão cultural, concordamos com o fato de que há diversos “outros” entre eu e o mundo. Ao frequentar uma ação social, cultural e mesmo nas relações institucionais há sempre o outro presente que nos chama a dar uma resposta diante do que está acontecendo a nosso redor. Essa capacidade de agir nos impulsiona a pensar o quanto estamos inseridos no mundo.

No entender de Costa (2002, p. 149), “[...] há mudanças radicais não apenas nas formas de pensar sobre o mundo, mas nas formas como o mundo se organiza e funciona, nas formas como ele é gerido, nas formas como o habitamos”.

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2.2.3 Alteridade cultural


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A vida em sociedade se apresenta a partir da convivência de diversas culturas que interagem, se complementam e/ou se negam. É essa capacidade de interagir com as diferenças que movimenta o mundo e torna possível novas concepções e valores ou ressignifica o legado da tradição. Apesar da compreensão dessa existência plural de culturas em uma mesma sociedade, podemos observar que na história se fizeram presentes os “movimentos de contracultura”, que buscavam negar os modelos culturais vigentes e tidos como legítimos a partir da negação da uniformidade das relações sociais. Interessante notar que os movimentos de contracultura foram, e ainda são, percebidos como modelos culturais marginalizados, gerando compreensões estereotipadas e muitas vezes preconceituosas. Os conhecidos movimentos de contracultura estão presentes diretamente nessa negação aos modelos culturais previamente determinados cuja função é, prioritariamente, estabelecer uma uniformidade na ação humana. Qualquer ação contrária a essa uniformidade cultural era colocada à margem da sociedade. Basta analisar os chamados movimentos hippies dos anos 1960 ou os conhecidos grupos alternativos que estão presentes nos agrupamentos sociais. No Brasil, tornaram-se conhecidos no final dos anos 1960 os grandes festivais e as chamadas sociedades alternativas, que tinham como bandeira a célebre frase do filósofo existencialista francês Sartre: “é proibido proibir”. Conviver com as diferentes opiniões acerca do mundo, das coisas e dos valores culturais de uma geração para outra constitui um ponto de vista complexo àqueles que defendem a uniformização das ações coletivas. A alteridade cultural, fruto do fenômeno da convivência humana, passa a ser um legado que ultrapassa gerações e, portanto, necessita de uma interface no conhecimento que temos sobre nós mesmo, o outro e o mundo. Dessa forma, segundo Eagleton (2011, p. 99), “[...] qualquer afirmação autêntica de diferença tem, portanto, uma dimensão universal”. Isso significa que pensar a alteridade não é simplesmente imaginar um outro igual a mim, mas diferente, plural e, com isso, assumir uma postura de caráter global.

Pensar o outro em uma perspectiva cultural da diferença significa admitir a riqueza que temos e somos enquanto indivíduos. A sugestão é assistir ao filme “O trem da vida”, de Radu Mihaileanu. Lançado em 1998, é uma boa oportunidade para analisar a alteridade cultural.

2.2.4 O outro e o mesmo Nesta unidade de aprendizagem, apresentamos a importância de entender a existência de múltiplas visões culturais que podem ser analisadas a partir de seu contexto histórico. O estudo da cultura é fundamental para compreender as relações que


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se constituem entre os homens. Nesse sentido, torna-se necessário tentar analisar as características culturais do passado baseadas na concepção de mundo do tempo histórico em questão, pois só assim será possível dar sentido a ações, valores, sentimentos e regras estabelecidas naquele tempo específico. Só depois é possível analisar esse passado relacionando-o culturalmente com o tempo presente a fim de ter uma visão processual da história e da forma como a cultura foi se estabelecendo e modificando ao longo do tempo. Vimos que Cultura é cultivo, preparo, cuidado e prática relacional. Então não se limita única e exclusivamente ao conhecimento acadêmico e científico acumulado ao longo da geração. Essa forma de cultura letrada pode se constituir um elemento diferenciador entre as pessoas e também de ação e domínio sobre os outros. No entanto, vimos que a cultura é para além do uso da razão, ou seja, uma forma de agrupar crenças, costumes, tradições e normas capazes de dar uma identidade própria aos processos de socialização do ser humano. Nessa direção podemos incluir as manifestações culturais próprias de um determinado grupo social. Ao analisar esses processos e manifestações, nos deparamos com o outro que nos constitui como pessoa e nos torna o mesmo diante de um aglomerado social. Isso pode significar que, ao mesmo tempo, somos únicos e iguais diante de uma ação coletiva própria dos movimentos e das lutas pelos direitos sociais. Nossas convicções sobre o mundo, a sociedade e a vida nos aproximam e nos distanciam. Enquanto proximidade, somos o outro e o mesmo que, partilhando de princípios e valores idênticos, pode agir em sintonia com nossas crenças e valores. O distanciamento nos faz ver o mundo de um determinado ponto de vista que exige uma disposição para encontrar as respostas às perguntas de sentido e presença de um ser no mundo. Por outro lado, o distanciamento se faz presente quando analisamos o mundo a partir da nossa individualidade, de um ponto de vista único que pode destoar e, automaticamente, nos distanciar do outro. A vida em sociedade pressupõe o cultivo do sentimento de pertença e de cuidado para que os outros possam se sentir respeitados em suas diferenças e, dessa forma, nos constituímos parte do mesmo mundo que habitamos. Não há um único modelo de sociedade, assim como de pessoa e agrupamentos sociais. Em um determinado grupo cultural, há sempre o outro que é também um ponto de vista distinto do mesmo, do igual e do indistinto. Esta é a dimensão mais profunda do conceito de pluralidade cultural.


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É possível, ao ampliar esse conceito que temos sobre o outro e sua relação comigo, perceber a necessidade de assumir um desafio mais amplo sobre o conhecimento das diversas formas de manifestação e dos fenômenos do mundo. Na perspectiva antropológica, o homem é um ser complexo e inacabado, portanto em processo de formação contínua, aberto e suscetível às mudanças que ocorrem em seu entorno social.

2.3 Os desafios de uma educação para cultura

A educação funciona como um instrumento de emancipação do homem e, ao mesmo tempo, de socialização das ações que ocorrem nas relações entre os indivíduos. Se pensarmos do ponto de vista antropológico, a educação tem a função de redescobrir o homem, de buscar nas origens do universo a presença e a pertença dos indivíduos no mundo. Ao descobrir-se como parte integrante do universo, ele é capaz de modificá-lo, transformá-lo. Este parece ser o grande desafio do mundo contemporâneo: debruçar-se diante da imensidade do universo e, aos poucos, compreender os movimentos que ocorrem no interior das sociedades culturais e milenares e delas tirar proveito.

2.3.1 O processo de educação em busca da valorização da cultura O universo é um grande mistério ainda em processo de desvelamento. Quantas mudanças estamos presenciando ao longo de nossa existência? Por que se aventurar a encontrar vida em outros planetas? É possível viver sem tudo aquilo que herdamos do passado? Afinal, quem é este homem? Há uma centena de outras questões que nosso

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Podemos iniciar esta temática a partir dos conceitos que até aqui construímos para ampliar e aprofundar a dimensão da cultura enquanto um projeto educativo e formativo da sociedade. Não há na sociedade nenhuma possibilidade de viver sem um projeto construído a partir do legado herdado pela tradição. O ser humano é sempre fruto desse processo ininterrupto de redescoberta do mundo. A cada nova interpretação a respeito da vida humana, é possível uma reconstrução de ideias e valores. Quando se encontra um sítio arqueológico, nossa visão de mundo se modifica da mesma forma que os avanços tecnológicos nos causam espanto e admiração. Os processos de ruptura, os avanços tecnológicos e os novos valores acabam por refazer o modelo de sociedade que tínhamos. Esse movimento é contínuo e, por isso mesmo, necessita da educação como uma ferramenta que torna possível ressignificar o mundo e dar um novo sentido às relações humanas.


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mundo contemporâneo deixa em aberto e, certamente, você está acrescentando suas próprias questões a essa lista. Se a cultura é o legado que temos de mais concreto da vida do homem em sociedade é porque a educação formal e informal tratou de ser transmitida de uma geração para outra. O conhecimento que temos se tornou possível porque é próprio da natureza humana se permitir deixar traços, sinais e símbolos por onde passa.

Procure nos sites de busca e mesmo em algum livro específico de antropologia ou história a cultura dos incas, maias, astecas. Depois, faça o mesmo em relação às tribos indígenas no Brasil e tente encontrar alguns traços culturais comuns a esses povos no que diz respeito aos símbolos e ritos.

Todo esse processo de busca se torna possível ao passar pelo campo da educação enquanto responsável por manter vivo o legado da tradição, não como uma mera repetidora de fatos, contos e ritos, mas como estímulo à participação e ao autoconhecimento da riqueza deixada e transmitida às gerações. Ao fazer esse processo de presentificar o passado, a educação acaba estabelecendo o elo entre as transformações próprias de cada tempo histórico com as identidades de cada grupo cultural. Os movimentos e manifestações culturais devem tencionar a melhoria da qualidade de vida das pessoas e, por isso mesmo, emancipar o homem.

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O conhecimento, segundo Rampazzo (2014, p. 10), “[...] é o bem do homem. Por isso, o conhecimento deve ser ‘humano’ em todos os sentidos: é um produto do homem, a serviço do homem – do homem todo, em todas as suas dimensões, e de todos os homens, sem qualquer tipo de discriminação”.

A educação passa a ser a protagonista desse processo de emancipação do homem e a principal responsável por manter vivo o legado cultural. Se o conhecimento está para servir ao homem na busca de sentido e significado às relações interpessoais, é natural que a educação deva cuidar para que a identidade cultural de um povo não caia no esquecimento. Educar a sociedade não é uma tarefa fácil, principalmente se levarmos em conta a própria complexidade do tempo de mudanças que estamos vivenciando e que exige a valorização da cultura como resgate do próprio homem e das relações sociais.


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2.3.2 A sociedade e o complexo cultural Por sociedade entendemos o conjunto de pessoas que se relacionam entre si e, de forma direta ou indireta, são regidas por normas e regras. A condição humana pressupõe esse viver coletivo. Na história da humanidade, desde os conhecidos Homo Sapiens, os agrupamentos se tornam evidentes e necessários à sobrevivência da própria espécie. Essa constatação vem carregada de outros sinais visíveis, tais como territorialidade, costumes comuns, preservação e continuidade da prole. Um dos pontos importantes desse contexto social são os laços culturais estabelecidos e marcados pelo tempo de convivência. Essas marcas tendem a seguir para além das expectativas de vida dos indivíduos que a compõem e se estendem às gerações posteriores.

A antropologia, ao estudar os fenômenos que se relacionam com o homem, quer do ponto de vista histórico, filosófico, social, político e econômico, entende que este é um processo natural de aculturação social. Disso decorre o esforço para entender as diversas e complexas matrizes que se formam ao redor de cada conjunto cultural presente em um ou mais agrupamentos sociais. Nesse sentido, ao analisar os movimentos culturais ao longo da história, podemos entender melhor o contexto no qual estamos inseridos. O século XXI tem sido marcado pela sociedade da informação e do conhecimento vinculado ao dinâmico mundo das redes sociais. Podemos afirmar que esse movimento se constitui uma forma nova de ver e analisar os fenômenos de relação entre os homens e, consequentemente, a complexa convivência social. O distanciamento se tornou próximo: no simples toque de um celular plugamos o mundo. Não há mais uma barreira espacial que dificulte a circulação do que acontece no entorno social. O mundo cabe na palma de uma mão e, dessa forma, surge uma complexidade nova para o campo social: como entender esse homem que se tornou público e que aparece o tempo todo nas redes sociais? Qual o novo perfil de sociedade e de cultura advém dessa nova realidade? Estas e outras questões podem ser pensadas e respondidas se atrelarmos ao compromisso da Educação, como veremos no item a seguir.

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Normalmente nossas relações sociais são marcadas pela intensidade de energia que desprendemos para garantir a defesa de nosso espaço de domínio ou para agregar aqueles que nos são afetivamente importantes. Essa dupla relação acaba por fazer parte de um complexo cultural que forma a história da humanidade. Entre conflitos e afetos, as relações vão se estabelecendo e, consequentemente, ritos e símbolos vão se tornando parte integrante da sociedade de um modo geral.


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2.3.3 Educação e cultura Cabe à educação a responsabilidade pelo processo de transmissão, valorização e reafirmação de uma identidade cultural e pela inserção do homem na vida em sociedade. Em se tratando de uma matriz antropológica, é ao homem a quem estamos nos referimos e é por ele que a sociedade se constitui como mola propulsora da convivência e sociabilidade humana. Essa ação que ocorre no interior das relações humanas parte de uma sequência de acontecimentos que se repetem até se constituírem em uma tradição e esta à cultura. O historiador inglês Hobsbawn (2012) afirma que toda tradição é inventada e, para isso, ela precisa fazer parte da vida social e cultural de um povo. Por sua vez, o papel da educação é manter o legado dessa tradição de preservação da cultura.

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Se olharmos atentamente os processos de aculturação dos povos, verificaremos uma especial atenção à valorização dada pela educação aos processos de manifestações populares e pela história oral e escrita que revelam a identidade cultural de uma etnia, crença, normas e costumes de um determinado grupo. Nesse contexto de mundo globalizado, essa ação se torna mais necessária e importante para manter e reavivar os laços culturais que podem significar a unidade e diversidade presente na sociedade. Do ponto de vista antropológico, essa questão passa a ser tratada em duas perspectivas: monoculturalismo e o interculturalismo. O monoculturalismo defende a ideia de que todo conhecimento é objetivo e portanto capaz de conduzir a sociedade a um padrão de uniformidade, anulando o princípio da alteridade e das diferenças. Por outro lado, percebe-se, no campo das relações interculturais (interculturalismo), o surgimento de nova possibilidade “[...] de um movimento cidadão: os diferentes grupos e indivíduos articulam-se sob a forma de redes e parcerias, onde a complementaridade se constrói a partir do respeito às diferenças” (FLEURI, 2002, p. 67). Esse processo é complexo, pois exige um olhar mais atento e cuidadoso para com as diferenças existentes no mundo contemporâneo e na própria concepção de um tempo não linear, programado para um futuro certo. É preciso perceber que existe uma intencionalidade nessa ação que visa à formação mais crítica e a valorização do diálogo como respeito às individualidades sociais, culturais e políticas. A educação “[...] passa a ser entendida não apenas como transmissão de informações de um indivíduo para outro... mas como construção de processos” (FLEURI, 2002, p. 79). Essa ação processual configura uma nova dinâmica nas relações interpessoais, pois sustenta e modifica contextos relacionais. Ao estabelecer essa


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relação dialógica com os diversos e singulares contextos socioculturais, espera-se um maior comprometimento de todos os envolvidos no processo ensino-aprendizagem de tal forma que seja percebida uma maior aderência às questões vitais que envolvem o mundo e seja possível fazer educação em condições adversas.

Um filme interessante, “Nenhum a menos” (1998), dirigido por Zhang Yimou, pode ajudá-lo a compreender o que estamos tratando. Observe os detalhes e a forma de entender os desafios propostos pelo diretor de como é possível fazer educação em condições adversas.

2.3.4 Pensando a sociedade Diante desse quadro que acabamos de descrever, da relação necessária e importante entre a cultura, educação e escola, como podemos descrever ou tentar mapear essa sociedade? Pensar a escola como um espaço territorialmente concebido como lugar do convívio social e a educação enquanto um processo mais abrangente na qual a formação do indivíduo/cidadão é sua função primordial, a cultura passa a ser a mediadora dessa sociedade em constante transformação. A cultura enquanto o legado da tradição e, ao mesmo tempo, processo de construção, adaptação e transformação convive ao lado de uma sociedade que se configura como sendo a da informação e do conhecimento. Esse papel, antes privilégio da escola enquanto espaço privilegiado, está agora ao alcance de todos. Diante desse cenário, qual seria a função da antropologia? Para responder a essa questão, precisamos reafirmar a atualidade do conceito: a antropologia é o estudo do homem e dos fenômenos que estão a sua volta. Não há dicotomia entre esses campos, mas complementaridade, ou seja, em que o estudo sobre o homem pode ajudar nos processos de aquisição do conhecimento e contribuir para o desvelamento da realidade?

Para Gusmão (1997, p. 77), “[...] a etnografia, como seu método central, tem na reflexividade um caminho de dupla mão simbólica: o do pesquisador e o do pesquisado. Pode-se dizer que, na modernidade, a antropologia e o fazer do antropólogo são já de interação, partilha e comunicação”.

As constantes mudanças no cenário mundial apontam, efetivamente, para a formação de um indivíduo capaz de solucionar problemas em um curto espaço de tempo. Somente um sujeito competente pode estar apto a enfrentar esse desafio. Ao encurtar distâncias, a sociedade modifica seus padrões de comportamento e precisa se


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adaptar aos novos modelos. É preciso que os indivíduos percebam e compreendam o que está ocorrendo no mundo em geral para que possam estabelecer novas relações entre si e os outros.

2.4 As tendências sociais e a natureza humana Nesta unidade de aprendizagem, buscamos focar nossa atenção na apropriação dos conceitos que envolvem a cultura em sua dimensão emancipatória do indivíduo social. Acredita-se que é possível ampliar nossa leitura do mundo quando temos presente a velocidade das informações que implicam, impactam e constituem a natureza do homem. Enquanto objeto privilegiado da antropologia, o homem e todas as suas formas de convívio constituem um campo aberto e propício à compreensão integral de quem ele realmente é e, consequentemente, de sua forma de ver e analisar o mundo. Há fortes tendências teóricas e práticas de compreender a dimensão humana: a cultura, a civilização e a barbárie são partes inseparáveis do ser pessoa. Nossos comportamentos e a história revelada ao longo de toda a tradição contribuem para entender a complexidade do convívio social e, ao mesmo tempo, afiançar com clareza de que não é possível viver sem a companhia dos outros. Arendt (2005), em dois escritos temporais, A Crise da Educação e A Crise da Cultura, chega a enfatizar que a pluralidade é a condição humana e, por isso mesmo, precisa manter viva a compreensão do mundo registrada no passado e presentificada às futuras gerações.

2.4.1 O olhar da antropologia As tendências do mundo moderno exigiram que a ciência saísse de seu campo disciplinar e, muitas vezes, exclusivista para um olhar mais multidisciplinar. Não é mais possível que um campo do saber científico rogue para si o título de detentor do saber e que as outras ciências são meros coadjuvantes ou auxiliares do conhecimento. Essa visão, própria do século XIX, foi aos poucos sendo substituída por um olhar mais amplo sobre o mundo, a sociedade e o homem. O objeto das ciências passou a ser a compreensão das relações do mundo com os homens. Nessa direção, a antropologia compreendeu que o legado do homem em suas mais diversas manifestações culturais (língua, folclore, costumes e outros fenômenos) constitui um campo forte de pesquisa, reflexão e ação. A teoria deve encontrar a prática, ou seja, cada vez que eu estudo e compreendo o homem, isso precisa impactar a sociedade em toda a sua inteireza. A antropologia assume um papel interessante concebida tanto em sua dimensão cultural, social, filosófica quanto política, na interpretação do mundo contemporâneo.


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Não há pretensão de universalidade em seus argumentos e análises, mas de diálogo profundo com a realidade e as outras matrizes de estudos e pesquisas. O que importa é compreender qual é o perfil desse homem contemporâneo, lembrando sempre que esse olhar é forçosamente uma exigência do mundo globalizado, em que as barreiras da informação não são mais exclusividade do pesquisador, cientista ou mesmo do profissional do conhecimento. As diversas representações assumidas no mundo podem e devem ser objeto da pesquisa ou de um olhar antropológico sobre a realidade. Essa constatação é dialógica na medida em que nos voltamos para o centro do estudo: o homem em toda a sua inteireza. Portador de uma natureza que alia sociabilidade e racionalidade, o homem é um ser relacional e, portanto, necessita da companhia dos outros.

Cabe ao antropólogo, segundo Sperber (1992, p. 57), a “[...] tarefa de explicar as representações culturais, isto é, descrever os fatores que determinam a seleção de certas representações e a sua partilha por um grupo social”.

2.4.2 Educar o humano para conviver com os outros Partindo do pressuposto exaustivamente repetido nesta temática sobre as relações entre cultura, educação e sociedade, de que o homem necessita do outro para viver, podemos ampliar essa reflexão e tentar aprofundar o papel da educação nesse processo. Durante muito tempo acostumou-se com a ideia já anunciada por Aristóteles de que “o homem é um animal racional” e seria esta a condição que o diferenciaria de outros animais. Se o homem é racional, está apto a dominar seus instintos de natureza, ou seja, sua animalidade. Este passou a ser o papel fundamental da educação: socializar o animal primitivo que há em cada um de nós. Esta tarefa não é fácil, principalmente se olharmos a nossa volta e nos depararmos com os inúmeros fatos que envolvem a violência, vendida e comercializada como publicidade dessa nossa “vida animal”. Embora saibamos que os animais só se utilizam da violência em condições de sobrevivência ou de proteção do grupo, da prole, ou seja, não há como atribuir ao animal a “violência gratuita”. Se levarmos em conta esse aspecto, o homem precisa constantemente ser chamado à razão e educado para a sociabilidade.


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Por outro lado, torna-se imprescindível pensar o quanto a cultura ajuda nesse processo de educação para sociabilidade humana. Toda e qualquer manifestação cultural representa a identidade de um povo que, ao ser preservada, garante a sobrevivência humana. As experiências acumuladas, ao longo da trajetória humana no planeta, se mostraram eficientes para entender a riqueza de cada cultura, vivenciada por um grupo, povo ou nação. Educar o humano significa compreender a pessoa a partir de seu lugar e papel social. Os processos de relação circunscritos na tradição e o olhar atento às mudanças próprias de cada tempo torna possível ampliar os conceitos de cultura dialogal inerente à convivência humana. No entanto, só é possível realizar tais processos de “humanização do homem” se entendermos que não se trata de um campo teórico, mas de uma vivência a partir da realidade.

2.4.3 Vivendo a realidade Todo e qualquer ação humana ocorre a partir dos dados coletados da realidade. Ela é fonte do que somos e daquilo que projetamos para a vida. Ao se agrupar em um núcleo social, o indivíduo percebe que há outros movimentos acontecendo em seu entorno dos quais ele não teria condições de participar. No entanto, ele tem consciência de que, quanto mais ele se apropriar da realidade, maior é sua capacidade de entender, compreender e interagir com os demais agrupamentos. O ponto de partida, portanto, de todo e qualquer processo de aculturação humana é a realidade. O objeto de estudo da antropologia e das demais ciências que têm o homem como seu principal sujeito deve pressupor um olhar atento ao mundo no qual estamos inseridos. Viver a realidade pressupõe, igualmente, conhecer os diversos mecanismos de que dispomos para atuar sobre o mundo. Nessa direção, poderíamos nos arriscar a construir um cenário social capaz de projetar os próximos passos da civilização contemporânea. O ponto de partida seria classificar as sociedades em quatro grandes núcleos culturais: acomodação, conservação, confrontação e evolução (SCHWARTZ,

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Conviver com os outros não é uma tarefa fácil, pois significa admitir que o outro é diferente, pensa e age de forma única, como cada um de nós. Confundimos, muitas vezes, pluralidade como anulação das diferenças e perdemos o foco principal da convivência humana: a riqueza da singularidade. A educação, quando aprisiona a diferença e uniformiza a ação, perde a essência do ato de educar, que é a valorizar os espaços da singularidade e da identidade humana.


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2006). Os elos que determinam o cenário são contrários e complementares, uma vez que fazem parte da realidade e da natureza humana: resistência e mudança. É próprio do homem pautar suas decisões a partir desses dois polos e, conforme a intensidade, as circunstâncias e os contextos sociais nos quais elas precisam ser tomadas, construímos um tipo de sociedade. Se imaginarmos uma sociedade, ou mesmo um agrupamento social cuja realidade demonstra que toda e qualquer mudança e ou resistência a qualquer projeto novo não oferece questionamentos, podemos classificá-la como de acomodação. Isso explica, por exemplo, ambientes sociais que resistem ao uso da tecnologia ou mesmo de um projeto inovador de melhorias. Por outro lado, é possível que esse mesmo exemplo se encaixe em um cenário de conservação quando as forças de resistências são mais fortes que as da mudança. Ao estudar esse cenário, podemos perceber que a realidade está mais próxima de um fenômeno cultural de garantia de poder. Entretanto, haverá um momento em que as mudanças ocorrerão em igual nível de força capaz de uma confrontação direta com os núcleos de resistência. A realidade aqui se configura conflituosa e pode, aos poucos, movimentar o cenário a um quadro de evolução ou, se preferirmos, de progresso quando as mudanças se sobrepõem às resistências. A imagem a seguir ilustra o que estamos propondo como construção de cenário social a partir do estudo da realidade:

Cenário social real Resistência Forte X Mança Forte

CONSERVAÇÃO

CONFRONTAÇÃO

ACOMODAÇÃO

EVOLUÇÃO

Resistência Fraca X Mudança Fraca Fonte: Schwartz, 2006. (Adaptado).

Mudança Forte X Resistência Fraca

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Resistência Forte X Mudança Fraca


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Esse quadro demonstra um ciclo em movimento, ou seja, não há um processo linear e, se você reparar, todas essas forças acabam por encontrar seus opostos bem próximos. Isso posto, podemos afirmar que, entre um cenário de evolução e conservação, há uma certa fronteira a ser considerada se, por exemplo, um projeto de mudança forte se tornar, com o tempo, uma resistência forte. O mesmo se aplica aos outros cenários. A intenção é mostrar que, quanto mais eu me aproprio da realidade, mais eu compreendo sua complexidade em interpretá-la, basta tomar como exemplo os processos migratórios de um núcleo populacional em grande escala para uma determinada sociedade. No início, há toda uma apreensão e mesmo “desconforto social”, pois é outra cultura, costume, tradições e normas que se introduzem àquela existente. O processo de aculturação é lento e, na maioria das vezes, turbulento e conflituoso. Somente o tempo se encarrega de assimilar as culturas e transformar o ambiente social.

Podemos recordar a chamada invasão bárbara ocorrida no século V quando da entrada de outras civilizações ao Império Romano. Os romanos, preocupados com tal invasão, se refugiaram nas regiões afastadas do império. Com o tempo, ano 1000, não podemos mais considerá-los invasores e bárbaros.

2.4.4 Para além da barbárie A questão que propomos neste último tópico é compreender como, na atual sociedade, se pode superar a barbárie civilizatória diante da violência que se tornou um espetáculo social. A realidade de um mundo conhecido como pós-moderno em que a tecnologia, a estética e a miséria convivem simultaneamente pode oferecer subsídios a uma interpretação antropológica de nosso contexto social. Superar os desafios de uma sociedade globalizada e competitiva gera fortes indícios a uma análise para além da barbárie. Para auxiliar nessa nossa análise, partimos do pressuposto introduzido por Geertz (2013, p. 14) de que “[...] produtos significativos da imaginação humana [...] são testemunhos igualmente poderosos da crença reconfortante de que somos todos iguais e da desconfiança preocupante de que não somos”. Para esse autor, é possível criar outra interface à antropologia, dando a ela o caráter hermenêutico, ou seja, de interpretação dos fatos em sua busca pelo entendimento do que é próprio da cultura. Se quisermos superar a barbárie enquanto condição de natureza humana, precisamos nos debruçar no estudo da civilização em busca de uma leitura perspectivista da realidade na qual estamos inseridos.


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Ler o mundo sob um determinado ponto de vista capaz de se pôr no lugar do outro é abrir espaços para compreensão do mundo. Nos passos de Geertz (2013), significaria ser capaz de fazer a experiência do passado e dela aprofundar os conceitos inerentes àquela civilização humana e fazer as devidas conexões interpretativas para o contexto do presente. Nossas ações, na maioria das vezes, partem do senso comum que, por sua vez, são frutos da tradição oral e escrita. Quando nos deparamos com um fato repetidamente, ou mesmo com a rotina diária, deixamos de olhar para outras possibilidades de respostas e nos condicionamos às respostas já estabelecidas. Isso significa que, de tanto repetir o mesmo caminho todos os dias, perdemos a capacidade de olhar para o novo. O caminho interpretativo da realidade nos faz buscar outras respostas para o contexto atual e nisso consiste o papel das instituições de ensino: reconverter o olhar. Não se trata somente de pensar o cotidiano, o tempo presente, mas de sobreviver ao esquecimento do passado e rememorar a tradição como um caminho para interpretar melhor o presente. Não se trata de se fixar e viver o passado, mas reinventar o presente. A barbárie não é apenas uma situação, um contexto de violência, uma transgressão ao outro, mas um estado permanente de violência à herança e ao legado do passado. Para além da barbárie existe sempre o eu, o outro e o mundo que precisa constantemente ser revisitado, interpretado e superado. O contexto apresentado no final do tópico anterior pode servir de base para amarrarmos os conceitos até agora propostos: cultura, civilização e barbárie. Qualquer que seja a base teórica que sustente o argumento antropológico (evolucionista, relativista, hermenêutico, cultural, filosófico), é sobre e do homem que estamos tratando. Nesse sentido, somos frutos da história da convivência social em toda a sua amplitude: cultural, econômica, política, religiosa. Por isso mesmo se torna imprescindível pensar a natureza humana como pressuposto para entender a dinâmica da vida social. Se a cultura exige cuidado, preservação e memória, cabe à educação o papel informativo e formativo das gerações presentes e futuras.


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3 O ser humano e sua relação com a sociedade O ser humano necessita da convivência com o outro para se realizar enquanto pessoa. Não há, principalmente neste mundo globalizado, qualquer possibilidade de isolamento social, pois, mesmo quando experimentamos a solidão, estamos na companhia dos outros. Você, certamente, já vivenciou a experiência de buscar um lugar para pensar sobre o sentido da sua vida. Imaginou estar sozinho, mas na verdade, você o tempo todo esteve com seu pensamento ligado às pessoas que a cercam. Este momento revela que não conseguimos nos desligar do mundo, das pessoas. Estamos ligados e interligados uns com os outros, por isso que o sentido e significado da descoberta de si, do outro e do mundo se dá nos processos de socialização do ser humano. Viver essa dimensão do coletivo pressupõe conhecer a realidade da sociedade, sua forma de se organizar e de se estruturar, do complexo agir humano e de como ele reage aos fenômenos sociais. A partir dessa estrutura conceitual, é possível começar a entender por que necessitamos dos símbolos e como eles nos identificam com uma nação, crença, tradição e, igualmente, um produto. Para buscar dar sentido a toda essa complexidade humana, a sociedade depende de um sistema que abarque todos esses elementos e seja capaz de formar sujeitos sociais conscientes de si e do outro. A Antropologia, como a ciência que estuda o homem, estuda também esse percurso traçado pela humanidade e sinaliza aspectos importantes que podem auxiliar o processo educativo de inserção dele na sociedade.

3.1 Conhecendo a sociedade Nesta primeira parte de nosso estudo, apontamos alguns traços que definem a construção e constituição da sociedade com o objetivo de ratificar a importância dos agrupamentos sociais como parte constitutiva do homem. Enquanto indivíduo dotado de instinto e razão e para responder à complexidade das relações consigo mesmo, com os outros e o mundo, há uma necessidade de organizar as estruturas da sociedade visando ao bem comum e como resposta aos fenômenos sociais próprios da natureza coletiva do homem.

3.1.1 A sociedade e os indivíduos Com base nos escritos de Norbert Elias sobre A Sociedade dos Indivíduos (1994), traçaremos alguns conceitos fundamentais para o campo antropológico levando-se em conta a necessidade de se pensar as relações sociais estabelecidas entre os homens enquanto parte de sua condição de natureza.


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Os estudos sobre o indivíduo são bastante amplos e em perspectivas distintas no campo da ciência: psicologia, sociologia, filosofia e a antropologia são alguns exemplos dessas pesquisas. O importante é considerar que todas elas partem do mesmo pressuposto: não é possível entender a sociedade sem aprofundar a presença singular do indivíduo. Para Castro (2002, p. 300), “[...] a sociedade é um artifício resultante da adesão consensual dos indivíduos, guiados racionalmente pelo interesse, a um conjunto de normas convencionais”. Ao admitir a “adesão consensual” como intrinsecamente ligada à construção social, encontramos razões suficientes para crer que a sociedade é uma necessidade de relação do indivíduo consigo mesmo, com o mundo e com os outros. Por mais complexo que seja o resultado dessa interação, é dela que o indivíduo se nutre para viver sua existência singular.

3.1.2 As estruturas sociais Por estrutura social entendemos a formação de uma rede de indivíduos reunidos em função de interesses comuns e validados direta ou indiretamente por outros grupos sociais. Dessa forma, toda e qualquer sociedade organizada pressupõe uma estrutura normativa, simbólica, cultural e econômica e que é, na maioria das vezes, base de sustentação dos argumentos de classificação e status social. Na sociedade globalizada e com viés econômico-capitalista, é comum uma estrutura social baseada nas condições sociais de acesso aos bens de consumo, por exemplo. Essa forma de classificar os indivíduos não é uma invenção dos tempos contemporâneos, mas já existe desde os primórdios da civilização. No entanto, com o passar do tempo, assumiu um caráter econômico, como apresentado na teoria funcional-estruturalista de Radcliffe-Brown (2013) quando relaciona as condições sociais aos padrões de comportamento esperados por aquele grupo de pertença. Nesse processo de agrupamento, há sempre um modo de classificar os modelos e padrões sociais nos quais o indivíduo está inserido. A partir desse pressuposto, podemos deduzir que há uma estrutura posicional que determina, para cada agrupamento

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A necessária relação existente entre os indivíduos marca a territorialidade de um agrupamento social. Nesse sentido, como defende Elias (1994), não há como conceber uma definição de sociedade como sendo homogênea e uniforme, pois os fatores culturais, econômicos e políticos interferem e determinam diretamente na concepção e na forma como os indivíduos se comportam nos ambientes e organizações sociais.


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social, o lugar no qual os indivíduos se situam no contexto da sociedade. Para o antropólogo (RADCLIFFE-BROWN, 2013), é preciso que tudo esteja harmoniosamente interligado de tal maneira que seja possível identificar a participação e a contribuição do indivíduo na manutenção e/ou transformação das estruturas sociais.

“Alguns antropólogos empregam o termo ‘estrutura social’ para designar apenas grupos sociais duráveis, como nações, tribos e clãs, que mantenham continuidade e identidade como grupos individuais, a despeito de transformações em seu seio” (RADCLIFFE-BROWN, 2013, p. 172).

É possível, ao longo da história, compreender como se configuraram essas estruturas sociais e quais os grandes desafios para modificá-las. O exemplo mais comum se deu no período iluminista francês (século XVII/XVIII) quando do quadro social denominado três estados (rei, clero/nobreza e os outros). A Revolução Francesa significou, no ano de 1789, a tentativa de romper com essa estrutura, o que na prática se transformou, mais tarde, nos agrupamentos sociais de classes: alta, média e baixa. Esse fato, agregado ao movimento industrial na Inglaterra, serve para tentar entender e explicar a complexa relação social que se configura no interior das estruturas e organizações sociais contemporâneas.

3.1.3 A complexa relação social As relações sociais sempre serão objetos de estudo por parte de antropólogos, historiadores e cientistas políticos preocupados e focados em entender como os homens se relacionam em sociedade. O homem é dotado de razão e instinto que o constituem como um animal social. Enquanto razão, ele entende e compreende a necessidade de viver em relação com os outros homens, mas, enquanto animalidade, é o instinto quem o conduz a satisfazer suas necessidades de sobrevivência, independentemente dos outros. Marx, e Engels (2012) no século XIX, identificaram esse processo como “luta de classes”, como, por exemplo, o desejo do empregado de buscar a condição de patrão e todas as suas vantagens sociais e, por outro lado, a certeza do patrão em jamais pensar seu oposto, ou seja, se ver na situação do empregado. Por mais comum que possa parecer essa comparação, Marx e Engels (2012) levantam o tema para persuadir o leitor a pensar sobre a realidade e como ela provoca a consciência social. Isso nos remete à complexidade da própria relação entre as pessoas que se identificam a partir de um determinado lugar social ao qual pertencem e todo e qualquer comportamento que dele deriva. Muitas vezes, o que nos define não é o que pensamos ou o simples espaço social que ocupamos, mas o como agimos em determinadas situações.


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Quando nos permitimos entender os outros, colocando-nos em seu lugar e assumindo seu ponto de vista, abrimos a possibilidade inaugural de um diálogo mais profundo para ressignificar nossa identidade, e o que parece complexo se torna complementar. Nessa direção, vencer o desafio do preconceito é uma tarefa necessária para aproximar e romper as enormes distâncias que existem entre as diversas classes sociais.

3.1.4 Os fenômenos sociais Fomos educados a definir o fenômeno como “algo extraordinário”, que “sai dos padrões da normalidade”. A questão passa a ser entender esse “extraordinário” como algo próprio do ciclo da vida e, principalmente, focado na própria natureza biológica que pressupõe um ordenamento: nascer, crescer, amadurecer e morrer. Tal como um círculo vicioso, esse fato ocorre a cada dia, pois, neste exato instante, alguém está morrendo e nascendo ao mesmo tempo. Parece não ter nada de extraordinário nesse ciclo biológico da natureza. O fenômeno, nesse sentido, passa a ser entender como essa natureza se relaciona com seu entorno e como as descobertas advindas desse ciclo podem instaurar um processo ininterrupto de “coisas novas” que reordenam a vida no mundo. Se quisermos avançar, a própria convivência é um grande fenômeno, pois se trata de se agrupar com os “diferentes de nós” para se tornar e constituir uma sociedade. Todo fato social passa a ser algo fascinante e extraordinário, portanto, um fenômeno. Dessa forma, podemos afirmar que o fenômeno social é toda e qualquer interação vivenciada pelo homem na relação consigo mesmo, com os outros e o mundo. Além desse conceito, acrescenta-se o fato de que sua condição de natureza exige um viver em sociedade mediado por algum tipo de instituição constituída: família, escola, igreja, Estado, uma vez que não há como lidar com a hipótese do isolamento social enquanto fundamento da natureza humana. Esse fenômeno social pode ser entendido sempre que os indivíduos entram em relação com os outros pois esta constitui a realidade por meio da qual a existência social se torna parte integrante do mundo. Compreender esse processo significa fazer parte do mundo fenomênico que pressupõe a singularidade própria do indivíduo e sua necessidade de viver a pluralidade que o constitui e fundamenta a sociedade. Poderíamos elencar uma série de fenômenos que fazem parte do cotidiano das relações do homem com o mundo e que constituem algum paradoxo: saúde e doença, paz e guerra, fartura e fome, riqueza e pobreza, solidariedade e indiferença, e assim sucessivamente. Convivemos, simultaneamente, com o ordinário e o extraordinário.


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A partir dessa constatação, é possível apontar algumas conclusões surgidas ao longo desta unidade de aprendizagem, cujo objetivo principal é iniciar o processo de conhecimento da sociedade na qual estamos inseridos. Percebemos que os indivíduos, enquanto singulares, se inserem no mundo da vida em sociedade, a qual cumpre seu papel de agregadora desses valores, tornando possível viver a pluralidade. Como parte e função dessa sociedade, tornou-se imprescindível organizar e estruturar as instituições e reunir os indivíduos, quer por área de interesse ou como consequência de uma ação política e econômica. Esse processo criou grupos cujas condições sociais acabaram por segregar as pessoas e normatizar padrões de comportamento próprios para cada classe social. Nesse sentido, a relação entre as pessoas, a sociedade e o mundo se tornou mais complexa, fazendo surgir lutas e conflitos tanto do interior como também entre as classes sociais. Essa complexidade, muitas vezes entendida pelo viés negativo por conta de resultados de intolerância entre as pessoas, tornou possível aprofundar melhor a própria relação que se dá no “entre” os homens.

3.2 A sociedade dos símbolos e do consumo A vida é carregada de símbolos, ritos e costumes herdados ao longo da tradição e convivência humana. A riqueza do passado é parte integrante desse complexo mundo em que somos visitantes ilustres. Por onde passamos deixamos marcas, símbolos e sinais de nossa presença. Essa prática tem apontado alguns paradoxos sociais com os quais aprendemos a lidar e a conviver na relação com o atual contexto globalizado, em que a estética e a ética parecem viver em “universos paralelos”. A desigualdade social, trouxe o efêmero como marca registrada da sociedade do consumo e recolocou o simbólico como parte integrante da vida moderna. Nesse sentido, torna-se imprescindível o papel da educação como um instrumento capaz de reeducar o homem para viver em sociedade.

3.2.1 Os paradoxos sociais Ao pensar em sociedade, devemos ter em mente uma teia de relações sociais que podem ser compreendidas de acordo com as características dos agrupamentos humanos. Dada a multiplicidade e intensidade com que essas relações ocorrem, a existência de paradoxos é uma constante realidade. A condição de singularidade, própria da natureza humana, faz com que, no contato com o outro, enquanto indivíduo igualmente único e diferente, surjam possibilidades de convergências e divergências. Essas ações,


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a princípio paradoxais, estão presentes ao longo da tradição e configuram o cenário enriquecedor e plural da sociedade contemporânea.

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Nas ações cotidianas, deparamo-nos com o fenômeno da exclusão social como fruto de um desses paradoxos comuns à modernidade. Para Eagleton (2011), é uma realidade comum nos grandes centros urbanos a exclusão de seus grupos daqueles que não estão em conformidade com os padrões culturais impostos pela sociedade. Parte significativa dos preconceitos sociais é herdeira desse tipo de comportamento cujas raízes são históricas. Em uma visão antropológica interpretativa, é preciso que esses paradoxos sejam acompanhados de um processo educativo capaz de aculturar as diferenças sociais e étnicas. Hoje há uma tendência cada vez mais presente de firmar políticas públicas afirmativas como um projeto de respeito à dignidade humana. Nesse sentido, é preciso perceber essas políticas enquanto ferramentas que visam a resgatar a identidade e não confundir pluralidade com anulação das diferenças, uma vez que é a soma da riqueza própria da individualidade e singularidade de cada povo.

3.2.2 A sociedade do efêmero O filósofo e sociólogo Gilles Lipovetsky (2005) tem um longo estudo sobre a sociedade contemporânea que ele classificou como pertencente à “era do vazio”. O homem contemporâneo, segundo o filósofo francês, vive em uma sociedade que cada vez mais necessita viver da aparência e usufruir de todo o bem de consumo que estiver dentro e fora de seu alcance. Observe, por exemplo, as constantes idas e vindas de um shopping, o estilo de moda no qual estamos inseridos e o quanto de supérfluo acumulamos em nossas casas. Para ele, a marca dessa modernidade é o individualismo, que acaba por reduzir a vida humana a uma desigualdade e por criar situações de intolerância e indiferença. O estilo de vida, marcado pelo consumo e da aparência, tornou a humanidade mais insegura no que diz respeito a valorização das relações sociais mais profundas. A sociabilidade cedeu espaço à desconfiança, ao medo que, muitas vezes, tende a gerar violência. As disputas cada vez mais acirradas pelo lugar no mercado não se traduzem somente em um complexo das experiências acumuladas ao longo do tempo, mas como uma feroz luta pela sobrevivência.


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A crescente tendência à homogeneização das ações minimizou os gestos de solidariedade e de valorização do outro como pessoa em sua individualidade. A cultura do mercado, cada vez mais sofisticada e inovadora, seleciona os grupos e torna o indivíduo uma mercadoria de troca. Os shoppings passam a ser um espaço não apenas do consumo, mas do encontro e das diferenciações sociais. Podemos notar, por exemplo, que neste espaço não se permite pessoas sem uma roupa adequada ou mesmo pedintes. Com isso, fica mais evidente o quanto o indivíduo é também descartável. No entanto, destaca-se, no campo da antropologia, a possibilidade de se pensar em estratégias de superação do individualismo consumista, tendo como objetivo uma proposta de alteridade e de busca de sentido a partir da capacidade que o homem tem de inovar e de ressignificar suas ações.

3.2.3 O significado dos símbolos Os registros materiais e imateriais do passado carregam em si símbolos que remetem aos sentidos dados pelos grupos sociais ao conjunto de ações, sentimentos e valores de um determinado tempo histórico. Dessa maneira, esses símbolos podem ser interpretados como sinais da presença do homem em sociedade. Esse legado é representativo para entender como a memória social e coletiva se refaz ao longo de todo o tempo presente. Marilena Chauí (2002) definiu esse movimento como sendo um semióforo, ou seja, um conjunto de símbolos carregados de significados e que, de alguma forma, serve para criar e forjar uma identidade. Se olharmos para o presente, perceberemos o quanto somos invadidos por esses símbolos e como somos induzidos a pensar e agir em conformidade com as representações postas a público. Por exemplo, quando ligamos a televisão, os anúncios estão presentes de forma direta e indireta em cada programa a que assistimos, e neles estão embutidos valores relacionados com a forma que devemos ser e nos relacionar, a maneira como devemos nos vestir, os alimentos que devemos ingerir, entre tantas outras coisas.

Para cada nação ou grupo, há um símbolo por trás para trazer à memória coletiva o lugar da pertença. Do hino da nação ao de um clube, da bandeira aos adereços, tudo é produzido de forma a identificar o sujeito e sua tribo e, muitas vezes, anular outras identidades.

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Podemos afirmar que essas representações simbólicas se agrupam a uma espécie de multiculturalismo, em que os semióforos garantem a singularidade de cada um dos movimentos de pertença identitária. Tudo em nós é representado por símbolo cultural criado a partir de uma matriz referencial conceitual da memória coletiva que agrega valor, sentimento, rituais, vestimentas, alimentação e escolhas. Este é o cenário social que invade diariamente nosso espaço privado, em que as propagandas nos seduzem a viver o coletivo da nação e, ao mesmo tempo, nos induzem ao consumo e ao individualismo. Por isso, torna-se imprescindível pensar a educação como um projeto mais amplo na formação crítica do cidadão que seja capaz de resgatar os valores fundamentais da vida em sociedade.

Multiculturalismo pode ser entendido como um “[...] movimento legítimo de reivindicação dos grupos culturais dominados no interior daqueles países para terem suas formas culturais reconhecidas e representadas na cultura nacional” (SILVA, 2015, p. 85).

3.2.4 Por uma educação de valores Pensar um projeto de educação no qual o indivíduo possa se emancipar e se tornar sujeito de sua própria ação afirmativa da vida parece ser um desafio já perseguido por vários filósofos e educadores. No atual contexto capitalista em que estamos inseridos, é cada vez mais importante tratar das questões que envolvem os valores fundamentais da vida em sociedade: solidariedade, respeito, autoridade, dignidade são alguns dos tantos conceitos que precisam ser vivenciados e assimilados pelos que passam pelos bancos escolares. A educação cumpre seu papel enquanto formadora de cidadãos capazes de ressignificar a vida em sociedade. Os padrões normativos, por vezes paradoxais, precisam ser reavaliados à luz da tradição, cabendo à educação a revitalização do presente. Com isso, é possível pensar os aspectos culturais de uma identidade que prime pelo social e coletivo para fazer frente às propostas sedutoras do individualismo. Sempre que se projeta uma educação para valores, há certa desconfiança sobre qual o sentido e o tratamento a ser dado para uma sociedade da informação e da proximidade das distâncias. Tudo se move a um simples toque na tela de um dispositivo móvel: do olhar ao encontro das maravilhas, de um universo infinito a uma simples compra de um produto.


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O dinamismo social e a indiferença podem servir de barreiras a um projeto inovador de valores que pressupõe respeito à diversidade cultural, étnica, religiosa e política. Não se trata de criar novos símbolos ou semióforos para projetar uma educação emancipadora que consiga aliar os dois polos divergentes e complementares: tradição e modernidade. Na tradição, encontramos sinais visíveis de valores a serem ressignificados e, na modernidade, a emancipação necessária para que o indivíduo possa, com criticidade, atuar na sociedade como cidadão capaz de conviver consigo mesmo, com os outros e com o mundo.

3.3 A importância do sagrado na configuração social Ao pensar um projeto para a sociedade contemporânea e tendo como matriz o viés antropológico, não se pode deixar de tratar da importância do sagrado enquanto indicador de um processo civilizatório do homem. Nos remotos tempos primitivos, o mito era uma explicação razoável a tudo quanto não se podia explicar. Toda configuração social tinha seu suporte no sagrado como condição da saída da barbárie para encontrar motivos para viver o coletivo. O sagrado configura um dos elementos necessários à educação da sociedade cada vez mais marcada por ritos e símbolos.

3.3.1 O sentido do sagrado Ao remontar o contexto de vida dos homens primitivos, o sagrado ocupava um lugar privilegiado e cumpria uma função cultural e social imprescindível: encontrar na natureza a harmonia que justificava a existência da vida. Quanto mais desafiadora era a vida, mais necessidade de encontrar o sentido do sagrado apaziguador da alma. Durkheim (1996), ao estudar o fenômeno social da religião, chega a afirmar que haveria uma forma de separar o sagrado do profano, da vida cotidiana, e assim determinar a existência de dois mundos distintos. Há uma série de discussões e debates a respeito da natureza do sagrado e da distância que se toma quando se trata da razão e da ciência é natural que essa preocupação era inexistente às primeiras civilizações. O sagrado cumpria seu papel e, ao mesmo tempo, mantinha em pauta as questões fundamentais da existência: “quem sou eu... de onde vim... para onde vou”. O século XV, início do projeto da modernidade, se tornou emblemático para essa relação entre fé e razão. A crença no sobrenatural como explicação para o mundo fenomênico cedeu lugar para o racionalismo proposto por Descartes. A ciência moderna encontra, portanto, uma razão que a torna capaz de explicar e unificar a verdade. Esse modelo de explicação do mundo e da existência humana por


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meio do método (clareza, distinção e objetividade) torna viável, para os padrões morais, a busca da certeza de que somente pelo uso da razão o homem pode compreender a si mesmo e a Deus.

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Rabino lê o Torá, nome dado aos cinco primeiros livros do Tanakn, que traz o texto central do judaísmo

3.3.2 Para além dos mitos e ritos Todo estudo sobre o sagrado envolve mitos e ritos. A sociedade é movida por símbolos cuja função é identificar o indivíduo em um determinado grupo social. A religião pode ser considerada como parte de um desses agrupamentos em que o indivíduo faz sua escolha de viver a experiência do sagrado. Para cada crença há um rito a ser seguido, um valor a ser defendido e um sentido para sua pertença naquela comunidade. Cada ritual é uma representação singular à crença daqueles que participam ativamente das comunidades religiosas. Há uma série de ritos praticados ao longo da trajetória da humanidade. Esses ritos sobrevivem ao tempo e, em alguns casos, se adaptam à realidade local. Não se trata, nesse campo específico da crença, do debate entre fé e ciência. O objeto de nosso estudo antropológico é justamente analisar esse aspecto comum à vida em sociedade e trabalhar no sentido de auxiliar os homens a compreenderem cada vez mais o sentido e o significado que os mitos representaram para as sociedades primitivas. A partir desse estudo, compreendemos as razões pelas quais os homens se agrupam em uma comunidade religiosa e a simbologia por trás de cada gesto.


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3.3.3 Educar para viver em sociedade O mundo, aparentemente, encontra um novo eixo: a razão soberana. Os padrões morais são divididos em dois grandes grupos interpretativos da realidade humana: a luta entre o bom e o mau, o corpo e a alma, o certo e o errado etc. Educar para viver em sociedade passa a ser uma necessidade de revitalização dos valores fundamentais, principalmente no que diz respeito às diversas manifestações de crenças e ritos religiosos presentes nas comunidades sociais. É cada vez mais necessário apostar na tolerância e no respeito à diversidade religiosa como fruto de uma convivência saudável entre os homens. Para tanto, é preciso uma educação cada vez mais dialógica para evitar os extremismos entre a ciência e a fé.

3.3.4 Dos símbolos aos ritos No plano simbólico, há sempre uma explicação para os rituais sagrados no que tange à raiz religiosa. As tribos indígenas, por exemplo, se utilizavam da própria natureza para servir de base para seus ritos de cura, proteção e salvação. Toda cultura baseada no sagrado tem como pressuposto essas três dimensões que a diferencia: além da fé, os símbolos e o ritual. Na origem estavam os mitos, principalmente aqueles envolvendo a sociedade grega, em que os deuses do Olímpio se dignavam a visitar e proteger os humanos. Nesse período, o que importava era buscar uma forma humana de explicar o mistério do mundo. Todo esse contexto mostra o quanto os homens necessitam se reportar aos mitos e ritos na busca de sentido e significado ao que não se pode explicar quando se deparam com os fenômenos ligados a existências. Nesse sentido, o passado simbólico dos mitos e ritos é o legado no qual as instituições se firmam como um instrumento capaz de garantir a sobrevivência dos próprios indivíduos.

3.4 A contribuição da antropologia na construção da sociedade O homem e sua relação consigo mesmo, com os outros e com o mundo é e continuará sendo o objeto principal da ciência antropológica. Enquanto ser no mundo, é sempre relacional, plural e diverso. A necessidade de se perceber como parte de um processo inacabado é que torna a antropologia dinâmica e capaz de dialogar com as diversas ciências e, ao mesmo tempo, de contribuir para compreender as diversas matrizes teóricas que fundamentam a vida do homem em sociedade.


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3.4.1 A evolução da humanidade Um dos campos importantes para os estudos antropológicos está centrado no conhecimento do processo de evolução da humanidade. A base de sustentação de suas pesquisas está voltada para o aspecto físico, mas, sobretudo, para o processo de aculturação e socialização do homem. A longa trajetória desde os primeiros fósseis primitivos do homos até sua inserção na contemporaneidade é fonte inesgotável de pesquisa. A seguir, imagens de crânios fósseis do Homo Neandertal, Antecessor, Sapiens e Erectus.

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Evolução humana

Nesse percurso da evolução biológica do homem, a antropologia centra suas pesquisas na descoberta dos vestígios humanos encontrados nos diversos fósseis espalhados nos continentes como tentativa de refazer os passos da humanidade. Essa vertente da pesquisa serve como ponto de partida para entender o quanto a aculturação do homem a seu ambiente social se constitui como um processo dinâmico e inacabado. Isso significa afirmar que a nossa espécie se adaptou ao mundo já estabelecido e, por meio das nossas ações e relações, o transformamos para as futuras gerações. Para Arendt (2005), este é o processo de natalidade, próprio e específico do homem em contato com o mundo. No centro das discussões antropológicas, há diversas teorias que explicam esse processo de evolução do homem. A mais debatida é a do evolucionismo antropológico, pautada no método comparativo entre as sociedades humanas e seu processo evolutivo. Nessa teoria, a sociedade se desenvolve de forma linear, o que permite afirmar a evolução do homem comparando-o com as características anteriores. Para o antropólogo brasileiro Roberto DaMatta (1987), um dos críticos dessa teoria, há sempre uma tentação de se cair nas generalizações esquecendo o contexto social e cultural em que o homem está inserido.


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Como a antropologia não é a única a ter o homem como seu objeto central de pesquisa, ela pode e deve ser considerada interdisciplinar (ou, se preferir, transdisciplinar), pois necessita do apoio da arqueologia, da psicologia, da história, da filosofia para melhor compreender essas teorias.

3.4.2 O homem e a sociedade Ao definir a sociedade como um conjunto de indivíduos que buscam se agrupar por interesses comuns, entendemos ser este um movimento de alta complexidade, justamente por conta de o homem ser um indivíduo singular e movido por racionalidade e animalidade. Ela é constituída por pelo menos três agrupamentos conceituais que se interligam: o indivíduo, a tradição e as instituições. Com relação ao indivíduo, como já mencionado, é a singularidade e sua unicidade que interessa e, ao se representar em sociedade, a pluralidade se faz presente, levando-nos ao estudo profundo dos fenômenos que envolvem os indivíduos. Para entender esse processo dinâmico, reportamos à soma das singularidades como uma riqueza conceitual própria da sociedade que se constrói permanentemente à luz da tradição renovada do passado. Ao fazer parte de uma estrutura social, o indivíduo acaba por agir em conformidade aos padrões coletivos do agrupamento do qual faz parte. Muitas vezes, essa ação colabora com a manutenção dessa estrutura social, dificultando os processos de mudança. Nesse sentido, a antropologia acaba por se agrupar às outras ciências, principalmente em sua dimensão social, na busca de uma explicação para os movimentos e o dinamismo de rupturas ou continuidade das estruturas sociais.

3.4.3 As relações interpessoais Essa complexidade, própria das relações interpessoais e grupais, nos conduz, no entender de Oliveira (1976), a uma identidade contrastiva social justamente por estarmos em constante movimento de oposição, não somente do ponto de vista das diferenciações econômicas, mas também culturais e sociais. Esse tipo de atitude se torna mais visível quando nos deparamos com algum tipo de comportamento rotular de preconceito: racismo, xenofobismo, homofobismo, fundamentalismo e outros. A sociedade abriu espaço para novas conquistas, principalmente por meio do que ficou conhecido como políticas afirmativas de direitos, ou seja, a garantia jurídica de igualdade tanto no campo de gênero, etnias como no que diz respeito às condições sociais de vida. Tanto do ponto de vista biológico como cultural e organizacional, os homens necessitam se agrupar para satisfazer tanto seus próprios interesses como também os


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interesses do coletivo. Há uma espécie de simbiose natural entre os agrupamentos sociais de troca e de sustento às necessidades básicas e fundamentais da vida humana. Isso ocorre tanto no campo objetivo como na intersubjetividade social. Para Maturana (2001), é necessário ao homem se compreender no mundo com os outros, o que significa afirmar que as relações interpessoais não se dão no campo da razão, mas da emoção. Ela é a responsável pela ação estabelecida no “entre” os homens. Não somos somente razão, mas um animal que necessita do instinto para sobreviver e da emoção para viver.

3.4.4 Por uma educação da humanidade A questão que envolve a sociedade contemporânea e sua relação com a educação e, especificamente, a escola enquanto espaço institucionalizado, tem ocupado um considerável espaço de reflexão tanto do ponto de vista investigativo-formal quanto nas rodas e círculos comuns das redes sociais. A expectativa da chegada do século XXI foi cercada, como nos ensina a história, de uma série de mitos e incertezas e, por isso mesmo, de previsões e análises sobre o futuro da sociedade e das instituições. Os anos 1990 marcaram a história da humanidade em todos os seus níveis, desde o ideológico (a queda do muro de Berlim) até o econômico, instaurando um processo conhecido e rotulado como globalização. As barreiras e as fronteiras ficaram tênues demais e, fatalmente, as distâncias diminuíram e as possibilidades de um novo conceito de mundo, de verdade, de expectativas de vida aumentaram. A educação, neste novo século, exige repensar não apenas o papel da escola, mas da sociedade e de seus padrões normativos e culturais diante dos conhecidos pressupostos de uma justiça igualitária, por isso, mesmo “[...] as instituições educacionais democráticas têm um desafio enorme no sentido de fortalecer a cultura dos cidadãos” (VIRGINIO, 2012, p. 193). Nessa direção, torna-se importante reforçar a convicção de que a sociedade da informação/conhecimento exige novas competências por parte tanto dos profissionais quanto das instituições e, no caso da escola, repensar o processo ensino-aprendizagem e adaptá-la a esse novo perfil. Pensar uma ação educativa que seja capaz de dialogar com essa sociedade cada vez mais complexa exige criatividade, interatividade, flexibilidade e aprendizado contínuo. Diante deste novo cenário midiático, globalizado, a pluralidade estará cada vez mais exposta, exigindo, assim, uma educação que dê conta das complexidades oriundas de um mundo multicultural.


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Referências ARENDT, H. Entre o Passado e o Futuro. São Paulo: Perspectiva, 2005. CASTRO, E. V. A Inconstância da Alma Selvagem e outros Ensaios de Antropologia. São Paulo: Cosac Naify, 2002. CHAUÍ, M. Brasil: mito fundador e sociedade autoritária. 3. ed. São Paulo: Perseu Abramo, 2002. DAMATTA, R. Relativizando: uma introdução à Antropologia Social. Rio de Janeiro: Rocco, 1987. DURKHEIM, È. As Formas Elementares da Vida Religiosa. São Paulo: Martins Fontes, 1996. EAGLETON, T. A Ideia de Cultura. São Paulo: Unesp, 2011. ELIAS, N. A Sociedade dos Indivíduos. Rio de Janeiro: Zahar, 1994. HALL, S. A Identidade Cultural na Pós-Modernidade. Rio de Janeiro: DP&M A, 1999. LÉVI-STRAUSS, C. Mito e Significado. Lisboa: Edições 70, 2007. LIPOVESTKY, G. A Era do Vazio: ensaios sobre o individualismo contemporâneo. São Paulo: Manole, 2005. ______. O Império do Efêmero: a moda e seu destino nas sociedades modernas. São Paulo: Cia. das Letras, 2014. LOVISOLO, H. Antropologia e educação na sociedade complexa. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, Brasília, n. 65, p. 56-69, jan./abr. 1984. MARCONI, M. A.; PRESOTTO, Z. M. Antropologia: uma introdução. São Paulo: Atlas, 2014. MARX, Karl & ENGELS, Friedrich. O Manifesto Comunista. São Paulo: Penguin e Cia das Letras, 2012. MATURANA, H. Emoções e Linguagem na Educação e na Política. Belo Horizonte: UFMG, 2001. OLIVEIRA, R. C. Identidade, Etnia e Estrutura Social. São Paulo: Biblioteca Pioneira de Ciências Sociais, 1976. RADCLIFFE-BROWN, A. R. Estrutura e Função na Sociedade Primitiva. 2. ed. Rio de Janeiro: Vozes, 2013. RAMPAZZO, L. Antropologia: Religiões e Valores Cristãos. São Paulo: Paulus, 2014. SILVA, T. T. Documentos e Identidades: uma introdução às teorias do currículo. Belo Horizonte: Autêntica, 2015. SPENCER, H. The Man versus the State. Caldwell, Idalho: Caxton, 1960.


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4 A sociedade e a cultura: desafios e perspectivas educativas A sociedade é entendida a partir de um processo de interações entre os indivíduos, sendo assim, partimos do princípio de que há uma cultura que a alimenta e que esta é fruto de um legado herdado na tradição. Não é possível determinar um tipo de sociedade sem vinculá-la à cultura. Entre as ciências que se preocupam em aprofundar essa dinâmica social e cultural está a Antropologia. Refazer o trajeto civilizatório por onde o homem estabeleceu suas raízes é descobrir um ordenamento lógico e conceitual de sua presença no mundo. A antropologia busca, por meio de suas pesquisas, analisar e explicar os significados e sentidos das relações estabelecidas entre os homens vivendo em sociedade. Todo esse processo contribui para o projeto de humanização da sociedade que, no mundo contemporâneo, carece de valores, tais como o da ética e do respeito à diversidade presente nas interações humanas. Nesta unidade de aprendizagem, objetiva-se, sobretudo, analisar e compreender os fenômenos culturais, seus desdobramentos e impactos na formação ética da sociedade contemporânea.

4.1 A antropologia em sua dimensão cultural A Antropologia, enquanto ciência que estuda o homem, pode ser dividida em diversos campos do saber, como, por exemplo: político, social, econômico, filosófico e cultural. Nesta primeira parte de nosso estudo, trataremos especificamente do aspecto que envolve a cultura enquanto um movimento de aproximação do homem com o legado do passado e sua adaptação ao presente. Entendemos que o ser humano é capaz de se transformar e se adaptar aos padrões culturais da realidade em que está inserido devido ao caráter dinâmico das relações sociais. Nesse contexto, as instituições como a família e a escola têm como atribuições a formação do indivíduo para que ele possa criar espaços sadios de relação com a diversidade e complexidade do outro. Uma vez não percebida essa responsabilidade, as instituições sociais podem contribuir para a manutenção de padrões culturais que prezem pela intolerância, pelo desrespeito e pelo preconceito para com o diferente.


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4.1.1 Antropologia e cultura

Essa visão perspectivista possibilita entender as duas dimensões existentes na vida em sociedade: diferença e alteridade. A singularidade presente em cada ser humano o torna diferente e único na vida em sociedade. Suas ações são movidas pela necessidade de satisfazer a si mesmo em busca de sobrevivência tanto material quanto espiritual. Por outro lado, o ser humano se torna um ser de abertura, de alteridade, pois entende que não é possível viver só e pode, na presença e vivência com o outro, encontrar significado e existência para sua vida pessoal e social. Quando se pensa nessa via de mão dupla (alteridade e diferença) compreende-se o sentido da pluralidade como uma riqueza única nos encontros e desencontros próprios de cada relação social. Se isso é possível compreender no plano da existência humana, igualmente se reporta à cultura. Ela também é única e singular para cada grupo social e, ao mesmo tempo, complementar. No campo da antropologia, não há possibilidade de se pensar em uma cultura superior e outra inferior; pelo contrário, classificá-las seria anular as diferenças e riquezas próprias de cada contexto e lugar social em que elas se inserem. A cultura pertence à humanidade, ou seja, é própria do homem em relação com o passado e de sua presença no mundo. Esse movimento é dinâmico e pode ser vivenciado pelo encontro entre as diferenças singulares, próprias dos indivíduos, e a alteridade como uma forma simbólica e real na qual surge a pluralidade.

Para o antropólogo Wagner Roy (2015, p. 181), cada sociedade é carregada de um poder simbólico em que “Cada um desses modos corresponde[ria] a um tipo particular de continuidade cultural, a uma concepção particular do eu, da sociedade e do mundo”.

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Podemos iniciar indagando sobre o conceito mais apropriado para Antropologia e sua interface com a cultura. Enquanto conceito clássico, a Antropologia é a ciência que estuda o homem em sua relação com a natureza, sua trajetória, costumes e tradições desde a descoberta dos fósseis primitivos até a contemporaneidade. Dada a complexidade que é o ser humano, diversos campos se abrem para um estudo mais aprofundado com o propósito de melhor compreendê-lo em seu tempo e, a partir disso, abrir perspectivas de sentido e significado para sua presença no mundo.


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4.1.2 O ser humano e a cultura Entre tantas possibilidades de entender a complexidade que é o homem, seja no aspecto psicológico, biológico ou social, há, sem dúvida, um ponto comum presente na definição clássica: ele é instinto e razão. Enquanto instinto, somos todos paixão, emoção e biologicamente marcados para sobreviver e procriar. Com a razão, aprendemos a mensurar, dominar, planejar e controlar nossos instintos de natureza. Ser humano é tudo isso, portanto, não devemos nos esquecer dessas duas dimensões e não devemos tratá-las separadamente: razão e instinto são complementares. Essa complementaridade é o pano de fundo para nos entendermos como ser social. Vivemos e dependemos da sociedade para nos sentir completos e esta, por sua vez, é sempre cultural. Do ponto de vista antropológico, fomos aos poucos criando símbolos, ritos, normas e regras para nos socializarmos. Tudo isso é cultura em sua forma clássica de identificação, compreensão e distinção dos diversos grupos surgidos ao longo da história da humanidade. A cultura é construída na relação efetiva dos homens que se servem da tradição para manter vivos os laços com o passado. Muitas vezes, restringimos o conceito a um acúmulo de experiências e conteúdos, esquecendo, dessa forma, a riqueza dos ritos simbólicos que a construiu. É preciso rememorar as tradições como forma de não se deixar levar pelo esquecimento, tal como afirmou Lyotard (1997). Toda vez que entramos em relação com os outros e com o mundo, construímos cultura e, quando esta é transmitida às gerações futuras, preservamos a riqueza da humanidade. Eagleton (2011, p. 54), em seu livro A Ideia de Cultura, nos ajuda a aproximar esses conceitos relacionados à inserção do homem na vida em sociedade (lugar de tradição e de acúmulo de conhecimento). Para o autor, “[...] a cultura pode ser aproximadamente resumida como o complexo de valores, costumes, crenças e práticas que constituem o modo de vida de um grupo específico”.

4.1.3 Educar e socializar o ser humano A ciência antropológica, como vimos, se relaciona com a cultura como forma de melhor compreender e aprofundar as relações que ocorrem no “entre” os homens. Para Arendt (2005), há uma herança que herdamos quando entramos no mundo e cabe ao homem preservá-la, transformá-la e deixar para os que virão a tarefa de manter vivo o “fio da tradição”. Nesse contexto, a educação se torna um caminho necessário e fundamental para estabelecer esse elo entre a tradição e a modernidade. Muito se tem estudado a respeito da necessidade de uma educação interdisciplinar que consiga reunir as informações e os conhecimentos adquiridos pelos diversos


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campos do saber científico. Houve uma época em que cada ciência atribuía a si o papel de detentora de um conhecimento capaz de responder a uma determinada questão do universo. O ser humano, a natureza e o mundo estavam por demais limitados a uma série de teorias que não conversavam entre si. A antropologia, sem ter a pretensão de ser a única capaz de reunir essas informações e conhecimentos, cumpre seu papel interdisciplinar, principalmente no âmbito da educação enquanto um campo de estudos dos processos de socialização do homem. Neste sentido, a antropologia se defronta com a história de cada povo, analisa o complexo social e aprofunda os traumas vividos em cada época. Quando faz esse percurso, ela induz a educação a cumprir o papel que lhe cabe de socializar o conhecimento acumulado sobre o homem e apresentar a riqueza das diferentes culturas que marcaram cada época da humanidade.

4.1.4 O espaço da diversidade Feito esse caminho de marcar o território próprio da antropologia em sua dimensão cultural e educativa, torna-se necessário aprofundar um pouco mais o sentido da relação que ocorre no “entre” os homens. O ponto de partida dessa análise é sempre a singularidade própria de cada ser humano enquanto sujeito único e capaz de agir movido pelos impulsos (instintos) e pela razão. Importante reforçar a ideia de que essas duas dimensões do ser humano o movem para viver em sociedade. Eu me constituo como pessoa social na relação com os outros. Assim, estabelecemos o espaço plural da diversidade, no qual é possível estabelecer encontros e desencontros com os outros igualmente únicos. Historicamente, este é um campo de disputa e de conflitos que são marcados pela cultura da indiferença e da intolerância. A Antropologia, como as outras ciências, busca entender os contextos culturais e históricos que deram origem aos preconceitos e às reações tão adversas que causam guerra, violência e conflitos pontuais entre as pessoas. É preciso, segundo o antropólogo Geertz (2001, p. 81), que se descubra “[...] que esses mundos e essas mentalidades alheios, em sua maioria, não estão realmente noutro lugar, mas são alternativas para nós, situadas bem perto, ‘lacunas [instantâneas] entre mim e os que pensam diferente de mim’”. Podemos pensar que todo esse processo de aceitação do outro é um dado cultural e conceitual, ou seja, é preciso apostar no processo de humanização e socialização dos indivíduos. Ao educá-los, para modificar as matrizes referenciais que os impedem de olhar para a riqueza presente nas diferenças e singularidades próprias de cada cultura, é possível estabelecer um projeto de ressignificação da própria sociedade.


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4.2 O processo cultural e a socialização da humanidade Pensar a cultura como um processo dinâmico e como elo socializador da humanidade: este é um dos objetivos do tema que abordaremos a seguir, principalmente por considerar o atual contexto em que estamos inseridos. Em pleno século XXI, a antropologia quer continuar contribuindo com o estudo e a compreensão do homem em seu mundo e suas relações com os outros. As ações sociais, derivadas dessas relações, são sempre um ponto de partida para entender a natureza da cultura. Nesse sentido, torna-se necessário pensar os desafios do mundo contemporâneo, tais como o individualismo, o consumismo, a indiferença e a intolerância. A urgência de humanizar as relações sociais é também resultado da incompreensão humana diante da diversidade e da alteridade que impede o surgimento de uma identidade autêntica e aberta ao outro.

4.2.1 Humanização da sociedade A sociedade contemporânea é marcada pelo individualismo e o consumismo exacerbado, o que tem refletido diretamente nas relações interpessoais. Essa constatação é fácil de ser percebida quando olhamos para o cenário social e verificamos o alto índice de violência tanto no campo privado quanto no público. Para Arendt (2009), esse sintoma se torna comum quando as relações estão fragilizadas e vem à tona a bestialização da condição humana. Os resultados são percebidos nas ações impulsivas, sem o crivo do pensar, o que torna mais vulnerável a fragilidade moral. A proposta de uma humanização da sociedade parte justamente da necessidade de resgatar os valores fundamentais da pessoa enquanto possuidora de direitos e deveres para consigo mesma, o outro e o mundo. Essa responsabilidade pelo cuidado do mundo pode ser entendida, no campo antropológico, como uma necessidade de voltar às raízes da tradição e refazer o caminho da humanidade. Reportando ao papel da antropologia na busca por uma humanização da sociedade, Laplantine (2009, p. 156) afirma que esse projeto só se tornará possível quando formos capazes de entender que “[...] o outro é uma figura possível de mim, como eu dele [...] nem por isso as identidades de uns e outros estão abolidas, passam a ser apreendidas do interior mesmo de sua diferença, isto é, a partir de uma relação”.

É interessante ver o filme brasileiro “Cidade de Deus” (2002), que retrata a realidade vivenciada nessa favela do Rio de Janeiro. Analise, nesse documentário, o processo de desumanização e, ao mesmo tempo, pense em qual seria a função da educação nesse contexto.


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4.2.2 Os desafios da sociedade de hoje Todo esse processo de humanização da sociedade, como vimos, se torna um grande desafio para o mundo contemporâneo. Se, por um lado, o uso das novas tecnologias e a possibilidade de encurtar distâncias tornou a vida mais prática, por outro, acirrou as ações individualistas. Quantos de nós já não nos deparamos com situações em que a tecnologia, em vez de aproximar e tornar as relações sociais mais “aconchegantes”, emotivas e sensíveis, possibilitou a fragmentação do contato e certo distanciamento, por mais paradoxal que possa parecer? Em outras palavras, as novas tecnologias de informação e comunicação seriam uma das responsáveis por fragilizar e superficializar as relações sociais, apesar da facilidade do contato que elas proporcionam. A cultura da indiferença passou a ser um desafio que temos que enfrentar se quisermos, de fato, estabelecer laços de relação social mais fecundos. É preciso que os indivíduos percebam e compreendam o que está ocorrendo no mundo para que possam estabelecer novas relações entre si e os outros. No atual contexto globalizado e tecnológico, a sociedade vivencia grandes adversidades: a exclusão social, a desigualdade de oportunidades, a miséria e a indiferença são alguns desses sintomas. A perspectiva antropológica passa por esse olhar do social na busca de alternativas que sejam capazes de situar e recuperar os elos que unem a tradição e o contemporâneo no resgate das relações interpessoais como fundamento básico de reconstrução da sociedade.

4.2.3 Estar na companhia dos outros Nesses desafios contemporâneos, a grande dificuldade é, sem dúvida, proporcionar espaços para uma aproximação da abertura ao outro. Na acirrada disputa por um lugar na sociedade, o individualismo parece triunfar e as ações coletivas se colocam em segundo plano. Isso posto, torna-se importante, no campo antropológico, entender a dinâmica e a trajetória histórica da civilização que sobreviveu às crises sociais, políticas e econômicas dando voz e vez ao coletivo em detrimento do individual. Os vestígios do passado ressignificam o presente. Se o que caracteriza a sociedade é o conjunto harmonioso de indivíduos regrados por valores, crenças e normas, e os homens só se completam na relação com os outros, é possível deduzir que há uma interdependência mútua capaz de dar sentido e significado à vida coletiva. Essa via de mão dupla permite entender que o indivíduo se faz e se realiza com o outro. Enquanto ser de abertura, ele se lança no mundo no qual o outro se faz presente. Novamente, torna-se importante entender que nesse processo ocorre, naturalmente, a ressocialização do homem.


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Apesar de ter consciência de que vivemos em um mundo plural e que essa condição é necessária à sobrevivência humana, ainda persistem, em alguns setores da sociedade, resistências culturais, religiosas e conservadoras em relação à aceitação do outro. Alguns grupos sociais e de opções de vida consideradas “fora do padrão” são as maiores vítimas desse preconceito, tais como indígenas, afrodescendentes, LGBTs, estilos alternativos de família etc.

4.2.4 Identidade cultural

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Nesta sociedade do século XXI, há fortes indícios de um individualismo que não se permite abrir-se para o outro. Na sociedade do espetáculo, tal como afirmou Lipovetsky (2005), impera o vazio de sentido e significado das relações com a sociedade. Por isso, é preciso cada vez mais apostar na humanização da vida e na intensidade das relações interpessoais. Para vencer esse desafio, é necessário, antes de tudo, entender os aspectos que envolvem a identidade cultural de um grupo, povo e nação. A identidade vai se construindo ao longo de nossa vida, pois, segundo Hall (2002), a sociedade globalizada exige constantes encontros com outros grupos e essa interação interfere no modo com o indivíduo age, interage, assimila e agrega valores a sua cultura. O que parece fragmentado se une aos conceitos e padrões de comportamentos de um determinado grupo. No tratamento antropológico, esse tema se torna importante principalmente por se tratar de um projeto de construção e reelaboração de conceitos ligados à convivência humana. Toda identidade é carregada de normas, regras e padrões que permitem ao indivíduo transitar livremente nos agrupamentos sociais e culturais a que melhor ele se adapte. Isso significa afirmar que ele pode se identificar com determinado grupo por um período breve ou longo, isto é, enquanto ele se sentir parte integrante dos valores compartilhados e comuns a seu modo de conceber o mundo e a vida. Além disso, um único indivíduo pode pertencer, ao mesmo tempo, a vários grupos identitários. Para Cuche (1999), este é um processo natural de pertença e exclusão social. Pertença enquanto construção de uma identidade social vivenciada e partilhada por um grupo. Exclusão quando não há possibilidade de aceitação de outros valores que não sejam comuns ao grupo. Ao pensar nessa dupla dimensão, a antropologia se aproxima à psicologia social, que, segundo o mesmo autor, pode levar à dimensão de uma identidade cultural.


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4.3 Os temas que envolvem a cultura e a educação da humanidade As questões cada vez mais emblemáticas no mundo contemporâneo têm relação com a cultura e a educação. Cultura enquanto um processo dinâmico e revitalizador da sociedade, e a educação enquanto um legado da tradição que deve permear as relações entre os indivíduos. Temas como a ética sempre serão alvo de atenção dos estudiosos da cultura e da própria sociedade, uma vez que as normas de conduta, os costumes são definidores da identidade de um indivíduo-nação. A preocupação com as duas vertentes antropológicas, relativismo cultural e etnocentrismo, é analisada como parte de um estudo que possa melhor compreender os fenômenos culturais do mundo contemporâneo.

4.3.1 Ética e cultura Comecemos por definir a etimologia da palavra ética para entender a complexidade que envolve sua relação e proximidade com a cultura. Duas são as apropriações linguísticas da ética. A primeira está centrada na concepção grega ethos, que significa costume, modo de ser e, principalmente, caráter. No campo antropológico, essa raiz está vinculada à identificação de um povo, por seus costumes e comportamentos. Esta é a primeira aproximação com a cultura, se levarmos em conta que todas essas características comportamentais dizem respeito a um determinado povo ou grupo social.

Normalmente utilizamos a expressão ética vinculada ao caráter de uma pessoa. Essa questão envolve uma ação internalizada e relacionada aos valores adquiridos ao longo do convívio com as instituições que influenciam na formação de sua personalidade: família, escola, igreja, trabalho.

A segunda raiz da ética vem do latim mos, mores, que se vincula aos costumes de um povo. Nessa perspectiva, a ética determina um conjunto de valores e normas que, ao longo da tradição, foram sendo referendados por um grupo social para estabelecer parâmetros entre o que é certo/errado ou justo/injusto. Se unirmos as duas matrizes linguísticas, encontraremos um ponto comum: costume e comportamento de um povo. Podemos afirmar que, de um lado, a ética é subjetiva, pois depende da interpretação de valores internalizados por um ou mais indivíduo (ethos); por outro, ela é objetiva ao tratar como parâmetro certo/errado, justo/ injusto (ABBAGNANO, 2007).


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O que nos interessa é saber como a cultura se vincula à ética e qual sua contribuição na formação de uma sociedade. A primeira questão é lembrar que cultura tem relação com cultivo, cuidado, ou seja, deve-se pensar no processo original, no legado da tradição para entender o elo com o presente e as ações sociais decorrentes desse processo histórico. Se pensarmos para além da ética e ampliarmos a relação com a cultura, elas consistem em elementos constitutivos da identidade, isto é, não é possível pensar a sociedade senão na perspectiva de suas ações e interações entre os indivíduos. Isso pressupõe analisar o contexto em que cada sociedade se situa e, a partir daí, entender como se atribuem valor, normas, costumes e regras sociais capazes de parametrizar as ações do homem.

4.3.2 A tendência ao relativismo cultural Vivemos em um mundo globalizado em que a presença de ações em defesa dos direitos fundamentais da pessoa humana e seus reflexos diretos nas políticas afirmativas em defesa do respeito às diferenças se vinculam diretamente à cultura. No campo da ética, esses princípios são fundamentais para nos situarmos no contexto da pluralidade de onde derivam as peculiaridades próprias de cada tempo e lugar histórico em que o ser humano está inserido. Entender esse princípio é concordar que “[...] a cada sociedade corresponde a uma tradição que se assenta no tempo e se projeta no espaço” (DAMATTA, 1987, p. 36). Este é o primeiro passo para compreendermos a amplitude antropológica do relativismo cultural e sua importância no campo das relações. Entender e compreender as relações sociais a partir do contexto de mundo em que o indivíduo se situa possibilita evitar rótulos de uniformização de comportamentos a partir do paradigma de pretensão de universalidade da verdade. Os conceitos de certo/errado, justiça/injustiça, verdade/mentira só podem ser analisados tendo como ponto de vista a sociedade na qual o indivíduo está inserido. No entender de Laplantine (2009, p. 137), “[...] a antropologia é o estudo do social em condições históricas e culturais determinadas. A própria observação nunca é efetuada em qualquer momento e por qualquer pessoa”. Isso posto, é possível avançar para o passo seguinte da definição e tendência ao relativismo cultural. Sua importância e contribuição está em considerar que não existe uma cultura universal, mas várias culturas. A pluralidade, como condição própria da vida em sociedade, é o que torna dinâmico o estudo de uma sociedade sob o ponto de vista da cultura.


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Para aprofundar melhor esta temática e dada a importância de Darcy Ribeiro tanto na antropologia quanto na educação, entre suas tantas obras, há duas que são imprescindíveis: O Povo Brasileiro (2015) e O Processo Civilizatório (1970). Ambas retratam a convivência de Darcy com índios brasileiros.

4.3.3 O etnocentrismo na sociedade O relativismo cultural, enquanto um recurso metodológico, se apresenta como uma corrente contrária ao princípio do etnocentrismo. A defesa dos etnógrafos é que é possível valorar uma sociedade a partir de um padrão estabelecido. Para Rocha (1994, p. 30), “[...] o etnocentrismo se conjuga com a lógica do progresso, com a ideologia da conquista, com o desejo da riqueza, com a crença num estilo de vida que exclui a diferença”. O problema é não perceber a riqueza e a diversidade própria de cada cultura em que o indivíduo é colocado em relação com os outros. Tal situação acaba por invisibilizar o que de melhor existe em uma sociedade: a pluralidade. Nessa perspectiva, o etnocentrismo pode levar a atitudes e ações xenófobas, ou seja, a assumir a postura de que há uma identidade cultural superior sobrepondo-se a outra dada como inferior. Para evitar o perigo de entender o etnocentrismo somente nessa perspectiva de superioridade de uma cultura sobre a outra, podemos também atribuir a contribuição na formação de um processo natural de identidade. Em outras palavras, sempre que aprendemos ou entramos em contato com outra cultura, nos enriquecemos enquanto pessoa e indivíduo social. De acordo com Lopes (2009, p. 175) “os estudos antropológicos sobre educação têm evidenciado a mudança dos contextos de diversidade cultural, antes isolados ou pouco integrados, para um novo modelo de diversidade cultural.” O etnocentrismo pode ser compreendido para além da lógica da superioridade, pois produz um enriquecimento do ponto de vista da formação social. Isso porque o contato entre povos ou grupos sociais de culturas distintas funciona como uma espécie de catalisador que produz transformações nas formas de cada grupo reagir ao choque cultural, seja para fins de assimilação ou até mesmo de negação da cultura dominadora. Podemos mapear alguns exemplos de períodos históricos nos quais a leitura etnocêntrica da cultura se estabeleceu como paradigma de leitura do mundo:


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Iluminismo (séculos XVII/XVIII)

Acontecimento: Grandes descobrimentos Visão de mundo: A colonização como “salvação dos selvagens”

Acontecimento: A supremacia da razão Visão de mundo: A elitização da cultura e o domínio do racionalismo

Tela “Madonna” do artista plástico Raphael (1483-1520).

Tela de Ferdinand Delacroix (1798-1863) intitulada “Liberty on the Barricades”.

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Renascentismo (séculos XV/XVI)

Nacionalismo (séculos XIX/XX) Acontecimento: A industrialização e as teo rias evolucionistas e positivistas do mundo

Visão de mundo: Supremacia das grandes nações e das narrativas culturais de superioridade

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Bandeiras do Reino Unido, China, França, Rússia e Estados Unidos.


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Durante muito tempo (e ainda hoje há grupos que pensam dessa forma), a sociedade brasileira foi alimentada por visões distorcidas da realidade, principalmente no que diz respeito às interpretações acerca de etnia, raças e gêneros que acabavam acirrando conflitos culturais e ações de intolerância. Pensemos, por exemplo, na concepção que se tinha sobre a sociedade indígena sendo considerada inferior se comparada aos padrões ocidentais, tal como concebiam os colonizadores. A releitura feita pelo antropólogo brasileiro Castro (2002) a respeito das concepções de Lévi-Strauss nos permite colocar a etnografia em outro plano de estudo mais amplo, uma vez que, de acordo com o autor: Os selvagens não são mais etnocêntricos, mas cosmocêntricos; em lugar de precisarmos provar que eles são humanos porque se distinguem dos animais, trata-se agora de mostrar quão pouco humanos somos nós, que opomos humanos e não-humanos de um modo que eles nunca fizeram: para eles, natureza e cultura são parte de um mesmo campo sociocósmico (CASTRO, 2002, p. 369).

4.3.4 O fenômeno da cultura moderna Ao longo da temática que desenvolvemos até o momento, enfatizamos alguns aspectos que abarcam diretamente a cultura principalmente envolvendo a ética, o relativismo e o etnocentrismo. Para aprofundar um pouco mais, comecemos por tentar entender a colocação feita por Eagleton (2011, p. 99), em que o autor problematiza a ideia de uma cultura que se pensa superior (por isso a referência diferenciada em maiúscula): [...] foi a proliferação das culturas que forçou a Cultura a uma autoconsciência desconfortável, pois a civilidade funciona melhor quando é a cor invisível da vida cotidiana e, para ela, sentir-se forçada a auto-objetivar-se é fazer demasiadas concessões aos seus críticos. A Cultura, então, arrisca-se a ser relativizada como apenas uma outra cultura (grifo nosso).

Esse argumento serve para analisar o fenômeno da cultura moderna, ao levarmos em conta os aspectos importantes que poderíamos atribuir à própria natureza de uma sociedade democrática de direito. Os avanços tecnológicos permitiram ao homem se aproximar do universo e ampliar sua visão de mundo. Descobrir-se com um ser aberto ao novo e se lançar na aventura de conquistar seu direito de se manifestar livremente, de participar ativamente da vida em sociedade, passou a ser um grande desafio para a cultura contemporânea.

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Ao mesmo tempo que nos tornamos possuidores de direitos, convivemos com o paradoxo do individualismo, da indiferença e da intolerância. Há um vazio de valores que permeia a sociedade contemporânea e, igualmente, uma necessidade de revitalizar a vida em sociedade. A atual crise de sentido tem suas raízes na forma como entendemos e compreendemos a relação dos indivíduos consigo mesmos, com o outro e o mundo. Esta parece ser a questão levantada por Eagleton (2011) e que se traduz enquanto um fenômeno da cultura moderna como multiculturalismo. O multiculturalismo permeia as fronteiras da sociedade, uma vez que “[...] é um movimento legítimo de reinvindicação dos grupos culturais dominados no interior daqueles países para terem suas formas culturais reconhecidas e representadas na cultura nacional” (SILVA, 2015, p. 85). Nesse sentido, torna-se mais urgente, do ponto de vista antropológico, entender e compreender a importância da educação nesse processo de revitalização afirmativa da vida em sociedade. À escola, como um espaço público do saber e do legado da tradição, cabe a tarefa de entender esses processos culturais presentes no mundo contemporâneo.

4.4 A escola como um ambiente cultural e de preservação do legado da humanidade Diante de um cenário social cada vez mais complexo e de crise de valores fundamentais, como autoridade, respeito, dignidade e tolerância, tornou-se urgente repensar o papel da escola enquanto um espaço institucional privilegiado da educação. Para tanto, é necessário partir do pressuposto de que há um legado cultural a ser revisitado que possibilite a reeducação da sociedade. Nesse processo, convém pensar a dimensão antropológica da estética enquanto contribuição para o despertar da sensibilidade humana, princípio básico para interação e convívio com o outro e o mundo. A sala de aula, enquanto ambiente da aprendizagem, é o resultado de uma sociedade cada vez mais individualista e consumista, na qual a cultura se tornou um objeto massificado. Por isso, é importante destacar alguns desafios enfrentados nessa relação entre os valores, a cultura e a educação integral da pessoa.

4.4.1 Os processos de educação cultural A formação cultural do indivíduo social é um legado atribuído à educação. Ao pensar nesse argumento, remontamos às estruturas de pensamento de uma sociedade mapeada desde os primórdios da escrita datada por volta do ano 3.000 a.C. Os modelos e os padrões da civilização grega, principalmente na perspectiva ateniense e


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espartana, servem de parâmetro para os conceitos mais nobres de cultura: beleza e força, tragédia e riso, poesia e conquista.

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Esses valores acabam por constituir uma matéria-prima na formação integral do indivíduo social. Nesse sentido, a Antropologia, enquanto ciência que se preocupa com a trajetória do homem ao longo de todo o processo civilizatório, se apresenta como um campo interdisciplinar capaz de auxiliar nesse processo de educação. Não se trata, por outro lado, de afiançar ser esta a ciência mais ou menos importante; por isso, ela é interdisciplinar, ou seja, ela se entrelaça às outras ciências que têm o ser humano como centro. A dinâmica da sociedade exige, cada vez mais, que a escola encontre eco entre realidade e teoria, portanto, não há mais espaço para conteúdos isolados em disciplinas que não se conversam. A preocupação da escola passa a ser formar o indivíduo para pensar e repensar seu próprio ser no mundo, ou seja, ressignificar o legado da identidade cultural. No encontro entre a herança do passado com o presente, a escola precisa fazer a leitura do contexto vivenciado na sociedade que “[...] traz problemas de ordem concretos, práticos. Ela conduz quase que mecanicamente ao conjunto, a totalidade, pois uma ação individual remete a outra e um grupo de pessoas se liga a outro” (DAMATTA, 1987, p. 54).

4.4.2 A estética da sala de aula

No entanto, o estético não é só uma questão de arquitetura, mas de intencionalidade, de formação do espírito, da alma, portanto, da identidade e da ética. É por isso que, toda vez que se estuda a estética, a relacionamos com a ética. Sem essa aproximação, a visão fica distorcida e frágil, tal como os padrões forjados de beleza do corpo, da roupa e dos objetos de consumo. Compreender a dimensão e constituição do humano não apenas em sua acepção racional, mas dotado de sensibilidade, é educá-lo a ver o mundo e admirar a harmonia

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É preciso cada vez mais acreditar que o “estético fala”, isto é, que a sensibilidade é um fator primordial na leitura do mundo contemporâneo. Basta olhar a arquitetura dos shoppings, seu ambiente, climatização, para imaginar o quanto de estético eles reúnem para que as pessoas se autosselecionem para estar lá e se sintam esperadas e acolhidas. A maior parte da arquitetura de nossas salas de aula não permite tal comparação.


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natural presente no universo. Educar a integralidade do ser humano pressupõe uma reconversão do olhar, ou seja, reaprender a olhar o belo e todas as circunstâncias presentes em seu entorno que possibilitem reinterpretar o mundo. Para Eaglaton (2011, p. 34), “[...] cultura (no sentido das artes) define uma qualidade de vida refinada (cultura como civilidade) cuja realização na cultura (no sentido de vida social) como um todo é a tarefa da mudança política. O estético e o antropológico são assim reunidos”.

4.4.3 O ambiente educativo e formativo A estética está intimamente ligada ao projeto educativo, e por isso mesmo construir um ambiente acolhedor é cada vez mais imprescindível para a formação humana. Um projeto educativo deve ter como foco principal a educação integral da pessoa para viver em uma sociedade plural. É nessa direção que os propósitos de uma escola para todos devem se concretizar a partir da certeza de que a escola é o lugar do encontro e do fortalecimento das relações interpessoais. Um espaço escolar reúne pessoas de diferentes formações culturais e educativas, portanto, representa o lugar das diferenças. Na dimensão antropológica, este é o espaço da diversidade, da alteridade e do acolhimento. A escola passa a ser o lugar privilegiado para se construir um projeto cidadão transformador e inaugural de uma nova sociedade, na qual o diálogo seja o viés significativo do encontro das diferenças. Essa intensidade de vida que ocorre no interior da escola é responsável pela formação de uma identidade cultural e política da pessoa social. Torna-se significativo pensar que a educação é mais do que um conteúdo a ser apreendido ou transmitido. O ambiente educativo pressupõe interação e inclusão no sentido mais amplo e profundo que as palavras apresentam. Para Demo (1998), há um vazio nas relações sociais toda vez que a educação deixa de cumprir seu papel social de inclusão das diferenças. Em um de seus escritos, O Charme da Exclusão Social, ele faz uma releitura crítica dos ambientes educativos que anulam as diferenças em função de um conceito equivocado de inclusão. Incluir as diferenças e não anulá-las: este é o princípio fundamental de toda e qualquer sociedade que tem a pluralidade como seu propósito e condição de natureza.

4.4.4 Os desafios de uma sala de aula Todo processo educacional se funda em uma concepção epistemológica, que deve determinar as ações no interior e para além do espaço escolar. Esta pode estar centrada em uma gestão do poder ideológico e político ou na concepção de mundo dos agentes


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formativos presentes na escola. Para encontrar essa concepção, é preciso, antes de tudo, resgatar antigas questões fundamentais e necessárias a qualquer projeto educacional estratégico, principalmente aquelas voltadas para a formação originária da pessoa cidadã e sua inserção efetiva no mundo. Uma proposta educacional estratégica precisa encontrar, no espaço escolar, uma abertura ao diálogo com a sociedade contemporânea. O trabalho educativo assume, portanto, uma função social e antropológica que interfere diretamente na dinâmica do próprio sistema de ensino, quer ele focado exclusivamente para atender à demanda do mercado ou para qualificar o cidadão para exercer seu papel de agente reflexivo e transformador da sociedade. Educar para sensibilidade estética e apostar em um ambiente que acolha a todos é, sem dúvida, primordial na construção de uma cultura plural e cidadã. Esse processo formativo não pode e não deve ser dicotômico, pois não se pode perder de vista a função social e transformadora que tem a educação e, consequentemente, a escola enquanto lugar privilegiado do saber. O sistema de ensino adotado e sua finalidade implicam, necessariamente, a visão de mundo que se espera de todos os envolvidos nesse processo. Os grandes desafios que se enfrentam no espaço da sala de aula têm relação direta com as questões que envolvem o sentido e os valores primordiais da sociedade. Se não há um projeto claro que fortaleça os vínculos institucionais das relações entre as pessoas, não se pode esperar que a educação cumpra seu papel de formação da cidadania.


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5 Os espaços do saber pedagógico em sua dimensão antropológica Em sua formação, o docente desenvolve uma série de estudos quanto a sua prática e os mecanismos que possibilitam uma atuação significativa diante de um grupo específico: a comunidade escolar. Entre os muitos saberes adquiridos em sua formação, talvez o mais aplicado em sua prática seja o saber antropológico pautado na observação da realidade do grupo com o qual atuará. A antropologia fornece, a esse docente, mecanismos de coleta de dados e modos de observação que lhe possibilitam juntar informações, as quais, por sua vez, auxiliam na compreensão da realidade em que está imerso. Um exemplo é a observância de fatores como o aumento da violência simbólica dentro da cultura escolar. Dialogar sobre a violência simbólica nos possibilita agir nos espaços em que atuamos e dirimir junto aos alunos preconceitos arraigados. A ação dialógica entre os pares escolares pode corroborar o processo emancipatório do educando de forma saudável e racional.

5.1 Etnografia como forma de conhecer e contribuir com o fazer docente A ciência etnográfica consistiu, em um primeiro momento, na descrição das sociedades humanas isoladas e na observância da cultura produzida naquele espaço (MARCONI; PRESOTTO; 2002). Apresentada como ramo da ciência cultural, a etnografia observa ainda hoje os grupos de acordo com suas particularidades tendo em vista a reconstrução de seu modus operandi.

Modus operandi é uma expressão em latim que significa modo de operação. É utilizada para representar a forma de agir, operacionalizar ou executar uma atividade seguindo sempre padrões procedimentais.

O docente pode fazer uso desse ramo da antropologia para compreender aspectos muito particulares das relações sociais em seu espaço de atuação. Tal postura possibilita um trabalho consciente que torna sua prática mais significativa.


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5.1.1 Conhecendo o método etnográfico O método etnográfico consiste na observação e coleta de dados referentes a sociedades consideradas, no passado, “primitivas”, ou seja, não civilizadas se comparadas a sociedades europeias, por exemplo. A coleta e observação de dados era feita em grupos com pouco ou nenhum contato com outras sociedades, de forma que uma cultura não influenciasse a produção da outra. Além das sociedades “primitivas”, grupos como as sociedades rurais e o ambiente escolar podem também ser escopo do trabalho do etnógrafo. Enquanto ciências, etnografia e etnologia são ramos da antropologia. À primeira cabe a coleta de dados enquanto a segunda cuida de sua análise detalhada em todos os aspectos particulares de uma determinada sociedade ou grupo. É praticamente impossível desvincular uma ciência da outra. A especialização do etnógrafo é embasada no conhecimento da cultura material e imaterial de um grupo de forma sistemática. Esse profissional vai a campo para conhecer o funcionamento das sociedades, coleta os dados a serem analisados, descreve as especificidades da sociedade observada e reconstitui, por meio dos dados coletados, planilhas, tabelas demográficas, notações sobre clima e relevo e o que constar sobre essas culturas, da forma mais fidedigna possível.

A escola é um espaço fecundo no que tange à produção cultural. Podemos dizer que esse ambiente tem uma dinâmica própria com as relações interpessoais e as regras ali vivenciadas por meio das trocas culturais, seja entre alunos ou destes com os professores e demais agentes que atuam em seu entorno. Conhecer a realidade escolar possibilita compreender os diversos aspectos que causam influência no grupo estudado. A repetição de algumas situações precisa ser vista com maior atenção. Pequenos problemas de comportamento e situações difíceis que os agentes escolares vivenciam no dia a dia são um campo de pesquisa vasto e empírico. O docente pode atuar mediando conflitos e estimulando um confronto saudável – como no caso de desavenças entre alunos, seja em razão de gosto diversificado ou modos de pensar – desde que conheça o espaço em que atua de forma pormenorizada, fazendo com que os

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5.1.2 Conhecendo a realidade da escola


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alunos compreendam, por exemplo, que ninguém tem de impor sua opinião, e sim compartilhá-la. Temos que ter em mente que o primeiro passo para a superação de um problema é saber que ele existe, em seguida, saber como ele funciona para, enfim, nos colocarmos como atores daquela situação. A observação do entorno escolar auxilia o planejamento de ações capazes de conscientizar o educando quanto à influência de pequenas atitudes que podem fazer, por exemplo, com que a banalização da violência seja superada pelo diálogo. E a conscientização é mais um ponto para transpor o problema da violência.

O filme “Entre os muros da escola” (2009) narra a história de uma escola de periferia e a difícil tarefa de um professor em ensinar ética para alunos e professores que não concordam em nada com seus métodos. É um verdadeiro olhar antropológico sobre a escola e seus agentes.

5.1.3 Cultura imaterial A cultura imaterial é representada pelo compartilhamento de conhecimentos, assim como os usos e costumes, crenças, hábitos, normas, entre outros elementos intangíveis da cultura, aqueles que de forma alguma possuem substância material (MARCONI; PRESOTTO, 2002, p. 26). É a tradição deixada pelos ancestrais e passada a seus descendentes. Uma das formas de perpetuar o patrimônio cultural de um determinado grupo é a preservação das memórias de manifestações culturais. Pensar o Brasil enquanto democracia, por exemplo, nos remete a um passado de luta por liberdade de expressão. Na representação da ditadura militar, temos exemplos de lutas pelos direitos fundamentais, como a preservação da vida e a sobrevivência. A cultura, em constante transformação, associa tal passado a ações ocorridas no presente. Para Adorno e Horkheimer (1985), é possível perceber essa simbiose presente nos meios de comunicação na forma de conteúdos violentos que tratam de temáticas como serial killers, abordados em seriados sugestionam formas eficazes de cometer homicídio sem chamar atenção ou, ainda, na busca pelo crime perfeito, a extinção humana, entre outros. De acordo com Galtung (1996-2003, p. 261), o conceito de violência cultural se refere aos aspectos da cultura, no “[...] âmbito simbólico da nossa existência (materializado na religião e ideologia, língua e arte, ciências empíricas e ciências formais – lógica, matemáticas –), que são utilizados para justificar e legitimar a violência, seja ela pessoal ou estrutural”.


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Atualmente, a cultura da violência tem ganhado cada vez mais espaço dentro da escola, e nem sempre se trata de agressão física, mas sim de violência simbólica. A violência simbólica, que é mais difícil de ser percebida, está entre os alunos nos diálogos em que o outro é marginalizado, excluído ou estigmatizado, presente na oferta de drogas ou em situações como ações punitivas (quando se faz uso de provas e avaliações para esse fim), um puxar pelo braço, uma ameaça do aluno contra o professor por consequência de notas etc.

5.1.4 Tradição e cultura Como vimos anteriormente, a cultura se repete em vários momentos: autoritarismo, exclusão, discriminação e repressão (CANDAU, 2004, p. 147). Por vezes, é possível perceber as reações do público em geral na exposição que a indústria cultural faz (ADORNO; HORKHEIMER, 1985). De posse desses dados, o docente pode trabalhar ações afirmativas e levar o aluno à tomada de consciência de que suas atitudes por vezes se tratam de reflexos daquilo que foi vivenciado em algum momento. A reprodução da fala de um filme ou seriado, a apresentação de um golpe que foi fatal para o oponente ou a repetição de frases que incitam o ódio são excelentes momentos para esse tipo de intervenção. Os resultados de tais ações podem ser sentidos intrinsecamente. A compreensão e o respeito pelo passado são fundamentais para a não reprodução de problemas desnecessários no presente, pois, como já dizia Goethe: “Quem desconhece o passado condena-se a repeti-lo”, assim, descobrir o motivo que gerou uma briga na escola normalmente pode colaborar para um diálogo que evite brigas futuras, por exemplo.

5.2 Textos e contextos presentes no ambiente educativo A análise das relações interpessoais deve ser baseada em seu contexto histórico. Conhecer a realidade dos grupos com quem se trabalha é fundamental para a contextualização. Um contato mais próximo com os alunos pode gerar resultados para além dos índices de aprovação. Podemos observar que, quanto mais próximo do aluno o professor se torna, maior é a chance de que esse educando permaneça no ambiente escolar.

5.2.1 Dar voz aos alunos Diálogos entre o docente e os alunos podem colaborar para a redução da violência escolar. Os alunos, quando questionados, desmonstam consciência da problemática da violência (CANDAU, 2004, p. 151), porém, a banalização do conceito por vezes é difícil de ser descontruída.


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Candau (2004) desenvolveu um estudo em que foi possível perceber que, na organização de rodas de opiniões, os alunos apontam diversos fatores e também possíveis soluções para o fim da violência. O jovem sabe que o problema existe: a maior dificuldade talvez seja dimensioná-lo de forma que não se banalize a violência simbólica, pois tal atitude pode ampliar o risco daqueles que sofrem com esse problema. Aquele que sofre a violência deve se empoderar, fazer uso de sua voz e contar sem medo o que está acontecendo. O professor pode auxiliar o adolescente a compreender que a vergonha não está em si, mas sim na atitude violenta do outro. É possível fomentar o diálogo que vai desconstruir a banalização da violência escolar e cultural vivida naquele lugar. Justificativas como “foi só uma piada” ou “ela é gorda mesmo!” são constantes no ambiente escolar e, por vezes, apresentam dois reflexos distintos: primeiro, trazem o riso fácil para o aluno que faz o comentário e seus pares e, segundo, causam um sofrimento desmedido para aquele que é motivo de “chacota”.

5.2.2 Alguns desafios: pensar a condição antropológica na perspectiva do aluno Após dar voz ao aluno, o próximo passo é contextualizar os conflitos a fim de compreendê-los em sua concepção mais ampla. O que fazer com tantas informações? Como mostrar para o aluno que é possível romper com algumas estruturas que atrapalham seu desenvolvimento? Não existem fórmulas que solucionem os problemas de forma miraculosa, mas, com planejamento, é possível coletar os dados apresentados e demonstrar que aquela não é uma realidade exclusiva. O adolescente tende a pensar que sofrerá mais quando expuser seus conflitos existenciais ou de relacionamento. Sabemos que determinadas situações serão superadas, porém, para o jovem, aquele momento parece ser eterno. Bons exemplos são o primeiro amor ou a primeira briga com a melhor amiga. O docente precisa enxergar aquilo que é vivido pelo aluno e abrir espaço para o diálogo. Uma roda de opinião em que o educador conte como foi essa fase para ele pode aproximar o educando e deixar o espaço favorável para uma fala sincera e liberta dos medos de represálias.

5.2.3 Imersão na realidade Diariamente os meios de comunicação nos apresentam cenas em que boa parte dos atores envolvidos manifesta atitudes violentas. Essa cultura da violência está cada vez mais próxima das crianças e dos adolescentes, que chegam a naturalizar e não se assustar com a violência cometida contra terceiros.


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O filme “Pro dia nascer feliz” (2006) narra o dia a dia permeado de desigualdades e violência em quatro escolas públicas brasileiras em São Paulo, Pernambuco, Rio de Janeiro e Duque de Caxias.

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Exemplo disso são os videogames. Constantemente o jovem tenta reproduzir uma cena ou valorizar feitos heroicos realizados nesses jogos. Quanto mais violentos eles forem, mais chamam a atenção daqueles em fase de escolarização. É de assustar as tentativas de reprodução da violência que ocorrem no ambiente escolar, e a resolução dos conflitos acaba por seguir a mesma lógica dos jogos e brincadeiras. Os meios de comunicação e a opinião pública usam a violência e a agressão físicas como formas de entretenimento – tal qual a política do pão e circo –, e nos mais variados espaços ocorre a reprodução daquilo que foi assistido, lido ou vivenciado. A violência produzida no cotidiano é reproduzida pelas histórias de livros e gibis ou pelos seriados violentos que têm como público fiel a criança e o adolescente. A violência, nesse sentido, se torna mercadoria por meio da reprodução massificada.

A política do pão e circo é originaria da Roma antiga e representava a distribuição de alimento durante apresentações nas arenas visando a manter a população mais humilde “alegre” ao mesmo tempo que fortalecia a popularidade do imperador apesar da fome e da miséria vivida pelo pobre.

5.2.4 Desafios e possibilidades A violência na escola está diretamente relacionada com a violência na sociedade em que a escola está inserida, portanto, são espaços indissociáveis. Miséria, pobreza, corrupção e tantas outras chagas presentes na sociedade são reproduzidas em menor escala no ambiente escolar. Não podemos tratar a violência como resultado somente das questões citadas anteriormente. Esse fenômeno necessita de uma análise de seus dois principais componentes: o estrutural – dada sua apresentação e representação massificada em uma sociedade estratificada, como é o caso do Brasil, onde a desigualdade social é


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significativa – e o cultural – em que a indústria cultural faz uso dessa violência como mercadoria a ser consumida pela população. Devemos ter em mente que ambos estão relacionados à violência para tentar obter algumas respostas dentro e fora da sala de aula. Em suma: a escola não é mero receptáculo de uma violência externa, e sim um espaço onde o conceito também é gerado. Não se trata de um processo de fora para dentro de seus muros, mas sim de produção que afeta a dinâmica escolar. A banalização da violência permite aos alunos recorrerem à agressão física como forma de solucionar os problemas vivenciados.

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Conhecendo tais fatores, cabe ao docente possibilitar o diálogo e o confronto saudáveis que possibilitem ao educando compreender o que ocorre em seu entorno e expressar seus anseios e frustrações de forma adequada e passível de análise.

5.3 As dimensões do fazer docente

Os profissionais relacionados à educação podem apresentar certas dificuldades em identificar as formas de violência que ocorrem dentro do ambiente escolar por não perceberem a cultura escolar como produtora de violência, mas a enxergarem como um problema de dinâmica exterior que interfere no espaço escolar, ou seja, o docente normalmente considera tal impasse como uma dinâmica “de fora para dentro”.

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Há uma diversificação nos tipos de violência que ocorrem no ambiente escolar. A variedade de forma e intensidade, assim como a coisificação e consequente banalização desse conceito, necessita de um olhar pormenorizado do docente. Nesse momento, uma postura etnográfica faz toda a diferença na observação daquele grupo específico. A violência não fica fora da escola após o sinal de entrada.


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5.3.1 Contribuição da antropologia A postura do docente deve se ajustar a uma práxis que se utilize da antropologia para a compreensão de seu ambiente de trabalho e das particularidades daquela sociedade. Tal atitude se vincula a uma análise etnográfica que possibilita, em um primeiro momento, a coleta e análise dos dados do grupo pesquisado. Aquilo que acontece na escola é reflexo do que ocorre em sociedade. O aumento da violência é exemplo disso. No caso da violência simbólica, a atitude pode partir dos professores sem que estes percebam. Uma série de preconceitos deve ser desconstruída para que se promova uma prática docente significativa. De posse dos conhecimentos já disponibilizados pela antropologia – que analisa as sociedades urbanas –, o professor pode alcançar grandes resultados com seus alunos.

5.3.2 Conhecendo a realidade social A atuação do professor deve se pautar no uso dos conhecimentos antropológicos para guiar sua prática docente. O educador deve observar tanto a comunidade quanto os fatos ocorridos dentro do ambiente escolar, assim como sua repetição. Não podemos atender a todos os alunos da mesma forma; já temos consciência da singularidade, portanto, cada aluno é único e merece atenção constante. Você pode se perguntar: mas como, se em minhas salas há cerca de 40 alunos ou mais? A resposta pode estar na parceria entre professores dividindo ações para multiplicar resultados por meio de trabalhos interdisciplinares que podem, dentro de um mesmo assunto, abordar diversos pontos de vista capazes de atender às singularidades no que diz respeito à aprendizagem.

A violência está presente na vida do aluno de maneiras diversas. O que é possível notar é que a violência urbana, a violência familiar e a vida escolar são indissociáveis. As condições de vida, moradia e saúde são “[...] fortes condicionantes de tal problemática, aliada ao estresse da vida nas grandes cidades e aos conflitos da dinâmica familiar” (CANDAU, 2004, p. 147). Mas não só eles. A indústria cultural faz uso da violência em filmes, séries ou programas sensacionalistas, pois sabe que essa produção padronizada da violência é mercadoria altamente consumida.

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5.3.3 O entorno social do aluno


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Outros pontos a serem analisados são as relações interpessoais: brigas entre grupos é uma constante nas escolas. Há cobranças por dívidas de drogas, abuso de poder pelos maiores e mais fortes sobre os menores e também o abuso de autoridade por parte dos “mais velhos”; são situações que necessitam de um diálogo franco, uma vez que estão diretamente associadas à violência escolar. São tantos pontos a serem considerados que pequenos atos de violência podem ser deixados de lado e acabar naturalizados. O perigo é o aumento da frequência desses pequenos atos, o que consequentemente aumenta a banalização da violência, fomentando hábitos de desrespeito e agressão mascarados de brincadeiras.

5.3.4 Fazer-se presente na vida do aluno Como consequência das ações da indústria cultural, os alunos frequentemente criam imagens que não são reais, e estas devem ser desconstruídas. Em um descuido, o professor nem percebe o que está fazendo, julga sem conhecer a real situação de um aluno e acaba por reproduzir certos valores e significados (preconceitos) que deveriam, na verdade, ser rompidos, e não reproduzidos. Enquanto docentes, não podemos deixar que esse tipo de situação se perpetue. Devemos dialogar com os estudantes e ouvir o que eles têm a dizer ainda que não falem abertamente. Questionar e observar são parte desse processo. Aplicar o método etnográfico auxilia o docente a perceber essas particularidades e fazer uso desses dados para a melhoria da convivência escolar. A falta de diálogo pode ser um dos maiores entraves para o fim da violência escolar. Se esta se apresenta como uma constante na vida do discente, dialogar sobre tal fato pode colaborar para que os alunos se olhem com mais atenção e percebam que muitas vezes aquilo que foi banalizado em algum momento pode influenciar negativamente a vida do outro.

5.4 Da etnografia a etnologia: ressignificando a prática docente Após coletar dados referentes ao grupo pesquisado, é necessário transformá-los em ações práticas no ambiente escolar. O docente pode trilhar novos caminhos e novos métodos de atuação ressignificando sua prática e se transformando em um agente mediador de diálogos relevantes para a construção identitária do educando. As possibilidades de análise são vastas – por exemplo, detalhes como o entorno escolar e a realidade social e financeira etc. –, por isso, devemos sair de nossa zona de conforto e partir para a ação. Já conhecemos as peculiaridades do espaço em que


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atuamos, a pergunta que fica agora é: como tornar esse espaço mais saudável quanto às relações interpessoais que ali se desenvolvem? Por meio da etnografia e da etnologia, a antropologia nos possibilita, se não a solução, ao menos um início de trajetória rumo à compreensão e à aceitação do outro. Esse caminho passa necessariamente pelo convívio, pela troca cultural com o outro e pela produção e ressignificação da cultura nesse espaço.

5.4.1 Por uma nova etnologia do saber Antigamente a etnologia se baseava na análise de dados recolhidos pelo etnógrafo sobre determinadas particularidades de uma sociedade. Atualmente, esse ramo da antropologia nos possibilita uma atuação pormenorizada no ambiente escolar e a transformação nas relações sociais entre seus múltiplos agentes. O método etnológico permanece, porém, a análise dos dados ganhou novas dimensões dada a singularidade dos grupos observados. O conhecimento adquirido no espaço de atuação docente, ou seja, na práxis, amplia os horizontes. O docente passa a analisar o educando como ser social, produtor de cultura, e passa a usar tais conhecimentos na dinâmica social presente no entorno escolar, seja na mediação de conflitos, produção da cultura escolar ou ainda na formação da identidade da criança e do adolescente. Tal conhecimento é libertador e auxilia na compreensão real de seu papel na educação. Ninguém melhor que o docente para conhecer as particularidades dos grupos com quem atua e as consequências das interações peculiares desses grupos. Um estudo comparativo que analise as habilidades desenvolvidas de acordo com a proposta curricular referente aos grupos presentes na escola possibilita ao docente a transformação de sua prática. O docente precisa conversar com seus pares e ver o que tem dado certo no processo de aprendizagem, trocar experiências, conhecer os fatores relacionados ao desenvolvimento do educando que colegas já tenham observado e agregar esse conhecimento a sua atuação na sala de aula. Por meio do estudo sistemático da diversidade que ocorre na sala de aula, o educador agrega valores aos diálogos auxiliando os alunos a compreender as consequências de determinadas atitudes, como, por exemplo, brincadeiras aparentemente inofensivas, mas com uma alta carga de violência simbólica.


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5.4.2 O encontro com o outro O indivíduo tem a formação de sua identidade baseada em um espelho em que ele se enxerga através do outro. É nesse momento de interação que os grupos se formam ou se repelem no ambiente escolar. Uma consequência dessas relações é o docente passar boa parte do tempo em sala dedicado à solução de conflitos que surgem por conta do processo de espelhamento.

Diz-se processo de espelhamento quando o indivíduo constrói sua identidade por meio da aceitação e da negação do outro.

As práticas sociais que ali ocorrem necessitam de considerações pontuais e não admitem simplificações. Toda e qualquer situação de conflito deve ser dialogada e solucionada de modo que a tolerância se torne uma constante na vida dos educandos, pois, apesar de encontrarem segurança fazendo parte de um grupo, cada qual é um indivíduo, e mesmo aqueles que não se encaixam aqui ou ali merecem ser respeitados, afinal, somos seres singulares.

5.4.3 O lugar e o significado do diálogo Os conteúdos programáticos são parte fundamental da aprendizagem do aluno, porém, não é somente por meio deles que os alunos aprendem. A observação e o diálogo sobre as interações sociais permitem aprendizados oportunos e significativos no transcorrer das aulas. O docente pode fazer uso do conhecimento do aluno adquirido fora da escola e esclarecer o significado de ações que muitas vezes não são compreendidas como conflitos – velados ou abertos –, que normalmente se tornaram senso comum. Esses saberes têm uma carga muito forte de preconceitos e precisam ser esclarecidos diariamente; tal ação possibilita uma tomada de consciência por parte do educando a ser construída paulatinamente. As desigualdades, assim como a discriminação e a intolerância, são fatores constantes no ambiente escolar que devem ser desnaturalizados e considerados como parte de seu currículo real. O ambiente escolar deve provocar o diálogo sobre esses temas (como debates sobre intolerância e o que ela acarreta, ou mesmo por que algumas pessoas estão presas à intolerância e não conseguem se perceber nessa situação), pois discursos equivocados – dos alunos ou de outros agentes escolares – seja por falta de conhecimento, seja por falta compreensão cognitiva, não podem ter lugar e ser aceitos.


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5.4.4 O ambiente da acolhida educativa O educando deve ter a sensação de segurança quando se propuser a debater os temas abordados até o momento. A sala de aula deve se transformar em um espaço acolhedor, sem algozes ou juízes, onde sua fala do estudante se torne consciente de seu valor. O aluno não pode ter medo de se expressar; ao contrário: ele deve se sentir seguro e confiante para expressar suas emoções e seus pensamentos. O olhar etnográfico e etnológico auxilia o docente a construir argumentos libertos do senso comum no ambiente em que atua. Uma vez adotada tal postura, sua prática será ressignificada e alcançará resultados para além dos desejados: mais do que conteúdos reproduzidos, esse profissional alicerçará mentes antenadas e inquietas, conscientes do papel transformador da cultura escolar.


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Referências ADORNO, T. W.; HORKHEIMER, M. Dialética do Esclarecimento. Tradução de Guido Antônio de Almeida. Rio de Janeiro: Zahar, 1985. ARENDT, H. A Condição Humana. Trad. Roberto Raposo, posfácio de Celso Lafer. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005. CANDAU, V. M. (Org.). Reinventar a Escola. Petrópolis: Vozes, 2004. EAGLETON, T. A Ideia de Cultura. São Paulo: Unesp, 2005. GALTUNG, J. Paz por Medios Pacíficos: paz y conflicto, desarrollo y civilización. Bilbao: Bakeaz, 1996-2003. LAPLANTINE, F. Aprender Antropologia. São Paulo: Brasiliense, 2000. LOPES, J. R. Antropologia, Educação e Condicionamentos Culturais. Curitiba: UFPR, 2009. MARCONI, M. A.; PRESOTTO, Z. M. N. Antropologia: uma introdução. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2002. MELLO, L. G. de. Antropologia Cultural: iniciação, teoria e temas. 8. ed. Petropolis: Vozes, 1987. SILVA, T. T. da. Documentos de Identidade. Belo Horizonte: Autêntica, 1999. TOURAINE, A. Igualdade e Diversidade. São Paulo: Edusc, 1999.



6 Antropologia e educação no contexto brasileiro Neste capítulo, estudaremos a antropologia e sua relação com o contexto brasileiro. Sabemos da importância dessa ciência quando nos propomos a analisar certos fenômenos ocorridos na sociedade e, em nosso caso, no ambiente escolar. Com o intuito de desenvolver um diálogo relevante, precisamos compreender algumas teorias antropológicas, como a evolucionista e o estruturalismo, focando-nos principalmente em suas implicações para a indústria cultural e sua influência na escola. O espaço escolar é palco da diversidade cultural e ali os preconceitos devem ser substituídos por novos paradigmas. A perspectiva antropológica nos auxiliará rumo a um diálogo necessário que remete à tolerância e à aceitação do outro e da descoberta de nossa identidade – ampliando, a partir daí, nossa percepção de realidade e alteridade.

6.1 As teorias culturais que marcaram a história Pensar as sociedades humanas é um trabalho complexo. Diversas ciências se dedicam a explicar os motivos que levam as pessoas a agir desta ou daquela maneira dentro de um determinado grupo. A antropologia se ocupa em precisar as formas de interação entre os seres humanos, de nossa ancestralidade até a intermediação no universo cultural contemporâneo. Saber o que influencia a formação do pensamento dos indivíduos corrobora para a ordenação das relações entre homens e as instituições culturais que configuram a cultura de que participam (MARCONI; PRESOTTO, 2002, p. 182). Assim, essas relações, em seus mais variados aspectos, sejam físicos, naturais/biológicos, políticos ou econômicos, assim como as especificidades culturais, são campos da antropologia. Nosso recorte temporal será a partir do século XIX, período vivido por pesquisadores como Spencer e Taylor, e o desenvolvimento de teorias como a evolucionista; analisaremos o século seguinte com Claude Lévi-Strauss e o estruturalismo, passando por outros até alcançarmos as implicações dessas teorias na indústria cultural. As teorias culturais auxiliam na compreensão das várias formas de manifestação cultural da sociedade em seu espaço de atuação. As principais teorias são o Evolucionismo, o Difusionismo, o Funcionalismo e o Estruturalismo. O Evolucionismo é marcado pela ideia monogeísta para a qual o homem evoluiria do estado primitivo ao evoluído, um sobrepondo o outro, e pela ideia da poligenia, para a qual existiriam vários pontos relacionados com a evolução a serem analisados e para a qual cada grupo teria suas diferentes formas de agir, com diferentes visões, sem


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submissão. O grande nome dessa corrente foi Levi-Strauss, que estudou os povos indígenas do Brasil. Levi-Strauss propôs o termo “pensamento selvagem” defendendo que cada homem tem sua cultura. Os estudos de Lévi-Strauss foram fundamentais para o entendimento do que vem a ser a cultura na atualidade. Quanto ao Difusionismo, este veio para contrariar as ideias do Evolucionismo. Como seu representante temos Franz Boas, que propunha uma fusão entre o Evolucionismo e o Difusionismo, apontando, segundo afirma MOURA (2004) que o mesmo fenômeno tem sentidos variados em cada cultura. Já no Funcionalismo (contemporâneo do Estruturalismo), os antropólogos pregavam a superação do Evolucionismo, seus estudiosos defendiam que as necessidades biológicas determinavam as necessidades culturais do homem, deixando também de lado a “superioridade” dos valores europeus, o que reduziria o preconceito com outros povos e culturas.

O estudo dessas teorias possibilita perceber a necessidade de interação para que a cultura seja criada: um único homem não gera cultura, pois ela surge da soma das potencialidades do indivíduo, estimuladas pelo meio (MARCONI; PRESOTTO, 2002). São vários os mundos sociais e culturais por onde podemos nos enveredar; o campo de estudo da antropologia é vasto. Primordial é o aceite dessa diversidade – aprender com cada uma das teorias, fazendo uso dos aspectos relevantes de cada uma e compreender as possibilidades de aplicação – uma vez que ela elenca uma série de possibilidades pelas quais podemos ampliar nossa forma de sentir, agir e refletir.

6.1.1 A percepção evolucionista Ao contrário do que se costuma acreditar, o conceito de evolução cultural não está diretamente relacionado com a teoria evolucionista de Charles Darwin. Spencer, por exemplo, popularizou o termo evolução e ainda foi responsável por criar o conceito de “sobrevivência do mais apto” (SPENCER, (1874-1851) apud MARCONI; PRESOTTO, 2002, p. 244).

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Todas essas teorias são um meio de compreender a diversidade cultural, as particularidades e os motivos que levam as pessoas a se relacionarem. A antropologia se interessa em compreender o pensamento do indivíduo a partir do espelho fornecido pelo “outro”, assim, criamos e transformamos a cultura.


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Herbert Spencer (1820-1903) foi o cientista social responsável pela teoria do darwinismo social e representante do positivismo na Grã-Bretanha. Acreditava que a evolução seria um princípio universal, sempre operante.

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No final do século XIX, os pesquisadores se dedicavam a somente um aspecto antropológico ou abarcavam a sociedade como um todo. Existem estudos sobre a evolução do Estado, sobre a família, sobre sistemas matri e patrilineares, matrimônio, magia, religião e ciência, entre outros. Nessa época, o método aplicado era o comparativo, pois este permitiria verificar as semelhanças e as particularidades presentes nos materiais coletados, como fósseis de populações extintas (seria possível distinguir o homem do primata por exemplo) ou características físicas de populações existentes que possibilitariam a constatação das diferenças raciais. No caso do método comparativo aplicado pelo antropólogo cultural na busca de uma melhor compreensão das sociedades, a atuação desse cientista consiste em comparar costumes, culturas do passado ou presente, as rupturas e permanências, padrões, costumes, estilos de vida, cultura do passado e do presente, das populações ágrafas ou letradas. No século XIX, o método comparativo foi responsável por ordenar os fenômenos observados conforme princípios preestabelecidos em uma sequência cronológica. Primeiro detalham-se os fatos, depois eles são catalogados e organizados em diversas categorias. Tal método não foi considerado apropriado, pois a aplicação poderia variar dependendo de quem fizesse uso dele. Um elemento considerado fundamental para um pesquisador poderia ser excluído por outro se este o considerasse irrelevante.

6.1.2 Os desdobramentos das teorias As teorias antropológicas culturais tiveram seu maior desenvolvimento no decorrer do século XIX, várias escolas se desenvolveram durante esse século. O homem foi transformado em objeto de estudo; dados eram coletados e aspectos, considerados particularidades nesses grupos eram mensurados sistematicamente tendo por objetivo compreender o desenvolvimento de um grupo extinto ou não. A antropologia buscava um status de cientificidade e o método comparativo de análise e coleta dos aspectos culturais colaborou para alcançar tal objetivo.


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Entre os séculos XVI-XIX, houve a formação de uma literatura “etnográfica” sobre a diversidade cultural por meios de relatos de viagens (cartas, diários, relatórios etc.) registrados por missionários, viajantes, comerciantes, exploradores, militares, administradores coloniais etc. Os temas e conceitos registrados estavam relacionados a descrições das terras (fauna, flora, topografia) e dos povos “descobertos” (hábitos e crenças). Nesse período, surgiram os primeiros relatos sobre a alteridade. Durante o século XIX, há o desenvolvimento do Evolucionismo Social e os métodos de análise mudam substancialmente, pois agora há uma sistematização do conhecimento acumulado sobre os “povos primitivos”. Após a coleta de dados, ocorre um pormenorizado trabalho de gabinete que analisa, por exemplo, a unidade psíquica do homem, a evolução das sociedades das mais “primitivas” para as mais “civilizadas” e o início dos estudos de parentesco/religião/organização social. Nessa época, houve a substituição do conceito de raça pelo de cultura. A Escola Sociológica Francesa se desenvolveu durante século XIX e seu ponto de análise foi a definição dos fenômenos sociais como objetos de investigação socio-antropológica. Nesse período, ocorre a definição das regras referentes ao método sociológico. Na década de 1920, surge o Funcionalismo, que se instrumentaliza por meio da etnografia clássica. A ênfase dessa teoria está no trabalho de campo (observação participante). Assim como a sistematização do conhecimento acumulado sobre uma cultura, os conceitos desenvolvidos estão relacionados com a cultura como totalidade e com o interesse pelas Instituições e suas funções para a manutenção da totalidade cultural. A escola relacionada ao Culturalismo Norte-Americano se desenvolveu na década de 1930 e tem como característica o comparativo que busca leis no desenvolvimento das culturas, as relações entre cultura e personalidade e a ênfase na construção e identificação de padrões culturais ou estilos de cultura. Na década de 1940 surge o Estruturalismo, que busca as regras estruturantes das culturas presentes na mente humana. Essa escola analisa a teoria do parentesco/lógica do mito/classificação primitiva e a distinção natureza x cultura. Os princípios de organização da mente humana tal qual seus pares de oposição e códigos binários, assim como a reciprocidade, são conceitos estudados por essa escola. Um dos principais representantes dessa escola é Claude Lévi-Strauss. Além dele, Edward B. Tylor (1832-1917) também pode ser considerado um representante dessa escola. Tylor demonstrou em sua pesquisa os fundamentos da teoria evolucionista. Considerava a humanidade “[...] um todo em crescimento através dos tempos, indo da infância à maturidade, estando os povos primitivos situados no estágio infantil” (MARCONI; PRESOTTO, 2002, p. 22). Seu interesse estava centralizado em religião, folclore e outros aspectos não materiais da cultura. Segundo o pesquisador, o termo


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sobrevivência era transmitido por força do hábito de um estágio para outro da sociedade. Tylor cunhou o termo aritmética social, e seu método consistia em quantificar e comparar costumes por meio de tabelas. As relações contidas ali eram associadas facilmente. Ele é considerado fundador do método comparativo, muito embora não usasse esse termo. Na década de 1960, surge uma nova escola, a Antropologia Interpretativa, que tinha como característica o estudo da cultura como hierarquia de significados e uma busca por uma “descrição densa” ao analisar a interpretação x leis, assim como a hermenêutica. Os conceitos estavam relacionados a interpretação antropológica por meio da leitura que os “nativos” fazem de sua própria cultura. E, por fim, na década de 1980, surge a Antropologia Pós-Moderna ou Crítica, que se preocupa com os recursos retóricos presentes no modelo das etnografias clássicas e contemporâneas e a politização da relação observador-observado na pesquisa antropológica. Essa escola faz uma crítica aos paradigmas teóricos e da “autoridade etnográfica” do antropólogo e analisa a cultura como processo polissêmico. A partir daí a Antropologia é vista como experimentação/arte da crítica cultural.

6.1.3 A força do estruturalismo O estruturalismo foi uma escola que se desenvolveu concomitantemente ao funcionalismo, e o ápice de seu desenvolvimento se deu nas décadas de 1940 e 1950. O estruturalismo é um ramo da antropologia que procura explicar aspectos dos grupos por meio de suas funções, assim, cada instituição exerce papel específico na sociedade. O Estado, a escola e a família seriam exemplos dessas instituições. Já o funcionalismo procura inter-relacionar as instituições citadas com o seu ambiente externo – a sociedade maior caracterizada pela interdependência entre as organizações. Entre os pressupostos básicos do estruturalismo, podemos citar a visão sincrônica da cultura, a visão sistêmica e globalizante do fenômeno cultural, a adoção do termo estrutura e a influência da escola francesa. O principal representante do estruturalismo é Claude Lévi-Strauss, belga que morou na França e lecionou Sociologia na Universidade de São Paulo. No Brasil, Lévi-Strauss desenvolveu pesquisas de campo para estabelecer “[...] fatos que sejam verdadeiros a respeito da ‘mente humana’, mais do que apurar a organização de qualquer sociedade ou classe de sociedades” (MARCONI; PRESOTTO, 2002, p. 263). Sua pesquisa é pautada em uma análise da estrutura social, sem confundi-la com a realidade social, pois, segundo o próprio pesquisador, essas duas noções tendem a se confundir. Lévi-Strauss (1967, p. 316), porém, deixa claro que “As relações sociais são a matéria-prima empregada para a construção dos modelos que tornam manifesta a própria estrutura social”.


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O autor supervalorizava a natureza, por se tratar do meio onde as relações acontecem, e a ordem natural em sua avaliação sobre a cultura, assim, a natureza teria como um de seus produtos própria cultura. Não foi à toa que seu trabalho de campo se deu em comunidades indígenas no Brasil.

6.1.4 A indústria cultural Os filósofos alemães Max Horkheimer (1895-1973) e Theodor Adorno (1903-1969), observando o fazer artístico, cunharam o termo “indústria cultural”. O termo é utilizado para designar a situação da arte na sociedade pós-capitalista industrial. Adorno e Horkheimer (1985) fizeram parte de um grupo de intelectuais denominado Escola de Frankfurt e escreveram uma obra importantíssima sobre a indústria cultural: a Dialética do Esclarecimento. Os autores desenvolveram uma teoria crítica – pautada em alguns conceitos já apontados no século XIX por Nietzsche e pelo marxismo – que tinha como objeto de estudo as influências dos meios de comunicação de massa na sociedade. Sua tese, ao relacionar a arte e a sociedade, nos apresenta alguns apontamentos, como a ideia de que a reprodução constante é uma das responsáveis pela alienação (um consumo por produtos e situações que nos bestializam, a exemplo dos programas de confinamento que passam na rede aberta) e pela padronização dos gostos dos espectadores tendo por resultado uma massa homogênea que, em vez de auxiliar no desenvolvimento intelectual, na verdade provocaria uma atrofia cultural. Segundo esses pesquisadores, estamos em um processo de evolução tecnológica do qual não se pode escapar. Nesse processo, uma grande quantidade de informações é apresentada, produzida e consumida, aqui o padrão se torna perigoso, como citado anteriormente. Há uma possibilidade de atenuar seus efeitos, porém, é praticamente impossível ficar alheio a esse processo.

6.2 As contribuições e a análise antropológica dos impactos das teorias culturais no campo social O paradigma da escola antropológica interpretativa passou a argumentar que a cultura não é algo preso dentro da cabeça das pessoas e sim que está relacionada aos símbolos – que são responsáveis por expressar e comunicar a visão de mundo da sociedade – e esse argumento deu um novo objeto de estudo ao antropólogo. A necessidade de estudar a cultura “do ponto de vista do ator” leva a entender que a cultura é um produto de seres socialmente atuantes que buscam um sentido para o mundo no qual eles se encontram, e se nós pretendemos dar sentido a uma cultura, devemos nos situar na posição a partir da qual ela foi construída. Dessa forma, o homem é posicionado no centro do modelo de estudos antropológicos.


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6.2.1 O papel mediador da antropologia A mediação tem uma trajetória pautada em diversas interpretações. Aqui, continuaremos a considerar a Escola de Frankfurt e a relação mídia X massa X alienação X ética apresentadas por Adorno e Horkheimer. Os processos de objetividade e subjetividade a partir das interações são fundamentais para compreender como se dá a mediação. A partir da escola de Frankfurt a etnografia e a etnologia perdem forca, cedendo espaço à teoria crítica, que apresenta alguns novos princípios ao considerar os agrupamentos humanos como a ideia de que a vida social é marcada por paradoxos, antagonismos e antinomias fundamentais; onde a crítica é meio para uma atitude de transcendência; e o objetivo seria de emancipação social (e não apenas política) em uma “associação de indivíduos livres” (MARX, 1974). A transformação ocorre a partir das relações entre diferentes tipos de ser e consciência que seriam inevitavelmente mediadas em um processo interior ao indivíduo, considerando, assim, suas particularidades, mesmo este sendo influenciado pela indústria de massa.

6.2.2 As possíveis mediações culturais O despertar da crítica por parte do sujeito frente à indústria cultural ocorre morosamente. O Estado, que deveria fomentar o desenvolvimento cultural, tem cedido espaço para empresas privadas, desvinculando-se do financiamento da cultura. Aí surgem as mediações culturais relacionadas a um processo tanto artístico quanto pedagógico em que arte e cultura se encontram. Por meio dessas mediações, ocorre a integração entre a obra artística e o público, estimulando a criatividade do indivíduo. Sua percepção de determinada arte (seja ela disponibilizada na televisão, no rádio ou na internet) poderia ser ampliada, o que possibilitaria um diálogo entre sujeito X obra apreciada. O processo seria reflexivo mesmo durante momentos de entretenimento – enquanto se assiste a um filme ou ao ouvir uma música – ao contrário da suposta alienação, que ocorre por conta do que a industrial cultural nos oferece. A ampliação dos sentimentos dos educandos em relação à cultura de massa pode auxiliá-los a compreender uma série de circunstâncias que são apresentadas midiaticamente. Construir essa análise no ambiente escolar é promover condições para um diálogo sobre o que seria democratizar cultura e a influência desta no cotidiano de cada um (WENDELL, 2011, p. 10).


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6.2.3 Das teorias à sala de aula Os alunos produzem cultura por meio das interações, tomam conhecimento dos gostos dos colegas, aprendem a apreciar esse ou aquele artista e o docente pode fazer uso do gosto do educando para tratar diversos temas, como diversidade cultural, preconceito etc. As relações mediadoras que ocorrem nessa troca – na escola – durante o processo de socialização, passam por transformações que carecem de investigação e análise, justamente por sofrerem com o reordenamento institucional e público da sociedade. Devem-se considerar, nesse contexto, os sujeitos, seus papéis e os instrumentos à disposição da sociedade.

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A globalização está diretamente relacionada às transformações ocorridas no ambiente escolar, principalmente na produção cultural. O reordenamento que se dá em sua estrutura está balizado pelo acesso à informação. Adorno e Horkheimer (1985) apresentam uma relação intrínseca entre esse acesso – por meio do uso da tecnologia –, o excesso de racionalidade e a banalização dos instintos, dos sentimentos e emoções. Aos antropólogos que se propuserem a considerar a reordenação enquanto objeto cabe “[...] As teorias antropológicas fornecem mecanismos que nos possibilitam analisar o escopo das mudanças que afetam a escola hoje, reconhecendo os nexos reais e conceituais que imbricam a realidade da escola com a concretude da vida social, na forma de novos condicionamentos sociais” (LOPES, 2009, p. 179), pois os problemas educacionais advêm justamente desse reordenamento institucional. A vasta divisão das escolas e dos paradigmas da antropologia proporcionam ao educador um estudo pormenorizado que deixa de lado a análise de dados de forma etnográfica e passa a ler os membros da sociedade como seres responsável pela produção cultural do espaço.

6.2.4 Construindo novos paradigmas Alguns pontos devem assumir papel central na constituição da identidade para um sujeito ator (o aluno, nesse caso): a liberdade desse indivíduo precisa ser reforçada por uma tomada de consciência do seu papel no meio em que atua, e seus projetos e demandas precisam estar atrelados a seu desenvolvimento identitário. Precisamos compreender quais são os interesses e desenvolver o aprendizado, atrelado a eles, para além dos conteúdos.


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É nesse ponto que um debate relacionado à arte colabora para o entendimento do aluno sobre os aspectos anteriormente citados. Segundo Adorno e Horkheimer (1985) não há o que fazer quanto ao desenvolvimento tecnológico, senão uma crítica a esse desenvolvimento, que poderia amenizar a suposta manipulação que ocorre quando o capitalismo se estende sobre o momento de lazer dos indivíduos e impõe a premissa de que, para ser feliz, é necessário possuir aquilo que a mídia oferece. A consciência quanto aos objetivos da produção em massa liberta o indivíduo da alienação cultural. A sociedade tem como resultado a tentativa de preenchimento de um vazio moral e ético que procura ser resolvido com o consumo, e compreender essa situação é fundamental para que o indivíduo repense suas prioridades. Na impossibilidade de reproduzir aquilo que é oferecido via massificação midiática, as pessoas estão, segundo Adorno e Horkheimer, cada vez mais infelizes e entram em um círculo vicioso em que o “ter” tenta solucionar o vazio existente no ser, no entanto, produtos não substituem a moral e a ética. Ao considerar esses aspectos, a escola se torna democrática e caminha rumo a um modelo de educação idealizado em que o objetivo último do desenvolvimento humano é a formação crítica da personalidade (LOPES, 2009, p. 183).

6.3 O comportamento humano e as estruturas antropológicas Ao produzir cultura, o homem caminha entre aceitação e negação constantes de si e do outro. Espelhar (processo onde o que sou para o outro é simétrico ao que o outro é para mim) é parte fundamental do processo indentitário e, na constituição da identidade, o sujeito analisado se compara e se enxerga enquanto indivíduo. O problema surge quando a identidade se pauta em modelos criados e que dificilmente serão alcançados, a exemplo do corpo das modelos alterado em programas de edição. A mídia não traz essa discussão para a sociedade, afinal, muitos lucram com a transformação da cultura em mercadoria. Tal processo gera a massificação, a padronização e a consequente diminuição da qualidade do que é produzido. É vital trazer essa discussão para o ambiente escolar, apresentando as estruturas antropológicas que corroboram com a compreensão desse processo e nos permitem muitas vezes lidar com as relações sociais que ocorrem na sala de aula e fazer uso dessas estruturas na compreensão dos valores dados erroneamente a um padrão imposto ao indivíduo.


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6.3.1 Do conceito ao preconceito Os valores culturais de todos os grupos são merecedores de respeito, de forma que a imposição de mudanças em determinada cultura é rechaçada. Os usos e costumes próprios das comunidades de forma geral são influenciados pela indústria cultural, e não se trata de uma questão de escolha. Crescer tendo como norte a padronização faz com que, por exemplo, o indivíduo considere o que é diferente, fazendo com que a diferença passe a ser vista de forma negativa. A desconstrução de certos preconceitos passa pela compreensão de conceitos, como etnocentrismo e relativismo cultural, que estão diretamente relacionados com a produção cultural. O primeiro é baseado na crença de que certos grupos estariam em um estágio de desenvolvimento mais elevado e, portanto, deveriam servir como modelo para os demais, como é o caso do eurocentrismo. Já o segundo permite que o observador tenha uma visão objetiva das culturas por meio de suas particularidades, como valores e padrões.

Influência política, econômica, social, cultural etc. exercida pela Europa sobre outras áreas geopolíticas; europeísmo

6.3.2 Localizando a antropologia em seu universo cultural

O campo cultural é o mais abrangente por estudar o homem enquanto ser social e produtor de cultura. O foco é o comportamento humano que se adquire por meio do aprendizado e das trocas culturais. O debate gira basicamente entre o comportamento hereditário intuitivo e aquele adquirido (por aprendizagem) (MARCONI; PRESOTTO, 2002, p. 5).

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Na busca por respostas, a antropologia faz uso do método comparativo aplicado em pesquisas de campo e, consequentemente, coleta dados que serão analisados. Essa ciência ainda questiona uma série de semelhanças e diferenças entre os indivíduos e sua atuação enquanto grupos humanos ou sociedade. A diversidade de pesquisa é imensa, dadas as possibilidades de interação com grupos de experiências culturais diversas.


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6.3.3 Das teorias culturais à perspectiva antropológica A cultura, independentemente da sociedade que se estude, é composta por conhecimentos, crenças, valores, normas, símbolos. Tais conceitos associados ao relativismo cultural dão forma a uma somatória de complexos e integrados traços culturais que possuem organização e funções próprias. Os processos culturais justificam essa organização por meio da compreensão de como o comportamento consciente ou inconsciente se organiza. A análise desses processos passa por conceitos como difusão cultural, aculturação, assimilação, sincretismo, transculturação etc. todos relacionados com a produção de cultura.

6.3.4 Educação e antropologia: diálogos necessários O entendimento de conceitos como indústria cultural, cultura material e imaterial e o posicionamento do sujeito quanto a suas relações de acesso a bens, produtos e serviços auxilia o discente a se compreender enquanto sujeito histórico capaz de se entender, se aceitar e, principalmente, com potencialidade para encontrar seu lugar no espaço e, por consequência, o lugar do outro também.

6.4 Sintomas do mundo contemporâneo e a realidade brasileira O Brasil foi território fértil para alguns trabalhos realizados por antropólogos ulteriores a Lévi-Strauss, pois, assim como diversas outras, a cultura brasileira é riquíssima. Analisar como se deu a história da antropologia relacionada à educação e sua relação com a mídia nos permite trilhar caminhos que buscam um entendimento da cultura brasileira, assim como do paradoxo social, da compreensão da realidade e, por fim, do aprendizado sobre a diversidade e a alteridade.

6.4.1 O paradoxo social: o Brasil e o mundo desenvolvimentista Os estudos antropológicos tiveram seu apogeu na década de 1970 com referências como Franz Boas com Margareth Mead e Ruth Benedict (DAUSTER; GUSMÃO apud LOPES, 2009, p. 172). A escola conhecida como culturalismo americano muito colaborou para os estudos da década de 1970, em que a antropologia passou a observar o ambiente escolar como área com grande potencial para estudo. Tal escola tem seu desenvolvimento paralelo a teoria econômica, em que o Estado deveria intervir no desenvolvimento social com destaque para as políticas de implantação da indústria nos principais países da América, incluindo o Brasil.


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A economia brasileira foi parte deste projeto de modernização, que teve por objetivo integrar o território, dando-lhe infraestrutura, emprego e tecnologia. O objetivo último desse projeto grandioso foi a criação de uma sociedade democrática e aperfeiçoada, dando novo sentido à “civilização brasileira”, como então se dizia. O contato entre os indivíduos e a urbanização experimentada fizeram com que as pessoas exigissem cada vez mais o acesso à cultura, aos bens materiais e aos serviços prestados, como saúde e educação. Isso posto, houve, após década de 1960, um reordenamento no que tange aos objetos de estudos tradicionais da antropologia, saindo dos estudos tradicionais relacionados a raças e etnias para uma abordagem epistemológica (estudo da diversidade do homem por inteiro). Os estudos antropológicos sobre a educação apresentaram, àquele tempo, mudanças referentes à diversidade cultural, antes mais isolados e notadamente pouco integrados para um modelo em que a relação entre os sujeitos é fundamental para a compreensão das categorias nas quais esses indivíduos se encaixam. O interessante é que essa integração torna o ambiente plural em manifestações; mesmo que conflituosas, tornam dinâmicas as transformações e trocas culturais.

6.4.2 “O homem cordial”: uma releitura crítica do Brasil As teorias antropológicas que foram aplicadas na compreensão do povo brasileiro enquanto mistura de portugueses, indígenas e africanos: essa diversidade etnográfica dá origem a um homem movido pelos instintos do coração que prioriza as relações sociais e o afeto em detrimento da razão. Sérgio Buarque de Holanda, em sua obra Raízes do Brasil, dialoga sobre como se dão as relações sociais entre os brasileiros por meio da familiaridade e da intimidade ao explicar o homem cordial. Ainda segundo Holanda, esse homem tenta estreitar distâncias, releva uma série de fatores, passa por cima da burocracia, faz uso de diminutivos e da familiaridade. Existe uma repulsa pelo que é impessoal e o desenvolvimento de um certo patrimonialismo. Aí estaria contido, segundo o autor, a síntese do que seria o “jeitinho brasileiro”. Não devemos tomar tais afirmações como verdades acabadas, porém, elas nos possibilitam refletir sobre a condição humana do brasileiro.

Se você acha que o nome lhe parece comum, não se trata de mera causalidade: Sérgio Buarque de Holanda é pai de Chico Buarque, famoso compositor brasileiro que teve papel relevante durante a ditadura militar com suas músicas que protestavam contra o regime.


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6.4.3 A percepção social da realidade A escola enquanto escopo da análise do antropólogo se volta para o impacto causado pela economia e suas consequentes implicações na educação. O consumo, a produção cultural e a mídia são fatores também relacionados a essa avaliação. Algumas consequências se acentuam quando o pesquisador parte dessa análise:

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[...] a adoção de propostas distintas de regime escolar para sujeitos de classes pobres, sobretudo no sistema educacional público; a mudança do discurso oficial sobre as políticas educacionais; a introdução de mecanismos avaliativos do sistema educacional [...] o crescente processo de exclusão social; as transformações no estatuto do sujeito contemporâneo; a ruptura ou a dissolução do papel mediador da escola no processo de socialização, entre outras (LOPES, 2009, p. 180).

Na escola, o indivíduo trilha seu caminho na busca “[...] das condições que lhe permitem ser o ator da sua própria história” (TOURAINE,1999 apud LOPES, 2009, p.181), daí que o sujeito se torne resultado da reconstrução e recuperação da unidade do indivíduo, seja por seu desejo de ser ator ou por seu esforço de subjetivação (que seria a construção de si como sujeito). Esses fatores são fundamentais na constituição de sua identidade. Os sujeitos coletivos que são resultado da impossibilidade do consumo fomentado pela indústria cultural se unem em diferentes movimentos sociais, cada qual com seu viés identitário. Os referenciais simbólicos presentes nos movimentos sociais coletivos se regem por valores da cidadania e da democracia, compreendendo vários desdobramentos. A cidadania – atualmente algumas escolas de período integral oferecem a disciplina Direitos Humanos – inclui as noções de direitos humanos, civis e sociais. Esse espaço, se bem trabalhado, auxilia o educando a diferenciar a cultura da indústria de entretenimento, em que a primeira deveria trazer a reflexão enquanto a segunda visa despertar a necessidade de consumo.

6.4.4 Aprendendo com a realidade e a alteridade O reconhecimento do outro no ambiente escolar e a interação entre seus sujeitos são processos que brotam de contradições e tensões, vivenciadas na ordem social ali imposta, e um de seus difusores é a indústria cultural. Compreender esse processo é


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princípio norteador da alteridade. O indivíduo só pode existir por meio de seu contato com o outro e esse contato deve ser compreendido.

Alteridade é um substantivo que expressa o estado do que é outro ou do que é diferente. É um termo abordado pela filosofia e pela antropologia. Como a alteridade é o estudo das diferenças e o estudo do outro, ela assume um papel essencial na antropologia.

Por meio da alteridade com a infância, Adorno (1995) explicita a necessidade de trabalhar a educação já na primeira infância, pois neste momento da vida os mecanismos de defesas ainda não estão completamente instaurados. Na experiência com infância do outro, o docente corrobora na formação da identidade do indivíduo ao se aproximar da imaginação e fomentar o conhecimento – em uma lógica ainda diversa daquela instaurada no mundo adulto – por meio de uma experiência sensível que indique um potencial de criação, promovido por uma curiosidade natural que habita a criança. Outra possibilidade é poder vislumbrar a desenvolvimento de um pensar em que o educador necessita enxergar o outro de si, na sua própria experiência com a infância, pois ao se distanciar nesse processo de espelhamento consegue aproximar-se de uma outra experiência, que não é mais a sua. O profissional da educação deve estar aberto a compreender as nuances, as rupturas e permanências da sua infância comparada a do outro a fim de auxiliar a criança a se tornar sujeito ativo fazendo com que - por si mesma - atribua sentidos para a sua existência no mundo.


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Referências ADORNO, T. W; HORKHEIMER, M. Dialética do Esclarecimento. Tradução de Guido Antonio de Almeida. Rio de Janeiro: Zahar, 1985. CANDAU, V. M. (Org.). Reinventar a Escola. Petrópolis: Vozes, 2004. EAGLETON, T. A Ideia de Cultura. São Paulo: Unesp, 2005. HOLANDA, S. B. Raízes do Brasil. Raízes do Brasil. 8. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1969. LAPLANTINE, F. Aprender Antropologia. São Paulo: Brasiliense, 2000. LÉVI-STRAUSS, C. Antropologia Estrutural. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1967. LOPES, J. R. Antropologia, Educação e Condicionamentos Culturais. Curitiba: UFPR, 2009. MARCONI, M. A.; PRESOTTO, Z. M. N. Antropologia: uma introdução. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2002. MARX. K. O Capital. Londres: Lawrence and Wishart, 1974. MELLO, L. G. Antropologia Cultural: iniciação, teoria e temas. 8. ed. Petrópolis: Vozes, 2001.   MOURA, M. M. Nascimento da antropologia cultural: a obra de Franz Boas. São Paulo: Ed. Hucitec, 2004 SILVA, T. T. Documentos de Identidade. Belo Horizonte: Autêntica, 1999. TOURAINE, A. Igualdade e Diversidade. São Paulo: Edusc, 1999. WENDELL, N. A Mediação Teatral na Formação de Público: o projeto Cuida Bem de Mim na Bahia e as experiências artístico-pedagógicas nas Instituições Culturais do Québec. 2011. Tese (Doutorado) – Programa de Pós-graduação em Artes Cênicas, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2011.



7 Temas contemporâneos da educação em perspectiva antropológica Neste capítulo, abordamos a origem do povo brasileiro na perspectiva cultural e a consequente inserção das questões de etnia e gênero no campo da educação. Com isso, esperamos que o aluno amplie sua visão de mundo no que se refere ao reconhecimento da riqueza cultural do Brasil, de forma a permitir-lhe engajar-se criticamente às relações que envolvem esses temas.

7.1 A presença indígena na cultura brasileira Os índios se dividem em diferentes povos de costumes, hábitos e línguas diversas. Essa diversidade cultural entre os grupos ou tribos, cada um com sua cultura, suas crenças e seus conhecimentos, tem presença, ainda que parcial, na cultura brasileira, na língua, na culinária, no folclore e em alguns usos e práticas populares. No entanto, as consequências da colonização via catequese, escravidão, intensa miscigenação e, por vezes, extinção foram desastrosas para os povos indígenas, física e culturalmente. O resultado disso é que apenas algumas nações indígenas conseguem manter parte de sua cultura original. Na sequência, apresentamos essa batalha social historicamente empreendida, desde a imagem que fazemos do índio, as consequências desse (pré) conceito, até as políticas educacionais de inclusão social que procuram respeitar as individualidades culturais dos povos indígenas.

7.1.1 A identidade cultural indígena A imagem que temos do índio ainda é bastante estereotipada. A noção romântica de “bom selvagem”, cativo e submisso à cultura branca, foi muito influenciada pela literatura, pelas artes plásticas e também pela imprensa, especialmente no século XIX e início do XX. Para Oliveira e Freire (2006), a história dos índios não deve ser vista apenas através do elemento de extermínio e subjugação. Os indígenas ofereciam resistência aos colonizadores e usavam diversas estratégias de conquista desde as primeiras relações de escambo. Foi da necessidade de desenvolver o território nacional e demarcar fronteiras com mais precisão que passamos a ter contato com grupos e aldeias mais isoladas. Desse contato real, uma nova identidade sobre o indígena brasileiro começou a ser construída no nosso imaginário, agora “selvagem” e “bravo”, defensor da terra e sua cultura, pois assim respondiam aos militares e sertanistas que chegavam a seus territórios.


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A imprensa contribuiu em raros momentos na divulgação de um retrato mais fiel do cotidiano dos índios, sua vida em família, suas crenças, as técnicas de sobrevivência, especialmente quando as expedições dos irmãos Villas Bôas e do sertanista Francisco Meirelles foram noticiadas. Contudo, no fim, as imagens sobre os índios divulgadas a partir dessas ações oficiais oscilavam entre o respeito à vida tradicional e o estímulo à aculturação (FREIRE, 2005).

Aculturação é um conceito antropológico referente ao processo de fusão ou modificação cultural de um indivíduo, grupo ou povo que, por contato continuado, adapta-se a outra cultura ou dela extrai características significativas.

A partir dos anos 1970, os índios construíram uma nova imagem com a criação do movimento indígena e a participação em foros e eventos internacionais. Nos últimos anos, os próprios índios passaram a produzir e a veicular imagens em vídeo, divulgadas pelas aldeias e pelos fóruns urbanos. As organizações indígenas, por meio de publicações, vídeos, CDs e seus sites, têm procurado manter informada a opinião pública não só das demandas e propostas políticas indígenas, mas também sobre a diversidade de sua cultura (OLIVEIRA; FREIRE, 2006). O imaginário atual sobre o índio brasileiro ainda envolve preconceitos ou desconhecimento sobre a vida cotidiana dos diferentes povos em nosso território. Nesse sentido, cada vez mais os movimentos indígenas tomam as ruas e são notícia na imprensa contribuindo para a desconstrução desse imaginário.

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Essas e outras incursões em território indígena ocorreram no decorrer do século XX e resultaram nos censos de 1900, 1920, 1940, 1950 e 1980. Um problema, no entanto, persistiu nesses levantamentos oficiais: as culturas indígenas foram sistematicamente negadas e seus povos não foram individualizados. Os indígenas eram classificados em categorias sociais que indicavam a mestiçagem e os situavam entre os brasileiros “pardos”. É por essa razão que concepções sobre o branqueamento e posteriormente a valorização da mestiçagem ganharam força e sucessivamente status de ideologia oficial em nosso país (OLIVEIRA; FREIRE, 2006).


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7.1.2 A resistência indígena Em meio a políticas de branqueamento do índio brasileiro, os povos indígenas têm sobrevivido a uma cultura de imposição e, pouco a pouco, conquistam seus direitos e têm suas individualidades respeitadas. A partir dos anos 1970, além do trabalho de grupos indígenas específicos a fim de manter sua identidade cultural e desmistificá-la diante da opinião pública, passou a vigorar no discurso indígena o conceito de ruptura com as políticas de proteção do Estado. O Estado, como responsável em prover e cuidar dos povos indígenas, sempre foi motivo de discussão e contribuiu para sua imagem de “dependentes” e “incapazes”. Por isso, para terem seus direitos reconhecidos e fazerem sua própria mobilização política, os índios superaram rivalidades entre seus próprios grupos e se uniram na luta por interesses comuns. De acordo com Bertagna (2015), o movimento indígena se constituiu à margem da política indigenista oficial e ainda tem como objetivos principais a luta por terra, saúde, educação e autonomia para gerir suas atividades cotidianas. É considerada como a primeira conquista do movimento indígena a Constituição de 1988, em cujo texto finalmente foram incluídos o direito de cidadania, de ser diferente, de viver conforme seus próprios princípios de organização social, política, cultural e cosmológica, o direito a uma legislação específica que garanta seus territórios, uma educação diferenciada, multicultural e bilíngue, bem como a prática de seus costumes e tradições (BERTAGNA, 2015).

7.1.3 Projetos de educação indígena A Educação indígena parte de um princípio intrassocial, ou seja, ocorre no contexto social em que se vive e dispensa o acesso à prática e à cultura escrita, assim como aos conhecimentos universais. Segundo Maher (2006), nas sociedades indígenas, o ensinar e o aprender são ações que pertencem à rotina do dia a dia, ao trabalho e ao lazer e não se restringem a espaços determinados, como a escola. No entendimento indígena, todo o espaço físico da comunidade é a escola. Nesse espaço, cada povo indígena tem seus próprios meios de educação, como a transmissão oral do saber e das tradições valorizadas socialmente. Quando tratamos de projetos de educação, trabalhamos com “Educação escolar indígena”, que compreende um sistema específico de implementação da escola nas comunidades indígenas. Os principais objetivos da educação escolar indígena (BRASIL, 1998, p. 26) são:


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valorização das culturas dos povos indígenas e afirmação e manutenção de sua diversidade étnica;

fortalecimento das práticas socioculturais e da língua materna de cada comunidade indígena;

formulação e manutenção de programas de formação de pessoal especializado, destinados à educação escolar nas comunidades indígenas; desenvolvimento de currículos e programas específicos, neles incluindo os conteúdos culturais correspondentes às respectivas comunidades;

elaboração e publicação sistemática de material didático específico e diferenciado;

afirmação das identidades étnicas e consideração dos projetos societários definidos de forma autônoma por cada povo indígena.

Nesse sistema, o acesso aos conhecimentos universais é garantido a partir das formas de construção do conhecimento propriamente indígena. Não se trata de adaptação por parte dos indígenas aos conhecimentos da sociedade não indígena e vice-versa, mas de construção de um saber intercultural em conjunto.

7.1.4 Aprender com os índios A educação pode ser imposta por um sistema, ou pode existir livre, ser uma fração do modo de vida de um grupo social, que cria e recria invenções de sua cultura e as transmite, sejam as palavras da tribo, os códigos sociais de conduta, as regras do trabalho, as técnicas da caça e da sobrevivência. Se em nosso sistema não há espaço para aprender com o índio, que ao menos aprendamos sobre o índio. Fruto da luta dos movimentos indígenas e de negros/afrodescendentes, a Lei n. 11.645 de 2008 surgiu com o objetivo de mudar os conceitos preconcebidos e discriminatórios em relação a esses povos. Nesse sentido, o ensino da cultura indígena passou a ser obrigatório nas escolas para que os alunos tenham um contato maior e mais adequado com essa cultura, parte integrante da história brasileira. Muitas vezes, a imagem do índio que se constrói na escola é a que permanece para o resto da vida, visto ser escasso o contato com a temática indígena em outros períodos da vida (BERGAMASCHI; GOMES, 2012). No entanto, é necessário que professores estejam preparados para tratar sobre a temática indígena. Deve-se superar a invisibilidade histórica desses povos que se


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estende até o presente, contrariando as previsões pessimistas que perduraram durante boa parte do século XX, as quais acreditavam no extermínio dos índios, quebrando a visão romantizada a seu respeito e, principalmente, aprendendo conhecimentos respeitosos de sua história e cultura (BERTAGNA, 2015).

7.2 A presença do afrodescendente na cultura brasileira A cultura afro ou negra é muito vasta, rica e transcende fronteiras. Por muito tempo, e ainda hoje, mesmo com os avanços conquistados (por força de lei), temas da referida cultura permanecem encobertos por preconceitos e até mesmo pelo não reconhecimento como cultura, revelando o desconhecimento do Brasil sobre suas próprias origens. Este tópico trata da identidade cultural afro em nosso país e a luta por sua inserção social e cultural.

7.2.1 A identidade cultural afro A cultura negra, também denominada afro, norteia e inspira a cultura brasileira, pois é integrante desta. Estudos apontam que em torno da metade da população brasileira é negra ou parda, logo, descendente direta do povo negro. Inclusive, tem-se que, de fato, o Brasil possui a maior população de origem africana fora da África (SILVA, 2014) e a segunda maior população negra do mundo, atrás apenas da Nigéria (ROMÃO, 2005).

No entanto, ainda há um bloqueio sistemático em pensar a África diferente das caricaturas presentes no imaginário social brasileiro. Para Cunha Jr. (1997, p. 58), a imagem do africano na nossa sociedade é a do selvagem acorrentado, da escravidão e da miséria, sustentada nas representações africanas como a terra dos macacos, dos leões, dos homens nus; por outro lado, “Quanto aos povos asiáticos e europeus as plateias imaginam, castelos, guerreiros e contextos históricos, sociais e culturais”. Essa gravura, por exemplo, representa os escravos negros (subjugados), que tem presença constante nos materiais didáticos e no imaginário nacional.

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O negro não veio sem cultura de seu local de origem. Ao entrar no Brasil, ele se deparou com uma realidade muito diferente daquela em que vivia. O colonizador europeu os considerava apenas mão de obra, contudo, no continente africano, o negro vivia em tribos de diferentes etnias em que a heterogeneidade cultural era imensa, com práticas culturais diferenciadas.


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7.2.2 A resistência dos escravos Quando vinculamos o conceito de cultura à ideia de civilização, costumamos deixar o continente africano sem classificações positivas. Isso ocorria no período da colonização e se manteve na nossa mentalidade até hoje. Em função da herança da escravidão e do processo de partilha da África, nos fins do século XIX e início do século XX, preservou-se no nosso país, não exclusivamente, a imagem de um continente de tribos selvagens, onde se pegavam escravos para comercializá-los (ROMÃO, 2005). Mesmo com o fim da escravidão, assim como das designações “livre” e “escravo”, nos deparamos com um novo problema: a classificação por cor de um enorme contingente populacional. Essa população, que foi vítima da instituição escravista e, por consequência, desvinculada de seu passado étnico-cultural, agora sofre as desigualdades sociais como herança.

O documentário “A pele negra” entrevista jovens de classe média e média alta, professores universitários, moradores de comunidades do Rio de Janeiro para saber como é ser negro no Brasil miscigenado 126 anos depois da escravidão.

7.2.3 A luta pela liberdade e a necessidade das cotas O Brasil conseguiu, ao longo de sua história, produzir um quadro de extrema desigualdade entre os grupos étnico-raciais negro e branco, e foi por meio da legislação que os direitos do povo negro foram assegurados, principalmente na segunda metade do século XX. A partir da criação da Organização das Nações Unidas (ONU), em 1945, e a proclamação, em 1948, da Declaração Universal dos Direitos Humanos, o Brasil iniciou as ações de combate ao racismo e ao preconceito sancionando a Lei Afonso Arinos (1951), que caracterizou a discriminação racial como contraversão penal ao proibir a discriminação racial no Brasil. Em seguida, vários movimentos e eventos foram organizados no país em prol da eliminação de todas as formas de discriminação racial. Assim, chegamos a mais uma conquista, a Constituição de 1988, que considerou a prática do racismo como crime inafiançável e imprescritível, e as manifestações culturais como um bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, idade e quaisquer outras formas de discriminação. Posteriormente, foi publicada a Lei n. 7.716/1989, a chamada Lei Caó, que define os crimes resultantes de discriminação por raça ou cor (BRASIL, 2006). Como políticas afirmativas, a destinação de cotas para negros nas universidades públicas surge na última década também como dívida social do Estado. A implantação


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das cotas em diversos estados e universidades estaduais e federais é amparada por legislação específica. A discussão a respeito das cotas traz à tona a questão da democratização de acesso ao ensino, especificamente ao ensino superior. Esse debate aponta problemas como as vagas oferecidas pelas universidades não atenderem à demanda dos diferentes setores da sociedade, em especial daqueles que estão sub-representados, como é o caso dos negros.

7.2.4 Por um projeto de educação afro: a riqueza cultural do encontro Essencial ao processo de formação de qualquer sociedade, a educação abre caminhos para uma cidadania ampla. Ela se constitui em um dos principais mecanismos de transformação na sociedade, e por isso é dever da escola promover o ser humano e sua integralidade de forma democrática e comprometida, estimulando a formação de valores que respeitem a diversidade de grupos sociais e minorias (BRASIL, 2004). Nesse contexto, com a aprovação da Lei n. 10.639, em 2003, foi alterada a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, no 9.394/1996, para incluir no currículo oficial a obrigatoriedade da temática História e Cultura Afro-brasileira e africana. Isso assinala a intenção do estado brasileiro em eliminar o racismo e a discriminação racial nas escolas (BRASIL, 2006). Ao valorizar a diversidade brasileira, reconhecendo a participação efetiva de africanos e afrodescendentes na construção da sociedade nacional, a Lei no 10.639/2003 gera uma demanda específica: formar professores para aplicar determinados conteúdos até então apagados dos currículos escolares e da formação profissional dos docentes (BRANDÃO, 2010). Por outro lado, na opinião de Arantes e Silva (2009), na realidade da sala de aula, uma lei não implica necessariamente uma mudança de práticas de desvalorização da história e da cultura do povo negro historicamente constituídas. Para os autores, mesmo no caso de se inserir a temática em sala, o enfoque dado pelos professores pode em determinados casos reforçar ainda mais a situação de exclusão do povo negro do sistema oficial de ensino. O multiculturalismo se torna, então, uma das chaves para entender e pôr em prática esses novos conteúdos em ambiente escolar.

7.3 O multiculturalismo em debate O multiculturalismo é a base da discussão deste tópico. Esse discurso tangencia o campo da educação, pois, infelizmente, o espaço da escola é o lugar de consolidação e disseminação de conceitos equivocados que encobrem a real complexidade


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constitutiva de nossa sociedade. Nosso objetivo agora é entender o porquê da histórica subordinação da diversidade cultural ao projeto de homogeneização que tem imperado nas políticas públicas.

7.3.1 O espaço da sala de aula como encontro das diferenças

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Para que o espaço da sala de aula se constitua em ambiente de encontro da diversidade, é necessário pensar em políticas de inclusão. Contudo, a inclusão na educação nem sempre compreende o trabalho sobre a diversidade de grupos que se encontram à margem da sociedade. É comum reduzir a complexa problemática social da inclusão ao espaço escolar como se, uma vez matriculados os alunos nas classes comuns, estaria garantida sua inclusão educacional e social. A questão é mais complexa. É preciso refletir a respeito dos conceitos de inclusão, determinar a quem ela se destina e onde deve ocorrer. Para a Secretaria de Estado de Educação do Paraná (2010), políticas e práticas de inclusão não têm um significado único e consensual, já que são determinadas por múltiplos fatores. Tais fatores incluiriam uma variada rede de significações que se constituem na relação entre diferentes visões e formas de pôr em prática esse processo, o que determinaria a real efetivação da inclusão, especialmente no ambiente cada vez mais multicultural da sala de aula.

7.3.2 O que nos faz pensar que somos diferentes? É a vontade por democratização e afirmação dos direitos humanos na sociedade brasileira que forçou muitas de nossas instituições oficiais a mudarem suas políticas historicamente descomprometidas com as diferenças culturais de grupos minoritários, pois foi pelo crivo da inferioridade que as diferenças culturais dos povos indígenas, dos afrodescendentes e de outros povos portadores de identidades específicas foram sistematicamente negadas, como apontam algumas das crenças a seguir (OLIVEIRA; FREIRE, 2006, p. 13-14). • A ideia de índio genérico. Acredita-se que esses povos compartilham dos mesmos costumes, crenças e língua. • A ideia de cultura como atrasada, pobre, inferior, não reconhecendo a importância, as inovações e a capacidade/necessidade de adaptação de seus conhecimentos.


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• A noção de congelamento de suas culturas. Ainda se pensa nos indígenas nus, usando arco e flecha na floresta, e aqueles que não se enquadram nesse estereótipo deixariam de ser índios.

• A ideia de que o brasileiro não é índio, não enxergando, assim, a participação dos indígenas na formação de sua identidade. Ao abordarmos outro grupo estigmatizado, os afrodescendentes, quais noções equivocadas ainda persistem em nosso meio? A mistura étnico-racial no Brasil deveria ser marca constitutiva da nossa noção de povo brasileiro, mas ainda persistem noções equivocadas sobre o “lugar” social de determinadas etnias.

7.3.3 As resistências a uma política de inclusão social As resistências à inclusão social ocorrem em vários setores da sociedade. Muitos negam a questão central de que a invisibilidade da diversidade é geradora de desigualdades sociais. As políticas públicas de inclusão social têm a difícil tarefa de promover cidadanias afirmadoras das diferentes identidades culturais em um mundo que vive a tensão entre pluralidade e universalidade. Como já abordamos anteriormente, a inclusão escolar é um dos caminhos, mas como transformar a pluralidade social presente no microespaço da sala de aula em estímulo para rearranjos pedagógicos e curriculares? Como superar a invisibilidade institucionalizada das diferenças culturais em nossa sociedade?

7.3.4 Multiculturalismo e interculturalidade: aproximações e distanciamentos Multiculturalismo se refere ao reconhecimento oficial da existência de grupos culturalmente diferentes em um mesmo país. Seu principal foco é educação, pois vê na escola ambiente ideal para as ideias de igualdade para todos e de combate à discriminação e ao racismo. Contudo, o multiculturalismo também reconhece a necessidade de se refletir no espaço da escola as bases desse entendimento. Segundo Faustino (2006, p. 84), de forma geral, os países que adotaram as políticas multiculturais

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• A crença de que os índios pertencem ao passado do Brasil, e o não reconhecimento sua existência e importância no presente.


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elaboraram uma reforma em sua constituição para, então, dirigir o foco de ação para a reforma política educacional, dando ênfase ao currículo, ao material didático e à formação dos professores.

“Multiculturalismo: Diferenças Culturais e Práticas Pedagógicas”, de Moreira e Candau. Editora Vozes, 2008. Essa coletânea reúne procedimentos pedagógicos cujo mote são as questões de identidade, raça, gênero, sexualidade, religião e cultura juvenil que circulam na escola.

De modo similar, a interculturalidade também supõe abertura diante das diferenças étnicas, culturais e linguísticas, aceitação positiva da diversidade, respeito mútuo, busca de consenso e, ao mesmo tempo, reconhecimento e aceitação do dissenso. Lopez-Hurtado Quiroz (2007) complementa essa definição com a construção de novos modos de relação social e maior democracia. Para alguns autores, esses conceitos se contrapõem, ao menos na definição. Para Candau (2012), enquanto o multiculturalismo é a “afirmação” dos diferentes grupos culturais em sua diferença, o interculturalismo evidencia as “relações e inter-relações” entre os diversos grupos culturais. Contudo, também há aqueles que usam esses termos praticamente como sinônimos: o multiculturalismo sendo mais próprio da produção acadêmica do mundo anglo-saxão e a interculturalidade própria dos países de línguas neolatinas, particularmente o espanhol e o francês.

7.4 Projeto de educação dos valores em defesa de uma cultura plural Este tópico encerra, mas não conclui nossa discussão sobre os desafios de uma educação plural em um mundo globalizado que enfatiza individualidades acima do coletivo. Isso se mostra especialmente nos desafios do ambiente escolar, espaço de transformação da realidade social.

7.4.1 Por uma educação plural O passado de “esquecimento” da importância de índios, africanos e afro-brasileiros, assim como a negação sistemática da existência de discriminação racial e a ideia de nação mestiça criam, ainda, resistências à abordagem da temática das relações étnico-raciais, que surgem nas salas de aula, na comunidade universitária, na mídia, na política nacional.


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Nos Parâmetros Curriculares Nacionais, o tema da pluralidade cultural diz respeito ao conhecimento e à valorização das características étnicas e culturais dos diferentes grupos sociais que convivem no território nacional e contribuíram na formação da nossa cultura. A educação plural também visa às desigualdades e à crítica às relações sociais discriminatórias e de exclusão presentes na sociedade brasileira. O viés pluralista oferece ao aluno a possibilidade de conhecer o Brasil como um país complexo, de características multifacetadas e, por vezes, paradoxais (BRASIL, 1997).

7.4.2 O outro como um valor O acolhimento e reconhecimento da presença do outro, de sua alteridade, é uma questão de respeito e aceitação que pode ser ensinada, estimulada e dada como exemplo, por isso o viés pluralista é vinculado à cultura escolar. O outro como um valor significa a valorização da diversidade cultural do Brasil, buscando, via conhecimento, atuar sobre a discriminação e a exclusão, e resultando no pleno exercício da cidadania.

7.4.3 Desafios de uma sala de aula Ministrar os conteúdos e temas em perspectiva plural e multicultural como as diretrizes nacionais estabelecem pode nem sempre ser uma experiência fácil. A realidade da sala de aula costuma, infelizmente, ser tensa, com reações hostis por parte dos interlocutores. Por isso, é importante que o docente, além de dominar os conteúdos, se valha de um suporte teórico-metodológico para enfrentar essa discussão. Metodologias que partem do pluralismo, da diversidade e das relações entre saberes e práticas não ocorrem de modo harmonioso, linear e tranquilo, sobretudo quando estão relacionadas a temas polêmicos, como é a questão das relações étnico-raciais brasileiras. Nesse sentido, a sala de aula se torna um desafio, pois professores, gestores educacionais, alunos e sociedade vão se deparar com um universo de pontos de vista diferentes, debates, divergências sobre o livro didático e a educação; o trabalho com crianças, adolescentes, jovens; as práticas docentes diversas, questões ainda não consensuais (BRANDÃO, 2010).

7.4.4 Globalização cultural? Constata-se uma grande produção intelectual resultante de políticas de ações afirmativas que, apesar de dispersa e nem sempre atraente aos olhos da mídia, procura formular uma crítica consistente à intolerância e às injustiças causadas pela não aceitação da diversidade em diversas partes do globo.


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Essa situação revela o lado mais oculto da globalização, com a cultura das mídias desempenhando um papel poderoso nesse processo que pode ser para o bem ou para o mal. A escola, na atual circunstância de saberes e informação compartilhados e globalizados, não dá conta de diversas desconstruções. Sendo assim, a televisão e a mídia eletrônica, lugares plurais de difusão de hábitos e ideologia, também devem ser alvo para a quebra das injustiças no reconhecimento da cultura do outro, que se inicia na escolha da linguagem e do discurso do profissional de comunicação.


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8 Debates e temas contemporâneos de uma antropologia educacional A busca por procedimentos que colaborem com o processo educacional é uma constante. Novos métodos são testados, novos gatilhos são propostos, como a utilização da tecnologia para o ensino, por exemplo. No entanto, existem algumas barreiras difíceis de transpor, entre as quais a dificuldade de acompanhar o avanço tecnológico e as interações que ocorrem na rede.

Os professores atendem a programas de currículos que corroboram uma estrutura verticalizada e arcaica vinculada ao Estado. Os materiais pouco consideram a diversidade dos locais e, na verdade, tendem a uma estrutura homogênea, o que reduz a possibilidade de exploração de recursos. Equipamentos sucateados, escolas depredadas, sociedade carente levam o país a uma base nacional comum que acaba por padronizar o ensino, e esse padrão impossibilita repensar o modelo educacional obsoleto. Apesar das dificuldades, os caminhos para aprender se multiplicam e os indivíduos já são reconhecidos pelos frutos que produzem, a exemplo das universidades que atendem na modalidade EaD, cursos disponibilizados virtualmente em plataformas como Veduca, entre outros. Onde se encaixa o educando nesse processo? Ensino e aprendizagem se desvincularam? A reprodução de conteúdo perdeu espaço para a aprendizagem em rede? Como superar o modelo sucateado? Vários são os questionamentos que se levantam ao analisar a sociedade em rede. Adorno e Horkheimer (1985), na obra Dialética do Esclarecimento, já nos advertiram que não é possível se libertar do desenvolvimento tecnológico, porém, a análise crítica possibilita a amenização dos efeitos que todo o desenvolvimento tecnológico – esclarecimento – tem sobre a condição humana.

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Devemos sempre tem em mente que ensino se trata da apresentação de conteúdos, diferentemente de aprendizagem, que se refere à criação de conhecimento.


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8.1 O mundo em rede e suas implicações na vida em sociedade Os alunos desejam aprender e esse aprendizado vai além da reprodução de conteúdo. A escola, portanto, deve se tornar um local voltado para criação do conhecimento em detrimento do ensino. Os caminhos já estão preestabelecidos e não há espaço para o fluxo de criação, o que dificulta as tentativas e erros – os quais, como sabemos, resultam na produção de conhecimento. Isso posto, de qual forma a escola pode agir para fomentar a aprendizagem? Um dos caminhos possíveis é a interação. Para Sugata Mitra (2010), ao contrário do que muitos pensam, o que possibilita a aprendizagem não é a mera disponibilização de aparatos tecnológicos.

Em “O Ensino Virado para as Crianças” (2010), Sugata Mitra analisa a aprendizagem por meio das tecnologias. Parte de suas pesquisas aborda as crianças que aprendem por meio de computadores e ensinam umas às outras. Esta seria uma definição para aprendizado em rede.

Para que uma escola consiga potencializar a aprendizagem, não é necessário que cada aluno tenha seu computador, e sim que um único computador atenda a quatro crianças ao mesmo tempo, pois assim o meio potencializa a interação entre os sujeitos, estimulando a criatividade. Não devemos considerar este um modelo pronto e acabado, mas um dos muitos formatos que têm sido aplicados na tentativa de melhorar o processo educacional.

8.1.1 O privado se tornou público Ferramentas utilizadas por meio da internet têm os mais variados fins. Seu uso transita entre o pessoal e o profissional, e os indivíduos que utilizam essa tecnologia às vezes não conseguem separar as informações que disponibilizam na rede. Consequência disso é o excesso de informações particulares expostas inadequadamente nas redes sociais. Potencializamos a exposição do “eu” por meio do crescimento da capacidade de comunicação com os demais em qualquer local do mundo, e a rede fomenta esse processo de comunicação. Pensar na influência que a rede exerce sobre as pessoas nos faz perguntar por que não fazer uso de tal recurso para desenvolver a aprendizagem dos alunos. É o que veremos na sequência.


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8.1.2 As redes sociais invadem a sala de aula O entendimento desse contexto depende de ter em mente a diferença da rede social e da internet. A primeira existe desde que os primeiros grupos humanos começaram a interagir; a segunda é a ferramenta que tem potencializado essas relações sociais. Essas redes sociais possibilitam a interação e a troca de conhecimento. Os alunos aprendem juntos. Algumas experiências, como orientar que os alunos se sentem em duplas ou que troquem seus cadernos no momento de corrigir as atividades, podem colaborar para esse processo de aprendizagem.

8.1.3 Educar em rede Educar em rede nos remete à ideia de que o indivíduo deve desenvolver sua habilidade de aprender a aprender. Na rede, tudo está disponível: cabe ao indivíduo decidir o que deseja para seu desenvolvimento intelectual. A escola pode fazer uso desse mecanismo ensinando ao aluno como obter informações relevantes e de fontes confiáveis. Não basta consultar a rede na busca de informações; essas informações têm que ser referenciadas, e o professor pode auxiliar o educando nesse processo de reconhecimento da qualidade da informação.

8.1.4 Somos uma teia Ao confundir o público e o privado, acabamos por fazer da internet um grande palco, um espaço democrático que pode ser utilizado como um grande shopping ou como um museu, entre tantas outras possibilidades. Os conteúdos postados podem ser lidos, compartilhados, retransmitidos, comentados. A releitura criada é novamente disponibilizada e, assim, enredamos o conhecimento e nos ligamos por meio dele. Por vezes, não temos noção do alcance de nossas publicações. Uma vez que o conteúdo é disponibilizado, não há como retirá-lo. Exemplo disso foram as fotos de uma atriz que caíram na rede enquanto formatavam seu computador. Mesmo mediante processo e com os culpados localizados, foi impossível fazer com que as fotos sumissem da rede, já que as informações surgem de acordo com a necessidade do pesquisador e, assim, várias pessoas acessam e guardam esses conteúdos e os disponibilizam novamente.

8.2 A condição humana em tempos de redes sociais Hannah Arendt (2005), em sua obra A Condição Humana, trata da autoimposição do homem quanto a sua necessidade de sobrevivência, o que garantiria a existência humana. Essas condições, segundo a autora, variam de acordo com o contexto vivido e, dessa


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forma, todos os homens são condicionados de algum modo. Até mesmo aqueles que condicionam o comportamento de outros se tornam condicionados pelo próprio movimento de condicionar, o que nos remete à condição de “enredamento” citada anteriormente. Se antes essa análise era feita baseada nas condições de trabalho e produção, em que o ser humano se tornava dependente daquilo que produzia, agora a dependência pode ser analisada a partir das interações que acontecem em rede e daquilo que produzimos por meio dessas interações: cultura e aprendizagem.

A interação que ocorre tendo por ferramenta a internet apresenta atualmente fenômenos que não podem ser negados. Quanto mais conectores tem a rede, maior é a probabilidade de que pessoas que conhecemos na rede conheçam umas às outras. Por afinidade, percebemos pessoas agindo tal qual a movimentação dos cardumes de peixes no mar (fenomenologia denominada sworming): seguem nas mesmas direções na busca por conhecimentos pautados nos mesmos interesses.

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8.2.1 Complexidade e desafios

Um exemplo desse movimento integrado são as manifestações no Brasil nos anos 2013 e 2014. Não houve um chamamento; na verdade, as pessoas divulgaram as ações que ocorreriam em determinados locais e datas e, de repente, todos os interessados pelo tema estavam nas ruas para expor sua opinião e dar força ao movimento. Esses fenômenos alteram molecularmente a sociedade, a fenomenologia da interação reorganiza os espaços e norteia as ações dos indivíduos por meio do contágio.

Houve uma mudança na topologia da rede quando a internet deixou de ser corporativa e passou a atender aos usuários comerciais. Antes, grandes servidores controlavam e centralizavam as informações; atualmente, essas informações estão disponibilizadas de forma descentralizada e rumamos para uma topologia distribuída (FRANCO, 2012).

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8.2.2 O humano nas redes


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Os mundos estão altamente conectados; temos muitos mundos e muitas redes de transmissão, e não mais de um recurso, como foi o caso da televisão, do rádio ou do livro após Gutemberg. Agora, a exposição se dá de todos para todos. Uma informação transmitida pelo jornal no passado, por exemplo, dificilmente seria contestada em tempo real ou, caso essa contestação fosse exposta, seria para a família ou alguns amigos reunidos em casa, ao contrário do que ocorre atualmente, em que, ao discordar de algo, as pessoas fazem uso da internet para expor suas opiniões.

No século XV, Johann Gutenberg inventou a máquina para reprodução de textos impressos. A grande revolução consistiu em deixar de reproduzi-los manualmente e fazê-lo em série, o que pode manter, por exemplo, a originalidade do documento.

8.2.3 O olhar invisível do outro lado A conscientização – ao disponibilizar algo na rede que não é mais possível retirar – deve ser despertada nos indivíduos. A rede, ao mesmo tempo que aproxima as pessoas por interesses e afinidades, também possibilita ações anônimas. Ao compartilhar determinado conteúdo, não é possível mensurar seu alcance e muito menos quem o visualizará. Ao disponibilizar informações na rede, é necessário ter em mente que pessoas desconhecidas terão acesso a suas informações e não há possibilidade de mensurar de que forma esses conteúdos podem ser manipulados. Montagens de fotos, dados do cartão de créditos, informações guardadas em e-mails: não sabemos quem pode estar na busca por essas informações.

8.2.4 Os paradigmas da condição humana O modelo de educação dos séculos XIX e XX que normalmente é importado – a exemplo do construtivismo de Piaget e do sociointeracionismo de Vygotsky – para atender aos sistemas de ensino brasileiros não alcançou resultados desejados no que tange ao cognitivo, conforme mostram os índices de avaliações externas, como a Provinha Brasil. É possível perceber que tal importação não dá conta da realidade brasileira. A reprodução de modelos importados traz consequências para a aprendizagem. Apesar dessa consciência, não construímos um modelo próprio, o que dificulta que o professor produza conhecimento pautado em problemas sociais e alteridade. A crise da modernidade se relaciona à crise da autoridade no campo educacional. Essa crise é entendida como a perda de estabilidade tanto do conhecimento quanto dos professores que ensinam tal conhecimento.


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8.3 O espaço da sala de aula e o mundo digital Aprendizagem é a capacidade de um organismo interagir e se adaptar às mudanças do meio tempestivamente; o conhecimento está implicado nesse processo de fazer e refazer as influências múltiplas e recíprocas com o meio. Esse meio, seja em rede ou sala de aula, deve proporcionar condições para que a criatividade seja potencializada. A sala de aula, na busca pela aprendizagem, deve exercitar cada vez mais as possibilidades de interação tanto para investigar como para aprender. Com essa investigação, surge uma teoria da aprendizagem mais sinérgica ao mundo que vivemos, diferente das teorias aplicadas anteriormente, que focaram os processos de ensino.

8.3.1 Ressignificando os espaços escolares

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O processo de autodidatismo aumentou de forma imensurável. A sociedade hoje passa pela questão do aprendizado balizada pela interação. A forma de ensinar mudou e a busca de locais de aprendizagem também. Atualmente, vivenciamos um processo de transição em que saímos de uma sociedade hierarquizada, com ordens verticalizadas – a exemplo do MEC, que lança uma portaria, a qual é encaminhada para a Secretaria da Educação, que, por sua vez, a encaminha para a diretoria de ensino, que fará a escola tomar ciência por meio dos gestores, e estes encaminharão a informação para a coordenação pedagógica, que passará ao professor e, por fim, apresentará o conteúdo da portaria para seus alunos – para uma sociedade em rede, em que a publicação de algo chega aos interessados quase instantaneamente. De acordo com Levy (1999), as instituições dedicadas à educação perderam o monopólio do conhecimento. Hoje, uma pessoa de posse de alguns conhecimentos se torna um buscador – no sentido de procurar o conhecimento que ele julga necessário para si – e, por consequência, um polinizador. O indivíduo aprende o que quer e na hora que quer com condições mínimas de linguagem, conhecimentos matemáticos básicos e acesso à informática e à banda larga.

A polinização ocorre quando guardamos o que é relevante na rede por meio dos amigos de forma que não precisamos arquivar nada em nossa cabeça. É um termo cunhado pela ciência que estuda as redes sociais.


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8.3.2 Sociedade e cultura digital O mercado editorial lucra com a venda de produtos e com a produção cultural que será utilizada no ambiente escolar. Por esse motivo, existe uma resistência quanto à produção de recursos digitais – alguns existentes parecem meras reproduções dos materiais impressos. O mercado ainda não compreendeu que o conhecimento deve ser de domínio público e que o que deve ser vendido é apenas o objeto. A sociedade que recebe a cultura produzida como mercadoria se depara com um problema: devido à reprodução em massa, ocorre uma padronização e, por consequência, a qualidade do material distribuído se torna baixa. Um local aberto à experimentação, liberto de padrões e com espaço para o erro faz uso desses recursos como forma de produzir cultura. A rede e os recursos potencializam o desenvolvimento do indivíduo que esteja em um ambiente adequado. O ambiente moderado possibilita o desenvolvimento do indivíduo por meio da tentativa, e o erro abre espaço para novas experimentações e a novas respostas para questões fundamentais para aquele sujeito.

Aprendizagem passa por mudanças no contexto atual. O indivíduo aprende na rede por meio da busca de seus interesses e, muitas vezes, por meio da polinização. Ele sabe onde a informação está e, conectado à rede, fica fácil de alcançar esse conteúdo. No fundo, o sujeito está aprendendo a aprender. Com isso, o mundo passa a aprender de forma mais orgânica.

8.3.4 Liberdade para pensar Conforme a sociedade faz uso da rede, mais a topologia de sua rede muda, tornando-se mais distribuída. O conhecimento passa a estar em vários pontos diferentes. Cada vez mais percebemos que o conhecimento está distribuído e não centralizado, então a aprendizagem tende a ocupar todos os espaços. Temos aí uma relação da autoaprendizagem contra a aprendizagem comum: o indivíduo busca, poliniza, interage e produz conhecimento. Por fim, produzir conhecimento leva à crítica e, consequentemente, gera a liberdade de pensamento.

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8.3.3 Os novos campos do saber


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8.4 Novos tempos e desafios contemporâneos O mundo está assimetricamente fragmentado e isso não é pejorativo; ao contrário, essa fragmentação possibilita novas criações e interações. Atrelado a isso, mundos locais, agrupamentos específicos, já adquirem características do mundo todo.

8.4.1 Informação e conhecimento Enquanto conteúdo já está dado no ensino, na aprendizagem o conteúdo é aberto, porque aprendizagem é criação. Aprendemos aquilo que inventamos – a exemplo da teoria sócio-interacionista quando aplicada à rede – e o que nos interessa, porque aprender não é guardar um conteúdo no cérebro. A potencialidade e habilidade criativa tende a aumentar quando alcançamos sucesso em ser um indivíduo livre e aprendente. Para trilhar essa liberdade, existem as conexões, as relações sociais e, nesse sentido, a rede passa a ser um elemento fundamental na aprendizagem e, por conseguinte, na produção cultural.

8.4.2 O percurso cultural das novas gerações Ao aluno devem ser apresentados os múltiplos mundos que existem e esse aluno deve ser estimulado a cuidar desses espaços. O educador deve adotar uma postura diferente – de preservação do mundo – para apresentar tais espaços para as novas gerações. Além disso, deve permitir que essa geração traga sua contribuição para mudar. A tarefa da educação é justamente apresentar o mundo às gerações do presente. O meio sempre será local para lidar com a tensão entre a novidade e aquilo que já foi instituído. Um meio que trabalhe bem com tais questões é espaço potencializado para a aprendizagem. O mundo persevera se os alunos trouxerem suas experiências e aplicá-las nas tradições herdadas

8.4.3 As novas “tribos” As singularidades unem pessoas em rede, levam o indivíduo a procurar por seus interesses e encontrar pessoas que buscam o mesmo. É a rede que articula essas relações (MAGNANI, 1992). Punks, góticos, emos, torcidas organizadas, grupos de funk (maior movimento cultural de massa): as tribos surgem como resposta aos anseios comuns de determinados grupos, há espaço para todos no que tange à rede social. As tribos urbanas são resultado da pós-modernidade e os indivíduos se sentem importantes por pertencerem a um grupo ou a vários que expressem suas ideologias. Essa sensação de pertencimento traz segurança para esses sujeitos. Presentes em todos os espaços, esses agrupamentos estão na rede, na escola, e transformam os lugares por onde passam.


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8.4.4 Educar a humanidade

A exigência hoje de uma sociedade cada vez mais em rede é voltada para o desenvolvimento de mentes criativas que sejam capazes de enfrentar os desafios, de resolver um problema. Na verdade, o que se torna primordial é a capacidade do indivíduo em perceber um problema onde ninguém percebeu e de propor resultados, de propor novos problemas ou soluções inéditas para problemas antigos que ninguém resolveu ainda. Surge daí uma teoria conectivista (FRANCO, 2012) que explica todo o processo de aprendizagem em rede. Em suma, a construção do conhecimento por meio das interações que ocorrem nas redes produz como resultado um processo em que o educando aprende a aprender alcançando objetivos educativos por si mesmo. E, por fim, o uso de tais conhecimentos ajuda o estudante a determinar seu lugar no espaço e colaborar com o aprendizado de seus pares.

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Devemos nos preocupar com as potencialidades da criação em detrimento da reprodução de conteúdos que ocorre por meio do ensino. Até hoje tivemos várias teorias da educação e recentemente começaram a surgir novas concepções que questionam sobre o que é importante saber.


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