Caçadores de história

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Caçadores HISTORIAS Grupo de historiadores é especializado em descobrir informações perdidas no Arquivo Público da Bahia

Texto VITOR PAMPLONA vpamplona@grupoatarde.com.br Foto MARCO AURÉLIO MARTINS mmartins@grupoatarde.com.br

o prédioda Quinta doTan-

e, após descer dois vãos de escada em di­

que, construção do século

reção ao térreo, encontrou uma moça com

16 onde funciona o Arqui­

lágrimas nos olhos. Chamava-se Luciana.

vo Público da Bahia, o si­

O motivo do choro: sua irmã, que tra­

lêncio é de ouro. Na sala

balhava na Itália, corria risco de expulsão

destinada à consulta dos

do país por não ter visto de permanência.

documentos históricos, muitos deles ma­

Sustentadapelodinheiroenviadotodosos

nuscritos originais do Brasil colonial, ape-

meses do exterior, a família sentia-se

naso som provocado pelos maços de papel

ameaçada pela extradição. "Ela estava de­

está autorizado.

sesperada", lembra Urano. "Tinha vindo

Mas, numa tarde de 2006, um choro

procurar o registro de entrada de passagei­

ecoounopátiodoedifíciodedoispavim en-

ros na Bahia, em busca do dia em que o

tos, localizado na Baixa de Quintas, em Sal­

bisavô italiano chegou aqui".

vador. Funcionários do arquivo, que com­

O pesquisador reuniu alguns colegas e

pleta 120 anos em 2010 e é o mais impor­

começaram a procurar. "Encontramos não

tante do País depois do Arquivo Nacional,

só a inscrição da entrada do bisavô dela no

no Rio de Janeiro, pararam de trabalhar.

portode Ilhéus, m assuascertidõesdenas-

Na sala de consulta, pesquisadores perde­

cimento e casamento. Isso salvou a famí­

ram a concentração. O historiador Urano

lia". Após alguns dias, um tradutorfoi con­

Andrade abandonou papéis sobre a mesa

tratado e, ao fim do julgamento do proces-

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LEIS RELIGIOSAS Uma das peças antigas mais bem conservadas do Arquivo Público da Bahia é o Compromisso da Irmandade de S. Benedito da Matriz da Conceição da Praia, um código de leis de 1684


so na Itália, a irmã de Luciana obteve a du­

denunciava para a arquidiocese, na capi­

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pla nacionalidade, podendo permanecer legalmente na Europa.

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AVENTURA

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tal, que um europeu de 'm aus hábitos'ha­ via chegado à vila quando os índios estavam já 'domesticados'. O estrangeiro intro­ duziu o álcool e teria, de certa forma, per­

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turbado a ordem. Foi um caso muito de­

Para Urano, um ex-gerente de super­ mercado de 37 anos que só entrou na fa­

talhado, interessante".

culdade de história depois dos 30, o epi­ sódio ilustra os momentos emocionantes

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de uma profissão que parece saída de fil-

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CONVIVÊNCIA .

No Arquivo Público da Bahia, principal

m esdeaventura:adecaçadordehistórias.

território de atuação dos dois pesquisado­

Sob um olhar generoso, ele é um Indiana

res, eles conheceram Cândido Domingues,

Jonesdosdocum entosraros,queconciliaa

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lidade de antepassados e tem no currículo

a atividade de professor. Mas as semelhanças com o persona­ gem aventureiro, vivido no cinema por Harrison Ford, terminam aí. Urano não gosta de se meter em conflitos nos quais é quase impossível descobrir quem é o ban­ dido e quem é o mocinho. "Prefiro não fa­ zer pesquisas sobre questões envolvendo,

25, e Jacira Santos Pinto, 31. Cândido já ajudou pessoas a comprovarem a naciona­

descoberta de informações históricas com

ILHA DE PRESENTE A carta de doação da Ilha de Itaparica (na época chamada sesm aria), feita pelo primeiro governador-geral do Brasil, Thomé de Souza, é o mais antigo documento preservado no acervo do Arquivo Público. A ilha foi doada ao nobre português D. Antônio de Ataíde, conde de Castanheira, em 1552

o trabalho de recolher material para livros como Dom ingosSodré-Um SacerdoteAfri-

cano (Companhia das Letras), a elogiada biografia de um ex-escravo escrita pelo his­ toriador baiano João José Reis, um dos maiores estudiosos da área no País. Jacira também fez pesquisas para obras do gêne­

por exemplo, brigas por herança ou reser­

ro e encontrou documentos ligados a ques­

vas indígenas".

tões imobiliárias. Recentemente, uma

Desde que começou a vasculhar o pas­

construtora a procurou para encontrar a es­

sado, como monitor de pesquisas univer­

critura de um terreno no IAPI (bairro), onde

sitárias, há sete anos, ele se aproximou de

a empresa pretende construir um edifício

outros pesquisadores. Juntos, formaram

de apartamentos. "Acabamos criando laços de amizade e

um grupo especializadoemdesenterrarinformações perdidas em papéis am arela­

de pesquisa, seja nas universidades ou em

conhecendo o trabalho um do outro", re­

dos, cuja escrita dificilmente é compreen­

outras demandas, como passaporte, du­

vela Jacira. Esse efeito colateral do convívio

sível para uma pessoa sem familiaridade

pla nacionalidade, escrituras. Tudo isso es­

representa uma conveniência: como cada

com a grafia de séculos passados.

tá envolvido com documentação histórica.

um deles é especializado em temas e pe­

Por isso, surgiu a proposta de criar o grupo

ríodos distintos da história do Brasil e da

e profissionalizar a atividade".

Bahia, os quatro conseguem cobrir pratica­

Em comum com a maioria dos historia­ dores, eles têm projetos pessoais e traba­ lham para escrever as próprias teses e dis­

O primeiro a embarcar na ideiafoiJetro

mente todo o acervo do Arquivo Público,

sertações. Mas, ao oferecer seus serviços

do Carmo da Luz, 28, que há cinco anos co­

onde os documentos ocupam estantes

a terceiros, que os contratam para encon­

nheceu Urano na Católica. No começo de

que, alinhadas, preenchem uma distância

trar a informação que precisam, já ajuda­

sua carreira de caçador de histórias, cada

equivalente a 25 quilômetros.

ram a resolver questões judiciais, recons­

incursão nos acervos significava uma sur­

O trabalho dos caçadores de histórias

truir árvores genealógicas e reunir mate­

presa. "Lembro que, ao fazer um trabalho,

costuma ser remunerado por hora. "M as

rial fundamental para o trabalho de outros

encontrei cartas de cerca de 1850, escritas

posso fechar um pacote, se a pessoa já sa­

historiadores.

por um padre da região de Rodelas (a 540

be o que quer", explica Urano. "Cobro um

quilômetros de Salvador)", diz. "O padre

determinado valor para fotografar um ma-

"Sempre vão existir pessoas precisando


Grupo procura informação de casos históricos e já ajudou a resolver questões judiciais e a reconstruir árvores genealógicas Ç çocom pletodedocum entos.Seapesquisa

Uma das coleções mais importantes é a

for mais intensa, quando tenho de procu­

de documentos judiciários, produzidos pe­

rar personagens, o valor é maior".

lo antigo Tribunal de Relação do Estado do

De negociação em negociação, as inves­

Brasil e da Bahia, a corte suprema colonial

tigações rendem em torno de 600 reais

criada há mais de 400 anos que deu ori­

mensais em cada trabalho. O valor máxi­

gem ao Tribunal de Justiça da Bahia e ao

mo já recebido por ele, por um único ser­

Supremo Tribunal Federal.

viço, foi 1.500 reais, para localizar e foto­

Reconhecidos pela Unesco, os cerca de

grafar seis maços de documentos. Urano

64m ildocum entosdoTribunalganharam ,

levou duas semanas. "Hoje, mando catá­

há dois anos, o título de Memória do Mun­

logos digitalizados para interessados em

do, o equivalente a serem tombados como

Portugal, nos EUA e outros países. Eles di­

patrimônio da humanidade. "Nossa preo­

zem o que precisam e eu pesquiso". Atual­

cupação é preservar e difundir", diz a dire­

mente, trabalha para uma pesquisadora

tora doArquivo Público da Bahia, Maria Te­

turca da Universidade de Nova Orleans.

resa Matos. "Égratificante quando alguém nos procura para comprovação de direitos

ACERVO

e podemos ajudar".

As facilidades trazidas pelos investiga­

Atualmente, o arquivo cuida da recupe-

dores profissionais, porém, não impedem

raçãodoacervoligadoàlndependênciada

que muitos estrangeiros frequentem pes-

Bahia, restaurado com patrocínio do go­

soalmente o Arquivo Público. Em regra,

verno da Espanha. O próximo passo é a di­

vêm atrás do valiosíssimo acervo colonial,

gitalização dos papéis, mas a direção afir­

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que remete ao período e m q u e a cidade de

ma ainda não contar com a infraestrutura

Salvador foi capital do Brasil.

tecnológica necessária. Uma referência,

REBELIÃO ESCRAVA Escrita em árabe, esta carta do escravo Amaro Ussá foi apreendida pelo governo imperial brasileiro durante a repressão à Revolta dos Malês (1935), movimento liderado por negros muçulmanos insatisfeitos com a escravidão, que tinham como objetivo a conquista da liberdade e a criação de uma república islâmica

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Arquivo Público da Bahia tem 120 anos e é o segundo mais importante do País, mas o prédio que o abriga precisa de reparos

segundo Maria Teresa, é a digitalização do acervo de A TARDE, feita

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em parceria com a Humanidades Editora e Projetos, com apoio do Arquivo Público, onde as edições podem ser consultadas. Além disso, novas normas de consulta para pesquisadores fo­ ram aprovadas pelo governo estadual para proibir o acesso de não-funcionários aos depósitos. O objetivo é evitar a perda ou ex­

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travio de documentação. Mas o arquivo não tem muito mais a co­

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memorar. Parte da memória da Revolução dos Alfaiates e da Re­

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lares da história da Bahia, está com os documentos corroídos ou

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volta dos Malês, duas das mais significativas insurgências popu­

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parcialmente destruídos, à espera de restauração. Tombada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Na­ cional (Iphan) desde 1949 , a Quinta do Tanque passou por uma inspeção técnica no final de agosto. Segundo o relatório produzido pelo órgão, a situação do imóvel é preocupante. Sem manutenção, cerca de 20 % da madeira do telhado e 50 % do forro estão com­

REPÚBLICA BAIANA Uma das coleções mais valiosas é a da Conjuração Baiana (1798), ou Revolta dos Alfaiates. O Arquivo Público tem o registro da devassa feita pelas autoridades da coroa portuguesa sobre bens e papéis dos revolucionários, que eram republicanos

prometidos pela umidade. O Iphan apontou ainda goteiras, fiação elétrica exposta - há risco de incêndio - e esquadrias danificadas, entre outras inadequações. O diretor de arquivos da Fundação Pe­ dro Calmon, Paulo de Jesus Santos, responsável pelo Arquivo Pú­ blico, promete restaurar o telhado e instalar um sistema anti-in­ cêndio no prédio. Para os caçadores de histórias, o caso não é ape­ nas de preservar uma memória de valor incalculável. "Vemos nessa atividade um mercado de trabalho a ser explo­ rado", acredita Urano. "Facilitamos o acesso aosdocum entose aju­ damos outros pesquisadores a ter novos olhares sobre nossa his­ tória, o que é muito importante". Anote-se. Arquive-se.«

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SERVIÇO Arquivo Público da Bahia / Ladeira de Quintas, 50, Baixa de Quintas / Tel. (71) 3116-2163. Saiba mais sobre os caçadores de histórias: www.uranohistoria. blogspot.com


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